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análise da intertextualidade no poema "é ela! é ela! é ela! é ela!"

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Revista Eletrônica Fundação Educacional São José

9ª Edição ISSN:2178-3098

ANÁLISE DA INTERTEXTUALIDADE NO POEMA "É ELA!

É ELA! É ELA! É ELA!" DE ÁLVARES DE AZEVEDO.

Maria José Rezende Campos

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RESUMO

O presente artigo trabalha o conceito de intertextualidade, dando enfoque aos estudos de

Bakhtin e Julia Kristeva, e o emprega em uma análise do poema É ela! É ela! É ela! É ela! de

Álvares de Azevedo. Essa poesia dialoga com textos de Goethe, Shakespeare, Dante e

Petrarca.

Palavras-chave: Intertextualidade. Álvares de Azevedo. Bakhtin. Poesia.

ABSTRACT

This essay explores the concept of intertextuality, focusing on studies of Bakhtin and Julia

Kristeva, and then it is developed in an analysis of Álvares de Azevedo’s poem É ela! É ela! É

ela! É ela!. This poem establishes a dialogue with texts of Goethe, Shakespeare, Dante and

Petrarch.

Keywords: Intertextuality. Álvares de Azevedo. Bakhtin. Poetry.

1 Mestranda em Letras - Área de Concentração em Literatura Brasileira - Centro de Ensino Superior de

Juiz de Fora - CES/JF.

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(32) 3211-8525 e (32) 9106-1583

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SECÃO: Artigos Originais

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ANÁLISE DA INTERTEXTUALIDADE NO POEMA "É ELA! É ELA! É ELA! É

ELA!" DE ÁLVARES DE AZEVEDO.

1. Introdução

Neste artigo foram feitas considerações sobre a intertextualidade e a análise do poema

"É ela! É ela! É ela! É ela!" do poeta Álvares de Azevedo, publicado postumamente em 1853;

única obra cuja edição o poeta começara a preparar para publicação e para a qual escrevera

prefácios referentes a uma primeira e uma segunda partes.

Pode-se dizer que a Lira se articula em dois níveis: individual, enquanto expressão

dos anseios do poeta e universal, enquanto inter-relação com outros textos; visto que,

enquanto leitor ávido, sua obra é carregada de citações e referências dos “(...) bons escritores

gregos, latinos, ingleses, italianos, alemães e franceses. Especialmente Shakespeare, Tasso,

Byron, Werner, Musset, Victor Hugo e Sand são seus autores prediletos” (ROMERO, 2000,

p. 28).

Álvares de Azevedo, escritor da segunda geração do romantismo brasileiro, que é um

dos maiores representantes do “Mal do Século” e que como os demais poetas desta geração

geralmente descrevem a mulher como pura, intocável. A mulher é endeusada e considerada

heroína.

Porém, neste poema, Álvares de Azevedo desconstrói a mulher idealizada das obras de

Shakespeare, Goethe, Dante e Petrarca, fazendo intertextualidade com Otelo, Os sofrimentos

do jovem Werther, Beatriz e Laura (as duas foram musas inspiradoras de Dante e Petrarca,

respectivamente).

2. Intertextualidade

O que caracteriza a intertextualidade é o diálogo entre dois ou mais textos, ou seja,

quando um texto dialoga com outro, citando-o de modo explícito ou nas entrelinhas.

O conceito de intertextualidade tem sua origem nos formalistas russos Tynianov e

Chklovski, mas é Bakhtin quem normalmente é apresentado como o primeiro teórico a

elaborar o referido conceito.

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Para Bakhtin o processo de leitura não pode ser concebido desvinculado da noção de

intertexto, já que o princípio dialógico permeia a linguagem e confere sentido ao discurso,

elaborado sempre a partir de uma multiplicidade de outros textos.

Segundo Julia Kristeva, um texto é uma réplica de outros textos. A linguagem poética

surge como um diálogo de textos lidos pelo escritor.

Umberto Eco afirma: "descobri o que os escritores souberam (e nos disseram muitas e

muitas vezes): os livros sempre falam sobre outros livros, e toda estória conta uma estória que

já foi contada”. (ECO apud Hutcheon, 1988, p. 166)

Oficialmente é Julia Kristeva que compõe e introduz o termo intertextualidade,

primeiramente em 1966, em sua obra A palavra, o diálogo, o romance, e pela segunda vez,

em 1967, na obra O texto fechado, em que precisa a definição de intertextualidade como

"cruzamento num texto de enunciados tomados de outros textos" (KRISTEVA, 1969, p. 115),

"transposição [...] de enunciados anteriores ou sincrônicos" (KRISTEVA, 1969, p. 133).

É a partir da análise e da difusão da obra de Mikhail Bakhtin que Kristeva produz sua

definição: “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e

transformação de um outro texto”. (KRISTEVA, 1969, p. 145).

De acordo com Philippe Sollers: “Todo texto situa-se na junção de vários textos dos

quais ele é ao mesmo tempo a releitura, a acentuação, a condensação, o deslocamento e a

profundidade". (SOLLERS, 1971, p. 75).

Bakhtin esclarece:

Nosso ponto de vista não vem absolutamente afirmar uma espécie de

passividade do autor, que faria apenas uma montagem dos pontos de vista

dos outros, das verdades dos outros, que renuncia inteiramente ao seu ponto

de vista, à sua verdade. Não se trata absolutamente disso, mas de uma inter-

relação inteiramente nova e particular entre sua verdade e a verdade de

outrem. O autor é profundamente ativo, mas sua ação tem um caráter

dialógico particular [...]. Dostoievski interrompe frequentemente a voz do

outro, mas não a cobre nunca, não a termina nunca a partir de si, isto é de

uma consciência estrangeira (a sua). (BAKHTIN, 2002, p. 509).

Segundo Barthes:

[...] Todo texto é um tecido novo de citações passadas [...]

A intertextualidade não se reduz evidentemente a um problema de fontes ou

de influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja

origem é raramente localizável, de citações inconscientes ou automáticas,

feitas sem aspas.

(BARTHES, 2004, p.275-276)

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Para Riffaterre, o texto torna-se "um conjunto de pressuposições de outros textos", daí

a necessidade de compreendê-lo a partir de seu intertexto, então definido como "a percepção

pelo leitor de relações entre uma obra e outra que a precederam ou a seguiram".

(RIFFATERRE apud Compagnom, 1999, p. 113). Estendida ao conjunto do corpus literário, a

noção de intertextualidade reduz, no entanto, seu campo de ação e se torna, assim, um

instrumento decisivo para análise.

Gérard Genette, em sua obra Palimpsestes (1982) define intertextualidade como: "a

presença efetiva de um texto em outro".

Laurent Jenny, em La stratégie de la forme (1976) define intertexto como o texto

"que fala uma língua cujo vocabulário é a soma dos textos existentes".

Schneider afirma que “um texto é feito de fragmentos originais, reuniões singulares,

referências, acidentes, reminiscências, empréstimos voluntários.” (SCHNEIDER, 1985, p.

12).

A intertextualidade pode apresentar-se sob duas formas opostas: a da paráfrase ou a da

paródia.

Na paródia um autor retoma o texto para, de modo geral, satirizá-lo, tratando-o

criticamente com humor, e na paráfrase um autor reescreve o texto sem subvertê-lo, apenas

atualizando-o, conforme o novo contexto histórico-social.

O conceito de paródia tornou-se mais sofisticado a partir de Tynianov, quando ele o

estudou lado a lado com o conceito de estilização.

Para ele:

A estilização está próxima da paródia. Uma e outra vivem de uma vida

dupla: além da obra há um segundo plano estilizado ou parodiado. Mas na

paródia, os dois planos devem ser necessariamente discordantes, deslocados:

a paródia de uma tragédia será uma comédia (não importa se exagerando o

trágico ou substituindo cada um de seus elementos pelo cômico); a paródia

de uma comédia pode ser uma tragédia. Mas, quando há a estilização, não há

mais discordância, e, sim, ao contrário, concordância dos dois planos: o do

estilizando e do estilizado, que aparece através deste. Finalmente da

estilização à paródia não há mais que um passo; quando a estilização tem

uma motivação cômica ou é fortemente marcada, se converte em paródia.

(TYNIANOV apud SANT'ANNA, 1985, p.13-14)

Segundo Bakhtin:

Com a paródia é diferente. Aqui também, como na estilização, o autor

emprega a fala de um outro; mas, em oposição à estilização, se introduz

naquela outra fala uma intenção que se opõe diretamente à original. A

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segunda voz, depois de se ter alojado na outra fala, entra em antagonismo

com a voz original que a recebeu, forçando-a a servir a fins diretamente

opostos. A fala transforma-se num campo de batalha para interações

contrárias. Assim, a fusão de vozes, que é possível na estilização ou no

relato do narrador, não é possível na paródia; as vozes na paródia não são

apenas distintas e emitidas de uma para outra, mas se colocam, de igual

modo, antagonisticamente. É por esse motivo que a fala do outro na paródia

deve ser marcada com tanta clareza e agudeza. Pela mesma razão, os

projetos do autor devem ser individualizados e mais ricos de conteúdo. É

possível parodiar o estilo de um outro em direções diversas, aí introduzindo

acentos novos, embora só se possa estilizá-lo, de fato, em uma única direção

– a que ele próprio se propusera. (BAKHTIN apud SANT'ANNA 1985,

p.14)

Para entendermos a intenção da paródia, muitas vezes é necessário um pré-

conhecimento da obra original.

A paródia é então denominada intertextualidade quando se utilizam textos alheios e

intratextualidade quando o autor emprega os próprios textos.

Além de textos literários, ela também é encontrada nas artes plásticas, músicas,

propagandas dentre outros.

Podemos concluir que a paródia é um tipo de intertextualidade em que o escritor

transforma os textos assimilados através da ironia. Nos poemas de Milton Rezende que serão

apresentados pode-se ver claramente que ele dialoga com várias obras.

Podemos concluir que a paródia é um tipo de intertextualidade em que o escritor

transforma os textos assimilados através da ironia. No poema que será apresentado de Álvares

de Azevedo pode-se ver claramente que ele utilizou obras clássicas e com humor desconstrói

a mulher idealizada, pura e intocável.

"É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!" é um poema irônico no qual Álvares de Azevedo brinca

com o próprio romantismo, ridicularizando-o.

3. Álvares de Azevedo e a Lira dos Vinte Anos

Álvares de Azevedo, poeta da segunda geração do romantismo foi fortemente

influenciado por Lord Byron, Musset e outros escritores românticos europeus. Sua poesia é

marcada pelo subjetivismo, melancolia e sarcasmo.

Os temas mais comuns são o desejo de amor e a busca pela morte. O amor é idealizado

e causa dor e sofrimento. A morte é uma fuga, pois seu eu-lírico se sente impotente frente ao

mundo e vê na morte a libertação.

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Os poetas dessa fase do romantismo utilizam os temas lúgubres, a morbidez e a paixão

platônica por mulheres puras.

Manoel Antônio Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo em 12 de setembro de

1831 e faleceu no Rio de Janeiro em 25 de abril de 1852. Apesar de sua curta existência é um

dos poetas mais representativos de sua geração e escreveu nos mais diversos gêneros

literários, sendo que seus poemas são considerados a sua obra de maior valor.

Segundo Edgar Cavalheiro:

Faltou-lhe para ser gênio, exclusivamente isso: tempo. Fez vibrar todas as

cordas da lira, do mais ingênuo lirismo ao mais desabusado erotismo. É

zombeteiro e irônico, alegre e triste, vibrante e meigo, sensual e pudico.

Devemos-lhe a introdução do humor na poesia brasileira.

Álvares de Azevedo tinha uma verdadeira obsessão pela leitura e pelo conhecimento

literário. Segundo Luciana Stegagno-Picchio, em História da literatura brasileira:

Paulista de nascimento e de aculturação acadêmica, iria concluir aos vinte e

um anos incompletos, ceifado por um tumor, uma parábola literária, nascida

sob o signo de Byron e em geral dos românticos ingleses, mas nutrida de

cultura francesa (Musset, Nerval, Vigny, Gautier, mas também Lamartine e

Victor Hugo), alemã (Hoffmann e Goethe) e quiçá também italiana

(Leopardi). (STEGAGNO-PICCHIO, p. 98).

Segundo Sílvio Romero:

A grande qualidade de Azevedo é o fato de que arranca-nos de vez da

influência exclusiva portuguesa, por ser leitor voraz dos bons escritores

gregos, latinos, ingleses, italianos, alemães e franceses, especialmente

Shakespeare, Tasso, Byron, Werner, Musset, Victor Hugo e Sand, seus

autores prediletos. (ROMERO, 1980, p. 949).

Álvares de Azevedo, um jovem com uma breve passagem pela vida, tornou-se

imortalizado pelas letras. A fonte de tudo está na leitura dos grandes nomes do romantismo na

época, a maioria em suas línguas de origem. Esse grande conhecimento sobre a literatura

mundial influenciou direta e indiretamente suas obras.

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A Lira dos vinte anos compõe-se do que há de melhor na produção de Álvares de

Azevedo.

Estruturalmente a Lira é dividida em três partes; mas do ponto de vista temático, em

apenas duas, pois a primeira e terceira partes têm temas assemelhados entre si: a morte, a

família, os temas da adolescência, o sonho, a religiosidade, a forma feminina como obsessão;

a segunda parte, no entanto, traz o irônico, o "satânico", a mulher, ainda que em sonho

aproximada do erótico, carnal.

Prefácio da segunda parte da Lira:

Cuidado, leitor, ao voltar esta página! Aqui dissipa-se o mundo visionário e

platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha

Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei e vivem Panúrgio, sir John

Falstaff, Bardolph, Fígaro e Sganarello de D. João Tenório: a pátria dos

sonhos de Cervantes e Shakespeare. Quase que depois de Ariel esbarramos

em Caliban.

A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binômia: duas

almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de

poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces. (...)

(...) O poeta acorda na terra. Demais o poeta é homem (...) isto é, antes e

depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. (...)

(...) Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas

páginas, destinadas a não serem lidas. Deus me perdoe! Assim é tudo! ... até

prefácios! (AZEVEDO, 2007, p. 66-67).

Pelos trechos do prefácio, acima citados, Álvares de Azevedo ressalta que na segunda

parte da Lira, estão contidos poemas irônicos, as paródias, e um suposto "satanismo"

encontrado em Noite na Taverna.

A compreensão do significado desse humor em Álvares de Azevedo não é tarefa

difícil, pois Azevedo foi talvez o único poeta romântico brasileiro a deixar registro de uma

teoria sobre a própria criação poética.

4. Análise da intertextualidade no poema "É ela! É ela! É ela! É ela!"

Ao utilizar a paródia, Álvares de Azevedo comprova a modernidade de seu projeto

criador, metapoético, altamente imbuído de autoconsciência reflexiva.

Analisaremos o poema "É ela! É ela! É ela! É ela!" em que Álvares de Azevedo

parodia Shakespeare em Otelo, o Mouro de Veneza; Goethe em Os Sofrimentos do Jovem

Werther; Laura a musa inspiradora de Petrarca e Beatriz a musa inspiradora de Dante, que

reelabora um dos mais típicos temas da lírica convencional do autor: o tema amoroso.

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Os recursos utilizados com mais recorrência na poética de Álvares de Azevedo, para

deflagrar o discurso parodístico são a ironia e o humor.

A intertextualidade no citado poema de Álvares de Azevedo feita com Otelo, O

Mouro de Veneza de William Shakespeare, escrito em 1603 tendo como personagens

principais: Otelo (um general mouro que serve o reino de Veneza); sua esposa Desdêmona;

Cássio (tenente) e Lago (sub-oficial). Os temas são amor, ciúme e traição. (...) "Otelo,

desesperado ao saber que matara sua amada esposa injustamente, apunhalou-se, caindo sobre

o corpo de sua mulher e morreu beijando a quem tanto amara (...)"

Álvares de Azevedo faz também intertextualidade com Os sofrimentos do jovem

Werther – romance de Johann Wolfgang Von Goethe de 1774.

Os personagens são: Werther; Guilherme; Alberto e Carlota (amada de Werther e

noiva de Alberto).

Beatriz, era a musa inspiradora de Dante Alighieri.

Dizem que Dante viu Beatriz uma única vez, e nunca falou com ela, nutrindo uma

paixão que iria inspirar seus poemas e deixado sua marca na cultura italiana, com a obra Vida

Nova.

Álvares de Azevedo faz também intertextualidade com a amada Laura de Petrarca.

Petrarca já figuraria como um nome basilar da poesia universal, mas há um detalhe na

biografia do poeta que definiu sua poesia: a paixão por Laura de Noves, tema central de seu

Canzioniere (Cancioneiro), obra-prima composta de 317 sonetos e 29 canções. Laura, dama

casada que o poeta conheceu em 1327, passou para a história da literatura como a primeira

musa – que seria sucedida pela Beatriz de Dante, pela Dark Lady de Shakespeare, pela

Marília de Dirceu, pela Matilde de Neruda e tantas outras. Ela reuniu, no imaginário do poeta,

todos os seus amores de antes e depois.

O seguinte soneto de Petrarca, o "Soneto XLIX" demonstra a dor do poeta diante da

morte de Laura e da constatação de que teria de viver sem ela.

Não poderia resistir à dor de sobreviver a Laura.

A aura que o verde louro e a trança fina

Move, suavemente, suspirando,

Prende as almas ao seu semblante brando,

À sua graça humilde e peregrina.

Rosa entre espinhos, clara e purpurina,

Onde houve igual a ti? e como? e quando?

Glória do Tempo! Jove venerando

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Morrer primeiro seja a minha sina.

Que eu não assista o grande mal profundo

De perder o seu sol o obscuro mundo

E os olhos meus a sua única chama.

Sempre exista à minha alma que sempre a ama!

Sempre exista ao ouvido meu que apenas

Sabe ouvir suas falas tão serenas.

Transcreveremos o poema "É ela! É ela! É ela! É ela!" de Álvares de Azevedo para

continuarmos a análise proposta:

É ela! é ela! — murmurei tremendo,

e o eco ao longe murmurou — é ela!

Eu a vi... minha fada aérea e pura —

a minha lavadeira na janela.

Dessas águas furtadas onde eu moro

eu a vejo estendendo no telhado

os vestidos de chita, as saias brancas;

eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido,

nas telhas que estalavam nos meus passos,

ir espiar seu venturoso sono,

vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!...

Tinha na mão o ferro do engomado...

Como roncava maviosa e pura!...

Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso...

Palpitava-lhe o seio adormecido...

Fui beijá-la... roubei do seio dela

um bilhete que estava ali metido...

Oh! decerto... (pensei) é doce página

onde a alma derramou gentis amores;

são versos dela... que amanhã decerto

ela me enviará cheios de flores...

Tremi de febre! Venturosa folha!

Quem pousasse contigo neste seio!

Como Otelo beijando a sua esposa,

eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo;

mas cantou nesse instante uma coruja...

Abri cioso a página secreta...

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Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota

Dando pão com manteiga às criancinhas,

Se achou-a assim tão bela... eu mais te adoro

Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela, meu amor, minh'alma,

A Laura, a Beatriz que o céu revela...

É ela! é ela! — murmurei tremendo,

E o eco ao longe suspirou — é ela!

Neste poema, Álvares de Azevedo aborda o tema da paixão impossível, da mulher

inalcançável, do amor sem limites. Todavia, o autor zomba dos próprios ditames românticos

byronistas dos quais ele lançou mão para escrever outros poemas. Assim, encontra-se, nos

versos, um sujeito lírico, cuja musa é uma pobre trabalhadora, que veste vestidos de chita, um

pano barato. A mulher retratada no poema, diferentemente das outras que aparecem noutros

versos do autor é uma lavadeira que ronca ao dormir e não tem a graciosidade típica das

musas românticas. Ela não se parece com as donzelas frágeis, com rostos angelicais dos

poemas românticos.

O eu-lírico segue ironizando a paixão platônica e sua musa, uma vez que rouba dos

seios dela um bilhete que descobrirá que se trata de uma lista de roupas sujas.

As estrofes a seguir demonstram que há uma expectativa de que o papel seria um

poema, porém, há somente uma lista de roupas sujas:

Oh! decerto... (pensei) é doce página

onde a alma derramou gentis amores;

são versos dela... que amanhã decerto

ela me enviará cheios de flores...

Tremi de febre! Venturosa folha!

Quem pousasse contigo neste seio!

Como Otelo beijando a sua esposa,

eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo;

mas cantou nesse instante uma coruja...

Abri cioso a página secreta...

Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Na nona estrofe, o poeta lança mão da intertextualidade, trazendo uma referência à

obra de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther. Ele compara o ato de Carlota (paixão de

Werther, e uma das razões de seu suicídio) a dar pão às criancinhas com a sua amada a lavar

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roupa, confronta uma imagem angelical de uma musa típica do romantismo com uma cena

prosaica e incompatível com uma mulher idealizada, a imagem de uma mulher lavando

roupas.

Não pude resistir à tentação; fui obrigado a procurá-la. Aqui estou de volta,

Guilherme; vou tomar minha ceia, e te escrever. Que prazer é para mim o

vê-la entre as amoráveis crianças que são os seus irmãos e irmãs. (Goethe, p.

55).

Álvares de Azevedo parodia Laura e Beatriz, musas inspiradoras de Petrarca e Dante,

respectivamente. As mulheres endeusadas, delicadas e puras, que inspiraram grandes poesias

do cânone mundial são comparadas a uma humilde lavadeira, satirizando a idealização

romântica.

Beatriz além de ser a musa inspiradora de Dante Alighieri, é ela, juntamente com

Virgílio, que o guia em sua passagem pelo inferno e pelo purgatório, conduzindo-o ao paraíso.

(...) Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a

tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois,

o guiará ao Paraíso. (nota do tradutor José Pedro Xavier Pinheiro, A Divina

Comédia, 2003, p. 17).

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Conclusão

O poema "É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!" de Álvares de Azevedo, satiriza a idealização

romântica do amor puro que vence todas as barreiras, até mesmo as barreiras do desnível

social e cultural, o que demonstra que Álvares de Azevedo não fez poemas só de melancolia e

mal de amor, apresentando uma vertente bem humorada, autocrítica e satírica. É um poema

irônico em que Azevedo brinca com o próprio romantismo, ridicularizando-o.

No poema a musa cantada pelo eu-lírico é uma lavadeira desprovida de qualquer

delicadeza ou poeticidade, assim contrariando todas as expectativas de um poema romântico

e, por conseguinte os clichês românticos de representação da mulher pura, ingênua e delicada.

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KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.

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