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560 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014 A filosofia como historicidade: a ideologia no estudo filosófico dos Cadernos do cárcere Philosophy as historicity: ideology in the philosophical study of Prison notebooks Adilson Aquino Silveira Júnior* Resumo: O artigo busca apreender a categoria da ideologia nas notas dedicadas ao estudo da filosofia dos Cadernos do cárcere de Antônio Gramsci. Por meio de uma pesquisa bibliográfica dessa obra, são explicitados os fundamentos teórico‑metodológicos e as articula‑ ções categoriais inerentes à questão da ideologia em Gramsci. A ex‑ posição apresenta a relação necessária entre ideologia e práxis histó‑ rica, a concepção de bloco histórico como totalidade social e as condições necessárias e suficientes à superação das relações sociais dominantes. Palavras‑chaves: Ideologia. Práxis social. Bloco histórico. Filosofia da práxis. Abstract: The article seeks to apprehend the category of the ideology in the notes dedicated to the study of philosophy in Antônio Gramsci’s Prison notebooks. The theoretical and methodological fundamentals and the category articulations of the issue of ideology in Gramsci are explained through bibliography research related to that work. The explanation presents the necessary relationship between ideology and historical praxis, the conception of historical block as social totality and the necessary and sufficient conditions to overcome the dominant social relationships. Keywords: Ideology. Social praxis. Historical block. Philosophy of praxis. * Assistente social, mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutorando em Serviço Social pela UFPE, Recife/PE, Brasil. E‑mail: j_r1[email protected].

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    A filosofia como historicidade: a ideologia no estudo filosfico dos Cadernos do crcere

    Philosophy as historicity: ideology in the philosophical study of Prison notebooks

    Adilson Aquino Silveira Jnior*

    Resumo: O artigo busca apreender a categoria da ideologia nas notasdedicadasaoestudodafilosofiadosCadernos do crcere de AntnioGramsci.Pormeiodeumapesquisabibliogrficadessaobra,so explicitados os fundamentos tericometodolgicos e as articulaes categoriais inerentes questo da ideologia em Gramsci. A exposio apresenta a relao necessria entre ideologia e prxis histrica, a concepo de bloco histrico como totalidade social e as condiesnecessriasesuficientessuperaodasrelaessociaisdominantes.

    Palavraschaves:Ideologia.Prxissocial.Blocohistrico.Filosofiada prxis.

    Abstract: The article seeks to apprehend the category of the ideology in the notes dedicated to the study of philosophy in Antnio Gramscis Prison notebooks. The theoretical and methodological fundamentals and the category articulations of the issue of ideology in Gramsci are explained through bibliography research related to that work. The explanation presents the necessary relationship between ideology and historical praxis, the conception of historical block as social totality and the necessary andsufficientconditionstoovercomethedominantsocialrelationships.

    Keywords: Ideology. Social praxis. Historical block. Philosophy of praxis.

    * Assistente social, mestre em Servio Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutorando em Servio Social pela UFPE, Recife/PE, Brasil. Email: [email protected]

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    1. Introduo

    Entre as investigaes e apontamentos mais estritamente voltados ao problemadafilosofia,AntnioGramscidesenvolvenosCadernos do crcere um conjunto de notas e passagens nas quais, direta ou indiretamente, contribui para tornar inteligvel a categoria da ideologia. A elaborao que se desdobra, matizada pela concepo de mundo inerente filosofiadaprxis,apreendeeexplicitafundamentosterico-metodolgicose histricos imprescindveis ao desvelamento das relaes de hegemonia entre as classes. Por meio de uma sntese aproximativa daquelas formulaes que laboram a questo da ideologia nos escritos carcerrios, pretendemos contribuir paraaprofundarteoricamente,nombitodapesquisascio-histrica,aapropriao do fecundo arsenal crtico e categorial do comunista sardo. O estudo demandou que enveredssemos por aqueles Cadernos nos quais explicitamente otemadafilosofiafoilevadoacabo:principalmente,noCaderno 10 (193235), A filosofia de Benedetto Croce, e no Caderno 11 (193233), Introduo ao estudo da filosofia.1Almdisso,cotejamososcadernosmiscelnea,nosquaisseencontram as notas de primeira redao posteriormente reformuladas e reescritas naqueles cadernos especiais.2

    evidentequeosmateriaisbibliogrficoseosobjetivosapartirdosquaispesquisamosimpemalgunslimitesproposioderesultadosdefinitivosanlise da ideologia em Gramsci. Porquanto, pretendemos nos debruar estritamente sobre as notas em torno do estudo da filosofia, o tratamento mais aprofundado e sistemtico de um tema to abrangente e polmico no quadro mesmodoscomentadoresdeGramsci,quedirnombitodatradiomarxista no pde ser levado a cabo. Nossa contribuio consiste to somente numa

    1. Ambos publicados na edio brasileira atual: Gramsci (2011a).2.Oscadernosmiscelneadedicadosaoestudodafilosofiaso,fundamentalmente:oCaderno 4

    (19301932), Apontamentos de filosofia/miscelnea/O canto dcimo nono do inferno; o Caderno 7 (193031), Apontamentos de filosofia II e miscelneas; e o Caderno 8 (193132), Miscelnea e apontamentos de Filosofia II.Comonocontamoscomumaediointegraldoscadernosmiscelnea em portugus, recorremos verso mexicana, traduzida da edio crtica de Valentino Gerratana. Foram examinados os seguintes volumes: Gramsci(1999b)eGramsci(1984).Sobreadistinoentreoscadernosmiscelneaeespeciais,almdosdemais recursos atualmente utilizados para referenciar as notas carcerrias, ver Introduo de Gerratana em Gramsci (1999a).

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    aproximao terica ideologia no extrato dos Cadernos selecionados cujo contedo possui tambm um carter inacabado, provisrio e fragmentado3 , subsidiandoaapropriaodosfundamentosfilosficos,articulaescategoriaise remisses histricas intrnsecas.

    conhecidoqueasnotasdedicadasaoestudodafilosofiaforam,mormente,elaboradasatravsdacrticaaopensamento idealistadofilsofo italianoBenedetto Croce (e tambm de Giovanni Gentile) e ao livro, de 1921, A teoria do materialismo histrico: manual popular de sociologia marxista (chamado nos Cadernos de Ensaio Popular) de Nikolai Ivanovich Bukharin, ento dirigente do Partido Comunista russo e da Internacional Comunista. O desenvolvimentodesseprogramadepesquisafilosficaocorreu,assim,emboranoexclusivamente, atravs dos seus AntiCroce e AntiBukharin: o combate ao revisionismo idealista, de uma parte, e ao materialismo mecanicista, de outra.4 Essa empreitada seguida emsintoniafinacomasconcepesefundamentos da prpria obra marxiana, mobilizados original e criativamente para anlise concreta das condies histricas da luta das classes subalternas na entrada do sculo XX.

    2. Ideologia e prxis social

    Iniciemos pela determinao da funo da ideologia na reproduo social. Numa nota do Caderno 7 (193031), antes mesmo da reformulao dos textos miscelneanoscadernosespeciais,aquestodaideologiatratadapormeiode uma evidente remisso obra de Marx. O trecho que segue realiza a distinoentreasideologiasorgnicaseasideologiasarbitrrias.O19doreferido Caderno destaca, inicialmente, o elemento de erro nas concepes que abordam a ideologia enquanto pura aparncia, intil, estpida, hipostasiada do movimento histrico:

    3. Numa nota de advertncia, no incio do Caderno 11, Gramsci postula explicitamente o carter aproximativoeinconclusodesuasanotaes,afirmandoquepodemconter,inclusive,inexatidesetratamentosdesatualizados.

    4. Detalhes sobre essa elaborao so fornecidos por Bianchi (2008). Tambm BuciGlucksmann (1980)abordaoestudofilosficodeGramscinosCadernos.

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    Um elemento de erro na considerao sobre o valor das ideologias, ao que me parece, devese ao fato (fato que, ademais, no casual) de que se d o nome ideologia tanto superestrutura necessria de uma determinada estrutura, como s elucubraes arbitrrias de determinados indivduos. O sentido pejorativo da palavratornou-seexclusivo,oquemodificouedesnaturouaanlisetericadoconceito de ideologia. O processo deste erro pode ser facilmente reconstitudo: 1)identifica-seaideologiacomosendodistintadaestruturaeafirma-sequenosoasideologiasquemodificamaestrutura,massimvice-versa;2)afirma-sequeumadeterminadasoluopolticaideolgica,isto,insuficienteparamodificaraestrutura,enquantocrpodermodific-laseafirmaqueelaintil,estpidaetc.;3)passa-seaafirmarquetodaideologiapuraaparncia,intil,estpida etc. (Gramsci, 2011a, p. 237)

    Duas abordagens comumente fornecidas questo so apresentadas: uma expressa como acertada, enquanto outra constitui a fonte de erro na consideraodovalordasideologias.Naprimeira,enfatizadaavinculaoorgnicaentre determinadas ideologias, enquanto superestrutura necessria, e a estrutura social, evidenciando a relao de unidade existente entre ambas. As ideologias e a estrutura social expressam duas dimenses concretas, com suas particularidadeelegalidadesespecficas,constituidorasdodevirhistrico.Oprocesso de erro descrito cujo resultado uma concepo generalizadora da ideologia como pura aparncia, intil, estpida inicia precisamente com a orientao metodolgica que consiste na ciso entre as ideologias e a estrutura social dada. Sabemos que a concepo da ideologia como superestrutura necessria de uma determinada estrutura consiste numa referncia s formulaes de Marx no Prefcio Crtica da economia poltica, de 1859. Todavia, antes de nos determos na formulao presente nesse manuscrito seminal, concentremonos na relao de necessria unidade entre ideologias e estrutura social.Nofragmentoseguinte,aindado19,vejamoscomoGramsci(2011a)determinaafunosocialespecficadasideologiasorgnicas:

    necessrio,porconseguinte,distinguirentreasideologiashistoricamenteorgnicas, isto , que so necessrias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrrias, racionalsticas, voluntaristas. Enquanto so historicamente necessrias, as ideologias tm uma validade que validade psicolgica: elas organizam

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    as massas humanas, formam o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem conscincia de sua posio, lutam etc. Enquanto so arbitrrias, no criam mais do que movimentos individuais, polmicas etc. (p. 238)

    Utilizandonos da distino aludida num trecho incompleto dos manuscritos dA ideologia alem,5 vemosqueasideologiasorgnicasemcontraste com o aspecto da atividade humana voltado ao trabalho dos homens sobre a natureza localizamse na esfera da atividade humana referente ao trabalho dos homens sobre os homens (Marx e Engels, 2007, p. 39). Ou seja, constituem parte das atividades humanas que tem por objeto os modos de pensar e agir dos homens em sociedade, intervindo, portanto, na qualidade das relaesqueestesestabelecementresiecomanatureza.Asideologiasorgnicas possuem um papel organizativo e diretivo da atividade humana, conformando uma conscincia social necessria a determinado modo de agir no mundo, vinculada a interesses socioeconmicos situados, condicionados pela estrutura social. Assumem uma orientao prticosocial situada, com efeitos concretos no desenvolvimento histrico, compondo as formas de conscincia atravs das quais os homens tornam inteligvel sua posio no mundo, se movimentam, lutam.

    Logo,asideologiasorgnicasnosoconformadasnovazio,emboraestejam distantes de ser tratadas, igualmente, como um subproduto ou epifenmeno de fatores econmicos. Em todo caso, nem derivam do ventre da ideia que se pe a si mesma (Marx, 2011, p. 217), tampouco so autodeterminaes do conceito que se desenvolve na histria (Marx e Engels, 2007, p. 49). Elas se elevamsobreumaestruturasocialsituada:[...]afilosofianosedesenvolveapartirdeoutrafilosofia,6 mas uma contnua soluo de problemas colocados

    5. Referimonos seguinte passagem: At agora consideramos principalmente apenas um aspecto da atividade humana, o trabalho dos homens sobre a natureza. O outro aspecto, o trabalho dos homens sobre os homens [...] (Marx e Engels, 2007, p. 39).

    6.Cabe-nosassinalarqueadistinoassumidaporGramscientrefilosofiaeideologiaestritamentequantitativa,degrau,enoqualitativaouorgnica.Enquantoaprimeiraexpressaaaconcepodemundoque representa a vida intelectual e moral (catarse de uma determinada vida prtica) de todo um grupo social, a segunda consiste em toda concepo particular de grupos internos da classe que se propem ajudar a resolver problemas imediatos e restritos (Gramsci, 2011a, p. 302). E acrescenta: Alis, as ideologias sero a

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    pelodesenvolvimentohistrico(Gramsci,2011a,p.343).Emergemeseafirmamnoquadrodosintercmbiosdialticosestabelecidosentreaestruturasocioeconmica e a conscincia social necessria que dirige a prtica dos indivduos, vinculando suas decises alternativas cotidianas reproduo ou superao das relaes sociais em causa.

    As ideologias constituem as formas de conscincia inerentes atividade dos prprios indivduos sociais, destinadas a responder s necessidades e problemas colocados pela produo social.Nessa perspectiva, a afirmao dahistoricidade e da caducidade das ideologias parte do fato de que as mesmas soexpressesdaestruturaesemodificamcomamodificaodesta(Gramsci,2011a, p. 131). O autor dos Cadernos reivindica a prxis social como momento predominante dadialticaentreteoriaeprtica,oquenosignificaaimpostao de uma hierarquia de valor entre as categorias constitutivas do ser social. Paraadeterminaodasideologiasorgnicas,cita,quasecomasmesmaspalavras, um conhecido trecho do Prefcio de 1859. Vamos ao texto do Marx (2008a, p. 46):

    Quando se considera tais transformaes [das superestruturas, provocadas pela base econmica] convm distinguir sempre a transformao material das condies econmicas de produo [...] e as formas jurdicas, polticas, religiosas, artsticas oufilosficas,emresumo,asformasideolgicas,sobasquaisoshomensadquiremconscinciadesseconflitoeolevamatofim.

    relevante constatar que tal citao tambm recorrentemente utilizada por Georg Lukcs, em sua Ontologia do ser social,7 e, mais tarde, em diversos textos de Istvn Mszros,8 para o tratamento da questo da ideologia em Marx. Ambos assumindo uma posio bastante aproximada daquela apresentada por

    verdadeirafilosofia,jqueelasseroasvulgarizaesfilosficasquelevamasmassasaoconcreta,atransformaodarealidade.Isto,elasserooaspectodemassadetodaconcepofilosfica(Gramsci,2011a, p. 312).

    7.TaisrefernciaspodemseridentificadasemLukcs(2010,2012).NoartigodeVaisman(2010)encontramos uma sntese sobre a concepo lukasciana.

    8. Esse autor trata reiteradamente da questo da ideologia, nesses termos, em: Mszros (2011, 2008, 2004).

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    Gramsci.9 Outras importantes menes do mesmo manuscrito marxiano de 1859 soretomadaspornossoautorparaaprofundarasreflexesrelativasaoestudodafilosofia.Assumindoostermosdofundadordafilosofiadaprxis,ocomunista sardo recusa as abordagens que desconsideram o valor histrico das ideologias, ou que as releguem a uma posio estrita de falsa conscincia. O que est em questo a funo prticosocial de determinadas formas de conscincia, no obstante caracterizem falsas ou verdadeiras elaboraes, do ponto de vista histricoconcreto. Tal funo se relaciona a conscientizao dos conflitoscolocadospelaproduosocial,orientandoaprxishumanaexistente.Uma nota daquele Caderno 7, intitulada Validade das ideologias, sinaliza precisamente nessa direo:

    RecordarafrequenteafirmaodeMarxsobreasolidezdascrenaspopularescomo elemento necessrio de uma determinada situao. Ele diz mais ou menos isto: quando esta maneira de conceber tiver a fora das crenas populares etc. OutraafirmaodeMarxadequeumapersuasopopulartem,comfrequncia,a mesma energia de uma forma material, ou algo semelhante, e que muito significativa.Aanliseconcretadestasafirmaes,creio,conduzaofortalecimentoda concepo de bloco histrico, no qual, precisamente, as foras materiais so o contedo e as ideologias so a forma, distino entre forma e contedo puramente didtica, j que as foras materiais no seriam historicamente concebveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as formas materiais. (Gramsci, 2011a, p. 238)

    Aqui Gramsci recorda uma passagem da Crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, na qual Marx sinaliza, ainda no incio dos anos 1840, que a teoria tambm se torna fora material quando se apodera das massas (2010, p. 151). De uma parte, essa remisso que se repetir em diversos outros momentos empregada para corroborar o poder das ideologias no prprio devir histrico, sendo desenvolvida ainda para o tratamento das relaes

    9.Coutinho(2011)afirmaessaconvergnciaentreGramscieLukcs,noqueconcerneaoentendimentoda questo da ideologia em Marx. E Oldrini (1999) informa uma aproximao entre os dois comunistas tambm na busca pela superao das polarizaes idealistas e mecanicistas na tradio marxista, atravs de um tertium datur fundado na perspectiva tericometodolgica de Marx e de Lnin.

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    de hegemonia e da prpria ao estatal em sentido integral, orgnico(Gramsci, 2007). De outra parte, abordada como indicao fornecida por Marx para evocar a necessidade da formao de uma conscincia classista unitria, crtica, autnoma e de massas como momento necessrio do processo revolucionrio mesmo.

    De fato, ainda em A ideologia alem manuscrito cujo contedo Gramsci no chegou a conhecer Marx e Engels assumem que os elementos materiais de uma subverso total so, sobretudo, o desenvolvimento posto pelas foras produtivas e a formao de uma massa revolucionria que revolucione no apenas as condies particulares da sociedade at ento existente, como tambm a prpria produo da vida que ainda vigora a atividade total na qual a sociedade se baseia [...]. Se tais condies so inexistentes, no importa se a ideia dessa subverso total j foi proclamada uma centena de vezes (2007, p. 43). Em suma, incontornvel a criao em massa de uma conscincia comunista,10 enquanto conscincia da necessidade de uma revoluo radical, por parte da classe trabalhadora.Comefeito,Mszros (2009) afirmaquedesde seus primeiros escritos, at os Grundrisse e O capital, Marx insistiu [...] na necessidade da formao de uma conscincia de massa socialista, como exigncia sine qua non para envolver a grande maioria dos indivduos em seu empreendimento coletivo de autoemancipao (p. 1041). Essa unidade dialtica entre foras produtivas e conscincia social apreendida por Gramsci por meio da reformulao do conceito de bloco histrico.

    3. O bloco histrico como totalidade social

    Noestudodafilosofia, Gramsci incorpora aquela noo do terico francs do sindicalismo Georges Sorel (18741922),11 reelaborandoa buscando repro

    10. Tal requisio aparece de modo explcito tambm em vrias passagens dA sagrada famlia (Marx e Engels, 2003), qual Gramsci teve acesso e pde utilizar nos seus estudos.

    11. Uma exposio sobre a concepo original de Sorel apresentada por Bianchi (2008). Analistas como Portelli (1977) chegam a considerar que os principais aspectos do pensamento poltico presente nos Cadernos articulamse em torno do conceito de bloco histrico.

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    duzir a unidade ontolgica entre a estrutura social e as ideologias. Tal perspectiva encontrase nos fundamentos mesmos da concepo de mundo inerente obradeMarx:Paraafilosofiadaprxisosernopodeserseparadodopensar,o homem da natureza, a atividade da matria, o sujeito do objeto; se faz se esta separao, caise numa de muitas formas de religio ou na abstrao sem sentido (Gramsci, 2011a, p. 175). Na reformulao gramsciana da noo de bloco histrico est inerente a natureza categorial da prxis social em sua unidade.12 Essa vinculao foi inspirada, fundamentalmente, na interpretao das Teses sobre Feuerbach (Marx e Engels, 2007).

    AafirmaodasTeses sobre Feuerbach, de que o educador deve ser educado, no coloca uma relao necessria de reao ativa do homem sobre a estrutura, afirmandoaunidadedoprocessoreal?Oconceitodeblocohistrico,construdoporSorel,apreendeplenamenteessaunidadedefendidapelafilosofiadaprxis.(Gramsci, 2011a, p. 370)

    Nossoautornoestpropondoumainversomecnicadasperspectivaseconomicistas, caracterizadas pela determinao unilateral da estrutura social sobre as superestruturas.13 Distanciase, consequentemente, da abordagem voluntarista, segundo a qual os homens atuam livres das cadeias socioeconmicas da estrutura dominante. A nfase est na unidade dialtica, presente na atividade humana, entre ser e conscincia, entre objetividade e subjetividade: O homem deve ser concebido como um bloco histrico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com os quais o indivduo est em relao ativa (Gramsci, 2011a, p. 406). Tais implicaes metodolgicas so derivadas das relaes objetivas que constituem a

    12. Em Gramsci, a prxis social encontrase fundada na atividade produtiva: Se este o ponto de partidadacinciaeconmicaeseassimfoifixadooconceitofundamentaldeeconomia,qualquerinvestigaoulteriornopodersenoaprofundarteoricamenteoconceitodetrabalho,oqualdever[...]serfixadonaquela atividade humana que, em qualquer forma social, igualmente necessria (2011a, p. 334).

    13.OestudodeMartins(2008)apresentaavinculaoorgnicaentreaperspectivaterico-metodolgicamarxiana e aquela apresentada por Gramsci nos Cadernos. Em seu livro clssico, BuciGlucksmann (1980) chamaaateno tambmparaa importnciadeLninnarefundao da filosofia marxista realizada por Gramsci.

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    prxis social na histria. Por isso mesmo, abordando o complexo das superestruturas em sua interao com o conjunto das relaes sociais, Gramsci assevera que o raciocnio se baseia sobre a necessria reciprocidade entre estrutura e superestrutura (reciprocidade que precisamente o processo dialtico real) (2011a, p. 251). A concepo da reciprocidade dialtica inerente ao processo histricoconcreto segue as fecundas indicaes contidas no referido trecho do Prefcio de 1859:

    Oconceitodovalorconcreto(histrico)dassuperestruturasnafilosofiadaprxisdeve ser aprofundado, aproximandoo do conceito soreliano de bloco histrico. Se os homens adquirem conscincia de sua posio social e de seus objetivos no terrenodas superestruturas, isto significa que entre estrutura e superestruturaexiste um nexo necessrio e vital. (Gramsci, 2011a, p. 389)

    As relaes de determinao recproca entre aqueles complexos da atividade humana so enfatizadas como procedimento fecundo e original da perspectiva marxiana,14 cujo cerne deve ser evidenciado na luta ideolgica contra astendnciasidealistasedeterministasmecnicas.Nacrticavulgatacrociana do materialismo histrico, Gramsci informa que: no verdade que a filosofiadaprxisdestaqueaestruturadassuperestruturas;aocontrrio,elaconcebe o desenvolvimento das mesmas como intimamente relacionado e necessariamente interrelativo e recproco (2011a, p. 369). No Caderno 11, a concepo de monismo, que apregoa a unidade da realidade como um todo,15 retraduzida nesses termos:

    [...] nem materialista nem idealista, mas identidade dos contrrios no ato histrico concreto, isto , atividade humana (histriaesprito) em concreto, indissoluvelmente ligada a uma certa matria organizada (historicizada), natureza transformadapelohomem.Filosofiadoato(prxis,desenvolvimento),masno

    14.TambmLukcs(2012)identificaqueocerneestruturadordopensamentoeconmicodeMarxsefunda na concepo de determinao recproca das categorias que compem o complexo do ser social, no qual o econmico e o extraeconmico convertemse continuamente um no outro (p. 310).

    15. Kosik (1976) tambm apreende e explicita essa perspectiva de unidade presente na concepo dialtica de Marx recorrendo a categoria da prxis.

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    do ato puro, e sim precisamente do ato impuro, real no sentido mais profano e mundano da palavra. (Gramsci, 2011a, p. 209)

    Aunidadereferidapelafilosofiadaprxisnoseencontra,comisso,esterilizada das contradies que dinamizam o desenvolvimento histrico: ela mesma uma teoria das contradies. Essa nova concepo do mundo apreende, no campo das superestruturas, a prpria prxis humana socialmente determinada, a atividade humana como sntese de objetividade e subjetividade, conformada pelo mundo socioeconmico e as lutas ideolgicas forjadas pelos interesses antagonistas dos sujeitos classistas. A apreenso de interesses contraditrios irreconciliveis, presentes na estrutura social burguesa diferente das tendncias idealistas, que buscavam uma reconciliao no plano do esprito, ou das tendncias mecanicistas, que restringem as transformaes histricas aoplano reificadordos instrumentos tcnicosdeproduoorienta a superao dos antagonismos para a totalidade das relaes que consubstanciam a prpria atividade humana na civilizao do capital. A perspectiva de radicalidade e concreticidade assumida expressa nos seguintestermos:Afilosofiadaprxisohistoricismoabsoluto,amundanizaoe terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da histria. Nesta linhaquedeveserbuscadoofilodanovaconcepodomundo(Gramsci, 2011a, p. 155).

    Segundo Gramsci, o problema que se coloca o da filosofia como historicidade: a implicao prticosocial das formas ideolgicas sobre o curso do movimento histrico. Ele considera que o interesse pelo campo das superestruturas,nafilosofiadaprxis,secolocaprecisamenteporseusefeitosobjetivossobre a atividade humana inerente prpria reproduo social:

    Atravsdoconceitomaisamplodehistoricidadedafilosofia,isto,dequeumafilosofiahistrica,enquantosedifunde,enquantosetornaumaconcepodeumamassasocial(comumaticaadequada),compreende-sequeafilosofiadaprxis,noobstanteasurpresaeoescndalodeCroce,estudenosfilsofosprecisamente(!)oquenofilosfico:astendnciasprticaseosefeitossociaise de classe que eles representam. [...] (Gramsci, 2011a, p. 342)

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    Aimportnciadoestudodafilosofianoesthipotecada,portanto,aqualquer pretenso de sumariar uma histria hipostasiada do pensamento da humanidade.Afilosofia(oufilosofias)interessanamedidaemquehistria,namedida em que faz parte da histria geral do mundo, das relaes sociais em que vivem os homens, na medida em que possui implicaes prticas nas transformaessociaisconcretas.Aprpriahistriadafilosofiaentendidacomoahistria das tentativas e iniciativas ideolgicas de determinadas classes para modificar,corrigireaperfeioarasconcepesdemundoexistentes,bemcomoalterar as normas de condutas que lhes so relativas e adequadas, voltadas para mudar a atividade prtica em seu conjunto (Gramsci, 2011a, p. 325). Em sntese, as ideologias importam porquanto assumem a condio de mediao da reproduo social, dirigindo as vontades humanas, por meio da formao de determinadaconscinciasocial,pararesultaremefeitosprticosespecficosnasociedade, correspondente a problemas e interesses socioeconmicos concretos.

    Essa fora objetiva das ideologias igualmente evidenciada na crtica ao Ensaio popular de Nikolai Bukharin, quando Gramsci se detm sobre a concepodematria,inerentefilosofiadaprxis.Afirmaqueamesmaimpossveldeserentendida,sejanosignificadoqueresultadascinciasnaturais(aspropriedadesfsicas,qumicas,mecnicasetc.),sejaatravsdasdiversasmetafsicas materialistas. Para aquela, a matria no relevante como tal, mas como social e historicamente organizada pela produo, entendida essencialmente como categoria histrica: uma relao humana. O estudo mesmo dos instrumentos de produo interessa longe de ser estritamente pelas propriedadesfsico-qumico-mecnicasdosseuscomponentesnaturais,porquantoestes constituem um momento das formas materiais de produo, objeto de determinadas foras sociais: enquanto expressam uma relao social e correspondem a um perodo histrico situado. Do mesmo modo, na medida em que constituemobjetodeforassociaisespecficaseorganizamaprticasocialdoshomens, orientando o metabolismo social, as formas de conscincia possuem uma fora material. Esse o valor histrico a partir do qual uma ideologia assumerelevnciaparaafilosofiadaprxis:

    possveldizerqueovalorhistricodeumafilosofiapodesercalculadoapartirdaeficciaprticaqueelaconquistou(eprticadeveserentendidaemsentido

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    amplo).Severdadequetodafilosofiaexpressodeumasociedade,eladeveriareagir sobre a sociedade, determinar certos efeitos, positivos ou negativos: a medidaemqueelareagejustamenteamedidadesuaimportnciahistrica,denoserela elucubrao individual, mas sim fato histrico. (Gramsci, 2011a, p. 249)

    A terminologia mesma utilizada por Marx e o recurso metafrico na exposio de sua concepo de mundo apenas podem ser entendidos quando inseridos no horizonte poltico e cultural da poca. A incorporao de termos como anatomia, estrutura e superestrutura constituem, segundo Gramsci, simples metforas extradas dos debates em torno das cincias naturais e da classificaodasespciesanimais,quesetornoucientficaprecisamentequandopartiu dos elementos anatmicos e no mais das caractersticas secundrias e acidentais. O contedo racional e progressista do pensamento burgus, elaborado na luta contra as antigas classes dominantes, assumido pela nova concepo de mundo,expressanafilosofiadaprxis,mascum grano salis. Tais expresses no podem obliterar a apreenso das relaes de determinao recproca e o prprio movimento derivado das contradies que caracteriza a esfera do ser social, qualitativamentediversadaquelafundadanomundoestritamenteorgnicoouinorgnico.Issoporumlado.Deoutraparte,ametforasejustifica,dopontode vista das relaes de hegemonia, tambm pela sua popularidade, ou seja:

    [...]pelofatodeoferecer,mesmoaumpbliconorefinadointelectualmente,umesquema de fcil compreenso (no se leva quase nunca em devida conta o seguintefato:queafilosofiadaprxis,propondo-sereformarintelectualemoralmente estratos culturais atrasados, recorre a metforas por vezes grosseiras e violentas em seu carter popular). O estudo da origem lingusticocultural de uma metfora empregada para indicar um conceito ou relao recentemente descobertos pode ajudar a compreender melhor o prprio conceito, na medida em que esse relacionado ao mundo cultural, historicamente determinado, do qual surgiu, bem como til para determinar o limite da prpria metfora, isto , para impedir que ela se materialize e mecanicize. (Gramsci, 2011a, p. 191)

    As metforas da anatomia, da estrutura ou da superestrutura consistiam, logo, num estmulo para aprofundar as investigaes metodol

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    gicasefilosficas,sem,comisso,limitaraabrangnciaeacomplexidadedas relaes analisadas. Utilizando tais noes, a unidade da atividade humanasensvel reafirmada:osaspectossuperestruturais fazemblococomaestruturaanatmica,ecomtodasasfunesfisiolgicas,poisnose pode pensar num indivduo despelado como sendo o verdadeiro indivduo, mas tampouco o indivduo desossado e sem esqueleto (Gramsci, 2011a, p. 309).

    Afilosofiadaprxis,impregnadapelaterrenalidadeabsolutadopensamento, no pode se furtar, portanto, s contradies estruturais das formaes classistas. Estas se expressam na elaborao de formas de conscincia social particularista, porquanto buscam organizar e dirigir a prtica social dos homens de acordo com seus interesses mutuamente excludentes, postos pelos antagonismos da produo social. Numa polmica passagem do Caderno 11, sobre a objetividade do conhecimento, Gramsci informa a emergncia das ideologias parciais, no universalconcretas, vinculadas ao desenvolvimento das classes sociais e suas lutas:

    [...]masesteprocessodeunificaohistrica[unificaodetodoognerohumano em um sistema cultural unitrio] ocorre com o desaparecimento das contradies internas que dilaceram a sociedade humana, contradies que so as condies da formao dos grupos e do nascimento das ideologias no universalconcretas, mas que envelhecem imediatamente, por causa da origem prtica de suasubstncia.(2011a,p.134)

    A caducidade das ideologias parciais considerada do ponto de vista do desenvolvimento histrico global e da dialtica real. Em face de uma sociedade deabundnciapotencial,viabilizadoradascondiesdeemancipaoeliberdade humanas, de uma civilizao radicalmente nova, aquelas ideologias cujos contedos atualizam as formas de expropriao e dominao de classe reiteram e expressam as contradies profundas de um metabolismo social anacrnico. Ademais, segundo Marx, aquelas contradies internas dilacerantes do ser social localizamse mesmo na prhistria da sociedade humana. Enquanto persistir estes antagonismos que nascem das condies de existncia

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    sociais dos indivduos (Marx, 2008a, p. 46), as formas de conscincia social correspondem sempre aos interesses prticos de determinadas classes.16 Todavia, a contradio viva (Marx, 2011) do capital reproduz a si mesma e, portanto, o lado negativo de sua anttese (Marx e Engels, 2003). O proletariado na medidaemquepersonificaoserdasforasdotrabalhosocialesofreascadeiasuniversais da civilizao burguesa pode romper o horizonte das ideologias parciais e assumir o movimento histrico que leva a formao das ideologias universalconcretas. Tal remisso nos til na medida em que oferece indicaes para determinarmos a differentia specifica dos processos hegemnicos vinculados as classes subalternas.

    De acordo com o autor dos Cadernos, aprpriafilosofiadaprxisseinscreve, com efeito, na superestrutura, consiste numa ideologia: um terreno no qual determinados grupos sociais tomam conscincia do prprio ser social, da prpria fora, das prprias tarefas, do prprio devir (Gramsci, 2011a, p. 388). Nas notas carcerrias, o problema acerca do carter de massas dessaideologiacolocadonosseguintestermos:Afilosofiadaprxissustenta que os homens adquirem conscincia de sua posio social no terreno das ideologias; ela excluiu o povo, por acaso, deste modo de tomar conscincia de si? (Idem, p. 217). Da concepo do homem como um bloco histrico de elementos subjetivos e objetivos resulta que todos os homens so filsofos,enquantoatuampraticamente,enestasuaaoprtica(naslinhasdiretoras de sua conduta) est contida implicitamente uma concepo de mundo,umafilosofia(Idem,p.325).Nafilosofiadaprxis,alutadehegemonias polticas est orientada para tornar os governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar uma outra, como momento necessrio da subverso da prxis (Idem, p. 387). A indicao informa a particularidade do movimento histrico inerente a essa nova concepo do mundo, a qual se vincula organicamente ao prprio processo revolucionrio:

    16. Tal postulao abrange, inclusive, as realidades das relaes humanas de conhecimento (Gramsci, 2011a, p. 315), desautorizando aquelas interpretaes dos CadernosqueafirmamtendnciassubjetivistasdeGramsci no tratamento das teorias do conhecimento. Esse o caso de Coutinho (2011, 1999), cuja posio foi criticada por Martins (2008) e Bianchi (2008).

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    [...]asoutrasideologiassocriaesinorgnicasporquecontraditrias,porquevoltadas para a conciliao de interesses opostos e contraditrios; a sua historicidadeserbreve,jqueacontradioafloraapscadaeventodoqualforaminstrumento.Afilosofiadaprxis,aocontrrio,notendearesolverpacificamente as contradies existentes na histria e na sociedade, ou, melhor, ele a prpria teoria de tais contradies; no um instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas; a expresso destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas na arte do governo [...]. (Gramsci, 2011a, p. 388)

    Ocarterproblemticodasideologiasqueseopemfilosofiadaprxismanifestase na sua parcialidade. Aquelas buscam resolver as contradies histricoconcretas por vias conciliatrias, mas sem subverter a prpria prtica social dilacerada pelos antagonismos classistas em sua totalidade. Destarte, as ideologias parciais conciliatrias rapidamente tornamse caducas, porquanto as contradies deslocadas insistem em se expressar no terreno da prtica social, lanando uma nova ameaa unidade ideolgica pretendida. De outro lado, a filosofia da prxis no se apresenta enquanto instrumento dedomnio e, portanto, de reproduo da expropriao fundada na propriedade privada. Ela expresso dos interesses de classe dos dominados em sua luta pela unificao do gnero humano. ParaGramsci, talmovimento histricoapenas pode ser alcanado pela mediao de uma conscincia de massa crtica, autnoma e unitria dos subalternos. Aqui, a dialtica real da prxis social pretende superar qualquer unilateralidade fixada estritamente em aspectosestritos da atividade humana:

    Sesecolocaoproblemadeidentificarteoriaeprtica,coloca-senestesentido:node construir, com base numa determinada prtica, uma teoria que, coincidindo e identificando-secomoselementosdecisivosdaprpriaprtica,acelereoprocessohistricoemato,tornandoaprticamaishomognea,coerente,eficienteemtodos os seus elementos, isto , elevandoa mxima potncia; ou ento, dada certa posio terica, no de organizar o elemento prtico indispensvel para que esta teoria seja colocada em ao. (Gramsci, 2011a, p. 260)

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    Partindo do valor histrico das superestruturas, da sua relao de determinao recproca com a estrutura social, fundada no estatuto ontolgico da prpria prxis humana como bloco histrico, dois principais problemas so colocados pelo comunista sardo para entendermos um movimento histrico: 1) De que forma as classes subalternas podem alcanar uma conscincia crtica e autnoma, que as torne um grupo social homogneo, isto , um bloco sociocultural necessrio subverso da prxis?; 2) Como conservar a unidade ideolgicaemtodoesseblocosocialqueestcimentadoeunificadoporaquela determinada ideologia que se transforma em um movimento cultural? Tais problemas suscitam, de uma parte, a determinao das condies materiais necessriasesuficientessubversodaprxise,deoutraparte,asmediaessociais imprescindveis formao desse movimento histrico. Nesse conjunto de condies materiais e mediaes sociais concretas, a questo dos intelectuais abordada, assim como o papel das organizaes culturais (aparelhos de hegemonia), dos partidos e do Estado.

    4. As condies necessrias e suficientes

    Detenhamo-nosnaquiloqueGramsciafirmacomocondiesmateriaisnecessriasesuficientesparaasubversodaprxis.Maisumavez,areferncia aqui um trecho do Prefcio de 1859 de Marx. Tal trecho retomado no22doCaderno 11 como recurso tericometodolgico para desenvolver uma soluo coerente ao seguinte problema: como nasce o movimento histrico com base na estrutura? A partir da questo, nosso autor postula:

    As duas proposies do prefcio Crtica da economia poltica 1) A humanidade s se coloca sempre tarefas que pode resolver; a prpria tarefa s surge quando as condies materiais da sua resoluo j existem ou, pelo menos, j esto em vias de existir; 2) Uma formao social no desaparece antes que se tenham desenvolvido todas as foras produtivas que ela ainda comporta; e novas e superiores relaes de produo no tomam o seu lugar antes que as condies materiais de existncia destas novas relaes j tenham sido geradas no prprio

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    seio da velha sociedade estas proposies deveriam ter sido analisadas em toda suaimportnciaeconsequncias.17 (p. 140)

    A preocupao , precisamente, evitar as abordagens mecanicistas, de um lado, e as tendncias voluntaristas, de outro. Nosso autor est interessado em determinar as condies de uma mudana societal abrangente, que podem levar ao desaparecimento de uma formao sciohistrica anacronizada e ao surgimento de uma nova. Duas requisies vinculadas organicamente so colocadas para o nascimento de um movimento histrico dessa dimenso: de uma parte, tornase necessrio o desdobramento de uma crise profunda da antiga sociedade, que desenvolveu as foras produtivas e no pode conter mais tais avanos no interior dos seus prprios limites metablicos; de outra parte, aquele desenvolvimento deve ter gerado as foras concretas para negao e superao do velho, implicando, alm dos aspectos objetivos, a constituio de um sujeito poltico massivo que articule como projeto a necessidade de uma nova sociedade. Essa ruptura de largo alcance encontrase fundada nas condies materiais necessrias ao surgimento do novo e saturao de todas as foras produtivas as quais o velho pode recorrer para no ser superado.18

    Ascondiesmateriaisnecessriase suficientes informam,portanto,umaunidade dialtica altamente dinmica.Na crtica ao economicismodoEnsaio popular, Gramsci lembra que expresses como essa e outras, como modo de produo da vida material, condies econmicas da produo, grau de desenvolvimento das foras materiais de produo , recorrentementeutilizadasporMarx,afirmamcertamenteserodesenvolvimentoeconmicodeterminado por condies materiais, mas que jamais reduzem essas condies mera metamorfose do instrumento tcnico (Gramsci, 2011a, p. 158). O foco do debate no est em uma causa ltima da vida econmica arbitrariamente (e formalmente) desatacada, mas no conjunto das relaes sociais constituidoras da prxis humana em determinado momento histrico.Afilosofiadaprxismesmadefinidacomocinciadadialticaougnosiologia,naqualosconceitos

    17. Na Misria da filosofia (1847), outro texto de Marx a que Gramsci recorre diversas vezes nas suas notas, uma passagem muito semelhante do Prefcio foi formulada. Ver Marx (1989, p. 159).

    18. Seguimos aqui algumas linhas de interpretao fornecidas por Bianchi (2006) e Braga (2002, 1996).

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    geraisdehistria,depoltica,deeconomia,serelacionamnumaunidadeorgnica (2011a, p. 166).19 evidente que o movimento histrico fundase num conjunto de premissas socioeconmicas, condizentes com o nvel de aperfeioamento, quantidade e qualidade dos meios de produo e subsistncia concretos que atendem s necessidades humanas situadas. Entretanto, essa no , definitivamente, anicadeterminaoque fornece adireodomovimentohistrico, pois as necessidades sociais em causa ultrapassam aquelas premissas. Segundo nosso autor:

    Existe necessidade quando existe uma premissa efetiva e ativa, cujo conhecimentonoshomenssetenhatornadooperante,aocolocarfinsconcretosconscinciacoletiva e ao construir um complexo de convices e de crenas que atua poderosamente como as crenas populares. Na premissa devem estar contidas, j desenvolvidas,ascondiesmateriaisnecessriasesuficientesparaarealizaodo impulso da vontade coletiva; mas evidente que desta premissa material, quantitativamente calculvel, no pode ser destacado um certo nvel cultural, isto , um conjunto de atos intelectuais, e destes (como seu produto e consequncia), um certo complexo de paixes e de sentimentos imperiosos, isto , que tenham fora de induzir ao a todo custo. (Gramsci, 2011a, p. 197)

    Nas condies para o nascimento da nova sociedade, o que se coloca como necessidade (e no como exclusividade) a prpria atividade poltica como momento incontornvel da revoluo social. imperativo o deverser para a construo da vontade coletiva e o nascimento de um movimento histrico com base na estrutura. Segundo Gramsci, existindo as condies, a soluo dos objetivos tornase dever, a vontade tornase livre (2011a, p. 235). A soluo dos problemas colocados pela sociedade pode ser apresentada como vontade coletiva se efetivamente as condies materiais libertam os homens para a escolha entre posies sociais alternativas. A vontade tornase livre porque os projetos polticos assumidos como deverser esto fundados nas foras sociais concretamente existentes. Para assumir esse poder material

    19. Esses balizamentos tericometodolgicos contradizem aquelas anlises dos Cadernos que encerram suas formulaes em dualismos e esquematismos formais, como nos parece ser o caso do conhecido texto de Anderson (2002).

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    necessriocriaodomovimentohistrico,afilosofiadaprxis,comoumanova maneira de conceber o mundo e o homem, no pode ser reservada aos grandes intelectuais; deve, ao contrrio, se tornar popular, de massa, com carterconcretamentemundial,modificando(aindaqueatravsdecombinaeshbridas)opensamentopopular,amumificadaculturapopular(Gramsci,2011a,p.264).Aprpriaatividadedofilsofoindividualpodeserconcebidaapenasem funo dessa unidade social que assume uma forma material, como funo de direo poltica que organiza a atividade prtica das classes, ou seja, como funo de intelectual orgnico (Gramsci, 2011b).

    Recebido em 5/9/2013 Aprovado em 2/6/2014

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