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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 6 Número 16 Julho 2015 94 A VARIAÇÃO DAS REGÊNCIAS DOS VERBOS NAMORAR E ASSISTIR NO PORTUGUÊS FALADO EM BELO HORIZONTE Letícia Lucinda Meirelles (FALE - UFMG/CNPQ) 1 [email protected] Márcia Maria Cançado Lima (UFMG) 2 [email protected] RESUMO: Este artigo traz um estudo sociolinguístico da variação das regências dos verbos namorar e assistir no português falado em Belo Horizonte. Desse modo, as variantes a serem analisadas são, respectivamente, [namorar] e [namorar com] e [assistir] e [assistir a/ao]. Os objetivos deste trabalho são averiguar se as duas variáveis correspondem a um mesmo fenômeno linguístico, caracterizado pela queda da preposição na regência dos verbos e também se, em cada caso, temos um quadro de variação estável ou mudança em progresso. Para tanto, analisamos a fala de 20 informantes da cidade de Belo Horizonte através dos arcabouços teórico-metodológicos da Sociolingüística Variacionista. Ao final, concluímos que as duas variáveis em questão não constituem um mesmo fenômeno linguístico e que ambos os casos caracterizam uma situação de variação estável entre as variantes de cada variável. PALAVRAS-CHAVE: Sociolingüística. Variação e mudança linguística. Regência verbal. ABSTRACT: This article brings a sociolinguistic study about the verbal government variation of namorar and assistir in the Portuguese spoken in Belo Horizonte. Thus, the variants to be analyzed are, respectively, [namorar] and [namorar com] and [assistir] and [assistir a/ ao]. Our objectives are to ascertain if the two variables correspond to the same linguistic phenomenon, characterized by the preposition drop in verbal government and whether we have a stable variation or change in progress in each case. Therefore, we analyzed the speech of 20 informants from Belo Horizonte city through the Variationist Sociolinguistics theoretical and methodological frameworks. At the end, we conclude that the two variables in question are not the same linguistic phenomenon and that both cases characterize a situation of stable variation. KEYWORDS: Sociolinguistics; Variation and linguistic change; Verbal government. 1. Introdução A Sociolinguística Variacionista, originada em Labov (1972), parte do princípio de que a variação e a mudança são inerentes às línguas, como um fenômeno motivado por fatores linguísticos e extralinguísticos. Assim, essa linha de pesquisa tem por objeto de estudo os padrões de comportamento linguístico observáveis dentro de uma 1 Mestranda em Estudos Linguísticos FALE / UFMG 2 Orientadora de Mestrado de Letícia Lucinda Meirelles (FALE - UFMG/CNPQ)

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A VARIAÇÃO DAS REGÊNCIAS DOS VERBOS NAMORAR E

ASSISTIR NO PORTUGUÊS FALADO EM BELO HORIZONTE

Letícia Lucinda Meirelles (FALE - UFMG/CNPQ)1

[email protected]

Márcia Maria Cançado Lima (UFMG)2

[email protected]

RESUMO: Este artigo traz um estudo sociolinguístico da variação das regências dos verbos namorar e

assistir no português falado em Belo Horizonte. Desse modo, as variantes a serem analisadas são,

respectivamente, [namorar] e [namorar com] e [assistir] e [assistir a/ao]. Os objetivos deste trabalho são

averiguar se as duas variáveis correspondem a um mesmo fenômeno linguístico, caracterizado pela queda

da preposição na regência dos verbos e também se, em cada caso, temos um quadro de variação estável

ou mudança em progresso. Para tanto, analisamos a fala de 20 informantes da cidade de Belo Horizonte

através dos arcabouços teórico-metodológicos da Sociolingüística Variacionista. Ao final, concluímos

que as duas variáveis em questão não constituem um mesmo fenômeno linguístico e que ambos os casos

caracterizam uma situação de variação estável entre as variantes de cada variável.

PALAVRAS-CHAVE: Sociolingüística. Variação e mudança linguística. Regência verbal.

ABSTRACT: This article brings a sociolinguistic study about the verbal government variation of

namorar and assistir in the Portuguese spoken in Belo Horizonte. Thus, the variants to be analyzed are,

respectively, [namorar] and [namorar com] and [assistir] and [assistir a/ ao]. Our objectives are to

ascertain if the two variables correspond to the same linguistic phenomenon, characterized by the

preposition drop in verbal government and whether we have a stable variation or change in progress in

each case. Therefore, we analyzed the speech of 20 informants from Belo Horizonte city through the

Variationist Sociolinguistics theoretical and methodological frameworks. At the end, we conclude that the

two variables in question are not the same linguistic phenomenon and that both cases characterize a

situation of stable variation.

KEYWORDS: Sociolinguistics; Variation and linguistic change; Verbal government.

1. Introdução

A Sociolinguística Variacionista, originada em Labov (1972), parte do princípio

de que a variação e a mudança são inerentes às línguas, como um fenômeno motivado

por fatores linguísticos e extralinguísticos. Assim, essa linha de pesquisa tem por objeto

de estudo os padrões de comportamento linguístico observáveis dentro de uma

1 Mestranda em Estudos Linguísticos FALE / UFMG

2 Orientadora de Mestrado de Letícia Lucinda Meirelles (FALE - UFMG/CNPQ)

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comunidade de fala e os formaliza analiticamente através de um sistema heterogêneo,

constituído por unidades e regras variáveis.

Neste presente artigo, propomo-nos a estudar a variação entre [namorar] e

[namorar com] e [assistir] e [assistir a/ao] no português com o intuito de averiguarmos

se ambos os casos constituem um mesmo fenômeno variável. Para tanto, analisamos as

ocorrências das duas variáveis no português falado em Belo Horizonte para

verificarmos se estamos diante de casos de possível mudança linguística ou variação

estável.

O nosso trabalho se justifica, pois a regência dos verbos tem despertado o

interesse para muitos estudos, já que tem apresentado inúmeras alterações no português.

Os fenômenos das regências variáveis dos verbos namorar e assistir apontam para a

existência de duas formas variantes: [namorar] ~ [namorar com] e [assistir] ~ [assistir

a/ao], ou seja, ambas variáveis apresentam uma forma direta e uma indireta:

(1) a. Ana namora João.

b. Ana namora com João.

(2) a. Bruno assistiu o filme.

b. Bruno assistiu ao filme/ a um filme.

Nossa hipótese mais geral é que as duas variáveis mencionadas anteriormente

consistem em um mesmo fenômeno linguístico caracterizado pela queda/ perda da

preposição na regência dos verbos. No entanto, apesar de constituírem um mesmo

fenômeno, acreditamos, baseados em observações assistemáticas, que encontramos em

ambas as variáveis um quadro de mudança em progresso, porém em direções diferentes:

a variante [namorar com] estaria suplantando [namorar] e [assistir] estaria se

sobrepondo a variante [assistir a/ao]. Isto é, enquanto a forma indireta de namorar

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estaria sendo mais usada, a forma direta se assistir se sobreporia à sua forma indireta, de

modo que as duas variáveis estariam em processo mudança, porém em direções opostas.

Na seção 2 faremos uma breve exposição teórica sobre a Sociolinguística

Variacionista; na 3, apresentamos os conceitos de preposição e transitividade verbal

segundo a literatura; a seção 4 e a subseção 4.1 trazem nossa análise sobre o verbo

namorar, enquanto a seção 5 e subseção 5.1 fazem o mesmo para o verbo assistir. A

seção 6 conclui o artigo.

2. A Sociolingüística Variacionista: uma breve exposição teórica.

A Sociolinguística como um campo específico de estudo se desenvolveu,

sobretudo a partir da década de 1960, que representa o marco do início dos estudos mais

sistemáticos na área. O modelo teórico-metodológico dessa linha de pesquisa, também

denominada Sociolinguística Quantitativa por operar com números e tratamento

estatístico dos dados coletados, é atribuído a William Labov que, insistindo

veementemente na relação entre língua e sociedade, criou um modelo de análise que

possibilitasse a sistematização da variação existente na língua falada.

A principal diferença entre a Sociolinguística e a Linguística Estruturalista é a

compreensão da variação e das mudanças linguísticas, uma vez que para os

variacionistas as mudanças advêm do comportamento social enquanto que para os

estruturalistas elas são internas ao sistema.

Em seu texto clássico, Weinreich, Labov e Herzog (1975) afirmam que

estruturas heterogêneas são parte da competência linguística, ou seja, necessárias para o

funcionamento real de qualquer língua e o indivíduo tem capacidade para codificar e

decodificar essa heterogeneidade. Assim, para os variacionistas, a variação e a mudança

são inerentes às línguas. A variação não é vista como um efeito do acaso, mas como um

fenômeno cultural motivado por fatores linguísticos e extralinguísticos, e não é

assistemática.

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Os termos variante e variável são noções-chave nessa linha de pesquisa. O termo

variante é utilizado nos estudos de Sociolinguística para designar as formas que estão

sofrendo variação, ou seja, uma ou mais formas usadas ao lado de outra na língua sem

que se verifique mudança no significado básico. O conjunto das variantes é denominado

“variável linguística”, ou seja, a forma ou construção linguística que é o próprio

fenômeno variável tomado como objeto de estudo pelo investigador. A Sociolinguística

entende que o emprego das variantes não é aleatório, mas influenciado por grupos de

fatores de natureza social (externos à língua) ou estrutural (internos à língua), os quais

podem exercer pressão sobre os usos (LABOV, 1972).

A pesquisa na Sociolinguística Variacionista busca apreender a sistematicidade

da variação, seu encaixamento linguístico e social e uma possível relação com a

mudança linguística por meio de análises quantitativas de um corpus, escolhido a partir

de certas características sociais correlacionadas a uma variável linguística – que pode

ser fonético-fonológica, morfossintática, entre outras.

Desse modo, uma análise sociolinguística de um determinado fenômeno variável

busca verificar se esse consiste em uma situação de mudança em progresso, de modo

que uma variante está suplantando a outra, ou uma situação de variação estável, onde as

variantes de uma mesma variável encontram-se em competição, sem sinais

significativos de maior uso de uma em detrimento da outra. A busca pela mudança

linguística se dá de duas formas: através da análise dos dados em tempo aparente e por

meio do tempo real. Esse último tipo de análise consiste em averiguar se a variável em

questão está passando por um processo de mudança ou constitui variação estável através

da observação diacrônica da língua, observando dois ou mais períodos de tempo.

Uma análise em tempo aparente, por sua vez, consiste na observação do tempo

de acordo com a faixa etária dos informantes, baseando-se no fato de que as diferenças

entre as faixas etárias refletem os diferentes estágios do desenvolvimento histórico da

língua. Assim, a fala das pessoas de 40 anos hoje, por exemplo, reflete diretamente a

fala das pessoas de 20 anos a vinte anos atrás, o que faz com que possa ser comparada

com a fala das pessoas que possuem 20 anos hoje.

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Neste trabalho adotamos uma análise em tempo aparente, feita através de testes

com informantes de duas faixas etárias distintas. Nossa metodologia de pesquisa será

mais bem explicada nas seções seguintes.

3. Conceitos de preposição e regência verbal

Luft (1976) considera as preposições palavras gramaticais que participam da

marcação da regência verbal. Para o autor, elas são vazias de sentido e caracterizam os

substantivos como complementos ou adjuntos.

Para Cunha (1972), preposições são palavras invariáveis que relacionam dois

termos da oração, de tal modo que o sentido do primeiro (antecedente) é explicado ou

completado pelo sentido do segundo (consequente). Afirma ainda que pode ocorrer um

esvaecimento do conteúdo significativo em favor da função relacional pura.Costuma-se,

nesse caso, considerá-la um simples elo sintático, vazio de conteúdo nocional. A sua

carga semântica é maior ou menor dependendo do tipo de relação sintática que

estabelece. Essa relação pode ser fixa, necessária ou livre.

Nas relações fixas, o uso associou de tal forma as preposições às palavras ou

grupos de palavras que esses elementos não se desvinculam mais, esvaziando-se

totalmente a função relacional primitiva e o sentido da preposição. Exemplos: Rio de

Janeiro, poder com (no sentido de aguentar).

Nas relações necessárias, as preposições ligam ao termo principal um

consequente sintaticamente necessário: verbo + objeto indireto (pertence a Deus),

substantivo + complemento nominal (aquisição de geladeira), verbo + adjunto

adverbial necessário (foi ao cinema), particípio + agente da passiva (esmagados por

ele). Nesses casos, a função relacional das preposições sobrepõe-se ao seu conteúdo

significativo.

Nas relações livres é que as preposições assumem totalmente seu conteúdo

significativo, já que não são sintaticamente necessárias, como por exemplo, em

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encontrar um amigo ou encontrar com um amigo, em que com tem o valor de

associação.

Passando agora para a questão da transitividade verbal, Luft (1976) distingue

entre dois tipos de verbos transitivos indiretos: verbos como agradar, agradecer,

obedecer, entre outros, que exigem a preposição a e permitem aplicar o pronome lhe; e

verbos do tipo assistir, carecer, depender, entre outros, que são obrigatoriamente

regidos de preposição, geralmente não aceitam a passivização e não admitem o pronome

lhe, mas sim o pronome reto ele precedido de preposição, como assistiu a ele e não

*assistiu-lhe.

Mioto et al (2007) propõe que tantos verbos transitivos diretos quanto transitivos

indiretos possuem um argumento interno que vai se diferenciar pela presença ou

ausência da preposição. Verbos transitivos diretos têm como argumento interno um

sintagma nominal, enquanto verbos transitivos indiretos possuem um sintagma

preposicionado como argumento interno. Assim, existe uma diferença entre preposição

lexical e preposição funcional, de modo que a primeira corresponde àquelas preposições

atribuidoras de papéis temáticos e que encabeçam adjuntos, como em Maria desmaiou

na mesa ou Maria desmaiou na quinta feira; já as preposições funcionais são aquelas

que não atribuem papel temático, sendo, portanto, complementos dos verbos, como em

João gosta de Maria e Maria pôs o pé na mesa. Podemos perceber assim, que o que

Mioto et al (2007) chama de preposições funcionais corresponde àquilo que Cunha

(1972) chama de preposições que estabelecem relações necessárias com o verbo.

Tendo visto um pouco sobre a noção de preposição e regência verbal, passemos

para o estudo específico dos verbos namorar e assistir.

4. O verbo namorar

Buscando a acepção do verbo namorar em três dicionários (FERREIRA, 1975;

BORBA, 1991 E HOUAISS, 2009), encontramos dois sentidos principais: o primeiro

relacionado ao interesse, desejo, cobiça, como em a moça namorou as roupas na vitrine

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antes de comprá-las, e o segundo utilizado quando duas pessoas têm um relacionamento

amoroso contínuo ou por um período de tempo, como em João namorou Ana por 5

anos. Todos os três dicionários classificam o verbo como transitivo direto, no entanto,

apontam para o fato de namorar, com sentido de ter relação amorosa, possuir uma

variante que ocorre com complemento precedido da preposição com:

(3) a. Viam a dondoca namorar no escuro com o Antônio. (BORBA, 1991)

b. Namora com a moça há muitos anos e nada de casamento. (FERREIRA,

1975)

c. Era feliz quando namorava com ela. (HOUAISS, 2009)

É importante notar que a regência do verbo namorar mostra como uma diferença

de sentido pode ser marcada na estrutura da língua. Como vimos, o verbo em questão

tem pelo menos dois sentidos: quando namorar significa ter um relacionamento

amoroso, o verbo aceita, no uso real, duas regências: namorar o/a e namorar com o/a.

Todavia, quando significa cobiçar, a regência é sempre e apenas a direta. Essa diferença

marca-se na sintaxe: em um deles a regência é fixa (namorar o/a), no outro caso, ela

flutua, varia. Desse modo, levaremos em conta neste trabalho apenas o uso do verbo

namorar com o sentido de ter um relacionamento amoroso, pois é nessa acepção que

sua regência varia. Trata-se, portanto, de uma variação sintática.

(4) a. João namorou a Ana por 5 anos.

b. João namorou com a Ana por 5 anos.

Nossa hipótese é de que as formas estariam se especializando em funções

diferentes, de modo que namorar transitivo direto estaria sendo mais usado com o

sentido de cobiça, enquanto namorar transitivo indireto estaria sobrepondo à forma

direta quando o sentido fosse de ter relacionamento amoroso.

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Gramáticos Tradicionais, como Cegalla (2008) e Rocha Lima (2003) afirmam

que a regência correta de namorar, ou seja, a sua forma padrão, é namorar alguém e

não namorar com alguém. No entanto, como vimos, os próprios dicionários de língua

portuguesa já reconhecem a existências das duas formas.

Com o intuito de tentar descobrir de onde surgiu a forma indireta do verbo,

fizemos uma busca em dois dicionários etimológicos: o de Cunha, (1986) e o de

Machado, (1914). Ambos apenas dizem que namorar vem de enamorar (EN- +

AMOR+ -AR). A partir daí, buscamos o sentido de enamorar nos dicionários de

Ferreira (1975), Borba (1991) e Houaiss (2009) e todos eles afirmam que o verbo possui

o sentido de apaixonar, encantar, enfeitiçar, podendo ter apenas um sintagma nominal

ou um sintagma nominal encabeçado pela preposição de como complemento:

(5) a. Rezam as lendas que as sereias do rio Reno enamoravam marinheiros.

(BORBA, 1991)

b. A princesa enamorou-se do príncipe. (BORBA, 1991)

Diante disso, procuramos no corpus do português3 as ocorrências de enamorar

e, de fato, todas elas apresentaram como complemento um sintagma nominal ou um

sintagma preposicionado regido pela preposição de. Portanto, não podemos explicar o

uso da forma namorar com através de uma analogia com o verbo enamorar, uma vez

que esse aceita a preposição de e não com.

Ainda no corpus do português, fizemos uma busca para tentar descobrir qual das

variantes de <namorar> seria a mais conservadora. O que encontramos foi que

[namorar] é a variante mais antiga, apresentando ocorrências desde o século XIX. Já

[namorar com] apresentou poucas ocorrências e apenas no século XX.4

3 http://www.corpusdoportugues.org/

4 Lembrando que analisamos apenas a acepção de namorar que diz respeito a ter um relacionamento

amoroso com alguém.

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Observando os conceitos de preposição e regência verbal apresentados na seção

3, temos que a preposição com da variante [namorar com] é classificada como

vinculadora de informação livre, segundo Cunha (1972), uma vez que ela não é

sintaticamente necessária (já que o verbo é transitivo direto). Assim como no exemplo

dado pelo autor (encontrar um amigo/ encontra com um amigo), em namorar com, ela

veicula um valor associativo. No entanto, segundo a análise de Mioto et al (2007), tal

preposição seria classificada como funcional, uma vez que sua função é única e

exclusivamente sintática, de modo que não atribui papel temático para o sintagma

nominal que é argumento interno do verbo. Neste trabalho adotamos a classificação

feita por Mioto et al (2007).

Levin (1993), em seu catálogo de verbos do inglês, classifica o verbo namorar

como membro de uma classe chamada de “verbos de interação social”. Segundo a

autora, os membros dessa classe (agree ‘concordar’, argue ‘discutir’, duel ‘duelar’,

cooperate ‘cooperar’, entre outros) tomam um sintagma preposicionado encabeçado

pela preposição com (with) quando eles não possuem um sintagma nominal coletivo

como sujeito. Assim, teríamos as seguintes sentenças possíveis com o verbo namorar

(flirt) para o inglês:

(6) a. John flirts with Anna.

‘John namora com Anna’

b. John and Anna flirt.

‘John e Anna namoram’

Em português, (6a) pode variar entre uma forma transitiva direta e indireta,

como mostramos em (4a,b). A ocorrência de (6b), em ambas as línguas, se explica pelo

fato de namorar ser um verbo recíproco, ou seja, é um verbo que permite duas formas

possíveis de realização de seus argumentos: a forma simples, onde temos um sintagma

nominal composto ou coletivo como sujeito, e a forma descontínua, na qual os

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participantes da reciprocidade vêm distribuídos na posição de sujeito e objeto (Godoy,

2009, 2010).

(7) a. João e Ana namoram. → Forma simples com sujeito composto

b. O casal namorou durante anos. → Forma simples com sujeito coletivo

c. João namora a Ana/ João namora com a Ana. → Forma descontínua

É a forma contínua do verbo que tomamos como objeto de estudo neste trabalho.

Tendo feito uma série de considerações a cerca da semântica e sintaxe de do verbo

namorar, passemos agora para a análise da variação entre as suas duas variantes

[namorar] e [namorar com].

4.1. A variação de <namorar> entre as duas formas variantes: [namorar] e

[namorar com]

Comecemos por explicitar nossa metodologia de pesquisa. Como o nosso

objetivo principal é verificar se as variáveis <namorar> e <assistir> estão passando por

um processo de mudança ou constituem uma situação de variação estável, optamos por

fazer uma análise em tempo real com informantes pertencentes a duas faixas etárias

distintas: jovem-adultos (com idade entre 20 e 30 anos) e adulto-idosos (com idade

entre 50 e 70 anos). Esses informantes foram igualmente divididos entre homens e

mulheres com o intuito de averiguarmos se o gênero poderia estar influenciando na

realização de uma das variantes de cada variável. Todos os informantes possuem ensino

superior completo e residem em Belo Horizonte (MG) desde o seu nascimento, de modo

que controlamos as variáveis escolaridade e localização regional. Assim, trabalhamos

com duas variáveis independentes: gênero e faixa etária.

Belo Horizonte foi a cidade escolhida para a realização dessa pesquisa, uma vez

que, residindo na mesma, percebemos, através de observações assistemáticas, que os

falantes apresentam comportamento variável em relação às regências dos verbos

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namorar e assistir, o que nos despertou interesse e nos fez levantar as hipóteses que

foram apresentadas na seção 1.

Tarallo (2007) sugere a distribuição dos parâmetros sociais em células

compostas, cada uma, de indivíduos com as mesmas características sociais. Desse

modo, em nossa pesquisa construímos dois grupos de células:

Grupo 1 (faixa etária): jovem-adultos e adultos- idosos (duas células)

Grupo 2 (gênero): homem e mulher (duas células)

O autor ainda sugere que sejam escolhidos cinco informantes para cada célula, o

que resultaria, no caso da distribuição no diagrama arbóreo na figura 1 a seguir, em 20

pessoas a serem entrevistadas e, ao final, teríamos uma amostra representativa do

fenômeno pesquisado.

Figura 1: distribuição arbórea de 2 grupos de células

Portanto, ao todo foram selecionados 20 informantes, sendo 10 jovem-adultos

(com idade entre 20 e 30 anos) e 10 adulto-idosos (com idade entre 50 e 70 anos). Em

cada faixa etária há 5 homens e 5 mulheres.

Os informantes foram submetidos a um teste de produção de sentenças realizado

da seguinte maneira: foram dados oito conjuntos de fichas, contendo 3 palavras, para

cada informante e em seguida pedia-se para que eles produzissem sentenças com essas

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fichas, podendo acrescentar mais palavras do que aquelas 3 já existentes. Os oito

conjuntos de fichas foram:

(8)

(9)

(10)

(11)

(12)

(13)

(14)

(15)

Notemos que alguns verbos, como gostar, ir e viajar, pedem, necessariamente,

um complemento preposicionado, de modo que os colocamos no teste para estimular e

deixar claro para o informante que ele poderia usar preposições na construção das

sentenças. Vejamos, a seguir, algumas sentenças que foram produzidas pelos

informantes:

(16) a. João namorou a Ana.

Luana Viajar Londres

Menino quebrar copo

Bruno assistir filme

Comerciante abrir loja

João namorar Ana

Carolina ir Paris

Menino gostar sorvete

Menina comer bolo

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b. João começou a namorar Ana quando ela tinha 15 anos.

c. João namora Ana há 5 anos

d. João queria namorar Ana, mas ela era apaixonada por outro

e. João deseja namorar com Ana.

f. O sonho de João era namorar com Ana.

Obtivemos os seguintes resultados para as ocorrências de <namorar>: entre os

jovem-adultos tivemos 8 realizações de [namorar] e apenas 2 de [namorar com]; entre

os adulto-idosos obtivemos 5 realizações de [namorar] e apenas 3 de [namorar com]5.

Tabela 1: variação de [namorar] e [namorar com]

Através da tabela 1 podemos perceber que as duas ocorrências de [namorar com]

foram realizadas por mulheres (2 jovem-adultas e 3 adulto-idosas). Diante disso,

resolvemos testar a significância do gênero para o fenômeno variável em questão:

VARIANTES HOMEM MULHER TOTAL

[namorar] 5 3 8

[namorar com] - 2 2

TOTAL 5 5 10

Tabela 2: testando a significância da variável independente gênero na faixa etária jovem/adulto

5 Tivemos que descartar duas ocorrências, pois dois dos informantes masculinos realizaram a forma

simples/ contínua do verbo: “quando eu apresentei a Ana pro João, eu sabia que os dois iam querer

namorar”/ “João e Ana namoram desde a juventude”.

INFORMANTES [namorar] [namorar com] TOTAL TOTAL POR

FAIXA

ETÁRIA

JOVEM/ADULTO

(20 a 30 anos)

M

F

5

3

-

2

5

5

10

ADULTO/IDOSO

(50 a 70 anos)

M

F

3

2

-

3

3

5

8

TOTAL 13 5 18 18

p- valor fator 1 e 2 0,0637320744

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VARIANTES HOMEM MULHER TOTAL

[namorar] 3 2 5

[namorar com] - 3 3

TOTAL 3 8

Tabela 3: testando a significância da variável independente gênero na faixa etária adulto/idoso

As tabelas 2 e 3 nos mostram que a diferença de gênero não é significativa no

fenômeno de variação em questão uma vez que o p-valor foi inferior a 0,05, ou seja, o

gênero não favorece o uso de nenhuma das duas variantes.

A partir daí, construímos uma tabela apenas com a variável independente faixa

etária com o intuito de averiguarmos se o fenômeno variável caracteriza uma situação de

mudança em progresso ou variação estável.

VARIANTES JOVEM/ADULTO ADULTO/IDOSO TOTAL

[namorar] 8 5 13

[namorar com] 2 3 5

TOTAL 10 8 18

Tabela 4: testando se os dados da variável <namorar> configuram um fenômeno de mudança lingüística

A tabela 4 nos mostra que a variação entre [namorar] e [namorar com] não está

passando por um processo de mudança, caracterizando assim um fenômeno linguístico

que está em processo de variação estável.

Assim, temos que a variável <namorar> no português falado em Belo Horizonte

caracteriza uma situação de variação estável, de modo que nossa hipótese de

especialização das formas e possível favorecimento da variante [namorar com] em relação

à [namorar] não se confirma.

Passemos agora para a análise do verbo assistir.

p- valor fator 1 e 2 0,0896860400

p- valor fator 1 e 2 0,4101169923

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5. O verbo assistir

O verbo assistir vem do latim assistěre (CUNHA, 1986 e MACHADO, 1914).

Ao buscarmos a acepção de assistir nos mesmos dicionários que buscamos a de namorar

(FERREIRA, 1975; BORBA, 1991 E HOUAISS, 2009), encontramos uma série de

significados distintos, mas apenas o de ver, presenciar, observar, nos interessará aqui.

Vejamos a seguir alguns dos significados desse verbo:

(17) Uma parteira assistiu minha mãe no seu primeiro parto. → significa prestar

auxílio, dar assistência. (BORBA, 1991)

(18) Uma família americana veio assistir no Brasil. → significa residir. (BORBA,

(1991)

(19) Maria assistia a vários filmes durante a semana. → significa ver, observar.

(BORBA, 1991)

Cegalla (2008) e Rocha Lima (2003) afirmam que a regência correta de assistir

com sentido de ver, presenciar, é assistir a/ao, enquanto a forma padrão de assistir com

sentido de prestar assistência é apenas assistir, sem a preposição. Assim, a nossa variável

em questão (assistir com sentido de ver) seria um verbo transitivo indireto na sua forma

padrão: Maria assistia a vários filmes durante a semana e não Maria assistia vários

filmes durante a semana.

Através de uma pesquisa no site corpus do português, também pudemos

constatar que a variante [assistir a/ao], além de ser considerada a padrão pelas gramáticas

tradicionais, também é a mais conservadora, apresentando ocorrências desde o século

XVII, enquanto a variante [assistir] aparece apenas a partir do século XIX.

No entanto, apesar de uma longa tradição gramatical ensinar que esse verbo é

transitivo indireto com o sentido de ver, notamos, através de observações assistemáticas,

que na linguagem coloquial brasileira, o verbo constrói-se, em tal acepção,

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preferencialmente com objeto direto e até mesmo escritores modernos, como Clarice

Lispector, têm dado acolhida à regência gramatical condenada:

(20) Só a menina estava perto e assistiu tudo estarrecida.

(Clarice Lispector – Uma galinha, 19986)

Portanto, nossa variável a ser analisada é <assistir> com sentido de ver,

presenciar, observar e que pode se realizar como as variantes [assistir] e [assistir a/ao].

Nossa hipótese é de que a forma direta do verbo está suplantando a sua forma indireta,

caracterizando assim uma situação de mudança em progresso.

(21) a. Maria assistiu ao filme.

b. Maria assistiu o filme.

Observando os conceitos de preposição e regência verbal apresentados na seção

3, temos que a preposição a da variante [assistir a] é classificada como vinculadora de

informação necessária, segundo Cunha (1972), uma vez que liga ao termo principal um

consequente sintaticamente necessário, caracterizando a relação verbo + objeto indireto.

Para Mioto et al (2007), tal preposição seria classificada como funcional, assim como a

preposição com de namorar com, uma vez que sua função é única e exclusivamente

sintática, de modo que não atribui papel temático para o sintagma nominal que é

argumento interno do verbo.

De acordo com Luft (1976), o verbo assistir é transitivo indireto e, assim como

carecer, depender, entre outros, é obrigatoriamente regido de preposição, não admitindo o

pronome lhe, mas sim o pronome reto ele precedido de preposição, e não aceitando

passivização. De fato, esse verbo parece não aceitar que seu objeto indireto seja

6 Texto extraído do livro “Laços de Família”, Editora Rocco — Rio de Janeiro, 1998, pág. 30.

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substituído pelo pronome oblíquo lhe, porém, ele aceita a forma passiva (22e) quando

usado como verbo transitivo direto, diferentemente do que aponta Luft (1976).

(22) a. Maria assistiu ao filme.

b. Maria assistiu o filme.

c. *Maria assistiu-lhe.

d. Maria assistiu a ele.

e. O filme foi assistido por Maria.

f. *Ao filme foi assistido por Maria.

Diferentemente do esperado, o verbo assistir, mesmo sendo canonicamente

transitivo indireto, aceita a construção passiva, ao contrário de namorar que, mesmo em

sua forma transitiva direta não ocorre em tal construção.

(23) *Ana foi namorada por João durante 5 anos.

Provavelmente o verbo assistir aceita a construção passiva por estar se tornando

transitivo direto7, ou seja, por estar sofrendo uma alteração na sua regência. No entanto,

apenas essa alteração não é suficiente para explicar sua possibilidade de passivização,

uma vez que há outros verbos transitivos diretos, como namorar, que não ocorrem na

sentença passiva.

Em seu estudo sobre as construções passiva, incoativa e média do português

brasileiro, Ciríaco (2011) afirma que a passiva é uma construção do português brasileiro,

porque apresenta aspectos sintáticos e semânticos que não podem ser atribuídos a

nenhuma outra construção. A autora segue a proposta de Rice (1987 a, b) segundo a qual

o significado da construção passiva está relacionado à alta transitividade conceptual.

7 É sabido na literatura que apenas verbos transitivos diretos realizam a construção passiva.

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Segundo Rice (1987 a, b), quanto mais uma construção passiva se aproxima

conceptualmente do protótipo do evento transitivo, mais aceitável ela é.

Ainda de acordo com Rice (1987 a, b), o evento transitivo prototípico é

unidirecional, ou seja, designa um evento que é direcionado de um participante para

outro. Consequentemente, um participante é identificado como fonte do evento e o outro

como alvo. Por exemplo, limpar designa uma ação que é direcionada do participante

agente para o participante paciente, como em João limpou a escrivaninha. O agente

(João) é, portanto, a fonte da ação de limpar e o paciente (a escrivaninha) é o alvo dessa

ação. O mesmo vale para verbos opcionalmente volitivos, como abrir, onde o sujeito

pode ser uma causa ou uma agente: O vento abriu a porta (sujeito causa)/ João abriu a

porta com uma chave (sujeito agente).

Assim, a noção de direção da eventualidade designada pelo verbo parece ter um

papel na delimitação do significado da construção passiva. Para Ciríaco (2011), ocorre

uma inversão na direção da eventualidade8 na construção passiva, de modo que o

participante identificado como alvo é mapeado na posição de sujeito.

Portanto, segundo a autora, o pólo semântico da construção passiva se

caracteriza pela função de desfocalização do participante responsável por iniciar a

eventualidade designada pelo verbo.

A autora lista os seguintes tipos de eventualidades que participam da construção

passiva: verbos de ação/ causação, como Maria cortou a carne/ a carne foi cortada pela

Maria; verbos de processo, como João adquiriu esse carro/ esse carro foi adquirido por

João; e verbos de estado de experiência que designam uma experiência direcionada de X,

o experienciador, para Y, o objeto da experiência, como em João ama Maria/ Maria foi

amada por João, os alunos respeitaram o professor/ o professor foi respeitado pelos

alunos. Por designarem uma eventualidade direcionada entre seus participantes, esses

últimos verbos também são compatíveis com o significado da construção passiva.

8 Ciríaco (2011) utiliza o termo eventualidade para incluir verbos que designam um estado de experiência

no grupo dos verbos que designam um evento propriamente dito, como uma ação, causação ou processo.

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Observando o verbo assistir, acreditamos que ele faça parte dos verbos de estado

de experiência, no sentido de que assistir algo desencadeia uma experiência mental no

indivíduo, assim como ver, aprender, olhar, entre outros. Essa experiência seria

unidirecionada do experienciador (aquele que assiste) para o objeto da experiência (aquilo

que é assistido). Na construção passiva, a direção dessa experiência seria invertida, de

modo que teríamos aquilo que é assistido como fonte da experiência e quem assisti como

alvo. No entanto, essa relação não deixa de ser unidirecional em cada sentença.

(24) a. Maria assistiu o filme.

(fonte) (alvo)

(direção da eventualidade)

b. O filme foi assistido por Maria.

(fonte) (alvo)

(direção da eventualidade)

Já o verbo namorar também faria parte dos verbos de estado de experiência,

uma vez que se assemelha ao verbo amar (verbo classificado por Ciríaco como estado de

experiência). No entanto, essa experiência seria “bidirecionada” pelo fato de o verbo ser

recíproco, ou seja, se João namora Ana, necessariamente Ana também namora João.

(25) João namora Ana/ com Ana.

(fonte) (alvo)

(alvo) (fonte)

(eventualidade bidirecional)

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No entanto, há verbos recíprocos, como discutir, contracenar9, entre outros, que

aceitam a passiva, como podemos ver a seguir:

(26) a. Ana discutiu o assunto com Pedro.

b. O assunto foi discutido pela Ana e pelo Pedro.

(27) a. Lucas contracenou uma peça com sua noiva.

b. A peça foi contracenada por Lucas e sua noiva.

Nos exemplos acima, temos que apesar de os verbos codificarem eventualidades

bidirecionais, eles participam da construção passiva. Porém, ao contrário de namorar, as

eventualidades descritas em (26a) e (27a) têm como fonte os sujeitos Ana e Lucas e como

alvo os objetos diretos o assunto e uma peça, de modo que esses papéis se invertem na

sentença passiva. A ideia de reciprocidade é expressa pelos sintagmas preposicionados

iniciados pela preposição com (com Pedro e com sua noiva) e não pelo sintagma que

figura na posição de objeto direto. Assim, a unidirecionalidade das sentenças em (26a) e

(27a) se dá entre seus sujeitos e os objetos o assunto e uma peça e não entre os sujeitos e

os demais indivíduos participantes do evento, como ocorre em namorar.

Passemos, portanto, para a análise da variação entre as suas duas variantes

[assistir] e [assistir a/ao] da variável <assistir>.

5.1. A variação de <assistir> entre as duas formas variantes: [assistir] e [assistir a/

ao]

Analisando os dados obtidos através do teste de produção aplicado aos 20

informantes, obtivemos os seguintes resultados para as ocorrências de <assistir>: entre os

jovem-adultos tivemos 8 realizações de [assistir] e apenas 2 de [assistir a/ao]; entre os

adulto-idosos obtivemos os mesmos resultados.

9 Esses verbos são classificados como recíprocos por Godoy (2008).

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Tabela 5: variação de [assistir] e [assistir a/ao]

Através da tabela 5 podemos perceber que as duas ocorrências de [assistir a/ao]

foram realizadas por mulheres (2 jovem-adultas e 2 adulto-idosas). Além disso, é

interessante apontar que as quatro mulheres que produziram as variantes [assistir a/ao]

coincidem com 4 das 5 que produziram a variante [namorar com], ou seja, em cada faixa

etária, a mesma mulher que falou [namorar com] também falou [assistir a/ao]. Talvez isso

ocorra devido ao fato de ser possível elas saberem que a regência padrão do verbo assistir

é aquela com a preposição e, portanto, por analogia, acharem que a regência padrão de

namorar também é aquela que carrega a preposição. A partir daí, resolvemos testar a

significância do gênero para o fenômeno variável em questão:

VARIANTES HOMEM MULHER TOTAL

[assistir] 5 3 8

[assistir a/ao] - 2 2

TOTAL 5 5 10

p- valor fator 1 e 2 0,1138463349 Tabela 6: testando a significância da variável independente gênero na faixa etária jovem/adulto

VARIANTES HOMEM MULHER TOTAL

[assistir] 5 3 8

[assistir a/ao] - 2 2

TOTAL 5 5 10

Tabela 7: testando a significância da variável independente gênero na faixa etária adulto/idoso

INFORMANTES [assistir] [assistir a/ao] TOTAL TOTAL POR

FAIXA

ETÁRIA

JOVEM/ADULTO

(20 a 30 anos)

M

F

5

3

-

2

5

5

10

ADULTO/IDOSO

(50 a 70 anos)

M

F

5

3

-

2

5

5

10

TOTAL 16 4 20 20

p- valor fator 1 e 2 0,1138463349

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As tabelas acima nos mostram que A diferença de gênero não é significativa no

fenômeno de variação em questão, ou seja, o gênero não favorece o uso de nenhuma das

duas variantes.

A partir daí, construímos uma tabela apenas com a variável independente faixa

etária com o intuito de averiguarmos se o fenômeno variável caracteriza uma situação de

mudança em progresso ou variação estável.

VARIANTES JOVEM/ADULTO ADULTO/IDOSO TOTAL

[assistir] 8 8 16

[assistir a/ao] 2 2 4

TOTAL 10 10 20

p- valor fator 1 e 2 1,0000000000 Tabela 8: testando se os dados da variável <assistir> configuram um fenômeno de mudança linguística

De acordo com a tabela 8, podemos perceber que a variação entre [assistir] e

[assistir a/ao] não está passando por um processo de mudança, caracterizando assim um

fenômeno linguístico que está em processo de variação estável, de modo que a nossa

hipótese inicial de que a variante [assistir] estaria suplantando [assistir a/ao] não se

confirma.

6. Considerações finais

Neste trabalho nos propusemos a fazer um estudo da variação de [namorar] e

[namorar com] e [assistir] e [assistir a/ao]. Nossa hipótese inicial era de que ambas

variáveis estariam passando por um processo de mudança, de modo que [namorar com]

estaria suplantando [namorar] e [assistir] estaria sendo mais usado do que [assistir a/ao].

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No entanto, com a realização do teste do q², verificamos que não há indício de mudança

em nenhuma das duas variáveis, de modo que elas se encontram em variação estável.

Além disso, pudemos perceber que, ao contrário do que havíamos pensado, a variação de

[namorar] e [namorar com] e [assistir] e [assistir a/ao] não consiste em um mesmo

fenômeno variável, de modo que o primeiro se caracteriza pela inserção da preposição

com (já que a forma mais antiga é namorar) e o segundo, pela queda da preposição a/ao,

uma vez que a forma mais antiga é assistir a/ao.

Referências

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contemporâneo do Brasil. 2. ed. São Paulo: Ed. da UNESP, 1991.

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Dissertação (Mestrado em Linguística Teórica e Descritiva). Programa de Pós-Graduação

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_________. Os verbos recíprocos no PB e a hipótese da determinação semântico-lexical

sobre a sintaxe. ALFA, 2009.

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Bagno; revisão técnica: Carlos Alberto Faraco. São Paulo: Parábola, 2006.]

www.corpusdoportugues.org/

Recebido Para Publicação em 16 de junho de 2015.

Aprovado Para Publicação em 30 de julho de 2015.