10
Cançado R.D. et al 127 Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136 Anemia de Doença Crônica Rodolfo D. Cançado 1 Carlos S. Chiattone 2 Revisão/ Review Definição e Terminologia Anemia de Doença Crônica é uma síndrome clínica que se caracteriza pelo desenvolvimento de anemia em pacientes que apresentam doenças infecciosas crônicas, inflamatórias ou neoplásicas (1, 2, 3). Essa síndrome tem como aspecto peculiar a presença de anemia associada à diminuição da concentração do ferro sérico e da capacidade total de ligação do ferro, embora a quantidade do ferro medular seja normal ou aumentada (2, 4). Por definição, não fazem parte dessa síndrome outras causas de anemia como: perda sangüínea, deficiência de ferro, deficiência de folato e/ou vitamina B12, hemólise, mielofitise, doença 1 - Professor assistente da Disciplina de Hematologia e Oncologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e do Hemocentro da Santa Casa de São Paulo 2 - Chefe da Disciplina de Hematologia e Oncologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e do Hemocentro da Santa Casa de São Paulo Correspondência para: Rodolfo Delfini Cançado Hemocentro da Santa Casa de São Paulo Rua Marquês de Itú, 579 – 2º andar. CEP: 01223-001. São Paulo. SP E-mail: [email protected] Anemia de Doença Crônica (ADC) é usualmente definida como a anemia que ocorre em distúrbios infecciosos crônicos, inflamatórios ou doenças neoplásicas, e é uma das síndromes clínicas mais comuns na prática clínica. Caracteristicamente, ADC corresponde à anemia normocrômica/ normocítica, leve a moderada, e caracteriza-se por hipoferremia na presença de estoques adequados de ferro. Os três principais mecanismos patológicos envolvidos na ADC são: diminuição da sobrevida da hemácia, falha da medula óssea em aumentar a produção de glóbulos vermelhos para compensar o aumento da sua demanda, e distúrbio da mobilização do ferro de depósito do sistema mononuclear fagocitário. O papel central dos monócitos e dos macrófagos e o aumento da produção de citocinas mediadoras da resposta imune ou inflamatória, tais como: TNF α, INF γ e IL-1 estão implicados nos três processos envolvidos no desenvolvimento da ADC. O propósito desse artigo é revisar os recentes avanços no entendimento dos aspectos patofisiológico, diagnóstico e terapêutico desta síndrome. Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136 Palavras-chave: Anemia de doença crônica, citocinas, fator de necrose tumoral, inteleucina, interferon renal, doença endócrina e doença hepática, exposição a drogas e/ou toxinas, embora essas causas possam coexistir no mesmo paciente (5). O termo Anemia de Doença Crônica (ADC) foi proposto pela primeira vez por Cartwrigt, em 1966, após vários anos estudando o binômio infecção e anemia (6). O termo ADC é inapropriado, visto que nem toda doença crônica cursa com anemia e nem toda anemia presente no paciente com doença crônica é devido à ADC (7). Desde a década de 70, várias denominações foram propostas como: anemia ferropênica com siderose reticulo- endotelial (6), anemia por defeito de reutilização do ferro (7), anemia hipoferrêmica valiosa e

Anemia da Doença Crônica (1).PDF

Embed Size (px)

Citation preview

  • Canado R.D. et al

    127

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    Anemia de Doena Crnica

    Rodolfo D. Canado1

    Carlos S. Chiattone2

    Reviso/ Review

    Definio e Terminologia

    Anemia de Doena Crnica uma sndromeclnica que se caracteriza pelo desenvolvimentode anemia em pacientes que apresentam doenasinfecciosas crnicas, inflamatrias ou neoplsicas(1, 2, 3). Essa sndrome tem como aspecto peculiara presena de anemia associada diminuio daconcentrao do ferro srico e da capacidade totalde ligao do ferro, embora a quantidade do ferromedular seja normal ou aumentada (2, 4).

    Por definio, no fazem parte dessasndrome outras causas de anemia como: perdasangnea, deficincia de ferro, deficincia de folatoe/ou vitamina B12, hemlise, mielofitise, doena

    1 - Professor assistente da Disciplina de Hematologia e Oncologia da Faculdade de Cincias Mdicas da Santa Casa deSo Paulo e do Hemocentro da Santa Casa de So Paulo2 - Chefe da Disciplina de Hematologia e Oncologia da Faculdade de Cincias Mdicas da Santa Casa de So Paulo edo Hemocentro da Santa Casa de So Paulo

    Correspondncia para: Rodolfo Delfini CanadoHemocentro da Santa Casa de So PauloRua Marqus de It, 579 2 andar. CEP: 01223-001. So Paulo. SPE-mail: [email protected]

    Anemia de Doena Crnica (ADC) usualmente definida como a anemiaque ocorre em distrbios infecciosos crnicos, inflamatrios ou doenasneoplsicas, e uma das sndromes clnicas mais comuns na prticaclnica. Caracteristicamente, ADC corresponde anemia normocrmica/normoctica, leve a moderada, e caracteriza-se por hipoferremia napresena de estoques adequados de ferro.Os trs principais mecanismos patolgicos envolvidos na ADC so:diminuio da sobrevida da hemcia, falha da medula ssea emaumentar a produo de glbulos vermelhos para compensar o aumentoda sua demanda, e distrbio da mobilizao do ferro de depsito dosistema mononuclear fagocitrio. O papel central dos moncitos e dosmacrfagos e o aumento da produo de citocinas mediadoras daresposta imune ou inflamatria, tais como: TNF , INF e IL-1 estoimplicados nos trs processos envolvidos no desenvolvimento da ADC.O propsito desse artigo revisar os recentes avanos no entendimentodos aspectos patofisiolgico, diagnstico e teraputico desta sndrome.Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    Palavras-chave: Anemia de doena crnica, citocinas, fator de necrosetumoral, inteleucina, interferon

    renal, doena endcrina e doena heptica,exposio a drogas e/ou toxinas, embora essascausas possam coexistir no mesmo paciente (5).

    O termo Anemia de Doena Crnica (ADC)foi proposto pela primeira vez por Cartwrigt, em1966, aps vrios anos estudando o binmioinfeco e anemia (6).

    O termo ADC inapropriado, visto que nemtoda doena crnica cursa com anemia e nemtoda anemia presente no paciente com doenacrnica devido ADC (7). Desde a dcada de70, vrias denominaes foram propostas como:anemia ferropnica com siderose reticulo-endotelial (6), anemia por defeito de reutilizaodo ferro (7), anemia hipoferrmica valiosa e

  • Canado R.D. et al

    128

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    anemia da inflamao (8). Entretanto, at omomento, o termo ADC tem sido utilizado pelamaioria dos autores e peridicos nacionais einternacionais.

    Freqncia

    ADC a causa mais freqente de anemia empacientes hospitalizados (9), particularmentequando se analisa pacientes com idade superiora 65 anos, e a segunda causa mais freqente deanemia, aps a anemia por deficincia de ferro.Cash & Sears, analisando pacientes anmicos semhistria de perda sangnea, observaram que 52%dos pacientes estudados preenchiam critrioslaboratoriais para o diagnstico de ADC (ferrosrico diminudo e aumento da ferritina srica)(10). Em pacientes com artrite reumatide, afreqncia de ADC varia entre 27% e 58% (11),sendo essa freqncia maior nos casos em que adoena de base encontra-se em atividade clnica.

    Portanto, ADC uma das sndromes clnicas maiscomuns na prtica mdica impondo, desta forma, aoclnico geral e ao hematologista a necessidade de sefamiliarizar com essa entidade (5).

    Condies Associadas

    ADC est comumente associada s doenasinflamatrias crnicas como artrite reumatide, sinfeces crnicas como tuberculose ou infecesfngicas sistmicas, e neoplasia (12, 13). Natabela 1 relacionamos as condies patolgicasmais freqentemente associadas ADC.

    A artrite reumatide uma doena crnica,de carter inflamatrio, classificada como uma dasdoenas difusas do tecido conjuntivo, de evoluogeralmente progressiva e que se caracteriza,fundamentalmente, pelo acometimento do sistemasteo-articular. No entanto, muitas vezes, estaassume aspecto disseminado, comprometendodiferentes estruturas e sistemas extra-articulares(pulmes, corao, olhos, sangue, etc.). Dasalteraes sangneas, a ADC constitui-se numachado freqente e uma das manifestaes extra-articulares mais comuns. Isto justifica o fato damaioria dos estudos sobre ADC envolverempacientes com artrite reumatide (14).

    Patognese

    Dos vrios mecanismos envolvidos naetiopatogenia da ADC, os trs principais so:diminuio da sobrevida das hemcias, respostamedular inadequada frente anemia e distrbiodo metabolismo do ferro (13, 14).

    A ADC compreende uma das alteraesde um complexo de respostas metablicasfrente estimulao do sistema imunolgicocelular. Esta resposta inicia-se com a ativaodos macrfagos e a elaborao e secreo decitocinas. Tem sido cada vez mais evidente apar t ic ipao centra l dos monci tos emacrfagos na patognese da ADC (15).

    Diminuio da sobrevida das hemcias

    A constatao de que hemcias de indivduonormal administradas paciente com artritereumatide apresenta sobrevida menor, enquantoque hemcias de indivduo com artrite reumatideadministradas indivduo normal, passam aapresentar sobrevida normal demonstra presenade mecanismo hemoltico extra-globular. Esse

    Tabela 1. Condies patolgicas associadas Anemia de Doena Crnica

    Infeces Crnicas(fngicas, bacterianas, virais)

    Tuberculose, bronquiectasia, abcessopulmonar, pneumonia

    Endocardite, miocardite, osteomielite,meningiteDoena inflamatria plvica

    Infeco pelo HIV, parvovrus B19

    Doenas Inflamatrias Crnicas

    Artrite reumatide, febre reumtica, lupuseritematoso sistmico

    Doena de Crohn, sarcoidose

    Doenas Neoplsicas

    Linfoma, Mieloma Mltiplo, Carcinoma

  • Canado R.D. et al

    129

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    achado tem sido atribudo ao estado dehiperatividade do sistema mononuclear fagocitriodesencadeado por processo infeccioso,inflamatrio ou neoplsico. Tal estado hiperreativoleva remoo precoce dos eritrcitos circulantese, portanto, diminuio da sobrevida dashemcias, que varia de 80 a 90 dias, considerandoo normal de 110 a 120 dias (16, 17).

    Outros fatores como: febre (que pode causardano membrana eritrocitria), liberao dehemolisinas (em algumas neoplasias) e liberaode toxinas bacterianas podem levar condiode hiper-hemlise.

    Resposta medular inadequada

    No paciente com ADC, a eritropoeseencontra-se normal ou discretamente aumentadae a contagem de reticulcitos normal ouinadequadamente aumentada frente ao grau deanemia do paciente.

    A resposta medular inadequada observadadeve-se, basicamente secreo inapropriadamentebaixa de eritropoetina (EPO), diminuio da

    resposta da medula ssea EPO e diminuio daeritropoese conseqente menor oferta de ferro medula ssea (13).

    A medula ssea normal capaz de aumentar6 a 8 vezes sua capacidade eritropotica e,portanto, facilmente compensaria a diminuiomodesta da sobrevida das hemcias. No entanto,no isto que se observa nos pacientes com ADC.Tal falha do aumento da eritropoese deve-se,particularmente, secreo inapropriadamentebaixa de EPO. Normalmente, existe correlaopositiva entre sntese de eritropoetina e intensidadeda anemia, ou seja, a diminuio da hemoglobinapromove aumento da secreo da eritropoetinaem indivduos com funo renal normal.Entretanto, vrios trabalhos tm mostrado que nospacientes com artrite reumatide e ADC talaumento ocorre, porm muito pequeno quandocomparado ao aumento observado nos indivduoscom artrite reumatide sem ADC, o qual capazde corrigir a anemia (5, 14).

    Uma das explicaes para essa respostamedular inadequada est diretamente relacionada ativao dos macrfagos e liberao de citocinas

    EPO = eritropoetina, IFN = interferon, IL = interleucina, TNF = fator de necrose tumoral

    Figura 1. Representao esquemtica da ao das citocinas sobre a eritropoese em pacientes comAnemia de Doena Crnica (modificado de Fuchs et al., 1991) (14)

    InfecoNeoplasia

    Macrfago ativado

    Ferritina

    Ferro

    ProgenitoresEritrocitrios

    INF

    TNF

    IL-1, IL-6

    EPO

    Rins

    Inibio daEritropoese

    Anemia / Hipxia

    Hemoglobina

  • Canado R.D. et al

    130

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    inflamatrias, principalmente da interleucina-1 einterleucina-6 (IL-1, IL-6), do fator de necrosetumoral alfa (TNF ) e do interferon gama (INF ),que atuam inibindo a proliferao dos precursoreseritrocitrios e, portanto, inibindo a eritropoese.Alm disso, a ao supressora dessas citocinas sobrea eritropoese supera a ao estimuladora da EPOresultando na diminuio da resposta da medulassea EPO e eritropoese (figura 1). In vitro,observa-se aumento significativo da proliferao deunidades formadoras de colnias eritrocitrias depacientes com artrite reumatide quando seadiciona anticorpo anti-TNF e anticorpo Anti-IL-1.O mesmo no observado quando se adicionaanticorpo Anti-TNF (9, 14, 17).

    Outra alterao a diminuio da oferta doferro armazenado nos macrfagos levando diminuio da eritropoese.

    Na ADC observa-se discreta diminuio dasobrevida das hemcias, porm o principalmecanismo para o desenvolvimento da anemiaresulta da incapacidade da medula ssea emaumentar sua atividade eritropotica suficientemente

    para compensar a menor sobrevida das hemcias.Isso devido, basicamente, ao de citocinas queatuam como supressores da eritropoese, tais como:TNF , INF , e IL-1 (5, 12, 17).

    Distrbio do metabolismo do ferro

    O ferro um elemento essencial na maioriados processos fisiolgicos do organismo humano,desempenhando funo central no metabolismoenergtico celular.

    Em adultos normais, a quantidade de ferroabsorvida diariamente equivale quantidadeexcretada e o ferro do organismo continuamente reciclado atravs de um eficientesistema de reutilizao deste metal das fontesinternas, principalmente do ferro proveniente dahemoglobina das hemcias aps hemlise intrae extravascular.

    A maior parte do ferro plasmtico destina-se medula ssea, sendo que 80% do ferro liga-se ao heme e passa a fazer parte da hemoglobinacomo ferro funcional, e os 20% restantes

    IL = interleucina, TNF = fator de necrose tumoral, RTf = receptor da transferrina

    Figura 2. Representao esquemtica da ao das citocinas e da lactoferrina no metabolismo do ferroem pacientes com Anemia de Doena Crnica (Jurado, R.L., 1997) (19)

    Reteno de FerroMacrfagos (fgado,bao)Eritropoese

    Ferritina

    Rpido Lento

    Ferritina, RTf

    IL-1. IL-2, TNF

    Protena Transferrina - Like(mais vida pelo Ferro)

    Lactoferrina

    IL-1

  • Canado R.D. et al

    131

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    permanecem ligados transferrina como ferrode transporte (18). Aproximadamente 25% doferro do organismo de um adulto normalencontra-se armazenado, principalmente dofgado e do bao. Quando necessrio, esse ferroretorna ao plasma e dirige-se medula sseapara a formao de novas hemcias. Essaliberao do ferro armazenado ocorredidaticamente sob duas formas: forma lenta,proveniente do ferro de depsito e forma rpida(pool lbil), que a forma que o organismoutiliza em situaes de urgncia (19).

    Na ADC ocorre distrbio da reutilizao do ferroque se mantm sob a forma de depsito. Essebloqueio deve-se ao aumento da sntese dalactoferrina, promovido pela IL-1, que uma protenasemelhante transferrina (transferrina-like) secretadapelos neutrfilos, que compete com essa. Alactoferrina difere funcionalmente da transferrina emtrs importantes aspectos: tem maior afinidade peloferro, especialmente em pH mais baixos, notransfere o ferro s clulas eritropoticas e retidarpida e ativamente pelos macrfagos. Portanto,

    dificulta a mobilizao do ferro de depsito e,conseqentemente, a eritropoese (19) (figura 2).

    Vrios estudos demonstraram a participaodo Linfcito T ativado, que liberando IL-2, TNF e INF promovem a ativao dos macrfagos,que por sua vez, liberam IL-1, IL-6 e TNF eatuam promovendo a reteno do ferro no sistemamononuclear fagocitrio (9, 20). Alm disso, olinfcito T ativado inibe a ao do INF , queatravs da via do xido ntrico e da transcrio docido ribonuclico mensageiro (RNAm) doreceptor da transferrina promovem aumento dasntese de ferritina e dos receptores da transferrina,respectivamente, aumentando a captao earmazenamento do ferro no macrfago. Por outrolado, o linfcito T, principalmente via IL-4 e IL-13,estimulam a sntese de ferritina e dos receptoresda transferrina, que resultam no aumento do ferrode depsito (3, 9, 12, 14, 20) (figura 3).

    Outra hiptese, que explica melhor o defeitoda liberao do ferro dos hepatcitos e dosentercitos, o aumento da sntese da apoferritina,que por sua vez estimula a via lenta, favorecendo

    IFN = interferon gama, IL = interleucina, NO = xido ntrico, RTf = receptor da transferrina

    Figura 3. Representao esquemtica da ao das citocinas inflamatrias na regulao dometabolismo do ferro (modificado de Weiss et al., 1997) (20)

  • Canado R.D. et al

    132

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    a permanncia do ferro sob a forma de depsitono interior dos macrfagos.

    Em resumo, todo processo inflamatriocrnico capaz de aumentar a sntese e a liberaode citocinas endgenas que, por sua vez, induzemalteraes do metabolismo do ferro e diminuioda sntese da hemoglobina (14). Na Tabela 2relacionamos os principais mecanismospatofisiolgicos envolvidos na ADC (12).

    Diagnstico: Critrios Clnicos eLaboratoriais

    Cartwright & Lee caracterizaram a ADC comorelativamente comum, mas clinicamente semimportncia. Relativamente comum porque asegunda causa mais freqente de anemia, aps aanemia ferropriva, e clinicamente sem importnciaporque, na maioria dos casos, caracteriza-se poranemia leve a moderada (21).

    Quanto s caractersticas clnicas, geralmenteos sintomas presentes esto relacionados doenade base e no anemia propriamente dita. Esta

    desenvolve-se nos primeiros 30 a 90 dias, usualmenteno progride e, freqentemente, normaliza-se como tratamento da doena de base. Aspecto relevante a correlao positiva entre anemia e atividade e/ou intensidade da doena de base, ou seja, quantomaior a intensidade dos sintomas do paciente, maioro grau de anemia e, uma vez institudo o tratamento,a anemia tende a melhorar e, at mesmo, haver anormalizao dos valores da hemoglobina. Assim, apresena e/ou intensidade da anemia constitui-senum parmetro laboratorial utilizado para monitoraro curso clnico da doena bem como a eficcia dotratamento institudo (2).

    Alm dos dados clnicos, os parmetroslaboratoriais utilizados para o diagnstico da ADCbem como para o diagnstico diferencial comoutras causas de anemia so: hemograma,morfologia eritrocitria, contagem de reticulcitos,ferro srico, ndice de saturao da transferrina,ferritina srica, receptor da transferrina e anlisedo ferro medular.

    ADC caracteriza-se por anemia normoctica/normocrmica do tipo hipoproliferativa com ferro

    Tabela 2. Mecanismos patofisiolgicos envolvidos na ADC (Modificado de Means, R.T.Jr. 1999) (12)

    Diminuio da sobrevida Defeito da mobilizao/ Resposta medulardas hemcias utilizao do ferro eritropotica

    inadequada

    Aumento da sntese Sntese inadequadade ferritina (IL-1, IFN ) de EPO frente

    anemia (IL-1,TNF , TGF- )

    Mecanismo(s) Aumento da sntese Inibio dosdesconhecido(s) dos receptores solveis progenitores(IL-1, TNF ) da transferrina eritrocitrios (IL-1,

    TNF , INF )

    Outros mecanismos Diminuio da(TNF , IL-1) expresso dos

    receptores da EPO(IFN )

    EPO = eritropoetina, IFN = interferon, IL = interleucina, TGF = fator de crescimento de transformao,TNF = fator de necrose tumoral

  • Canado R.D. et al

    133

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    srico e saturao da transferrina diminudos e,paradoxalmente, aumento da concentrao doferro de depsito (6, 12, 13).

    A anemia de intensidade leve moderada(hemoglobina entre 9 e 12 g/dl), raramente ovalor da hemoglobina inferior a 8 g/dl e ohematcrito varia entre 25% e 40%. As hemciasso normocrmicas e normocticas, embora em50% dos casos sejam hipocrmicas(concentrao da hemoglobina corpuscularmdia varia entre 26 g/dl e 32 g/dl) e, em 20 a50%, microcticas. Entretanto, quando hmicrocitose, esta no costuma ser to intensaquanto a observada no paciente com anemiaferropriva (raramente o volume corpuscularmdio inferior a 72 fl). extenso do sangueperifrico, pode-se observar anisocitose epoiquilocitose discretas, alteraes estas menosevidentes que as encontradas na anemiaferropriva (10, 11, 12). A contagem dereticulcitos normal ou pouco elevada, oumelhor, inadequadamente aumentada emrelao ao grau de anemia (13).

    A ferritinemia encontra-se normal ouaumentada. Entretanto, como a ferritina umaprotena de fase aguda, pacientes com doena

    inflamatria ou neoplsica podem apresentarvalores normais ou elevados, porm, que noexpressam de maneira correta a quantidade deferro do organismo (22). Portanto, essespacientes podem apresentar deficincia de ferromesmo com valores normais de ferritinemia.Recente estudo retrospectivo, correlacionandoa quantidade de ferro de depsito e a dosagemda ferritina srica, evidenciou que cerca de 50%dos pacientes com ausncia de ferro medularapresentavam ferr i t inemia dentro danormalidade, e um tero dos pacientes comdeficincia de ferro apresentam valores deferritina maiores que 100 ng/ml (23).

    Paradoxalmente, a anlise do ferro medularrevela presena normal ou aumentada de ferro,que se deve, particularmente, ao distrbio da suamobilizao e/ou reutilizao pelos precursoreseritrocitrios hematopoticos. A eritropoeseencontra-se normal ou discretamente hiperplsica.

    Outras alteraes bioqumicas podem estarpresentes no paciente com ADC, tais como:aumento do fibrinognio e da protena C reativa,aumento da ceruloplasmina, diminuio dahaptoglobina, aumento da velocidade dehemossedimentao, aumento do cobre srico,

    Tabela 3. Diagnstico laboratorial diferencial entre Anemia de Doena Crnica e Anemia Ferropriva(modificado de Weiss, G., 2000) (3)

    Teste

    Laboratorial ADC Anemia Ferropriva

    Ferro

    srico diminudo ou normal diminudo

    Transferrina

    srica diminuda ou normal aumentada

    ndice de

    saturao da transferrina diminudo ou normal diminudo

    Ferritina

    srica normal ou aumentada diminuda

    Receptor

    da transferrina normal aumentada

    Receptor da transferrina /

    Log ferritina diminudo (4)

    As palavras em negrito indicam a alterao mais freqentemente observada

  • Canado R.D. et al

    134

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    diminuio da albumina e da transferrina srica (6,26, 27). A alterao desses parmetros tem relaodireta com a fase aguda da doena de base e podemser utilizados para monitorar o curso clnico dadoena e a eficcia do tratamento institudo.

    A dosagem srica das citocinas: IL-1, Il-6, TNF e INF encontra-se aumentada e da eritropoetina,normal ou pouco aumentada (14).

    Diagnstico Diferencial

    A ADC pode coexistir com anemia pordeficincia de ferro, deficincia de folato e/ouvitamina B12, hemlise, diminuio da eritropoesepor insuficiencia renal, mielofitise, induzida pordrogas ou toxinas. Portanto, essas alteraesdevem ser investigadas e excludas.

    O diagnstico diferencial mais importantecom ADC anemia ferropriva (13). Na prticaclnica, ferritina srica inferior a 12 ng/ml confirmao diagnstico de deficincia de ferro, enquantoque valores acima de 200 ng/ml praticamenteexcluem esse diagnstico, mesmo em pacientescom doena inflamatria ou neoplsica.

    Desta forma, vrios autores tm propostoque, para os pacientes com doena inflamatriaou neoplasia, o limite inferior de normalidade paraa ferritina deva ser prximo de 30 ng/ml (23),comparado com o valor de corte normalmenteutilizado para deficincia de ferro que de ferritinamenor ou igual a 12 ou 10 ng/ml. Para valoresentre 30 ng/ml e 100 ng/ml, a determinao daconcentrao dos receptores da transferrina (RTf)e, mais precisamente, do ndice RTf/Log ferritinaso de grande importncia para confirmar ou noa existncia de deficincia de ferro nessespacientes (23, 24, 25, 28, 29).

    Os testes laboratoriais bem como seusresultados caractersticos observados nestasduas condies espec f icas podem serobservados na tabela 3.

    Tratamento

    O tratamento especfico da ADC consiste notratamento da doena de base com o objetivode corrigir os mecanismos envolvidos nodesenvolvimento da anemia (9). O uso de terapia

    anti-citocina pode oferecer algum benefcio aopaciente, porm sua uti l izao ainda controversa (30).

    A anemia no paciente com ADC costuma serleve moderada e, em menos de 2% dos casos, ohematcrito inferior a 25% (10).

    Estima-se que 20% a 30% dos pacientesrequerem tratamento que inclui: reposio deferro, administrao da eritropoetina e,eventualmente, transfuso de hemcias. Taismedidas devem ser consideradas caso a caso (11,12, 13).

    O ferro um elemento essencial na maioriados processos fisiolgicos, desempenhandofuno central no metabolismo energtico celular.No caso das infeces e das neoplasias em que oagente etiolgico e as clulas neoplsicasdependem intrinsicamente do ferro para suaproliferao, alguns estudiosos adotam a hiptesede que a reteno de ferro na forma de depsitoconstitui-se um mecanismo desenvolvido peloorganismo humano como forma de defesa contraesses agentes agressores. Assim, nesses casos,deve-se evitar a administrao de ferro oral ouparenteral. J nas doenas inflamatrias como naartrite reumatide, recomenda-se o uso do ferro,quando necessrio (7, 31, 32).

    A administrao da eritropoetina (EPO) deveser considerada nas doenas inflamatrias agudasou crnicas, cuja atividade da doena prolongadae a intensidade da anemia compromete aqualidade de vida do paciente. Recomenda-se adose inicial de eritropoetina de 100 U/Kg, por viasubcutnea, dividida em trs doses semanais porum perodo de, pelo menos, 8 a 12 semanas. Se,aps 8 a 12 semanas, no houver respostateraputica desejada ou esperada, recomenda-seaumentar a dose de EPO para 150 U/Kg at 300U/Kg. Alm disso, recomenda-se a administraoconcomitante do ferro oral (325 mg/dia), mesmonos pacientes com estoques adequados de ferro.Isto se justifica pelo distrbio da mobilizao e/ou reutilizao do ferro do organismo, mecanismopatofisiolgico caracterstico na ADC (12, 33, 34).

    A transfuso de concentrado de hemciaspode ser necessria, especialmente nos pacientesmais idosos e nos pacientes com neoplasia, nosquais outros mecanismos (como: supresso da

  • Canado R.D. et al

    135

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    hematopoese ps quimioterapia, infiltrao damedula ssea) possam estar envolvidos nodesenvolvimento da anemia (3). Portanto,compreendem situaes cuja intensidade daanemia compromete a qualidade de vida e colocaem risco a sobrevida do paciente.

    Anemia of chronic diseaseRodolfo D. Canado, Carlos S. Chiattone

    Abstract

    The anemia of chronic disease (ACD) is usuallydefined as the anemia occurring in chronicinfectious, inflammatory disorders, or neoplasticdiseases, and is one of the most common syndromesin the clinical practice. Characteristically, ACD isa mild-to-moderate, normochromic/normocyticanemia, and is characterized by hypoferremia inthe presence of adequate iron stores.The three principal pathologic mechanismsinvolved in ACD are: reduced erythrocyte survival,bone marrow failure to increase red blood cellproduction to compensate for the increase in itsdemand, and abnormal mobilization ofreticuloendothelial iron stores. The central role ofmonocytes and macrophages, and the increasedproduction of the cytokines that mediate theimmune or inflammatory response, such as tumornecrosis factor, interleukin-1 and the interferons,are implicated in all three processes involved inthe development of ACD.The aim of this article is to review the recentadvances in the understanding of thepathophysiologic, diagnostic and therapeuticaspects of this syndrome.Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    Keywords: Anemia of chronic disease,erythropoiesis, cytokines, tumor necrosis factor,interleukin, interferon

    Referncias Bibliogrficas

    1. Hansen NE. The anemia of chronic disorders:A bag of unsolved questions. Scand. J.Haematol. 1983; 31:397.

    2. Lee GR. The anemia of chronic disease. Semin.

    Hematol. 1983; 20:61-80.3. Weiss G. Advances in the diagnosis and

    management for the anemia of chronicdisease. Hematology 2000. 2000; 42-45.

    4. Denz H, Fuchs D, Wachter H. Altered ironmetabolism and the anemia of chronic disease:a role of immune activation. Blood 1992;79:2797.

    5. Spivak JL. The blood in systemic disorders.Lancet 2000; 355: 1707-1712.

    6. Cartwright GE. The anemia of chronicdisorders. Semin. Hematol. 1966; 3:351-375.

    7. Haurani FI, Green D. Primary defective ironreutilization. Am. J. Med. 1967; 42:151.

    8. Shilling RF. Anemia of chronic disease: amisnomer Ann. Int. Med. 1991; 115:572-573.

    9. Weiss G. Iron and anemia of chronic disease.Kidney Int. 1999; 69:12-17.

    10. Cash JM, Sears DA. The anemia of chronicdisease: spectrum of associated diseases in aseries of unselected hospitalized patients. Am.J. Med. 1989; 87:638-644.

    11. Baer AN, Dessypris EN, Krantz SB. Thepathogenesis of anemia in rheumatoidarthritis: a clinical and laboratory analysis.Semin. Arthritis Rheum. 1990; 14:209-223.

    12. Means RTJr. Advances in the anemia of chronicdisease. Int. J. Hematol. 1999; 70:7-12.

    13. Means RTJr, Krantz SB. Progress inunderstanding the pathogenesis of the anemiaof chronic disease. Blood 1992; 80:1639-1647.

    14. Fuchs D, Hausen A, Reibnegger G, WernerER, Werner-Felmayer G, Dierich MP, WachterH. Immune activation and the anaemiaassociated with chronic inflammatorydisorders. Eur. J. Haematol. 1991; 46:65-70.

    15. Fillet G, Beguin Y, Baldelli L. Model ofreticuloendothelial iron metabolism inhumans: abnormal behavior in idiopathichemochromatosis and in inflammation.Blood, 1989; 74:844-851.

    16. Moura E, Noordermeer MA, Verhoeven N,Verheul AF, Marx JJ. Iron release from humanmonocytes after erythrophagocytosis in vitro:an investigation in normal subjects andhereditary hemochromatosis patients. Blood1998; 92:2511-2519.

    17. Katevas P, Andonopoulos AP, Kourakli-

  • Canado R.D. et al

    136

    Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(2):127-136

    Symeonidis A, Manopoulos E, Lafi T, MakriM, Zoumbos NC. Peripheral bloodmononuclear cells from patients withrheumatoid arthritis suppress erythropoiesis invitro via production of tumor necrosis factoralpha. Eur. J. Haematol. 1994; 53:26-30.

    18. Andrews NC. Disorders of iron metabolism. N.Engl. J. Med. 1999; 341:1986-1995.

    19. Jurado RL. Iron, infections, and anemia ofinflammation. Clin. Infect. Dis. 1997; 25:888-895.

    20. Weiss G, Bogdan C, Hentze MW. Pathwaysfor the regulation of macrophage ironmetabolism by the anti-inflammatory cytokinesIL-4 and IL-13. J. Immunol. 1997; 158: 420-425.

    21. Cartwright GE, Lee GR. The anemia of chronicdisorders. Br. J. Haematol. 1971; 21:147-152.

    22. Birgegard G, Hallgren R, Killander A,Stromberg A, Venge P, Wide L. Serum ferritinduring infection. A longitudinal study. Scand.J. Haematol. 1978; 21: 333-340.

    23. North M, Dallalio G, Donath AS, Melink R,Means RT. Serum transferrin receptor levels inpatients undergoing evaluation of iron stores:correlation with other parameters and observedversus predicted results. Clin. Lab. Haematol.1997; 19:93-97.

    24. Punnonen K, Irjala K, Rajamki A. Serumtransferrin receptor and its ratio to serumferritin in the diagnosis of iron deficiency.Blood 1997; 1052-1057.

    25. Mast AE, Blinder MA, Gronowski AM, ChumleyC, Scott MG. Clinical utility of the solubletransferrin receptor and comparison withserum ferritin in several populations. Clin.Chem. 1998; 44:45-51.

    26. Morley JJ, Kushner I. Serum C-reative proteinlevels in disease. Ann. N.Y. Acad. Sci. 1982;389:406-418.

    27. Kushner I. The phenomenon of the acutephase response. Ann. N.Y. Acad. Sci. 1982;389:39-48.

    28. Huebers HA, Beguin Y, Pootrakul P, EinspahrD, Finch CA. Intact transferrin receptors inhuman plasma and their relation toerythropoiesis. Blood 1990; 75:102-107.

    29. Means RTJr, Allen J, Sears DA, Schuster SJ.Serum soluble transferrin receptor and theprediction of marrow aspirate iron results in aheterogeneous group of patients. Clin. Lab.Haematol. 1999; 21:161-167.

    30. Means RTJr, Krantz SB, Luna J, Marsters SA,Ashkenazi A. Inhibition of murine erythroidcolony formation in vitro by interferon gammaand correction by interferon receptorimmunoadhesin inhibitor. Blood 1994;83:911-915.

    31. Auerbach M, Witt D, Toler W, Fierstein M,Lerner RG, Ballard H. Clinical use of the totaldose intravenous infusion of iron dextran. J.Lab. Clin. Med. 1988; 111: 566-570.

    32. Martini A, Ravelli A, Di Fuccia G, Rosti V,Cazzola M, Barosi G. Intravenous iron therapyfor severe anaemia in systemic-onset juvenilechronic arthritis. Lancet 1994; 344:1052-1054.

    33. Pincus T, Olsen NJ, Russell IJ, Wolfe F, HarrisER, Schnitzer TZ, Boccagno JA, Krantz SB.Multicenter study of recombinant humanerythropoietin in correction of anemia inrheumatoid arthritis. Am. J. Med. 1990;89:161-168.

    34. Gudbjornsson B, Hallgren R, Wide L, BirgerardG. Response of anaemia in rheumatoidarthritis to treatment with subcutaneousrecombinant human erythropoietin. Ann.Rheum. Dis. 1992; 51:747-752.

    Recebido 18/03/2002Aceito 13/06/2002