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 72 história, filosofia e sociologia da ciência anglo-saxónicas, ainda que sejam referidas algumas influências da Euro- pa continental. Em síntese, a história é a seguinte. Após a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos entraram na idade atómica com um fervor iluminista desde então identifica- do com correntes modernistas surgidas noutros campos.  A filosofia da ciência dominante, o Empirismo Lógico foi inicialmente formulado por refugiados da Alemanha nazi, tais como Rudolf Carnap, Her- bert Feigl, Carl Hempel, Karl Popper, e Hans Reichenbach. Para eles a au- toridade racional da ciência assenta-  va em re la çõ es gi ca s un iv er sa is entre proposições derivadas da ex- periência sensorial. Sociólogos da ciência americanos reforçaram esta tese com uma história complementar acerca do modo como a estrutura social da ciência, de cariz «democrático» e associada a normas sociais es- pecíficas, promove a produção das diferentes espécies de reivindicações gnoseológicas descritas pelos filósofos. Em retrospectiva, podemos iden- tificar o começo de uma reacção «pós-moderna» à concepção anterior de ciência com a Estrutura das Revo - luções Científicas  de Kuhn. Kuhn discordava das principais doutrinas de filosofia e sociologia da ciência existentes. Desde então a maioria dos filósofos da ciência tentou repor uma imagem «modernista» da ciência que contivesse uma forma particular de «racionalidade científica». Ao in-  vés, soció logos da ciênci a, em e spe- cial em Inglaterra e na Europa conti- revolução científica do século dezassete produziu uma nova imagem do mundo. Ao mesmo tempo produziu uma nova forma de o investigar. Desde então, estudiosos de diversos campos, incluindo os próprios cientistas, tentaram compreender a natureza das actividades científicas, hoje incluídas entre as maiores forças intelectuais e sociais do mundo. Qual a razão do sucesso espectacular da ciência? O que é que lhe confere essa autoridade especial? Porque é que a imagem do mun- do construída pela ciência deve ser preferida à dada, por exemplo, pe- la religião? Os debates acerca da natureza da ciência têm em geral sofrido mais os- cilações que os debates no seio da própria ciência. Esta variação tem-se  verifica do tanto entre culturas como no interior de culturas no decorrer do tempo. Assim, à fé iluminista no poder da ciência em transformar a sociedade seguiu-se uma reacção ro- mântica contra a ciência, a qual deu, por seu turno, lugar à reafirmação positivista dos valores científicos, e assim por diante. Até mesmo ao aproximarmo-nos do fim do século  vin te se not am alt era çõe s sim ila res no tocante às ideias acerca da nature- za da ciência, tanto no interior como entre diferentes culturas contempo- râneas. Portanto, nunca poderia apresen- tar aqui uma exposição da natureza da ciência intemporal e indepen- dente da visão cultural. O meu relato restringir-se-á no essencial ao período após a Segunda Guerra Mundial e aos desenvolvimentos sofridos pela  Ser á a ciê ncia u ma act ivi dad e f und ame nta lme nte dif ere nte das out ras act ivi dad es?  Se sim , e m q ue asp ectos? Des de a S egu nda Guerra Mun dia l f iló sof os e s oci ólo gos da ciê ncia  têm sug eri do dif erente s r esp ost as a e sta s q ues tõe s f und ame nta is.  A NA TUREZA DA CIÊNCIA  Uma perspectiva iluminista pós-moder na RONALD N. GIERE  A Diplomado em Física pela Universidade de Cor- nell, na qual se viria a doutorar em Filosofia (1968), Ronald N. Giere ensinou e investigou em diversos centros universitários americanos. É actualmente professor na Universidade de Min- nesota, onde também assegura a direcção do Centro de Filosofia das Ciências. Na sua obra extensa avultam dois livros que mereceram ampla aceitação: «Understanding Science» e, mais recentemente, «Explaining Science, A Cognitive Approach».

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história, filosofia e sociologia da ciência anglo-saxónicas,ainda que sejam referidas algumas influências da Euro-pa continental.

Em síntese, a história é a seguinte. Após a SegundaGuerra Mundial os Estados Unidos entraram na idadeatómica com um fervor iluminista desde então identifica-do com correntes modernistas surgidas noutros campos.

 A filosofia da ciência dominante, o Empirismo Lógico foiinicialmente formulado por refugiados da Alemanha

nazi, tais como Rudolf Carnap, Her-bert Feigl, Carl Hempel, Karl Popper,

e Hans Reichenbach. Para eles a au-toridade racional da ciência assenta- va em relações lógicas universaisentre proposições derivadas da ex-periência sensorial. Sociólogos daciência americanos reforçaram estatese com uma história complementaracerca do modo como a estruturasocial da ciência, de cariz «democrático»e associada a normas sociais es-pecíficas, promove a produção dasdiferentes espécies de reivindicações

gnoseológicas descritas pelosfilósofos.Em retrospectiva, podemos iden-

tificar o começo de uma reacção«pós-moderna» à concepção anteriorde ciência com a Estrutura das Revo -luções Científicas de Kuhn. Kuhndiscordava das principais doutrinasde filosofia e sociologia da ciênciaexistentes. Desde então a maioriados filósofos da ciência tentou reporuma imagem «modernista» da ciência

que contivesse uma forma particularde «racionalidade científica». Ao in- vés, sociólogos da ciência, em espe-cial em Inglaterra e na Europa conti-

revolução científica do século dezassete produziuuma nova imagem do mundo. Ao mesmo tempoproduziu uma nova forma de o investigar. Desde

então, estudiosos de diversos campos, incluindo ospróprios cientistas, tentaram compreender a natureza dasactividades científicas, hoje incluídas entre as maioresforças intelectuais e sociais do mundo. Qual a razão dosucesso espectacular da ciência? O que é que lhe confereessa autoridade especial? Porque é que a imagem do mun-do construída pela ciência deve serpreferida à dada, por exemplo, pe-

la religião?Os debates acerca da natureza daciência têm em geral sofrido mais os-cilações que os debates no seio daprópria ciência. Esta variação tem-se

 verificado tanto entre culturas comono interior de culturas no decorrerdo tempo. Assim, à fé iluminista nopoder da ciência em transformar asociedade seguiu-se uma reacção ro-mântica contra a ciência, a qual deu,por seu turno, lugar à reafirmação

positivista dos valores científicos, eassim por diante. Até mesmo aoaproximarmo-nos do fim do século

 vinte se notam alterações similaresno tocante às ideias acerca da nature-za da ciência, tanto no interior comoentre diferentes culturas contempo-râneas.

Portanto, nunca poderia apresen-tar aqui uma exposição da naturezada ciência intemporal e indepen-

dente da visão cultural. O meu relatorestringir-se-á no essencial ao períodoapós a Segunda Guerra Mundial eaos desenvolvimentos sofridos pela

 Será a ciência uma actividade fundamentalmente diferente das outras actividades? Se sim, em que aspectos? Desde a Segunda Guerra Mundial filósofos e sociólogos da ciência

 têm sugerido diferentes respostas a estas questões fundamentais.

 A NATUREZA DA CIÊNCIA  Uma perspectiva iluminista pós-moderna 

RONALD N. GIERE

 A 

Diplomado em Física pela Universidade de Cor-nell, na qual se viria a doutorar em Filosofia (1968), Ronald N. Giere ensinou e investigou em diversos centros universitários americanos. Éactualmente professor na Universidade de Min-nesota, onde também assegura a direcção do

Centro de Filosofia das Ciências. Na sua obra extensa avultam dois livros que mereceram ampla aceitação: «Understanding Science» e,mais recentemente, «Explaining Science, A Cognitive Approach».

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nental, desenvolveram o programa «pós-moderno» deKuhn até ao extremo de negarem à ciência qualquerautoridade específica.

Mais recentemente, alguns filósofos e historiadoresda ciência tentaram conjugar alguma ordem iluministacom a imagem pós-modema – não apelaram, contudo,

para o argumento da «racionalidade científica», mas, aocontrário, para os próprios recursos da ciência, comple-mentando a sociologia da ciência com resultados dasciências biológicas e cognitivas, as quais se encontramactualmente em posição de destaque.

FILOSOFIA DA CIÊNCIA «MODERNISTA»

Nos Estados Unidos, entre 1945 e 1960, o EmpirismoLógico dominou o pensamento filosófico acerca da ciên-cia. Este movimento teve a sua origem em Viena nos anos

 vinte e os seus membros mais proeminentes foram MoritzSchlick e Rudolf Carnap. O «círculo de Viena» associou--se a um outro grupo de Berlim liderado por HansReichenbach. O Empirismo Lógico era empirista nosentido clássico de que os resultados científicos são emúltima instância derivados da experiência sensorial direc-ta. As versões anteriores do Empirismo Lógico eram denatureza subjectiva, e até mesmo solipsista. As unidadesbásicas do saber eram os chamados «dados sensoriais» in-dividuais, isto é, as experiências subjectivas cujas pro-priedades eram consideradas incontestáveis pelos seuspossuidores. As versões posteriores do Empirismo Lógico

pretendiam ser explicitamente «objectivas», ou pelo menos«intersubjectivas», no sentido de que as unidades básicasjá não eram experiências subjectivas mas «asserçõesdeduzidas da observação»; isto é afirmações associadas afenómenos publicamente observáveis.

O Empirismo Lógico era lógico no que respeita ao mé-todo, que derivava não só do trabalho de Russell e

 Whitehead no domínio da lógica e dos fundamentos damatemática como também dos trabalhos filosóficos deRussell, e em particular dos respeitantes à matemática eà epistemologia. Para os empiristas lógicos as relaçõesepistemológicas entre asserções deduzidas da observa-

ção e as leis fundamentais ou teorias são em si mesmasrelações «lógicas». Por isso mesmo a epistemologia redu-ziu-se a uma espécie de lógica aplicada. No programa

inicial, a «lógica científica» era identificada exclusiva-mente com a lógica dedutiva associada ao raciocíniomatemático (ver figura 1). Contudo, os empiristas lógicoscedo compreenderam que uma lógica de tipo dedutivopor si só não era suficiente, na medida em que algumasdas «leis» científicas mais significativas, tais como a lei de

Newton da gravitação universal, pareciam ajustar-semelhor a expressões de «proposições universais» do tipo«Todos os F são G». E, evidentemente, nenhuma propo-sição deste tipo podia ser logicamente derivada de umconjunto finito de asserções de tipo observacional .

Para contornar esta situação figuras de destaquecomo Carnap e Reichenbach envolveram-se num progra-ma de construção de lógicas indutivas melhoradas, sen-do as mais populares as lógicas probabilísticas. O objec-tivo consistia na criação de uma lógica probabilística quepermitisse calcular o «grau racional de certeza» associadoa qualquer hipótese face ao conjunto total das asserções

deduzidas da observação (ver figura 2).

Fig. 1  — A ciência na visão original do Empirismo Lógico.

Fig. 2  – A ciência na visão Posterior do Empirismo Lógico.

 Assim, para os empiristas lógicos a ciência é caracte-rizada simultaneamente por ser racional e por possuir umcarácter de tipo representativo. É de tipo representativo 

na medida em que as leis e teorias são o género de coisasque podem ser representações verdadeiras do mundo. Aprobabilidade associada a uma teoria é a probabilidadede esta ser verdadeira. Por outro lado, a ciência éracional  porque a probabilidade associada a uma teoria

representada por uma lógica indutiva exprime o grauracional de certeza na veracidade da teoria face à evidên-cia existente.

Um dos mais conhecidos opositores deste projecto deconstrução de uma lógica probabilística foi Karl Popper.Para Popper a ciência não precisa de recorrer a lógicasprobabilísticas. Basta exigir que uma hipótese cientifícaseja falsificável  face a asserções deduzidas da observa-ção (designadas por Popper «proposições básicas») e, si-multaneamente exigir apenas como regras as de umalógica dedutiva (ver figura 3). Com efeito, uma das regrasde lógica (a negação do consequente) acarreta que uma

proposição universal da forma «todos os F são G» é falsase se conhecer um caso (e um único caso é suficiente) deum F que não seja simultaneamente um G. Embora seja

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com certeza importante saber quando é que uma hipóteseé falsa, muitos pensam que a ciência deve também sercapaz de identificar as hipóteses verdadeiras, ou pelo

menos aquelas que têm uma probabilidade não des-prezável de serem aproximadamente correctas. Poppercondenou sempre esta exigência.

 A visão da ciência segundo Popper fornece-nos umaresposta simples e atractiva à questão de saber como dis-tinguir a ciência de outras actividades, questão designadapor Popper pelo problema da demarcação . SegundoPopper, uma hipótese é científica somente no caso de ser

 falsificável através de proposições básicas. Por isso ashipóteses científicas, sendo proposições universais, sãonecessariamente falsificáveis.

 A resposta anterior à questão da demarcação enferma

de um problema fundamental: é demasiado limitativoreduzir as afirmações científicas a proposições univer-sais. Por exemplo, nos anos trinta descobriu-se nodomínio da física (e esta foi uma descoberta importante)que para além de protões e electrões também existemneutrões. Este acontecimento exprime-se por uma afir-mação de tipo existencial com a seguinte forma lógica«Existem Fs». Estas afirmações não são evidentemente fal-sificáveis de acordo com o critério popperiano. Por isso,Popper viu-se obrigado a classificá-las de «metafísicas».Contudo, para a grande maioria dos filósofos esta posi-ção distorcia de forma exagerada as características que a

evidência histórica associava à distinção entre ciência emetafísica.

Se esquecermos Popper, a corrente principal do Em-pirismo Lógico fornece-nos uma resposta clara para oproblema da demarcação. Aquilo que torna a ciência«científica» é a codificação das experiências vivenciais emtermos de proposições que descrevem as facetas ob-serváveis do mundo. Além disso, os princípios codifica-dores reduzem-se a questões de lógica (dedutiva ouindutiva) e por isso são, num certo sentido, a priori .

Esta forma de interpretar a natureza da ciência exem-plifica os ideais de objectividade e universalidade asso-

ciados ao iluminismo e ao modernismo, para os quais anatureza respeitável da ciência pode ser compreendidasem qualquer referência aos interesses específicos ou

motivações dos agentes humanos e às contingênciasculturais de um determinado período histórico. Bastapara isso analisar a linguagem da ciência com as ferra-mentas lógicas adequadas.

Nos anos sessenta a imagem da ciência fornecidapelos empiristas lógicos começou a ser alvo de ataques

críticos por parte de vários filósofos da ciência. No querespeita ao estatuto das «proposições observacionais»retorquia-se que o vocabulário associado à observaçãoera em parte derivado a partir de leis e teorias geraisacerca do mundo. Por isso, caso não exista nenhumalinguagem «independente da teoria», a qual possibilite aformulação de proposições associadas à observação, estanão pode, tal como era desejado pelos empiristas lógicos,estar na base do conhecimento científico mais elaborado.

Quanto ao programa de desenvolvimento de umalógica indutiva as dificuldades também se fizeram sentir.O problema não residia na impossibilidade de construir

uma lógica indutiva pelo menos no caso de linguagensextremamente simples; decorria antes do facto de até noscasos simples ser possível construir um continuum delógicas indutivas, estando cada uma associada a diferen-tes probabilidades. Parecia não haver qualquer meio a 

 priori para seleccionar uma única lógica que pudessedefinir de forma unívoca a probabilidade associada auma proposição não trivial.

 Assim, na segunda metade dos anos sessenta, os variados problemas acumulados no seio da tradição doEmpirismo Lógico indicavam ser necessária uma imagemradicalmente nova de ciência. Antes de nos debruçarmos

sobre a proposta alternativa de Kuhn vamos rapidamentereferir o complemento sociológico do Empirismo Lógicoque nos fornecerá um ponto de referência para com-preender a posição radical que emergiu nos anos setentano domínio da sociologia.

SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA «MODERNISTA»

Em consequência do modo de analisar a ciêncialevado a cabo pelo Empirismo Lógico cavou-se um fossoinultrapassável entre o conteúdo e os métodos da ciência

e outros aspectos, tais como a psicologia dos cientistasou a sua organização social. Os primeiros podem seranalisados com os métodos a priori da lógica matemáticamoderna. Os segundos são o tema da ciência socialempírica.

Entre 1945 e 1960, a sociologia da ciência era domina-da pela sociologia de índole estruturo-funcional associa-da ao trabalho de Robert K. Merton. Para ela, a tarefa dosociológo consistia em pôr em destaque o modo comouma estrutura social , definida através de normas sociais,desempenha a sua função . Nessa altura os sociólogos daciência aplicavam um método geral de ataque que os

sociólogos americanos usavam com frequência ao inves-tigar a integração de numerosas instituições no seio dasociedade.

Fig. 3  – A visão de Popper da ciência.

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 A interpretação do papel desempenhado em ciênciapelas disputas em torno de questões de prioridadeconstitui um exemplo típico de análise estruturo-funcio-nal. Para Merton, as disputas têm por função reforçar aregra segundo a qual descobertas originais devem serrecompensadas através de um reconhecimento conve-

niente. Esta análise é de tipo funcional na medida em quepara os cientistas o desejo de reconhecimento é um factormotivador importante.

Para Merton, a função da ciência consiste em produzir«saber reconhecido». Negava por isso de forma explícitaque o sociólogo desempenhasse qualquer papel naanálise do conteúdo desse saber ou dos métodos queconduzem ao seu reconhecimento. O papel do sociólogoda ciência é então complementar do do filósofo daciência que perfilhe o Empirismo Lógico. O filósofoestuda a lógica da ciência enquanto o sociólogo estudaa sua estrutura social, e estas são tarefas totalmente

distintas. No entanto, a filosofia deve preceder a sociolo-gia: a sociologia toma como dado adquirido a noção de«saber reconhecido» enquanto a filosofia tem comofunção elucidar em que medida esse saber é realmentereconhecido. É de notar que mais tarde os sociólogos daciência recusaram atribuir prioridade à filosofia face àsociologia.

 A VISÃO «PÓS-MODERNA» DE CIÊNCIA 

SEGUNDO KUHN

Não há dúvida que a Estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn foi a análise mais influente da natureza

da ciência publicada após a Segunda Guerra Mundial. Emretrospectiva, é tentador designá-la como o primeirogrande relato «pós-moderno» da natureza da ciência. Àprimeira vista Kuhn desenvolvia uma «teoria da ciênciapor etapas» (ver figura 4). As etapas sucessivas da vida deum ramo científico – pré-paradigma, ciência normal,

crise, revolução e nova ciência normal – constituem otema dominante em torno do qual se organiza o livro.Kuhn atinge o seu climax na caracterização de cadaetapa, mas é bastante menos bem sucedido ao apontar osmecanismos responsáveis pelo processo de transição en-tre etapas sucessivas. Seguirei aqui a ordem que o pró-prio Kuhn usou na apresentação do seu livro, mas a mi-nha conclusão final será a de que o fundamental está naanálise dos mecanismos de transição entre etapas e nãotanto na descrição das etapas que lhe estão associadas.

Os melhores exemplos de ciências pré-paradigmáticasdados por Kuhn são a óptica antes de Newton e a elec-

tricidade antes de Franklin. Num período de pré-paradig-ma os tópicos de investigação estão mais ou menos bemdefinidos e existem duas ou mais escolas que perfilhamideias diferentes quanto ao modo de desenvolver odomínio em causa. Essas escolas são tipicamente entida-des sociais e intelectuais cujos discípulos e estudantesseguem os ensinamentos de um só professor. As diferen-tes escolas rivais podem coexistir por um período apre-ciável de tempo, sem que entre elas haja um contactoapreciável, embora cada escola possa ir progredindolentamente.

 Até do ponto de vista da tese de Kuhn a ciência «pré-

-paradigmática» deve ser descrita mais correctamente porciência multiparadigmática. Com efeito, «estar na posse

Fig. 4 – A «teoria da ciência por etapas» de Kuhn.

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de um paradigma» significa que cada uma das escolas emcompetição possui o seu próprio paradigma. Mas nestaetapa não faltam paradigmas mas um paradigma domi- 

nante que possa canalizar as energias da vasta maioriados praticantes que se debruçam sobre o mesmo assun-to. A visão cíclica de ciência que Kuhn defende é até

reforçada ao pensar neste estádio inicial como umperíodo multiparadigmático. Com efeito, nesta óptica afase inicial partilha algumas características da fase «revo-lucionária» posterior, que também se define através dacompetição entre abordagens fundamentalmente distin-tas. Ao mesmo tempo, a análise da passagem de umasituação multiparadigmática para um contexto dominadopor um único paradigma reduz-se ao conhecimento domodo como se ultrapassa uma fase de revolução. Nosdois casos os processos em causa são na essência osmesmos.

O estádio de ciência normal caracteriza-se por uma

abordagem única, dominante, da matéria em causa. Ospontos fundamentais em que assenta a abordagem nãosão geralmente postos em questão, sendo toda a energiacanalizada para a exploração das suas consequências epara a sua aplicação a novas situações. Por isso, umfenómeno que aparentemente não se integra na aborda-gem dominante não é tomado como evidência da inade-quação da abordagem, mas apenas como um «puzzle»que requer solução. Assim, a pergunta a fazer é aseguinte: «como é que este fenómeno pode ser integradoda melhor maneira no esquema dominante?». Se estapergunta ficar sem resposta, é a competência do cientista

que é posta em causa e não a adequação da abordagemdominante.

É de salientar a ambiguidade patenteada pela Estrutu- 

ra das Revoluções Científicas na definição do seu concei-to-chave, o conceito de «paradigma». Em obras posterio-res Kuhn pôs em destaque dois significados bastantediferentes. Num dos casos um paradigma é uma «visão domundo» que engloba teorias específicas, instrumentaçãoe até pressuposições metafísicas. Foi este significado deparadigma como «algo mais que uma teoria» que osprimeiros filósofos críticos consideraram fundamental.Contrariando muitos dos comentários de Kuhn este não

era, contudo, o significado de «paradigma» central para ateoria da ciência kuhniana.

O significado central aparece logo nas primeiraspáginas da Estrutura das Revoluções Científicas  quandoKuhn sublinha a importância das «realizações científicasconcretas» capazes de fornecer «modelos que originamtradições coerentes de investigação científica». Assim, adescrição de Newton do movimento de um planeta ou adescrição de Franklin da garrafa de Leyden são, respec-tivamente, exemplos de «paradigmas» para a prática damecânica e para a ciência da electricidade. Em trabalhosposteriores Kuhn refere estes «modelos concretos» como

«modelos exemplares». Ao contrário da visão da actividade científica profes-

sada pelo Empirismo Lógico, a ciência normal de Kuhn

não é um processo de «aplicação» de leis gerais a novoscasos. Ao invés, as soluções de novos problemas são pro-curadas através da sua modelação à imagem das soluçõesexemplares subjacentes ao esquema geral. Quando Kuhnse refere à «prioridade dos paradigmas» quer com issosignificar que a prática da ciência normal é conduzida e

mantida por estas soluções exemplares anteriormenteaplicadas a certos problemas e não por uma teoria oumétodo geral.

No estádio de ciência normal podem surgir anoma- 

lias , isto é, fenómenos que ainda não foram explicadoscom base nos modelos exemplares standard . Por exem-plo, as marés constituíram uma anomalia no foro damecânica newtoniana durante quase meio século. Comosurgem sempre algumas anomalias na tradição da inves- 

tigação de qualquer ciência normal , a sua mera existên-cia não constitui fundamento de insatisfação face à tradi-ção existente. Apesar disso, chega por vezes o momentoem que os praticantes de uma certa tradição começam aperder a fé na resolução das anomalias por recursoexclusivo à tradição existente. Gera-se então uma situa-ção de crise .

Tal como Kuhn admite, é extremamente difícil expli-car em termos gerais os motivos que levam os cientistasa perder a fé na tradição de investigação existente.Nenhuma resposta cabal em termos do número deanomalias ou de características qualitativas pode fazerjustiça aos factos históricos. Segundo Kuhn, também nãopodemos explicá-la em termos de pressões vindas do

exterior imediato à comunidade científica. Neste caso, opróprio Kuhn sugere que a tese da ciência por etapasnecessita de ser complementada por uma investigação detópicos tais como as reacções psicológicas e as respostassociais dos cientistas em situações em que os modosusuais de funcionamento deixam de parecer recompen-sar como dantes. Quaisquer que sejam as suas causasespecíficas, a crise conduz à proliferação de novasabordagens e a uma situação semelhante à associada àinvestigação «pré-paradigmática». Discutem-se mais uma

 vez questões fundamentais assim como questões meto-dológicas gerais e princípios filosóficos e, por fim, um

novo conjunto de modelos exemplares dá lugar à criaçãode uma nova tradição de ciência normal.O que é que leva uma comunidade científica a

abandonar a antiga tradição e a aderir à nova, a substituirum conjunto de regras por um novo conjunto? Nesteponto Kuhn recorre a factores psicológicos, sociológicose institucionais. Tal como afirma, os indivíduos experi-mentam uma espécie de «mudança gestalt». Passam a veras coisas de forma diferente, e isto acontece amiúde deforma repentina. Contudo, nem todos sofrem uma«conversão» semelhante. Aqueles que não se convertempertencem em geral à geração mais velha, educada de

acordo com a tradição anterior. Ao morrerem cedem olugar à geração seguinte, educada já no seio da novatradição. Novos livros de texto aparecem então veiculan-

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do o novo ponto de vista. Os partidários da antigatradição são assim literalmente deixados para trás.

Por que razão recorre Kuhn, ao explicar o desenrolardas revoluções, a factores psicológicos, sociais e institu-cionais? Porque é que os cientistas não comparamsimplesmente as duas abordagens e aderem àquela que

é objectivamente melhor? Para Kuhn esta atitude resultada incomensurabilidade das tradições rivais. Mas o queé que isto significa?

Num grande número de passagens Kuhn explica a in-comensurabilidade em termos linguísticos. Para Kuhn,partidários de diferentes tradições falam sem se entende-rem, usam as mesmas palavras com significados distintos.Este modo de descrever as tradições rivais tinha até umafundamentação teórica baseada nos ensinamentos dofilósofo Wittgenstein, para quem o significado das pala-

 vras é função do seu uso na vida real. Kuhn extrapolouesta ideia para a vida científica, o que aliás se adaptava

perfeitamente à importância dada aos modelos exempla-res como estruturas definidoras da tradição de investiga-ção durante os períodos de ciência normal.

 A insistência na incomensurabilidade das diferentestradições de investigação atraiu consideravelmente aatenção de vários filósofos. Filósofos proeminentes, comoKripke e Putnam, responderam ao desafio implícito deKuhn à objectividade científica, através da criação denovas teorias do significado e da referência. Contudo,contrariando a própria apresentação feita por Kuhn, e asua aceitação generalizada, esta interpretação linguísticada incomensurabilidade parece-me incorrecta. A inco-

mensurabilidade não é importante ao nível do significa-do mas ao nível dos  padrões e da autoridade .

Se recordarmos a própria tese de Kuhn, os partidáriosde tradições rivais recorrem a modelos exemplares dife-rentes para impor a aceitação das soluções que apresen-tam de novos problemas. Para além disto, Kuhn conside-ra que não existem níveis mais elevados a que se possarecorrer porque as leis, teorias e princípios metodológicosde uma tradição de investigação assentam eles própriosnos modelos exemplares. Os modelos exemplares sãoentão primaciais. Assim, não se revela necessário invocaruma duvidosa teoria linguística do significado para

concluir que é impossível uma resolução do conflitoentre tradições de investigação científica rivais baseadaem questões de princípio. A incomensurabilidade dospadrões é por si só suficiente.

Esta interpretação da incomensurabilidade encontra--se em consonância com a metáfora política fundamen-tal subjacente ao discurso acerca das «revoluções» científicas.

 A ruptura levada a cabo numa revolução política não é noessencial de natureza linguística. As pessoas podem nãose fazer entender mas isto não acontece por não perce-berem o que se está a afirmar. A ruptura é uma rupturade autoridade . Não podendo recorrer a um tribunal de

última instância é-se forçado a usar a persuasão, amanipulação e, finalmente, a força.

 A questão objectiva mais importante levantada pelos

filósofos «modernistas» da ciência à visão «pós-moderna»da ciência de Kuhn relaciona-se com o problema poppe-riano da demarcação. Para Kuhn, a ciência não pretendeatingir uma representação verdadeira do mundo. É antesuma actividade semelhante à resolução de um «puzzle» eque conduz a algo caracterizável como uma «interpreta-

ção» do mundo. Além disso, Kuhn rejeitava liminarmentea procura de princípios racionais e universais para aavaliação de uma teoria. Avaliar uma teoria não é maisque uma actividade que envolve os julgamentos decientistas no exercício das suas capacidades decisóriasno contexto da sua comunidade científica mais próxima.É nesta situação que forças psicológicas, sociais e institu-cionais desempenham um papel fundamental. Final-mente, a doutrina da incomensurabilidade não é capazde assegurar uma comparação «objectiva» de teoriasrivais. Como podia então Kuhn distinguir a ciência deoutras tradições intelectuais tais como a teologia, a

filosofia, a história de arte, ou a crítica literária? Comopodia reclamar-se que, por exemplo, face à teologia, aciência fosse detentora de uma autoridade especial? Arelevância desta questão é sublinhada pelo sucesso daaplicação do modelo kuhniano a vários campos nãocientíficos.

Kuhn esteve próximo de fornecer uma resposta aestas questões no capítulo final da Estrutura das Revolu- 

ções Científicas ao discutir a hipótese segundo a qual adistinção entre a ciência e as outras actividades reside nofacto da ciência ser progressiva . Fundamentalmente Kuhnpõe em causa a pressuposição segundo a qual o progres-

so em ciência se faz diferentemente do associado aoutros campos e rejeita explicitamente a ideia de progres-so científico no sentido de uma maior precisão ou âmbitodas suas representações do mundo. Em particular, Kuhnrejeita a ideia de que a ciência normal ou a revolucionárianos «aproximam da verdade». Pelo contrário, Kuhn su-gere que se inverta a questão: em vez de procurar umacaracterística especial em virtude da qual a ciênciaprogride devíamos, ao contrário, indagar porque é quecampos que se desenvolvem da maneira esboçada sãodenominados «progressivos», e porque é que os campos«progressivos» são ao mesmo tempo denominados

«científicos». A resposta de Kuhn consiste em afirmar queas pessoas envolvidas nos períodos de ciência normal oude ciência revolucionária não admitem que o seu trabal-ho não conduza ao progresso. Finalmente, Kuhn apelapara uma analogia com a evolução darwiniana: a ciênciaevolui sem objectivo final tal como as espécies sesucedem sem objectivo final. A estas questões voltareimuito em breve.

FILOSOFIA DA CIÊNCIA PÓS-KUHNIANA 

Depois da publicação do livro de Kuhn a filosofia daciência assistiu à formação de uma «escola histórica» quetinha por objectivo descrever o desenvolvimento da

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ciência. Contudo os filósofos pertencentes a esta escolaacabaram por reter o objectivo filosófico modernista queconsistia em mostrar em que medida o desenvolvimentoda ciência pode ser considerado objectivamente «racio-nal», caso não se considere que a ciência tende progres-sivamente para a verdade.

Imre Lakatos é um bom exemplo de um filósofo in-fluenciado profundamente por Kuhn mas, ao mesmotempo, extremamente crítico das suas ideias. Tal como

 vários outros filósofos, focou a sua análise na interpreta-ção do conceito de «paradigma», o qual redefiniu como«programa de investigação». Um programa de investiga-ção tem três componentes. A primeira componente écomposta por um conjunto de teorias, entendidas àmoda do Empirismo Lógico no sentido de um conjuntode leis. Algumas leis constituem o «núcleo duro» inal-terável do programa. Outras são apenas «hipóteses auxi-liares» que podem vir a ser substituídas no decurso do

tempo. A segunda componente consiste numa «heurísticapositiva», isto é, num conjunto de regras metodológicasque permitem desenvolver o conjunto das hipótesesauxiliares. A terceira componente consiste numa «heurísticanegativa», numa norma metodológica segundo a qual sedevem evitar hipóteses falsificáveis através de modifica-ções das hipóteses auxiliares que protegem o núcleoduro de possíveis refutações. Entre os exemplos dadospor Lakatos de programas de investigação encontram-sea mecânica newtoniana e a teoria quântica de Bohr. Astrês leis do movimento de Newton juntamente com a leida gravitação universal compõem o «núcleo duro» do pro-

grama newtoniano.Para Lakatos, a unidade básica de análise não é uma

lei ou teoria individual mas um programa de investiga-ção. Os programas podem dividir-se em «progressivos»ou «em degenerescência» consoante a sua heurísticapositiva consegue ou não gerar «previsões novas» veri-ficáveis posteriormente através da experiência. Um pro-grama diz-se «em degenerescência» quando só consegueacomodar novas descobertas empíricas (através da alte-ração das hipóteses auxiliares) após a sua constatacão ex-perimental. Deste ponto de vista, a racionalidade emciência consiste em considerar um programa progressivo

superior face a um programa em degenerescência.O padrão tipo de desenvolvimento científico que

emerge da teoria lakatosiana não é de tipo revolucionário – não existem períodos revolucionários como no relatode Kuhn. Existem apenas períodos em que o novoprograma progressivo ultrapassa um programa anteriorem degenerescência (ver figura 5). Para Lakatos estesperíodos não despoletam uma revolução, são exclusi-

 vamente sintoma de «progresso racional». A metodologia lakatosiana dos programas de investi-

gação fornece uma solução óbvia para o problema da de-marcação. Na qualidade de sucessor de Popper na

London School of Economics, Lakatos encontrava-seevidentemente muito preocupado com a definição deum critério de demarcação e estava simultaneamente

interessado em evitar a irracionalidade que via introme-ter se no relato de Kuhn.

Para Lakatos, um programa de investigação científico 

distingue-se de um programa de investigação metafísicoou teológico na medida em que os programas de inves-tigação científicos são capazes de gerar, através da sua

heurística positiva, mais conteúdo empírico. Não forne-cem apenas meios para «interpretar» o mundo após oconhecimento dos factos; também prevêem fenómenosrealmente novos. Num certo sentido esta solução é oreverso da de Popper: para Popper as «confirmações» nãosignificam grande coisa, as falsificações é que são impor-tantes; para Lakatos as falsificações significam pouco,pois são ultrapassadas através de ajustes sucessivos noconjunto das hipóteses auxiliares. As confirmações detipo dramático é que contam.

No âmbito da tese de Lakatos a distinção entre ciênciae as outras actividades faz-se de uma forma claramente

superior à do Empirismo Lógico e de Popper. Contudo,esta tese não avança muito face à das outras correntesnum ponto importante. Gostaríamos de saber em quemedida a visão do mundo fornecida pelas teorias científicasdeve ser considerada superior àquela que a religião, parasó citar um exemplo, nos proporciona. Lakatos nãooferece qualquer base que permita fazer uma distinçãodeste tipo pois, tal como Kuhn, adoptou uma atitude detipo não-representativo face às teorias científicas. Umprograma não é progressivo porque as suas teorias nosoferecem uma visão do mundo mais adequada. Umatradição nova apenas acomoda mais fenómenos empíricos.

Lakatos recusou sempre considerar que um programa deinvestigação progressivo implicasse que as suas compo-nentes fossem obrigatoriamente verdadeiras. Por isso,enquanto Lakatos conseguiu isolar um sintoma capaz dedistinguir um programa de investigação científico dosrestantes, falhou no que toca ao estabelecimento daautoridade cognitiva da ciência.

SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA PÓS-KUHNIANA 

No decorrer da última década, os sociológos da

ciência europeus desenvolveram uma alternativa deíndole pós-moderna à escola funcional criada por Mer-ton. A sua linha de acção baseia-se na noção de «paradig-

Fig. 5 – A visão «não revolucionária» de Lakatos de um Progresso ra-cional na ciência.

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ma» kuhniano no sentido de um modelo exemplar capazde guiar futuras investigações. Simultaneamente, e àimagem de Kuhn, insistiam na indispensabilidade dosjulgamentos feitos pelos cientistas, tanto individual comocolectivamente. Em resultado, a ciência não é considera-da uma actividade de tipo representativo assim como não

é considerada racional, e por este facto, não aparececomo uma actividade fundamentalmente diferente dasoutras actividades sociais.

 Alguns sociólogos britânicos, e em especial um grupode Edimburgo, chegaram mesmo a perfilhar uma teseque Kuhn sempre rejeitou. Defendem que sendo os jul-gamentos individuais necessários para determinar quaisos modelos exemplares e para identificar o sucesso deuma nova aplicação, há então lugar para aquilo que atéKuhn consideraria uma intromissão de valores «não--científicos» no processo científico, mesmo no seu nívelmais básico. Estes interesses podem ser pessoais, profis-

sionais, sociais ou políticos – ou uma combinaçãodestas categorias. Os historiadores e sociólogos associa-dos à escola de Edimburgo reivindicam que um númeroconsiderável de casos históricos ilustram o papel desem-penhado por vários destes tipos de interesses no decursodo desenvolvimento da ciência.

Outros sociólogos da ciência da «nova vaga» revela-ram-se ainda mais radicais. Para eles, não são apenas

julgamentos não-científicos que «influenciam» a avalia-ção das teorias. Reclamam então que a ciência é consti- 

tuída exclusivamente por interesses e interacções huma-nas. A ciência é apenas uma estrutura social, tal como amoral e a lei. Para estes sociólogos o relativismo moral eo relativismo científico têm a mesma origem. Tal como

não existe uma base objectiva para preferir os valoresculturais do Ocidente face aos de povos mais primitivos,também não existe uma base objectiva para preferir os

 valores científicos ocidentais face aos dos outros povos.Escusado será dizer, esta forma de encarar a sociologia daciência não reconhece qualquer tipo de prioridade àfilosofia: o relato sociológico é o único, mais ainda, é oúnico relato possível.

ELEMENTOS PARA UM PÓS-MODERNISMO

ILUMINISTA 

Mais de vinte e cinco anos após a publicação daEstrutura das Revoluções Científicas duas alternativasdiferentes se delinearam quanto à forma de abordar oestudo da natureza da ciência. Os filósofos da ciênciamodernistas retiveram um dos sentidos do conceito de«paradigma» e, em consequência, têm procurado critériosobjectivos para classificar o progresso científico racional.

Fig. 6 – A evolução de um domínio científico através do crescimento e declínio de grupos de investigação dentro do domínio.

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Os sociólogos da ciência pós-modernos retiveram ooutro sentido de «paradigma» e defendem por isso que oprogresso científico não é essencialmente diferente doprogresso político ou social.

Não será possível combinar as visões clarificadoras dopós-modernismo com o respeito iluminista pelo carácter

único das contribuições científicas? Penso que sim.Sugiro até que a combinação apropriada deverá (a)desistir de procurar critérios universais para a caracteriza-cão da racionalidade científica, (b) abandonar a tentativade separar o conteúdo e métodos da ciência da realidadepsicológica e social, mas (c) deverá preservar uma ima-gem da ciência de tipo representativo. Parece-me que umenquadramento para esta nova abordagem pode serencontrado na ciência contemporânea, em particular nateoria da evolução e nas ciências cognitivas. Esta tendên-cia para uma visão iluminista e pós-moderna da ciênciaera já sugerida nos trabalhos fundamentais de Kuhn, mas

foi esquecida em larga medida pelos seus herdeirosfilosóficos e sociológicos.

MODELOS DE CIÊNCIA 

DE TIPO EVOLUCIONISTA 

 Alguns estudiosos do empreendimento científico su-geriram recentemente abandonar quer o modelo cientí-fico de desenvolvimento de tipo «revolucionário» quer omodelo de «progresso racional», a favor de um modeloevolucionista . Contudo, não foi atingido até agora um

consenso quanto à forma de desenvolver este modelo.Identificarei aqui as principais alternativas e salientareitambém aquelas que me parecem mais promissoras.

 A teoria da evolução aplica-se a populações de in-divíduos. Qual deve ser então a população a que ummodelo de ciência evolucionista se deve aplicar? A litera-tura contém dois conjuntos de respostas a esta questãofundamental. A resposta que os filósofos e historiadoresdas ideias científicas favorecem é a de que a populaçãoé de tipo conceptual , isto é, constituída por teorias ouconceitos. Nesta óptica, investigar-se-ia a evolução dasideias científicas. A resposta que os psicólogos e so-

ciólogos favorecem é de que as populações são consti-tuídas por cientistas . Nesta óptica, não são as teorias queevoluem mas sim as comunidades científicas; não são asteorias enquanto tal que se alteram, mas são os cientistasque abraçam teorias diferentes. A evolução aparente dasteorias é um artefacto.

Favoreço a última destas duas abordagens. Em geral,a primeira parece retomar a antiga orientação racionalistaque caracterizava a filosofia da ciência do EmpirismoLógico. Na última, centrada em torno do agente, asteorias não têm uma vida própria, nem existem num céuplatónico intemporal. Devem ser tomadas em conjunto

com as pessoas que as criam e as usam (ver figura 6).Para além das generalidades mencionadas, existem

razões específicas para tomarmos os cientistas, e não as

teorias, como as unidades base numa teoria da ciência.Uma delas resulta dos relatos científicos acerca da ciênciaserem causais . Os conceitos não têm por si mesmospoderes de tipo causal, não podem fazer nada por si sós,mas as pessoas podem. Contudo, estar na posse de umconceito particular, ou acreditar que uma dada teoria

está correcta, é amiúde um factor de tipo causal nadecisão de um cientista em adoptar uma certa linha deacção face às existentes. Neste aspecto as ideias não sãomuito diferentes da destreza física, em controlar porexemplo um determinado aparelho experimental, ou detraços de personalidade, tais como a ambição ou aaversão ao risco. Estas características não operam por sisós mas encontram-se enquadradas no funcionamentode um ser humano.

 Acontece por vezes que a reprodução, no seu sentidoliteral, dá origem a novos cientistas, tal como aconteceucom Marie e Pierre Curie. Mas até nestes casos raros a

 visão do mundo dos pais tem que ser ensinada à criança,do mesmo modo que seria ensinada a outros alunos. Serpartidário de uma teoria particular é sempre um traçoadquirido . Neste aspecto, a analogia entre a evoluçãobiológica e a evolução em domínios científicos não éperfeita. As populações de cientistas que partilham umadada teoria vão aumentando através do ensino, dadoutrinação e da profissionalização. Também crescem(ou decrescem) porque indivíduos, independentementedo seu treino inicial, escolheram adoptar ou rejeitar ateoria em questão.

É muitas vezes posto em destaque que a ciência

contemporânea é executada primariamente por peque-nos grupos de investigação, e não por indivíduos trabal-hando isoladamente. Este facto não cria, contudo, difi-culdades para um modelo de ciência evolucionista quetome os cientistas, enquanto indivíduos, como as entida-des base. As teorias evolucionistas modernas acomodamnão só a selecção de indivíduos como também a selecçãode grupos . Contudo é sempre uma questão empíricadecidir se a selecção actua directamente sobre os in-divíduos ou se actua sobre os grupos a que os indivíduospertencem.

Finalmente, devemos mencionar um factor que inspi-

rou originalmente Kuhn. A mudança na ciência é por vezes rápida e dramática – em nada semelhante ao pro-cesso lento e gradual descrito por Darwin. Mas tambémneste ponto trabalhos recentes no domínio da teoria daevolução fornecem uma resposta pronta. A evoluçãoorgânica não é actualmente encarada como gradual mascomo ocorrendo através de acontecimentos relativa-mente rápidos que «pontuam» longos períodos de relati-

 vo equilíbrio. A sugestão de que estes períodos estáveissão análogos aos períodos de ciência normal de Kuhn ésimultaneamente óbvia e irresistível. Podem então ocor-rer períodos de mudanças rápidas sem «revoluções».

Muito mais tem ainda que ser feito para desenvolverum modelo de ciência evolucionista. O esboço acimadelineado mostra que um modelo evolucionista por si só

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não é suficiente para justificar a eficácia da ciência. Umacomunidade religiosa pode similarmente evoluir atravésda competição entre grupos rivais existentes no seio dacomunidade, e o mesmo pode acontecer numa comuni-dade de críticos literários. Temos então de continuar aprocurar uma solução iluminista pós-moderna para o

problema da demarcação.

MECANISMOS COGNITIVOS

Para que uma abordagem evolucionista do progressocientífico ajude a distinguir as comunidades científicas deoutros tipos de comunidades, deve ser complementadapor uma análise dos mecanismos subjacentes aos proces-sos evolucionistas. Existem dois tipos diferentes demecanismos; em primeiro lugar, existem mecanismosbiológicos e psicológicos subjacentes às capacidades

cognitivas dos cientistas enquanto indivíduos; em segun-do lugar, existem mecanismos sociais que operam noseio do ambiente social e institucional em que os cientis-tas trabalham e interactuam. Se quisermos desenvolveruma teoria das capacidades cognitivas individuais deve-mos debruçar-nos primeiro sobre as ciências cognitivasque se estão agora a desenvolver. Relativamente a umateoria do ambiente social devemos debruçar-nos sobreas ciências sociais e, em particular, sobre a sociologia daciência.

O que distingue as ciências cognitivas contemporâ-neas de trabalhos anteriores em áreas semelhantes é a

ênfase na construção, manipulação e armazenamentode representações . Se quisermos usar este tipo de dadosao tentar investigar o modo como os cientistas constróemteorias e aprendem a usá-las, devemos reformular emtermos apropriados a nossa maneira de entender as teo-rias. Esta reorientação torna obsoleta a maior parte daliteratura filosófica acerca da natureza da ciência. Amaioria dessa literatura parte do princípio que as teoriasdevem ser analisadas como sistemas formais e axiomáticosencarados como tipos particulares de entidades lin- 

guísticas .Um dos pontos de vista «standard» em psicologia

cognitiva sugere a associação de teorias a  famílias de modelos , ou «schemata». Como parece evidente, os modelospodem ser descritos em termos linguísticos, mas não háqualquer motivo para tomar os modelos (em si mesmos)como entidades linguísticas. Eles são, antes, estruturasabstractas que podem ser fisicamente codificadas emredes de neurónios. Com efeito, a maior parte do queKuhn refere a propósito dos «modelos exemplares» tambémse aplica aos schemata.

Os modelos são utilizados para representar o mundo,mas a relação entre o modelo e o mundo não é umarelação de «verdade». Tradicionalmente a verdade tem

sido entendida como uma relação entre uma entidadelinguística, como é o caso de uma frase (ou em termosmais abstractos, uma proposição) e o mundo. Os mode-

los são entidades mais ou menos abstractas, mas não sãoentidades linguísticas. Podem, contudo, ser caracteriza-dos através da linguagem. Neste caso, o conceito de

 verdade pode ser usado para compreender a relaçãoentre a linguagem e o modelo, mas esta relação não é par-ticularmente problemática, na medida em que é mais

uma definição do que uma descrição. As relações entreas afirmações, os modelos e o mundo aparecem na figura7. Em geral, a linguagem não é necessária para caracteri-

zar os modelos; por exemplo, o modelo original do DNAde Watson e de Crick não foi caracterizado usando exclu-sivamente linguagem mas através da construção de ummodelo físico a partir de pedaços de arame, metal ecartolina.

 A relação entre o modelo e o mundo deve ser descritacomo um «ajuste», em maior ou menor grau, do modelorelativamente ao mundo. O «ajuste» é um caso especial deuma relação de semelhança . Podemos afirmar que ummodelo se assemelha a um domínio particular do mundoreal, mas a semelhança nunca é total, ocorre apenas sobalguns aspectos (e nunca sob todos) e com um graudeterminado de exactidão. Pode encontrar-se uma boaanalogia na relação entre um mapa de uma cidade e adisposição real das ruas. Nenhum mapa representa comtodo o rigor a disposição das ruas e não é necessárioexistir uma descrição verbal associada ao mapa, ainda

que tal descrição possa vir a ser construída. A investigação no domínio das ciências cognitivas

inclui a análise do modo como as pessoas emitem juízossobre vários assuntos, incluindo juízos sobre relações decausa e efeito e sobre relações de probabilidade. Mas nodomínio das ciências cognitivas não se está apenas preo-cupado com o modo como as pessoas tomam decisões;é igualmente interessante conhecer a eficácia das estra-tégias decisórias conducentes a juízos correctos . Investi-ga-se porque é que nem sempre as pessoas são tãoeficazes como deviam, e como poderiam ser mais efica-zes dada a evidência disponível.

Do ponto de vista de um modelo de ciência de tipoevolucionista, as decisões dos cientistas acerca do modocomo os modelos se ajustam ao mundo constituem um

Fig. 7 – Relações entre afirmações, modelos e o mundo real.

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mecanismo importante escolhido pelos cientistas paraseleccionar quais os grupos de investigação que parti-lham uma determinada visão do mundo. No contextopresente, este mecanismo é importante caso se encontreligado causalmente ao mundo através do processo deexperimentação .

 A experimentação desempenha um papel crucial naevolução da ciência desde o século XVII. Contudo,relatos diferentes da natureza da ciência oferecem visõesmuito diferentes da natureza e importância desse papel,e são disso exemplo os trabalhos clássicos do EmpirismoLógico que não contêm praticamente nenhumas referên-cias à experimentação enquanto tal. A razão parecedever-se a que, nesse contexto, a única importância daexperimentação residia na producão de novos dados quepudessem usar-se posteriormente como premissas deuma lógica indutiva, embora fosse totalmente irrelevanteaveriguar se os dados tinham sido obtidos por via da

experimentação ou apenas por via da observação. Ostrabalhos de Kuhn e dos mais importantes filósofos da ciên-cia pós-kuhnianos também exibem um desprezosemelhante face à experiência, o que deve ser atribuídoa uma ênfase exagerada dada à teoria por parte dosfilósofos e historiadores das ideias.

 Já o mesmo não se pode afirmar dos sociólogos daciência que perfilham o relativismo, pois os seus trabal-hos encontram-se semeados com descrições detalhadasde episódios passados no laboratório. Contudo, quasesem excepção, o objectivo dessas investigações é eviden-ciar as «contingências» na concepção, execução e inter-

pretação das experiências. É evidentemente seu objecti- vo mostrar que os resultados da experiência não podemfornecer uma base «objectiva» para a escolha de umaentre várias teorias alternativas. Tal como as teorias,também os resultados experimentais se encontram sujei-tos a negociações entre cientistas rivais com interessesantagónicos.

Se pensarmos que as decisões científicas individuaisconstituem um mecanismo de selecção, estamos a atri-buir à experimentação um papel distinto do habitual.Nesta nova óptica, a experimentação permite escolherentre modelos alternativos – um modo que confere ao

próprio mundo um papel determinante, mas não exclu-sivo, na escolha. Esta forma de encarar a experimentaçãocentra-se na concepção da experiência como uma com-ponente vital na estratégia decisória dos cientistas. O ob-jectivo global da estratégia não consiste em produzirdados, mas em produzir dados capazes de discriminar 

de forma precisa entre modelos rivais.Para ter uma ideia esquemática do modo como as de-

cisões individuais podem afectar os mecanismos deselecção é útil considerar um modelo simples de expe- 

riências cruciais . Considere-se um conjunto de cientistasque devem escolher entre duas famílias de modelos que

fornecem descrições rivais de um determinado domíniode investigação. Chamemos às famílias de modelos rivaisF1 e F2, respectivamente. Não vamos considerar os cien-

tistas como profissionais desinteressados em busca da verdade. Cada um pode possuir interesses profissionaisfortes que ficariam satisfeitos pela escolha de uma ou deoutra das duas teorias alternativas, mas para muitoscientistas nenhum desses interesses é tão forte queexclua a possibilidade  de vir a escolher a teoria que

inicialmente menos se favorecia.Imagine-se agora um fenómeno bem conhecido para

o qual ambas as famílias fornecem alguns modeloscandidatos. Imagine-se ainda que este fenómeno acarretaconsequências claramente distintas consoante o modeloque for escolhido para o representar. E suponha-se que,dada a evidência experimental existente, é possívelconstruir um aparelho que pode detectar com exactidãoos aspectos em causa. Deve-se em seguida supor quetodos os cientistas têm conhecimento suficiente do temabase, dos modelos rivais e da montagem experimentalpara poderem tomar as decisões seguintes. Se um dos

modelos de tipo F1 se ajustar ao fenómeno, então é muito provável  que o equipamento experimental conduza auma medida no intervalo R1. Do mesmo modo, se um dosmodelos de tipo F2 se ajustar ao fenómeno, é muito

 provável  que o equipamento experimental conduza auma medida no intervalo R2. Ao invés, se um modelo F1se ajustar, é muito pouco provável que uma medida venhaa cair no intervalo R2. E se um modelo F2 se ajustar, émuito pouco provável que uma medida caia no intervaloR1. A figura 8 representa esquematicamente esta situaçãoexperimental.

Fig. 8 – Um modelo das experiências científicas cruciais

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Podemos imaginar que cada cientista se debate como problema de «escolher» qual dos dois tipos de modelos,F1 ou F2, se ajusta melhor ao mundo real (ver figura 9).Nestas circunstâncias especiais cada um dos cientistas emcausa pode optar por uma das seguintes estratégias de 

decisão : se o resultado real da experiência for R1, escolhe

F1 como sendo a família de modelos que melhor se ajusta;se o resultado das experiências for R2, escolhe F2 comosendo a melhor família de modelos.

Para confirmarmos a eficácia desta estratégia basta--nos rever as condições da experiência acima delineadas.Se a família de modelos F1 se ajusta bem aos fenómenosreais, então é muito provável que a experiência tenha

 vão mudar de ponto de vista se não estiverem convenci-dos de que há uma probabilidade muito pequena deestar correcta a sua escolha inicial.

Para finalizar, não existe nenhuma garantia que ven-ha a ser concebido algo semelhante a uma experiênciacrucial. E evidentemente é tanto mais difícil fazer a discri-

minição das famílias de modelos rivais quanto maisamplas elas forem. Ainda assim ocorrem às vezes boasaproximações de experiências cruciais, e as decisões degrande número de cientistas podem mudar drastica-mente o campo em questão num período relativamentepequeno de tempo. A revolução ocorrida na geologianos anos 60 constitui um bom exemplo de uma sucessãode acontecimentos que se parecem ajustar ao esquemadescrito.

CONCLUSÃO

 A minha discussão dos mecanismos subjacentes aodesenvolvimento da ciência de tipo evolucionista pôs emdestaque os mecanismos cognitivos face aos mecanis-mos sociais. Isto não quer dizer que os mecanismossociais não sejam importantes; ao contrário, o desenvol-

 vimento da ciência contemporanea está tão dependentede mecanismos sociais como de mecanismos cognitivos.Contudo, os mecanismos sociais são muito difíceis dedescrever, e além disso são os mecanismos cognitivos daciência que fornecem uma base para a distinção entreactividades científicas e outras actividades sociais. Os

mecanismos sociais da ciência servem essencialmentepara promover a execução dos mecanismos cognitivosapropriados.

Qual é então a solução iluminista pós-moderna doproblema da demarcação? Em primeiro lugar, passa porreconhecer que aquilo a que chamamos «comunidadecientífica» é, com efeito, um aglomerado de várias comu-nidades de investigação frouxamente relacionadas entresi, cada uma versando sobre um aspecto particular domundo. No seio de cada comunidade particular de inves-tigação os cientistas estão envolvidos em várias activida-des, incluindo a construção de modelos que se adequem

aos seus problemas de investigação. A característicacrucial reside no facto de que as decisões dos cientistas(enquanto indivíduos) no que respeita aos modelos quemelhor representam o mundo estão causalmente  ligadasao próprio mundo através da experimentação e de outrasformas de interacção. As ligações de tipo causal estãolonge de ser perfeitas e as decisões estão sujeitas a

 variadas influências que se somam aos resultados das ex-periências. Contudo, em média os modelos que melhorse ajustam têm maior probabilidade de serem eventual-mente escolhidos pela comunidade relevante.

Poderia parecer que chegámos a uma conclusão pou-

co notável, mas isso é só assim se esquecermos asalternativas modernista e pós-modernista. Os empiristaslógicos, e neles incluímos Popper, procuraram encontrar

Fig. 9 – Uma representação das estratégias de decisão de um cientis-ta perante duas famílias de modelos rivais.

como resultado R1. Seguindo a estratégia de decisão mais

simples, um cientista escolhe F1 como sendo a família demodelos que melhor se ajusta e esta é sem dúvida aescolha correcta. De modo semelhante se F2 fornecer umbom ajuste é muito provável que o resultado da expe-riência seja R2 e um cientista que siga a estratégiadelineada acima escolherá F2, que mais uma vez é aescolha correcta. Em suma, qualquer que seja o modeloque melhor se ajusta ao fenómeno as circunstânciasdescritas tornam muito provável que o cientista faça aescolha correcta, qualquer que ela seja.

 A aplicação deste modelo simplificado a uma expe-riência crucial exige evidentemente que os cientistas

façam os julgamentos correctos quanto à maior ou menorprobabilidade dos resultados da experiência, do pontode vista de cada uma das teorias em confronto. Mas istonem sempre acontece, ou então pode acontecer que oscientistas não estejam todos de acordo sobre os diferen-tes julgamentos, e nesse caso só alguns se vão basear naexperiência para decidir entre as teorias em jogo. Alémdisso, é importante que as probabilidades em causatenham valores extremos, isto é, próximos de um ou dezero. Se assim não for os próprios objectivos dos cientis-tas tenderão a dominar as escolhas feitas. Podemos assu-mir com segumça que os cientistas procuram escolher o

modelo que melhor se ajusta aos resultados das expe-riências. Mas se uma experiência contrariar as suas con-

 vicções anteriores e os seus interesses profissionais, não

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a essência da ciência nas relações formais e lógicas entreproposições. Em resposta a Kuhn, os filósofos da ciênciapós-kuhnianos modernistas, de que é exemplo Lakatos,tentaram redefinir a racionalidade científica em termosnão-formais, por exemplo em termos da previsão bemsucedida de novos fenómenos empíricos. Entretanto, os

sucessores pós-modernos de Kuhn no domínio da socio-logia da ciência procuraram reduzir a ciência a mais umaactividade social que nada distinguia em princípio daprática da lei ou da feitiçaria. A posição iluminista pós-

-moderna concorda com Kuhn e com os seus críticos pós--modernos na medida em que a autoridade da ciência nãodeve ser procurada em relações lógicas formais ou emdefinições de racionalidade científica. Reconhece-se quea ciência é uma actividade intrinsecamente humana, masainda assim é uma actividade que produz modelos do

mundo que se lhe ajustam melhor ou pior, embora nuncasejam perfeitos ou completos. Além do mais, a ciência éuma actividade cujas características podem ser estudadascom os métodos da própria ciência.

Sobre as teses de Popper do Empirismo Lógico:

Carnap, R. 1963. Intellectual Autobiography. In The Philosophy of Rudolf Carnap , ed. P. A. Schilpp. LaSalle, IL: Open Court.

Hempel, C. G. 1965. Aspects of Scientific Explanation . New York: FreePress.

Miller, D. ed. 1985. Popper Selections . Princeton, NJ: Princeton Univ.Press.

Neurath, O., R. Carnap, and C. Morris, eds. 1955. 1970.Foundations of the 

Unity of Science , 2 vols. Chicago: Univ. of Chicago Press.

Relativamente às teses de Merton sobre a sociologia da ciência:

Metton, R. K. 1973. The Sociology of Science , ed. N. Storer. New York:Free Press.

 As teses de Kuhn encontram-se sobretudo nos dois volumesseguintes:

Kuhn, T. S. 1962. The Structure of Scientific Revolutions . Chicago: Univ.of Chicago Press (2nd ed. 1970).

Kuhn, T. S. 1977. The Essential Tension . Chicago: Univ. of Chicago Press.

Sobre as teses de Lakatos:

Lakatos, I. 1978. Philosophical Papers . 2 vols. ed. J. Worrall and G.Currie. Cambridge: Cambridge Univ. Press.

Sobre as teses dos modernos sociólogos construtivistas da ciên-cia, refere-se:

Barnes, B. and D. Edge, eds. 1982. Science in Context . Cambridge: MITPress.

Collins, H. M., and T. J. Pinch. 1982. Frames of Meaning . London:Routledge & Kegan Paul.

Knorr-Cetina, K. D. and M. Mulkay, eds. 1983. Science Observed . Holly- wood, CA: Sage.

Latour, B. 1987. Science in Action . Cambridge: Harvard Univ. Press.

Latour, B. and S. Woolgar. 1979. Laboratoty Life . Beverly Hills: Sage. 2nded. Princeton, NJ: Princeton Univ. Pres, 1986.

Sobre os modelos de ciência de tipo evolucionista ver, nomea-damente:

Campbell, D. T. 1974. Evolutionary Epistemology. In The Philosophy of 

Karl Popper , ed. P. A. Schilpp, 413-463. La Salle: Open Court.

Hull, D. 1988. Science as a Process: An Evolutionary Account of the 

Social and Conceptual Development of Science . Chicago: Univ. of Chicago Press.

Toulmin, S. 1972. Human Knowledge . Princeton: Princeton Univ. Press.

 Trabalhos recentes dedicados à filosofia da ciência pós-moderna:

Cartwright, N. 1983. How the Laws of Physics Lie . Oxford: ClarendonPress.

Fine, A. 1986. The Shaky Game: Einstein, Realism, and the Quantum 

Theory . Chicago: Univ. of Chicago Press.

Fuller, S. 1989. Philosophy of Science and its Discontents . Boulder, CO: Westview Press.

Giere, R. N. 1988. Explaining Science: A Cognitive Approach . Chicago:University of Chicago Press.

Hacking, I. 1983. Representing and Intervening . Cambridge: CambridgeUniv. Press.

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