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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO EBER BORGES DA COSTA TAPEPORÃ – CAMINHO BOM: ANÁLISE DA PRÁTICA MISSIONÁRIA DE SCILLA FRANCO ENTRE OS ÍNDIOS KAIOWÁ E TERENA NO MATO GROSSO DO SUL - 1972 a 1979 SÃO BERNARDO DO CAMPO 2011

ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

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ANALISE DA PRATICA MISSIONÁRIA SEGUNDO O CONTEXTO BÍBLICO CRISTÃO

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Page 1: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

EBER BORGES DA COSTA

TAPEPORÃ – CAMINHO BOM: ANÁLISE DA

PRÁTICA MISSIONÁRIA DE SCILLA FRANCO ENTRE

OS ÍNDIOS KAIOWÁ E TERENA NO MATO GROSSO DO

SUL - 1972 a 1979

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2011

Page 2: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

EBER BORGES DA COSTA

TAPEPORÃ – CAMINHO BOM: ANÁLISE DA

PRÁTICA MISSIONÁRIA DE SCILLA FRANCO ENTRE

OS ÍNDIOS KAIOWÁ E TERENA NO MATO GROSSO DO

SUL - 1972 a 1979

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade de Humanidades e Direito, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

Orientação: Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva.

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2011

Page 3: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

A dissertação de mestrado sob o título “Tapeporã – Caminho bom: análise

da prática missionária de Scilla Franco entre os índios Kaiowá e Terena

no Mato Grosso do Sul – 1972 a 1979”, elaborada por Eber Borges da

Costa foi apresentada e aprovada em 08 de abril de 2011, perante banca

examinadora composta por Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva

(Presidente/UMESP), Profa. Dra. Blanches de Paula (Titular/UMESP) e Prof.

Dr. Clóvis Pinto de Castro (Titular/UNIMEP).

_____________________________________________

Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

______________________________________________

Prof. Dr. Jung Mo Sung

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura

Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Psico-sociais e Pedagógicas

Page 4: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

Dedico este trabalho a:

Juliana, Ana Luíza e João Pedro, cujo amor me dá segurança para ser o que sou e cria oportunidades para meu crescimento.

Page 5: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva, pela acolhida,

paciência e precisão na orientação deste trabalho desde o seu início.

Aos meus pais, Domingos e Isaura, por tudo que me ensinaram com as

palavras e com a vida; entre tantas coisas, a tolerância e o respeito aos outros.

À Bete, Helmut, Lucas e Isabela, pelo carinho e hospitalidade. Ao Helmut,

também, pela leitura do texto e suas valiosas observações.

À Cleide, pelo importante auxílio na organização e digitalização de

documentos desta pesquisa.

Ao Rev. Paulo Silva Costa e à Revda. Maria Imaculada Conceição Costa

que me acolheram em sua casa e abriram as portas da Missão Tapeporã para

que eu pudesse realizar minha pesquisa.

À Concília Januário Franco que me recebeu gentilmente em sua casa e

compartilhou experiências vividas ao lado de Scilla Franco.

À Igreja Metodista na 5ª Região Eclesiástica que criou as oportunidades

para minha formação e me permitiu realizar esta pesquisa

Aos meus amigos Márcio Divino e Paulo Nogueira, pelo incentivo para

iniciar e continuar no programa de pós-graduação.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq), pela bolsa de estudos que me permitiu realizar esta pesquisa.

Aos professores, professoras, funcionários, funcionárias e colegas do

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP pela rica

convivência possibilitada pela diversidade e abertura e disposição para o

diálogo.

Aos membros da banca de avaliação, Profa. Dra. Blanches de Paula e

Prof. Dr. Clóvis Pinto de Castro, pelo cuidado com que leram e avaliaram este

trabalho. Suas orientações e correções muito contribuíram para o

aprimoramento desta pesquisa.

Page 6: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

COSTA, Eber Borges da. Tapeporã – Caminho Bom: análise da prática

missionária de Scilla Franco entre os índios Kaiowá e Terena no Mato Grosso

do Sul – 1972 a 1979. Dissertação (Mestrado). São Bernardo do Campo:

Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade

Metodista de São Paulo, 2011. Orientação de Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva.

RESUMO

A presente dissertação analisa a prática missionária do pastor metodista Scilla

Franco desenvolvida entre os índios Kaiowá e Terena no MS, nos anos de

1972 e 1979. Apresenta os principais traços da cultura e religião desses povos;

os efeitos negativos da colonização européia e de outros movimentos de

exploração econômica das áreas onde viviam e o lugar que religião cristã

ocupou neste processo através de missionários católicos e protestantes,

destacando a atuação dos metodistas no Mato Grosso do Sul. Num segundo

momento, descreve a trajetória pessoal e ministerial de Scilla Franco

analisando a criação da Missão Tapeporã, a formação do GTME e a natureza

do trabalho que desenvolveu, a partir de uma pastoral de convivência. Por fim,

a partir da análise do desenvolvimento do trabalho de Scilla Franco, apresenta

temas importantes para uma práxis missionária na atualidade e que podem ser

vistos na sua ação, como a contextualização e a convivência numa perspectiva

ecumênica.

PALAVRAS-CHAVE

Cultura indígena – Missão – Pastoral da Convivência – Contextualização

Ecumenismo – Metodismo

Page 7: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

COSTA, Eber Borges da. Tapeporã – Good Way: analysis of the missionary

practice of Scilla Franco between Kaiowá and Terena Indians in Mato Grosso

do Sul - 1972 to 1979. Dissertation. São Bernardo do Campo: Postgraduate

Programme in Religion Sciences of the Methodist University of São Paulo,

2011.Oriented by: Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva.

ABSTRACT

This dissertation analyses the missionary practice of the Methodist minister,

Scilla Franco, developed between the Terena and Kaiowá Indians in Mato

Grosso do Sul, from 1972 to 1979. The main features of culture and religion of

these peoples, the negative effects of European colonization and economic

exploitation of other movements from the areas where they lived and the place

that the Christian religion occupied in this process through Catholic and

Protestant missionaries, showing the work of the Methodists are here

presented. Secondly, it describes the personal and ministerial trajectory of Scilla

Franco, analyzing the creation of the Tapeporã Mission, the formation of GTME

and the nature of the work developed from a pastoral living. Finally, from the

analysis of the development of Scilla Franco's work are presented important

issues for a mission in practice nowadays and can be seen in his action, in

context and coexistence in an ecumenical perspective.

KEY WORDS

Indian Culture - Mission - Pastoral Living – Contextualization – Ecumenism –

Methodism

Page 8: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

SUMÁRIO

Introdução____________________________________________________13

Capítulo I – Conquista, catequese e perda da terra: os índios Kaiowá e

Terena na região de Dourados e o início da presença metodista entre

eles__________________________________________________________17

1. Índios no Brasil ______________________________________________17

2. Os kaiowá e Terena no Mato Grosso do Sul ________________________24

2.1. Os Índios Kaiowá _______________________________________24

2.2. Os Índios Terena _______________________________________28

3. A região de Dourados _________________________________________31

3.1. A Guerra do Paraguai (1864-1870) _________________________32

3.2. A Companhia Matte Laranjeira _____________________________33

3.3. O Marechal Rondon e a Era Vargas ________________________35

4. A Reserva Indígena de Dourados ________________________________38

5. A Igreja Metodista e seu envolvimento com os índios _________________42

5.1. No início do metodismo __________________________________42

5.2. No Brasil______________________________________________44

5.3. A participação metodista na Missão Caiuá segundo o

Expositor Cristão __ _____________________________________48

Capítulo II - Sensibilidade, compaixão e doação: a vida e o ministério de

Scilla Franco entre os índios Terena e Kaiowá ______________________54

1. Dados biográficos ____________________________________________58

Page 9: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

9

1.1. Família e formação ______________________________________58

1.2. Vocação Pastoral _______________________________________60

1.3. Envolvimento com os índios _______________________________63

2. O Plano Piloto e a Missão Tapeporã ______________________________65

2.1. Plano Piloto de atendimento a colonos ______________________65

2.2. Missão Tapeporã _______________________________________68

2.3. Histórico da organização da Missão Tapeporã ________________69

2.4. Pós – tapeporã _________________________________________72

2.5. Episcopado ____________________________________________74

3. O desafio e a necessidade de unidade: a formação do GTME __________76

4. Pastoral da convivência _______________________________________79

5. Os Escritos de Scilla Franco ____________________________________83

Capítulo III – Convivência, contextualização e colaboração ecumênica: a prática missionária de Scilla Franco e os desafios da Missão na atualidade ____________________________________________________86

1. A prática missionária de Scilla Franco e como ele vê as relações entre

religião e cultura ________________________________________________87

1.1. A relação entre religião e cultura ___________________________87

1.2. A Relação entre Fé Cristã e Cultura Ocidental ________________89

1.3. Religião e cultura nos textos de Scilla Franco _________________94

2. Proximidade, contextualização e compaixão ________________________99

2.1. Proximidade e sensibilidade ______________________________99

2.2. A necessária contextualização ____________________________101

3. Missão e ecumenismo ________________________________________105

3.1. O Ecumenismo como uma exigência da Missão ______________105

3.2. Missio Dei, compaixão e vivência ecumênica ________________109

Page 10: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

10

Considerações finais __________________________________________112

Bibliografia __________________________________________________119

ANEXOS

1- Parecer do chefe do Posto Indígena de Dourados, Vandelino Bravim,

sobre a Roça Comunitária__________________________________127

2- Autorização do Delegado Regional do 9º DR, Joel de Oliveira, para

implantação do Projeto Roça Comunitária______________________128

3- Relatório de Scilla Franco enviado ao Delegado Regional da FUNAI_129

4- Relatório de Scilla Franco enviado ao Diretor da ASPLAN _________132

5- Missão Metodista Tapeporã_________________________________140

6- Relação dos textos publicados por Scilla Franco ________________160

7- Carta ao presidente da FUNAI, assinada por Scilla Franco e Dom

Todardo Leitz ___________________________________________162

Page 11: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

LISTA DE MAPAS

Mapa 1- Território Guarani em Mato Grosso do Sul_____________________26

Mapa 2- Áreas indígenas em Mato Grosso do Sul______________________26

Mapa 3- O Estado do MS com a localização de Dourados _______________31

Mapa 4- Reserva Indígena e a cidade de Dourados ____________________39

Page 12: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

SIGLAS

1. ASPLAN – Assessoria de Planejamento

2. CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação

3. FUNAI – Fundação Nacional do Índio

4. FUNASA – Fundação Nacional de Saúde

5. GTI – Grupo de Trabalho Indigenista

6. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

7. GTME – Grupo de Trabalho Missionário Indigenista

8. CIMI – Conselho Missionário Indigenista

9. COMIN – Conselho de Missões entre os Índios

10. SPI – Serviço de Proteção ao Índio

Page 13: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem por objetivo analisar a ação missionária desenvolvida

por Scilla Franco entre os índios Kaiowá e Terena no Mato Grosso do Sul entre

os anos de 1972 e o início de 1979.

Pastor metodista nomeado pela primeira vez em 1963, Scilla Franco

(1930-1989) assumiu o trabalho missionário entre os índios quando pastoreava

a Igreja Metodista em Dourados – MS1. Entre os anos de 1972 a 1979,

desenvolveu uma pastoral de convivência entre os índios e alcançou

reconhecimento nacional. Por razões de saúde, teve que deixar o trabalho com

os índios, sendo eleito bispo na Igreja Metodista, ministério que exerceu por

menos de dois anos, vindo a falecer. Por causa de seu trabalho como pastor,

missionário e bispo, é reconhecido pela Igreja Metodista como um de seus

mais importantes expoentes e um referencial para a missão indigenista.

Os participantes da 41ª Semana Wesleyana2, realizada em maio de 1992

na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, cujo tema foi: “A Igreja

Metodista diante dos 500 anos – Repensando a Evangelização Junto aos

Povos Indígenas, remeteram uma carta aberta “a todo o povo metodista”, como

documento conclusivo do encontro. Nesta carta, afirmam: “A Igreja Metodista

tem no saudoso Bispo Scilla Franco um exemplo para a sua vocação

missionária entre os povos indígenas”.3

O período abordado nessa pesquisa, entre 1972 e 1979, refere-se aos

anos em que Scilla Franco desenvolveu seu ministério em contato direto com

os índios. Os textos escritos por Scilla Franco, embora, na maioria das vezes,

tenham sido publicados depois desta época, dizem respeito a esse período e

são resultado de sua experiência missionária.

1Fundada em 12 de agosto de 1955, a Igreja Metodista em Dourados é uma das pioneiras do metodismo no Mato Grosso do Sul. 2 Realizada anualmente no mês de maio, data que lembra a experiência religiosa de John Wesley, conhecida como o “coração aquecido”, a Semana Wesleyana é promovida pela Faculdade de Teologia da Igreja Metodista e apresenta temas da atualidade para reflexão à luz da tradição wesleyana. 3 KEMPER, Thomas & SILVA, Jaider Batista da (org.) Repensando a Evangelização junto aos povos indígenas. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1994, p. 159.

Page 14: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

14

O objetivo geral desta pesquisa é descrever a natureza do trabalho

realizado por Scilla Franco, destacando quais os elementos que o tornam

referencial para a práxis missionária, na visão da Igreja Metodista.

Os objetivos específicos são, primeiramente, entender o contexto que

envolve os índios das etnias Kaiowá e Terena que habitam a reserva indígena

de Dourados e que foram alvo do trabalho missionário de Scilla Franco: sua

história, sua cultura e as conseqüências do contato com os brancos cristãos –

os católicos, primeiramente, e, depois, os protestantes; particularmente, os

metodistas. No primeiro capítulo, portanto, busca-se contextualizar a ação de

Scilla Franco descrevendo e entendendo as circunstâncias que envolviam os

índios aos quais se dirige e a tradição religiosa que o inspira e o mantém no

trabalho missionário.

Em segundo lugar, busca compreender como se deu o contato entre

Scilla Franco e os índios Terena e Kaiowá, o desenvolvimento de seu trabalho,

as repercussões e os desdobramentos para a Igreja Metodista, destacando-se

a descoberta da “pastoral da convivência”, por parte de Scilla Franco. Procura-

se descrever quem foi Scilla Franco e as razões e motivações que o levaram a

envolver-se com a missão indígena, destacando como a aproximação, convívio

e a identificação com a cultura, produzidos por uma sensibilidade solidária,

foram marcas de sua ação entre os nativos. Pretende, também, apresentar os

principais temas tratados nos textos que escreveu em defesa dos índios e

dirigidos ao grupo religioso que ele representava, a Igreja Metodista.

Em terceiro lugar, pretende-se apresentar, a partir dos capítulos

anteriores, elementos que podem ajudar a construir uma práxis missionária

relevante para a atualidade. Procura mostrar como a ênfase de Scilla Franco

na convivência leva a considerar os temas da relação entre religião e cultura, a

contextualização e o ecumenismo. Discute as relações entre cultura e religião

no Ocidente, apontando para uma necessária práxis missionária

contextualizada, motivada pela compaixão e numa perspectiva ecumênica

como um caminho para uma ação missionária cristã relevante no contexto

brasileiro atual.

Page 15: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

15

No desenvolvimento desta pesquisa, utilizou-se o método histórico-crítico

que, conforme definido por Eva Maria Lakatos e Maria de Andrade Marconi4,

investiga acontecimentos, processos e instituições do passado, a maneira

como são influenciados pelo contexto de cada época e suas influências na

sociedade de hoje. As fontes utilizadas para esta pesquisa são depoimentos de

familiares e contemporâneos de Scilla Franco, textos que ele escreveu e

publicou em diversos periódicos da Igreja Metodista e de agências ecumênicas,

documentos encontrados na Missão Tapeporã, além de pesquisa bibliográfica

sobre a questão dos índios no Brasil e, em particular, no Mato Grosso do Sul e

a respeito de temas atuais da Missiologia.

Além do trabalho de pesquisa nestas fontes, foi realizada uma visita à

Missão Tapeporã e às aldeias que estão na Reserva Indígena de Dourados.

Nessa visita, houve a oportunidade de um contato direto com os índios e uma

melhor compreensão dos problemas que ainda enfrentam. Destaca-se as

figuras de Paulo Silva Costa e Maria Imaculada Conceição Costa, atuais

coordenadores da Missão Tapeporã e sua importante contribuição na coleta de

dados para a pesquisa. Eles disponibilizaram importantes documentos e

informações a respeito de Scilla Franco e da formação da Missão.

Dentre estas fontes, destacam-se os textos de Scilla Franco publicados

no Expositor Cristão5, órgão oficial da Igreja Metodista no Brasil. Naturalmente,

os textos nele publicados representam o pensamento oficial da Igreja e os

artigos assinados por pastores, pastoras, leigos e leigas passam por crivo

institucional. No entanto, vale observar que nos escritos de Scilla Franco

aparecem duras críticas à estrutura da Igreja Metodista e à sua liderança. Não

parece haver, no período estudado, controle ou algum tipo de censura por

parte da Igreja em relação a esses artigos. A partir do Expositor Cristão,

também, se recupera a história da participação metodista na Missão

Evangélica Caiuá, em Mato Grosso do Sul nos anos de 1928 a 1946.

4 LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Maria de Andrade. Metodologia científica. São Paulo: Atlas, 1983, p.79. 5 Fundado em 1º de janeiro de 1886, com o nome “O Methodista Cathólico”, era publicação quinzenal. Durante um período teve circulação semanal e, atualmente, mensal. O nome foi mudado para “O Expositor Christão” e, depois, “Expositor Cristão”. Publica, além das notícias referentes às igrejas locais e documentos oficiais, textos de pastores(as) e bispos(as).

Page 16: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

16

A prática missionária de Scilla Franco representou uma nova forma de

“evangelizar” os índios em oposição ao proselitismo, mais comum na prática

missionária protestante. Scilla Franco, no desenvolvimento de sua prática

missionária, foi capaz de perceber a riqueza da cultura indígena e a dignidade

dessas pessoas e, a partir dessa experiência, faz uma crítica intra-religiosa do

grupo que representa. A maneira como realizou seu trabalho aponta para

novas possibilidades de práxis pastoral e missionária com base no diálogo

religioso, no respeito às diferentes culturas e na solidariedade com os fracos.

Nesta pesquisa, pretende-se abordar essas questões a partir de uma

pessoa que é um referencial importante, pela projeção que conseguiu, na

história recente da Igreja metodista brasileira. Seu testemunho ainda

permanece e, ao aproximar-se dele com os referenciais metodológicos e

conceituais construídos nos últimos anos, somos desafiados a assumir uma

práxis missionária comprometida com a promoção humana e a vivência

ecumênica.

O ministério de Scilla Franco, portanto, tanto entre os índios quanto no

episcopado da Igreja Metodista representa um marco importante na história

recente do metodismo brasileiro. Apesar disso, nenhuma pesquisa, em nível

acadêmico, foi realizada sobre sua vida e ministério. Esta pesquisa pretende

preencher parte dessa lacuna.

Page 17: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

CAPÍTULO I

CONQUISTA, CATEQUESE E PERDA DA TERRA: OS

ÍNDIOS KAIOWÁ6 E TERENA NA REGIÃO DE

DOURADOS E O INÍCIO DA PRESENÇA METODISTA

ENTRE ELES

Neste capítulo, pretende-se descrever os principais traços culturais e

religiosos dos índios Kaiowá (da família Guarani) e Terena que habitam a

reserva indígena de Dourados no Mato Grosso do Sul. Foi a eles que se

direcionou Scilla Franco em sua prática missionária. Para situar melhor as

complexas questões que envolviam estes grupos indígenas na década de1970,

procura-se, neste capítulo, mostrar como aconteceu a ocupação do território

indígena no Mato Grosso do Sul e os principais acontecimentos que

determinaram a configuração da população, economia e as relações sociais na

região. Assim, analisa-se, principalmente, a questão indígena na região de

Dourados. Não é, portanto, objetivo desse trabalho analisar a questão indígena

no Brasil com toda a complexidade que a envolve. Entretanto, para melhor

compreensão desse recorte histórico, cultural e geográfico torna-se necessária

uma introdução para localizar este grupo específico e numa época própria

dentro de um quadro maior.

1. Índios no Brasil

A questão dos índios no Brasil é uma questão complexa e que, em cada

parte do país, de dimensões continentais, adquire contornos próprios. Há

grande diversidade de etnias e diferentes histórias, embora seja comum a

6 A grafia do nome “Kaiowá” aparece de variadas formas nos diferentes textos – Kaiowá, Caiuá, Kayová Cayua, Caygua, Caaygua, Cayagua, Cagoa, Cayoa, Caygoa, Cayowa e outros. Neste trabalho, optou-se por “Kaiowá” por ser a forma utilizada por Scilla Franco e pelos documentos da Missão Tapeporã.

Page 18: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

18

todos os povos o fato do avanço da ocupação pelos brancos representar uma

ameaça.

Eduardo Bueno descreve as diferentes e ambíguas impressões tidas

pelos europeus no contato inicial com os índios. Citando, livremente, frases

repetidas na época da conquista e colonização e que mostram o que estava no

senso comum, revela a dificuldade em se definir quem eram os índios e a

diversidade que os caracterizava:

Cristóvão Colombo, achando que chegara ao Oriente, decidira

chamá-los de índios – mas índios os portugueses sabiam que não

eram. O que seriam então esses “negros da terra”? Bons selvagens,

como sugeriu Pero Vaz de Caminha (e os filósofos Rousseau,

Montaigne e Diderot ecoaram), ou antropófagos bestiais, como

insinuaram outros cronistas? Defini-los de que forma, se alguns eram

brutais e intratáveis, como os Aimoré – que comiam carne humana

“por mantimento e não por vingança ou pela antiguidade de seus

ódios” – e outros tão mansos e pacíficos como os Carijó, “o melhor

gentio da costa?”7

Os nativos pertenciam a uma grande quantidade de tribos que podem ser

divididas de acordo com o tronco lingüístico a que pertenciam: tupi-guaranis

(região do litoral), macro-jê ou tapuias (região do Planalto Central), aruaques

(Amazônia) e caraíbas (Amazônia). A denominação “índio” foi dada pelos

navegadores portugueses que buscavam um caminho mais curto para as

Índias Ocidentais. O nome dado aos habitantes que aqui já estavam surge,

portanto, da impressão que os navegadores tiveram de terem chegado às

Índias. Mesmo depois de perceberem tratar-se de “novas terras”, continuaram

a chamá-los genericamente de “índios”, ignorando as diferenças lingüístico-

culturais.8

Segundo Bueno,

Jamais se saberá com certeza, mas quando os portugueses

chegaram à Bahia os índios brasileiros somavam mais de dois

7 BUENO, Eduardo. Brasil: uma história – Cinco séculos de um país em construção. São Paulo: Leya, 2010, p. 18. 8 Informações extraídas de: http://www.funai.gov.br/indios/conteudo.htm, acesso em: 15 de maio de 2010.

Page 19: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

19

milhões – quase três, segundo alguns autores. Mas, no alvorecer do

Terceiro Milênio da Era Cristã, não passam de 325.652 – menos do

que dois estádios do Maracanã lotados. Foram dizimados por gripes,

sarampo, varíola; escravizados aos milhares e exterminados pelo

avanço da civilização e pelas guerras intertribais, em geral

estimuladas pelos colonizadores europeus. Ainda assim, os povos

remanescentes constituem 215 nações e falam 170 línguas

diferentes.9

Dados da FUNAI10 apontam que atualmente vivem cerca de 460 mil

índios no Brasil, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que perfazem

cerca de 0,25% da população brasileira. Esses números se referem aos

indígenas que vivem em aldeias; estima-se que há entre 100 e 190 mil vivendo

fora das áreas indígenas, inclusive nas cidades. Há, ainda, 63 referências de

índios ainda não-contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o

reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista, a

FUNAI.11

No contato com os europeus, dezenas de milhares de pessoas morreram

por causa de doenças trazidas por eles. Doenças hoje facilmente tratáveis,

como gripe, sarampo e coqueluche, e outras mais graves, como tuberculose e

varíola, vitimaram sociedades indígenas inteiras, por não terem os índios

imunidade natural a estes males. Povos que habitavam a costa leste, na

maioria falantes de línguas do Tronco Tupi, foram dizimados, dominados ou

refugiaram-se nas terras interioranas para evitar o contato.12

A história do contato dos índios brasileiros com os colonizadores foi

marcada, também, por forte violência física. Os nativos foram perseguidos,

escravizados e mortos, quando ofereciam resistência. Vistos como empecilhos

à expansão da civilização e progresso da sociedade, foram alvo de tentativas

de integração ao sistema econômico, servindo como mão-de-obra barata.

9 BUENO – 2010, p. 27. 10 FUNAI – Fundação Nacional do Índio: órgão oficial do Governo brasileiro, ligado ao Ministério da Justiça 11 Disponível no site: www.funai.gov.br. Acesso em: 15 de maio de 2010. 12 Ibidem.

Page 20: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

20

Nesse processo de colonização e avanço da “sociedade civilizada” povos

inteiros desapareceram e muitos outros foram dizimados.

Os índios que vivem em aldeias ocupam áreas demarcadas pelo Governo

Federal. A demarcação de uma Terra Indígena (TI) 13 tem por objetivo garantir

o direito indígena à terra, estabelecendo a extensão da posse indígena,

assegurando a proteção dos limites demarcados e impedindo a ocupação por

terceiros.14 Todavia, o Governo não tem conseguido garantir esses limites e

impedir as invasões. São frequentes as invasões de mineradores, pescadores,

caçadores, madeireiras e posseiros. Obras do próprio Estado como rodovias,

ferrovias, linhas de transmissão e usinas hidrelétricas acabam por tomar parte

significativa dessas áreas; além dos efeitos da poluição de rios e do

desmatamento. Não raro, há conflitos com colonos, fazendeiros e garimpeiros

pela posse da terra.

A maioria dos índios no Brasil vive hoje em precárias condições de vida. A

ocupação do “homem branco” e o avanço das plantações, da pecuária, da

mineração, das madeireiras e das cidades foi, ao longo do tempo, num

acelerado processo, destruindo as suas principais fontes de sustento. O

contato não lhes foi e não é favorável: vítimas de doenças para as quais não

possuíam anticorpos, de exploração pelo mais forte (econômica e militarmente)

e sem recursos, acabam tendo sua cultura menosprezada, ridicularizada ou

destruída.

É importante destacar que esse processo violento de colonização é

acompanhado e até legitimado pela religião cristã. Alia-se ao empreendimento

colonizador uma ação evangelizadora até então inédita. O modelo de

13 A definição de terras ocupadas pelos índios encontra-se no parágrafo primeiro do artigo 231 da Constituição Federal: são aquelas "por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seu usos, costumes e tradições". Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, in: www.planalto.gov.br, acesso em: 15 de maio de 2010. 14 “Desde a aprovação do Estatuto do Índio, em 1973, esse reconhecimento formal passou a obedecer a um procedimento administrativo, previsto no artigo 19 daquela lei. Tal procedimento, que estipula as etapas do longo processo de demarcação, é regulado por decreto do Executivo e, no decorrer dos anos, sofreu seguidas modificações. A última modificação importante ocorreu com o decreto 1.775, de janeiro de 1996. In: Povos indígenas no Brasi”: http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/introducao, acesso: em 15 de janeiro de 2011.

Page 21: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

21

evangelização que acompanhou a conquista e colonização é o “paradigma

misssionário católico romano medieval”, descrito por David Bosch15como a

“eclesiastização da salvação”. Construído por influência do pensamento de

Agostinho, esse modelo afirmava-se numa compreensão de missão

“fundamentada na divindade, santidade e imutabilidade da igreja”. Nessa visão,

missão era a ‘auto-realização da igreja’”, radicalizada na frase de Cipriano extra

ecclesiam nulla salus (não há salvação fora da igreja).16

Com as descobertas de novas terras por portugueses e espanhóis,

descobriu-se milhões de pessoas que, após 15 séculos de cristianismo, não

conheciam a salvação. As duas primeiras potências colonialistas, ambas

católicas, assumiram a tarefa de levar a mensagem da redenção eterna.

“Assim, logo após a descoberta das rotas marítimas para a Índia e a América, o

papa Alexandre VI (na bula Inter Caetera Divinae) dividiu o mundo fora da

Europa entre os reis português e espanhol, conferindo-lhes autoridade plena

sobre todos os territórios que já tinham descoberto assim como sobre aqueles

que ainda descobririam.”17 Essa bula baseava-se na pretensão medieval de

que o papa possuía a autoridade suprema sobre todo o mundo.

É nesse contexto que surge o termo “missão” aplicado ao envio de

agentes eclesiásticos a colônias distantes. Segundo Bosch18, o termo foi

empregado pela primeira vez com esse sentido por Inácio de Loyola. Por

conseguinte, a esses agentes chamou-se “missionários.” Assim, a palavra

“missão” está historicamente vinculada à época colonial e à idéia de um envio

de pessoas às se delegava uma tarefa eclesiástica. Segundo Bosch,

Entendia-se a igreja como uma instituição jurídica que tinha o direito

de confiar sua “missão” aos poderes seculares e a um corpo de

“especialistas” – sacerdotes ou religiosos. “Missão” designava as

atividades pelas quais o sistema eclesiástico ocidental se propagava

para o resto do mundo. O “missionário” estava irrevogavelmente

conectado a uma instituição na Europa, da qual ele ou ela derivava o

15 BOSCH, David. Missão transformadora: mudanças de paradigmas na teologia da missão. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 265-292. 16 Ibidem, p. 270. 17 Ibidem, p. 280. 18 Ibidem, p. 281.

Page 22: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

22

mandato e o poder de conferir salvação às pessoas que aceitavam

certos princípios de fé.19

O que chama atenção é o uso da coerção e da violência nessa

empreitada missionária. Povos não-cristãos deveriam ser “cristianizados” a

todo custo. A salvação, somente possível pelo batismo cristão, era um fim para

o qual os meios eram totalmente justificáveis.

É importante ressaltar, também, que o paradigma missionário protestante,

embora diferente do católico, teve desdobramentos semelhantes nas colônias

dos países dessa tradição religiosa. Segundo Bosch, nem houve um

rompimento completo com o paradigma católico medieval, descrito acima. São,

em alguns aspectos, uma continuidade. Primeiramente, na insistência na

correta na correta formulação doutrinária:

Tornou-se importante, sobretudo para as gerações subsequentes,

manter o credos da Reforma abslutamente inalterados e inalteráveis,

atribuindo-lhes uma validade extensiva a todos os tempos e

contextos e usando-os tanto para excluir certos grupos quanto para

incluir aqueles considerados ortodoxos na fé, enquanto se

descartava a possibilidade de qualquer desdobramento doutrinário

futuro.20

Além disso, a Reforma, não abandonou a compreensão medieval da

relação entre Igreja e Estado:

Do século 15 ao 17, tanto católicos romanos quanto protestantes

estavam, de formas muito distintas, é claro, ainda comprometidos

com o ideal teocrático da unidade de igreja e Estado. Nenhum

governante católico ou protestante dessa época podia conceber que,

com a conquista de concessões ultramarinas, estivesse ampliando

tão somente sua hegemonia política: era óbvio que as nações

conquistadas também deveriam submeter-se à religião do

governante ocidental.21

19 Ibidem, p. 281. 20 Ibidem, p. 294 21 Ibidem, p.367.

Page 23: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

23

Segundo Bosch22, há ainda no século XVII e no século XVIII um

afastamento deste ideal teocrático. Mas, no século XIX, ele reaparece com o

chamado “Destino Manifesto”. Esse ideal parte do princípio da superioridade da

cultura ocidental e da convicção de que Deus escolheu as Nações do Ocidente,

particularmente os Estados Unidos, para propagar os benefícios e

superioridade dessa cultura.

Essa convicção, geralmente denominada como noção do “destino

manifesto”, quase não era perceptível durante as primeiras décadas

do século 19, mas aprofundou-se gradualmente e alcançou sua

expressão máxima durante o período de 1880 a 1920, conhecido

também como o “apogeu do colonialismo” [...] Existe,

inequivocamente, um elo orgânico entre a expansão colonial do

Ocidente e a noção do destino manifesto.23

As Missões protestantes que chegam ao Brasil no fim do século XIX e

que, particularmente, começam a se interessar pelo trabalho com os índios, na

década de 1920, estão inseridas nesse contexto e partilham dessa noção de

superioridade da cultura e religião que representam em relação às outras

culturas e religiões, especialmente, as indígenas.

Outro capítulo digno de nota no processo de colonização e, aliado a ele,

de cristianização dos índios foi o trabalho dos jesuítas através da catequese e

a estratégia de concentrar os índios em aldeamentos ou “reduções”. Segundo

Bueno24, esta ação resultou em tragédia. Por um lado, provocou surtos de

doenças infecciosas e, por outro, facilitou a ação de escravagistas; embora os

jesuítas lutassem contra a escravização dos índios.

O fato é que catequese e colonialismo andaram juntos. Graciela

Chamorro descreve as reduções como uma estratégia de transformação do

índio em cristão, o que implicava na negação de sua identidade indígena.

Convictos da universalidade das normas sociais e do alto grau de

unidade cultural – como reza o cânone bíblico e aristotélico – os

conquistadores europeus se empenharam em civilizar e cristianizar

22 Ibidem, p.362. 23 Ibidem, p.362. 24 BUENO – 2010, p. 53.

Page 24: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

24

os indígenas, certos de que ocorreria por conta da civilização e do

cristianismo a eliminação das diferenças perturbadoras entre o modo

de ser europeu e o americano, reduzindo, obviamente, o índio ao

branco.25

Na visão dos jesuítas, o índio em estado natural é comparado às feras e a

conversão seria um paulatino desnudar-se da ferocidade desumana dos

indígenas. A redução, ou seja, juntar os índios num lugar, facilitaria esse

processo.

2. Os kaiowá e Terena no Mato Grosso do Sul

O alvo da ação missionária desenvolvida por Scilla Franco são os índios

Kaiowá e Terena que habitam a reserva indígena de Dourados em Mato

Grosso do Sul. Para uma melhor compreensão de quem são essas pessoas e,

consequentemente, uma adequada contextualização, descrevem-se, abaixo as

principais características destes povos e o processo que os levaram a viver

onde e da maneira como viviam na década de 1970, período em que Scilla

Franco esteve entre eles.

2.1. Os Índios Kaiowá

Kaiowá é um dos subgrupos da família Guarani, conforme descreve Egon

Schaden:

Os Guarani do Brasil Meridional podem ser divididos em três grandes

grupos: os Ñandéva, os Mbüá e os Kayová. Estes últimos são os

únicos que hoje em dia não usam, em face de estranhos, a

autodenominação Guarani [...] Em que pese as ligeiras variações

entre as numerosas aldeias, a divisão em três subgrupos se justifica

por diferenças sobretudo linguísticas, mas também por

peculiaridades na cultura material e não-material.26

25 CHAMORRO, Graciela. A conquista espiritual e os guarani: a questão de Deus e do “outro” in: DREHER, Martin (org.) 500 anos de Brasil e a Igreja na América Meridional. Porto Alegre: Edições EST, 2002, p. 181. 26 SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: EDUSP, 1974, p. 2.

Page 25: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

25

Portanto, diferentes povos compõem a família Guarani. O que os une são

traços culturais semelhantes, como a língua. Mas, há diferenças entre eles. O

autor observa, por exemplo, que é possível distinguir com certa facilidade três

dialetos Guarani em território brasileiro. Segundo o site “Povos Indígenas no

Brasil” 27, há entre os subgrupos Guarani-ñandeva, Guarani-kaiowa e Guarani-

mbya existentes no Brasil, “diferenças nas formas linguísticas, costumes,

práticas rituais, organização política e social, orientação religiosa, assim como

formas específicas de interpretar a realidade vivida e de interagir segundo as

situações em sua história e em sua atualidade”.28

Segundo Jorge Eremites Oliveira, no Mato Grosso do Sul apenas os

índios chamados Ñandeva se autodentificam como Guarani; os Kaiowá que

vivem no Brasil se auto-identificam como Kaiowá e, não raramente, explicitam

sua identidade aos que se referem a eles como Guarani. Conclui Oliveira:

O termo Guarani, portanto, não corresponde a um único e grande

povo indígena monolítico e fossilizado no tempo e no espaço. Os

chamados subgrupos, parcialidades ou fragmentos, aí sim,

correspondem a grupos étnicos específicos que se identificam e são

identificados como Kaiowá, Mbyá ou Guarani (como no caso dos

Ñandeva), por exemplo.29

O nome Kaiowá significa “os que pertencem à floresta alta, densa”. E

Ñandeva, segundo Schaden, significa “nossa gente” ou “todos nós”. No Mato

Grosso do Sul, são conhecidos como Guarani e no Paraguai, como Chiripa.

Estes dois sub-grupos da família Guarani, Ñandeva (também chamados de

27 “Povos Indígenas no Brasil” é uma página na internet do ISA – Instituto Socioambiental, ligado ao CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação). Criado há 11 anos com o propósito de reunir verbetes com informações e análises de todos os povos indígenas que habitam o território nacional, além de textos, tabelas, gráficos, mapas, listas, fotografias e notícias sobre a realidade desses povos e seus territórios com o propósito de combater a desinformação que favorece o preconceito e a exploração. In: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva/1296, acesso em: 25 de outubro de 2010. 28 Ibidem. 29 OLIVEIRA, Jorge Eremites. Cultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira: um estudo por ocasião da discussão sobre a tradicionalidade da ocupação Kaiowá da terra indígena Sucuri’y in: Revista Sociedade e Cultura, v. 10 nº1, jan./jun. 2007, p. 95-113, Universidade Federal de Goiás, p. 99, disponível em http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/703/70310109.pdf, acesso em: 25 de outubro de 2010.

Page 26: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

26

Guarani) e Kaiowá, habitam a região de Dourados e estão presentes nas

reservas indígenas da região (Mapa 1).

Mapa 1 – Território Guarani em Mato Grosso do Sul

Mapa 2: Áreas indígenas em Mato Grosso do Sul

Fonte: Geoprocessamento do Programa Kaiowá/Guarani, NEPPI, UCDB (2005)30

30 Acessado na página na Internet: “Trilhas de Conhecimento – O Ensino Superior de Indígenas no Brasil” http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm, acesso em: 25 de outubro de 2010.

Page 27: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

27

Na década de 1970, os Kaiowá estavam confinados a uma série de

aldeias do Sul do Mato Grosso (como Dourados, Panambi, Teicuê, Taquapiri,

Amambai e outras) e de regiões contíguas do Paraguai. A maioria deles sob a

administração oficial do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, em reservas que

delimitavam o espaço físico de sua ocupação, dedicando-se à caça e à

lavoura, e trabalhando todos os anos durante alguns meses nos grandes ervais

que havia na região.31

Graciela Chamorro descreve as origens dos povos Guarani:

Os grupos guarani atuais pertencem ao tronco linguístico tupi-

guarani, que por sua vez se desenvolveu do tronco tupi mais antigo,

e à tradição denominada na arqueologia de tupi-guarani.

Frequentemente são incluídos na denominação genérica de “povos

amazônicos”, com o que se quer fazer menção ao lugar de origem de

seus ancestrais, a Amazônia. OsTupi teriam-se originado ao redor de

cinco mil anos atrás, entre os rios Jiparaná e Aripuanã, afluentes do

Rio Madeira, num habitat caracterizado por florestas entrecortadas

de cerrados, apto para a caça e coleta. O crescimento da população

durante os dois mil anos seguintes teria ocasionado a expansão do

grupo, a diversificação da protolíngua Tupi e a modificação da cultura

em geral, chegando à incorporação da agricultura – plantação de

tubérculos – e das cerâmicas. Ter-se-iam neolitizado. 32

A estrutura familiar Guarani era composta por famílias extensas, que são

unidades de produção e consumo, onde os homens tinham a função da

limpeza do terreno, e as mulheres a do plantio, colheita e transporte dos

produtos.

A religião é o elemento unificador da cultura Guarani. É no sistema

religioso que, apesar das diferenças de um subgrupo para outro, “a cultura

Guarani encontra a expressão máxima de sua unidade fundamental.”33 A

religião oferece os mecanismos de defesa e as condições para a resistência

31 Cf. SCHADEN – 1974, p. 4. 32 CHAMORRO, Graciela. A Espiritualidade Guarani: teologia ameríndia da palavra. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 41 33 SCHADEN – 1974, p. 184.

Page 28: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

28

cultural. Ou, pelo menos, é na religião que estes mecanismos se evidenciam

melhor.

Chamorro34 faz um estudo da religiosidade dos povos chamados Guarani,

dentre os quais os Kaiwoá, e a descreve como uma religião da “palavra”.

A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida

para os povos chamados guarani e como eles imaginam o

transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra.

Deus é palavra. Dentre todas as faculdades humanas, são as

diversas formas do “dizer” as vias, por excelência, de comunicação

com as divindades, pois estas são essencialmente seres da fala.35

E esta “palavra” toma forma no mundo, adquirindo uma dimensão

cosmológica: a terra é “um corpo que murmura” a palavra. A palavra tem uma

dimensão não-corpórea, embora habite o corpo. No nascimento, a palavra

“provê para si um lugar no corpo da criança”. Tanto a terra quanto o corpo são

habitados pela “palavra”, o que confere forte ligação entre eles – terra e corpo.

Segundo Chamorro, os povos Guarani são capazes de “compreender-se e de

compreender toda a sua vida como experiências de palavra, atos de dizer-

se.”36

2.2. Os índios Terena

Os Terena tem uma trajetória diferente dos Kaiowá e as relações entre

eles, embora vivendo na mesma reserva, nem sempre são amistosas. Os

Terena fazem parte dos Guaná, de língua aruák, povo que outrora habitava a

parte setentrional do Chaco. Era um povo de lavradores sedentários que, antes

da chegada dos espanhóis e dos portugueses, já haviam sido subjugados por

caçadores de índole guerreira e pertencentes ao grupo linguístico Guaikurú.

Embora as culturas destes povos indígenas fossem originalmente distintas,

34 CHAMORRO, Graciela. Terra Madura –Yvy Araguyje: fundamento da palavra Guarani. Dourados, Editora UFGD, 2008. 35 Ibidem, p. 56. 36 CHAMORRO – 1998, p. 48.

Page 29: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

29

vários séculos de contato levaram a uma grande similaridade em suas crenças

e costumes.37

O antropólogo Fernando Altenfelder Silva descreve, num texto clássico da

etnologia dos povos brasileiros, a chegada dos Terena à região do Mato do

Grosso do Sul:

Os Terena vivem hoje em oito aldeias próximas às cidades de

Aquidauana, Taunay e Miranda, no sul do Mato Grosso [...] Dizem os

Terena ter vindo do Chaco há uns 100 anos. Logo após sua

chegada, os brasileiros começaram a penetrar no mesmo território, e

os Terena afirmam que foram maltratados pelos fazendeiros, tendo

que mudar-se de um lugar para outro, enquanto os brasileiros

tomavam posse das terras. Alguma ajuda de caráter econômico foi-

lhes dada em 1911, quando a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil

alcançou a área e os indígenas conseguiram emprego como

trabalhadores da ferrovia. Em 1914, graças ao General Rondon,

cederam-se as terras aos Terena e dessa época em diante ficaram

eles sob a proteção do Governo brasileiro.38

No passado, a aldeia constituía a unidade básica da vida social terena.

Era nela que se realizavam as atividades primárias de natureza econômica,

religiosa e outras cerimônias. Em torno da aldeia estavam os campos

cultivados e nas florestas e rios vizinhos, a caça e o peixe, que contribuíam

para a subsistência. A lavoura era a principal forma de atividade econômica. A

unidade econômica era a família extensa, que vivia em uma casa comum. A

unidade política primária era a aldeia, cada qual com seu chefe. Dispunham de

uma base social muito mais sofisticada do que seus vizinhos Mbayá. Estavam

estratificados em camadas hierárquicas: os "nobres" ou "capitães e a "plebe"

ou "soldados".

Quanto à religião, os principais rituais estão ligados à lavoura, sua

principal atividade econômica. A agricultura é um dos fundamentos da religião

Terena e o tradicional ritual realizado no fim da colheita é um dos mais 37 SILVA, Fernando Altenfelder. Religião Terena in: SCHADEN, Egon (org.) Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 269. O texto foi originalmente publicado com o título “Terena Religion” na Acta Americana, V, IV, 1946, México. O texto foi traduzido por Egon Schaden. 38 Ibidem, p. 269.

Page 30: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

30

importantes. Sua finalidade é agradecer pelo sustento vindo da terra e, ao

mesmo tempo, conseguir a bênção de Itukó’Oviti, o Deus Superior, para o

próximo plantio. Esses rituais eram realizados sempre com muita festa e

alegria.

Silva descreve os principais traços da aculturação dos Terena:

Exteriormente, os Terena parecem brasileiros. Vestem roupas

brasileiras, muitos vivem em casas de tijolos, com camas e mobílias

simples, usam regularmente pão e arroz em sua dieta, aprendem o

português em escolas brasileiras, tocam modinhas brasileiras no

violão e dançam danças brasileiras. Mas não se identificam como

brasileiros. Chamam-se a si próprios “Terena”.39

O Mato Grosso do Sul abriga uma das maiores populações indígenas do

Brasil e os Terena, por contarem com uma população bastante numerosa e

manterem um contato intenso com a população regional, são o povo indígena

que mais tem visibilidade. Podem ser vistos com frequência nas cidades

vendendo artesanato e nas fazendas e usinas de açúcar e álcool em trabalhos

temporários. Segundo Silva,

Essa intensa participação no cotidiano sul-matogrossense favorece a

atribuição aos Terena de estereótipos tais como “aculturados” e

“índios urbanos”. Tais declarações servem para mascarar a

resistência de um povo que, através dos séculos, luta para manter

viva sua cultura, sabendo positivar situações adversas ligadas ao

antigo contato, além de mudanças bruscas na paisagem, ecológica e

social, que o poder colonial e, em seguida, o Estado brasileiro os

reservou.40

Os Terena vivem atualmente em um território descontínuo, fragmentado

em pequenas “ilhas” cercadas por fazendas e espalhadas pelos municípios de

Miranda, Aquidauana, Anastácio, Dois Irmãos do Buriti, Sidrolândia, Nioaque e

Rochedo, em Mato Grosso do Sul. Além dessas áreas exclusivas, estão

também em Porto Murtinho (na Terra Indígena Kadiweu), em Dourados (TI

Guarani) e no estado de São Paulo (TI Araribá).

39 Ibidem, p. 275. 40 Ibidem, p. 275.

Page 31: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

31

3. A região de Dourados

Dourados está localizada no Estado do Mato Grosso do Sul (Mapa 3) e

atualmente, segundo dados do Censo 2010, realizado pelo IBGE41, conta com

uma população de 191.638 habitantes. Na década de 1970, a população era

estimada em torno de 175 mil pessoas.

Mapa 3: O Estado do Mato Grosso do Sul com a localização da cidade de Dourados:

Fonte: http://www.geomundo.com.br/mato-grosso-do-sul-50126.htm, acesso em: 27 de outubro de 2010.

O Estado do Mato Grosso do Sul foi criado por meio de uma Lei

Complementar (nº 31) em 11 de outubro de 1977, promulgada no governo de

Ernesto Geisel. O novo estado surgiu do desmembramento da parte meridional

do antigo Mato Grosso e foi implantado a partir de 1º de janeiro de 1979.

Compreende uma área de aproximadamente 358.000 Km².42 Portanto, a época

estudada refere-se ao tempo em que a região fazia parte do Estado de Mato

Grosso.

41 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístca. Dados disponíveis no site: www.ibge.gov.br, acesso em 5 de janeiro de 2011. 42 OLIVEIRA, Jorge Eremites de. Cultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira: um estudo por ocasião da discussão sobre a tradicionalidade da ocupação Kaiowá da terra indígena Sucuri’y in: Sociedade e Cultura. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, janeiro-junho de 2007, p.99.

Page 32: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

32

Antes da colonização branca, o município de Dourados era habitado pelas

tribos Terena e Guarani (Ñandeva e Kaiowá). Os remanescentes desses povos

constituem uma das maiores populações indígenas do Brasil.43 Em 10 de maio

de 1861, foi fundada a Colônia Militar de Dourados, sob o comando de Antônio

João Ribeiro, quando houve a invasão Paraguaia, um dos episódios que deu

origem à Guerra do Paraguai ou Guerra da Tríplice Aliança.

No final do século XIX, vieram para o Mato Grosso algumas famílias

originárias dos Estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo em

busca de novas terras no oeste do país. A boa fertilidade da terra na região, a

preços baixos, atraiu os novos colonizadores. Outro fator que levou à ocupação

da área pelos não-índios foi a possibilidade de exploração dos extensos ervais

nativos impulsionada pela ação da Companhia Matte Larangeira, que deteve o

monopólio da exploração dos ervais em toda a região, entre os anos de 1882 e

1924. Houve, também o desenvolvimento da cultura pastoril, com inúmeras

fazendas de gado, e a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil,

entre 1904 a 1914. Estes foram alguns dos principais fatores que levaram ao

desenvolvimento econômico e crescimento populacional na área.

Em 20 de dezembro de 1935, com áreas desmembradas do município de

Ponta Porã, através do Decreto nº 30 do então Governador do Estado, Mário

Corrêa da Costa, foi criado o município de Dourados.44 A colônia agrícola de

Dourados, criada em 1943, com uma área de 50.000 hectares, reservado em

1923 para a colonização, passou a integrar Dourados pelo Decreto de elevação

à categoria de município em 1935, atraindo para a região tantas levas de

imigrantes brasileiros e estrangeiros, principalmente japoneses, que se

dedicaram especialmente ao cultivo de café.

3.1. A Guerra do Paraguai (1864-1870)

Evento determinante na história da região e de consequências graves

para os índios daquela parte do território brasileiro e, também, da Argentina e

43 Segundo dados da FUNASA – Fundação Nacional de Saúde, o número de indígenas no município de Dourados é de 12.132. Esses dados foram publicados em 1ºde julho de 2010 e estão disponíveis na página da internet: www.funasa.gov.br. Acesso em: 10 de novembro de 2010. 44Informações retiradas da internet no site da Prefeitura Municipal de Dourados: http://www.dourados.ms.gov.br, acesso em:10 de outubro de 2010.

Page 33: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

33

Paraguai, foi a chamada Guerra do Paraguai. Eduardo Bueno assim a

descreve, sucintamente:

... foi uma guerra suja, travada em pântanos e alagadiços, lutada por

escravos recém-libertos, indígenas de diversas nações, mestiços,

“voluntários” convocados à força e até por mulheres, crianças e

velhos. Guerra na qual muitos combatentes morreram de tifo, cólera

ou malária antes de dispararem o primeiro tiro. Guerra de interesses

expansionistas, travada entre ex-colônias emergentes sonhando um

dia ser metrópole. A mais longa (prolongou-se de outubro de 1864 a

março de 1870) e a mais terrível (deixou cerca de 150 mil mortos)

guerra ocorrida no mundo entre 1815 e 1914. A maior guerra da

história da América Latina.45

A Guerra foi um prolongado conflito em território ocupado por povos

indígenas e que os envolveu diretamente nas batalhas: eram forçados a lutar.

Por causa da guerra, tiveram que mudar várias vezes o local de moradia.

Houve desestabilização nas relações familiares em povos que se configuram a

partir delas. Após a Guerra, políticas governamentais de ocupação da região

foram implementadas e, também, afetaram significativamente a vida desses

povos.

O povo Terena foi um dos mais afetados pela guerra. Ela representou um

dos acontecimentos que tiveram maior impacto sobre suas vidas: um dos

palcos do conflito foi o território deles. Aliados dos brasileiros, sofrem com os

ataques e represálias por parte das tropas paraguaias. Buscando refúgio nas

matas densas e de difícil acesso, se dispersam em uma vasta região.

3.2. A Companhia Matte Larangeira

A maioria dos autores consultados nessa pesquisa aponta como fator de

destaque na ocupação das terras Guarani em Mato Grosso do Sul a

exploração da erva mate46. Segundo Eva Maria Luiz Ferreira e Antonio

45 BUENO – 2010, p. 216. 46 Planta nativa da América, a erva-mate era usada com frequencia pelos índios antes da chegada dos colonizadores. Quando chegam à região, logo descobrem as propriedades e os benefícios do uso da erva; seu uso é adotado por eles e intensificado adquirindo valor comercial. Assim, a extração da erva-mate, presente em grande quantidade nas matas da

Page 34: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

34

Brand47, o domínio da Companhia Matte Larangeira na extração do produto na

região foi a primeira expansão econômica em território Guarani.

Com o fim da Guerra do Paraguai, uma comissão de limites percorreu a

região ocupada pelos Kaiowá, entre o rio Apa, no Mato Grosso do Sul, até o

Salto de Sete Quedas, em Guaíra, Paraná. Em 1874, os trabalhos de

demarcação da fronteira entre Brasil e Paraguai foram encerrados. Fazia parte

dessa comissão, Thomaz Larangeira, empresário responsável pelo

fornecimento de alimentos à expedição. Percorrendo a região, ele percebeu

novas possibilidades de exploração econômica no lugar. No mesmo ano,

Larangeira fundou uma fazenda de gado no Mato Grosso e logo depois, em

1877, iniciou o trabalho de exploração da erva-mate, no Paraguai.

Quando o chefe da comissão, o Barão Enéas Galvão, foi nomeado

presidente da província, Larangeira fez uso das boas relações que mantinha

com ele, recorreu à sua proteção e, através do Decreto Imperial nº 8799, de 9

de dezembro de 1882, tornou-se o primeiro concessionário legal para a

exploração da erva-mate nativa, por um período inicial de 10 anos.

Ferreira e Brandt descrevem como Larangeira, com o tempo, alcançou o

monopólio de extração da erva mate na região, através da proximidade com o

poder público:

A área de concessão é constantemente ampliada, sempre através do

apoio de políticos influentes, como os Murtinho e Antônio Maria

Coelho. Com o advento da República, as terras legalmente

consideradas devolutas passam para a responsabilidade dos

Estados, o que favorece os interesses da Empresa, pelo seu grau de

proximidade com os governantes locais.48

Desta forma, a Companhia adquiriu o monopólio na exploração da erva-

mate na região, ultrapassando os 5.000.000 de hectares. Esse domínio

começou a encontrar oposição a partir de 1912, mas, manteve-se até 1943,

região, atraiu um número considerável de pessoas. A vida dos índios é afetada por esse movimento e pela exploração de sua mão de obra. 47 FERREIRA, Eva Maria Luiz Ferreira; BRAND, Antonio. Os Guarani e a erva-mate. In: Revista Fronteiras, Dourados, MS: v. 11, n. 19, p. 107-126, jan./jun. 2009. Universidade Federal da Grande Dourados, p.109. 48 Ibidem, p.109.

Page 35: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

35

quando o presidente Getúlio Vargas criou o território de Ponta Porã e anulou os

direitos da Companhia.49

Evidentemente, essa longa ocupação atingiu de forma importante a vida

dos índios. Muitos são explorados por ervateiros, num regime de quase

escravidão. Próximo às vias de escoamento do produto, vão surgindo

pequenos povoados, gerando grandes conflitos, nos quais os índios sempre

saem perdendo.

3.3. O Marechal Rondon e a Era Vargas

Personagem importante na história do Brasil, cuja ação foi determinante

na configuração das questões indígenas em muitas regiões do país e,

particularmente, onde hoje é o Mato Grosso do Sul, foi o Marechal Cândido

Mariano da Silva Rondon (1865-1958), militar de carreira que trabalhava na

expansão das linhas telegráficas no Mato Grosso e na Amazônia. Rondon é o

primeiro diretor do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão do Governo

criado em 1910.

A política do SPI era a de integração dos povos indígenas à sociedade

substituindo a idéia da catequese missionária pela de proteção e assistência do

Estado. No entanto, a proteção era um momento transitório, que deveria

garantir as condições para que os índios se tornassem parte da massa de

trabalhadores nacionais.

Segundo Seth Garfield, “Rondon, positivista ortodoxo, junto com seus

colegas ideólogos no SPI, acreditava no progresso inevitável das sociedades

como evolução dos chamados estágios de primitivismo ao racionalismo

científico ou ‘positivo’.” O desejo de Rondon era que o índios fossem integrados

à sociedade brasileira, deixando de ser índios e incorporando-se plenamente

na “nacionalidade brasileira tão íntima e completa quanto possível”.50

Essa tentativa de oferecer proteção aos índios, todavia, gerou novos e

graves problemas. O confinamento em reservas, com espaço cada vez menor,

49 Ibidem, p. 110. 50 GARFIELD, Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Naçao na Era Vargas. In: Revista Brasileira de História, São Paulo: nº 39, 2000, p. 16.

Page 36: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

36

representa uma violência ao modo de vida indígena. Historicamente, viviam

livres, sem limites territoriais, a não ser os definidos pelas próprias etnias. Por

meio da coleta, da caça e da pesca retiravam na natureza tudo o que

necessitavam para sobreviver. Em razão disso, mantiveram sempre forte

ligação com o território. A limitação territorial se opõe aos seus traços culturais

básicos de viver livres de fronteiras. Segundo Jaime Ribeiro de Santana Júnior,

Os Guarani denominam os lugares que ocupam de tekoha,

significando o lugar físico - terra, mato, campo, águas, animais,

plantas, remédios, etc. - onde se realiza o teko, o “modo de ser”, o

estado de vida guarani. O tekoha engloba a efetivação de relações

sociais de grupos macro familiares que vivem e se relacionam em um

espaço físico determinado. Idealmente este espaço deve incluir,

necessariamente, o ka’aguy (mato), elemento apreciado e de grande

importância na vida desses indígenas como fonte para coleta de

alimentos, matéria-prima para construção de casas, produção de

utensílios, lenha para fogo, remédios, etc. [...] Indispensáveis no

espaço Guarani são as áreas para plantio da roça familiar ou coletiva

e a construção de suas habitações e lugares para atividades

religiosas.51

Ao invés de proteger os índios, a criação das reservas, facilitou a

ocupação da região pelos brancos. Assim, o objetivo de integração dos índios à

sociedade, se ligava diretamente a outro: promover a conquista das terras

indígenas que ainda permaneciam fechadas à colonização. As reservas

indígenas foram resultado de um projeto claro de colonização e civilização que

desconsiderou as especificidades (étnicas, culturais e históricas) dos indígenas

e negou-lhes o direito à posse das terras que tradicionalmente ocuparam.

Segundo Santana Junior,

As demarcações das reservas quase nunca respeitavam as culturas,

tradições, modo de vida, rituais, posse natural da terra, o que trouxe

como conseqüência, o fato das reservas abrigarem vários povos

51 SANTANA JUNIOR, Jaime Ribeiro de. Produção e reprodução indígena: o vir e o porvir na reserva de Dourados/MS in: Revista de Geografia Agrária, v. 5, nº 9, 2010. Revista eletrônica disponível no site: http://www.campoterritorio.ig.ufu.br/viewarticle.php?id=243, acessado em 28 de outubro de 2010, p. 207.

Page 37: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

37

indígenas, com culturas, línguas, tradições totalmente diferentes, ou

seja, sem levar em consideração o tekoha, resultando entre os

indígenas, conflitos e adaptações.52

A exemplo de outros movimentos de colonização ocorridos ao longo da

história do país, “a história das 'pacificações' realizadas pelo SPI é, na maioria

dos casos, uma sucessão de desastres demográficos. Os novos métodos de

Rondon não eram capazes de impedir a mortandade provocada pela

introdução de doenças contra as quais os índios não tinham resistência.”53

A criação das reservas representou um confinamento compulsório dos

índios Guarani dentro de oito reservas. Todas elas deveriam estar localizadas

relativamente próximas a cidades ou vilarejos, visando inseri-los na economia

regional como de mão-de-obra. As demarcações foram realizadas pelo SPI,

entre os anos de 1915 e 1928. São elas: Benjamim Constant (1915, em

Amambaí); Francisco Horta Barbosa (1917, em Dourados); José Bonifácio

(1924, em Caarapó); Sassaró ou Ramada (1928, em Tacuru); Limão Verde

(1928, em Amambaí); Takaperi (1928, em Coronel Sapucaia); Pirajuy (1928,

em Paranhos) e Porto Lindo (1928, em Japorã). Todas as áreas totalizariam

18.297 hectares.54

Rondon vai ser ainda personagem de destaque em outra importante

política do Governo brasileiro que, igualmente, afetou a vida na região de

Dourados. Com o advento da Era Vargas (1930-1945) foi adotada pelo

Governo uma política de ocupação do país denominada de “Marcha para o

Oeste”. Garfield assim a descreve:

Lançada na véspera de 1938, a Marcha para o Oeste foi um projeto

dirigido pelo governo para ocupar e desenvolver o interior do Brasil.

Nas palavras de Vargas, a Marcha incorporou "o verdadeiro sentido

de brasilidade", uma solução para os infortúnios da nação. Apesar do

extenso território, o Brasil havia prosperado quase que

52 Ibidem, p. 210. 53 Secretaria de Educação Fundamental - Secretaria de Educação a Distância. Índios do Brasil. Brasília: MEC, SEED SEF, 2001, Cadernos da TV Escola, p. 65. 54 Ibidem, p. 210.

Page 38: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

38

exclusivamente na região litoral, enquanto o vasto interior mantinha-

se estagnado - vítima da política mercantilista colonial, da falta de

estradas viáveis e de rios navegáveis, do liberalismo econômico e do

sistema federalista que caracterizaram a Velha República (1889-

1930). Mais de 90% da população brasileira ocupava cerca de um

terço do território nacional. O vasto interior, principalmente as regiões

Norte e Centro-oeste, permanecia esparsamente povoado. Muitos

índios, é claro, fugiram para o interior justamente por estas razões.

Mas os seus dias de isolamento, anunciou o governo, estavam

contados.55

Essa política de ocupação encontrou em Rondon um importante

colaborador e o SPI, por sua vez, foi visto pelo Governo Vargas como um

instrumento de sua implantação. A “valorização” do índio fez parte da

campanha governamental para popularizar a Marcha para o Oeste. Os índios

passaram a ser considerados como figuras importantes e Rondon

entusiasmou-se com a atenção do Estado Novo para com eles e seus

"problemas".

A “Marcha para o Oeste” foi determinante para a configuração econômica

e populacional da região de Dourados. Entretanto, para os índios, foi mais um

movimento de ocupação de terras que, outrora, foram suas.

4. A Reserva Indígena de Dourados

A reserva indígena de Dourados – Francisco Horta Barbosa (Mapa 4), foi

a segunda área a ser demarcada, em 1917. Mas, só teve seu processo de

demarcação, homologação e recebimento do título definitivo concluído 48 anos

depois, ou seja, em 1965.

Santana Junior assim a descreve:

A reserva de Dourados tem seus limites territoriais juntos aos limites

do perímetro urbano do município, ficando a norte da cidade. A sua

composição étnica é composta por três etnias: Caiuás (Kaiowá),

Guarani (Ñandeva) e os Terena. Divididas em duas aldeias: a Bororó

55 GARFIELD – 2005, p. 15.

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39

e a Jaguapirú, que totalizam uma área de 3.539 hectares. Com uma

população estimada em 2007, superior a 12 mil indígenas

distribuídos nas duas aldeias. Nesse contexto, observamos a

existência de uma grande população indígena delimitadas

territorialmente em um espaço demarcado, afrontando assim,

aspectos peculiares ao seu modo de vida tradicional.56

Mapa 4: Reserva Indígena – composta pelas aldeias Jaguapiru e Bororó

– e a cidade de Dourados:

Fonte: Prefeitura Municipal de Dourados, 2010.57

Na década de 1990, a reserva de Dourados ganhou destaque nacional

pela divulgação do elevado número de suicídios que ocorreram ali. Esses

suicídios são motivados, em sua maioria, pela perda da perspectiva de vida no

interior da reserva. Falando a respeito dos suicídios entre os índios e suas

possíveis causas, Bueno afirma:

56 Ibidem, p. 204. 57 Disponível na página da Internet: http://geo.dourados.ms.gov.br/geodourados/map.phtml acesso em: 25 de outubro de 2010.

Page 40: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

40

De todos os dramas vividos pelas tribos brasileiras, o mais rumoroso

tem sido o do suicídio coletivo dos Guarani-Kayowá, de Mato Grosso

do Sul. Agrupados em reservas improdutivas, submetidos a um

regime de trabalho semi-escravo e despojados de suas tradições,

236 Kayowá se mataram em menos de uma década. Só em 1995,

foram 54 os que cometeram o deduí, o suicídio ritual – ou rito de

“apagar o sol”, como os próprios índios, trágica e poeticamente, o

denominam.58

A reserva de Dourados possui característica peculiar: é formada por três

etnias: os Kaiowás, os Ñandeva e os Terena. Formada pelas aldeias Bororó e

Jaguapirú, a reserva localiza-se a norte da cidade, tendo seus limites territoriais

junto ao perímetro urbano do município (Mapa 2). Segundo dados da FUNASA,

estima-se uma população superior a 12 mil habitantes, distribuídas nas duas

aldeias.

A proximidade da reserva com a cidade, que tinha por objetivo tornar

possível o emprego da mão-de-obra dos índios, é fator determinante para os

problemas culturais. Por um lado, gera entre os indígenas o sentimento da

oportunidade, principalmente entre os mais jovens; mas, por outro, evidencia a

discriminação e exclusão sociais, já que de maneira geral, a sociedade não

índia é fortemente marcada por uma carga de preconceito em relação a essas

populações.

Os recursos naturais sempre representaram um dos principais meios de

sustento dos indígenas, mas com o processo de desmatamento ocorrido na

reserva, há uma degradação quase que total desses recursos. Associam-se a

essa questão, processos erosivos, devido à retirada da cobertura vegetal e o

uso inadequado de máquinas e implementos agrícolas.

Na criação da reserva de Dourados, havia indígenas Terena na região

que foram trazidos para a reserva pelo Serviço de Proteção ao Índio no intuito

de ensinar técnicas de agricultura para os Guarani (Ñandeva) e Kaiowá. Os

Terena eram tradicionalmente considerados hábeis agricultores. Nesse

contexto, desenvolveu-se entre eles uma relação de dominação dos Terena

58 BUENO – 2010, p. 27.

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41

sobre os Guarani, gerando inúmeros conflitos étnicos, levando a uma

subdivisão entre a área ocupada pelos Terena e pelos Guarani.

Os Kaiowá e os Terena, portanto, embora sejam povos diferentes,

ocupam a mesma reserva por causa das políticas governamentais do passado.

Segundo o depoimento de Paulo Silva Costa, que atualmente coordena os

trabalhos na missão Tapeporã, criada por Scilla Franco, os Terena foram

trazidos para a reserva de Dourados vindos de Aquidauana. Diz ele:

A partir de 1918 o SPI – Serviço de Proteção ao Índio – hoje FUNAI,

na época chefiado pelo Marechal Rondon, começou a demarcar

essas áreas. O SPI chegou lá, olhou para os Kaiowá e concluiu: “Ah!

Esses índios são meio preguiçosos, aqui eles não vão trabalhar,

então a gente vai trazer os Terena da região de Aquidauana, porque

os Terena são mais trabalhadores, então vamos trazê-los para

ensinarem os Kaiowá a trabalhar.” O resultado é que a reserva era

pequena e foi dividida ao meio, em cima ficam os Terena, em baixo

os Kaiowá. Ficou um corredorzinho que nem água tem mais, o

chamado “farinha seca” como divisa geográfica dentro da reserva.59

Esse depoimento dá a idéia de como foram e ainda são tratados os

índios. Mesmo em órgãos oficiais criados para “protegê-los” transparece o

preconceito e falta de compreensão da cultura desses povos em toda a sua

complexidade. O resultado são relações conflituosas entre os índios e a

miséria. São dois povos diferentes ocupando um mesmo espaço reduzido e

vivendo sob a tutela de um órgão do governo. Ao mesmo tempo, aos poucos

as fazendas que cortam a reserva vão ocupando a terra dos índios, diminuindo-

a ainda mais. Segundo o mesmo depoimento de Costa, em 1994, a área que

oficialmente era de 3.500 hectares60, não chega a 3.000.61

Os índios Kaiwoá e Terena que estão presentes na reserva indígena de

Dourados têm em comum um longo processo de aculturação que aconteceu

durante todo o período em que estiveram em contato com os brancos. Ainda

59 COSTA, Paulo Silva ; COSTA, Maria Imaculada. O suicídio entre os Kaiowá. In: KEMPER, Thomas; SILVA, Jaider Batista da. Repensando a Evangelização junto aos povos indígenas. São Bernardo do Campo, EDITEO, 1994, p. 80. 60 Um hectare equivale a 10.000 metros quadrados. 61 COSTA ; COSTA - 1994, p. 80.

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que mantenham muitas de suas características culturais, assimilaram muitas

coisas da cultura branca, como as roupas, a religião cristã (há inúmeras igrejas

dentro da reserva, a maioria pentecostais), a maneira de lidar com a terra, a

alimentação, os costumes.

Fazem parte desse processo de aculturação o contato com os

colonizadores europeus, tanto no Paraguai como no Brasil, o contato com os

jesuítas nas reduções indígenas, os efeitos da Guerra do Paraguai, a

exploração da erva-mate em larga escala, a vinda de pecuaristas e das

fazendas de lavouras comerciais.

A política de criação das reservas próximas às cidades acelerou o

processo. Também, fazem parte desse processo, as missões protestantes. Foi

entre os índios Guarani do Mato Grosso do Sul, Kaiwoá e Ñandeva, que houve

maior incidência de trabalho missionário. Segundo o site “Povos Indígenas no

Brasil”,

Há missões evangélicas protestantes (desde 1928), metodistas

(1978), fundamentalistas alemães (1968), todas com um viés

evangélico tradicional. Mais recentemente têm proliferado

denominações pentecostais carismáticas em muitas áreas guarani

naquele estado. A igreja católica atua na área através do Conselho

Indigenista Missionário (1978).62

5. A Igreja Metodista e seu envolvimento com os índios

5.1. No início do metodismo

A preocupação com a evangelização dos índios na tradição metodista

remonta aos primórdios do Metodismo. John Wesley, seu principal fundador, no

ano de 1736, deixa a Inglaterra, onde fora formado e desenvolvia seu trabalho

pastoral, e vai para a Geórgia – nesse tempo, uma das colônias inglesas na

América do Norte.

A intenção de Wesley, ao evangelizar os índios, tem como ponto de

partida uma crise que ele próprio vivia em relação ao cristianismo que conhecia

62 Povos Indígenas no Brasil in: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva/1296, acessado em 25 de outubro de 2010.

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43

em seu país. Pensava ele que, ao anunciar a mensagem cristã a um povo que

não conhecia nada do cristianismo (que adquiriu, ao longo do tempo, vários

males e distorções), conseguiria encontrar a essência da fé cristã. Vive,

também, uma crise de fé pessoal e imagina que, ao evangelizar os índios,

encontraria seu próprio caminho. Segundo Richard Heitzenrater, pouco antes

de sua partida,

Wesley estava escrevendo uma carta para responder a John Burton

(Letters, 25:439-41), que havia visto o motivo de seu “encargo

piedoso” como o “desejo de fazer o bem para as almas dos outros e,

como conseqüência disso, para a sua própria.” Wesley novamente

reverteu a ordem ao apontar para o objetivo já proposto, agora

transferido de Oxford para um novo campo de trabalho: “Meu

principal motivo... é a esperança de salvar minha própria alma. Agora

ele havia encontrado um lugar no qual esse processo poderia

avançar de um modo mais perfeito; seu motivo secundário, então,

era “a esperança de fazer mais do bem na América.”63

A princípio, pode parecer uma fraqueza e revelar uma dimensão negativa

do trabalho missionário. Por outro lado, pode ser interpretado também como o

reconhecimento de que a evangelização é uma via de mão dupla e tanto um

como outro, missionário e “evangelizado”, podem aprender e descobrir coisas

novas nesse encontro. Aqui, percebe-se que há um duplo sentido na

evangelização: ao ensinar, aprende; ao proclamar, descobre algo novo ou

perdido. Evidentemente, esse processo exige certa abertura e humildade para

reconhecer que não se tem toda a verdade.

Wesley demonstra uma visão idealizada do indígena americano. Ao

encontrar-se com eles, frustra-se ao perceber a resistência desse povo à

mensagem cristã. Segundo Heitzenrater, os primeiros contatos de Wesley com

os índios acontece ainda no navio. Já nesse encontro, ele começou a perceber

os erros das concepções nas quais fundamentava sua missão e rapidamente

muda de idéia quanto à sua crença de que os “nobres selvagens” não tivessem

opiniões preconcebidas e fossem

63 HEITZENRATER, Richard P., Wesley e o povo chamado metodista. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1996, p. 58.

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44

“um grupo interessado, pronto como criancinhas, ávido e preparado

para receber o evangelho em sua simplicidade”. Embora Tomochichi,

um chefe dos Creeks, expressasse sua esperança de ouvir a

“Grande Palavra” (se os homens sábios de sua nação o

permitissem), ele preveniu Wesley e seus amigos que os

comerciantes franceses, espanhóis e ingleses haviam causado

grande confusão e haviam feito com que muitas pessoas se

negassem a ouvir a palavra.64

Aqui, percebem-se os problemas da identificação do cristianismo com a

exploração e morte produzidas pelo homem branco. O cristão, a despeito da

mensagem de libertação e vida originária do cristianismo e ainda presente na

pregação, traz consigo – algumas vezes, involuntariamente – a morte, a

destruição e a escravização.

De acordo com Duncan A. Reily65, o mito do “nobre selvagem” influenciou

a visão missionária de Wesley e foi sua motivação. Esse mito, melhor descrito

por Rousseau, já estava presente nas primeiras impressões que os europeus

tiveram dos índios, tanto na América do Sul, quanto na do Norte, embora não

fossem as únicas. A descrição feita por Pero Vaz de Caminha é um sinal disso,

segundo Reily.

5.2. No Brasil

Ao analisar o histórico do envolvimento dos protestantes no Brasil, em

particular dos metodistas, com os indígenas, percebe-se uma demora para que

as questões relativas a essas pessoas tivessem a atenção da Igreja.66

A Igreja Metodista chegou ao Brasil em 1836. Essa primeira tentativa

de inserção durou até 1841 e logo foi interrompida. Em 1867 fixou-se no Brasil

com a chegada de Junius Eastham Newman, que veio acompanhando

imigrantes oriundos do Sul dos Estados Unidos e que se fixaram em Santa

64 Ibidem, p. 61. 65 REILY, Duncan Alexander. Uma pequena história do contato evangélico com os povos indígenas. In: KEMPER, Thomas. & SILVA, Jaider Batista da. Repensando a Evangelização junto aos povos indígenas. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1994, p. 89. 66 Cf. Colégio Episcopal da Igreja Metodista. Diretrizes pastorais para a Ação Missionária Indigenista. São Paulo: Editora Cedro, 1999, pp. 7-11.

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45

Bárbara D’Oeste, interior do Estado de São Paulo.67 Entretanto, não houve até

1928 nenhuma iniciativa missionária que envolvesse os indígenas. Neste ano,

foi organizada a “Associação de Catequese” apoiada pelas Igrejas

Presbiteriana Independente, Presbiteriana do Brasil e Metodista. A essa

associação deu-se o nome de Missão Caiuá

Segundo Reily68, o primeiro a pensar na evangelização dos índios pelos

protestantes foi Regente Feijó, que tinha pretensões de reformar a Igreja

Católica brasileira tornando-a uma Igreja nacional, a exemplo da Igreja da

Inglaterra. Dentre suas propostas, estava a de convidar os Irmãos Morávios

para evangelizar os índios do Brasil. Feijó tinha conhecimento do trabalho que

eles realizavam na América Central, Guiana Francesa e em outros lugares e

queria que o mesmo acontecesse aqui. Sua proposta não encontrou aceitação.

Mais tarde, segundo Reily, o Marechal Rondon também desafiou os

protestantes, especialmente a trabalhar entre os índios Kaiowá.69 Esse desafio

serviu de motivação aos protestantes, que já pensavam em iniciar trabalho

missionário entre os índios, e surgiu a “Missão Caiuá”, reunindo presbiterianos

e metodistas.

Segundo Jonas Furtado do Nascimento70, que fez um estudo da Missão

Caiuá e da presença de missionários protestantes entre os Kaiowá e Terena,

os missionários que iniciaram o trabalho adotaram um modelo protecionista de

cristianização, acompanhando o tipo de ação do SPI. Segundo o autor,

A atuação missionária visa integrá-lo na civilização, mesmo que

implique na desvalorização de sua cultura. O projeto missionário

protestante na atuação da Missão Caiuá junto aos índios Guarani-

Kaiowá e Terena no Mato Grosso do Sul através de programas nas

áreas de educação (construção e manutenção de escolas), saúde

(construção de hospital) e agricultura, eram considerados meios para

se conseguir a conversão dos índios. Nesse sentido, o índio é

67 Cf. REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984, p. 80-88. 68 Ibidem, p. 102. 69 Ibidem, p. 103 70 NASCIMENTO, Jonas Furtado do. Missão Caiuá: um estudo da ação missionária protestante entre os índios Guarani, Kaiowá e Terena. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2005, dissertação de mestrado.

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sempre visto como elemento passivo e não se reconhece a

identidade e autonomia indígena.71

Na avaliação de Nascimento, a atuação do Governo brasileiro através do

Serviço de Proteção aos Índios – SPI, criado em 1910 pelo Marechal Rondon e

Fundação Nacional do Índio – FUNAI, órgão que o sucedeu em 1967,

desenvolveu “suas ações baseados no propósito de neutralizar os povos

indígenas, tidos como impedimentos para as frentes de expansão do país.

Assim, em geral, estes órgãos estiveram estreitamente vinculados a interesses

não-indígenas ou mesmo anti-indígenas.”72

É no contexto de atuação de Rondon que surge a Missão Caiuá. A

iniciativa da criação de uma Missão entre os índios no sul de Mato Grosso foi

do missionário norte-americano Albert Sidney Maxwell e sua esposa Mabel

Davis Maxwell, que chegam Brasil em 1915. Depois de um período de cerca de

um ano na região Norte, Maxwell decidiu começar seu trabalho na região de

Dourados, por considerar os índios em piores condições do que os outros por

onde havia passado.73 Nessa viagem, ele acompanha a caravana de Rondon.74

Para concretizar seu objetivo, Maxwell buscou apoio institucional na

Comissão Brasileira de Cooperação das Igrejas Evangélicas. Essa Comissão

foi resultado do Congresso do Panamá – 1916 que, por sua vez, foi um

desdobramento da Conferência Missionária de Edimburgo, na Escócia em

1910, evento que representa o início formal do movimento ecumênico.

Como desdobramento de “Edimburgo 1910”, que não teve representantes

da América Latina, realizou-se, em 1916, no Panamá um congresso com uma

estrutura idêntica à conferência de Edimburgo, mas que limitou o seu escopo à

América Latina. Participaram, principalmente, latinos e missionários

trabalhando no continente, embora fosse presidido pelos missionários norte-

americanos Robert E. Speer e John R. Mott, sendo o inglês o idioma oficial do

71 Ibidem, p. 12. 72 Ibidem p. 70. 73 Ibidem, p.76. 74 Ibidem, p.76.

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47

conclave.75 A Comissão Brasileira de Cooperação das Igrejas Evangélicas

iniciou suas atividades em 1920 e chegou a abranger 19 entidades entre

Igrejas, missões e organizações evangélicas cooperativas. Dela participaram

as Igrejas: Episcopal, Presbiteriana, Presbiteriana Independente, Metodista e

Congregacional.

O tema da missão aos índios aparece, pela primeira vez, no relatório das

atividades da Comissão de Cooperação referente aos anos 1927 e 1928: “A

nossa sub-comissão de missões aos índios elaborou um projeto de estatutos

de uma associação de evangelização dos índios, em vias de formação, e na

qual estão interessadas a West Brazil Mission da igreja presbiteriana [...] e

várias outras corporações, e com vasto programa cooperativo.”76 Segundo,

Reily, a Missão Caiuá foi a concretização desse planejamento.

A Missão Caiuá foi criada no dia 28 de agosto de 1928, em São Paulo, e

contou com a participação da East Brazil Mission, agência missionária da Igreja

Presbiteriana dos Estados Unidos da América do Norte, representada por

Albert Maxwell, pastor; a Igreja Presbiteriana do Brasil, através do agrônomo

João José da Silva; da Igreja Presbiteriana Independente, com o professor

Esthon Marques e da Igreja Metodista, através do médico Nelson de Araújo.

Essa configuração da equipe de trabalho com um pastor, um agrônomo, um

médico e um professor indica os objetivos da Missão: oferecer aos índios a

pregação do Evangelho, assistência agrícola, assistência médica e escola.

Desses, a evangelização se destaca como o principal, a razão de ser da

Missão.

Katya Vietta e Antonio Brand destacam a importância do hospital para os

índios da região. Segundo eles, “um dos únicos locais de atendimento a esse

segmento da população, sem qualquer preconceito quanto ao internamento e à

75 REILY - 1984, p. 247 e 248. 76 Ibidem, p. 255.

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assistência. A assistência à saúde sempre atraiu muitos índios para o conjunto

dos trabalhos realizados pela missão, no qual se inclui a evangelização.”77

Segundo Carlos Barros Gonçalves, a presença do engenheiro agrônomo

é importante tanto para a produção de consumo dos missionários, quanto para

a natureza da obra missionária. Para facilitar a evangelização e catequese, era

preciso que os índios se fixassem na terra. Assim, “a função do missionário

João José da Silva seria então a de ensinar aos índios não só o cultivo

científico da terra e o manejo dos instrumentos, mas também as vantagens e a

garantia da vida agrícola em contraste com as misérias do nomadismo.”78

A escola, por sua vez, é fundamental para a tarefa evangelizadora. Como

caracterizado por Antonio Gouvêa Mendonça79, o protestantismo é uma

“religião do livro”, fundamentada na leitura e interpretação dos textos sagrados.

Parte central do culto protestante é ocupada pela Bíblia e, na liturgia, os livros

de cânticos têm lugar de destaque.

5.3. A participação metodista na missão Caiuá segundo o Expositor Cristão

O Expositor Cristão, na edição de 8 de agosto de 1928, traz reportagem

sobre o início da Missão Caiuá80. Nessa reportagem, descreve como a Igreja

Metodista decidiu participar da missão através do envio do médico, uma vez

que já havia o agrônomo e o professor.

A Conferência Central da Egreja Methodista Episcopal do Sul, no

Brasil, na sua primeira sessão, realizada em São Paulo, em outubro

do anno passado (1927), recomendou que a Egreja Methodista

77 VIETTA, Katya; BRAND, Antonio. Missões evangélicas e Igrejas neopentecostais entre os Kaiwá e os Guarani em Mato Grosso do Sul In: Transformando os deuses: Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Ed. UNICAMP, 2004, p. 228. 78 BARROS, Carlos Gonçalves. O movimento ecumênico no Brasil e o projeto missionário em Mato Grosso in: Anais do II Encontro Nacional do GT História das Religiões e das Religiosidades. Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH, Maringá: v. 1, nº 3, 2009, p. 16. 79 MENDONÇA, Antonio Gouvêa Mendonça. O Celeste Porvir – a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1995, p. 66. 80 Um appello à alma methodista brasileira. O Expositor Christão,São Paulo, p. 1, 8 de agosto de 1928.

Page 49: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

49

entrasse em cooperação com as demais egrejas evangélicas no

plano de evangelização dos índios Gaynazes, de Matto-Grosso, e

que essa cooperação, preferidamente, se traduzisse em facto,

enviando a Egreja Methodista o missionário-médico que a obra

requer.81

Da Igreja Metodista de Juiz de Fora, apresentou-se o Dr. Nelson de

Araújo, médico recém-formado. Membros da Igreja se organizaram e cotizaram

os custos da viagem do missionário-médico para conhecer o local da Missão

na companhia do Rev. Maxwell, que aconteceu entre maio e junho de 1928.

Um desafio é feito ao final da reportagem para que haja participação das

Igrejas Metodistas no sustento missionário:

Levantar-se-á então o methodismo brasileiro e sustentará o seu

primeiro missionário? Como o fará? Que organização assumirá a

responsabilidade de seu sustento? Ainda não está organizada a

Junta Nacional de Missões; a quem competirá, pois, assumir a

responsabilidade e em nome de que organização methodista irá à

selva de Matto-Grosso o Dr. Nelson Araújo?82

Na edição seguinte, de 15 de agosto de 1928, o jornal publica nova

reportagem na primeira página do jornal, agora com o título “Nossa Missão aos

Bugres83”. Nela, evidencia-se a fragilidade organizacional da Igreja Metodista.

Logo depois foi o appello do Rev.Maxwell trazido à barra da

Conferência Central do Brasil, a favor dos bugres. A Conferência

apanhada de surpresa limitou-se a uma recomendação favorável que

ficaria sepultada em suas actas, como um silencioso protesto contra

a nossa desarticulação ecclesiástica, se a Providência, proctetora,

81 Ibidem, p. 1. 82 Ibidem, p. 2. 83 “Bugre” é visto, hoje, como um termo depreciativo e ofensivo aos índios. Segundo QUEIROZ, Antônio Carlos. Politicamente correto e direitos humanos, Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004, p. 7. “Bugre – Termo depreciativo do indivíduo de origem indígena, tido como selvagem, rude. Parece que a expressão foi utilizada pela primeira vez no Brasil em 1555, por oficiais da marinha francesa, que estabeleceram numa ilha da Baía da Guanabara a sede da chamada “França Antártica”, para designar os tamoios, um subgrupo do povo Tupinambá, que dominavam grande extensão do litoral brasileiro, desde o norte de São Paulo até Cabo Frio e o Vale do Paraíba, no Rio de Janeiro. Tinha o sentido de indivíduo rude, selvagem, primário, não-civilizado, não-cristão, herético. Segundo o dicionário Houaiss, a origem da palavra é o nome que os franceses davam, em 1172, a uma seita religiosa de búlgaros, cujos membros eram considerados “heréticos” e “sodomitas”.”

Page 50: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

50

não viesse apontar-nos a direção [...] É preciso confessar-se que, no

momento, nada se pode esperar da Egreja-organismo [...] nosso

mecanismo ecclesiástico está em laborioso concerto.84

Faz, então, um apelo ao movimento leigo na Igreja Metodista: “Nossas

vistas voltam-se, porém, para a Egreja-espírito, viva, forte, extuante, que é a

nossa [...] Seria possível permittirmos que o nosso mecanismo ecclesiástico em

desarranjo se torne culpado do fracasso dos mais bellos surtos de iniciativa da

Egreja Brasileira?”

Nas edições seguintes do jornal, publicado semanalmente, volta-se falar

da Missão sempre com destaque na primeira página, enfatizando a importância

do trabalho, destacando as figuras dos missionários Rev. Maxwell e Dr. Nelson

Araújo, especialmente, e apelando para a cooperação da Igreja Metodista com

recursos financeiros.

A criação Missão Caiuá ganha destaque no Expositor Cristão de 5 de

setembro de 1928:

Vingou, finalmente, o plano que Deus traçou no coração do Rev.

Maxwell. A ‘Associação Evangélica de Catechese dos Índios’ está

definitivamente criada em São Paulo, no dia 28 de agosto de 1928.

(...)“Estiveram presentes à sessão inicial o dr. Benjamin H. Hunnicutt

e rev. A.S. Maxwell, representando a East Brazil Mission, a Egreja

Presbyteriana dos Estados Unidos, a Comimssão Brasileira de

Cooperação e a Federação de Escola Evangélicas; o rev.

Epaminondas de Moura e dr. E. Escobar Junior, pela Associação da

Egreja Methodista; drs. Nelson de Araújo e rev.C. L. Smith, da Egreja

Methodista; rev. Alfredo Borges Teixeira, da Egreja Presbyteriana

Independente; rev. Salomão Ferraz, da Egreja Episcopal; Kamel Kuri,

da Egreja Presbyteriana e Joaquim da Silveira Bueno, da Egreja

Baptista.85

O texto destaca que nem todos os presentes puderam inscrever os

nomes das entidades que representavam na lista de associados por julgarem

não ter autorização para isso. Decidiu-se, também, que apenas corporações

84 Nossa Missão aos Bugres. O Expositor Christão, São Paulo: 15 de agosto de 1928, p.1. 85 O Expositor Christão, São Paulo: 5 de setembro de 1928, p. 1.

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legalmente organizadas poderiam ser admitidas como associadas para que a

nova sociedade missionária tivesse cunho legal. Para isso, também, ela foi

constituída como uma entidade jurídica própria. “Inscreveram-se como sócios

organizadores a East Brazil Mission, a Egreja Presbyteriana dos Estados

Unidos, a Commissão Brasileira de Cooperação, a Federação das Escolas

Evangélicas e a Associação da Egreja Methodista.”86

Para a diretoria da Missão foram escolhidos: presidente: Elias Escobar

Junior (redator do Expositor Cristão na época)87; secretário-executivo: Dr.

Benjamin Hunnicut e tesoureiro: Rev. William Kerr. A partir dessa data,

Expositor Cristão publica, em todas as suas edições, relatório das contribuições

recebidas para a Missão aos Índios até a edição de 23 de janeiro de 1929.

Em 15 de maio de 1929, novamente na primeira página, o jornal publica

carta do Dr. Nelson Araújo relatando a longa viagem feita até a região de

Dourados, na época pertencente ao município de Ponta Porã. Destaca as

dificuldades da viagem e a receptividade do povo de Dourados. Sugere a

criação de um espaço no jornal com o título: “A Missão Evangélica Cayuás está

precisando de ... Quem quer auxiliá-la?” Aqui, refere-se á missão com o nome

de Missão Cayuás. Relata, também, que iniciaram uma Escola Dominical que

já contou com a participação de alguns visitantes de Dourados, o que

demonstra o caráter evangelístico da obra. A partir desta carta, envia

frequentemente notícias para serem publicadas no jornal.

A participação metodista na Missão Caiuá vai até o ano de 1946. Não há

um registro preciso da saída da Igreja Metodista da Missão. Nascimento cita

uma carta da Junta Geral de Missões da Igreja Metodista em que se declara

disposta a assumir a responsabilidade total do trabalho, alegando que era a

única que estava fazendo a parte que lhe competia como cooperante. A

Assembléia, no entanto, resolveu que não iria dissolver a sociedade.88 Num

histórico da participação metodista no trabalho com os índios89, elaborado pelo

86 Ibidem, p.1. 87 Elias Escobar Júnior foi o redator de “O Expositor Christão” até o 06 de novembro de 1929, quando assumiu Guaracy Silveira. Talvez, por essa razão, seja dado grande destaque à Missão sempre nas primeiras páginas do jornal. 88 NASCIMENTO – 2005, p. 126 89 IGREJA METODISTA – COLÉGIO EPISCOPAL – 1999, p. 8.

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Colégio Episcopal da Igreja Metodista, há apenas uma frase sobre essa saída:

“Em 1946 a Igreja Metodista se retirou oficialmente da Missão.” Reily90 afirma

que a saída se deu por causa de desentendimentos com Augusto Schwab,

então Secretário Geral de Missões da Igreja Metodista, mas, não esclarece

quais seriam os motivos desse desentendimento. Apesar da saída da Igreja

Metodista da Missão, o médico Nelson de Araújo permanece ligado ao

trabalho.

A falta de informação sobre a retirada da Igreja Metodista no Expositor

Cristão contrasta com a grande publicidade e destaque que se deu no início. O

que se percebe é que, aos poucos, o tema foi perdendo espaço no jornal. A

questão dos índios aparece apenas na reportagem sobre o 5º Concílio Geral

da Igreja Metodista do Brasil, com uma breve menção à missão entre os índios:

“A Junta Geral de Missões recomendou, e o plenário aprovou, que iniciemos

nova Missão entre os índios e é bem provável que dentro de pouco esse

trabalho seja iniciado.” 91

Destacamos aqui a Missão Caiuá em razão da participação metodista em

dado momento (1928 a 1946) e da proximidade com Scilla Franco. A Missão

Tapeporã, nome dado por Scilla Franco ao trabalho que inicia entre os índios,

está inserida no mesmo espaço territorial da Missão Caiuá. Embora não haja

ligação institucional entre elas, a proximidade inevitavelmente leva a influências

e, também, oposição.

Scilla Franco admite as diferenças. Em entrevista concedida ao Jornal

Contexto92 na cidade de Campinas, por ocasião de um encontro do Grupo de

Trabalho Indigenista, do qual era coordenador, faz críticas ao trabalho

desenvolvido na Missão Caiuá, destacando como positivas as ações na área

de saúde, mas, apontando defeitos, em sua visão, nas outras áreas,

principalmente na evangelização e na educação.

Além da participação na missão Caiuá, por breve tempo, os metodistas

tiveram contatos com os índios em Dourados através do casal Áurea e

90 REILY – 1994, p. 103. 91 Expositor Cristão. São Paulo: 28 de fevereiro de 1946, p. 2. 92 Jornal Contexto, ano 1, nº 5. Campinas: abril de 1984, p. 6 e 7. Entrevista concedida a João Batista Nunes.

Page 53: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

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Francisco Brianezi, que foi pastor em Dourados e Ponta Porã. No Paraná,

durante um curto tempo entre os Kaingang em Laranjeiras do Sul, com o pastor

Geraldo Esteves. Ambas as ações foram pontuais e curtas. A conclusão de

Reily é que “tradicionalmente, os protestantes que trabalham no Brasil têm

dado pouca atenção ao trabalho indígena. Isso é o caso de nossa Igreja

(metodista) e parece ser o caso das Igrejas em geral.”93

Além da presença metodista entre os índios da região de Dourados,

outras ações, depois disso, foram sendo implementadas pela Igreja em

diversas partes do país. Ações essas marcadas pela preocupação com o

serviço e a solidariedade. Não houve uma preocupação em se fazer adeptos

para o metodismo. Essa forma de alcançar os índios contrasta com a ênfase

frequentemente dada no crescimento numérico da Igreja.

93 REILY – 1994, p. 107.

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CAPÍTULO II

SENSIBILIDADE, COMPAIXÃO E DOAÇÃO: A VIDA

E O MINISTÉRIO DE SCILLA FRANCO ENTRE OS

ÍNDIOS TERENA E KAIOWÁ

No capítulo anterior, descreveu-se os principais elementos e

acontecimentos que fizeram parte de um processo de ocupação e

desenvolvimento econômico da região de Dourados. É lá que se dá a vocação

de Scilla Franco para o trabalho missionário entre os índios Kaiowá e Terena.

Todavia, não é o primeiro. Antes dele, já havia missionários protestantes em

Dourados. Portanto, a prática missionária de Scilla Franco não aconteceu

descontextualizada. Faz parte de um contexto, de um processo, de uma

tradição protestante e metodista anterior e simultânea a ele. A ação missionária

de Scilla Franco deve ser vista a partir dessa tradição que o precede e dentro

do contexto particular o que o cerca: a reserva indígena de Dourados.

Neste capítulo, apresenta-se a trajetória pessoal de Scilla Franco, sua

formação familiar, religiosa e profissional, o desenvolvimento de sua vocação

pastoral e as circunstâncias que o levaram a desenvolver um trabalho de

assistência aos índios Kaiowá e Terena em Dourados. Para contextualizar sua

atuação, descreve-se primeiro as questões que o cercam na década de 1970.

Tem-se como pano de fundo, na década de 1970, o desenvolvimento da

Teologia da Libertação, cuja preocupação maior está na identificação do pobre

como prioridade no Reino de Deus. Scilla Franco mostra-se, em alguns de

seus textos, crítico da Teologia da Libertação, particularmente, do discurso

desvinculado da prática. Para ele, isso é fundamental: os discursos devem vir

acompanhados de ações concretas. É um princípio a partir do qual faz uma

crítica das diversas tendências teológico-pastorais que havia na Igreja

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Metodista. Mas, ao mesmo tempo, é possível perceber identificação e

reconhecimento de que não é possível o exercício da fé sem ações que

alcancem os pobres. E, ao alcançá-los, sua preocupação maior está em

amenizar os efeitos da fome e da miséria.

Na década de 1970, cresce a Teologia da Libertação, mas, também, se

afirma fortemente o fundamentalismo evangélico. É outra forma de reagir ao

momento político e social que vive o Brasil. O país está sob o domínio da

ditadura militar. Liberdades são limitadas. Há forte censura e repressão.

Grupos de esquerda, fora e dentro das Igrejas, são vistos com desconfiança e

reprimidos. Líderes religiosos, leigos e clérigos, são presos e exilados.

A Igreja Metodista, como outras, transita entre atitudes de aprovação,

resistência e omissão diante das ações do governo militar. Embora o que

prevaleça seja o apoio. Leonildo Silveira Campos, a partir de uma análise de

artigos publicados nos principais jornais evangélicos brasileiros, descreve como

foi a postura das Igrejas evangélicas em reação ao Golpe de 1964 e a ditadura

militar.94 De modo geral, segundo ele, houve alinhamento ideológico dos

discursos evangélicos com o governo ditatorial. O inimigo a ser combatido, o

comunismo.

Conforme Campos,

Os evangélicos somente passaram a oferecer algumas tímidas

críticas ao regime militar durante a “abertura política” anunciada

desde Geisel, mas cujo controle acabou escapando das mãos dos

militares durante o governo Figueiredo. A campanha pela anistia

ofereceu espaço para material contrário ao regime e à Lei de

Segurança Nacional nos jornais e revistas. Mesmo assim,

pouquíssimos jornais evangélicos se aproveitaram desse momento

final de enfraquecimento da ditadura.95

Essa postura “tímida” pode ser vista nos textos de Scilla Franco. Ele

aponta alguns problemas da ditadura militar, mas, está mais interessado em

94 CAMPOS, Leonildo Silveira. Religião, prática política e discurso de evangélicos brasileiros no período republicano. In: SILVA, Eliane M., BELLOTTI, Karina k.; CAMPOS, Leonildo S. (org.). Religião e Sociedade na América Latina. São Bernardo do Campo, UMESP, 2010, p. 149-183. 95 Ibidem, p. 174.

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denunciar os erros na Igreja Metodista, que precisa rever suas práticas e

organização para ser presença profética no momento pelo qual passa o Brasil.

Em um de seus textos, Scilla Franco traça um paralelo entre a Igreja

Metodista e o Governo:

O governo gasta menos em agricultura e saúde, que devia ser a

meta prioritária num país agrícola – e nós gastamos apenas 2% em

evangelização, que é o objetivo da Igreja no mundo. O governo lança

impostos – e nós, orçamentos. O governo “quebra o galho” dos

ministros, fazendo rodízio – e nós temos ministros que nunca caem

do galho. E se alguém se atreve a “chacoalhar” o galho, o máximo

que acontece é levar umas bolotas na cabeça e ser expulso de sua

sombra. O governo distribui mal as rendas – e nós nem chegamos a

distribuí-las. O governo faz desconto de renda na fonte – e nós

consumimos as rendas na fonte. O governo nomeia militares para

cargos civis – e nós, pastores para cargos leigos. O governo

concentra muitos recursos num só lugar – e nós, pastores.96

Em “Igreja dos coronéis”, lembra de um artigo com o mesmo título que

havia lido no passado e que, segundo ele, era exagerado para a ocasião,

porque havia democracia na Igreja Metodista. Agora, entretanto, a idéia faz

todo sentido, pois “a partir de 1968 a Igreja passou a copiar o governo no seu

aspecto negativo”.97 Enxerga na maneira como a Igreja passou a organizar-se,

através de um Conselho Geral em detrimento das “Conferências Anuais”, uma

cópia da legislação de exceção do país. “Digo copiavam, porque a nossa, por

coincidência, tem um ato institucional, ato complementar, intervenção, usurpa o

concílio e concentra o poder nas mãos de meia dúzia.”98

Embora Scilla Franco não faça críticas diretas ao governo militar, toca em

alguns assuntos nevrálgicos para a época como, por exemplo, a censura: “Eles

(os caraí) que tanto falam em liberdade possuem uma coisa chamada censura.

É ela que ordena o que a gente pode dizer, e, outras vezes, somos obrigados a

96 FRANCO, Scilla. Que tens, dormente? Expositor Cristão, São Paulo: 1ª quinzena de junho de 1979, p.10. 97 FRANCO, Scilla. Igreja dos coronéis. Expositor Cristão. São Paulo, 1ª quinzena de julho de 1980, p.12. 98 Ibidem, p. 12.

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ouvir enjoativos discursos oficiais, embora saibamos, não sejam a expressão

da verdade.”99

Outro assunto que aborda, em tom de crítica, é a questão da terra: “quem

rouba nossas terras recebe o nome de ‘empresário’, ‘pecuarista’, ‘agricultor’ ou

‘homem de negócios’... Mas, se nós retomamos as nossas terras, chamam-nos

de ‘agitadores’, ‘posseiros’ e até de ‘comunistas...’”.100

Emite, também, sua opinião sobre a abertura política101 prometida pelo

governo militar, demonstrando esperança de tempos melhores, ainda que em

passos lentos: “As chamadas aberturas, conquanto no momento sejam apenas

réstias de luz, já permitem ver alguma coisa, apesar de que nossas pupilas

dilatadas pelas trevas das restrições democráticas não podem encarar de

frente a aurora que desponta preguiçosa e restrita.”102

Neste contexto, Claudia Romano de Sant’Ana103 traça um paralelo entre

Luiz Inácio Lula da Silva e Scilla Franco demonstrando como Scilla Franco é

visto por parte da Igreja, particularmente, pela juventude. Descreve a trajetória

desses dois líderes, um sindicalista e um pastor, destacando as semelhanças:

ambos vinham do povo, aprenderam com a vida – sem muitas oportunidades

de estudo formal, tiveram aceitação entre a juventude e assumiram a defesa de

pessoas marginalizadas – operários e índios –, dando voz à suas aspirações e

angústias.

Diz a redatora do jornal Expositor Cristão:

Ambos possuem o dom da palavra certa, no momento necessário.

Conhecem a fundo a causa que abraçaram: índios e operários.

Surgiram depois de crises. O primeiro, tornou-se conhecido a partir

de 1977 quando, em contato com a juventude, em congressos, e a

seguir, pelo trabalho apresentado junto aos indígenas. O seus apelos

99 FRANCO, Scilla. Che Ahai Te Tama. Expositor Cristão, São Paulo,1ª quinzena de abril de 1979, p. 16. 100 Ibidem. 101 “Com a posse de Geisel, em 15 de março de 1974, o general Golbery do Couto e Silva voltou ao poder. Ambos, Golbery e Geisel, articularam um projeto de abertura ‘lenta,gradual e segura” rumo a uma indefinida ‘democracia relativa’” (BUENO – 2010, p. 397) Essa abertura concretizou no governo João Baptista Figueiredo, no início dos anos 80. 102 FRANCO, Scilla. Reflexões sobre o povo Kaiowá. Boletim do GTME nº1. Cadernos do CEDI, nº 5, 1980. 103 SANT’ANA, Cláudia Romano. O pastor e o operário. Expositor Cristão, 2ª quinzena p. 4.

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emocionaram pessoas de todas as partes do Brasil (e exterior) e os

índios acreditaram nele, desde os primeiros contatos na Missão em

Dourados. O segundo, passou a ser mais focalizado, depois da greve

no início de 1979. Suas declarações são debatidas por políticos e

pelo povo.104

1. Dados biográficos

1.1. Família e formação

Scilla Franco nasceu em Rio das Pedras, pequena cidade do interior de

São Paulo, na região de Piracicaba, em 23 de dezembro de 1930. Era filho de

João Batista Franco e Maria da Glória Carvalho Franco, que faleceu quando

ele tinha sete anos de idade. Foi o sétimo filho de uma família de onze irmãos.

Seu pai, após a morte de sua mãe, casou-se com Lourdes Aníbal Franco, que

assumiu o papel de mãe de Scilla e de seus irmãos.

Passou a infância e a adolescência no campo na região de Piracicaba,

interior de São Paulo. Essa experiência lhe conferiu apego às coisas da terra.

Mais tarde, em seu trabalho missionário, essa será uma característica

importante no desenvolvimento de suas ações e na identificação primeiro com

colonos e, depois, com os índios.

Quando perguntado sobre o impacto de deixar a “sociedade dos brancos”

e entrar na cultura indígena, Scilla Franco afirma: “Transferir-me para o

trabalho indígena não foi muito difícil devido à minha condição de homem de

interior, porque a princípio a minha única preocupação era a roça. Difícil se

tornou quando comecei a entender, a amar o índio e sua cultura, voltar à

sociedade branca.”105 Ou seja, sua formação no campo foi determinante para o

seu trabalho missionário. Essas raízes rurais de Scilla Franco são, também,

importantes na definição de seu jeito de falar, escrever e interpretar as

realidades à sua volta.

Segundo José Carlos de Souza,

104 Ibidem, p. 4. 105 Uma vida dedicada à missão – entrevista publicada no Boletim do GTME, nº5, 1984.

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Imagens singelas, figuras do cotidiano, comparações e histórias

constituíam os fragmentos de um discurso capaz de impressionar a

todos pela clareza, bom senso, simplicidade e, ao mesmo tempo,

inegável veracidade. Assuntos sérios e temas extremamente graves

eram tratados com humor e, não raras vezes, com ironia. Longe da

polidez, hipócrita dos que se conformam às convenções sociais, o

seu linguajar era objetivo e concreto, indo diretamente ao coração

das questões analisadas. Sem a especulação filosófica ou os

intricados exercícios mentais assimiláveis apenas por uma minoria

de supostos intelectuais, a sua palavra cativava os mais diversos

auditórios e revelava uma sabedoria profundamente arraigada no

povo. Talvez por isso, não procurava tanto persuadir as pessoas a

mudar de idéias quanto levá-Ias à mudança de atitudes e de

comportamento: uma verdadeira metanóia.106

Na adolescência e juventude vive em Campinas, uma cidade grande e

com mais possibilidades de estudo e trabalho. Participa ativamente da Igreja

Metodista assumindo funções de liderança nos grupos locais de mocidade na

Igreja Metodista Central. Nesse envolvimento é que vai se formando sua

consciência vocacional. Em Campinas, também, pôde completar sua formação

escolar, cursando colegial (Ensino Médio) e realizando cursos técnicos como o

de ajustador mecânico e eletrônica.

Com 14 anos é admitido como funcionário no Instituto Agronômico de

Campinas107, um órgão do governo do Estado de São Paulo, numa fazenda

experimental no distrito de Tupi, pertencente ao município de Piracicaba. Ainda

como funcionário público no Instituto Agronômico, é transferido para a Fazenda

Santa Elízia, em Campinas.

106 SOUZA, José Carlos. Scilla Franco: uma vida a serviço do Reino in: Minha Prece – Coletânea de textos missionários e indígenas do Bispo Scilla Franco. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1992, p. 12. 107 O Instituto Agronômico de Campinas (IAC) é instituto de pesquisa da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, e tem sua sede no município de Campinas. Foi fundado em 1887 pelo Imperador D. Pedro II, tendo recebido a denominação de Estação Agronômica de Campinas. Em 1892 passou para a administração do Governo do Estado de São Paulo. (fonte: página oficial do Instituto Agronômico de Campinas - http://iac.weblevel.com.br/index.php, acesso em: 15 de setembro de 2010.

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No final de 1952, descobre que tem hanseníase e é afastado do trabalho,

vindo, posteriormente, a aposentar-se. Por causa da doença, é internado numa

instituição que acolhia e tratava os portadores de hanseníase, a colônia-asilo

de Pirapitingui108, localizada na cidade de Itu, no km 115 da Rodovia Dr.

Waldomiro Camargo Correia, que liga a cidade à Sorocaba, no interior de São

Paulo. Neste local é que conhece Concília Januário, internada junto com mais

dois irmãos, todos portadores de hanseníase.

A colônia de Pirapitingui é um lugar de grande sofrimento: além dos

sintomas da doença que estigmatizavam os hansenianos, os internos

experimentam o isolamento e o afastamento da família.109 Apesar do estigma,

preconceito e temores que envolvem a doença, Scilla Franco e Concília

Januário se casam, tendo quatro filhos: Maria da Glória, Márcia Regina, Adolfo

e Priscila, nenhum dos quais desenvolveu hanseníase.

1.2. Vocação Pastoral

Scilla Franco sente-se vocacionado para o ministério pastoral ainda na

adolescência. Descreve como se deu seu chamado em entrevista concedida

108 A Colônia-asilo de Pirapitingui tem o nome hoje de Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes e ocupa um espaço de 330 hectares. As colônias-asilos foram criadas no Brasil de uma Lei Compulsória de 1926 que obrigava as pessoas portadoras da doença a apresentarem-se para a internação e isolamento. Eram construídas fora das cidades. A segregação foi oficialmente recomendada pela 2ª Conferência Mundial da Lepra de Bergem, na Noruega, em 1909. O bacilo Mycobacterium leprae, agente causador da lepra, foi descoberto em 1874 pelo médico norueguês Gerhard Hansen, mas desde a Antiguidade há registros da doença. Até a década de 1980, o isolamento era tido com a única solução para evitar a disseminação da doença, quando se descobriu a cura através do tratamento poliquimioterápico. A partir de então, a doença passou a ser chamada de hanseníase, numa referência ao Dr. Hansen, e o termo lepra, de forte conotação negativa, deixou de ser utilizado. A lei "Compulsória" de 1926 foi revogada em 1962, mas, o próprio paciente não desejava mais a alta. A miséria e o abandono familiar inviabilizavam o retorno à vida social. A hanseníase provoca seqüelas tanto físicas quanto psicológicas. A segregação e a discriminação deixaram marcas profundas, e alguns internos, ainda hoje, sentem-se mais protegidos dentro do hospital. O preconceito fez com que muitos deles tivessem medo de encarar a sociedade, depois de passar tanto tempo confinados. Fonte: Pirapitingui – História de um exílio in: http://www.franciscanos.org.br/v3/noticias/reportagensespeciais/2010/pirapitingui/01.php, acesso em: 15 de setembro de 2010. 109 Sobre esse assunto: AUVRAY, Katia. Cidade dos Esquecidos: A vida dos hansenianos num antigo leprosário do Brasil. Itu, Ottoni Editora, 2005 e ZAPELLA, Mariana; FERREIRA, Lidiane; GAURI, Ligia. Como viveram e ainda vivem os atingidos pela hanseníase, uma doença marcada pelo preconceito, no antigo leprosário do Pirapitingui in: http://marianazapella.yolasite.com/memorias-sitiadas.php, acesso em: 15 de setembro de 2010.

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61

em 1987, logo após sua eleição para o episcopado na Igreja Metodista, a

Percival de Souza110. No ano de 1944, vive uma experiência mística ao retornar

a cavalo da Escola Dominical realizada em um sítio no distrito de Tupi para sua

casa. Afirma ter ouvido uma voz que dizia “você vai ser pastor”. Seus familiares

não deram muito crédito ao relato. Contudo, a partir dessa experiência,

começou a pregar e a dirigir cultos.

Já nessa fase de sua vida, sente certa inclinação para o trabalho social.

Em entrevista concedida a Sarah Frances Bawden, para a revista Flâmula

Juvenil111, e publicada no Expositor Cristão112, relata como surgiu a

preocupação com as pessoas mais pobres como uma ênfase de seu

pastorado:

A minha vocação para o aspecto social do ministério pastoral surgiu

numa visita, juntamente com o Dr. Warwick E. Kerr113, ao sítio dos

Marques, perto de Piracicaba. Fiquei impressionado e até mesmo

empolgado, ao ver aquele cientista de destaque nacional e

internacional, identificando-se com o povo simples e humilde daquela

zona rural, ministrando os seus conhecimentos em agricultura e

compartilhando de sua experiência cristã e deles recebendo

inspiração para a sua vida. Aquela visita me levou a pensar

seriamente sobre a importância do Evangelho integral, o qual dá

ênfase à salvação da totalidade da pessoa humana.114

Percebe-se, portanto, como desde a adolescência vai se desenvolvendo

a consciência vocacional de Scilla Franco e como vão se definindo as ênfases

de seu ministério pastoral e missionário. É significativo que ele faça referência

a experiências vividas na juventude exatamente ao se dirigir a adolescentes e

110 Se alguém aspira ao episcopado, excelente obra almeja .Expositor Cristão, São Paulo: 1ª e 2ª quinzenas de agosto de 1987, pp. 8 e 9. 111 Flâmula Juvenil era uma publicação periódica da Igreja Metodista voltada para os adolescentes. Mais tarde, tornou-se uma revista de estudos para a Escola Dominical. Scilla Franco é frequentemente convidado para falar a jovens e adolescentes em seus congressos e encontros. Esta entrevista é concedida num destes encontros, realizado em Penápolis, SP. 112 Expositor Cristão, São Paulo,1ª quinzena de abril 1977, p. 9. 113 Warwuick Estevam Kerr, nascido em 1922, é um geneticista brasileiro com reconhecimento internacional. Foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e Membro do Conselho Geral da Igreja Metodista. 114 Expositor Cristão, São Paulo:1ª quinzena de abril 1977, p.9.

Page 62: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

62

jovens da Igreja. Acredita que, através delas, possa despertar vocações entre

eles.

Em razão dos poucos recursos financeiros de sua família, Scilla Franco

não pode cursar Teologia, exigência para quem quisesse seguir a carreira

pastoral na Igreja Metodista. E, apesar dessas vivências e da consciência

vocacional experimentadas cedo em sua vida, seu desejo de ser pastor se

concretizou apenas mais tarde, no início da década de 1960, quando ele,

Concília e seus filhos moravam em Porto Feliz, interior de São Paulo.

A vocação de Scilla Franco é reacendida quando, frequentando a Igreja

Presbiteriana de Porto Feliz – não havia Igreja Metodista na cidade –, chega à

Igreja o apelo por um obreiro para um novo trabalho aberto no Paraná. Sente-

se tocado e busca conselho com pastores de sua Igreja de origem, onde

encontra, agora, a oportunidade de formação e atuação pastoral.

Nesta época, na Igreja Metodista havia um programa de estudos voltado

para leigos que, como Scilla Franco, demonstravam ter dons para assumir

funções pastorais. A essa função era dado o nome de “Pastor Suplente”. A

esse programa dava-se o nome de Curso de Provisionado115 e era definido

pela Junta Geral de Educação Cristã da Igreja Metodista. Conciliando seu

trabalho secular como técnico em eletrônica, o cuidado com a família – neste

tempo, o casal Franco tinha três filhos pequenos – e os estudos, Scilla Franco

conclui o programa com êxito.

Em 1963, Scilla Franco é nomeado pastor suplente no VII Concílio

Regional da 5ª Região Eclesiástica e designado para atender a Igreja em

Valparaíso. Como pastor suplente, pastoreou as Igrejas de Valparaíso (1963-

115 Os Cânones da Igreja Metodista aprovados no VIII Concílio Geral em Porto Alegre, RS, assim define a natureza do ministério dos provisionados: “Provisionados são leigos piedosos que tenham dons para evangelizar, pregar, visitar e fazer serviços de caráter pastoral e que, não querendo ou não podendo, por qualquer motivo, dedicar-se ao� ministério, estão, contudo, dispostos a ajudar, sem ônus para a Igreja, os pastores das igrejas em que se acham arrolados, e, excepcionalmente, servir como pastores suplentes" IGREJA METODISTA. Cânones da Igreja Metodista do Brasil 1960. São Paulo: Imprensa Metodista, 1960, p. 81. Há uma série de exigências que o candidato deveria cumprir para receber a certidão de provisionado. Entre elas, cumprir um programa de estudos definido pela Junta Geral de Educação Cristã. Anexo aos Cânones, aparece o currículo estabelecido pela Junta (p. 254-255). Eventualmente, um leigo provisionado poderia servir como pastor auxiliar ou suplente.

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63

1966) e de Álvares Machado (1967-1971). Em 1970, no XIV Concílio Regional

da 5ª Região Eclesiástica, ocorrido em Lins – SP, é eleito presbítero da Igreja

Metodista, depois de cumprir as exigências canônicas da Igreja.116

Em 1972, como presbítero, recebe a nomeação para a Igreja Metodista

em Dourados e a incumbência de supervisionar o Campo Missionário Regional

em Mato Grosso. Em Dourados se dá seu envolvimento com o trabalho de

atendimento a colonos através de um programa chamado Plano Piloto e

financiado pela Igreja Unida do Canadá. Essa experiência é o que lhe serve de

inspiração para iniciar o trabalho com os índios. Possibilita, também, os

recursos financeiros para iniciá-lo.

1.3. Envolvimento com os índios

O envolvimento de Scilla Franco com os índios se deu pela proximidade.

Estão à sua porta e ele não pôde deixar de ver sua miséria e sofrimento. A

visão do “outro” em seu sofrimento o perturba e essa perturbação o leva ao

envolvimento. Sensibiliza-se porque vê o outro como “próximo”.

Frente a frente, pessoa a pessoa é a relação prática de proximidade,

de vizinhança, como pessoas. A experiência da proximidade entre

pessoas como pessoas é que constitui o outro como “próximo”

(próximo, vizinho, alguém), como outro; e não como coisa,

instrumento, mediação.117

Mas, envolvimento não é a única possibilidade de reação à proximidade

com a dor do outro. Outra possibilidade é o afastamento e até o asco. Sentir a

dor do outro ou incomodar-se com ela é uma reação própria do ser humano.

Compaixão, entendida como “sentir a dor do outro” é um sentimento que toda

pessoa tem diante do sofrimento. Entretanto, essa compaixão não se expressa

apenas no ato de fazer o bem, mas também, no fechamento, na repulsa.

Segundo Jung Mo Sung,

116 Os artigos 233 a 240 dos Cânones da Igreja Metodista definem a natureza, os requisitos para admissão e os direitos e deveres dos presbíteros na Igreja Metodista. IGREJA METODISTA. Cânones da Igreja Metodista do Brasil,1965, p. 135 – 137. 117 DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 19.

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64

Quando uma pessoa desvia o olhar para não ver o sofrimento alheio

ou responde de modo agressivo a uma criança pobre que pede um

trocado, ela não está sendo indiferente. Se fosse realmente

indiferente ou insensível, esta pessoa não reagiria fechando o olho

ou desviando o olhar, muito menos sendo agressiva. Estas reações

imediatas, na maioria das vezes inconscientes e/ou não planejadas,

mostram que a pessoa foi tocada. A dor da outra pessoa a incomoda

e ela é incapaz de suportar a visão do sofrimento alheio. Reage. Só

que reage com uma aparente indiferença ou com agressividade,

como uma forma de se defender do “incômodo”, da dor sentida ao

ver o sofrimento alheio. É compaixão.118

Não basta, portanto, ter sensibilidade. É preciso que seja uma

“sensibilidade solidária”. Neste processo, as convicções religiosas podem

ajudar. É o que acontece com Scilla Franco. Ele descreve o drama de não

poder falar do tema “amor” em seus sermões sem que a imagem de um índio

remexendo o lixo de sua casa lhe venha à mente.

Assim ele descreve seu envolvimento com os índios:

Pode-se dizer que foi por acidente. Era um pastor comum, apenas

envolvido com as questões sociais, no caso a organização dos

colonos em cooperativas, quando um dia deparei com um índio

comendo os restos de lixo de minha casa. Diante disto perdi toda a

moral para fazer o que fazia. Ao preparar os sermões, ou ao subir no

púlpito, aquela figura me acompanhava. Comecei tirando dos meus

sermões o tema amor, e finalmente, achei que ou eu fazia alguma

coisa ou nem tinha também como pregar sobre outros assuntos.

Assim, tomei as providências e transferi os recursos dos colonos, já

organizados em cooperativas e financiados pelo Banco do Brasil,

para o índio.119

Para ele, o que faltava para os índios daquela região eram apoio e crédito

para que pudessem ter condições de cultivar sua própria terra e dela tirar seu

sustento. Combate a cultura do paternalismo produzida por anos de

118 SUNG, Jung Mo. Sujeito e sociedades complexas – para repensar os horizontes utópicos. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 159. 119 Uma vida dedicada à missão. Entrevista publicada no Boletim do GTME nº 5, 1984.

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dependência do índio em relação ao branco. Esse paternalismo rouba a

dignidade do índio e favorece a discriminação e o preconceito. Tido por

indolente e preguiçoso, o índio, na verdade, era tão capaz quanto qualquer

outro colono. O paternalismo, ao mesmo tempo, encobre a exploração.

2. O Plano Piloto e a Missão Tapeporã

2.1. Plano Piloto de atendimento a colonos

Scilla Franco chega a Dourados no início de 1972. Como apresentado no

primeiro capítulo deste trabalho, nessa época, Dourados é uma cidade com

quase 180 mil habitantes e muitos índios na periferia120, das tribos Guarani

(Kaiowá e Ñandeva) e Terena.

Havia também muitas famílias que se mudaram para a região vindas do

Nordeste, por causa do plano de incentivo do governo Getulio Vargas. A elas

foi dada a terra, mas não os recursos para financiamento da lavoura e nem a

escritura dessas terras. Esses colonos tornaram-se vítimas de exploração na

região. Sem escritura, não conseguiam financiamento para o plantio. Sem

crédito nos bancos, recorriam a atravessadores que, com juros altos,

monopólio da venda de sementes e a compra da colheita por preços baixos,

impunham sobre esses trabalhadores uma forte carga de exploração.

Scilla Franco aponta que o que sustentava a exploração eram a

ignorância e a miséria. Sem consciência e compreensão das questões que

envolviam a posse da terra e com fome, os colonos pobres eram presa fácil.

Como pastor da Igreja Metodista em Dourados e supervisor da Igreja na região,

envolve-se num projeto de assistência a esses colonos, o Plano Piloto,

financiado pela Igreja Unida do Canadá e iniciado em 1966. Em entrevista

concedida a Sarah Frances Bowden em abril de 1977, ele descreve,

brevemente, o que foi o Plano Piloto:

120 Segundo dados colhidos no site: http://www.geomundo.com.br/mato-grosso-do-sul-50125.htm, acessado em 14 de setembro de 2010. Dourados possui 174.668 em 1970. De acordo com o mesmo site, o município de Dourados tem a maior concentração, em âmbito nacional, de população indígena em áreas urbanas, estimadas em mais de 10.000 pessoas.

Page 66: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

66

Havia em Mato Grosso um Plano Piloto mantido pela Igreja

Metodista, através de uma oferta bem significativa (100 mil dólares

canadenses) da Igreja Unida do Canadá. Os colonos, que não

tinham escritura da terra, ao redor de Glória de Dourados, podiam

fazer empréstimos e comprar sementes, adubos, inseticidas e outros

produtos que lhes davam condições para cultivar a terra e obter

resultados financeiros satisfatórios. O plano foi bem sucedido e os

colonos devolveram o dinheiro que lhes foi emprestado. Agora

continua a existir uma cooperativa, um hospital maternidade em

Glória de Dourados e um colégio em Fátima do Sul, como fruto do

trabalho da equipe do Plano Piloto.121

Scilla Franco entende o Plano Piloto como uma importante ação da

Igreja, cuja missão, também, é atuar em prol de uma sociedade mais justa. Em

1980, o Expositor Cristão publica a palestra proferida por Scilla Franco no

Congresso Nacional de jovens metodistas. Neste texto122, a partir do relato

bíblico de Gênesis 4.1-10, que conta a história de Caim e Abel, ele discute a

omissão da Igreja Metodista em relação à causa dos pobres. Entende serem

“os oprimidos de todos os naipes, especialmente os pobres” o “irmão” a

respeito de quem Deus inquire, como faz com Caim. Ao fazer isso, destaca

como exemplo de “uma oferta mais excelente” (citando a expressão bíblica que

descreve a oferta de Abel, que agradou a Deus) a implantação e o

desenvolvimento do Plano Piloto. A implantação desse projeto acontece num

momento particularmente difícil no Brasil: “na década de 60, debaixo de uma

legislação de exceção, tratar do problema da terra, era uma temeridade, era

ser comunista.”123

O Plano Piloto é uma tentativa por parte da Igreja de responder a uma

situação de injustiça chamada por Scilla Franco de “iniquidade”. “A Igreja ouviu

esse clamor; foi para lá com recursos da Igreja irmã, do Canadá; montou

121 FRANCO, Scilla. Tem hora que dá vontade de abandonar tudo. Expositor Cristão, São Paulo: 1ª quinzena de abril de 1977, p. 9. 122 FRANCO, Scilla. Onde está teu irmão? Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de junho de 1980, pp. 8 e 9. 123 Ibidem, p. 8.

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cooperativas, escolas, hospitais, maternidades, conscientizou o povo – que lá

eles dizem, abriu os olhos.”124

Ao referir-se à exploração a que eram submetidos os colonos daquela

região, Scilla Franco demonstra ter percepção da dimensão social do “pecado”.

Isso é importante porque o distancia de uma visão tradicional no pensamento

evangélico que entende o pecado apenas na dimensão pessoal, com um tom

fortemente moralista, e, ao mesmo tempo, coloca os problemas sociais na

pauta missionária da Igreja. Combater a injustiça é combater o pecado.

Outro exemplo dessa compreensão do pecado numa dimensão social

pode ser visto em trecho de uma mensagem por ocasião do Natal de 1987:

Pediram-me que escrevesse uma mensagem de Natal. (...) Então

pensei no que sempre penso em ocasiões tais: o que representa o

Natal para aqueles que estão fora do sistema de consumo e as

causas sociais que produzem tais fenômenos. Não sendo sociólogo

sou incompetente para comentá-las mas se algum crédito me é dado

no âmbito da religião classificá-la-ia como uma única palavra:

pecado. (...) Ainda esta semana passei por um acampamento dos

chamados Sem-Terra. Não sei se diria uma nova classe ou uma

nova nomenclatura dada aos deserdados e vítimas de um sistema

agrário iníquo.125

O Plano Piloto, entretanto, não conta com o apoio de toda a Igreja. Há

resistência, inclusive por parte de comunidades locais e seus pastores que

julgavam ser mais proveitoso aplicar os recursos na construção e manutenção

dos templos. Algumas pessoas envolvidas com o projeto sofreram ameaça de

morte, como o próprio Scilla. Segundo seu relato, foi “empreitado” para morrer

por duas vezes. Segundo ele, foi salvo graças à intervenção de Áurea

Brianezzi, educadora metodista com grande prestígio na região.126

Os colonos, financiados pelo projeto, começaram a organizar-se em

cooperativas e a conseguir financiamento pelo Banco do Brasil. Isso significou

124 Ibidem, p. 9. 125 Mensagem dos Bispos ao Povo Brasileiro. Expositor Cristão.São Paulo: 1ª e 2ª quinzenas de novembro de 1987. 126 FRANCO, Scilla. Onde está teu irmão? Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de junho de 1980, p.9.

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68

o sucesso do projeto. Essa experiência inspirou Scilla Franco no trabalho com

os índios. Ele conseguiu que os recursos que financiavam os colonos fossem

direcionados para o financiamento de um Plano Piloto voltado para os índios.

2.2. Missão Tapeporã

O trabalho missionário que, mais tarde, recebeu o nome de Missão

Tapeporã, começou com dez famílias de índios Terena. Recebeu, de início, o

nome de “Plano Piloto”, mesmo nome do projeto com os colonos e consistiu na

organização de uma “roça comunitária” cultivada em regime de mutirão. Com o

sucesso da primeira colheita, outros índios quiseram juntar-se ao

empreendimento. Entretanto, para ampliá-lo era preciso mais investimentos e

Scilla Franco foi buscá-los no Conselho Geral da Igreja Metodista e os

conseguiu. Segundo Souza,

A leitura da oração (Minha Prece127 escrita pelo Rev. ScilIa comoveu

a todos os presentes que, unanimemente, decidiram apoiar a

proposta, buscar recursos junto às igrejas cooperantes e, por fim,

enviar o dedicado pastor para ocupar-se integralmente dessa obra.

Nascia a Missão Tapeporã (em tupi, "caminho bom, excelente,

bonito, novo").128

O projeto inicia-se, então, de modo semelhante ao que era feito com os

colonos brancos. Entretanto, só o financiamento para adquirirem sementes e

os suplementos agrícolas não era suficiente. Era necessário ajudá-los a lidar

novamente com a terra, a operar as máquinas e a comercializar o resultado

obtido. Scilla Franco utiliza-se, dessa forma, de sua experiência como homem

vindo do campo e do conhecimento adquirido nos cursos e no trabalho

realizado no passado no Instituto Agronômico de Campinas e na fazenda

experimental mantida por esta escola.

O Plano Piloto passa a ser conhecido na Igreja Metodista como “Plano de

Promoção Social do Índio” e tem por objetivo prover meios ao índio para sua

subsistência, mas, não de forma paternalista. Quer devolver ao índio sua

127 Publicada no Expositor Cristão. São Paulo:1ª quinzena de abril de 1977. 128 SOUZA – 1992, p. 15.

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dignidade. Seus objetivos são: integração do índio na comunidade que o

envolve; promoção do status do índio, através da educação agrícola que o

libertará da marginalidade social, dando-lhe independência econômica e

conscientização da comunidade de que o índio é tão capaz quanto qualquer

outro colono e que desde que tenha crédito e apoio pode desfazer por si

mesmo a imagem negativa que dele têm muitos brancos.129

Scilla Franco descreve as exigências impostas pelo trabalho e os

primeiros resultados:

É um trabalho que consome a energia e a saúde. Preciso ser, desde

o orientador técnico, até o mecânico. Iniciamos desbravejando um

alqueire de terra e hoje temos 120 hectares. A terra é propriedade da

União e o índio tem apenas o usufruto dela. Com apenas dois

tratores equipados, esse plano de promoção do índio da Igreja

Metodista proporcionou às trinta famílias de índios numa área de

doze alqueires de terra, 1800 sacos de milho, 154 sacos de trigo, 750

sacos de arroz e 200 sacos de soja. Ao ser carregado o primeiro

caminhão, o qual iria entregar produtos para a venda, um índio

visivelmente emocionado exclamou: “Este é o primeiro caminhão de

mercadoria plantado pelo índio e cuja a renda será para o índio”.130

2.3. Histórico131 da organização da Missão Tapeporã

O índio que busca comida no lixo da casa pastoral e que protagoniza a

cena que sensibiliza Scilla Franco é do povo Terena. Entre os Terena, portanto,

Scilla Franco inicia seu trabalho. Tendo sido bem sucedido, sua ação ganha o

reconhecimento de órgãos oficiais, como a FUNAI, e é convidado a estendê-la

aos Kaiowá.

Em 14 de março de 1978, o chefe do Posto Indígena de Dourados,

Vandelino Bravim, emite parecer favorável à implantação da Roça Comunitária 129 Conforme reportagem publicada no Expositor Cristão, São Paulo: 2ª quinzena de julho de 1974. Essa reportagem foi feita com base em relatórios de Scilla Franco, reportagem do jornal Diário da Serra, de Campo Grande, MT (21/04/1974), e de entrevista com o Bispo Oswaldo Dias da Silva, secretário-geral de Ação Social da Igreja Metodista. In: FRANCO – 1992, p. 74. 130 Expositor Cristão, São Paulo: 1ª quinzena de abril de 1977, p. 9. 131 Elaborado a partir de documentos fornecidos pelo Rev. Paulo da Silva Costa e Revda. Maria Imaculada Conceição Costa, atuais coordenadores da Missão Tapeporã.

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entre os Kaiwoá (Anexo 1). Para justificar seu parecer, afirma: “Dever ser

considerado a experiência do referido Senhor (Scilla Franco) com o trabalho

indígena, tendo em vista o excelente resultado em projeto semelhante no Posto

Indígena Panambi.” Neste documento, põe à disposição do projeto, maquinário

da FUNAI.

Em 15 de março de 1978, a FUNAI, através do Delegado Regional do 9º

DR, Joel de Oliveira, emite autorização para a implantação do Projeto (Anexo

2). Assim, firma-se um convênio entre a Igreja Metodista e a FUNAI.

Em 16 de maio de 1978, Scilla Franco envia relatório ao Delegado

Regional da FUNAI (Anexo 3) sobre os primeiros trinta dias de trabalho:

descreve as dificuldades em ampliar o projeto, sugestões para superá-las – a

curto, médio e longo prazo – e as preocupações com respeito à mecanização

total da lavoura e a cultura Kaiwoá. Segundo Scilla Franco, a mecanização total

representava “uma violência e a anulação do último reduto da cultura indígena

do P.I. (Posto Indígena) de Dourados, pois este grupo ainda conserva suas

tradições (língua, religião, danças, autoridade do capitão, etc.)” Demonstra

preocupação, também, com o desmatamento provocado pela cultura da soja,

que exige grande espaço de terra para o plantio.

Em 13 de setembro de 1978, envia relatório ao Diretor da ASPLAN,

Fundação Nacional do Índio, em Brasília (Anexo 4). Nesse relatório, faz um

retrospecto do trabalho realizado e propõe mudanças significativas na forma

realizá-lo. Já nos primeiros meses, as condições mudaram muito e são

necessárias adaptações e ampliação do projeto.

Nesse documento (Anexo 4), descreve a situação dos Kaiwoás na

reserva: “esquecidos e acuados numa extremidade da reserva”. Segundo ele,

não acreditam nas ações da FUNAI e da Igreja. Os índios mais velhos

desconfiam dos missionários e antropólogos. Em relação aos missionários,

como uma “auto-defesa de sua religião” e com respeito aos antropólogos,

“pelos inúmeros e aborrecíveis levantamentos de cujos resultados práticos

ainda não tiveram conhecimento.” Os índios jovens, por outro lado, vivem “um

processo de descaracterização” buscando novas experiências, embora,

mantenham a mesma desconfiança dos mais velhos.

Page 71: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

71

Scilla Franco denuncia, nesse relatório, alguns crimes que impedem a

evolução do projeto: “interesses inconfessáveis de todos quantos serão

prejudicados pela libertação do índio minam o projeto pelos mais estranhos

processos, desde suborno até o emprego de imbecis úteis, promoção de

intrigas e difamação do representante da FUNAI.” Aponta a compra de lenha

pelas cerâmicas vizinhas à reserva como uma importante causa do

desmatamento dentro dela. Essa prática, “representa combustível barato para

as cerâmicas vizinhas da aldeia e sem dúvida alguma o suicídio do índio”.

Na avaliação de Scilla Franco, o projeto das roças comunitárias não pode

desenvolver sua potencialidade e não consegue competir com os “gateiros” –

aliciadores de mão de obra indígena para trabalharem fora da reserva sem o

conhecimento da FUNAI e sem garantias previdenciárias. Esse aliciamento é

facilitado pela proximidade com a cidade e pelas rodovias que cortam a

reserva.

Mais uma vez, demonstra sua preocupação com o desmatamento e faz

uma apelo: “A devastação das matas seja quais forem as razões é coisa que

tem que ser impedida a qualquer custo”. Em seguida, relaciona as

necessidades do projeto e sugestões de ações que poderiam torná-lo mais

viável.

A partir desse pedido, Scilla Franco elabora o projeto denominado “Roça

Comunitária” voltado para os Kaiwoá. Num primeiro encontro com os índios,

são cadastradas 45 famílias. Este encontro aconteceu no dia 4 de abril de

1978, na casa do capitão132 Ireno. Segundo depoimento de Paulo Silva Costa,

atual coordenador da Missão Tapeporã, essa data pode ser considerada a data

da fundação da Missão.

O projeto da roça comunitária ignorou, de certa forma, aspectos

importantes da cultura kaiowá e sua relação com a terra. Para eles, a roça

deveria ser da família extensa. A idéia de uma roça comunitária para além dos

132 O termo “capitão” designa a autoridade indígena de cada reserva ou área indígena. A figura do “capitão” surgiu a partir da ação do SPI , remonta aos tempos de atuação do Marechal Cândido Rondon. Foi ele quem adotou a linguagem militar para a organização das reservas indígenas.

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membros da família era estranha. Por isso, trabalhavam na lavoura, mas,

diziam estar trabalhando para o “pastor”.

Assim, pode-se perceber que a organização da Missão Metodista

Tapeporã foi um processo que teve início com o envolvimento de Scilla Franco

com os Terena através de ajuda com o cultivo da terra, desenvolveu-se com a

ampliação para alcançar os Kaiwoá através da “Roça Comunitária” e a parceria

com a FUNAI e, futuramente, com outros projetos sociais.

O trabalho de Scilla Franco ganha cada vez mais reconhecimento dentro

da Igreja Metodista. Isso é o que garante a continuidade da Missão mesmo

após sua saída da área indígena. Para seu lugar é enviado o agrônomo Áureo

Brianezi, que atuava no Campo Missionário da Transamazônia, no Pará.133

Além disso, uma equipe de apoio à Missão Tapeporã é criada pela Igreja

Metodista.

Nos dias 10 e 11 de dezembro de 1982, essa Equipe de Apoio da Missão

Tapeporã, então composta por Scilla Franco, Sérgio Marcus Pinto Lopes,

Antonio Olímpio de Santana e Lydia dos Santos, elaborou uma “Proposta de

Definição de uma Política Indigenista para a Igreja Metodista” e uma “Proposta

de Alteração no Projeto Tapeporã” (anexo 5). Essas propostas foram

aprovadas pelo Colégio Episcopal da Igreja Metodista, em 16 de abril de 1983

e pelo Conselho Geral da Igreja Metodista em 17 de abril de 1983. A primeira

foi a base para “As Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária Indigenista”134

definidas pelo Colégio Episcopal da Igreja Metodista em 1999.

2.4. Pós – tapeporã

O trabalho de Scilla Franco junto aos índios é interrompido por um

acidente com defensivos agrícolas na lavoura. Este acidente agravou os

problemas de saúde com os quais já vinha sofrendo e foi obrigado a deixar o

trabalho com os índios. Não deixou, entretanto, a causa indígena. Passa a

133 Conforme reportagem publicada no Expositor Cristão. São Paulo, 1ª quinzena de maio de 1979. 134 COLÉGIO EPISCOPAL DA IGREJA METODISTA, Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária Indigenista. São Paulo, Editora Cedro, 1999.

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escrever com mais frequência sobre a questão indígena, trabalha em agências

ecumênicas e retoma, simultaneamente, o trabalho pastoral. O incidente, de

certa forma, contribui para que sua voz fosse ouvida com mais atenção.

Souza assim descreve o acidente e seus desdobramentos:

...durante os trabalhos de pulverização da lavoura com agrotóxicos,

um vazamento na mangueira atingiu seu rosto, provocando séria

intoxicação. A medicina não lhe ofereceu nenhuma esperança. Com

a saúde abalada pela infecção hepática e renal, o Rev. Scilla

aprendeu a conviver com a possibilidade da morte iminente. Em

virtude dessa contingência, a sua palavra chegou a assumir traços

de irrevogabilidade e desafio permanente. Cada dia vivido era uma

dádiva de Deus e, sobretudo, uma oportunidade que não podia ser

desperdiçada em vão.135

Escreve, nessa ocasião, uma comovente carta de despedida136. Neste

texto descreve a dor de ter que deixá-los. Desde que deixa a tribo, Scilla

Franco passa a escrever com frequência e seus textos são publicados

principalmente no jornal “Expositor Cristão”. Revela o quanto havia se

identificado com eles, usando muitas expressões em Guarani.

Sua aparente fragilidade torna-se sua força. O inusitado, um homem

simples, sem formação acadêmica e doente que inicia um trabalho audacioso,

desperta a atenção. Ganha visibilidade e espaço para falar através de seus

textos. É convidado a falar em congressos, principalmente da juventude, e em

ambientes acadêmicos. Fala com desenvoltura e bom humor, sem perder a

profundidade e o tom de denúncia profética.

Ao retornar do Campo Missionário do Mato Grosso, Scilla Franco

pastoreou as Igrejas de Presidente Prudente, Pacaembu (Campinas), e de

Betânia e Paulista (Piracicaba). Ao mesmo tempo em que prestava assistência

pastoral a essas comunidades, foi colaborador do Conselho Mundial de Igrejas

num programa voltado para comunidades de fronteira. Por último, com

135 SOUZA – 1992, p. 17 136 FRANCO, Scilla. Che ahai te tama. Expositor Cristão, São Paulo:1ª quinzena de 1979.

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dedicação exclusiva, foi pastor em Birigui, interior de São Paulo; de 1985 até

1987 quando foi eleito bispo no XIV Concílio Geral da Igreja Metodista.

Com a saída de Scilla Franco da Missão Tapeporã, o trabalho tem

continuidade com Áureo Brianezzi, agrônomo mantido pela Igreja Metodista.

Vale destacar que Áureo é filho do casal Francisco e Áurea Brianezzi que, por

muito tempo, estiveram ligados à Missão Caiuá e às Igrejas Metodistas na

região. Hoje, a Missão Tapeporã é coordenada pelo casal Paulo Silva Costa137

e Maria Imaculada Conceição Costa, ambos pastores metodistas, sendo que

Paulo tem formação técnica em agricultura, tendo trabalhado na reserva com

Scilla Franco antes de iniciar sua formação teológica. Atualmente, há uma

Igreja Metodista na reserva, criada a pedido dos índios, que conta com 33

membros, segundo estatísticas da Igreja Metodista na 5ª Região Eclesiástica –

2010. Participam da Igreja muitas crianças, que não são consideradas nessas

estatísticas.

2.5. Episcopado

A eleição de Scilla Franco ao episcopado da Igreja Metodista foi

controvertida. Num plenário com 98 membros votantes, era preciso, segundo

as normas estabelecidas pelos Cânones da Igreja Metodista, obter a maioria

absoluta dos votos, ou seja, 50. Seis bispos seriam eleitos para dirigir as seis

regiões eclesiásticas que compunham a Igreja Metodista na época. No primeiro

escrutínio, cinco bispos foram eleitos e Scilla Franco obteve 49 votos. Foi eleito

no segundo escrutínio com 52 votos contra 45 do segundo, Paulo Ayres

Mattos.138

Em entrevista concedida ao jornalista Percival de Souza, logo após a

eleição, Scilla Franco fala dos preconceitos de que é vítima. Fala de certo

“elitismo” e “bacharelismo” que dificultaram sua eleição. É tido, por alguns

setores da Igreja, como despreparado para a função episcopal. A maneira

137 Paulo da Silva Costa assume a coordenação da Missão Tapeporã em 3 de fevereiro de 1984, conforme reportagem do jornal Expositor Cristão. São Paulo, 1ª quinzena de março de 1984. 138 Conforme reportagem publicada no Expositor Cristão, São Paulo,1ª e 2ª quinzenas de agosto de 1987, p. 7.

Page 75: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

75

simples e despojada de se vestir, sua aparência rude e sua linguagem popular

são características que são apontadas como inadequadas para a função de

bispo. Nas suas palavras “... fizeram de tudo para impedir minha eleição,

dizendo que sou doente, inculto, não tenho boa apresentação.” 139 Nessa

mesma entrevista, descreve o que pensa ser o episcopado: “a tarefa

fundamental do bispo não é administrativa, e sim pastoral.”

Scilla Franco enfrentou grandes dificuldades em seu episcopado: de

ordem pessoal, com sua saúde debilitada; e de ordem eclesial, com tendências

teológico-pastorais conflitantes na 5ª Região Eclesiástica. Encontrou, por outro

lado, pastores, pastoras, leigos e leigas empenhados no programa missionário

“Agentes da Missão”, com o objetivo de revitalizar a ação ministerial da Igreja

com foco no envolvimento do laicato. Tentou promover a conciliação e apoiou o

“Agentes da Missão”.

Segundo Souza, Scilla Franco

Entendia que o seu papel, nesse contexto, devia ser

fundamentalmente pastoral, mais do que administrativo. Todavia,

aspirava a colaboração de todos, especialmente das lideranças

regionais. Cogitava ainda a possibilidade de transferir a sede

episcopal para um ponto mais central da vasta Região ...Tão

prontamente assumiu o ministério episcopal, essas idéias foram

tomando corpo. A assessoria de muitos pastores o ajudava a atender

as imposições do cargo que a saúde precária impedia fossem, por

seu exclusivo empenho, plenamente cumpridas. De um ou de outro

modo, o Bispo Scilla ia imprimindo características e estilo próprios às

atividades regionais, inaugurando um tempo promissor para a

Igreja.140

Tem um período curto no episcopado da Igreja Metodista. Seus

problemas de saúde se agravam e ele vem a falecer no dia 7 de outubro de

1989, em Piracicaba, onde se submetia a tratamento.

139 Se alguém aspira ao episcopado, excelente obra almeja. Expositor Cristão, São Paulo: 1ª e 2ª quinzenas de 1987, p. 9. 140 SOUZA – 1992, p. 18.

Page 76: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

76

3. O desafio e a necessidade de unidade: a formação do GTME

Outra importante ação da qual Scilla Franco participou e que pode ser

relacionada como desdobramento de seu trabalho entre os índios é a formação

do Grupo de Trabalho Missionário Evangélico – GTME. O GTME foi organizado

em agosto de 1979 por missionários das Igrejas Metodista, Luterana e

Presbiteriana Unida, visando uma maior cooperação e integração das pessoas

que se encontravam nas frentes missionárias.

Os objetivos do GTME eram desenvolver, por meio das igrejas

evangélicas, uma cultura de solidariedade aos povos indígenas; oferecer

formação a missionários e missionárias e expressar um compromisso

elementar com o ecumenismo a partir da unidade evangélica. Scilla Franco foi

escolhido como coordenador do grupo.

Lourivaldo Abich, um dos participantes do encontro que organizou o

GTME, em depoimento no livro “Minha Prece”141, assim descreve a

organização do Grupo de Trabalho Missionário Evangélico:

Em agosto de 1979, missionários e obreiros das Igrejas Metodista,

de Confissão Luterana e da Federação Nacional das Igrejas

Presbiterianas (atual Igreja Presbiteriana Unida), além de simpatizan-

tes da causa indígena, reunidos na Chácara Flora, em São Paulo,

para o Encontro Presença Evangélica nas Fronteiras do País,

optaram pela criação de um grupo de trabalho interdenominacional,

visando uma maior cooperação e integração dos que se

encontravam nas frentes missionárias.142

A partir dessa preocupação ecumênica, definiram-se os princípios que

norteariam as ações do grupo. Não era para ser, segundo Scilla Franco, uma

organização/instituição, mas, uma união de propósitos e princípios. Continua

Abich em seu depoimento:

Os missionários não podiam ficar no isolamento. Deveriam se

encontrar, trocar experiências, apoiar uns aos outros naqueles

momentos difíceis de ditadura militar. Haveria também empenho por

141 ABICH, Lourivaldo. Pastor e companheiro in: FRANCO – 1992, p. 9-10. 142 Ibidem, p.9.

Page 77: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

77

se desenvolver no meio das igrejas evangélicas, uma cultura de

solidariedade aos povos indígenas, Ficavam, ainda, a preocupação

com a formação de missionários e missionárias e o compromisso

elementar do ecumenismo a partir da unidade evangélica. O Centro

Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que servira de

berço para o nascimento do GTME, ficou responsável pela

assessoria e o pastor Scilla Franco foi escolhido para coordenar as

tarefas do grupo.143

Para tentar atingir esses objetivos, dentre outras coisas, o GTEME publica

boletins – elaborados de forma rudimentar – com reflexões sobre a missão

entre os indígenas e a cultura desses povos; promove encontros, seminários e

cursos de capacitação para missionários e missionárias e procura auxiliar e

despertar as Igrejas para o trato com as questões que envolviam os índios nas

diferentes regiões do país. Os desdobramentos do GTME foram o surgimento

do Conselho de Missões entre os Índios (COMIN), na Igreja Luterana e do

Grupo de Trabalho Indigenista (GTI), na Igreja Metodista.

Em entrevista publicada no boletim do GTME nº 5, em 1984, Scilla Franco

faz um balanço dos cinco anos do grupo e fala de suas expectativas e

frustrações em relação ao GTME. Para ele, um dos problemas mais

importantes que o Grupo poderia resolver era o do isolamento dos missionários

que estavam no campo:

a falta de uma retaguarda, de um fórum de debates, no qual eu

pudesse aclarar as idéias, crescer nos meus conhecimentos, ser

avaliado e, acima de tudo, gozar da fraternidade missionária, já que o

missionário que realmente se envolve na luta concreta dos índios

acaba não tendo amigos. Os políticos não o estimam porque ele é

avesso à politicagem. Para o fazendeiro, ele é um empecilho para a

tomada da terra ou exploração de mão-de-obra barata. Para a

comunidade envolvente, um excêntrico que ‘fica se ocupando destes

lugares, quando há tantos brancos necessitados’. Para as outras

missões, um herege que vem se intrometer e fazer política. Então

meu sonho era de que missionários de todos os credos, mesmo

143 Ibidem, p.9.

Page 78: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

78

discordando da práxis de cada um, pudessem se entender em favor

da causa maior. Muito cedo percebi que isto era impossível. Os

guetos evangélicos estão cada um ocupados com os seus próprios

problemas, com suas estruturas e com os “seus índios”. Muitas

vezes os próprios missionários, quem sabe consumidos por suas

atividades locais, não conseguem enxergar fora de seu “mundinho”.

Outros são impedidos pela estrutura a que são ligados.144

Scilla Franco fala da necessidade de cooperação entre as diversas igrejas

que atuam entre os indígenas. O desafio maior para os missionários cristãos,

segundo Scilla Franco, é atuar em nome do Evangelho e não das organizações

que os financiam, sejam as Igrejas ou as agências missionárias. Diz ele:

Como os que trabalham com os índios não o fazem às suas próprias

custas, estão de modo geral (submissos) a seus financiadores,

embora a maioria não seja capaz de reconhecer isto, quer por falta

de autocrítica, ou meramente por vaidade, muito própria do branco.

Ainda há que considerar o que os brancos fizeram com o Evangelho.

O que é feito em nome do Evangelho, muitas vezes é frontalmente

contra seu ensinamento básico, que é o amor.145

O GTME pretendeu ser uma forma de apoiar os missionários e

missionárias para responderem a esses desafios e ser, ao mesmo tempo, um

núcleo de formação e capacitação de pessoas para a missão. Ao longo dos

anos tem conseguido cumprir, não sem dificuldades, seu propósito. Segundo

Ana Cláudia Figueroa,

Este grupo de trabalho era interdenominacional, propondo-se a

repensar o conceito de missão e evangelização, trocar idéias e

experiências e estreitar laços de amizade apoiando-se mutuamente.

Em 1988, o GTME se definiu por um trabalho específico de apoio e

solidariedade aos povos indígenas. Uma organização não-

governamental, sediada em Cuiabá – MT, mantendo parcerias com

as igrejas: Evangélicas de Confissão Luterana no Brasil (IECLB),

Metodista, Episcopal Anglicana no Brasil (IEAB) e Presbiterianas

Independente e Unida (IPI, IPU). Em vista de objetivos indígenas

144 Uma vida dedicada à missão – Boletim do GTME nº 5, 1984. 145 Ibidem.

Page 79: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

79

comuns, o GTME tem se articulado, ao longo dos anos, com

entidades afins, como é o caso do Conselho Indigenista Missionário

– CIMI (Igreja Católica), Operação Amazônia Nativa – OPAN e

Instituto Socioambiental – ISA.146

Scilla Franco vê com esperança o surgimento de um novo tempo para as

missões protestantes, a partir dos contatos no GTME. É um novo momento

porque, segundo ele, no passado, as missões protestantes foram coniventes

com a exploração dos índios, como foram os católicos. Segundo sua avaliação,

“praticamente por quatrocentos anos o índio esteve na mão da Igreja. E o que

fez a Igreja? Acredito que hoje esta posição está sendo revista. Estão

estudando a questão do ponto de vista mais crítico, mas a caminhada é bem

grande ainda.”147

4. Pastoral da convivência

Rui de Souza Josgrilberg, na apresentação do livro que traz uma

coletânea de textos missionários e indígenas de Scilla Franco148, descreve uma

passagem da ação missionária de Scilla Franco de uma visão encarnacional da

fé cristã para uma Pastoral da Convivência. Afirma Josgrilberg:

A visão missionária da encarnação pressupunha, como era

entendida, assumir o máximo a condição indígena: ser um entre eles,

apesar de ser branco e da cultura branca. Os índios Kaiowá e

Terena, após alguns anos, reconheceram esse modo de ser cristão e

deram nome indígena a Scilla Franco. Ele foi aceito, fato raríssimo,

em rituais e conselhos indígenas. Um Índio disse que ele era

reconhecido como um deles. Mas essa visão e essa forma de

encarnar o Evangelho custaram caro para o missionário e a família.

Em algumas ocasiões, Scilla foi ameaçado de morte.149

146 FIGUEROA, Ana Claudia. Metodismo e Indigenismo no Brasil in: Revista Caminhando, volume 8, nº 2. São Bernardo do Campo: EDITEO, 2003,p. 206. 147 Missões protestantes foram coniventes na exploração do índio. Entrevista concedida ao Jornal Evangélico, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Publicada na edição da 1ª quinzena de fevereiro de 1981. Também publicada em FRANCO – 1992, p.76-79. 148 FRANCO – 1992, p. 7 e 8. 149 JOSGRILBERG – 1992, p. 7.

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80

No desenvolvimento de seu trabalho, Scilla Franco foi percebendo as

limitações dessa visão encarnacional e descobre a “pastoral da convivência”. É

no convívio com missionários de outras denominações com os quais participa

no GTME, no processo conjunto de organização e consolidação desse grupo

como orientador de uma práxis missionária indígena coerente, que ele

descobre a “pastoral da convivência”. Segundo Josgrilberg.

Essa pastoral reconhece, mais profundamente, a cultura indígena em

sua particularidade, reafirma melhor a autonomia indígena, e toma o

grupo indígena como um parceiro de diálogo e de caminho em

direção à auto-sustentação cultural política, econômica e espiritual. A

pastoral da convivência não foi entendida tanto como uma negação

de pastoral encarnacional, mas como uma correção dela. Scilla, junto

com tantos outros missionários, evangélicos e Católicos, havia

penetrado na lógica da cultura do outro (como diria Carlos Rodrigues

Brandão) e a compreensão da encarnação passou por outros

critérios.150

O trabalho de Scilla Franco entre os índios foi marcado pelo

desprendimento e interesse em fazer alguma coisa de relevante para resolver

os problemas enfrentados pelos índios. Pode-se dizer que fez muita coisa e

ensinou muita coisa. Foi, para ele e para a Igreja Metodista, um processo de

aprendizado. A partir de sua experiência, definiram-se as Diretrizes da Igreja

Metodista para o trabalho com os índios. Reconhece-se nele uma inspiração e

um modelo de pastoral.

A experiência de Scilla Franco, portanto, e a compreensão que tem de

“Pastoral de Convivência”, em grande parte construída na participação no

GTME, ajuda a definir as Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária

Indigenista151 na Igreja Metodista, nas quais a Pastoral da Convivência ocupa

lugar de destaque. Esse documento tem como base o relatório da Equipe de

Apoio da Missão Tapeporã, elaborado em dezembro de 1982 (anexo 6) que

descreve a Pastoral de Convivência da seguinte forma:

150 Ibidem, p.8. 151 IGREJA METODISTA – COLÉGIO EPISCOPAL – 1999.

Page 81: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

81

A Igreja Metodista pretende que sua presença evangelizadora em

meio à comunidade indígena se dê em um contexto de respeito aos

valores dos povos índios e através de uma pastoral de convivência,

de maneira tal que ela seja capaz de sinalizar aos índios a presença

do Reino de Deus, sem violentar a sua consciência e destruir a sua

liberdade quer como povo, quer como indivíduos.

Conceitua-se como pastoral de convivência o estar presente o

obreiro da Igreja na comunidade indígena, participando em todos os

seus momentos, sem uma proposta prévia acabada, mas

aprendendo e descobrindo com ela os caminhos para a formulação

de uma pastoral indígena [...] Torna-se, pois, necessário buscar uma

pastoral indígena, a ser aprendida em convivência com o índio, uma

vez que as formas tradicionais de evangelização adotadas na cultura

da sociedade maior não alcançam ou interpretam adequadamente os

valores indígenas.

É importante anotar que, na prática missionária de Scilla Franco, pode-se

observar um processo de aprendizado e conhecimento das questões culturais

que envolvem a missão entre os índios. Instintivamente e compassivamente,

Scilla Franco concebe uma maneira de fazer missão através da presença e do

convívio, procurando valorizar a pessoa do índio e não como uma forma de

dominação. Nesse processo, entretanto, comete equívocos.

Scilla Franco admite que seu desconhecimento da cultura indígena o

impediu de desenvolver uma ação mais efetiva em favor dos índios, chegando

a repetir erros passados e pelos quais se penitencia:

Quando eu comecei a trabalhar com o índio, iniciei dentro do sistema

tradicional de pregar o Evangelho para eles, achando que quando

conhecessem o Evangelho se libertariam de tudo. Mas percebi que

eles apenas me aceitavam porque eu tinha o poder. Eu tinha o trator,

a semente, o veneno e o conhecimento de plantio agrícola. Na

verdade eu era um corpo estranho dentro da tribo.152

Descobre, com o convívio, que seu discurso religioso e evangelizador

dizia pouco para os índios. O que importava para eles era como ele vivia.Nesse

152 FRANCO – 1992, p.76-79.

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convívio, ganha a confiança e é reconhecido, inclusive, como sacerdote. Chega

a ser admitido em rituais próprios dos índios.153

De início, Scilla Franco pouco entende das questões que envolvem a

causa indígena no Brasil e, também, da vida e cultura desses povos. É um

missionário que vai ao encontro dos índios movido pela compaixão, mas, com

pouco preparo e conhecimento da vida, da cultura e da religiosidade indígena

e, também, das complexas relações econômicas e políticas que cercam a

reserva Indígena de Dourados. Todavia, busca esse preparo enquanto convive

com eles, através de obras de antropologia e participação em seminários.

Busca, também, aprofundar seus conhecimentos agrícolas, necessários,

segundo ele, porque “os indígenas confiam inteiramente no que eu digo, por

isso não posso errar.”154

Scilla Franco é capaz, todavia, de realizar uma autocrítica, admitindo sua

falta de conhecimento da cultura indígena e seu modo de ser:

O meu trabalho era de ação comunitária, basicamente

desenvolvimento agrícola. O fundamento era que possuindo os

índios daquela reserva, menos de ½ hectare por pessoa, ou se

usava alguma tecnologia visando ao aumento da produção, ou eles

morriam de fome. A crítica que eu faço ao meu trabalho é que por

pura ignorância, introduzi uma cultura comercial (soja) sem antes

saber que o índio ao não saber usar os resultados da colheita

(manobrar o dinheiro), um dia depois da venda ele estava tão pobre

como antes e que isto também levou a uma competição, gerando

fatos tais como: arrendamento de terras e compras de terras uns dos

outros. E pior foi que tudo levou a desestimular a roça de

manutenção. Quando me dei conta e comecei a conciliar os projetos,

aí tive que deixar o trabalho.155

Scilla Franco reconhece, também, que passou por mudanças teológicas

importantes na sua compreensão de Deus, de sua manifestação e propósito de

salvação. Esse processo de mudança em seu pensamento teológico acontece

153 Ibidem. 154 FRANCO, Scilla. Os Índios querem uma oportunidade. Expositor Cristão. São Paulo: 2ª quinzena de julho de 1978. 155 Uma vida dedicada à missão. Boletim do GTME nº 5, em 1984.

Page 83: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

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no convívio com os índios e na interação com uma cultura bem diferente

daquela na qual fora formado. Assim, ele afasta-se gradualmente da

concepção evangélica tradicional que vê a fé cristã como a única possibilidade

de salvação. Ao mesmo tempo em que cresce seu respeito pela cultura e

religiosidade indígena, aumentam suas críticas a um cristianismo desvinculado

da vivência. Reconhece esse distanciamento da visão tradicional e sectária: “O

choque entre uma religião professada e uma vivida, para mim foi sempre

embaraçoso. Pode até ser uma heresia, mas para mim, os índios são ovelhas

de um outro aprisco.”156

5. Os Escritos de Scilla Franco

Outra importante forma de ação de Scilla Franco foi através dos inúmeros

textos que escreveu (ANEXO 6). São textos geralmente curtos nos quais usa

uma linguagem direta e simples, carregada de imagens do cotidiano. Neles,

aborda diversos temas relacionados à vivência da fé cristã, predominando um

chamado ao compromisso com os que sofrem. A maioria deles trata de temas

missionários e indígenas e são publicados após sua saída da Missão

Tapeporã. É a forma que encontra de ainda estar ligado à Missão e à causa

indígena.

Scilla Franco assume uma postura profética através de seus textos

publicados, em sua maioria, no Expositor Cristão. Por meio deles, tenta

demonstrar as incoerências do discurso da Igreja, a Metodista em particular,

em relação à sua prática. Preocupada com seu crescimento numérico157, com a

construção e manutenção de seus templos e a ampliação de suas escolas,

geralmente voltadas para atender a classe média, a Igreja pouco fazia em favor

das classes mais pobres. A partir de sua experiência com o índio aculturado do

Mato Grosso do Sul, ele procura despertar a Igreja para o envolvimento com as

156 Ibidem. 157 Nesse tempo, a Igreja Metodista brasileira está empenhada em uma campanha para alcançar o número de 100 mil membros. Contava, até então, com aproximadamente 65 mil metodistas arrolados. Scilla Franco ironiza essa meta em momentos que aponta para a negligência da Igreja com outros aspectos da vida social do país e, particularmente, dos índios.

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pessoas sofridas e a ações efetivas no combate às forças que geravam o

sofrimento e a discriminação.

Usa de ironia muitas vezes para revelar a hipocrisia do discurso religioso

predominante. Usa o humor como ferramenta para prender a atenção de seus

ouvintes e, ao mesmo tempo, levá-los à reflexão sobre questões muito sérias

que envolviam a missão da Igreja no contexto brasileiro. Ao mesmo tempo, a

iminência da morte (segundo os médicos, ele viveria pouco por conta de uma

infecção hepática e renal), conferiu força ao seu discurso. “A sua palavra

chegou a assumir traços de irrevogabilidade e desafio permanente.”158

Scilla Franco, em seus textos, pouco menciona os índios Terena, com os

quais inicia seu trabalho missionário enquanto pastor em Dourados. A maioria

de suas reflexões tem como centro os Kaiowá, com os quais inicia o projeto de

Roça Comunitária. É da FUNAI a iniciativa do trabalho com os Kaiowá,

considerando os bons resultados obtidos por Scilla Franco entre os Terena

(conforme Anexo 2). A partir daí, a atenção se volta para os Kaiowá e é entre

eles que se forma a Missão Tapeporã que, ainda hoje, está localizada na parte

da reserva habitada por eles, a aldeia Bororó (ver Mapa 4).

As razões dessa escolha não são claras. Foi um processo, cujos

acontecimentos parecem ter levado a isso. Há que se considerar, também, o

fato dos Kaiowá serem, dentre os índios da reserva, os mais pobres159. O modo

de organização dos Terena, com uma estrutura mais sofisticada que os

Guarani, e o fato de terem sido levados para a reserva, vindos de Aquidauana,

para ensinar técnicas agrícolas para os Kaiowá, criou as condições de um

domínio Terena.

Scilla Franco fala sobre a situação dos Kaiowá dentro da reserva:

O Kaiowá nunca foi de opor resistência,sempre fugiu todas vez que

foi molestado. Hoje se encontram no extremo da aldeia e só

permanecem lá porque não têm para onde ir. Ainda é comum que,

em caso de opressão ou calamidade, eles se mudem para outro

posto abandonando o seu, ou simplesmente se matam. Por isso não 158 SOUZA – 1992, p. 17. 159 Documento da FUNAI (anexo 2) aponta que o interesse em iniciar o projeto da Roça Comunitária é exatamente para diminuir a pobreza entre os Kaiowá.

Page 85: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

85

acredito que eles tenham sido escravizados ou reduzidos. Se se

escravizar um Kaiowá, ele simplesmente se deita numa estiva e

morre da mesma forma que nasceu.160

Scilla Franco também aborda as políticas do governo em relação aos

índios apontando suas fragilidades e contradições, inclusive, a incapacidade de

lidar com as particularidades de cada povo. Fala, por exemplo, das reservas

como um aprisionamento: “Fomos peregrinos em nossa própria terra e

terminamos confinados numa reserva como pássaros engaiolados.”161

Sobre a proposta da integração dos índios à sociedade branca é,

também, crítico: “O que chamam de integração, é como se alguém adotasse

um rico herdeiro e depois descobrisse que a riqueza já se esvaiu e quisesse

ficar livre do compromisso. Hipócritas! Devolvam as nossas terras, reflorestem

as matas devastadas e verão que estamos perfeitamente integrados na

natureza como Deus criou.”162 E ainda: “Não queremos esmolas, não

queremos ser profissionalizados para sermos empregados dos brancos.

Queremos viver da terra de onde viemos e para onde certamente

voltaremos.”163

Do mesmo modo, Scilla Franco é crítico das políticas do poder público de

demarcação e emancipação164 dos índios. Para ele, as políticas e ações do

Estado, pretensamente para protegê-los, ignoravam as peculiaridades de cada

povo com toda a diversidade que os caracterizam.

160 FRANCO, Scilla. Reflexões sobre o povo Kaiowá. Boletim do GTME, nº1,1980 161 FRANCO, Scilla.Carta aos Kaiowá. Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de dezembro de 1977. 162 FRANCO, Scilla. Carta a um amigo dos índios. Expositor Cristão. São Paulo:1ª quinzena de outubro de 1978, p. 16. 163 Ibidem. 164 FRANCO – 1992. p.78.

Page 86: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

CAPÍTULO III

CONVIVÊNCIA, CONTEXTUALIZAÇÃO E

COLABORAÇÃO ECUMÊNICA: A PRÁTICA

MISSIONÁRIA DE SCILLA FRANCO E OS DESAFIOS DA

MISSÃO NA ATUALIDADE

Nos capítulos anteriores, procurou-se, primeiro, apresentar os povos

Kaiwoá e Terena e os principais acontecimentos que envolveram a região de

Dourados dando a ela a configuração social, econômica e religiosa que tinha

na década de 1970. Em segundo lugar, buscou-se apresentar Scilla Franco,

descrevendo sua trajetória pessoal e ministerial, como se deu seu

envolvimento com os índios e a natureza de seu trabalho.

Neste capítulo, busca-se apontar elementos na ação missionária de Scilla

Franco que possam indicar caminhos para uma práxis missionária na

atualidade. Casiano Floristan165, a partir de referenciais marxistas, conceitua

práxis como atividade humana transformadora do mundo. Desenvolve os

seguintes traços característicos da práxis: primeiramente, “a práxis é ação

criadora e não meramente reiterativa”, ou seja, é uma ação que cria novas

realidades e não apenas repete ou imita o que já está posto. Práxis, é,

portanto, uma ação que exige criatividade e, ao mesmo tempo, consciência

crítica.

Em segundo lugar, “a práxis é ação reflexiva e não exclusivamente

espontânea.” A necessária consciência crítica para avaliar os contextos e

apontar caminhos pede alto grau de reflexão.

165 FLORISTÁN, Casiano. Teologia Práctica. Salamanca: Editora Síguime, 2002.

Page 87: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

87

A terceira característica da práxis é que ela “é ação libertadora e de

nenhum modo alienante”. Essa é a finalidade de toda atividade que seja práxis,

a transformação do mundo para uma realidade mais humana e mais livre. Por

fim, “a práxis é ação radical e não meramente reformista”. Numa sociedade

dividida em classes e geradora de desigualdades e injustiça, se faz necessária

uma práxis radical, “a saber, a que intenta transformar a raiz das bases

econômicas e sociais em que se assenta o poder das classes dominantes para

construir uma sociedade nova.” 166

Práxis Religiosa, portanto, é toda ação promovida pelas religiões que

promova transformações de situações limitadoras da vida. Este conceito de

práxis torna-se importante para a avaliação das ações da Igreja e no

direcionamento de suas ações. No caso de Sciila Franco, sua ação, como

apontado no capítulo anterior, caracterizou-se por ser uma “pastoral de

convivência”. A convivência pressupõe respeito e valorização da cultura do

outro; exige proximidade e sensibilidade para compreender e solidarizar-se

com as realidades que marcam a vida do outro e leva, necessariamente, a uma

vivência ecumênica.

1. A prática missionária de Scilla Franco e como ele vê as

relações entre religião e cultura

1.1. Um encontro em torno da terra

Movido pela compaixão, Scilla Franco aproxima-se de um grupo indígena

na tentativa de ajudá-lo a superar a miséria e a exploração. Faz isso em nome

da fé cristã. Primeiramente, num aspecto pessoal: é a sua maneira de entender

a vida cristã e os compromissos que ela pede que o move intimamente. Em

segundo lugar, institucionalmente: empreende um trabalho a partir de sua

condição de pastor metodista e recebe da Igreja o suporte para isso, tanto no

sentido material, provendo os recursos para seu sustento e para a realização

de seu trabalho, quanto na legitimação de seu ministério pastoral.

166 Ibidem, p. 179-180.

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88

Os índios, por sua vez, especialmente os Kaiowá, ainda preservam

aspectos de sua religiosidade. Apesar de anos de dominação cristã e de

catequese, resistem. O trabalho de Scilla Franco tem a ver com o cultivo da

terra. Na cultura e religiosidade Guarani, a terra é um elemento sagrado. A

religiosidade, portanto, está fortemente presente nessa atividade. De inicio,

Scilla Franco parece não se dar conta da complexidade que isso envolve.

Diferentemente da cultura ocidental, que concebe a natureza seguindo as

leis da física e os seres humanos exteriores e superiores a ela, as sociedades

indígenas, “concedem à natureza características humanas e incluem-na num

sistema social único. Assim, para os grupos indígenas aqui estudados (povos

guarani), a terra tem as faculdades dos humanos. É como um corpo

murmurante, que se alarga e se estende. Ela vê, ouve, fala, sente e é

enfeitada. É viva.”167 Para os índios Guarani, não se concebe a terra como

propriedade de alguém, antes, eles é que pertencem à terra e os rituais que

realizam apontam para isso.

Essa caracterização da terra como expressão da palavra, que é divina,

aparece fortemente nos rituais que se realizam nas festas do milho. Scilla

Franco percebe isso e, em 1982, escreve um artigo com o título “Avati

Moroti”168 em que descreve o que aprendeu sobre a cultura do milho e os

rituais que a acompanhavam, desde a preparação da terra até a colheita. Este

texto, segundo ele, tem a intenção de despertar um estudo mais aprofundado,

por parte dos antropólogos, das consequências da introdução do “milho

civilizado” entre os índios. E, da parte dos missionários, despertá-los para

entender melhor e “agir com cautela no trato com as tradições indígenas”.

Como motivação, aponta o fato dele mesmo não ter compreendido bem essas

questões.169

Scilla Franco assim descreve esses rituais:

167 CHAMORRO – 2008, p. 161. 168 FRANCO, Scilla. Avati Moroti. Estudos do GTME, caderno nº 1, 1982. 169 Ibidem, p. 60 e 61.

Page 89: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

89

Já se disse que os índios são povos do milho170 e na verdade, assim

o são. Para quem vive das incertezas da caça e da coleta, a roça de

milho é o celeiro certo. Além disso, a vida comunitária era mais ou

menos organizada seguindo o ciclo do milho, desde o roçado coletivo

feito através de mutirão-puchirrão-adjutória, e que culminava com

festas e a dança da chicha171 onde a bebida servida também era feita

do milho e todo o trabalho era feito em ritmo de festa e não como

castigo, feito com riqueza, ritual e simbolismo, que nós civilizados

ignorantemente chamamos superstição. 172

Scilla Franco destaca o caráter festivo presente no trabalho de plantio.

Trabalho e festa se misturam numa sociedade em que o trabalho não é castigo

ou mão-de-obra a ser vendida. Para os índios, trabalhar a terra é participar de

uma ritual e é executado, então, com a reverência e a alegria de uma

celebração cultual.

Da mesma forma, com os Terena, o encontro se dá em torno da

agricultura. Como já dito acima, Scilla Franco fala pouco sobre o seu trabalho

entre eles, que quase não aparecem em seus escritos. Todavia, o povo Terena

está fortemente ligado à agricultura e ao cultivo da terra se ligam, como

apontado no primeiro capítulo, os rituais religiosos.

Portanto, o encontro entre o pastor Scilla e os povos indígenas Terena e

Kaiowá em torno da terra representa um encontro entre duas expressões

religiosas diferentes. É importante destacar isso porque a religião é um aspecto

fundamental da cultura de um povo e, neste caso, leva o pastor protestante à

percepção de diferenças fundamentais entre a religião praticada entre os índios

e a sua própria tradição.

1.2. A Relação entre Fé Cristã e Cultura Ocidental

Cultura pode ser entendida como a forma do ser humano construir seu

mundo e suas relações. Neste processo, a religião ocupa lugar destacado. O 170 Essa caracterização é feita em relação aos índios guarani, também, por Egon Schaden in: SCHADEN – 1974. 171 Chicha é uma bebida de milho fermentada consumida nos rituais religiosos. 172 FRANCO, Scilla. Carta aos Kaiowá. Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de dezembro de 1977.

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90

estudo das diferentes culturas humanas revela que um sistema religioso está

presente em todas elas. “Toda sociedade humana é um empreendimento de

construção do mundo. A religião ocupa um lugar destacado nesse

empreendimento.”173.

Segundo Severino Croatto,

Todas as culturas e todos os povos tiveram e têm uma expressão

religiosa. Dizer ‘expressão’ é falar de manifestações de ordem

religiosa que têm seu veículo na simbologia, na linguagem, na

literatura, na arte, em rituais variadíssimos, nos corpos doutrinários,

em modelos de vida.174

A religiosidade é uma experiência tipicamente humana e condicionada

pela maneira do ser humano existir e de se relacionar no mundo. Ao mesmo

tempo em que é determinada pelo contexto histórico e social, ajuda a formá-lo.

Ela é fornecedora de elementos que definem a cosmovisão de um povo e

ajudam a definir sua identidade.

A religião, assim, é um fenômeno que ajuda a formar a cultura humana e

moldar seu modo de interagir com o ambiente e com as pessoas. Este caráter

relacional da religião é destacado por Croatto “como experiência humana

propriamente dita, ela é uma vivência relacional: com o mundo, com o outro

indivíduo e com o grupo humano [...] Essa característica da vida humana tem

uma grande influência na ‘socialização’ da experiência religiosa.”175

Aldo Natale Terrin estabelece uma forte ligação entre cultura e religião no

Ocidente. Como apontado acima, a religião e a cultura estão intimamente

ligadas em todas as sociedades humanas. No caso específico do Ocidente,

baseia-se no monoteísmo. O fato de o monoteísmo religioso prevalecer como

um modelo verdadeiro ajuda a moldar um modo de ser em sociedade.

Na conquista do Brasil, essa mentalidade ocidental foi sendo incorporada

e, ainda hoje, uma parte significativa da população e, certamente, a grande

173 BERGER, Peter L.. O Dossel Sagrado – Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985, p. 15. 174 CROATTO – 2001, p. 9. 175 Ibidem, p. 42.

Page 91: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

91

maioria das Igrejas Cristãs atuando no país, inclusive a Metodista, seguem

seus conceitos básicos. Isso é descrito por Terrin:

O Ocidente é monoteísta por destino e por opção e todos somos

defensores convictos de que a crença num único Deus é uma forma

de pensamento triunfante no plano religioso, mas também no plano

político, econômico e social. A religião se aliou então à nossa

cultura, e as duas componentes – cultura e religião – formam assim

o nosso destino. Porque afirmar que existe um só Deus significa ao

mesmo tempo reconhecer que existe uma só verdade, uma só

justiça, um só valor universal.176

Numa cultura pluralista como se configura o mundo ocidental, torna-se

necessária uma revisão deste modelo monoteísta. Todavia, não do

monoteísmo religioso, que deve ser visto como uma expressão legítima de

religiosidade como todas as outras, mas, de um “monoteísmo cultural”. O

monoteísmo religioso acabou por criar um “monoteísmo cultural” uma vez que

a religião cristã se apresenta como a verdadeira expressão religiosa ou como a

legítima expressão religiosa. No Brasil, a colonização feita pelos portugueses a

partir de 1500 foi acompanhada e legitimada pela fé cristã. Impôs-se, assim,

uma cultura cristã e ocidental.

A respeito disso, Riolando Azzi177 faz um estudo das principais

formulações teóricas que contribuíram para a organização da vida colonial no

Brasil, demonstrando como a cosmologia que prevalecia entre os

colonizadores europeus, particularmente, entre os portugueses foi um

importante instrumento na fundação e estruturação da colônia brasileira.

A exploração do continente americano, segundo Azzi, teve como base,

por um lado, a “dessacralização da natureza”178 e, por outro e

simultaneamente, a “sacralização do homem”. Gradativamente, a natureza foi

176 TERRIN, Aldo Natale. Antropologia e horizontes do sagrado – culturas e religiões. São Paulo: Paulus, 2004, p. 334. 177 AZZI, Riolando. Razão e Fé – O discurso da dominação colonial. São Paulo: Paulinas, 2001. 178 Hoje, há uma fase na discussão desse tema: se a modernidade trouxe a dessacralização da terra, hoje percebe-se uma re-divinizaçao da terra a partir do conceito de mãe-terra. Helmut Renders avalia esse tema e demonstra como a compreensão da Terra Mãe pode ser integrada na fé cristã, não no sentido de uma “Deusa”, mas, de uma criadora da vida e criada por Deus. RENDERS, Helmut. Graça, Salvação e Teologia da sustentabilidade como tema da Teologia – discussões, acentos e contribuições in:Teocomunicação, vol, 40, nº2, 2010, p. 213-237.

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92

sendo destituída de seu caráter divino e o ser humano revestido. “Assim sendo,

ao desencanto do mundo natural correspondia um processo de encantamento

do próprio homem.”179

Azzi procura mostrar como o pensamento grego clássico, especialmente

com Platão e Aristóteles, foi o responsável pela construção de uma cosmologia

que afirma a superioridade do ser humano sobre a natureza. Com base nela,

também, o povo grego – ou, pelo menos, a classe dominante – afirma sua

superioridade: “dos gregos sobre os demais povos, a superioridade dos livres

sobre os escravos e a superioridade do sexo masculino sobre o feminino.”180

De acordo com Azzi, esse pensamento foi difundido na Idade Média,

principalmente, por Agostinho e por Tomás de Aquino numa perspectiva cristã.

Sendo que Agostinho se aproxima mais de Platão e Tomás de Aquino de

Aristóteles. Assim ele sintetiza as diferenças entre as duas concepções: “Na

antropologia platônico-agostiniana, enfatiza-se a fragilidade do homem diante

das amarras do corpo. Já na perspectiva da antropologia aristotélico-tomista,

prevalece a confiança no poder da razão humana enquanto reguladora das

forças físicas.”181 Ambas, porém, têm em comum a idéia da superioridade da

pessoa humana sobre a natureza.

É essa cosmovisão que prevalece entre os colonizadores portugueses e

que lhes dá a base para afirmarem-se superiores e, portanto, dominadores da

natureza. E, a exemplo dos gregos em relação aos “bárbaros”, superiores aos

povos indígenas. Segundo Azzi,

Essa afirmação de superioridade, aliás, era essencial para o seu

projeto imperialista, que supunha não só o domínio sobre a natureza,

mas também sobre os habitantes da nova terra. Dessa forma, o

conceito de superioridade dos lusitanos como seres plenamente

racionais garantia-lhes o exercício da conquista material e espiritual

tanto do território como dos povos nele existentes.182

179 AZZI – 2002, p. 45. 180 Ibidem, p.53. 181 Ibidem, p.55. 182 Ibidem, p.56.

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93

Para evidenciar essa superioridade era necessário destacar as diferenças

entre as culturas européia e indígena, atribuindo à européia uma “superioridade

estrutural”. Nesse processo, reduziu-se as diversas expressões culturais dos

diferentes povos que aqui habitavam a uma só cultura.

Esse processo de redução dos povos indígenas e, posteriormente, dos

negros trazidos da África, serviu de justificativa para, pelo lado econômico, a

escravização ou extermínio por parte dos colonos brancos e, pelo lado

religioso, para a afirmação da importância da atividade missionária. “Quanto

mais fosse ressaltada a selvageria dos indígenas, mais patenteada ficava a

necessidade de promotores da fé no novo território colonial”.

Azzi sintetiza esse processo da seguinte forma:

... de início o religioso, homem dotado de fé e razão,se defronta com

grupos indígenas, considerados sem fé e sem uso da racionalidade.

Cria-se assim uma oposição bem nítida: de um lado a fé e a razão do

missionário; de outro, a descrença e a desrazão do indígena. Daí a

justificação da dominação, seja através da coação física,seja através

do intimidamento moral. Este processo de dominação passa a ser

conhecido como “redução” do gentio. É por meio da ação missionária

que o indígena é transformado num ser verdadeiramente humano,

dotado de fé e razão. Por conseguinte, está apto a ser declarado fiel

da Igreja e súdito da Coroa, ou seja, integrado no serviço do Estado

lusitano.183

Essa maneira de ver os indígenas é a responsável pela descaracterização

dessas pessoas como seres humanos e abriu caminho para a destruição de

sua cultura e o extermínio de povos inteiros.

Raúl Fornet-Betancourt184 concorda que o cristianismo, como se expressa

hoje, é resultado de um processo histórico de expansão do Ocidente e do

avanço, muitas vezes violento, da cultura que gerou. Para ele, o cristianismo

terá relevância no futuro se libertar-se da pretensão de ser a única

possibilidade de expressão da fé cristã e empreender um respeitoso e genuíno

183 Ibidem, p.61. 184 FORNET-BETANCOURT, Raúl. Religião e Interculturalidade. São Leopoldo: Sinodal/Nova Harmonia, 2007.

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diálogo com religiões não-cristãs. Para isso, segundo Fornet-Betancourt, é

necessária uma autocrítica intra-religiosa e intra-cristã, “entendendo por isso o

momento reflexivo pelo qual o cristianismo confronta-se a si mesmo com esse

reverso de sua história e questiona seu próprio processo de constituição

cultural e teológica.”185

É preciso, também, uma interculturalidade que exige do cristianismo

ocidental “humildade” para reconhecer seus limites como expressão cultural

contingente e uma abertura para ver no outro – e em sua cultura – legítima

expressão cultural humana capaz de gerar novas formas de expressão da fé

cristã, todas igualmente válidas.

Assim, encarregando-se de seus próprios limites culturais, poderia o

cristianismo abrir-se para outras culturas sem intolerâncias, sem

complexo de superioridade; e entrar em uma dinâmica dialógica que

poderia conduzi-lo para uma radical transfiguração, porquanto que

dessa dinâmica poderiam gerar-se novas formas de cristianismo.186

O desenvolvimento desse processo de autocrítica, de abertura para

considerar outras formas da fé cristã se expressar e de disposição para o

diálogo inter-religioso exige, por parte do cristianismo ocidental, certa renúncia.

Renúncia em ser a única expressão possível da fé cristã e de ser o cristianismo

a única religião verdadeira. Considerar a interculturalidade, renunciando à

pretensão de ser a única possibilidade de compreensão correta de Deus e de

seus projetos de vida é um caminho possível para a construção de uma práxis

missionária relevante.

1.3. Religião e cultura nos textos de Scilla Franco

A prática missionária de Scilla Franco deve ser entendida a partir dessa

relação entre religião e cultura e entre fé cristã e cultura ocidental. Ele é

representante dessa cultura religiosa cristã e de sua pretensão de ser a única

legítima. Encontra-se com um povo que tem uma cosmovisão própria e um

185 Ibidem, p. 29. 186 Ibidem, p. 31.

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jeito particular de ser, fruto de sua cultura que ainda permanece resistindo a

um longo tempo de dominação e aculturação.

Ao analisar-se a ação missionária de Scilla Franco, é importante

considerar essa relação entre cultura e religião e, em particular, o modo como

se dá a relação Cultura Ocidental e Cristianismo. Representante de um ramo

do cristianismo ocidental, o protestantismo, o trabalho de Scilla Franco insere-

se nessa relação.

Scilla Franco aponta para o problema da identificação do Evangelho com

a cultura cristã ocidental. Para ele, a mensagem do Evangelho é fundamental.

É ela quem o inspira e impulsiona à ação em favor do outro. Entretanto, é

preciso desvincular a essência do Evangelho das culturas que a envolvem. Diz

ele,

... o índio pra ser cristão, não precisa deixar de ser índio. Porque no

fundo, o fundamentalismo tem pra mim uma grande desvantagem,

porque segundo eles, o índio é tão mais crente quanto menos índio

ele for. Quer dizer, o índio crente é aquele que não dança, que não

bebe haxixe, que não freqüenta nada na sua tribo, que não usa mais

colares, que não fura o beiço, esse é o bom índio cristão. E nós

entendemos que ele pode ter todos os seus traços culturais e ser um

bom cristão.187

Scilla Franco entende que a identificação da religião cristã com a

conquista da terra pelos europeus nega a essência do Evangelho. Quando o

governo devolveu uma pequena parte das terras aos índios Pataxó, em 1981,

Scilla Franco escreveu o texto: De um Pataxó ao Deus dos brancos188. Nele,

contrapõe a atitude de auto-doação de Jesus à busca de privilégios dos

sacerdotes que foram coniventes e até participantes da exploração da terra e

dos índios.

Na Carta aos Kaiowá189, Scilla Franco descreve uma visão dos céus e do

juízo utilizando imagens da cultura e do cotidiano indígena para descrever os

céus. Nele, intercede pelos índios junto ao Trono de Deus. Entretanto, fala à

187 Jornal Contexto. Campinas: abril de 1994, p. 7. 188 Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de abril de1981. 189 Expositor Cristão. São Paulo: 1ª quinzena de dezembro de 1977.

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96

Igreja cristã, particularmente à Metodista, mostrando seus equívocos na

evangelização dos índios. Cita os missionários e põe-se como um deles numa

auto-crítica que revela as fragilidades da ação missionária da Igreja. Equívocos

que são, na verdade, uma violência à sua cultura e valores.

Em Como cantar em terra estranha?190, ele descreve a humilhação

imposta aos índios numa apresentação “folclórica” na cidade no dia do índio.

Um índio por nome Ara’i (nome indígena substituído por um nome cristão),

personagem do conto, “com o rosto pintado por guache ao invés do urucum

sagrado, sob aplausos entrava no meio de um círculo, palco improvisado num

grotesco espetáculo tragicômico do aviltamento de uma raça” Como reação à

violência a que é submetido e ao deboche do povo, faz uma paráfrase do

Salmo 137:

Nas calçadas de suas ruas tenho chorado lembrando de minha terra,

do tempo que ela era minha, e em seus postes tenho pendurado

minhas flautas, vocês nos fizeram dependentes e ainda pedem

canções e danças. Vocês nos oprimem e pedem que sejamos

alegres e têm a audácia de me pedir uma dança de meu povo. Como

posso dançar ou cantar uma canção de meu povo se sou estrangeiro

em minha própria terra... Ah! Se eu trocar a maior alegria da cidade

por minha mata... Que eu me seque como uma árvore do castelo

atingida pelo raio...191

Scilla Franco procura separar o “Evangelho” da prática cristã. Quando

perguntado sobre como conciliar o anúncio do evangelho com a religião dos

índios, responde: “A princípio gostaria de definir o que entendo por Evangelho.

Evangelho é a proclamação da boa-nova, que é anunciado para a libertação

dos povos. Eu nunca neguei que não se deva pregar o Evangelho para o índio.

Agora eu sempre me pergunto o que é o Evangelho para o índio, como e

quando pregá-lo.”192 Para ele, o Evangelho tem como fundamento a vivência

do amor e a forma como foi anunciado aos índios negou esse fundamento.193

190 Boletim do GTME, setembro de 1982. 191 Ibidem. 192 FRANCO, Scilla. Missões protestantes foram coniventes na exploração do índio.Jornal Evangélico. 1ª quinzena de fevereiro de 1981. 193 FRANCO, Scilla. Uma vida dedicada à Missão.Boletim do GTME, Nº5, 1984.

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Entende que há na culura indígena muitos elementos que serviriam como

pontes para o anúncio do Evangelho. Mas, uma “pretensa superioridade de

cultura e civilização cria um hiato muito grande, que impede a verdadeira

comunicação com os índios.”194 Essa auto percepção de superioridade, por

parte dos missionários, não apenas impede a comunicação, mas, representa

uma violência à cultura indígena: “muitos missionários sem saberem nada da

cultura do índio, sem saberem até o que era religioso, o que era folclore,

fizeram um paralelo: nós temos a religião certa e tudo o que eles têm é

fetichismo, é culto do demônio, e assim não aproveitam absolutamente nada do

que os índios têm na sua cultura.”195

Para Scilla Franco, a classificação dos rituais religiosos indígenas como

paganismo, adoração aos demônios e feitiçaria, por parte dos missionários

protestantes e católicos, foi um grande erro. Ele descreve atos de violência de

missionários contra a religião indígena movidos pela incompreensão e

pretensão de superioridade.

A falta de compreensão de seus valores levou a diversas formas de

repressão, desde proibir os crentes de participarem de certas

cerimônias até atitudes de certo chefe de posto, ‘zeloso’, que

chegava a interromper a chicha e derramara bebida, com a intenção

de proteger os crentes... Essa evangelização de sequestro poderia

produzir tudo, menos cristãos... Suspendam os benfícios e vejam

quantos cristãos sobram.196

Segundo Scilla Franco, essa atitude dos missionários protestantes leva os

índios a disfarçar ou mascarar seus rituais quando estão perto dos brancos.

Perdem a noção de seu valor próprio, de sua dignidade e do valor de sua

cultura e religião, sentindo-se diminuídos em relação aos brancos. Como

exemplo, pode-se citar os rituais que acompanhavam o processo de plantio do

milho, identificado pelos missionários como feitiçaria e superstição. Scilla

Franco relata que, quando os acompanhou nesse processo, de início, eles

194 FRANCO, Scilla. Missões protestantes foram coniventes na exploração do índio.Jornal Evangélico. 1ª quinzena de fevereiro de 1981. 195 Ibidem. 196 Ibidem.

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disfarçavam e escondiam dele os rituais.197 Os índios não queriam deixar seus

rituais, mas, por outro lado, não queriam desagradar os missionários.

Outro erro dos missionários, segundo ele, foi a cultura de dependência

criada pelo assistencialismo paternalista. Para ele, uma evangelização ligada

ao assistencialismo cria uma relação entre religião e a assistência que

descaracteriza a evangelização. Tornam-se cristãos pelos benefícios. Vivem

um impasse: não querem ser cristãos e deixar suas tradições, mas, também,

não querem perder os benefícios. Scilla Franco chama isso de “evangelização

de sequestro.”198

Na avaliação de Scilla Franco, apenas os pentecostais conseguem

“sucesso” de adesão entre os índios e aponta as razões:

Talvez o único grupo que alcançou sucesso entre eles sem lhes

oferecer bens materiais, e até conseguido receber deles, são os

pentecostais. A razão disso é que os pentecostais apelam para o

fanatismo e oferecem bênçãos imediatas, como cura, proteção

contra o mau olhado e obras de feitiçaria, colheita abundante, sorte

nos negócios e outras bênçãos espirituais de ordem prática, além,

naturalmente, do ambiente místico, dos cânticos espirituais, das

revelações e línguas, tão comum às crenças originais dos Kaiowá.199

Essa percepção de Scilla Franco encontra apoio em estudo feito por

Vietta e Brandt200. Segundo eles, “os processos de cura atribuídos aos

neopentecostais extrapolam as questões de ordem meramente orgânica e,

nesse caso, estão mais próximos das concepções kaiowá e guarani sobre

saúde e doença.”201 Principalmente, remetem a um aspecto fundamental

relacionado à construção da pessoa, isto é, à concepção sobre a dualidade da

alma humana.

Entre as Igrejas pentecostais e neopentecostais presentes nas aldeias os

pastores são pessoas da própria tribo e esses pastores índios conseguem, de

197 FRANCO, Scilla. Avati Moroti. Boletim do GTME, nº 1, 1982. 198 FRANCO, Scilla. Reflexões sobre o povo Kaiowá. Boletim do GTME nº1, Cadernos do CEDI nº 5, 1980. 199 Ibidem. 200 VIETTA; BRAND – 2004. 201 Ibidem, p. 248.

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algum modo, recompor alguns aspectos fundamentais da cultura Kaiowá: os

vínculos com o sobrenatural, através dos rituais, e elementos da ordem social,

como o papel de conselheiros que exercem e a reunião de todos numa “família

extensa” – na Igreja, são irmãos na fé.

2. Proximidade, contextualização e compaixão

2.1. Proximidade e sensibilidade

O envolvimento de Scilla Franco com os índios Terena e Kaiowá se deu

pela proximidade com esse grupo. Estão à sua porta e ele não pôde deixar de

ver sua miséria e sofrimento. A visão do “outro” em seu sofrimento o perturba e

essa perturbação o leva ao envolvimento. No caso de Scilla Franco, religioso já

envolvido em projetos sociais de ajuda a colonos pobres, a proximidade o leva

a considerar um grupo até então ignorado por ele. Sensibiliza-se porque vê o

outro como “próximo”.

Paulo Suess202 utiliza a imagem da casa para descrever o que entende

por missão: quando uma comunidade religiosa decide enviar missionários para

um território de missão, o faz na perspectiva de “abrir uma casa”. Assim é

entendida a missão: a abertura de uma casa, de um espaço do grupo religioso

no lugar da missão. Essa concepção de missão de início cria barreiras: “uma

casa pressupõe um terreno com muros, privacidade, segurança e estabilidade.”

Delimita os espaços e evidencia a distância. Suess recorre ao relato dos

Evangelhos sobre o envio dos discípulos em “missão” e a recomendação para

hospedarem-se nas casas do povo. Jesus

enviou seus discípulos como portadores da paz, despojados do

poder, sem ouro e sem bastão, prudentes como as serpentes e

simples como as pombas. Na Palestina de Jesus – e isso não é

apenas um dado cultural ou histórico, mas um indicador evangélico –

o referencial da missão não é a casa própria, mas a gratuidade da

202 SUESS, Paulo. Evangelizar a partir dos projetos históricos dos outros – Ensaio de Missiologia. São Paulo: Paulus, 1995, p. 5.

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hospedagem na casa dos outros e a experiência pascal no

caminho.203

No caso dos índios, a posse de uma propriedade não faz sentido para

eles. A terra é de todos e deve ser aproveitada comunitariamente.

A imagem da construção de uma casa no espaço do outro representa

bem um conceito de missão não-encarnacional ou não-vivencial. A casa, o

templo ou o salão de cultos aponta para a existência de algo novo e diferente

do lugar. Estranho porque veio de fora. Tem o sentido da auto-proteção e,

também, do que é diferente. Geralmente, apresenta-se como o melhor. O

hospedar-se na casa dos outros, ao contrário, aponta para a proximidade, para

a convivência. Descarta o temor pela auto-preservação. Não apenas oferece,

mas, recebe. Estar entre os índios implica nessa relação e com eles há muito o

que se aprender: são, por natureza, hospitaleiros. Usando outra imagem da

história da salvação:

Ser comunidade missionária significa arriscar-se na travessia com o

povo. E nesta travessia, a comunidade missionária não é apenas um

grupo a mais a bordo. Ela é catalisadora de transformações

profundas. É companheira dos Outros em sua solidão, angústia e ira.

É articuladora da utopia do Reino com a realidade que oprime os

pobres e destrói a identidade dos Outros.204

É possível dizer que Scilla Franco viveu este tipo de missão. Esteve junto

dos índios e implementou uma pastoral da convivência. Não abriu um

“trabalho” metodista na reserva. Não fez adeptos do Metodismo, nem fundou

uma Igreja. Conviveu com eles e se tornou, através de seus textos, porta-voz

de suas aspirações e angústias. Assumiu a causa deles como se fosse sua,

demonstrando profundo respeito por sua religiosidade e cultura. E era dessa

forma, um seguidor de Jesus, aceito nas suas casas e em seus rituais.

A proximidade possibilita o conhecimento do outro, de suas necessidades

e dores e, também, de suas virtudes e riquezas. Ao mesmo tempo, leva ao

auto-conhecimento que desencadeia um processo de auto-avaliação e

203 Ibidem, p. 6. 204 Ibidem, p. 8.

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crescimento. O ser humano se reconhece no contato e nas relações com

outras pessoas. Segundo Suess, não apenas numa dimensão pessoal, mas,

também enquanto um povo ou um grupo social. “Sabemos quem somos a partir

daquilo que os outros acham que somos e o que nós achamos deles e de nós

mesmos.” 205

2.2. A necessária contextualização

Para romper com um modelo de missão vinculado ao anúncio de uma

determinação cultural específica ou de uma religião em detrimento de outras é

preciso considerar a missão como Missio Dei. David Bosch206, ao descrever os

novos paradigmas da teologia da missão, demonstra como ela, ao longo da

história do cristianismo, foi entendida de maneiras diversas e, muitas vezes, até

conflitantes. Já foi vista em termos soteriológicos, como “salvar indivíduos da

condenação eterna”; em termos culturais, como expansão do Ocidente Cristão

com suas “bênçãos e privilégios”; também foi compreendida em categorias

eclesiásticas, como a expansão da Igreja ou de uma denominação

específica.207 Mas, foi na Conferência de CoMin em Willingen no ano de 1942,

por influência de Karl Barth, que a idéia de missão como Missio Dei surgiu de

maneira clara. Foi nesse momento, segundo Bosch que:

Compreendeu-se a missão como derivada da própria natureza de

Deus. Ela foi colocada, pois, no contexto da doutrina da Trindade,

não da eclesiologia nem da soteriologia. A doutrina clássica da

missio Dei como Deus, o Pai, enviando o Filho, e Deus, o e o Filho,

enviando o Espírito foi expandida no sentido de incluir ainda outro

“movimento”: Pai, Filho e Espírito Santo enviando a igreja para

dentro do mundo.208

Bosch vê, também, de maneira positiva a interpretação de salvação que

surgiu do movimento missionário nas últimas décadas, uma compreensão mais

ampla do que uma dimensão meramente pessoal e individualista. A salvação,

205 Ibidem, p.10. 206 BOSCH – 2007. 207 Ibidem, p. 467. 208 Ibidem, p. 467.

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conteúdo da missão cristã, acontece sempre no contexto da sociedade

humana. Para ele,

Num mundo em que as pessoas dependem umas das outras e cada

indivíduo existe em uma rede de relacionamentos inter-humanos, é

de todo inviável limitar a salvação ao indivíduo e a seu

relacionamento pessoal com Deus. Ódio, injustiça, opressão, guerra

e outras formas de violência constituem manifestações do mal; a

preocupação com a humanidade, a vitória sobre a fome, a doença e

a falta de sentido fazem parte da salvação pela qual esperamos e

trabalhamos. Os cristãos oram que o reino de Deus venha e que a

vontade de Deus seja feita assim na terra como no céu (MT 6.10);

conclui-se daí que a terra é o locus da vocação e santificação da

pessoa cristã.209

Assim, há uma estreita relação entre testemunho e contexto. Embora a

evangelização tenha uma dimensão pessoal importante, ela não está

desvinculada da história e da sociedade; deve ser um testemunho

contextualizado.

O contexto deve ser considerado na proclamação do Evangelho fugindo

da tendência do discurso religioso autoritário com respostas prontas que

servem para qualquer situação. A necessária contextualização exige

aproximação com as pessoas, compreensão de suas necessidades e ações

que promovam transformação. “Sem tornar-se relevante no contexto social,

cultural, político, econômico, a partir de uma vivência profunda da fé em Cristo,

o evangelho pode servir para aliviar a consciência e como experiência de

salvação pessoal, mas, não terá maior penetração na sociedade.”210

A compreensão de que a mensagem do evangelho deve ser

contextualizada tem uma dimensão profética que não é apenas de denúncia

das forças que produzem o sofrimento e a morte, mas, também, é marcada

pela luta por justiça e por transformações sociais estruturais. É possível

enxergar essa dimensão profética nos discursos de Scilla Franco dirigidos à

209 Ibidem p.475 210 ZWETSCH, Roberto E., Missão como com-paixão – Por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana. Sinodal: São Leopoldo; CLAI: Quito, 2008, p. 398.

Page 103: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

103

Igreja e à sociedade e no seu esforço real de eliminar o sofrimento do índio.

Embora não tenha sido capaz de elaborar uma crítica contundente em relação

à ditadura militar.

Na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, há que se

considerar as pessoas que sofrem à margem de uma sociedade desigual e

excludente. Entretanto, não como uma ação que vem de cima, revestida por

uma pretensa superioridade, mas, como uma ação em favor da própria Igreja e

daquele ou daquela que faz missão. Uma práxis missionária contextualizada

traz vitalidade à Igreja, possibilita sua renovação e lhe confere relevância nos

tempos em que vivemos. A Igreja participa da Missão que não é sua, é de

Deus (Missio Dei) e ao realizá-la encontra o espaço de sua renovação e, ao

mesmo tempo, de “reafirmação de uma identidade cristã dinâmica, desafiadora

e solidária com a humanidade, sobretudo a partir do compromisso com as

pessoas mais sofredoras e necessitadas de apoio, compreensão e

possibilidades de vida digna.”211

Roberto Zwetsch propõe, em resposta aos desafios da sociedade atual e

como uma dimensão central para a contextualização do evangelho, uma

compreensão de missão como com-paixão. Para ele, missão como com-paixão

denota a ação compassiva de Deus para com a humanidade, através

da qual ele a convoca para participar de sua missio em direção ao

reinado de paz e justiça. A igreja-em-missão participa da missio Dei

através da proclamação do evangelho, da vivência da fé e do amor,

do serviço libertador e da solidariedade evangélica, que ultrapassa

fronteiras geográficas, culturais, de gênero, de gerações, com vistas

a uma nova experiência de comunidade livre e libertadora (Gálatas

3.28).212

Essa compreensão de missão afasta a igreja de seu eclesiocentrismo e

amplia sua visão de evangelização. Num tempo marcado pela insegurança e

por contradições, esse é caminho que ele aponta para Igreja manter-se viva e

relevante. O protestantismo tem demonstrado uma forte tendência

eclesiocêntrica, com a instituição adquirindo mais importância do que o clamor 211 Ibidem, p. 398. 212 Ibidem, p. 401.

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104

das pessoas. Corre-se, assim, o risco da prática missionária perder a sua

dimensão evangélica e tornar-se preservadora da instituição. Para Zwetsch

“não é mais possível concordar com uma presença cristã em meio aos outros

que não assuma suas culturas, seus projetos históricos de libertação e

sobrevivência digna.”213

Scilla Franco demonstra preocupação com uma pregação cristã vinculada

ao contexto que a cerca. No texto Que tens, dormente?214, a partir da história

bíblica do profeta Jonas, aponta para distância que havia entre o discurso e

prática da Igreja do contexto social brasileiro. Esse distanciamento tornava a

Igreja despreparada para entender as necessidades do povo e, portanto, para

ajudar. A mensagem da Igreja pregada fora de contexto torna-se infrutífera. Diz

ele,

Então me ocorre que, muitas vezes, os pseudoprofetas de nossos

dias vociferam loquazmente de seus púlpitos sem resultados,

simplesmente porque pregam em Tarsis o que deveria ser pregado

em Nínive. E nem é de admirar que haja uma defasagem de suas

vidas com o que pregam, e nem que tenham por ouvintes uns

poucos crentes piedosos, muitos bancos vazios e alguns bocejantes

engolidores de homilias.215

Essa preocupação com uma missão contextualizada aparece em outros

de seus textos. Em Por uma teologia nativa216, Scilla Franco discute a

importância da teologia para a práxis missionária da Igreja. Defende uma

teologia nativa, próxima do povo e que considere seus problemas reais e

concretos.

Por que precisamos de uma teologia nativa? Porque a teologia

orienta o pensamento e este o comportamento da Igreja ante o

mundo. A distância existente entre a base e a cúpula é produto de

uma orientação teológica divorciada do povo, ou melhor, que não

213 Ibidem, p. 59. 214 FRANCO, Scilla. Que Tens Dormente? Expositor Cristão. São Paulo: 1979. 215 Ibidem,p.9. 216 Publicado no Expositor Cristão. São Paulo: 2ª quinzena de junho de 1981, p. 15.

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105

leva em conta sequer as manifestações culturais e até mesmo a

religiosidade popular, nem mesmo regionais.217

Scilla Franco defende que essa teologia nativa, feita por cristãos, leve em

consideração os valores culturais das pessoas que pretendem alcançar,

inclusive, seus valores religiosos. Demonstra, assim, respeito pela religião que

não é a sua e considera que há o que aprender com outras expressões

religiosas. Para ele, aceitar o senhorio de Cristo “é ser capaz de admitir que ele

é o todo-poderoso e pode se manifestar em outras formas culturais que não

aquelas bitoladas por nós, e que Ele tem ovelhas em outro aprisco.”218

3. Missão e ecumenismo

3.1. O Ecumenismo como uma exigência da Missão

Scilla Franco entende que o Ecumenismo é uma exigência evangélica e

uma necessidade para a Missão. Entretanto, não deixa de observar fragilidades

no discurso ecumênico. O que aponta como falha é o distanciamento entre

discurso e prática.

Existe ecumenismo e ecomania. O verdadeiro ecumenismo para mim

não é opção, mas imposição, ou então Cristo teria orado em vão, ou

Deus não teria respondido a oração de Cristo, quando Ele orou: ‘Pai,

que ele seja... ’ O que é um absurdo imaginar. É mais próprio admitir

que nós é que somos desobedientes. O ecumenismo trabalha nos

pontos e propósitos que temos em comum reconhecendo as

divergências e respeitando-as. Fora disso, é sincretismo, é modismo,

é querer fazer as coisas para a sociedade ver. O grande beneficiado

com este procedimento esdrúxulo é o inimigo do Evangelho, quer

seja o comunismo ateu, quer o capitalismo sem Deus.219

Scilla Franco assume que sem ecumenismo não é possível realizar a

“obra de Deus”. Com ironia, denuncia um ecumenismo de fachada e defende a

unidade e cooperação entre as Igrejas. Ajuda a criar o GTME, organismo

217 Ibidem, p.15. 218 Ibidem p. 15. 219 Boletim do GTME nª 5, 1984.

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106

ecumênico, que tem por objetivo estabelecer um diálogo e promover ações

conjuntas dos missionários de diversas denominações em favor dos índios,

como descrito no capítulo anterior. Denuncia as divisões e até disputas entre

frentes missionárias como escândalos que comprometem a verdadeira práxis

missionária. Aponta a vaidade e soberba dos que se sentem “donos” da missão

e dos próprios índios e agem em favor se si mesmos e conclui: “... o problema

dos índios é que os inimigos deles são unidos, e os ‘amigos’, desunidos.

Algumas vezes, até competem uns com os outros”.220

A aproximação de Scilla Franco com representantes de outras Igrejas

Cristãs acontece, na maioria das vezes, com os de tradição protestante. Mas,

não se limita a eles. Empreende, também, ações conjuntas com representantes

da Igreja Católica em favor dos indígenas. Em 26 de março de 1979, por

exemplo, une-se ao bispo católico da diocese de Dourados, Dom Teodardo

Leitz, em uma solicitação ao presidente da FUNAI, Ademar Ribeiro da Silva,

para que alguma coisa seja feita para evitar conflitos dentro da reserva

indígena Francisco Horta Barbosa (ANEXO 7).

Scilla Franco, também, usa imagens do cotidiano das tribos para falar de

temas cristãos e até paráfrases de textos bíblicos. Toca num tema fundamental

na discussão ecumênica: a salvação. Para ele, não precisariam tornar-se

cristãos para serem salvos. Ao contrário, descreve a visão do paraíso indígena

como o lugar onde não há cristãos brancos. Há, portanto, nos textos de Scilla

Franco, intuições sobre temas fundamentais para a caminhada ecumênica e a

relação entre evangelização e ecumenismo.

Todavia, é possível perceber certa ambiguidade no discurso de Scilla

Franco sobre o tema “missão e ecumenismo”. Algumas vezes parece indicar a

necessidade do índio ser cristão; em outras, enxerga a evangelização em

oposição à prática ecumênica. Entretanto, essa ambiguidade é própria de

alguém que experimenta um processo de mudança pessoal em questões que

são fundamentais. Prevalece, ao final, seu apelo à unidade.

Portanto, o estudo da práxis missionária de Scilla Franco leva à

discussão do tema Missão e Ecumenismo. O movimento ecumênico tem suas 220 Ibidem.

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107

origens no movimento missionário protestante. A unidade cristã surge como

uma necessidade diante do escândalo que representava a divisão e, em alguns

casos, disputa entre cristãos frente ao mundo “pagão”. Mesmo assim, reações

contrárias ao ecumenismo apontam para uma aparente contradição entre

evangelização e ecumenismo. Segundo essa visão, o diálogo entre as Igrejas

protestantes e católicas e, ainda mais, entre Igrejas cristãs e religiões não-

cristãs eliminariam a necessidade de missão.

A respeito desse tema e a partir das considerações sobre a história

missionária da Igreja e dos fundamentos teológicos que a sustentaram, José

Maria Vigil coloca a questão da seguinte forma: “É necessária a ação

missionária?” 221 Para ele, respondendo a pergunta, a ação missionária não é

necessária para a salvação dos destinatários – ou seja, fora da Igreja há

salvação, nem é necessária para a plenitude da salvação dos destinatários. Há

posições teológicas que admitem a possibilidade de salvação fora da Igreja,

mas, essa salvação precisa ser purificada ou plenificada pelo cristianismo. Para

Vigil, essa visão, igualmente, distorce gravemente a mensagem cristã. Numa

perspectiva ecumênica, a ação missionária é uma necessidade da própria

Igreja. Nela, se chega à plenitude da salvação e do conhecimento:

Ainda que de sua parte Deus se revele e se entregue

completamente, de nossa parte nenhuma religião é capaz de acolhê-

lo e recebê-lo devidamente. Por outro lado, Deus se manifesta de

modo tão variado e multiforme a tantos povos que se torna

inimaginável uma religião capaz de acumular sozinha o mesmo

conteúdo captado pelo conjunto das religiões. É impensável em

princípio que uma religião consiga abarcar todo o mistério de Deus e

não tenha nada a aprender das outras.222

Assim, segundo Vigil, a ação missionária “tem sentido e é necessária para

a plenitude salvífica tanto de missionários como de missionados, tanto de uma

religião como de outra”. Esta é justificativa tanto para a Missão quanto para o

diálogo inter-religioso.

221 VIGIL, José Maria. Teologia do pluralismo religioso – para uma releitura pluralista do cristianismo. São Paulo, Paulus, 2006, p. 409. 222 Ibidem, p.410.

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Paulo Suess223, na mesma linha, discute a respeito da necessidade da

missão a partir de uma compreensão ecumênica. A Igreja, de modo geral, vê a

missão como uma “necessidade salvífica” para o outro. Essa é a justificativa:

evangelizar para salvar os outros.

Suess sugere que a necessidade da missão diz respeito mais à saúde e

vitalidade da Igreja do que à necessidade de salvação dos outros. Ele toma

como ilustração a prática de alguns povos tribais de procurar em outras tribos

mulheres para o casamento. Essa prática evita casamentos incestuosos e a

maior probabilidade de deformações biológicas. Segundo ele,

A Missão é algo semelhante. Ela representa a radical necessidade

da Igreja de deslocar-se permanentemente para garantir a saúde e

vitalidade da “tribo”. A Missão é seguimento de Jesus que se diz e

fez Caminho. A Igreja Missionária – povo de Deus em peregrinação –

garante a vitalidade de toda a Igreja.224

A missão, então, é uma necessidade da Igreja para manter-se com

saúde. “Uma Igreja cuja energia se esgota em problemas caseiros ou rixas

institucionais seria uma Igreja doente.” Conclui Suess:

A Missão, nesta perspectiva, não é um favor que prestamos ao outro,

mas é um favor do outro que nos recebe como hóspede em sua

casa. A graça da nossa fé em Jesus crucificado e ressuscitado que

vivemos no meio dos povos é nossa dádiva gratuita. A nossa

presença é gratuita. A gratuidade transforma o mundo, não a

cobrança ou a ameaça.225

Pode-se dizer, também, que Scilla Franco faz, como sugere Fornet-

Betancourt, uma crítica intra-religiosa, necessária tanto para o futuro do

cristianismo na América Latina, quanto para as outras religiões como legítimas

expressões da cultura humana.

223 SUESS, Paulo (organizador). Os confins do mundo no meio de nós – Simpósio Missiológico

Internacional. São Paulo, Paulinas, 1999. 224Ibidem, p. 96. 225Ibidem, p. 97.

Page 109: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

109

3.2. Missio Dei, compaixão e vivência ecumênica

Segundo Zwetsch, “as relações entre missão e ecumenismo são tensas,

polêmicas e, por vezes, até de antagonismo.” E essa tensão existe exatamente

em decorrência da compreensão que se tem do que seja a missão da Igreja.

Se a entendermos como o chamado à conversão a uma denominação ou

religião, não há espaço para a relação ecumênica, mas, prevalecem o

exclusivismo confessional e o separatismo. Mas, por outro lado, se a

entendermos, a partir do conceito de missio Dei, como um testemunho histórico

que anuncia e vive a salvação para a libertação das pessoas das coisas que as

desumanizam e lhes roubam a dignidade e a vida, o “ecumenismo – como

busca da unidade no testemunho do evangelho de Deus para que o mundo

creia – torna-se convite e compromisso que convoca cristãos e Igrejas de

maneira integral e desafiadora. 226

Zwetsch define como missão da Igreja a tarefa de reinterpretar a

mensagem transformadora e solidária do evangelho em cada contexto

humano. Na América Latina, isso implica num compromisso inadiável com os

pobres e com os que sofrem. Na direção deles deve caminhar a Igreja,

compassivamente. Para uma teologia da missão entendida como com-paixão,

como propõe Zwetsch, a dimensão ecumênica é fundamental. “Missão e

ecumenismo são realidades concomitantes e mutuamente condicionantes. Por

essa razão é que afirmo ser necessário compreender a vocação cristã em

chave ecumênica.”227

Para isso, torna-se necessário uma definição de missão que não seja o

compromisso com o avanço da fé cristã como expressa no cristianismo

ocidental, seja ele católico ou protestante. Um conceito de missão que evoque

os princípios evangélicos de Reino de Deus e de promoção da vida humana.

Essa compreensão de missão afasta a Igreja de seu eclesiocentrismo e amplia

sua visão de evangelização.

Entender a missão e evangelização numa dimensão ecumênica implica

numa renúncia da compreensão de evangelização como avanço confessional e

226 ZWETSCH – 2008, p. 362. 227 Ibidem, p. 362.

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110

proselitismo. A missão da Igreja não se restringe a fazer novos adeptos e não

pode estar centrada em si mesma. A sua razão de ser reside no serviço ao

próximo, em particular, ao pobre. O serviço é um elo que deve ligar as

diferentes denominações cristãs, que deve levá-las a relativizarem suas

próprias doutrinas e rituais e se unirem em torno daquilo que, de fato, é

essencial: a defesa da vida e da dignidade humana.

Nesse sentido, mais uma vez, a compreensão da Missão como Missio

Dei aparece como um referencial fundamental. A compreensão de que a Igreja

não é possuidora da verdade e nem proprietária da Missão, mas, parceira de

Deus numa causa que é maior do que ela e “maior do que o próprio movimento

ecumênico, movimento que vamos construindo com grandes dificuldades,

renovadas esperanças, mas também sem ilusões” 228, ajudará a Igreja a corrigir

seus equívocos, especialmente uma visão estreita de missão, e inserir-se no

debate ecumênico.

Ao tratar desse tema, Paulo Suess229 relativiza a universalidade de

qualquer cultura e não apenas a ocidental e cristã. Ele parte do pressuposto de

que as expressões culturais serão sempre particulares e finitas e a expressão

religiosa que a acompanha também. Desse modo, como parte de uma

expressão cultural humana, a religião, seja ela qual for, não pode se pretender

universalmente válida. A tendência ou pretensão de universalidade acompanha

as religiões de culturas hegemônicas. A sua imposição, entretanto, representa

uma violência em relação às outras expressões religiosas e culturais. A partir

disso, Suess propõe um diálogo que não se restrinja às “grandes religiões”,

mas, que inclua as religiões indígenas e africanas. Um diálogo que não seja

proselitismo ou competição, mas, um enriquecimento do próprio caminho, “a

partir da complementaridade antropológica”.230

A compreensão dessa dimensão da missão leva a uma necessária

abertura para aprender com o outro e enriquecer a própria experiência. Nesse

sentido, “conversão” torna-se uma via de duplo sentido. A experiência de Scilla 228 ZWETSCH, Roberto E. Prática da missão em perspectiva ecumênica in: SINNER, Rudolf Von. (org.) Missão e ecumenismo na América Latina. São Leopoldo: Sinodal, 2009, p. 59. 229 SUESS, Paulo. Introdução à Teologia da Missão – Convocar e enviar: servos e testemunhas do Reino. Petrópolis: Vozes, 2007. 230 SUESS – 2007, p. 202.

Page 111: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

111

Franco também nos revela isso: em seus sete anos de atuação juntos aos

índios não fez nenhum deles um cristão metodista, mas, ele próprio viveu um

processo de conversão à cultura deles. Sua experiência missionária, como

convivência, o levou a um diálogo com expressões religiosas que, muitas vezes

ainda hoje, apesar de todo o desenvolvimento da caminhada ecumênica, não

são consideradas no diálogo ecumênico.

Page 112: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história da colonização do território brasileiro foi marcada pela

identificação da civilização Ocidental com a religião cristã. Nesse processo

violento de ocupação de territórios e avanço sobre as terras indígenas, a fé

cristã teve um papel legitimador importante. Elementos da filosofia platônica e

aristotélica adquiriram uma perspectiva cristã nos pensamentos,

principalmente, de Agostinho e Tomás de Aquino e ajudaram a formar uma

cosmologia e uma antropologia que afirmavam a superioridade da cultura cristã

européia sobre as demais. Esta visão forneceu os elementos ideológicos que

justificaram a conquista e, aliada a ela, uma “missão” evangelizadora cujo

centro era a Igreja.

Outros movimentos de ocupação e exploração econômica das terras

indígenas ocorreram no Brasil. Neste traballho, apresentou-se, particularmente,

o avanço sobre as terras indígenas onde é hoje o Mato Grosso do Sul e as

consequências negativas para os nativos da região. Em todos esses

movimentos, de alguma forma, a presença cristã evidenciava-se. Missionários

acompanham esses movimentos. No caso do Mato Grosso do Sul, primeiro os

católicos, com o jesuítas, e depois os protestantes. É no contexto da atuação

do SPI sob a direção da figura marcante do Marechal Rondon, que surge a

Missão Evangélica Caiuá.

Vale ressaltar que há boas intenções, com ações concretas que visam

amenizar o sofrimento dos índios. Entretanto, boas intenções não são

suficientes. Essas ações, marcadas pelo assistencialismo e protecionismo,

tinham um objetivo maior: a pregação e a catequese cristãs. O anúncio da fé

cristã, entendida como a única expressão da verdade, relativizava as

expressões religiosas e culturais dos índios. Assim, ao mesmo tempo em que

queriam ajudar, os missionários acabavam contribuindo para desvalorização

desses povos, que tem na cultura e religião um importante elemento de

afirmação de sua dignidade e valor, como todo povo. Sendo a religião e a

cultura importantes elementos de resistência à dominação, como afirma

Page 113: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

113

Suess231, missionários – católicos e protestantes – participaram do processo de

desarticulação de relações sociais entre os índios, o que facilitou a dominação

e exploração.

Deste processo, fizeram parte os índios das etnias Kaiowá e Terena, aos

quais se dirigiu a ação missionária de Scilla Franco. Em anos de convívio com

os brancos, foram submetidos a um processo de aculturação violento que lhes

roubou a dignidade, tornando-se alvo de preconceitos e exploração de diversas

maneiras. O avanço da “civilização” em sua terras foi motivado pela procura de

riquezas materiais. Os conflitos, a Guerra, os empreendimentos econômicos e

a devastação da natureza, provocados por esse avanço, representaram grande

sofrimento e morte para essas pessoas.

O fator religioso foi fundamental no processo de aculturação. A

empreitada colonizadora é acompanhada e legitimada pelo cristianismo. A

religião, portanto, foi importante instrumento na conquista da terra e na

submissão dos povos. Todavia, há nessa mesma religião potencial para o

caminho reverso: o de reafirmar a dignidade natural de todo ser humano e, com

base nisso, empreender ações concretas de reafirmação dessa dignidade e,

em consequência, de preservação da cultura, religião e da vida desses povos.

Uma tradição religiosa adquire importância na medida em que consiga se

traduzir numa mensagem que tenha sentido para o presente; enquanto consiga

ser uma diferença que faça diferença.232 Apelar para a tradição e a herança

doutrinária ou manter a memória de fatos passados, ainda que significativos,

pouco acrescentam à experiência humana se não se traduzirem em motivação

que gere ações novas em favor do mundo, particularmente dos pobres. Foi o

que aconteceu com Scilla Franco.

Nesse sentido, a religião não apenas é um fator de motivação de ações

em favor dos outros, mas, encontra, também, o espaço de sua renovação. A

tradição, os dogmas, os rituais e ações que deles decorrem são reavaliados e

resignificados no encontro com outras maneiras de entender a vida e a

231 SUESS – 1995, p.19. 232 SEGUNDO, Juan Luis. O dogma que liberta – Fé, revelação e magistério dogmático. São Paulo: Paulinas, 2000.

Page 114: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

114

revelação divina. Nesse processo de ir ao encontro dos outros e procurar fazer

diferença no mundo, a religião encontra sua “verdade”. Segundo Jung Mo

Sung,233 “revelação que não nos leva à conversão constante,

mudança/aprimoramento constante das nossas vidas, não é revelação no

sentido cristão”.234

A “verdade da revelação de Deus” está na “diferença” que pode produzir

no mundo. Pela sua proximidade com a pobreza, Scilla Franco foi compungido

a agir em favor de um grupo de pessoas pobres e tenta conferir um sentido aos

princípios doutrinários que, para ele, eram caros. A “verdade” da doutrina que o

inspirava em sua ação pastoral e missionária apareceu nos efeitos de sua ação

em favor dos índios. A doutrina tornou-se “verdade” ou “revelação de Deus” na

medida em que “fez diferença” na vida das pessoas das quais se aproximou.235

Mais do que isso, a diferença também se fez em sua própria vida. A

princípio, pretendia “evangelizar” os índios e compreendia essa missão como a

tarefa de “convertê-los” à fé cristã. No convívio com eles e diante dos males

que esse tipo de “missão” já havia produzido, no entanto, foi levado a reavaliar

suas próprias convicções religiosas e mudou. Experimentou um processo de

“conversão” à cultura e religiosidade do outro.

Em anos de convívio com os brancos, o índio aculturado perdeu sua

dignidade e tornou-se alvo de preconceitos e exploração. Para Scilla Franco, o

papel da Igreja é resgatar essa dignidade e acreditar nas suas potencialidades.

A ação das Igrejas até esse momento era, predominantemente, de pregação

da Palavra, mas, uma palavra desconectada da vida e dos problemas dos

índios; de um evangelho que tinha muita mais de cultura ocidental do que de

Cristo.

Em seus textos, Scilla Franco assume a defesa dos índios: sua

sobrevivência, sua cultura, sua religião; procura desmitificar preconceitos e

visões sobre o índio e sua religião: “adorador de demônios”, “idólatra”,

233 Ibidem, p. 396. 234 SUNG, Jung Mo. Sementes de esperança – A fé em um mundo em crise. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 72 235 SEGUNDO - 2000, p 404.

Page 115: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

115

“feiticeiro” ou insolente, preguiçoso. Tenta com isso, reafirmar a dignidade

fundamental daqueles como seres humanos, criados à imagem de Deus.

Assume, em contrapartida, uma postura crítica em relação ao cristianismo

ou, pelo menos, à sua forma apresentada aos índios. Com ironia, aponta

contradições no discurso religioso cristão. Discutiu, em seus textos, temas

como evangelização, salvação, missão e demonstrou uma postura nova e

diferente do grupo religioso que representava. Afirma, através de seus textos,

que a salvação será dada a povos não cristãos. Discute a validade da

pregação cristã. Não faz adeptos do cristianismo ou da denominação que

representa e tem consciência de que essa não é sua tarefa. Não converte

índios à fé crista, mas, converte-se à cultura que serve.

Entretanto, percebe-se limites na prática de Scilla Franco. No início, não

demonstra conhecer bem a história, a cultura e as peculiriadades dos povos

aos quais propõe-se a ajudar. O conhecimento vai se dando à medida que vive

e convive entre eles. Essa falta de conhecimento leva a cometer alguns

equívocos, como ele mesmo admite ao falar da plantação do milho e todo o

ritual que o acompanha, segundo a tradição indígena. Embora crescente, este

entendimento nunca foi muito profundo e ele, algumas vezes, chega a repetir

conceitos que estão no senso comum.

Missionários católicos e protestantes, de modo geral, e o próprio Scilla

Franco, particularmente, revelam desconhecimento da complexidade cultural

que marca os povos indígenas. Isso é característica do cristianismo ocidental,

como aponta Fornet-Betancourt. Está presente, consciente ou

inconscientemente nas ações missionárias cristãs.

Scilla Franco é crítico de uma evangelização que se aproveita da

dependência criada através do assistencialismo. Entretanto, não consegue ir

muito além disso, na prática. É possível perceber, em seus textos, declarações

e ações sinais de paternalismo. De certa forma, é vencido pelas muitas

dificuldades que cercavam seu trabalho: uma cultura de dependência criada ao

longo dos anos; o poder econômico de um sistema que cerca a reserva e se

aproveita da exploração dos seus recursos naturais e da mão-de-obra

indígena; o isolamento, tanto geográfico quanto no recebimento de recursos; a

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116

concepção de uma evangelização conversionista e o apelo pelo crescimento

institucional.

Ainda assim, produziu resultados dignos de nota: prevaleceu o exemplo

de sensibilidade, compaixão e serviço; a capacidade de auto-crítica, pessoal e

religiosa; a identificação com um povo sofrido e marginalizado; a confrontação

pedagógica da Igreja que o mantém e que ele representa; a sensibilidade para

com os pobres,de modo geral; o espírito ecumênico,tanto na tentativa de reunir

forças para a Missão quanto no respeito e valorização do povo a quem serve.

Importante para o processo de crescimento de Scilla Franco foi, também,

o encontro com outros missionários em torno do GTME. Nesse grupo

ecumênico, encontra um espaço para superar o isolamento. Ainda que tenha

sido pouco o tempo passado nele, Scilla Franco cresce, aprende, se auto-

avalia, compreende melhor as questões complexas que envolvem a Missão

Indígena. Todavia, já estava fora da reserva, vencido, desta vez, pela doença.

Scilla Franco é uma pessoa de seu tempo. Reflete ideias, conceitos,

preconceitos e valores de sua época e da religiosidade na qual foi formado.

Mas, em alguns aspectos, consegue avançar: na capacidade de entender o

“outro”, no caso os povos indígenas, em sua realidade e valorizá-los pelo que

são e não pelo que podem vir a ser, através de um processo de conversão ao

cristianismo. Eles, em si mesmos, em sua cultura e religiosidade, são

importantes.

A Igreja Metodista, como apontado no início deste trabalho, vê no

testemunho de Scilla Franco um referencial para sua ação missionária

indigenista. Na elaboração dos documentos norteadores desse ação,

especialmente “As Diretrizes para a Ação Missionária Indigenista”, utilizou-se

como base documentos produzidos pelo GTI sob a coordenação de Scilla

Franco. Dentre as contribuições da prática e da reflexão de Scilla Franco,

destacam-se, primeiramente, a “pastoral da convivência” como um modelo de

fazer missão desvestido da pretensão de superioridade e fundada no convívio,

onde a interação entre os diferentes beneficia a ambos.

Page 117: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

117

Em segundo lugar, a capacidade que Scilla Franco demonstra de

enxergar no outro o seu valor e a riqueza de suas expressões culturais e

religiosas. Isso leva ao estudo e ao esforço de uma compreensão mais

profunda. Diferentemente dos primeiros colonizadores e de muitos outros que

os sucederam, desde religiosos a governantes, Scilla Franco percebe a

complexidade e a diversidade entre os povos indígenas e se esforça para

entendê-las.

Em decorrência disso, Scilla Franco é capaz de elaborar auto crítica e

uma crítica do grupo religioso a que pertence. Esta é outra contribuição

importante. O modo de ser do índio e a forma como o cristinianismo se

aproximou dos povos indígenas o faz perceber as contradições do discurso e

da prática cristãs. Em seus textos, procura mostrar isso à Igreja Metodista.

Scilla Franco contribui, também, no rompimento com um modelo

conversionista de missão. Em sete anos de trabalho missionário, não

pretendeu e não fez nenhum índio um cristão metodista. Não se põe ao lado

dos índios para convertê-los ao cristianismo, mas, como ato de solidariedade e

compaixão. Do mesmo modo, é crítico do paternalismo que cria dependência,

tanto por parte de organizações civis, quanto por agências missionárias.

Avança, também, e lembra as razões das primeiras conferências

missionárias mundiais que marcaram o início do movimento ecumênico

moderno, ao empenhar-se na formação do GTME para ser um espaço de

encontro, aprendizado, troca de experiências e auxílio mútuo. Contribui,

portanto, na compreensão de que é necessária uma vivência ecumênica no

exercício da missão.

A dimensão ecumênica na prática e reflexão de Scilla Franco está

presente em duas frentes: primeiro, ao buscar unir forças das diferentes

tradições em favor dos índios e, em segundo lugar, na relação que estabelece

com a da religião dos índios. Contribui, assim, para o diálogo inter-religioso no

respeito que demonstra à religião indígena. Um dos temas fundamentais para o

diálogo inter-religioso hoje é o da salvação. Ao discutir esse assunto, Scilla

Franco afirma crer na salvação para além dos limites do cristianismo. É uma

intuição que deve ser considerada.

Page 118: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

118

Do exemplo de Scilla Franco surge o desafio de que a Igreja, em cada

contexto em que está inserida, encontre meios de ser uma presença relevante.

Uma práxis missionária relevante, necessariamente, terá de considerar o tema

do ecumenismo. O desenvolvimento do ecumenismo entre os protestantes na

América Latina aconteceu em meio a tensões e crises. Tensões e crises

superadas quando temas como solidariedade, esperança e paz estiveram em

pauta.

Assim, o testemunho de Scilla Franco enquanto missionário metodista

entre os índios Kaiowá e Terena é um exemplo de uma práxis missionária que,

evoluindo ao longo do tempo, pode perceber o valor da cultura do outro e com

ela avaliar sua própria fé. Uma práxis missionária que pretenda ser relevante

entre esses povos precisa trilhar um caminho de humildade e da convivência. A

convivência desveste da pretensão de superioridade e leva, naturalmente, à

vivência ecumênica. A convivência implica uma relação de igualdade onde há

vontade de oferecer e de aprender.

Hoje, quase quarenta anos depois do início da obra missionária de Scilla

Franco entre os índios Kaiowá e Terena, enriquecida por uma caminhada

missionária e pelo testemunho dos que vieram depois de Scilla Franco e por

relevantes reflexões e contribuições do estudo sistemático de Missiologia, a

Igreja Metodista, que elegeu Scilla Franco como um modelo de missão

indigenista, tem condições de efetuar uma práxis missionária mais efetiva e

menos limitada do que aquela que Scilla Franco conseguiu empreender.

Page 119: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

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Page 127: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

127

ANEXO 1

14/03/78

CHEFE P.I. DOURADOS

ILMO SR. JOEL DE OLIVEIRA

D.D. DELEGADO 9ª DR / FUNAI

Projeto para Roça Comunitária Caiuá

Senhor Delegado

Em relação ao Projeto para Lavoura Comunitária do SR. Scilla

Franco, da Associação da Igreja Metodista, informo a V.Sª que:

1 – Esta Chefia esta de pleno acordo com o proposto no presente Projeto, pois

o mesmo visa criar melhores condições para o tão carente grupo caiuá.

2 – Deve também ser considerado a experiência do referido Senhor com o

trabalho indígena, tendo em vista o excelente resultado obtido em Projeto semelhante

no Posto Indígena Panambi.

3 – Dentro do referido Projeto e Posto Indígena Dourados, esta em condições

auxiliar o mesmo em:

a – Empréstimo do arado marca “John Desta”, tendo em vista que o mesmo

praticamente não está sendo utilizado nas atividades agrícolas do P.I.

b – Sempre que necessário, o Posto poderá deslocar um trator e uma

semeadeira para melhor continuidade das lavouras coletivas.

c – Considerando-se a verba prevista no Projeto Indígena do P.I. Dourados para

a movimentação da Cantina, o P.I. Dourados terá condições de manutenção de 40 a

50 famílias, no período de 04 a 05 meses, para a melhor execução do Projeto da Roça

Comunitária.

Atenciosamente,

Vandelino Bravim

Chefe do P.I. Dourados

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128

ANEXO 2

MINISTÉRIO DO INTERIOR - FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - 9ª DR

A U T O R I Z A Ç Ã O

Visando atender sob caráter prioritário, a Comunidade Indígena Caiuá do PI.

Dourados, cuja situação é bem mais carente, com relação a outros agrupamentos

indígenas também ali radicados, por isto mesmo criando seríssimas dificuldades à

Chefia do Posto e consequentemente à FUNAI e, considerando que o melhor trabalho

que se enquadra a atividade Caiuá é o de lavouras coletivas, como exemplo, o bem

sucedido PI. Panambi e assim, por julgar perfeitamente viável a execução do Projeto

para a roça comunitária apresentado pelo Sr. SCILLA FRANCO, da Associação da

Igreja Metodista, esta Delegacia Regional da FUNAI, com sede nesta Cidade, autoriza

a Equipe de trabalho da Associação mencionada, para junto à Comunidade Caiuá da

Aldeia de Bororó (PI. Dourados), a desenvolver o trabalho proposto, obedecendo às

seguintes ressalvas:

1ª) Que os 40.000,00 (conf. Projeto anexo), sejam transformados para

aquisição de sementes;

2ª) Ao PI. Dourados caberá o custeio das despesas com alimentação, através

da Cantina, para 40 a 50 famílias indígenas no período de 04 a 05 meses de trabalho;

3ª) Ao PI. Dourados caberá contribuir com o empréstimo de um arado que não

vem sendo utilizado, bem como a semeadeira quando forem necessários;

4ª) Que seja fornecido à Delegacia da FUNAI, um relatório mensal de atividades;

5ª) Que haja participação de servidores da FUNAI (Delegacia, Chefia de Posto),

havendo assim vinculação ao Projeto Integrado do PI. Dourados/FUNAI;

6ª) A validade desta Autorização corresponde a um ano agrícola, isto é, até o fim

da safra de 1.979, e, de acordo com o resultado obtido, será revalidado, tendo em

vista o interesse das partes.

Campo Grande, 15 de março de 1978

SCILLA FRANCO JOEL DE OLIVEIRA VANDELINO BRAVIM

Igreja Metodista Del. Reg. 9ª DR/FUNAI Ch. PI. Dourados

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129

ANEXO 3

ASSOCIAÇÃO DA IGREJA METODISTA

PLANO DE PROMOÇÃO SOCIAL

Rua Hilda Bergo Duarte, 315 Caixa Postal, 85 – Fone 2227

CEP 79.800 – DOURADOS – MT

Dourados, 16 de maio de 1978.

EXMO. SR. DELEGADO REGIONAL DA FUNAI

CAMPO GRANDE

REF.: AO CHEFE DO P.I. DE DOURADOS PARA ENCAMINHAR

Prezado Senhor,

“Morrer se preciso for... “ (Mal. Rondon)

Conforme estabelecido em compromisso conjunto dessa Delegacia com a

Associação da Igreja Metodista, estamos enviando nosso primeiro relatório

referente ao Projeto Roça Comunitária Posto Indígena de Dourados,

correspondente aos trinta primeiros dias úteis de trabalho (10/abril a 16/maio/78).

O convite para participação foi estendido a todos, entretanto, respeitando o

princípio cooperativo de adesão livre, apenas trinta pessoas estão participando,

sendo vinte e sete de maneira ativa e três com colaboração parcial. Os resultados

são bastante animadores já pela motivação do grupo, pelo volume de serviço

apresentado, embora não fizesse parte do esquema proposto a título de incentivo

fizemos algumas plantações de inverno, sabendo dos riscos, especialmente por

estar um pouco atrasado dado à falta de chuva, plantamos trigo, algodão, cebola,

ervilha e lentilha, temos uma boa quantia de terra já preparada e estamos iniciando

o trabalho de drenagem no varjão, ressaltamos o apoio da Chefia do Posto o que

nos possibilitou adiantar o cronograma proposto.

AS DIFICULDADES

Soma-se ao descrédito dos Caiuás com relação a Projetos, o interesse de

indivíduos, muitos apenas teleguiados que procuram desencorajá-los,

especialmente explorando o fato de que o Projeto não distribui dinheiro, louvado

em todas minhas experiências anteriores mantenho a opinião de que realmente

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130

não devemos fazê-lo. Acredito que devamos manter um grupo ainda que pequeno

para servir de amostragem.

SUGESTÕES PARA SANAR ESTAS DIFICULDADES

a) a curto prazo o que poderia ser feito era ampliar a Cantina,

acrescentando especialmente alguns suprimentos de proteína de origem animal

(carne, carne seca, peixe, etc.). Sei da dificuldade para atender a demanda em

geral, especialmente de um financiamento a prazo de safra, entretanto, tenho

observado que a alimentação dos trabalhadores é de fato insuficiente e reflete no

rendimento do serviço, sem falar em outras conseqüências. Tão logo receba o

material para concluir o galpão pretendo dar um suprimento de proteína de origem

vegetal baseado na soja (leite, farinha, bife de soja, etc.).

b) a médio prazo estou aguardando os arames para iniciar uma criação

de ovinos e caprinos, aproveitando a característica do pasto natural existente, e

com isto pelo menos uma vez por semana, fornecer um suprimento de carne.

c) A longo prazo esperamos ter milho suficientemente armazenado em

instalações adequadas para o desenvolvimento da suinocultura e que também eles

cheguem a um estágio de desenvolvimento que já tenham reservas próprias.

PREOCUPAÇÕES

O sistema de destoca manual com quanto eu entendo ser o mais educativo,

pois a mecanização total junto aquele grupo seria uma violência e a anulação do

último reduto da cultura indígena do P.I. de Dourados, pois este grupo ainda

conserva suas tradições (língua, religião, danças, autoridade do capitão, etc.),

entretanto, este processo numa agricultura competitiva e altamente mecanizada

como da comunidade envolvente (uma máquina para cada quatro habitantes) fará

com que nosso Projeto saia demasiado caro e que eles não tenham condições de

saldar o compromisso no primeiro ano, seja qual for os resultados é preciso que

seja garantido desde já que eles receberam um retorno mesmo que as

financiadoras, FUNAI e Associação da Igreja Metodista arquem com o ônus.

Algumas horas com o trator de esteira talvez estimulasse um pouco mais,

entretanto fica a critério da FUNAI esta decisão.

Preocupa-se ainda o fato de que a cultura de soja exige muita terra o que

fatalmente vai causar as derrubadas das matas, em muitos casos feita

Page 131: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

131

indiscriminadamente em solos que por sua topografia e composição não se presta

para a agricultura a não ser com alto índice de técnica, colhe-se então uma safra

magra no primeiro ano e logo a seguir vem a invasão das ervas daninhas.

Especialmente o grupo que faz parte do nosso Projeto a única possibilidade que

tem de conseguir algum dinheiro é “fazendo lenha” o que fazem nos sábados e

domingos, dias que o Projeto não trabalha, se uma medida urgente não for

tomada, mais cedo do que esperamos a FUNAI ou alguém terá que fornecer gás

aos índios o que, aliás, será a conseqüência menor.

DEMONSTRAÇÃO DE DESPESAS

FUNAI: Cr$ 13.022,00 (alimentação na Cantina)

ASSOCIAÇÃO DA IGREJA METODISTA:

Cr$ 4.000,00 ( construção de um depósito para sementes)

Cr$ 10.000,00 (aquisição de sementes de soja)

Cr$ 1.400,00 (aquisição de sementes de trigo)

Cr$ 4.728,00 (despesas gerais – tinta, prego, ferramentas, sementes de

hortaliças, etc.)

TOTAL GERAL ....... R$ 33.150,00

Convém observar que não estão incluídos os serviços de trator executado

pelo P.I. e nem as despesas relativas ao mês de maio e nem as despesas que não

são reembolsadas pelo Plano.

Submetemos o nosso relatório a apreciação de V.Sª e aguardamos

quaisquer sugestões que possam melhorar o desenvolvimento do Projeto.

Atenciosamente,

SCILLA FRANCO

Supervisor do Plano de Promoção Social da Associação da Igreja Metodista

Page 132: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

132

ANEXO 4

ASSOCIAÇÃO DA IGREJA METODISTA

PLANO DE PROMOÇÃO SOCIAL

Rua Hilda Bergo Duarte, 315 Caixa Postal, 85 – Fone 2227

CEP 79.800 – DOURADOS – MT

Exmo Diretor da ASPLAN

Fundação Nacional do Índio

Brasília – Distrito Federal

Conforme combinado reunião pastoral missionária em Aquidauana estou enviando relatório e subsídios para um possível convênio entre a Associação da Igreja Metodista e FUNAI. Anexo segue fotografias, relatórios financeiros, um exemplar da Doutrina Social da Igreja Metodista e sugestões a fim de serem estudados pelo Departamento especializado desta Fundação.

RETROSPECTO

Pelo acordo entre eu e o General Bandeira então Presidente da FUNAI

que se faz por intermédio da 9ª D.R., iniciamos um trabalho de Promoção

Social através da agricultura no P.I. de Dourados, os detalhes estão em poder

dessa Fundação desde aquela data. Aquele projeto está totalmente superado,

pois as condições são bem outras no momento.

SITUAÇÃO ATUAL

Estamos cooperando com o projeto integrado P.I. Dourados tendo

responsabilidade da roça comunitária na área Caiuá que iniciamos através de

uma autorização recebida de Brasília e um acordo feito com a 9ª D.R. Nossa

participação é de administração (gerência de campo) feita através de um

Técnico Agrícola contratado pela Associação com dedicação exclusiva,

fornecemos ainda a maquinária necessária para o preparo do solo,

financiamento para semente e outros insumos e pequenas despesas colaterais.

A FUNAI fornece alimentação através da cantina, além dessas despesas que

pretendemos que sejam reembolsadas pelo projeto caso seja bem sucedido,

há outras despesas não reembolsáveis que a Igreja Metodista considera ônus

Page 133: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

133

da posição assumida, entre elas salário de pessoal, manutenção de veículos e

máquinas etc... Pretendemos fique bem claro, caso seja bem sucedida a

lavoura, as entidades financiadora Igreja Metodista e FUNAI deverão lançar a

fundos perdidos o numerário aplicado e garantir novo financiamento, esta é

uma condição sine qua non para se firmar um convênio até que o projeto se

emancipe e seja auto financiado.

OS PROBLEMAS

Os Caiuás até poucos esquecidos e acuados numa extremidade da

reserva especialmente os mais velhos não acreditam nos civilizados

especialmente na FUNAI e na IGREJA, até onde posso perceber que tem

terríveis preconceitos contra missionários e antropólogos. Aos missionários

talvez por considerar inoperante no ponto de vista prático ou até mesmo um

inconsciente sistema de auto defesa de sua religião e aos antropólogos pelos

inúmeros e aborrecíveis levantamentos de cujos resultados práticos ainda não

tiveram conhecimento. Os demais jovens, entretanto talvez por um processo de

descaracterização ou imitativo estão mais dispostos a tentar novas

experiências apesar de uma embaraçante desconfiança.

Por outro lado interesses inconfessáveis de todos quantos serão

prejudicados pela libertação do índio minam o projeto pelos mais estranhos

processos, desde suborno até o emprego de imbecis úteis, promoção de

intrigas e difamação do representante local da FUNAI, entre eles se alistam

corifeus de todos os naipes que sobre o manto de defender o índio, na verdade

procuram a própria promoção ou a mão de obra quase escrava ou a

exploração de sua última e caquética riqueza que é a lenha, cuja venda

representa combustível barato para cerâmicas vizinhas da aldeia e sem dúvida

alguma o suicídio do índio. Não se pode coibir este abuso, pois ele fere os

interesses dos ricos e poderosos que ainda ousam dizer que estão sustentando

o índio comprando a sua própria destruição à R$ 20,00 o metro.

Além dos inconvenientes óbvios a derrubada sem nenhuma orientação

muitas vezes é feita em terrenos que por sua textura e topografia são

Page 134: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

134

imprestáveis à agricultura sem um alto investimento. O antropólogo da FUNAI

Sr. Marinho teve oportunidade de constatar este fato com seus próprios olhos.

Assim o projeto das roças comunitárias tão bem estudado por essa

Assessoria e na opinião do antropólogo Rubens Almeida “opção única de

sobrevivência para os Caiuás”, não tem podido desenvolver toda sua

potencialidade, não tem condições de competir com os “gateiros” que tentam o

imediatismo do Caiuá oferecendo diária de Cr$ 40,00 a Cr$ 50,00 que quase

sempre resulta muito menos pelos acertos duvidosos, pela comida e

alojamento barato que oferecem e pela libertação de todos compromissos de

ordem previdenciária que teriam com os trabalhadores civilizados, quase

sempre tal aliciamento de mão de obra é feito sem conhecimento do P.I. e do

Capitão, o que é facilitado pelas inúmeras vias “públicas” que cortam a aldeia,

ainda a mentalidade capitalista que se desenvolve entre os índios de maior

estágio de aculturação diluem o sentimento de cooperação dos Caiuás.

Vemos apenas duas possibilidades de atingirmos o alvo a médio prazo.

1) Ou que dispuséssemos de recursos para que a cantina pudesse

fornecer privilégios aos que trabalham no projeto. Não sei como se faria isto

mais se os que não trabalham tem os mesmos direitos dos que trabalham

raciocínio lógico para que trabalhar? Por outro lado o precedente aberto aos do

Projeto Araporã receberem ajuda em dinheiro, fica difícil de convencer os

demais em receber fornecimento, isto se agrava porque durante as crises do

Projeto Araporã seus participantes compraram a crédito na cantina apesar de

receberem para comprar a vista. Como o índio não guarda nada especialmente

segredo fica difícil uma explicação convincente.

Se todo projeto da ASPLAM viesse a falir e sobrasse apenas a cantina

teria sem dúvida alguma, justificado os gastos e compensados os esforços. De

tudo que se já inventou parece ser essa a coisa mais legítima; como o índio

não está acostumado a ter responsabilidades financeiras é possível que haja

alguns furos, mais a cantina é uma Instituição que precisa ser estudada com

maior carinho e maiores recursos.

Page 135: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

135

2) A devastação das matas seja quais forem as razões é coisa que tem

que ser impedida a qualquer custo. A venda de lenha feita quase sempre por

intermediários além dos motivos óbvios é uma espoliação uma vez que o preço

é ridículo. As desculpas apresentadas são várias: que se derruba para fazer

roça, nada mais vem verossímil pois os terrenos de baixa calagem

desenvolvem vegetação característica, que vai fornecer as lenhas cobiladas

pelas cerâmicas por sua quase uniformidade, e por ser mais ou menos reta

(cabe muito mais no metro) do ponto de vista do índio facilita a derrubada e

rende muito mais. Na prática tais terras são imprestáveis à agricultura,

produzindo apenas no primeiro ano enquanto resta apenas um pouco de

húmus resultante da decomposição da folhagem, do segundo ano em diante, é

invadida pelo colonião e outras gramíneas e abandonadas. Segundo o

levantamento feito já temos 1.500 hectares nessas condições. O antropólogo

da FUNAI Sr. Marinho verificou isso em lócus. Sei que será preciso muita

coragem para tomar uma medida severa, pois os interessados em tais recursos

se não tem escrúpulos em explorar os índios em sua caquética riqueza não

terão igualmente de subvertê-lo contra o representante da FUNAI a fim de

conseguir seus intentos que é aumentar o seu capital não importa a que preço.

Tal assunto precisa ser estudado com a máxima urgência ou então

reformular toda a filosofia de trabalho da FUNAI ou do próprio Governo para

ser pelos menos coerente, pois enquanto uma lauda propaganda é feita por

todos os meios de comunicação para preservar as árvores, uma área tutelada

pelo um Órgão do Governo ela é devastada impiedosamente. Se por razões

política ou de outra ordem que desconheço não se pode coibir tal abuso então

é melhor que se inicie um rápido e eficiente projeto de reflorestamento.

Apesar de pessoalmente não aprovar o processo de plena mecanização

porque ela faz do índio um mero expectador e alínea do empreendimento, acho

que ainda é melhor do que permitir a devastação da mata sobre o protesto de

fazer roça, nesse caso seria melhor que conseguisse uma patrulha mecanizada

de outros Órgãos do Governo e destocasse os 1.500 hectares já derrubados,

para ser redistribuídos para os que de fato quisesse lavrar a lavoura. Ainda

sobre este aspecto não entendo que o mato seja propriedade de um indivíduo,

Page 136: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

136

pois já temos aquele que por terem recebido lotes devastados já tem que

comprar madeira e lenha de outros índios.

O QUE JÁ SE FEZ

Já destocamos aproximadamente 10 alqueires nos quais já foram

plantados e colhido trigo, numa parte já esta plantada em arroz, plantamos

milho, cebola e alho e também uma pequena horta para consumo. O trigo, a

cabelo e alho são opções válidas para lavoura de inverno, o que seria preciso é

que para o próximo ano a FUNAI conseguisse também para o índio Proagro ou

dispusesse de recursos para arriscar, pois sendo a lavoura de alto risco o índio

não pode aventurar-se.

Este ano por causa da seca plantamos 15 sacos e colhemos 35, mais

pelo menos a semente já esta garantida.

SUGESTÃO PARA ALTERAÇÃO DO PROJETO ATUAL

A – Seja alterado o critério para aquisição de sementes e inseticidas. Sei

que a concorrência é uma exigência legal, entretanto em matéria de semente e

adubo quase sempre o mais barato é pior.

B – Entendemos que a Gerência de Campo deva ser mais atuante, até

agora o acúmulo de serviço burocrático, a falta de condução, as distâncias que

ficam as roças individuais, os problemas constantes, que tais roças criam

(disputa de lotes, prioridades de serviços) não tem permitido ao Técnico da

FUNAI dar a cobertura necessária ao desenvolvimento do projeto.

MÁQUINAS

É preciso com urgência uma condução adequada que possa chegar às

roças mesmo quando as condições não são favoráveis.

Entendemos que apesar de três tratores da FUNAI e 2 da Associação da

Igreja Metodista, não conseguiremos diminuir os atritos e as brigas por causa

de máquina, pois todos querem ao mesmo tempo e a bem da verdade salvo

raríssimas exceções os índios querem que as máquinas faça tudo.

Page 137: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

137

Por outro lado, o CBT está sem hidráulico, sem grade niveladora e sem

arado na prática é apenas um consumidor de óleo. É urgente que se troque

esse trator por um 85 da Massey Ferguson, com seus respectivos implementos

e que esse trator seja empregado numa área de campo ou cerrado o qual ele é

adequado ou então que se adquira uma grade niveladora de um arado de

arrasto próprio para tal máquina.

FINANCIAMENTO PARA TRATOS CULTURAIS

O atual sistema consiste em levantar em firmas quem tem interesse em

comprar os produtos. Na ocasião da venda estabelece seja concorrência e

duas coisas acontecem: primeiro ou ficamos comprometidos com a firma,

segundo ou as firmas inescrupulosas procuram desviar a produção deixando o

chefe do posto em situação difícil que por força dos compromissos assumidos

tem que entregar o produto de onde financiou. Ou a FUNAI faz ela própria este

financiamento, ou permite que o índio faça diretamente ou simplesmente

cancela, pois se a cantina estiver suficientemente abastecida tal financiamento

é dispensável e inconveniente.

ÁREA DE EDUCAÇÃO

Para que uma escola funcione duas coisas são essenciais, primeiro

alunos, segundo professor o resto tudo é improvisável.

Sei que foi designada uma verba para construção de uma escola no

bororó, área em que estamos operando, mais se não for providenciado um

meio de locomoção para a professora de maneira a garantir a sua presença

será de todo inútil.

Dada as péssimas condições da estrada quando chove acredito que a

melhor solução será uma charrete, o que não custará além de Cr$ 15.000,00 e

sem o que de todo resto do capital aplicado não será boa mordomia e nem a

FNAI poderá exigir da professora sua presença se não há condições.

Considerando que a professora é uma índia e que pelo menos em

palavras diz estar interessada no desenvolvimento global de seus alunos, isto

possibilitaria a educação das mesmas, talvez por pequenos projetos de hortas

Page 138: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

138

escolares e preparação de plantas ornamentais que por iniciativas deles já

fazem de maneira imperfeita.

Visando ainda a preservação do verde, viveiros de mudas dariam bom

resultados, para que qualquer destes projetos a Associação da Igreja Metodista

está disposta a dar a sua colaboração.

Para suprir as deficiências de proteína animal duas coisas poderiam ser

feitas: primeira criação de pequenos animais, suínos, caprinos e ovinos, para

os quais necessitaríamos apenas do arame e materiais para construções de

abrigos já que mão de obra e mourões seriam usados da própria área.

Segundo a aquisição de matrizes seria fornecida pela Associação da Igreja

Metodista. Quem sabe não seria esta uma boa aplicação para a madeira

desvitalizada.

CENTRO COMUNITÁRIO

Junto à escola do bororó poderia se estabelecer um Centro Comunitário

o que os pedagogos chamam de extensão da escola na comunidade. Apesar

das broncas dos missionários a construção se um de reuniões, ranchão para

dança da chicha ou simplesmente para os índios sentarem embaixo como é

seu costume, forneceria oportunidade para alguém com o conhecimento de

antropologia e psicologia do índio comunicar ensinos sem violência.

MELHOR APROVEITAMENTO DA TERRA

O conseqüente desenvolvimento pela aplicação do projeto agravará sem

dúvida o problema da terra especialmente em se tratando da cultura de soja do

sistema de lavoura individual.

A experiência da Colônia Federal diziam que 30 hectares eram

suficientes para cada família, hoje está provado não ser possível dentro da

estrutura agrária vigente tanto assim que os lotes estão sendo agrupados em

unidades maiores.

Do lado do índio o ideal seria lavoura comunitária, entretanto o resultado

já alcançado por alguns impedirá que se generalize essa solução.

Page 139: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

139

Uma segunda opção seria a produção de sementes para o que temos

todas as condições: 1) terra boa de qualidade, 2) podemos controlar as

variedades a serem plantadas, 3) podemos evitar cruzamentos indesejados, 4)

temos três Técnicos Agrícolas atuando dentro da área. A princípio faltaria

apenas uma máquina de pré limpeza, que deve custar mais ou menos Cr$

20.000,00 já que enquanto a produção fosse pequena a secagem poderia ser

feita por processo natural.

Entre outras vantagens teríamos: 1) que plantaríamos uma semente cuja

qualidade seria indubitável, 2) que o índio venderia mais caro a sua produção e

a FUNAI gastaria muito menos com semente, 3) não haveria perigo de atrasar

o plantio, 4) o índio poderia atingir o mesmo resultado financeiro com menos

quantidade de terra, já que mesmo sendo vendidas por selecionar ela ainda é

vendida 25% mais caro.

O próximo mês o Presidente Geral do Conselho da Igreja Metodista

deverá ir à Brasília a fim de discutir com quem d direito sobre a elaboração do

convênio.

Continuará insistindo que só um estudo aprofundado e in loco poderá

produzir os resultados propostos pelo projeto.

No caso de se pretender tais estudos ofereço a minha modesta

colaboração pelo menos para transportar e acompanhar as pessoas em suas

pesquisas, que, por favor, sejam pessoas que possam escultar as aspirações

dos índios sem lápis e prancheta na mão, pois a presença de tais instrumentos

inibem completamente, apenas alguns parladores já programados falarão de

acordo com os interesses do entrevistador e nisso são muito hábeis sendo

capazes de explorar nossas menores falhas e cochilos.

Dourados, 13 de setembro de 1978.

Atenciosamente,

Scilla Franco

Page 140: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

140

ANEXO 5

MISSÃO METODISTA TAPEPORÃ

PROPOSTAS:

1. DEFINIÇÃO DE UMA POLÍTICA INDIGENISTA

(aprovada, em seus princípios pelo Colégio Episcopal em 16/04/83 e a ser

elaborada em maior profundidade).

2. ALTERAÇÃO DO PROJETO TAPEPORÃ

(aprovada, em sua totalidade, pelo Conselho Geral da Igreja Metodista, em

17/04/83).

APRESENTAÇÃO

A Equipe de Apoio da Missão Metodista Tapeporã, em sua reunião dos dias 10

e 11 de dezembro de 1982, percebeu a necessidade de reavaliar e redirecionar

o trabalho na Reserva Indígena de Dourados. Esta percepção decorreu dos

seguintes fatores:

- O Projeto proposto e aprovado ao final de 1981 demonstrou-se por demais

ambicioso e pouco realista em relação às possibilidades de ação a nível local.

- O contrato com as agências financiadoras evidenciou a falta de uma definição

política da parte da Igreja Metodista em relação à questão da terra indígena e

uma falta de integração pressuposições latentes ou explícitas no projeto acerca

de uma política indigenista e os diversos subprojetos e atividades previstas

pelo projeto da Missão.

- Uma reunião com a comunidade indígena, realizada em fins de julho de 1982

demonstrou a impossibilidade de o projeto e a necessidade de ser simplificado,

tanto em termos de suas atividades, como em termos de redistribuição dos

recursos existentes. Verificou-se que estes deveriam ser estendidos a um

maior número de famílias evitando-se a criação de grupos privilegiados cuja

presença poderia vir a destruir os já frágeis laços da comunidade indígena.

Nesta reunião a comunidade indígena decidiu assumir efetiva participação nas

decisões relativas ao projeto e aceitou a gradual redução deste, na medida em

que estabeleceu o seguinte tipo de assistência, a partir do próximo ano

Page 141: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

141

agrícola: a) No primeiro ano, o fornecimento de sementes, alimento (cantina) à

época do plantio, da limpeza da roça e da colheita, e empréstimo do trator; b)

No segundo ano, o fornecimento de sementes e o empréstimo do trator; c) A

partir do terceiro ano, apenas o empréstimo do trator.

- A subdivisão do Projeto em muitos subprojetos desviava o foco da atenção do

mesmo sobre a sua principal atividade econômica, a saber, a roça comunitária

e a cantina, sustentáculos básicos para se alcançar a “Finalidade” definida para

o projeto.

- À vista destes fatos e constatações, a Equipe de Apoio decidiu propor a

reformulação de todo o projeto. Esta proposta encaminha-se em duas direções:

I – Proposta de Definição de uma Política Indigenista para a Igreja Metodista,

que sirva de suporte para o projeto a longo prazo e que sirva também para

todas as vezes e situações em que a Igreja como um todo tenha que se

manifestar ou agir em relação ao índio;

II – Proposta de Alteração nos Subprojetos e Atividades, cancelando alguns,

modificando outros, introduzindo novas metas, de modo a também reduzir o

custo do Projeto Integral. A redução não é mais significativa em termos de

valores porque o que realmente encarece o projeto é a roça, tanto comunitária

como particular que requer a continuidade do uso do trator, exigido pelo grau

de agregação dos terrenos da área e a presença do capim colonião, como se

verá posteriormente. As páginas que se seguem apresentam a referida

proposta de reformulação.

São Paulo, 11 de dezembro de 1982.

Equipe de Apoio da Missão Tapeporã:

Sérgio Marcus Ponto Lopes

Antonio Olímpio de Sant’Ana

Scilla Franco

Lydia dos Santos

(Com a assessoria e participação de Áureo Batista Brianezzi e Paulo da Silva

Costa).

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142

I – PROPOSTA PARA DEFINIÇÃO DE UMA POLÍTICA INDIGENISTA

Uma das maiores dificuldades com que o projeto Missão Tapeporã tem se

deparado através de todo o seu desenvolvimento, se localiza na inexistência de

uma definida política indigenista da parte da Igreja Metodista. O surgimento de

oportunidades e as propostas de atividades tanto para a Equipe de Apoio como

para o próprio Coordenador Local, esbarram sempre na pergunta que as obsta:

será esta proposta ou este desenvolvimento condizente com a linha que a

Igreja Metodista defenderia em uma política de ação em relação ao índio

brasileiro? Esta dificuldade será talvez a mesma a ser encontrada também por

outros projetos da Igreja em relação ao índio e talvez ainda por autoridades

eclesiásticas confrontadas com questões relacionadas á sua problemática: a

exploração econômica, o preconceito racial, a tomada da terra, a destruição da

cultura, o assassinato de índios, a prostituição da mulher índia, e a ausência de

autodeterminação que lhes é negada pelas autoridades que tutelam os mais

legítimos proprietários desta terra.

A Equipe de Apoio do Projeto da Missão Tapeporã, concorda em que os seus

objetivos e metas a serem perseguidos e as atividades a serem desenvolvidas

devem basear-se em uma Política Indigenista a ser adotada pela Igreja,

coincidente em seus fundamentos com as doutrinas tradicionais do Metodismo,

o Credo Social, aprovado pelo X Concílio Geral e o Plano para a Vida e a

Missão da Igreja, aprovado pelo XIII Concílio Geral.

A Equipe de Apoio propõe assim que a Igreja Metodista, através de seu

Conselho Geral e seu Colégio Episcopal aprovem as seguintes declarações

básicas como sua Política Indigenista:

1 – A autodeterminação dos povos indígenas

A Igreja Metodista reconhece ser a autodeterminação dos povos indígenas

no Brasil, questão fundamental a ser resolvida para que se encontrem

soluções justas para a problemática do índio brasileiro. Todos os projetos

voltados para os índios deverão servir-lhes de apoio de modo a que tal

questão seja adequadamente equacionada e resolvida.

2 – Os Direitos dos Povos Indígenas

Page 143: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

143

Senhores primitivos da terra do Brasil, os índios têm tido os seus mais

comezinhos direitos constantemente desprezados. Não podem os

metodistas, como herdeiros da tradição de João Wesley, deixar de erguer a

sua voz em protesto veemente contra tais violações. O Colégio Episcopal

da Igreja metodista estará sempre atento a toda e qualquer forma de

pisoteio destes direitos e será sempre o porta-voz do Metodismo Brasileiro

na sua interpretação dos atos que continuamente marcam as tentativas que

os poderosos fazem para se aproveitarem dos índios brasileiros.

3 – A posse da Terra

A posse da terra é condição sine qua non para a sobrevivência e

autodeterminação do índio. É necessário, portanto, dar toda atenção à

demarcação das terras indígenas, onde isto ainda não aconteceu. De igual

modo, para que o índio possa crescer como povo e encontrar espaço onde

viver a vida que lhe é própria, há que tomar decidida posição de apoio à

luta pela recuperação das terras indígenas, invadidas e tomadas às suas

reservas. A Igreja Metodista, consciente desta realidade, sustenta que o

índio brasileiro tem direito tanto à segurança decorrente da demarcação da

sua terra, como à devolução daquilo que indevidamente lhe foi tomado.

4 – Uma Pastoral de Convivência

Freqüentes vezes os movimentos religiosos têm abordado a questão

indígena de uma perspectiva paternalista, aculturadora, e integracionalista.

O índio tem sido objeto de uma catequese deformadora, baseada na

pressuposição de que ele desconhece a verdade e que tenta lhe impor

formas de pensamento ou expressão completamente contrárias a sua

cultura e modo de ser. A Igreja Metodista pretende que sua presença

evangelizadora em meio à comunidade indígena se dê em um contexto de

respeito aos valores dos povos índios e através de uma pastoral de

convivência, de maneira tal que ela seja capaz de sinalizar aos índios a

presença do Reino de Deus, sem violentar a sua consciência e destruir a

sua liberdade quer como povo, quer como indivíduos.

5 – Uma Ação Integrada

Page 144: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

144

Uma vez que em meio à sociedade brasileira, o índio pode ser considerado

o irmão mais fraco, evidencia-se claramente a insensatez da falta de

concórdia muitas vezes existentes entre as igrejas e agências que

desenvolvem projetos de promoção a seu favor. A Igreja Metodista se sente

chamada a trabalhar em integração com tais igrejas e agências,

promovendo um intercâmbio de experiências e aprendizados e buscando

um fortalecimento comum, de maneira a que o serviço à comunidade

indígena, se desenvolva da maneira a mais eficiente e coordenada

possível.

6 – A Responsabilidade da Igreja

À vista destas pressuposições acredita a Igreja ser sua responsabilidade

cristã oferecer a índio os recursos concretos de que dispõe, para que ele

tome consciência de si como povo, com uma identidade cultural própria e

promova a sua autodeterminação ou seja, a sua auto-afirmação e

autopromoção.

Explicitação de termos

Os seis pontos da política que ora se propõe à Igreja Metodista giram ao redor

de certos termos e expressões que precisam ser explicitados para sua melhor

compreensão. Ei-los:

1 – Autodeterminação dos Povos Indígenas

Entende-se por autodeterminação dos povos indígenas o processo através

do qual o indivíduo e a comunidade definem e redefinem os objetivos de

sua vida, até chegarem a decidir o seu destino, no contexto da comunidade

nacional.

2 – Direitos dos Povos Indígenas

Defende-se serem direitos dos povos indígenas:

a) sua autodeterminação;

b) a inalienabilidade das terras nas quais tradicionalmente os índios têm

vivido e garantia da posse daquelas que foram doadas às comunidades

indígenas, por ato governamental;

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145

c) o usufruto exclusivo das riquezas naturais;

d) resguardo da aculturação espontânea;

e) a preservação de sua identidade cultural (isto é, o direito de os índios

serem índios);

f) o serem os índios reconhecidos em todos os lugares como pessoas

humanas e, como tais, de lhes ser respeitada a vida, a liberdade a

segurança pessoal (Êxodo 20.13; Jo 10.10 e Credo Social da Igreja

Metodista).

3 – Pastoral de Convivência

Conceitua-se como pastoral de convivência o estar presente o obreiro da

Igreja na comunidade indígena, participando em todos os seus momentos,

sem uma proposta prévia acabada, mas aprendendo e descobrindo com ela

os caminhos para a formulação de uma pastoral indígena.

Por exemplo:

A prática religiosa na cultura guarani é constante e relacionada a todos os

momentos da vida diária. A dicotomia entre o material e o espiritual não

existe para o guarani. O espiritual preside a todos os seus atos. Tornar-se,

pois, necessário buscar uma pastoral indígena, a ser aprendida em

convivência com o índio, uma vez que as formas tradicionais de

evangelização adotadas na cultura da sociedade maior não alcançam ou

interpretam adequadamente os valores indígenas.

4 – Sinalizar... a presença do Reino de Deus

Esta sinalização do Reino é entendida à luz da afirmações adotadas pelos

Concílios Gerais da Igreja Metodista, em documentos básicos para sua vida

e trabalho, especialmente as seguintes:

a) “O propósito de Deus é reconciliar consigo mesmo o ser humano,

libertando-o de todas as coisas que o escravizam, concedendo-lhe uma

nova vida à imagem de Jesus Cristo, através da ação e poder do

Espírito Santo, a fim de que, como Igreja, constitua neste mundo e neste

Page 146: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

146

momento histórico, sinais concretos do Reino de Deus” (Plano para a

Vida e a Missa da Igreja – D-4)

b) “A Igreja, fiel a Jesus Cristo, é sinal e testemunha do Reino de Deus. É

chamada a sair de si mesma e se envolver no trabalho de Deus, na

construção do novo ser humano e do Reino de Deus. Assim, ela realiza

sua tarefa de evangelização (Hb 2.18)” (Idem, D-9).

c) “A Igreja Metodista... orienta a seus membros... (a)... amar efetivamente

as pessoas, caminhando com elas até as últimas conseqüências para a

sua libertação dos problemas e sua autopromoção integral” (Credo

Social, V,13, e).

5 – Os Recursos Concretos de que dispõe a Igreja

A Igreja possui a sua disposição recursos humanos, materiais, financeiros e

institucionais. Por à disposição do índio os recursos humanos da Igreja

significa estar o obreiro presente em sua comunidade, dando-lhe:

a) apoio em meio às crises geradas pela ação de mecanismos estranhos à

realidade indígena;

b) orientação agrícola;

c) suporte para o processo educativo necessário à recuperação e

preservação comunitária das artes e culturas indígenas;

d) meios para que se torne consciente do papel da comunidade indígena

em seu relacionamento com a comunidade nacional mais ampla.

Os recursos materiais de que a Igreja dispõe, incluem sementes,

maquinários agrícolas e outros.

Os recursos financeiros referem-se às verbas que possibilitem a

manutenção de qualquer projeto que se ajuste à linha política ora proposta.

Entendem-se por recursos institucionais da Igreja a sua voz e a sua

atuação, como instituição e através de suas autoridades representativas,

manifestando-se e dando o seu apoio, em todas as circunstâncias e

momentos, àqueles a quem ela comissiona para exercer um ministério junto

ao índio brasileiro.

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147

6 – Integração e Intercâmbio

Para se alcançar a integração e o intercâmbio necessário à ação eficiente a

favor do índio, faz-se necessário:

a) um diálogo constante com entidades também envolvidas no processo de

promoção integral do índio e de apoio à sua autodeterminação;

b) a participação em seminários, simpósios, e encontros de qualquer

natureza, onde se discuta a problemática indígena;

c) o apoio a entidades afins, aliadas na luta ela causa indígena, em

situações concretas.

II – PROPOSTA DE ALTERAÇÃO DO PROJETO TAPEPORÃ

1. Descrição do Projeto

a) Localização: Reserva Indígena de Dourados, Mato Grosso do Sul.

b) População (clientela potencial): 4.400 pessoas.

c) Hipóteses propostas para verificação:

c1) É possível, com estímulos apropriados, conseguir-se do índio que se

dedique a atividades agrícolas como forma de melhorar seu nível de

nutrição e, através dessa melhoria, contribuir para melhor nível de

saúde;

c2) É possível, também, que esses estímulos e orientações, sendo

dados a nível de comunidades, observado o modo de vida e respeitados

os padrões culturais do índio, resultem na melhoria da sua qualidade

geral e de participação sócio-comunitária;

c3) É possível que, estimulado a participar livre e conscientemente de

um processo de auto-educação e de ação comunitária o índio venha a

assumir a longo prazo, a sua luta para ter garantidos os seus direitos.

d) Variáveis

Page 148: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

148

d1) Aspectos comportamentais e de relacionamento do órgão federal de

proteção ao índio (FUNAI) no que diz respeito à garantia do uso e posse

da terra e das riquezas naturais a que o índio tem direito;

d2) Aspectos comportamentais do índio, com relação á sua produção

agrícola, aos relacionamentos na comunidade, aos hábitos de higiene

pessoal e ambiental, à qualidade de alimentação a que tem acesso;

d3) Aspectos relacionados com a autonomia do índio, como agricultor,

nas negociações de compra e venda de insumos e produtos agrícolas;

d4) Aspectos relacionados á organização interna e vida da comunidade

indígena;

d5) Aspectos relacionados à participação do índio como cidadão

brasileiro no contexto nacional mais amplo.

2. Definição de Objetivos e Metas

a) Finalidade

Oferecer ao índio recursos concretos, à disposição da Igreja, para que ele

tome consciência de si como povo e de sua identidade cultural, e promova a

sua autodeterminação, ou seja, a sua auto-afirmação, autodefesa e

autopromoção.

b) Objetivos Gerais

b1) Proporcionar ao índio a melhoria e diversificação de sua atividade

coletiva;

b2) Estimular um processo de auto-educação e ação comunitária, de que o

índio participe livre e conscientemente, responsabilizando-se por seu próprio

destino;

b3) Favorecer e incentivar a melhoria dos níveis de alimentação e nutrição,

saúde, habitação e segurança social da comunidade indígena.

c) Objetivos Específicos

c1) Prestar orientação técnico-agrícola aos índios;

Page 149: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

149

c2) Possibilitar acesso dos índios a maquinário agrícola indispensável e

exigido pelo tipo de terreno da Reserva de Dourados;

c3) Orientar a aplicação dos resultados obtidos pelos índios em seu

trabalho agrícola;

c4) Incentivar a cooperação entre os índios, que lhes permita maior

rentabilidade na produção e melhores níveis de convivência comunitária;

c5) Estender, na medida do possível, os benefícios deste Projeto ás famílias

indígenas que ainda não recebem qualquer tipo de apoio;

c6) Procurar formas de integração com entidads envolvidas no apoio,

proteção e defesa dos índios, especialmente no que diz respeito á

demarcação de suas terras, ao uso coletivo delas e aproveitamento de suas

riquezas naturais;

c7) Dar continuidade ao processo educativo já iniciado, envolvendo crianças

e adultos, na recuperação e preservação comunitária das artes e cultura

indígena.

d) Metas

d1) Ampliar o atendimento de modo a atingir pelo menos 160 familias em

roças particulares e/ou comunitárias;

d2) Fornecer alimentos, através da cantina, às famílias envolvidas no projeto

nas épocas de plantio, limpeza da roça e colheita;

d3) Manter o subprojeto de Bolsas de Estudo, para atender a 20 estudantes;

d4) Fornecer apoio ao surgimento de lideres entre a comunidade indígena,

capazes de representá-la e defender seus interesses entre a comunidade

não-indígena, por meio do fornecimento de bolsas de estudo, alcançando a

pelo menos 20 alunos;

d5) manter a escola e centro de artes e cultura, de modo a alcançar 30

menores, acompanhados de suas mães;

Page 150: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

150

d6) Organizar um grupo de especialistas (em antropologia, sociologia, leis,

serviço social e teologia) e reuni-lo duas vezes, no ano de 1983, se possível

em Dourados;

d7) Proceder à montagem de material de divulgação e documentação do

Projeto e disseminá-lo em toda a Igreja e por entre Igrejas e Agencias

Cooperantes ou Financiadoras;

d8) Facilitar o fluxo dos recursos financeiros recebidos de Agencias

Financiadoras, para o Escritório de Administração Local.

3. Proposta de Atuação para 1983

3.1. Atividades

a) Dar continuidade à roça comunitária e/ou roças particulares;

b) Fornecer alimentos para o desenvolvimento das roças, através da

cantina à época do plantio, limpeza de roças e colheita;

c) Dar continuidade á escola e centro de artes e cultura indígenas;

d) Amiudar contatos entre a Equipe de Apoio e o Executor do projeto a

nível local;

e) Efetivar a organização e atuação do grupo de assessores;

f) Reduzir complicações burocráticas que atrasam a chegada de verbas ao

executor do projeto;

g) Continuar fornecendo Bolsas de Estudo a vinte estudantes selecionados

de acordo com os critérios mencionados na Meta d4);

h) Concluir o material de divulgação e documentação que está em

elaboração;

i) Manter, em nível local, serviço contábil em dia, fornecendo à Tesouraria

Geral um balancete em julho e balanço geral em dezembro e relatórios

bimestrais á Secretaria de Ação Social do Conselho geral;

Page 151: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

151

j) Manter, a nível geral, um sistema de informações constantes acerca da

disponibilidade de recursos, para que seja possível programar as

atividades locais.

3.2. Justificativa

A proposta de atuação para 1983 com as alterações incluídas pela Equipe

de Apoio nesta data, se justifica nas próprias reivindicações da comunidade

indígena, na necessidade de selecionar prioridades maiores e mais

fundamentais à própria sobrevivência indígena e nas avaliações alcançadas

com a assessoria de antropólogos, sociólogos e técnicos sugeridos pelas

Agências Financiadoras, conforme mencionado na APRESENTAÇÃO da

presente reavaliação. Justifica-se também na Proposta de Definição de

uma Política Indigenista para a Igreja Metodista e na pressuposição de que

a mesma será aprovada pelo Conselho Geral.

4. SUBPROJETOS – Descrição

4.1. Subprojeto RECURSOS HUMANOS

4.1.1. Elementos: (as mesmas pessoas atualmente contratadas)

a) Agrônomo

b) Ajudante de campo

c) Professora

d) Auxiliar de escritório

4.1.2. Objetivos e Justificativas

a) Agrônomo – O agrônomo é elemento chave no projeto da Missão.

Sua atuação no desenvolvimento das roças, comunitárias ou

particulares, é justificada pela necessidade de se tornarem estas as mais

rendosas possíveis, de modo a permitir ao índio a autonomia

indispensável à sua autovalorização e á sua libertação do sistema de

changa, pelo qual os fazendeiros da região os contratam a baixo custo e

Page 152: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

152

que produz efeitos econômicos e sociais danosos a toda a comunidade

indígena.

b) Ajudante de campo – O ajudante de campo é elemento indispensável

para que o Agrônomo possa exercer eficientemente a sua função e

tenha ainda tempo livre para exercer contatos com outras agencias de

serviço, supervisionar o escritório, fazer a provisão e administração da

cantina, etc.

c) Professora – A professora exerce um papel bastante diferente do que

é exercido nas escolas da sociedade mais ampla. Sua função é a de

facilitadora ao autoeducação indígena, o que envolve tanto crianças

como mães em um processo de integração que se esvaziava no estilo

de vida que atualmente estava caracterizando a reserva indígena. Seu

papel será apenas o de servir de foco para o referido processo, de tal

maneira que os índios sejam os seus próprios mestres.

d) Auxiliar de escritório – O escritório já montado exige a presença diária

de uma auxiliar, em regime de tempo parcial, para manter a

correspondência, atender pessoas que procuram o projeto, manter

arquivo em dia, etc.

4.1.3 – Custos (para 1983)

a) Agrônomo (tempo integral) Cr$ 2.598.333,00

b) Ajudante de campo (tempo integral) Cr$ 1.241.716,00

c) Professora (tempo parcial) Cr$ 1.241.716,00

d) Auxiliar de escritório (tempo parcial) Cr$ 414.500,00

e) Encargos sociais (previdência, etc) Cr$ 1.782.696,00

Total Cr$ 7.278.961,00

4.2. Subprojeto ADMINISTRAÇÃO

4.2.1. Objetivos e Justificativas

A infra-estrutura para o projeto da Missão Tapeporã exige a manutenção

de seu equipamento, material para o escritório, combustíveis e

Page 153: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

153

lubrificantes (um dos itens mais caros) para os veículos, sem o que será

impossível a implementação de todas as atividades.

Os alugueis de casa, os serviços contábeis, as despesas de expediente

e de viagens (incluindo as do pessoal envolvido no projeto e as da

Equipe de Apoio e do Grupo de Assessores), estão, evidentemente,

relacionados aos Recursos Humanos. Foram alistados, no entanto, sob

este Subprojeto, para destacar a razão de ser de sua solicitação.

4.2.2. Detalhamento e custos (para 1983)

Aluguel de casa para o Agrônomo

(Coordenador Local) ................................................ Cr$ 720.000,00

Serviços Contábeis .................................................... Cr$ 90.000,00

Manutenção do escritório ........................................... Cr$ 408.000,00

Manutenção de veículos ............................................ Cr$ 3.600.000,00

Combustível e lubrificantes ........................................ Cr$ 3.000.000,00

Despesas operacionais .............................................. Cr$ 240.000,00

Despesas eventuais ................................................... Cr$ 1.200.000,00

Viagens e expediente ................................................. Cr$ 1.400,000,00

Treinamentos .............................................................. Cr$ 150.000,00

Total .......................................................................... Cr$ 10.808.000,00

4.3 – Subprojeto ROÇAS COMUNITÁRIAS E PARTICULARES

4.3.1. Objetivos e justificativas

As roças, tanto comunitárias como particulares, são o aspecto

econômico mais importante do projeto da Missão Tapeporã. É através

delas que os índios podem alcançar sua subsistência em primeiro lugar

e recursos econômicos em segundo, o que lhes permitirá a autonomia

necessária, em relação ao sistema econômico que os mantém em

constante dependência dos fazendeiros da região.

Page 154: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

154

A orientação original visava primordialmente às roças de dimensão

comunitária, como se pode ver no projeto aprovado para o ano de 1982.

A impossibilidade de alcançar todas as famílias com este método,

percebido pelo agrônomo partir de constantes queixas, levou o projeto a

dar também alguma atenção ainda que lateral, ao desenvolvimento de

roças particulares, na terra ao redor das choças dos próprios índios. Isto

estará permitindo a ampliação dos serviços do projeto, que deverão

beneficiar a aproximadamente 160 famílias indígenas.

As roças comunitárias, por outro lado, apresentam oportunidades

laterais excelentes. Em primeiro lugar têm um aspecto educativo, na

medida em que permitem o cultivo do senso de comunidade e o

fortalecimento dos laços tribais. Em segundo lugar porque oferecem

inúmeras ocasiões para troca informal de idéias, oportunidade para a

evangelização e discussão de questões religiosas, bem como momentos

devocionais em contato com a natureza. Tais ocasiões são usadas

também para o diálogo conscientizador, quando podem ser examinadas

e discutidas com os índios as questões relacionadas à sua problemática.

Finalmente a roça comunitária oferece a oportunidade para uma

constante avaliação da organização interna da comunidade e do

desenvolvimento do próprio projeto. É o momento em que decisões

importantes podem ser tomadas, de forma democrática, no

relacionamento das atividades, tendo em vista os próprios interesses e

possibilidades dos índios.

4.3.2. Custos (para 1983)

Aquisição de sementes, pás, enxadas, enxadões, limas e óleo: Cr$

7.643.750,00.

4.4. Subprojeto CANTINA

4.4.1. Objetivos e justificativa

A cantina é um nome dado a uma cooperativa de consumo rudimentar,

cuja finalidade é servir ao subprojeto Roças Comunitárias e Particulares.

Para que o índio possa fixar-se à sua terra e cultivá-la, ele precisa

Page 155: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

155

possuir em reserva, alimentos suficientes para o seu sustento e o de sua

família nos períodos em que está em trabalho. Sem este alimento, ele é

obrigado a sair da reserva e ir trabalhar para os fazendeiros, que o

mantém praticamente escravizado. Ainda que ele tenha comida

enquanto está na fazenda sua família passa fome. Ao mesmo tempo, a

demanda de mão-de-obra coincide com a ocasião do preparo da roça.

Fora a sua reserva o índio não pode trabalhar a sua própria roça e

acaba em miséria, em meio a uma terra fértil.

A cantina deverá fornecer ao índio os alimentos básicos e mínimos de

precisa nos períodos em que está ocupada em sua roça, ou na roça

comunitária, isto é, à época do plantio, da limpeza da roça e da colheita.

Para o presente estágio do projeto a cantina já está sendo em parte

desativada (anteriormente funcionava durante todo o ano). Isto reduzirá

em parte os seus custos e evitará também em parte que o índio venha a

cair em um sistema paternalista e que lhe confirme a dependência. O

armazém para a guarda dos cereais da cantina já foi construído, em

plena reserva, no decorrer de 1982.

A questão da cantina é de difícil colocação. Em princípio prevê-se que o

índio, após a colheita, reponha o alimento que lhe foi fornecido,

entretanto, a mentalidade indígena ignora e sujeito da idéia do

empréstimo ou do financiamento, figuras que existem na nossa cultura.

O índio entende apenas a idéia do dar, sem esperar em troca. É assim

que ele age quando possui alguma coisa e vê outro índio em

necessidade. A cantina se apresenta, portanto, como algo estranho a

seu modo de perceber as relações de dar e receber. Ele se sente grato

pelo que se lhe oferece, mas não responsável por pagar o alimento com

cereais em mesma quantidade ou valor e nem na época em que

normalmente se esperaria que fossem pagos. Isto determina uma

situação problemática no que diz respeito à orçamentação do projeto,

pois a cantina deve ser caracterizada em termos de aplicação a fundo

perdido, sem retorno. Qualquer retribuição que se receba do índio será

sempre um dado a mais, ou uma receita extra.

Page 156: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

156

4.4.2. Custos (para 1983)

Compra de gêneros alimentícios básicos: Cr$ 3.990.000,00

4.5. Subprojeto BOLSAS DE ESTUDO

4.5.1. Objetivos e Justificativa

Este projeto visa a fornecer apoio ao surgimento líderes entre a

comunidade indígena, capazes de representá-la e defender seus

interesses entre a comunidade não-indígena, por meio do fornecimento

de bolsas de estudo, alcançando a pelo menos vinte alunos.

Embora exista na reserva uma escola do organismo oficial responsável

pela comunidade indígena, esta fornece instrução limitada aos quatro

primeiros anos da formação de 1º grau. Para que os jovens índios

possam continuar seus estudos e alcançarem a educação necessária a

torná-los líderes capazes de bem representar seu povo na comunidade

ao seu redor, é preciso que tenham meios para continuar a freqüentar a

escola oficial gratuita, ainda que fora da reserva. As bolsas de estudo

serão utilizadas para a compra de uniformes exigidos pela escola,

alimentação, compra de livros e para o transporte, da reserva para a

cidade.

O critério de seleção dos bolsistas dá prioridade (mas não exclusividade)

àqueles que são filhos de famílias já reconhecidas como líderes entre a

comunidade índia, de sorte que os jovens venham a ocupar os postos de

maior responsabilidade entre o seu povo, uma vez educados. Trata-se

de aproveitar a liderança tradicional já existente entre os índios,

oferecendo-lhe meramente os recursos da educação, para que possam

exercer esta liderança de maneira mais eficiente e marcante, frente à

comunidade não índia.

4.5.2. Custos (para 1983)

Vinte bolsas de estudo: Cr$ 1.680.000,00.

4.6. Subprojeto PRE-ESCOLA E CENTRO DE ARTES E CULTURA

4.6.1. Objetivo e Justificativa

Page 157: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

157

O subprojeto Pré-Escola, implementado já em 1982, visa a princípio

fornecer à criança indígena condições (em termos de alimentação e

preparativos para a alfabetização) para ingressas na Escola da FUNAI

em condições de aprendizado menos desvantajosas do que as

existentes até então. No desenvolver do subprojeto, na medida em que

as mães foram sendo pouco a pouco envolvidas, percebeu-se que era

preciso ampliar e redirecionar todo o subprojeto. Concebido

anteriormente para funcionar nas próprias instalações da escola da

FUNAIS, tornou-se ele a razão da construção de uma casa comunitária,

erigida nos moldes indígenas e feita por eles próprios, que veio a firmar-

se como centro de reuniões, local de aprendizagem de artes e de

produção de outros objetos indígenas, servindo assim como centro

recuperador e conservados da cultura comunitária.

A atividade da professora, portanto, deixou de ser simplesmente de

natureza docente, para tornar-se também a de facilitadora das reuniões

das mães. Ao mesmo tempo, a pré-escola veio preencher uma

necessidade do projeto, até então não detectada, ou seja, a de permitir

aos índios um local comunitário de encontros, nos quais podem eles

discutir os seus próprios problemas e encontrar maior sentido de povo

com cultura e valores próprios, a serem devidamente resguardados.

4.6.2. Custos (para 1983)

Merenda e material escolar: Cr$ 500.000,00

5. PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA

5.1. Recursos Necessários

5.1.1. Recursos Humanos

a) A Nível de Execução

Um Coordenador Executivo-Agrônomo

Um Ajudante de Campo

Uma Professora para a Pré-Escola (tempo parcial)

Uma Auxiliar de Escritório (tempo parcial)

Page 158: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

158

b) A Nível de Apoio Administrativo

Equipe de Apoio Administrativo (designada pelo Conselho Geral)

(sem ônus)

c) A Nível de Assessoria

Equipe Multidisciplinar de Assessores

(Apoio voluntário, sem ônus)

Grupo de Trabalho Missionário Evangélico (sem ônus)

5.1.2. Recursos Materiais

a) Instalações

- Casa para o Coordenador-Executivo

- Armazém (cantina)

- Escritório

- Galpão para abrigo de máquinas

b) Equipamentos

- Trator (dois)

- Colhedeira (uma)

- Camionete (uma)

- Projetor de diapositivos (um)

- Máquina de escrever (um)

- Telefone (um)

- Móveis de escritório

c) Material de Consumo

- Sementes

- Combustível

- Lubrificantes

- Adubos

Page 159: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

159

- Alimentos para a cantina

- Material pedagógico

- Material de Escritório

5.1.5. Recursos Financeiros

Especificação das Despesas por Atividade

1. PESSOAL Cr$ 7.278.961,00 US$ 30.078,35

2. ADMINISTRAÇÃO

Aluguel de casa 720.000,00 2,975.20

Serviços contábeis 90.000,00 371.90

Manutenção de escritório 408.000,00 1,685.95

Manutenção de Veículos 3.600.000,00 14,876.03

Combustível e Lubrificantes 3.000.000,00 12,396.69

Despesas operacionais 240.000,00 991.73

Despesas eventuais 1.200.000,00 4,958.67

Viagens e Expedientes 1.400.000,00 5,785.12

Treinamentos 150.000,00 619.83

SUBTOTAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10.808.000,00 44,661.12

3. SUBPROJETOS

Roças 7.643.750,00 31,585.74

Cantina 3.990.000,00 16,487.00

Bolsas de Estudo 1.680.000,00 6,942.14

Pré-Escola 500.000,00 2,066.71

SUBTOTAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13.813.750,00 57,081.59

TOTAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31.900.711,00 131,821.06

Cotação do US$ à época em que este Orçamento foi realizado = Cr$ 242,0

Page 160: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

160

ANEXO 6

Relação dos textos escritos por Scilla Franco, suas respectivas datas e os

periódicos nos quais foram publicados:

Data Título

Local

Abril de 1977

Minha Prece Expositor Cristão

Dezembro de 1977

Carta aos Kaiowá Expositor Cristão

Abril de 1978 Solilóquio de um missionário Expositor Cristão

Outubro de 1978

Carta a um amigo dos índios Expositor Cristão

Dezembro de 1978

Vendedor de flechas ou Natal do Caiuá

Expositor Cristão

Janeiro de 1979

Eu vos farei pescadores de homens Expositor Cristão

Abril de 1979

Chei Ahai Te Tama

Expositor Cristão

Maio de 1979

Prece Índia

Expositor Cristão

Junho de 1979

Que tens, dormente?

Expositor Cristão

Junho de 1979

O Serão dos animais Expositor Cristão

Julho de 1979 No tempo em que as árvores falavam

Expositor Cristão

Setembro de 1979

O lado amargo do açúcar

Expositor Cristão

Outubro de 1979

A curva da morte

Expositor Cristão

Novembro de 1979

A Evangelização do Índio

Expositor Cristão

Novembro de 1979

O bóia-fria e o Natal

Expositor Cristão

Dezembro de 1979

A flor do porão

Expositor Cristão

1980 Reflexões sobre o povo Kaiowá Boletim do GTME, nº 1

Janeiro de 1980

O cego cantador de tragédias Expositor Cristão

Janeiro de 1980

De um pirangueiro aos metodistas Expositor Cristão

Abril de 1980 Índios: Ovelhas de um outro aprisco

Expositor Cristão

Maio de 1980 Erga Omnes (Perante Todos) Expositor Cristão

Page 161: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

161

Data Título

Local

Junho de 1980

Onde está teu irmão?

Expositor Cristão

Julho de 1980 Igreja dos Coronéis

Expositor Cristão

Fevereiro de 1981

Está Doente e não tem cura Expositor Cristão

Abril de 1981 De um Pataxó ao Deus dos brancos

Expositor Cristão

Abril de 1981 Às senhoras de minha Igreja

Expositor Cristão

Junho de 1981

Por uma Teologia Nativa

Expositor Cristão

Outubro de 1981

Confessor de Bugreiro

Expositor Cristão

Outubro de 1981

Depois dos bichos Expositor Cristão

1982 Avati Moroti

Estudos do GTME

Setembro de 1982

Como cantar em terra estranha? Boletim do GTME

Setembro/outubro de 1982

És a Igreja que havia de vir?

Revista Tempo e Presença

Dezembro de 1983

Natal do desempregado Expositor Cristão

Janeiro de 1984

Reflexões sobre pastoral indígena Boletim do GTME, nº 3

Outubro de 1985

Sonido Incerto Expositor Cristão

Dezembro de 1985

A história de um “Zé” da vida

Expositor Cristão

Fevereiro de 1986

Não quero ir para Társis

Expositor Cristão

Page 162: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

162

ANEXO 7

Exmo Sr.

Ademar Ribeiro da Silva

DD. Presidente da FUNAI

Brasília/DF

Dourados, 26/03/79

Senhor Presidente,

Nós, representantes da Igreja Católica e Igreja Metodista, profundamente

envolvidos na problemática enfrentada pelas populações indígenas da região, viemos

a V.Excia. para expor a situação em que se encontra o P.I. de Dourados, e pedir mais

uma vez que sejam encaminhadas medidas urgentes e eficazes para a solução.

Histórico: O P.I. de Dourados, distante apenas alguns Km da cidade de

Dourados, enfrenta basicamente dois problemas:

• Problema da terra: vivem neste posto cerca de 2.500 a 3.000 índios

numa área de apenas 3.500 há., que lhes sobrou das constantes

demarcações. Além disto esta terra está muito irregularmente distribuída e

grande parte invadida pelo capim colonião, ficando inaproveitada para os

índios.

• Problema étnico: grande parte da população indígena é do grupo

Guarani, sub-grupo Kaiová e Ñadeva. Mas vive também nesta área um

pequeno grupo de índios Terena, trazidos para este Posto há muitos anos

atrás, pelo órgão tutelar.

Desta forma existe uma divisão clara dentro da área tendo inclusive dois

capitães. Mas o problema é que um dos capitães tem sob sua jurisdição índios de dois

grupos étnicos diversos. E é nesta parte que ocorre a disputa pela chefia e o problema

da distribuição desigual da terra é mais forte.

Há interesse por parte de cada grupo no sentido de que o capitão seja de seu

grupo étnico.

Page 163: ANÁLISE DA PRATICA MISSIONÁRIA

163

Este problema já foi longamente exposto em reuniões da Pastoral Indígena na

região, da qual participou a própria presidência da FUNAI, que na ocasião prometeu

enviar para cá comissão de alto nível para levantamento e estudo do exposto.

Por diversas vezes nossos agentes de pastoral tem impedido que estas

divergências chegassem as vias de fato.

Este problema do conflito étnico, aliado ao problema da pouca terra, está

tomando proporções alarmantes, podendo qualquer fato, por mais insignificante que

seja, provocar conseqüências imprevisíveis, caso não sejam tomadas medidas

urgentes para a sua solução.

Não nos parece justo exigir que a população indígena deva resolver sozinha

problemas não provocados por ela, mas que tem sua origem na ingerência do órgão

tutelar, em épocas passadas.

Tememos que esta situação resulte em conflito com saldo de muitas vidas

humanas das já tão sofridas populações indígenas.

Encarecemos que é urgente um estudo e encaminhamento de uma solução.

Neste sentido oferecemos a nossa sincera colaboração.

Atenciosamente,

Dom Teodardo Leitz

Bispo de Dourados

Pastor Scilla Franco

Igreja Metodista