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Capítulo 1

oS IlíCIToS CIVIS: AS quESTõES FuNdAmENTAIS

1.1. visão tradicional: a insuficiência dos padrões clássicos de referência

Este livro tenta redimensionar os pressupostos e efeitos dos ilícitos civis, buscando demonstrar que a visão tradicional é insufi-ciente, porquanto não abarca todas as possíveis feições do fenôme-no, deixando descobertas, sem explicação bastante, condutas cuja inserção só pode ser feita entre os atos ilícitos.

O que nos interessa é a sistematização dos ilícitos civis. Não en-tra como tema de análise a responsabilidade civil, senão como efeito de uma espécie ilícita. Ainda assim, somente no que pode esclarecer a natureza de ato que a fez surgir. Não se trata, portanto, de um es-tudo sobre os efeitos dos atos ilícitos. O plano é anterior e prévio.

Procuramos nos movimentar no plano da teoria geral do direi-to civil, buscando descobrir, à luz dos conceitos fundamentais, os traços essenciais de sua ilicitude. Aqui as perguntas são outras: o que é ilícito, dogmaticamente falando? O ilícito é jurídico? Existe distinção entre as espécies ilícitas no direito civil? Ou, antes: exis-tem outras espécies, que não o ilícito indenizante? Todo ilícito civil é culposo? Todo ilícito civil é danoso? O ilícito civil pode produzir outro efeito, que não o dever de indenizar?

Alguns pronunciamentos, pela infecunda repetição dos infor-mes legais, fazem crer que a ilicitude civil não tem luz própria. A su-peração de um estudo estritamente dogmático, aliada à necessária percepção que os ilícitos civis não se resumem à eficácia de reparar os danos causados, permite o ingresso numa nova etapa metodo-lógica, com o consequente redimensionamento dos pressupostos teóricos, permitindo uma profícua compreensão.

Curioso é notar como o ilícito sempre aparece mesclado com a responsabilidade civil, que é apenas uma das modalidades possí-

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veis de sua eficácia. Nunca, pelo menos ao que nos conste, surgiu a preocupação, em pesquisas monográficas, de teorizar o tema, como classe autônoma e de inegável importância de fatos jurídicos.

Sintomático do abandono teórico a que foi relegada a matéria é o fato de que uma perspectiva adequada de análise tenha partido de um processualista, e não de um civilista, para usar as gastas e ambíguas qualificações tradicionais. Assim, Marinoni, argutamen-te, clamou pelo aprofundamento do estudo do conceito de ilícito civil2.

Talvez a ausência de interesse se explique pela confusão criada entre o gênero - os ilícitos civis – e uma espécie – o ato ilícito inde-nizante3. Sempre que se falava no tema, invocava-se essa espécie, e tudo que fosse característica sua, atribuía-se, em descabida gene-ralização, à classe, ao gênero ilícito. E como essa espécie é gerado-ra de responsabilidade civil, nasceu outra identificação: ilícito civil é igual à responsabilidade civil. Porém, como demonstraremos, a responsabilidade é efeito de uma espécie de ilícito. E mais ainda: pode haver responsabilidade sem ilícito. Nada justifica, portanto, o tratamento conjunto de realidades distintas.

Em ciência uma premissa equivocada quase sempre leva a con-clusões infundadas. A identificação do todo com uma parte gerou, como dissemos, a transposição para o gênero de uma série de qua-lidades que definem uma espécie. E assim surgiram os dogmas que permeiam o assunto: todo ilícito é culposo; todo ilícito é danoso; todo ilícito é causa de dever de indenizar. Este trabalho procura, em grande parte, desfazer tais equívocos.

1.2. lícito e ilícito: diferentes graus de refinamento teóricoO ilícito não se desenvolveu, gerando monografias e discussões,

como os atos lícitos de ordem civil. Estes atingiram notável grau

2 Luiz Guilherme Marinoni, Novas Linhas do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 112.

3 Pontes de Miranda prefere o termo ato ilícito em sentido estrito, ou delito civil (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 213). Essa expressão, contudo, não nos serve, porquanto abrange, em seus limites conceituais, a culpa e o dano, fatores estranhos à eficácia. A questão está melhor explicada no capítulo 6.1.4.

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de refinamento teórico, suscitando e resolvendo questões que sur-giam do aprofundamento dos debates. Tamanha foi a dimensão do fenômeno, que o nosso direito positivo definiu ato jurídico como ato lícito, eclipsando, totalmente, a categorias dos ilícitos, como ato jurídico gerador de efeitos civis.

Construiu-se, destarte, em relação aos lícitos, vigorosa doutri-na, que perpassou, durante décadas, a história do direito civil. Ba-seada, fundamentalmente, na autonomia privada, estabeleceu que as pessoas tinham uma esfera de condução dos próprios interesses ao abrigo de ingerências estranhas, e que poderiam, contratando, preencher esse branco deixado pelas normas.

Trata-se, obviamente, de concepção de forte inspiração liberal, sem falar que a noção de autonomia privada sofre sérios ataques, com o surgimento de estudos demonstrando sua inadequação com as relações contratuais contemporâneas, massificadas e impesso-ais, que distam, progressivamente, do esquema clássico4.

Mas é significativo sublinhar o exaustivo trabalho havido, de um lado, de construção de conceitos e categorias tendentes a explicar a realidade dos atos lícitos, e a praticamente nenhuma preocupação com os atos ilícitos, que, paralelamente aos lícitos, povoam o mun-do civil.

É pertinente, por conseguinte, averbar a profunda diferença en-tre as duas categorias, sob o prisma teórico. Com os lícitos, avultam livros, monografias, toda espécie de comunicação científica ten-dente a divulgar e discutir os aspectos atinentes ao tema. Assim, são fartas as menções aos pressupostos dos atos jurídicos lícitos, ao eterno debate entre as teorias da declaração e a da vontade, aos elementos essenciais e acidentais dos atos jurídicos, à questão da capacidade, da boa-fé, etc.

Os ilícitos sempre se mantiveram à margem, como questão menor, relegados a um plano secundário, quando muito. Não hou-ve, absolutamente, a construção de um estatuto teórico, tal como existe com os lícitos, nem uma unidade lógica de pensamento. As referências, sempre genéricas, em livros também genéricos, limi-

4 Paulo Luiz Netto Lôbo. Do contrato no Estado Social. Maceió: Edufal, 1983, p. 128.

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tavam-se, na maioria dos casos, a repetir os pressupostos do ilícito indenizante, reforçando falsos conceitos, como a culpa e do dano, que sempre foram erigidos à condição de pressupostos necessários à definição da ilicitude civil.

1.3 a ausência de um estatuto teórico para os ilícitosA análise da jurisprudência não conduziu a doutrina brasileira

a uma teorização acerca dos ilícitos. Sem embargo de quase um sé-culo de vigência do nosso Código Civil de 1916, as análises manti-veram-se basicamente as mesmas, desde o início do século passado até o início do nosso século. O panorama teórico dos ilícitos, gros-so modo, apresenta-se como uma vasta coleção de fatos empíricos apenas frouxamente ligados pela teoria.

Sociologicamente, é possível relacionar, não sem apontar o ca-ráter precário e aproximativo dessas ponderações, a ausência de aprofundamento teórico na matéria com a definição de ato ilícito, peremptória e supostamente definitiva, do Código Civil de 1916. Ou seja, a doutrina, em conformidade com os padrões metodológicos então reinantes, não avançou na análise, guardando, ao revés, uma atitude de profunda reverência com o conceito legal, como se ele realmente esgotasse a sistemática jurídica pertinente à espécie.

Houve, portanto, uma paralisação teórica, um ambiente teorica-mente morno, sem discussões significativas. Aliás, a matéria sem-pre se ressentiu de grave desvio de perspectiva, consistente em tra-tar dos ilícitos em conjunto com a responsabilidade civil. É preciso frisar que os temas, pertinentes à responsabilidade, não guardam necessária relação com os temas relativos aos ilícitos civis5.

Os tratados e manuais de direito civil sempre apresentaram os ilícitos como uma categoria sem muito interesse teórico. A única eficácia possível, na esteira do direito legislado, seria o dever de indenizar. A casuística se encarregaria de estabelecer os casos pas-

5 Mesmo numa perspectiva puramente ressarcitória – e oposta a por nós adotada nesse trabalho – é possível perceber a tendência ao abandono da categoria clássica do ilícito extracontratual em oposição ao ilícito contratual, em favor de uma nova figura, de maior abrangência, denominada, por Grant Gilmore, de contort.(The Death of Contract. Columbus: Ohio state University press, 1974).

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síveis de indenização, desde que, é claro, estivessem presentes as clássicas notas (culpa e dano).

Algo semelhante, mutatis mutandis, com o que ocorre no direito inglês, onde a constatação do tort dá ensejo à ação de indenização. Se a ação ou omissão é reputada ilícita, pertine a reparação. Não existe, no entanto, uma doutrina sistemática, sendo os casos que formam a teoria. Aliás, o sistema jurídico inglês é conhecido por não dar muita importância à teorização, sendo infenso a construções meramente abstratas, sem relações com os casos reais levados a juízo.

1.4. ilícitos civis: eficácia ou eficácias?Uma das mais conhecidas associações, que se faz a respeito dos

ilícitos, diz respeito aos efeitos por eles produzidos. De fato, sempre que se pensa em ilícito civil, relaciona-se, quase que intuitivamente, o dever de indenizar, como eficácia naturalmente produzida. Essa é uma ideia que nasceu, muito provavelmente, conforme observamos há pouco, da definição de ilícito do Código Civil de 1916, que rela-cionou, de forma peremptória, ilícito ao dever de indenizar, como eficácia supostamente única (“art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”)6.

6 Trata-se, por certo, da mais conhecida cláusula geral do direito privado brasileiro, a cláusula geral da responsabilidade civil subjetiva (CC/1916, art. 159; CC/2002, art. 186). De toda sorte, e sem embargo das múltiplas críticas que se lhe possam ser feitas – no sentido de pretender esgotar o conceito de ilícito civil (não esgota) – é certo que o art. 186 do Código Civil (correspondente ao art. 159 do Código revogado) é superior a outros modelos legislativos, como por exemplo o alemão. Aliás, o próprio BGB, tido como uma codificação tecnicamente escorreita, inseriu o ilícito civil na parte especial, no direito das obrigações, e não na parte geral, como fez o Código Civil brasileiro. Outrossim, o BGB optou (§ 823) por uma descrição tarifada dos bens jurídicos que, violados, ensejariam ilícitos, numa técnica inferior àquela adotada pelo Código Civil brasileiro, que se valeu de cláusulas gerais (arts. 186 e 187). A propósito, por incrível que possa parecer a um observador estrangeiro, no ordenamento alemão não se indenizam danos de caráter exclusivamente patrimonial (reine Vermögensschäden). Apenas o que eles chamam de “bens jurídicos absolutos” (absolute Rechtsgüter), que foram mencionados em modelo casuístico na lei (propriedade, integridade física, e liberdade pessoal). Há, é verdade, uma tímida cláusula de abertura, que menciona “demais bens jurídicos” (sonstige Rechte). Porém a jurisprudência alemã sempre interpretou de modo restrito esse conceito jurídico indeterminado.

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Tal disposição, que praticamente exaure o Título “Dos Atos Ilíci-tos” do Código Civil de 1916, sempre foi lida como se esgotasse as possibilidades de ilícitos no campo do direito civil.

No entanto, a doutrina poderia, investigando o ordenamento, concluir que não obstante a letra do Código, ilícitos existiam que não participavam daquela definição legal. Não foi esse, contudo, o procedimento adotado. Houve certa mudez doutrinária, possivel-mente nascida da convicção de que a opção do legislador estaria acertada. Aliás, a posição doutrinária quanto aos ilícitos civis foi, desde o advento do Código Civil, extremamente restritiva, sempre se entendendo que a matéria iniciava-se e findava-se com a análise do ilícito cujo efeito é a responsabilidade civil (seja no art. 159, aci-ma transcrito, do Código Civil de 1916, seja no art. 927 do Código Civil de 2002).

Bem sintomática dessa crença foi a postura de Clóvis Beviláqua. O ilustre jurista, quando das discussões para a feitura do nosso Có-digo Civil de 1916, pugnava contra a inclusão legislativa dos ilícitos num título único, ao argumento que lhes faltava “a necessária am-plitude conceitual”7. Tal posição – que restou vencida quando da re-dação do Código – reflete bem a mentalidade dos juristas a respeito da matéria, que não foi sequer encarada como um problema que merecesse cogitação teórica.

No entanto, a experiência jurídica moderna desmente tal iden-tificação entre ilícito e responsabilidade civil. Não é possível, teori-camente, manter a tradicional associação.

Primeiro, responsabilidade civil é efeito, não é causa. Seu isola-mento temático induz a certas análises equivocadas, que ofuscam o fato jurídico, lícito ou ilícito, que origina o dever de indenizar. De-pois, uma abordagem restrita à responsabilidade civil necessaria-mente oblitera as eficácias não indenizantes dos ilícitos civis.

A responsabilidade civil – cabe sempre repetir – é efeito de cer-tos ilícitos civis, não de todos. Existem, portanto, ilícitos civis que não produzem, como eficácia, o dever de indenizar. Nada, nestes termos, autoriza uma abordagem conjunta e monolítica, que obs-cureça as diferenças significativas existentes.

7 Clóvis Beviláqua, O Código Civil comentado. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.

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No direito dos oitocentos, cujo paradigma legislativo foi tão bem traduzido pelo nosso Código Civil de 1916, os ilícitos já não os-tentavam apenas a eficácia indenizante. Essa foi uma falha de pers-pectiva advinda do apego ao literalismo do Código. Existiam então – como ainda hoje existem – ilícitos com efeitos que consistem em autorizações, ou ilícitos que implicam na perda de direitos em rela-ção a quem os praticou.

Por outro lado, o dever de indenizar pode resultar de ato líci-to. O dever de indenizar resultante de ato praticado em estado de necessidade não importa em resultante de ato ilícito, porquanto a contrariedade ao direito foi pré-excluída. Assim, “há indenizabilida-de – excepcionalmente, é certo – que não resulta da ilicitude. Repa-ram-se danos que se causaram sem que os atos, de que resultaram, sejam ilícitos”8.

Ainda que a maioria dos ilícitos civis importe em dever de inde-nizar, isso, decerto, não pode servir como escusa para que se lance as demais espécies para debaixo do tapete. Se a eficácia indenizante não exaure o espectro das eficácias possíveis dos ilícitos civis, está evidenciada a inconveniência do critério clássico.

É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de in-denizar. Esse dever, bem vistas as coisas, representa a eficácia de uma espécie de ilícito – o ilícito indenizante –, sem que possa ser tido, ademais, como propriedade exclusiva sua, mercê da possibili-dade de surgir como eficácia produzida por um ato lícito.

O conceito de ilícito civil que defendemos harmoniza-se com os estudos que vêm renovando o direito processual civil nas últimas décadas. Autores de fino espírito científico – representados por Luiz Guilherme Marinoni – têm se debruçado sobre a tutela inibi-tória (Código de Processo Civil, art. 461), instituto cujo objetivo é inibir, impedir a prática de um ilícito civil9.

8 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 197.

9 Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória: individual e coletiva. São Paulo: RT, 1998; Sérgio Cruz Arenhart, A tutela inibitória da vida privada. São Paulo: RT, 2000; Joaquim Felipe Spadoni, Ação inibitória. São Paulo: RT, 2000.

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1.5. ilícito civil e responsabilidade civil: a impertinência da identificação

Nesse contexto, é fácil perceber a quase identidade, para o sen-so comum teórico, entre ilícitos civis e responsabilidade. A doutri-na, grosso modo, os trata de forma conjunta, como se fossem duas faces de um mesmo fenômeno. São comuns, destarte, ponderações no sentido da absoluta indissociabilidade entre os atos ilícitos civis e a responsabilidade civil10.

Na concepção que chamaremos, por brevidade, de clássica, o ilícito é pensado e tratado, sempre e sem exceção, como um apên-dice da responsabilidade civil. Não haveria, para os que perfilham semelhante concepção, razão maior para diferenciação, porquanto, segundo raciocinam, o ilícito produz sempre, como eficácia, a res-ponsabilidade civil, de modo que estudando essa estaremos, com vantagem, estudando aquele, ainda que nem toda responsabilidade civil advenha de atos ilícitos.

Esse modo de pensar não aceita que possam existir espécies outras, que não a geradora do dever de indenizar. Implicitamente, postula-se uma quase que identificação teórica entre o ilícito civil e a responsabilidade civil, não havendo, sequer em tese, a possibi-lidade de novos ilícitos, com distinta feição, surgirem no panorama temático dominado pela responsabilidade civil.

Esse nosso trabalho procura demonstrar o equívoco de tal per-cepção. Não há fundamento teórico para tratar, de forma indistinta, ilícitos e responsabilidade civil11. Seria, mutatis mutandis, o mes-mo que confundir uma fábrica, produtora de um largo espectro de produtos, com apenas uma de suas produções. A nosso sentir, tal postura empobrece, inexplicavelmente, o contexto dos ilícitos, re-duzindo o gênero ao estudo dos efeitos de uma de suas espécies.

10 Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 417. 11 Pontes de Miranda, escrevendo em meados do século passado, já consignava: “há

mais atos ilícitos ou contrários a direito que os atos ilícitos de que provém obrigação de indenizar”. (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 201). Aliás, ainda antes, em 1928, no seu livro Fontes e Evolução do Direito Civil brasileiro, Pontes já intuía que os ilícitos não se esgotavam no dever de indenizar. Assim, ao esboçar a classificação dos fatos jurídicos adotada pelo Código Civil, bipartia os ilícitos em delitos e outros ilícitos, que não fossem delitos (Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1928, p. 176).

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A responsabilidade civil é tema cuja relevância não pode ser posta em dúvida. Experimenta, atualmente, notável evolução, com o aprofundamento matizado de seu estudo, sendo visível o surgimen-to, a cada dia, temas inéditos, a reclamar ponderações e análises. O que nos incomoda, entretanto, é a redução indevida dos ilícitos civis à responsabilidade civil. São, repitamos, realidades diversas. O ilícito não pode ser teoricamente projetado como se fosse mero subtema da responsabilidade civil, pelo simples fato de que não é.

Portanto, nosso propósito é oferecer um modelo teórico explica-tivo dos ilícitos civis, catalogando e definindo as espécies que o siste-ma apresenta, de molde a possibilitar uma visão sistemática e abran-gente da matéria, bem como o espectro possível de sua eficácia, em ordem a sublinhar, com cores vivas, a real importância do assunto.

1.6. o ilícito civil como uma categoria tradutora de padrões pecuniários: uma visão historicamente gasta

A visão do ilícito civil como um conceito fundamentalmente tra-dutor de equivalentes econômicos para as lesões ocorridas, impli-ca, aos olhos contemporâneos, uma concepção marcada por certo sabor anacrônico. A visão que reduz direitos a padrões monetários dominou, por muito tempo, o cenário jurídico, sendo o paradigma dominante no direito liberal dos séculos passados.

Havia, nesse contexto, uma evidente indiferença pela proteção do direito em si, sendo certo que se privilegiava a noção do ressarci-mento do dano em pecúnia. Essa neutralidade em relação aos bens jurídicos podia ser aceita, ainda que com reservas, no ambiente en-tão vivido, porquanto os valores relativos à proteção da pessoa hu-mana não tinham atingido o desenvolvimento hoje experimentado, com notável projeção constitucional.

Essa regulação póstera, voltada para o passado, é todavia intole-rável na experiência jurídica atual. Não se pode tutelar direitos, mor-mente direitos não patrimoniais, acenando com uma possível possi-bilidade de indenizar, em pecúnia, o dano experimentado. A função do direito contemporâneo, nessa perspectiva, é otimizar instrumen-tos para que o dano não ocorra, para que o ilícito não se perfaça12.

12 Andrea Proto Pisani, “La tutela giurisdizionale dei diritti della personalità: strumenti e tecniche di tutela”. Il Foro Italiano. Roma, vol. CXIII, parte quinta, 1990, p. 5.

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O ilícito civil, em termos de hoje, deve ser perspectivado não só como representante do dever de indenizar, mas também, funda-mentalmente, como a categoria que possibilita uma atuação reativa do sistema para evitar a continuação ou a repetição das agressões aos valores e princípios protegidos pelo direito.

1.7. Ilícitos civis: tutela repressiva e tutela preventiva

Os ilícitos civis, tradicionalmente, foram encarados sob uma perspectiva repressiva, posterior à lesão ocorrida. Aquele que vio-lasse direito alheio, causando-lhe dano, ficaria obrigado a indenizar os prejuízos havidos. Assim, só haveria espaço para cogitar de ilíci-to civil após a ocorrência do ato reputado ilícito.

Atualmente, inverte-se, progressivamente, o prisma de análise. O ilícito passa a contar com uma nova dimensão, que é a dimensão prospectiva, com fecundas possibilidades normativas, porquanto se descortina um leque instrumental desconhecido para os padrões clássicos, que só atuavam após a verificação por assim dizer física do ato violador13.

Contudo, pela própria dinâmica dos fatos, e pela velocidade crescente das mudanças sociais, a forma tradicional de regulação mostrou-se anacrônica14. Não é mais possível, sob pena de frustar

13 Cresceram, nas últimas décadas, sob o prisma processual, os estudos relativos à tutela inibitória. As últimas décadas têm frisado, com ênfase, o caráter instrumental do processo. Não mais o zelo fetichista que sobrevaloriza a forma pela forma, mas a consciência teleológica que encara o processo como instrumento para a realização de certos fins. Nesse contexto, a tutela inibitória seria, por assim dizer, a tutela adequada para os ilícitos (ou pelo menos uma delas, a de conformação histórica mais recente), se tivermos em conta “a importância indiscutível da tutela inibitória, em virtude da necessidade de se conferir tutela preventiva às situações jurídicas de conteúdo não patrimonial. Não se avalia nem se investiga, para obtenção da tutela inibitória, a existência de dano provável ou de dano já consumado. Não é necessária a presença do dano nem da culpa ou do dolo. Para a obtenção da tutela inibitória, basta a demonstração de um ato ilícito” (Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória: individual e coletiva. São Paulo: RT, 1998).

14 “No liminar do século XXI, a vertiginosa aceleração do ritmo histórico parece prestigiar a consagração do efêmero como categoria suprema”. Barbosa Moreira, “O transitório e o permanente no direito”. Temas de direito processual, quinta série. São Paulo: Saraiva, 1994, 225/231.

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a efetividade do direito, esperar que as violações ocorram, para so-mente depois agir, movimentando o lento e burocrático aparato ju-dicial tendente a concretizar reparações pecuniárias.

Aliás, nesse campo particular, o direito público houve-se com muito mais desembaraço que o direito privado, tendo forjado ins-trumentos que permitem o pronto resguardo do direito ameaçado de ser violado, sem precisar esperar a agressão15.

O direito privado, talvez por mercê de seu idiossincrático con-servadorismo, permaneceu, por muito tempo, como que à margem dos avanços, valendo-se de uma técnica milenar cuja eficácia, nos dias que correm, é no mínimo duvidosa, se utilizada exclusivamen-te. Coerente com os valores secularmente predominantes, o direito civil, em suas vestes clássicas, ainda protege, com mais presteza, violações a bem materiais – coisas, tecnicamente falando –, do que as lesões ou ameaças de lesões a bens ligados à pessoa humana.

A propósito, Barbosa Moreira, com finura, percebeu que as possibilidades de tutela preventiva, no campo do direito privado, cingiam-se à proteção de coisas, e não dos direitos da personali-dade. Assim é que existem, para litígios entre particulares, apenas o interdito proibitório e a nunciação de obra nova, remédios que protegem a posse e a propriedade16.

Ocioso frisar que para os chamados novos direitos a tutela re-pressiva nem sempre se mostra adequada. É bem possível, face a

15 O projeto do Código do Consumidor previa, de forma inovadora, um sucedâneo do mandado de segurança tradicional, só que contra atos de particulares (art. 85). Aliás, tal figura atenderia a autorizado reclamo doutrinário: “A propósito de outro assunto, disse alguém certa vez: ‘Torniamo all’antico, sarà un progresso’. Fomos capazes de inventar o mandado de segurança preventivo contra atos de autoridade. Precisamos de um remédio equivalente contra atos ou omissões de particulares. O paralelo nada tem de arbitrário: justamente de ‘segurança’ falava o legislador filipino. E, nos termos da vetusta Ordenação, era possível ao ameaçado pedir ao juiz que o segurasse ‘a ele e as suas cousas’: a pessoa antes dos bens, em sequência filosoficamente irrepreensível”. (José Carlos Barbosa Moreira, “Tutela sancionatória e tutela preventiva”. Temas de direito processual, segunda série. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 29). Não obstante as ponderações, tal dispositivo foi objeto de veto presidencial.

16 José Carlos Barbosa Moreira, “Tutela sancionatória e tutela preventiva”. Temas de direito processual, segunda série. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 26.

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certas situações concretas, que as providências pósteras à lesão ostentem caráter puramente paliativo, incapazes de oferecer uma proteção real ao bem jurídico17.

A tutela repressiva é uma tutela concebida para violações pa-trimoniais. Não é a forma ótima de resguardo dos valores ligados à dignidade da pessoa humana, em todos seus espectros. Por en-volver, necessariamente, uma longa e fatigante discussão, a tutela repressiva, póstera aos danos, é pouco adequada para fazer frente aos valores não patrimoniais.

A tutela preventiva é a única forjada com instrumentos técni-cos que podem proteger os valores não patrimoniais, atingidos por ilícitos civis. Isso, repita-se, raciocinando-se com modelos em tese eficientes, desprezando-se, como subsidiária, a tutela puramente patrimonial, sendo a conversão em perdas e danos e último cami-nho a ser seguido18.

Por exemplo, na hipótese de oferta de medicamento que pos-sa provocar danos à saúde, ou mesmo que prometa uma qualidade terapêutica que não possua (anticoncepcional de farinha, e.g.), é evidente que a tutela preventiva sobreleva, restando à tutela clás-sica função secundária, devendo ser primordial a preocupação em impedir que os danos ocorram, e não remediá-los posteriormente, mediante indenização.

Numa sociedade de massa são incontáveis os exemplos possí-veis. Figure-se o exemplo, aliás já ocorrido, de veículo, ofertado no mercado, que tenha sido produzido com grave defeitos nos pneus – ou no sistema de freios, e.g. –, cujo vício possa pôr seriamente em risco a vida dos consumidores (improperly designed product). Dispensa argumentação, em casos tais, a importância da tutela pre-ventiva, em sede de ilícitos civis.

17 Gustavo Tepedino, “Direitos humanos e relações jurídicas privadas”. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 55/71, p. 57.

18 Pondera, com concisão, Luiz Guilherme Marinoni: “Os direitos não patrimoniais devem ser tutelados sempre na forma preventiva, sob pena de o direito em si ser transformado em direito à indenização”. (Novas Linhas do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 55).

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1.8. ilícito civil: a violação aos conteúdos normativos civisQuestão de relevo, e que deve ser preliminarmente enfrentada,

é relativa à identificação dos conteúdos normativos civis, com vis-tas a tornar possível a abordagem, de forma sistemática, dos ilícitos a eles referentes.

Com efeito, se é extremamente difícil, nos dias que correm, distinguir o civil do não civil, como construir uma sistematização dos ilícitos civis? O direito civil mescla-se, por força dos fatos, com ramos ditos públicos, e não há sinal de retração nessa tendência; ao contrário, o influxo convergente parece ser cada vez maior. De resto, tal tendência é tida como salutar pela doutrina especializa-da, que aponta os ganhos de uma consideração constitucional das relações civis.

Nesse contexto, como dizer que algo é puramente civil? O pu-ramente civil não existe. Os ramos se confundem no mundo atual. Legislativamente, não há espaços definidos. A separação rígida, no plano do direito legislado, perde a inflexibilidade que possuía no oitocentos.

É certo que as interpenetrações sempre existiram. O que im-pressiona, hoje, é a intensidade. A dicotomia direito público e priva-do, como modelo teórico, está claramente envelhecida.

De um lado, o direito privado recebe crescentes interferências do direito público: limitações de preços, imposição de padrões de qualidade, defesa do consumidor, numa palavra, intervencionismo. Por outro lado, o direito público crescentemente delega ao direito privado algumas de suas antigas competências: arranjos neocorpo-rativos, assembleias de interessados, pactos setoriais19.

Nosso estudo, contudo, ficaria operacionalmente inviável sem um conceito, razoavelmente claro, de direito civil. Identificá-lo não significa, portanto, absolutamente, negar as interpenetrações. É apenas um expediente teórico necessário para possibilitar o conhe-cimento, mais aprofundado, de suas espécies ilícitas.

19 Celso Fernandes Campilongo, Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 118.

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