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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS JUSSARA LINHARES GRANEMANN APRENDIZAGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA NA MODALIDADE ESCRITA COMO SEGUNDA LÍNGUA Campo Grande MS Julho - 2015

APRENDIZAGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA NA MODALIDADE ESCRITA COMO SEGUNDA LÍNGUA

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APRENDIZAGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA NA MODALIDADE ESCRITA COMO SEGUNDA LÍNGUA

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS

    JUSSARA LINHARES GRANEMANN

    APRENDIZAGEM DA LNGUA PORTUGUESA NA MODALIDADE ESCRITA

    COMO SEGUNDA LNGUA

    Campo Grande MS Julho - 2015

  • 2

    JUSSARA LINHARES GRANEMANN

    APRENDIZAGEM DA LNGUA PORTUGUESA NA MODALIDADE ESCRITA

    COMO SEGUNDA LNGUA

    Dissertao apresentada para obteno do ttulo de

    Mestre ao Programa de Ps-Graduao em Estudos

    de Linguagens, da Universidade Federal de Mato

    Grosso do Sul, sob a orientao da Prof. Dr.

    Raimunda Madalena Arajo Maeda.

    rea de Concentrao: Lingustica e Semitica

    Campo Grande MS Julho 2015

  • 3

    JUSSARA LINHARES GRANEMANN

    APRENDIZAGEM DA LNGUA PORTUGUESA NA MODALIDADE ESCRITA

    COMO SEGUNDA LNGUA

    APROVADA POR:

    RAIMUNDA MADALENA ARAJO MAEDA, DOUTORA (UFMS)

    MARIUZA APARECIDA CAMILLO GUIMARES, DOUTORA (UFMS)

    GERALDO VICENTE MARTINS, DOUTOR (UFMS)

    Campo Grande, MS, 30 de Julho de 2015.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo, primeiramente, a Deus, pelo dom da vida e pelas graas concedidas.

    Agradeo, de forma especial, minha famlia que, diariamente, me incentiva, me alegra e me

    proporciona um amor incondicional, que me fez e faz superar todos os obstculos da vida.

    Aos estudantes surdos, professores e instrutores mediadores, sujeitos desta pesquisa que,

    gentilmente, se propuseram a contribuir com este estudo e sem os quais ela no teria sido

    possvel.

    Prof. Dr. Raimunda Madalena Arajo Maeda, no somente pela orientao, mas tambm

    pela confiana, compreenso e pacincia, colaborando na superao dos desafios, durante a

    jornada do mestrado.

    Prof. Dr. Claudete Cameschi de Souza, pelas contribuies na ocasio da qualificao, e

    em especial, ao Prof. Dr. Geraldo Vicente Martins e Prof. Dr. Mariuza Aparecida Camillo

    Guimares, pelas relevantes e valiosas contribuies pelo respeito com que trataram minha

    pesquisa na ocasio da defesa da dissertao.

    Aos demais professores do PPGMEL, pelos ensinamentos.

    Aos colegas do curso Mestrado em Estudos de Linguagens, pelas trocas de experincias e

    laos de amizade.

    Enfim, agradeo a todos que, direta ou indiretamente, contriburam para que eu conseguisse

    subir mais um degrau da escada da vida. Sou grata a todos por este momento mpar em minha

    vida.

  • 5

    A voz dos surdos so as mos e os corpos que pensam, sonham e expressam. As lnguas de sinais

    envolvem movimentos que podem parecer sem sentido

    para muitos, mas que significam a possibilidade de

    organizar as ideias, estruturar o pensamento e

    manifestar o significado da vida para os surdos.

    Pensar sobre a surdez requer penetrar no mundo dos

    surdos e ouvir as mos que, com alguns movimentos,

    nos dizem que para tornar possvel o contato entre os

    mundos envolvidos se faz necessrio conhecer a lngua

    de sinais.

    (Ronice Muller de Quadros)

  • 6

    LISTA DE TABELAS

    TABELA 1 - Perfil dos informantes ....................................................................................... 53

    TABELA 2 - Fluncia e Proficincia em L1 e L2 ................................................................... 59

  • 7

    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 - Texto 1 ............................................................................................................. 63

    QUADRO 2 - Texto 2 .............................................................................................................. 63

    QUADRO 3 - Texto 3 .............................................................................................................. 65

    QUADRO 4 - Texto 4 .............................................................................................................. 66

    QUADRO 5 - Texto 5 .............................................................................................................. 67

    QUADRO 6 - Texto 6 .............................................................................................................. 68

    QUADRO 7 - Texto 7 .............................................................................................................. 69

    QUADRO 8 - Texto 8 .............................................................................................................. 70

    QUADRO 9 - Texto 9 .............................................................................................................. 72

    QUADRO 10 - Texto 10 .......................................................................................................... 73

  • 8

    LISTA DE GRFICOS

    GRFICO 1 - Perda auditiva .................................................................................................. 56

    GRFICO 2 - Graus de surdez .............................................................................................. 57

    GRFICO 3 - Nveis de estgios de aquisio da Libras ....................................................... 58

    GRFICO 4 - Nveis de interlngua ....................................................................................... 59

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 15

    1 CONTEXTO DA PESQUISA ............................................................................................ 19

    1.1 LINGUAGEM E LNGUA ............................................................................................. 19

    1.1.1 A lngua no contexto da educao de surdos ........................................................... 20

    1.2 AQUISIO E APRENDIZAGEM DAS LNGUAS .................................................. 22

    1.2.1 Aquisio X aprendizagem: aspectos tericos ........................................................ 22

    1.2.2 Aprendizagem da lngua e suas concepes ........................................................... 23

    1.2.1.1 Lngua como expresso do pensamento .......................................................... 24

    1.2.1.2 Lngua como instrumento de comunicao ..................................................... 24

    1.2.1.3 Lngua como forma ou processo de interao .................................................. 25

    1.3 INTERLNGUA ............................................................................................................. 25

    1.3.1 Interlngua e o surdo ................................................................................................ 27

    1.3.2 Nveis de interlngua ............................................................................................... 28

    1.4 LNGUA BRASILEIRA DE SINAIS - LIBRAS E LNGUA PORTUGUESA NA

    MODALIDADE ESCRITAC ............................................................................................... 30

    1.4.1 Lngua Brasileira de Sinais Libras ....................................................................... 30

    1.4.2 Poltica da Lngua: Bilinguismo na Educao de Surdos ....................................... 32

    1.4.1.1 Libras: legislao .............................................................................................. 34

    1.4.1.2 Libras Histrico ............................................................................................. 35

    1.4.3 Como ocorre a aprendizagem da Lngua de Sinais e da Lngua Portuguesa pelo

    surdo? ............................................................................................................................... 36

    1.4.4 O processo de aprendizagem da escrita L2 por surdos ........................................... 37

    1.4.5 A apropriao da segunda lngua pelo surdo ........................................................... 40

    1.4.6 Dificuldades do surdo na aprendizagem da escrita ................................................. 41

    1.4.7 Alfabetizao na perspectiva do letramento na educao dos surdos ..................... 41

    1.5 A ESCOLA BILNGUE ................................................................................................. 42

    1.6 AS ABORDAGENS EDUCACIONAIS REFERENTES EDUCAO DE SURDOS

    ............................................................................................................................................... 44

    1.6.1 Oralismo ................................................................................................................... 44

    1.6.2 Comunicao Total .................................................................................................. 45

    1.6.3 Bilinguismo .............................................................................................................. 46

    1.7 O TRADUTOR INTRPRETE DE LIBRAS E O INSTRUTOR MEDIADOR ........... 47

    2 O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA ..................................................................... 50

    2.1 METODOLOGIA ........................................................................................................... 50

  • 10

    2.2 INSTRUMENTOS E COLETA DE DADOS ............................................................... 52

    2.3 CARACTERIZAO DO GRUPO DE INFORMANTES ........................................... 52

    2.3.1 Perfil dos informantes ............................................................................................. 53

    2.3.2 Graus e tipo de perdas auditivas .............................................................................. 56

    2.3.3 Estgios de aquisio na Libras .............................................................................. 57

    2.3.4 Nveis de Interlngua ............................................................................................... 59

    2.3.5 Fluncia e Proficincia lingustica ........................................................................... 59

    2.2.1.1 Lngua como expresso do pensamento ........................................................... 24

    2.2.1.2 Lngua como instrumento de comunicao ...................................................... 24

    2.2.1.3 Lngua como forma ou processo de interao .................................................. 25

    3 APRESENTAO DOS DADOS E RESULTADOS ..................................................... 61

    3.1 ANLISE DOS DADOS ................................................................................................ 61

    3.1.1 Informante A ............................................................................................................ 62

    3.1.2 Informante B ............................................................................................................ 64

    3.1.3 Informante C ............................................................................................................ 66

    3.1.4 Informante D ............................................................................................................ 68

    3.1.5 Informante E............................................................................................................. 71

    3.2 ANLISE DOS RESULTADOS ................................................................................... 74

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................ 79

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................. 84

    APNDICES ........................................................................................................................... 93

    APNDICE A ....................................................................................................................... 94

    APNDICE B ....................................................................................................................... 95

    APNDICE C ....................................................................................................................... 96

    APNDICE D ....................................................................................................................... 97

  • 11

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AEE - Atendimento Educacional Especializado

    ASL - Lngua Americana de Sinais

    CAS - Centro de Capacitao dos Profissionais da Educao e de Atendimento s Pessoas

    com Surdez

    CM - Configurao de mos

    dB - Decibis

    EF/C - Expresso facial e/ou corporal

    IL - Interlngua

    INES - Instituto Nacional de Educao de Surdos

    L1 - Primeira lngua

    L2 - Segunda lngua

    LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educao

    LE - Lngua estrangeira

    Libras - Lngua Brasileira de Sinais

    LM Lngua materna

    LP - Lngua Portuguesa

    LS - Lngua de Sinais

    LSF - Langue des Signes Franaise

    M - Movimento

    MEC - Ministrio da Educao

    MS - Mato Grosso do Sul

    O - Orientao

    OSV - Objeto, sujeito e verbo

    OVS - Objeto, verbo e sujeito

    PA - Ponto de articulao

    PCN - Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa

    SED - Secretaria Estadual de Educao

    SEESP - Secretaria de Educao Especial

    SEMED - Secretaria Municipal de Educao

    SV - Sujeito e verbo

    SVO - Sujeito, verbo e objeto

  • 12

    UFMS - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

    UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura.

    VO - Verbo e objeto

  • 13

    RESUMO

    O tema aprendizagem da Lngua Portuguesa na modalidade escrita como segunda lngua (L2)

    para estudantes surdos tem suscitado diversas indagaes entre os profissionais, uma vez que

    esses estudantes encontram dificuldades, no decorrer desse processo. Essa pesquisa teve como

    objetivo evidenciar a importncia da Libras (L1) no transcorrer da aprendizagem da L2,

    durante o processo de letramento, e analisar os diferentes estgios de interlngua vivenciados

    pelos estudantes surdos, visto que utilizam, em seus textos escritos, aspectos gramaticais da

    Libras, para conferir segurana aos enunciados produzidos na nova lngua. Para tanto,

    utilizamos a metodologia de natureza qualitativa, de carter etnogrfico, a partir de estudos de

    caso de cinco estudantes surdos, matriculados nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em

    escolas da rede estadual de Educao, do Estado de Mato Grosso do Sul. Os dados da

    pesquisa consistem em entrevistas, observaes e textos escritos pelos estudantes

    participantes, coletados durante as aulas. Esses dados foram analisados, a partir do referencial

    terico proposto por Bakhtin (2010), Brochado (2003), Quadros (1997 e 2004), Quadros e

    Karnopp (2004), Quadros e Schmiedt (2006), Soares (2003 e 2009), Uyeno, Cavallari e

    Mascia (2014), entre outros. Dentre as concluses desse estudo, destacam-se a influncia e a

    relevncia da Libras, como suporte para a aprendizagem da Lngua Portuguesa na modalidade

    escrita. Os resultados desta investigao podem contribuir para subsidiar possveis projetos na

    rea de aprendizagem da Lngua Portuguesa como L2, para estudantes surdos em processo de

    letramento.

    Palavras-chave: Letramento. Libras. Lngua Portuguesa. Interlngua. Surdos.

  • 14

    ABSTRACT

    The theme learning the Portuguese language in the written form as a second language (L2) for

    deaf students has raised several questions among professionals, since these students encounter

    difficulties during this process. This research aimed to highlight the importance of Pounds

    (L1) in the course of learning L2, during the process of literacy, and analyze the different

    stages of interlanguage experienced by deaf students, as they use in their written texts,

    grammatical aspects of pounds, to give security to utterances produced in the new language.

    To this end, we used the qualitative methodology of ethnographic, from case studies of five

    deaf students enrolled in the early elementary school years in the state system schools of

    Education, the State of Mato Grosso do Sul. Survey data consist of interviews, observations

    and texts written by the participating students collected in class. These data were analyzed

    from the theoretical framework proposed by Bakhtin (2010), Paperback (2003) Tables (1997

    and 2004), Tables and Karnopp (2004), Tables and Schmiedt (2006), Soares (2003 and 2009),

    Uyeno, Cavallari and Mascia (2014), among others. Among the findings of the study

    highlight the influence and relevance of pounds as a support for learning the Portuguese

    language in the written form. The results of this research can contribute to support possible

    projects in the area of learning Portuguese as L2, for deaf students in the literacy process.

    Keywords: Literacy. Libras. Portuguese Language. Interlanguage. Deaf.

  • 15

    INTRODUO

    Em uma sociedade grafocntrica, como a nossa, a modalidade escrita apresenta alto

    grau de relevncia como prtica social, pois se destaca como meio de informao, de

    comunicao, de aprendizagem e, at mesmo, de lazer. No ambiente escolar, uma das

    formas constituintes da avaliao, portanto, imprescindvel que todos os estudantes a

    utilizem no transcorrer do processo de escolarizao. Para os estudantes surdos, a Lngua

    Portuguesa (LP) na modalidade escrita reconhecida como uma segunda lngua (L2) e a

    Lngua Brasileira de Sinais Libras como primeira lngua (L1), por meio da Lei n

    10.436/2002 e do Decreto n 5626/2005, colocando-os como sujeitos bilngues, ou seja, os

    seus atos comunicativos podem efetivar-se por intermdio dessas duas lnguas.

    Entretanto, apesar das garantias em leis e do trabalho realizado nas salas de aula,

    atualmente, as pesquisas relacionadas com a produo escrita de estudantes surdos

    demonstram resultados insatisfatrios. Fernandes (1990) enfatiza que as dificuldades de

    escrita dos surdos equivalem s mesmas de um falante que tenha sido privado do convvio

    com a primeira lngua. Desse modo, no especificamente a surdez que provoca tais

    dificuldades, mas a falta de contato e o uso da lngua; assim, os surdos, por estarem em

    processo de aprendizagem de uma segunda lngua, assemelham-se aos estrangeiros que

    utilizam a lngua na modalidade oral e que necessitam de metodologias diferenciadas para a

    consolidao efetiva.

    Portanto, aprender uma nova lngua no se trata da simples troca de palavras da L1

    para a L2. fundamental a apropriao de conceitos para torn-los significativos, a partir de

    um dado contexto, uma vez que cada lngua apresenta especificidades e est ligada

    diretamente cultura de seus usurios, sendo necessrias interaes para a construo de

    conceitos e a elaborao do pensamento, estabelecendo relaes na perspectiva da nova

    lngua. Nesse sentido, o desenvolvimento lingustico em uma segunda lngua no resulta

    apenas da substituio de conhecimentos da primeira lngua.

    Para Guarinello (2007), a escrita dos surdos pode deixar de configurar a natureza

    dialgica da linguagem, reduzindo-se a um mero cdigo, deixando de existir como relao

    significativa entre sujeitos. Nesse sentido, importante, primeiramente, a valorizao da

    Libras como L1, como lngua de instruo dos contedos curriculares ensinados na escola e

    como forma de comunicao; e tambm o ensino da Libras e o trabalho especfico com

    metodologia de ensino de segunda lngua nas aulas do Atendimento Educacional

    Especializado AEE. Nessa perspectiva, Moita Lopes (1996) sugere algumas alternativas

  • 16

    metodolgicas para o ensino de leitura na lngua materna ou estrangeira, por exemplo,

    partindo-se da construo e verificao de hipteses sobre um ttulo ou uma imagem,

    considerando todos os elementos na compreenso de textos.

    Assim, para Salles et al (2004), as atividades de leitura e de produo tm implicaes

    mtuas no ensino de uma lngua e, no caso dos surdos, sobretudo, o sucesso de uma produo

    escrita depende, principalmente, dos inputs a que esto expostos. Em vista disso, durante o

    processo de ensino da L1, o ato de produzir por escrito passa obrigatoriamente em receber

    informaes de naturezas diversificadas, como por exemplo: as de natureza lingusticas e

    socioculturais, por meio da leitura, no ensino de segunda lngua, sendo tal processo de

    fundamental importncia. Ou seja, quanto mais o professor inserir os aprendizes na situao

    em que se enquadra a atividade proposta, melhor ser o resultado, pois defendem que um

    texto sempre gerado a partir de outro(s) texto(s), dependendo, portanto, das suas prprias

    condies de produo.

    A dificuldade na aprendizagem da lngua na modalidade escrita torna-se mais visvel

    quando observamos os estudantes surdos matriculados no Ensino Fundamental, em processo

    de aprendizagem da L2 e, concomitante, de sua L1. Nesse sentido, o desafio a ser enfrentado

    pelos estudantes surdos e pelos profissionais perpassa por questes de mbito lingustico e de

    prticas pedaggicas, que fomentam a educao de surdos, tanto no ensino de L1 quanto de

    L2, na perspectiva de que a Libras pr-requisito para aprendizagem da Lngua Portuguesa na

    modalidade escrita.

    Assim, a escolha do objeto de investigao desta pesquisa resultante das inquietudes

    e percepes, decorrentes de vrios anos de trabalho na rea da educao de surdos, as quais

    foram construdas no decurso de minha trajetria profissional, que iniciou no ano de 1995,

    como professora do Ensino Fundamental, em uma escola especial com atendimento a

    estudantes surdos e tambm com o trabalho em sala de Atendimento Educacional

    Especializado (AEE) com estudantes com deficincia auditiva e com surdez, no municpio de

    Campo Grande, Estado de Mato Grosso do Sul - MS. Aps esse perodo, no ano de 2002,

    iniciei o trabalho na Secretaria Municipal de Educao (SEMED), com atendimento,

    orientao e acompanhamento de tradutores intrpretes e professores do AEE, e a

    implementao de cursos de Libras para ouvintes e surdos. A partir do ano de 2007, comecei

    a desenvolver atividades voltadas para a rea pedaggica, com orientao e acompanhamento

    na rede estadual de educao.

    A pesquisa fundamenta-se a partir das ideias de diversos autores, como por exemplo:

    Bakhtin (2010); Brabo (2001); Brochado (2003); Dallan (2012); Ferreira Brito (1993 e 1995);

  • 17

    Ferreiro (1996); Ferreiro e Teberosky (1985); Finau (2006 e 2007); Freire (2009); Klein

    (1998); Moita Lopes (1996); Mortatti (2004); Perlin (1998); Quadros (1997 e 2004); Quadros

    e Cruz (2011); Quadros e Karnopp (2004); Quadros e Schmiedt (2006); S (1998); Skliar

    (1997, 1998 e 2001); Soares (2003 e 2009); Uyeno, Cavallari e Mascia (2014); Vygotsky

    (1987 e 2002); e outros; partindo, assim, de duas vertentes: a educao e a lingustica aplicada

    ao ensino de lnguas, e a Lngua Portuguesa na modalidade escrita (L2) e a Libras (L1).

    Tambm enfoca diferentes ngulos da problemtica da aprendizagem da segunda

    lngua, para alunos surdos matriculados no Ensino Fundamental, na rede estadual de

    educao; isto , tem-se como pressuposto analisar produes textuais de alunos surdos, em

    fase de letramento, que so usurios tanto da Lngua Brasileira de Sinais quanto da Lngua

    Portuguesa na modalidade escrita, partindo de uma proposta bilngue, na qual sero

    observados os estgios de interlngua vivenciados por eles no transcorrer do processo de

    aprendizagem da Lngua Portuguesa como L2, bem como se evidenciar a importncia da

    Libras como L1 no transcorrer da aprendizagem da L2, durante esse processo de letramento.

    Esta dissertao encontra-se estruturada do seguinte modo: no Captulo 1,

    apresentamos os pressupostos tericos, iniciando com as questes relacionadas com a lngua

    no contexto da educao de surdos, a aquisio e a aprendizagem da lngua e da linguagem; o

    processo e os nveis de interlngua do surdo; a Lngua Brasileira de Sinais/Libras e Lngua

    Portuguesa como modalidade escrita. Tambm discorremos sobre como ocorre a

    aprendizagem da Libras e da Lngua Portuguesa na modalidade escrita pelo surdo, o processo

    de aprendizagem da escrita desta L2, a apropriao da segunda lngua, as dificuldades do

    surdo na aprendizagem da escrita, a alfabetizao e letramento para surdos; as polticas da

    Libras e o bilinguismo; a escola bilngue; as abordagens educacionais; o trabalho do tradutor e

    intrprete de Libras e instrutor mediador em sala de aula.

    No captulo 2, focalizamos o desenvolvimento da pesquisa, a partir do perfil dos

    informantes, seguido do tipo de perdas auditivas, graus de perda auditiva, estgios de

    aquisio da Libras, os nveis de interlngua, a fluncia e a proficincia lingustica; a

    metodologia da pesquisa e a descrio dos dados, os instrumentos de coleta de dados e a

    caracterizao do grupo de informantes.

    No captulo 3, apresentamos a anlise e a discusso de textos de diferentes gneros

    textuais produzidos pelos informantes durante as aulas ministradas nas disciplinas de Lngua

    Portuguesa, Histria e Geografia, correlacionando-os com os estgios de interlngua

    vivenciados pelos estudantes no processo de produo de textos escritos.

  • 18

    Nas consideraes finais, abordaremos as condies lingusticas (L1 e L2), as

    sugestes para encaminhamentos lingusticos e a necessidade de novas pesquisas e aes que

    podero ser implementadas com os estudantes, no decorrer do processo de aprendizagem das

    duas lnguas envolvidas.

  • 19

    1 CONTEXTO DA PESQUISA

    No captulo 1, Contexto da Pesquisa, objetivamos desenvolver a base terica deste

    estudo, por meio de breve levantamento bibliogrfico sobre a educao de surdos, refletindo

    sobre os seguintes temas: diferenciao entre os conceitos de linguagem e lngua, a lngua no

    contexto na perspectiva da surdez, a aquisio e aprendizagem das lnguas, as concepes de

    lngua, o processo e os nveis de interlngua, a Libras e a Lngua Portuguesa na modalidade

    escrita, a escola bilngue, as abordagens educacionais, a funo e atribuies do tradutor

    intrprete de Libras e o instrutor mediador em sala de aula com o estudante surdo.

    1.1 LINGUAGEM E LNGUA

    A linguagem a forma de expresso vinculada aos fenmenos comunicativos de todas

    as ordens, como por exemplo: a msica, a pintura, os gestos, os smbolos grficos, sinais

    convencionais (escrita e mmica), que permeiam todas as situaes envolvidas na

    comunicao. Assim, a linguagem engloba todos os tipos de manifestaes.

    Todo ato de linguagem depreende diversidade e multiplicidade de discursos dos

    interlocutores, ou seja, a manifestao do pensamento e, consequentemente, a expresso

    exterior origina-se da interior, organizada de maneira lgica.

    A lngua formada por elementos (sons e gestos) que oportunizam a comunicao, por

    meio de regras gramaticais, manifestando-se de forma verbal (escrita e oral) e no verbal

    (gestos, sinais, expresses faciais). Portanto, uma atividade essencialmente coletiva, a qual

    Bakhtin (2010) define como reflexo das relaes sociais realizadas por um determinado

    grupo, pois:

    [...] a verdadeira substncia da lngua no constituda por um sistema abstrato de

    formas lingusticas nem pela enunciao monolgica isolada, nem pelo ato

    psicofisiolgico de sua produo, mas pelo fenmeno social da interao verbal,

    realizada atravs da enunciao ou das enunciaes. A interao verbal constitui

    assim a realidade fundamental da lngua. (BAKHTIN, 2010, p. 123).

    Desse modo, para o autor, a lngua se constitui na interao verbal entre interlocutores

    inseridos em diferentes contextos; por isso, para haver dilogo efetivo, preciso que os

    interlocutores estejam integrados numa situao social e pertenam mesma comunidade

    lingustica, o que cria um terreno que torna possvel a troca lingustica.

  • 20

    Portanto, a competncia comunicativa em uma lngua est eminentemente associada s

    diversas situaes lingusticas, derivadas das interaes sociais dos indivduos inseridos em

    um determinado grupo.

    O ensino sistemtico de uma lngua busca desenvolver a competncia comunicativa

    dos usurios, para que a possam utilizar competentemente, em diferentes situaes. Para

    tanto, as atividades de ensino originam-se a partir das prticas sociais e vivncias dos

    aprendizes; importante ressaltar a funo das interaes vivenciadas pelo aprendiz. Nesse

    sentido, Bakhtin (2010, p. 106) afirma que o sentido da palavra totalmente determinado por

    seu contexto. De fato h tantas significaes possveis quantos contextos possveis. Desse

    modo, o ensino de uma lngua busca a ampliao do vocabulrio, do discurso e das

    experincias, a partir de um contexto social, mas no de forma estanque.

    Uyeno, Cavallari e Mascia (2014) complementam que a lngua responsvel pelo

    nosso psiquismo e pelas relaes que estabelecemos com o mundo e com as pessoas.

    Consequentemente, fundamental que a lngua seja parte integrante do indivduo, para que

    esse possa, ao longo de sua vida, expor seus sentimentos, suas ideias e seus conhecimentos.

    1.1.1 A lngua no contexto da educao de surdos

    As lnguas de sinais (LS) so empregadas por surdos, uma vez que estes no utilizam

    sons como forma de comunicao, mas sinais e expresses faciais/corporais. Ocorrem por

    meio visual e a produo acontece em um determinado espao, no so universais, ou seja,

    cada pas pode adotar lnguas de sinais diferentes, como acontece com as lnguas orais. Da

    mesma forma, existem as variaes lingusticas, dependendo das regies onde so praticadas,

    isto , os regionalismos, que no so verses ou derivaes sinalizadas das lnguas orais, mas

    sim so autnomas e independentes.

    No Brasil, as lnguas de sinais so conhecidas como Lngua Brasileira de Sinais

    Libras, sendo reconhecida legalmente como lngua, por meio da Lei N 10.436/2002,

    constituindo-se por elementos gramaticais, tanto quanto qualquer lngua oral.

    Quadros e Karnopp (2004) afirmam que as lnguas de sinais no so uma patologia,

    mas lnguas naturais1. A Libras, derivada de um sistema lingustico prprio e como L1 dos

    surdos, desempenha funes relevantes nos aspectos lingusticos, sociais e psicolgicos.

    1 So lnguas utilizadas de forma no sistemtica ou planejada, buscando facilitar a comunicao.

  • 21

    Assim, no contexto escolar, torna-se crucial para o desenvolvimento do processo de

    significao, em relao Lngua Portuguesa na modalidade escrita L22.

    As pesquisas de Quadros (1997) com bebs surdos que conviveram, efetivamente,

    com a Libras desde o nascimento, ou seja, receberam input lingustico no perodo adequado

    aquisio da L1, constataram semelhanas no processo de aquisio de lnguas dos bebs

    ouvintes, uma vez que esse processo ocorre independente da modalidade utilizada, seja ela

    oral ou sinalizada.

    A autora esclarece que o processo de aquisio da lngua das crianas surdas em

    relao s crianas ouvintes acontece na mesma fase, mas de forma diferenciada: a primeira

    recorre modalidade sinalizada e a segunda, modalidade oral. Os bebs ouvintes iniciam a

    primeira fase de aquisio da lngua com o balbucio, por meio dos estmulos sonoros e orais,

    com o apoio de feedback auditivo; assim, comeam a utilizar e a relacionar as palavras

    empregadas em seu meio social e cultural. J os bebs surdos iniciam balbuciando sons que,

    para eles, no fazem sentido lingustico, buscando estabelecer uma comunicao direta com

    os familiares, visto que os mesmos s utilizam a lngua oral.

    Nessa perspectiva, os bebs surdos apresentam desenvolvimento equivalente ao

    balbucio oral, ou seja, emitem sons, visto que o aparelho fonador no apresenta

    comprometimento, mas com o tempo e pela falta de audio, interrompem-no e passam a

    utilizar gestos e apontamentos, buscando o estabelecimento da comunicao. Com o

    transcorrer dos anos e com a falta de oportunidades de contato com surdos sinalizantes ou

    ouvintes fluentes em Libras, a criana surda no a adquire no perodo apropriado, como as

    crianas ouvintes adquirem a Lngua Portuguesa.

    Nestes casos, aprendem a Libras somente quando iniciam o perodo de escolarizao,

    o que lhes causa uma srie de danos, dentre eles: a dificuldade de organizao do pensamento,

    pois h grande atraso lingustico. Assim, por falta do uso da lngua adquirida, de forma

    natural e no perodo adequado, acabam fixando-se apenas nos atributos concretos dos objetos,

    comprometendo, sobremaneira, a aprendizagem lingustica, conceitual e dos contedos

    curriculares, de forma abstrata. Goldfeld (1997, p. 60) afirma que se a criana com surdez

    no se desvincula do ambiente concreto ela no ter condies favorveis de desenvolver as

    funes organizadora e planejadora. Assim, a questo da surdez est intimamente

    relacionada com a aquisio e/ou aprendizagem e com o uso efetivo da lngua.

    2 A utilizao da Lngua Portuguesa, no Brasil, como L2 reconhecida, a partir da convivncia entre

    comunidades locais e imigrantes ou indgenas, podendo assim, ser um critrio para a incluso de determinada lngua no currculo escolar [...] Em comunidades indgenas e comunidades de surdos, nas quais a lngua materna

    no o portugus, justifica-se o ensino de Lngua Portuguesa como segunda lngua. (PCN - MEC, 1998, p. 23).

  • 22

    Desse modo, o que normalmente acontece nesse contexto pedaggico que os

    estudantes surdos, sobretudo na escolarizao inicial, no dominam a lngua oral, e os

    professores, por sua vez, no so usurios efetivos da Libras. No entanto, alguns professores

    se dispem a aprender a Libras (pelo menos, no contexto de escolas ou salas especiais), mas

    focalizando correspondncias de vocabulrio entre sinais e palavra falada (Lngua

    Portuguesa), numa busca de incorporao de itens lexicais, sem explorao do uso das regras

    de enunciao naquela lngua.

    Os estudantes surdos, ento, iniciam o processo de aprendizagem da Libras (L1); no

    entanto, alguns autores conceituam-na como lngua materna (LM), tal qual estrangeiros que

    aprendem a Lngua Portuguesa na modalidade escrita como L2. Vygotsky (1987) esclarece a

    importncia da LM para o aprendizado de uma lngua estrangeira (LE), no sentido de que as

    crianas transferem para a nova lngua todo o conhecimento que possuem da primeira lngua e

    que o contrrio ocorre da mesma forma, pois a lngua estrangeira pode contribuir tambm no

    aprendizado da lngua materna. Contudo, o aprendizado dessa nova lngua depende,

    fundamentalmente, da maturidade em relao lngua materna.

    Nessa perspectiva, para Vygotsky (2002) a lngua o mecanismo que possibilita a

    comunicao entre os seres humanos, sendo construda historicamente, e a lngua escrita

    constitui-se por sistema de signos que identificam as palavras da lngua oral.

    1.2 AQUISIO E APRENDIZAGEM DAS LNGUAS

    1.2.1 Aquisio X aprendizagem: aspectos tericos

    Os termos aquisio e aprendizagem, muitas vezes, so confundidos como sinnimos,

    entretanto, diferem-se de modo considervel, pois apresentam acepes, origem e finalidades

    diferentes, podendo, contudo, ocorrer simultaneamente. Em primeiro lugar, a aquisio

    remete ao processo em que o aprendiz desenvolve sua lngua materna, ou seja, a sua L1 de

    forma natural, objetivando apenas a comunicao com sua comunidade e famlia.

    Segundo Schtz (2006), o termo aquisio entendido como um processo de

    assimilao natural, subconsciente, e que se efetiva em situaes reais de atividades dirias,

    atravs do contato com usurios dessa lngua. Portanto, o aprendiz um ser ativo que

    compreende e se faz compreender pelas outras pessoas, mesmo sem frequentar escolas. J

    Akerberg (2006) utiliza a metfora do mercado ou feira para exemplificar o termo aquisio,

  • 23

    uma vez que esta acontece pelo contato direto entre seus falantes, de forma espontnea, sem

    finalidades didticas.

    Nesse sentido, a aquisio est relacionada ao contato lingustico e imerso direta

    com a lngua, mas no somente com a lngua materna, por exemplo: pessoas que fazem parte

    de programas de intercmbio cultural podem atingir um grau de fluncia na lngua estrangeira

    prximo ao da lngua materna, mas sem conhecimento terico do novo idioma e o utilizam

    intuitivamente pelo contato com a comunidade nativa. Logo, o termo remete ao fato do

    aprendiz no ter a preocupao de internalizar as regras gramaticais da lngua, sendo seu

    nico objetivo a comunicao; nesse caso, o aprendiz encontra-se totalmente imerso no

    ambiente lingustico.

    J a aprendizagem ocorre de forma consciente e sistemtica, por meio de um estudo

    formal, sendo necessrio conhecer as regras e a gramtica da nova lngua, exigindo esforo e

    dedicao. Para Schtz (2006), a aprendizagem de uma lngua relaciona-se mais com a

    abordagem de ensino formal que acontece nas escolas, tanto nas escolas regulares quanto nos

    cursos de lnguas, onde o aprendiz deve sistematizar a estrutura gramatical e as regras do

    novo idioma, por esforos intelectuais e capacidade dedutivo-lgica, e por intermdio de um

    planejamento didtico, com atividades elaboradas previamente. Em relao ao conceito de

    aprendizagem, Akerberg (2006) utiliza a metfora do claustrodo: o estudo em um lugar

    fechado com o objetivo de instruo, sendo esta baseada na exposio de materiais

    lingusticos e atividades programadas ou provocadas com finalidades didticas.

    O conceito de aprendizagem vincula-se ao conhecimento consciente de uma L2, a

    partir de estudos, de atividades planejadas e sistemticas, com nfase em regras gramaticais,

    ou seja, de modo formal, demandando tempo e empenho. Entretanto, esse processo no est

    condicionado somente ao ensino de uma nova lngua, pois decorre de vrias outras questes,

    envolvendo fundamentalmente os desenvolvimentos lingustico, cognitivo, psicolgico e

    social; por conseguinte, a aprendizagem de uma lngua no deve ser estanque, fora de um

    contexto.

    1.2.2 Aprendizagem da lngua e suas concepes

    A aprendizagem de uma lngua envolve diversas definies, pois, no decorrer da

    histria, vrios pesquisadores procuraram embasamento terico para explicar como o

    indivduo aprende uma lngua e suas implicaes para o ensino. Baseadas nos estudos

  • 24

    lingusticos, a seguir sero apresentadas trs principais concepes, que norteiam a

    aprendizagem de uma lngua:

    - como expresso do pensamento;

    - como instrumento de comunicao;

    - como forma ou processo de interao.

    1.2.2.1 Lngua como expresso do pensamento

    Na concepo de lngua como manifestao do pensamento humano, a expresso

    exterior origina-se da interior, sendo organizada de maneira lgica. Nesse contexto

    lingustico, Koch (2002) explica que a lngua se caracteriza individualmente, portanto, o

    sujeito detentor de sua fala e de suas aes.

    Assim, a lngua elaborada mentalmente por toda pessoa, independente dos aspectos

    culturais, sociais ou histricos, pois compreendida como um sistema de normas, sem

    interao com as questes sociais, considerando apenas a norma culta e ignorando, por

    completo, as outras formas de uso da lngua, desprezando o seu uso cotidiano.

    1.2.2.2 Lngua como instrumento de comunicao

    Segundo Geraldi (1997), a concepo da lngua como instrumento de comunicao

    um sistema organizado de signos, que servem como meio de comunicao. Assim, esse

    sistema estruturado por regras e possibilita ao emissor transmitir a mensagem desejada ao

    receptor, desde que os dois envolvidos nesse ato a compreendam.

    Linguistas, como Ferdinand de Saussure e Noam Chomsky, respaldaram essa

    concepo. Saussure, no livro Curso de Lingustica Geral (2006), considerava a lngua como

    um sistema abstrato, homogneo, uma realidade psquica e uma instituio social, e que, por

    no ser propriedade do indivduo, no h possibilidade que esse a modifique. J Chomsky

    (2002), por sua vez, discorda do estruturalismo pela falta de criatividade na linguagem; para

    ele, o locutor-ouvinte gera e interpreta um nmero infinito de frases (gerativismo),

    consequentemente, entendendo a lngua em uma concepo mais dinmica que Saussure.

    Orlandi (1986, p. 48) pontua que os recortes e excluses feitos por Saussure e por Chomsky

    deixam de lado a situao real de uso (a fala, em um, e o desempenho, no outro) para ficar

  • 25

    com o que virtual e abstrato (a lngua e a competncia). Assim, o contexto social, para eles,

    no relevante, uma vez que no reconhecem as condies de produo da fala.

    1.2.2.3 Lngua como forma ou processo de interao

    Para Travaglia (1997), nessa concepo da lngua como forma ou processo de

    interao, o indivduo no apenas traduz informaes, mas pode agir e atuar sobre o

    interlocutor, de forma ampla. Portanto, nessa perspectiva, a lngua manifesta-se a partir das

    relaes sociais, correspondendo lingustica da enunciao: Lingustica Textual, Teoria do

    Discurso, Anlise do Discurso, Anlise da Conversao, Semntica Argumentativa e todos os

    estudos ligados Pragmtica.

    Para Bakhtin (1997), as concepes da lingustica limitam a linguagem a um sistema

    abstrato ou de enunciao monolgica; a conscincia lingustica, tanto do leitor quanto do

    receptor, no se apresenta como sistema abstrato de formas normativas, uma vez que

    indissocivel de seu contedo ideolgico, pois se constitui como fenmeno social atravs do

    dilogo; assim, todo enunciado apresenta um destinatrio.

    Desse modo, essa concepo da lngua compreendida a partir de um processo scio-

    histrico, caracterizando-se por meio de sua ao social. Os indivduos so partes de uma

    sociedade e, assim, participam ativamente de todas as situaes, ou seja, so construtores

    sociais, agindo e reagindo a cada estmulo provocado, a partir das novas representaes, sem

    as quais a comunicao deixaria de existir.

    1.3 INTERLNGUA

    Na dcada de setenta, Selinker (1972) definiu como interlngua a fase que os

    aprendizes de uma segunda lngua perpassam, a partir de sua primeira lngua, at atingir a

    fluncia de uma nova lngua. O processo de interlngua constitui-se por um sistema

    transitrio, utilizado pelo aprendiz no perodo de aprendizagem de uma segunda lngua.

    Carvalho e Silva (2011) apresentam o conceito de interlngua como:

    Etapas de gramticas construdas pelo indivduo no processo de aquisio de uma

    lngua alvo, primeiramente sugerido por Selinker (1972), constitui uma ferramenta

    conceitual de grande utilidade ao campo de ensino de lngua estrangeira, uma vez

    que elucida o objetivo deste, ou seja, o de diminuir a distncia entre a variedade

    produzida pelo aprendiz e a produzida por um falante nativo da lngua alvo.

    (CARVALHO; SILVA, 2011, p. 01).

  • 26

    Desse modo, o processo de interlngua caracteriza-se pela interposio dos aspectos da

    L1 para a L2, criado pelo prprio aprendiz, ao longo da aprendizagem, ou melhor, pode ser

    determinado pela interferncia de caractersticas lingusticas da L1, havendo a utilizao de

    estruturas intermedirias entre as duas lnguas em questo. Assim, o aprendiz mistura as

    estruturas gramaticais, os aspectos sintticos, os fonolgicos, os semnticos e os lexicais,

    procurando ajustar os conhecimentos, j consolidados na L1, para os novos conhecimentos

    adquiridos na L2.

    Brabo (2001) salienta que a interlngua torna-se uma competncia lingustico-

    comunicativa com existncia de regras prprias, transpassando os seguintes perodos:

    variabilidade, regresses, instabilidades e possveis fossilizaes, at o seu estgio final. Mas

    importante destacar que tal perodo apresenta duas marcas contraditrias, sendo: a primeira

    a sistematicidade (conjunto de regras de toda lngua) e a segunda a variabilidade (os estgios

    seguem hipteses sistemticas).

    O processo de interlngua ocorre no decurso da aprendizagem de outra lngua que no

    seja a sua primeira lngua; distingue-se pela interferncia da L1, perpassando por diferentes

    nveis at ascender fluncia em outra lngua. O aprendiz procura elementos conhecidos em

    sua primeira lngua para encontrar bases significativas para a outra lngua, ou seja, realiza a

    estabilizao do processo.

    Para Chan Vianna (2008), os padres utilizados durante o processo de aquisio da L2

    no so resultados de analogias decorrentes dos conhecimentos encontrados na L1. Nesse

    sentido, a interlngua organiza-se a partir de sequncias de operaes mentais, de

    estruturaes de ideias, de articulaes de sons, de sinais ou palavras novas.

    Portanto, o processo de interlngua forma-se a partir de um sistema lingustico

    elaborado mentalmente, com influncias de maior ou menor grau da L1, ocorrendo durante a

    aprendizagem de qualquer lngua estrangeira, independente da modalidade (oral ou

    sinalizada), evoluindo em etapas cada vez mais complexas. Esse processo transitrio, pois o

    aprendiz constri e reconstri hipteses, medida que aumenta o seu conhecimento da L2.

    Assim, a aprendizagem altera-se constantemente, a partir dos inputs recebidos e das

    estratgias desenvolvidas para justificar cada hiptese surgida. Nessa perspectiva, o erro

    visto como mais uma estratgia para se chegar aprendizagem da L2.

  • 27

    1.3.1 Interlngua e o surdo

    No aprendizado da Lngua Portuguesa como modalidade escrita, o surdo perpassa pelo

    mesmo processo de interlngua que o ouvinte na modalidade oral, desde que este possua

    fluncia ou, no mnimo, a suficincia na L1 e, assim, possa realizar representaes mentais

    exigidas pelos conhecimentos. Nesse sentido, Fernandes (2006) considera que o

    desenvolvimento da lngua escrita, tanto pelo surdo quanto pelo ouvinte, est atrelado ao

    domnio dos aspectos funcional, lexical e gramatical, explcitos ou implcitos, que possuem. O

    confronto de modalidades natural, durante o aprendizado, principalmente, no caso dos

    surdos como aprendizes de uma segunda lngua dentro do prprio pas. So os conflitos

    diglssicos caracterizados pelas relaes existentes no mesmo espao scio geogrfico.

    Assim, Chan Vianna (2008) retrata o processo de interlngua:

    Embora a situao em que os surdos aprendem uma lngua oral seja diferente da

    situao das crianas ouvintes que a aprendem como uma primeira lngua ou a de

    estudantes ouvintes que aprendem uma lngua como segunda lngua, Lillo-Martin

    (1998) ressalta que h padres comuns nos dados obtidos em tarefas de produo e

    compreenso escrita de crianas, em fase escolar, surdas e ouvintes. Os estudantes

    surdos cometem mais equvocos do que os estudantes ouvintes, porm estes desvios

    no violam os princpios da GU, conforme a autora, o comportamento dos

    aprendizes surdos difere do comportamento dos ouvintes na marcao no

    convergente de parmetros e alguns padres no convergentes refletem a fixao de

    parmetros da lngua de sinais. (CHAN VIANNA, 2008, p. 67).

    Pesquisadores afirmam que o processo de interlngua pode ser subdividido em alguns

    estgios intermedirios. Desse modo, para os surdos, a aprendizagem da Lngua Portuguesa

    na modalidade escrita reflete as estruturas lingusticas apresentadas na lngua de sinais e as

    representadas pela Lngua Portuguesa. Em conformidade, Quadros e Schmiedt (2006)

    ressaltam que:

    A segunda lngua apresentar vrios estgios de interlngua, isto , no processo de

    aquisio do portugus, as crianas surdas apresentaro um sistema que no mais

    representa a primeira lngua, mas ainda no representa a lngua alvo. Apesar disso,

    estes estgios da interlngua apresentam caractersticas de um sistema lingustico

    com regras prprias e vai em direo segunda lngua. A interlngua no catica e

    desorganizada, mas apresenta sim hipteses e regras que comeam a delinear outra

    lngua que j no mais a primeira lngua daquele que est no processo de aquisio

    da segunda lngua. (QUADROS; SCHMIEDT, 2006, p. 34).

  • 28

    Pesquisas confirmam a importncia que o modelo de desempenho representa para o

    aprendiz de uma nova lngua. Tal interferncia apresenta-se em maior ou menor grau, durante

    o perodo de interlngua; no caso dos surdos, tais modelos so representados pelos professores

    surdos ou ouvintes fluentes em Libras, e instrutores mediadores.

    De acordo com Brochado (2003), no decorrer dos estgios de interlngua, alm de

    fatores externos, como a competncia dos profissionais, metodologia, materiais adequados e

    qualidade de input da L2, os surdos utilizam estratgias de transferncia da L1 para L2, como

    a simplificao, a hipergeneralizao e a transferncia de instruo.

    1.3.2 Nveis de interlngua

    Uyeno, Cavallari e Mascia (2014) reforam que a estrutura do pensamento dos surdos

    se efetiva a partir da ordem da Libras, visto que sua primeira lngua. Portanto, a produo

    escrita, ou seja, a sua segunda lngua dever ser analisada dentro da perspectiva da fala de um

    estrangeiro em seu prprio pas.

    Brochado (2003) descreve trs nveis de interlngua apresentados em produes

    escritas, realizadas por alunos surdos, a saber:

    INTERLNGUA I (IL1)

    Nesse estgio, observamos o emprego predominante de estratgias de transferncia

    da lngua de sinais (L1) para a escrita da Lngua Portuguesa (L2) desses

    informantes, caracterizando-se por:

    - predomnio de construes frasais sintticas;

    - estrutura de frase muito semelhante Lngua de Sinais Brasileira (L1),

    apresentando poucas caractersticas do Portugus (L2);

    - aparecimento de construes de frases na ordem SVO, mas maior quantidade de

    construes tipo tpico-comentrio;

    - predomnio de palavras de contedo (substantivos, adjetivos, verbos);

    - falta ou inadequao de elementos funcionais (artigos, preposio, conjuno);

    - usar verbos, preferencialmente, no infinitivo;

    - empregar raramente verbos de ligao (ser, estar, ficar), e, s vezes,

    incorretamente;

    - usar construes de frase tipo tpico-comentrio, em quantidade,

    proporcionalmente maior, no estgio inicial da apropriao da L2;

    - falta de flexo dos nomes em gnero, nmero e grau;

    - pouca flexo verbal em pessoa, tempo e modo;

    - falta de marcas morfolgicas;

    - uso de artigos, s vezes, sem adequao quanto ao uso;

    - pouco emprego de preposio e/ou de forma inadequada;

    - pouco uso de conjuno e sem consistncia;

    - semanticamente, possvel estabelecer sentido para o texto.

    INTERLNGUA II (IL2)

    Nesse estgio constatamos na escrita de alguns alunos uma intensa mescla das duas

    lnguas, em que se observa o emprego de estruturas lingusticas da Lngua de Sinais

    Brasileira e o uso indiscriminado de elementos da Lngua Portuguesa, na tentativa

  • 29

    de apropriar-se da lngua alvo. Emprego, muitas vezes, desordenado de constituintes

    da L1 e L2, como se pode notar:

    - justaposio intensa de elementos da L1 e da L2;

    - estrutura da frase ora com caractersticas da Lngua de Sinais Brasileira, ora com

    caractersticas da frase do Portugus;

    - frases e palavras justapostas confusas, no resultam em efeito de sentido

    comunicativo;

    - emprego de verbos no infinitivo e tambm flexionados;

    - emprego de palavras de contedo (substantivos, adjetivos e verbos);

    - s vezes, emprego de verbos de ligao com correo;

    - emprego de elementos funcionais, predominantemente, de modo inadequado;

    - emprego de artigos, algumas vezes concordando com os nomes que acompanham;

    - uso de algumas preposies, nem sempre adequado;

    - uso de conjunes, quase sempre inadequado;

    - insero de muitos elementos do Portugus, numa sintaxe indefinida;

    - muitas vezes, no se consegue apreender o sentido do texto, parcialmente ou

    totalmente, sem o apoio do conhecimento anterior da histria ou do fato narrado.

    INTERLNGUA III (IL3)

    Nesse estgio, os alunos demonstraram na sua escrita o emprego predominante da

    gramtica da Lngua Portuguesa em todos os nveis, principalmente, no sinttico.

    Definindo-se pelo aparecimento de um nmero maior de frases na ordem SVO e de

    estruturas complexas, caracterizam-se por apresentar:

    - estrutura da frase na ordem direta do Portugus;

    - predomnio de estruturas frasais SVO;

    - aparecimento maior de estruturas complexas;

    - emprego maior de palavras funcionais (artigos, preposio, conjuno);

    - categorias funcionais empregadas, predominantemente, com adequao;

    - uso consistente de artigos definidos e, algumas vezes, do indefinido;

    - uso de preposies com mais acertos;

    - uso de algumas conjunes coordenativas aditiva (e), alternativa(ou), adversativa

    (mas), alm das subordinativas condicional (se), causal e explicativa (porque),

    pronome relativo (que) e integrante (que);

    - flexo dos nomes, com consistncia;

    - flexo verbal, com maior adequao;

    - marcas morfolgicas de desinncias nominais de gnero e de nmero;

    - desinncias verbais de pessoa (1 e 3 pessoas), de nmero (1 e 3 pessoas do

    singular e 1 pessoa do plural) e de tempo (presente e pretrito perfeito), com

    consistncia;

    - emprego de verbos de ligao ser, estar e ficar com maior frequncia e correo.

    (BROCHADO, 2003, p. 308-310).

    importante ressaltar que a aprendizagem da Lngua Portuguesa na modalidade

    escrita, bem como o uso de categorias gramaticais e grau mais elevado, em relao aos nveis

    de interlngua, dependem do tempo de aprendizagem que o estudante tem dessa segunda

    lngua.

  • 30

    1.4 LNGUA BRASILEIRA DE SINAIS - LIBRAS E LNGUA PORTUGUESA NA

    MODALIDADE ESCRITA

    1.4.1 Lngua Brasileira de Sinais - Libras

    Com relao s lnguas de sinais, Quadros (2004) refora a ideia de no ser um

    problema do surdo ou uma doena, mas o conceito considerado pela lingustica. As lnguas

    naturais so e fazem parte de um sistema lingustico, balizado por leis, com normas e

    caractersticas especficas.

    Para Ferreira Brito (1995), a Libras uma lngua, pois:

    [...] uma lngua natural com toda a complexidade que os sistemas lingusticos que

    servem comunicao e de suporte de pensamento s pessoas dotadas da faculdade

    de linguagem possuem. uma lngua natural surgida entre os surdos brasileiros da

    mesma forma que o Portugus, o Ingls, o Francs, etc. surgiram ou se derivaram de

    outras lnguas para servir aos propsitos lingusticos daqueles que as usam.

    (FERREIRA BRITO, 1995, p. 11).

    Assim, segundo a autora, a Libras considerada uma lngua natural, com o objetivo

    de servir s necessidades lingusticas de seus usurios: a comunicao. Por apresentar

    complexidade, serve como suporte para a formao e a estruturao do pensamento,

    preenchendo as mesmas funes que a linguagem falada tem para os ouvintes.

    Como ocorre com crianas ouvintes, espera-se que a lngua de sinais seja adquirida na

    interao com usurios fluentes dessa lngua, envolvendo as crianas surdas em prticas

    discursivas e interpretando os enunciados produzidos por elas, inserindo-se em seu

    funcionamento. Segundo Ferreira Brito (1995), a Libras constituda a partir de parmetros

    que se combinam entre si: configurao das mos (CM), movimento (M), ponto de articulao

    (PA), orientao (O) e expresso facial e/ou corporal (EF/C)3.

    Historicamente, os surdos perpassaram por diferentes prticas comunicativas, como por

    exemplo: o bimodalismo, no qual a lngua de sinais era subjugada lngua oral. Lodi (2005)

    descreve que:

    lngua de sinais foram aplicadas foras lingusticas coercitivas, para aproxim-la

    ao mximo da gramtica da lngua nacional e, excluda de seus processos

    discursivos, ela sofreu um tratamento como se estivesse morta: fizeram-lhe uma

    3 CM: diferentes formas em que uma ou as duas mos seguem, durante a realizao de um sinal; no se restringe

    somente ao uso do alfabeto manual.

    M: envolvem formas e direo, a partir de movimentos.

    PA: espao em frente ao corpo ou regio do corpo onde os sinais so produzidos.

    O: Os sinais apresentam uma direo e, a inverso desta, pode significar sentido de oposio ou concordncia

    nmero-pessoa. EF/C: os sinais apresentam, como trao diferenciador, tambm a expresso facial e/ou corporal.

  • 31

    anlise em unidades, recortaram seus itens lexicais para poder reorganiz-los e

    mold-los s regras sintticas e morfolgicas da lngua nacional, imputando-lhes

    flexes verbais e nominais. Com o isolamento das palavras dos contextos

    discursivos determinantes de todo e qualquer processo de significao, buscou-se a

    estabilizao dos sentidos dos sinais e, na justaposio de lnguas, um paralelismo

    entre ambas. (LODI, 2005, p. 418).

    Goldfeld (1997) revela que pesquisas demonstram que 90% dos bebs surdos nascem

    em famlias no surdas e que permanecem, por muito tempo, apenas em contato com a lngua

    oral. Tal fato costuma alterar-se somente quando a criana surda matriculada em um

    estabelecimento educacional, mas, nesse perodo, as crianas deveriam estar em contato com

    adultos surdos e fluentes em Libras para que, em aes articuladas com as famlias e

    comunidade, pudessem participar de uma educao, de fato, bilngue.

    Lodi, Rosa e Almeida (2012) destacam que a educao bilngue considera a

    importncia dos estudantes surdos apropriarem-se da Libras como L1, por meio de

    professores surdos e usurios dessa lngua, apresentando-se como modelos lingusticos e

    assumindo lugares sociais na comunidade surda.

    Quadros e Karnopp (2004) reiteraram as pesquisas de William C. Stokoe Jr. (estudioso

    da Lngua Gestual Americana que, enquanto trabalhou na Universidade Gallaudet, nos

    Estados Unidos, foi o primeiro estudioso a analisar as lnguas de sinais como estruturas

    constitudas e, a partir desse pressuposto, a examinar suas partes constituintes) que constata,

    nas lnguas de sinais, todos os requisitos necessrios de uma lngua, independente da sua

    modalidade sinalizada.

    Quadros e Cruz (2011) apresentam uma sntese de aquisio e desenvolvimento da

    linguagem, que se aplica tanto lngua falada quanto lngua de sinais e, nessa perspectiva,

    constatam que crianas surdas, que advm de uma comunidade que utiliza a Libras como L1,

    ou seja, vivenciam experincias lingusticas com usurios da lngua de sinais de diferentes

    faixas etrias, constituem-se em interlocutores efetivos nessa lngua. Em vista disso, as

    autoras ressaltam que:

    As investigaes delineadas at ento indicam que as crianas surdas, filhas de pais

    surdos, adquirem as regras de sua gramtica de forma muito similar s crianas

    ouvintes adquirindo lnguas faladas. Assim, na medida em que avanamos os

    estudos, verificamos que a constituio da gramtica da criana independe das

    variaes das lnguas e das modalidades que as lnguas se apresentam. (QUADROS;

    CRUZ, 2011, p. 17-18).

    Conforme discutido por Quadros e Karnopp (2004), os primeiros enunciados

    construdos em Libras por crianas surdas caracterizam-se pela combinao de poucos sinais,

  • 32

    porm, seu ordenamento realizado com vistas ao estabelecimento de relaes gramaticais,

    como sujeito-verbo (SV) ou verbo-objeto (VO) para, posteriormente, tornarem-se sujeito-

    verbo-objeto (SVO).

    Uyeno, Cavallari e Mascia (2014) esclarecem que os mecanismos na modalidade

    escrita das lnguas orais e na de sinais so diferentes; assim, a organizao sinttica das frases

    poder seguir a ordem OSV, OVS ou SVO; h a ausncia de verbos de ligao e verbos

    auxiliares, artigos, preposies, conjugaes e pronomes relativos; h a ausncia tambm de

    desinncia para gnero e nmero; e o tempo poder ser expresso por locativos temporais,

    manifestados por relaes espaciais: passado, presente e futuro.

    1.4.2 Poltica da Lngua: Bilinguismo na Educao de Surdos

    Historicamente, as questes lingusticas relacionadas educao de surdos sempre

    estiveram relacionadas s discusses nos mbitos polticos, culturais e sociais. As leis e

    decretos, atualmente vigentes no Brasil, procuram garantir o direito dos surdos nas escolas,

    desde a Educao Infantil at o Ensino Superior, reforando a importncia da Libras como L1

    e da Lngua Portuguesa na modalidade escrita como L2.

    Na dcada de oitenta, alguns marcos legais buscaram garantir os direitos dos surdos,

    em relao escolarizao e lngua (L1 e L2), no pas. Assim, a partir da Constituio da

    Repblica Federativa do Brasil (1988), da Declarao Mundial sobre Educao para Todos

    (UNESCO, 1990) e da Declarao de Salamanca (UNESCO, 1994), vrios direitos das

    pessoas com deficincia foram assegurados por leis. Outras determinaes tambm asseguram

    os direitos, de forma mais ampla, garantindo os direitos sociais e educacionais, definindo os

    princpios e as prticas educacionais da Educao Especial.

    A Lei n. 9.394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educao - LDB expressa, em seu

    Artigo 58, que: Entende-se por educao especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de

    educao escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com

    deficincia, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotao.

    O Decreto 5.626/2005 regulamenta a Lei n 10.436/2002, e o artigo 2 conceitua

    surdo como:

    Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda quela que, por ter perda

    auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experincias visuais,

    manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Lngua Brasileira de Sinais -

    Libras.

  • 33

    Pargrafo nico - Considera-se deficincia auditiva a perda bilateral, parcial ou total,

    de quarenta e um decibis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequncias de

    500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.

    O Decreto 5.626/2005 conceitua o surdo a partir de perda bilateral de audio e como

    aquele que se comunica por meio da Libras, mas importante ressaltar outros critrios

    preponderantes, quando pensamos na pessoa surda, por exemplo: as questes de sua histria,

    de sua lngua, de sua identidade e de sua cultura.

    A Lei n. 9.394/1996, artigo 27, inciso III, dispe sobre o Atendimento Educacional

    Especializado AEE para os estudantes e o inciso IV, sobre a educao bilngue:

    III - o projeto pedaggico que institucionalize o atendimento educacional

    especializado, assim como os demais servios e adaptaes razoveis, para atender

    s caractersticas dos estudantes com deficincia e garantir o seu pleno acesso ao

    currculo em condies de igualdade, promovendo a conquista e o exerccio de sua

    autonomia;

    IV - oferta de educao bilngue, em Libras como primeira lngua e na modalidade

    escrita da lngua portuguesa como segunda lngua, em escolas e classes bilngues e

    em escolas inclusivas.

    A proposta de educao bilngue apresenta o surdo como participante de duas prticas

    lingusticas bem diferentes, comeando pela modalidade (sinalizada e escrita). Assim, o surdo

    deixa de se adequar realidade do ouvinte e entender a surdez como uma deficincia,

    passando a assumi-la, assim, como parte importante na construo de sua identidade como

    pessoa, tendo seus direitos e deveres resguardados pelas leis vigentes no pas.

    A Lei 10.436/ 2002, artigo 22, inciso II, concebe escolas bilngues da seguinte

    maneira:

    Escolas bilngues ou escolas comuns da rede regular de ensino, abertas a alunos

    surdos e ouvintes, para os anos finais do ensino fundamental, ensino mdio ou

    educao profissional, com docentes das diferentes reas do conhecimento, cientes

    da singularidade lingustica dos alunos4 surdos, bem como com a presena de

    tradutores e intrpretes de Libras - Lngua Portuguesa.

    O Decreto n 5.626/2005, artigo 14, pargrafo 1, estabelece critrios para a realizao

    da avaliao com estudante surdo:

    VI - adotar mecanismos de avaliao coerentes com aprendizado de segunda lngua,

    na correo das provas escritas, valorizando o aspecto semntico e reconhecendo a

    singularidade lingustica manifestada no aspecto formal da Lngua Portuguesa;

    4 Nesse trabalho, o termo utilizado estudante.

  • 34

    VII - desenvolver e adotar mecanismos alternativos para a avaliao de

    conhecimentos expressos em Libras, desde que devidamente registrados em vdeo

    ou em outros meios eletrnicos e tecnolgicos.

    As escolas bilngues objetivam o ensino a partir da singularidade lingustica, e no

    apenas a garantia da presena do tradutor intrprete de Libras nas salas de aula, pois o

    trabalho exige uma pedagogia visual que favorea questes pertinentes ao ensino e

    aprendizagem dos estudantes surdos. Portanto, nesse contexto educacional, sobressaem-se

    todas as aes inerentes ao trabalho com o estudante surdo, visando qualidade de ensino,

    como por exemplo: ensino e uso constante das duas lnguas, formao dos profissionais

    envolvidos, avaliao dos contedos, entre outros.

    A Lei 12.319/2010, artigo 2, regulamenta a profisso de tradutor intrprete de Libras

    ao determinar que: O tradutor e intrprete ter competncia para realizar interpretao das 2

    (duas) lnguas de maneira simultnea ou consecutiva, e proficincia em traduo e

    interpretao da Libras e da Lngua Portuguesa.

    fundamental partirmos dessa premissa, em relao aos direitos dos surdos, para

    aprofundarmos os debates em relao poltica lingustica, garantindo uma educao com

    aes pedaggicas voltadas para as questes lingustico/culturais, e no somente para a

    deficincia; ou seja, uma nova relao da pessoa surda e de sua identidade cultural.

    1.4.2.1 Libras: legislao

    A Lei n. 13.146/2015 institui a Lei Brasileira de Incluso da Pessoa com Deficincia

    (Estatuto da Pessoa com Deficincia), no artigo 2, inciso IX, discorre sobre a comunicao:

    Forma de interao dos cidados que abrange, entre outras opes, as lnguas,

    inclusive a Lngua Brasileira de Sinais (Libras), a visualizao de textos, o Braille, o

    sistema de sinalizao ou de comunicao ttil, os caracteres ampliados, os

    dispositivos multimdia, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas

    auditivos e os meios de voz digitalizados e os modos, meios e formatos

    aumentativos e alternativos de comunicao, incluindo as tecnologias da informao

    e das comunicaes.

    O processo de incluso tem como base a comunicao e a expresso, pois o ser

    humano necessita expor seus sentimentos e pensamentos, trocar experincias e interagir no

    seu grupo social. Assim, diferentes formas de comunicao (oral, escrita, sinalizada,

    computadorizada, ilustrada e outras) so criadas e atualizadas, constantemente, buscando

    facilitar cada vez mais as relaes sociais e o aprendizado das pessoas com deficincia. No

  • 35

    caso das pessoas surdas, no Brasil, a Lei 10.436/2002, artigo 1, compreende a Libras como

    meio legal de comunicao:

    Art. 1 - reconhecida, como meio legal de comunicao e expresso, a Lngua

    Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expresso a ela associados.

    Pargrafo nico - Entende-se como Lngua Brasileira de Sinais - Libras a forma de

    comunicao e expresso, em que o sistema lingustico de natureza visual-motora,

    com estrutura gramatical prpria, constitui um sistema lingustico de transmisso de

    ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.

    O Decreto n 5.626/2005 regulamenta a Lei no 10.436/2002, que dispe sobre a Lngua

    Brasileira de Sinais Libras, assim como o artigo 18, da Lei no 10.098/2000. Tais

    dispositivos legais objetivam garantir no somente o acesso do surdo, mas tambm a incluso

    de forma plena. Assim, o estudante surdo tem a lei como um grande aliado para a

    consolidao de seus diretos.

    1.4.2.2 Libras Histrico

    Desde a Antiguidade, h registros de casos de surdez; no entanto, no se sabe precisar

    quando as lnguas de sinais iniciaram. Somente no sculo XVI foram organizadas as primeiras

    instituies especializadas na Europa e, posteriormente, nos Estados Unidos. O agrupamento

    dos surdos nas instituies facilitou a sistematizao dos sinais, originando a Lngua de Sinais

    Francesa (Langue des Signes Franaise LSF), sendo esta a primeira lngua de sinais do

    mundo. A colonizao europeia possibilitou a sua disseminao e a Lngua de Sinais Francesa

    fundamentou a formao das lnguas de sinais em diferentes pases.

    A lngua de sinais, como qualquer outra lngua, a manifestao lingustica e social de

    um grupo, difere de pas para pas, apresenta variaes regionais, possui gramtica prpria e

    perpassa de gerao em gerao, perpetuando-se.

    No Brasil, foi introduzida pelo professor surdo francs Eduard Huet, no Rio de

    Janeiro, no sculo XIX, na primeira escola de surdos brasileira, atualmente Instituto Nacional

    de Educao de Surdos INES, em 26 de setembro de 1857. Esta data foi escolhida,

    nacionalmente, para comemorar o dia do surdo. Por meio de vrios movimentos, discusses e

    pesquisas, no ano de 1993, um projeto de lei comeou a ser discutido para a regulamentao

    e, somente no ano de 2002, a Libras foi reconhecida atravs da Lei n 10.436/2002, em

    vigncia, no Brasil.

  • 36

    1.4.3 Como ocorre a aprendizagem da Lngua de Sinais e da Lngua Portuguesa pelo surdo?

    Como exposto anteriormente, a lngua essencial para os seres humanos. A

    comunicao faz parte de nossa vida e est presente em todos os momentos. No caso dos

    surdos, a Libras L1 fundamental, para que os surdos sejam proficientes para a manuteno

    e atualizao de sua prpria lngua, no decorrer do tempo. Durante o processo de

    aprendizagem da L2, os aprendizes utilizam o seu conhecimento da L1 e o seu conhecimento

    de mundo, a respeito do tema a ser discutido ou ensinado. Para tanto, fundamental que os

    surdos sejam fluentes em sua L1, para que possam iniciar a aprendizagem de novas lnguas.

    No ensino da leitura e escrita, de acordo com Quadros (1997), para os surdos usurios

    da Libras como L1, no h a associao entre sons e sinais grficos; portanto, a lngua escrita

    dever ser ensinada visualmente, uma vez que os sinais grficos so, por completo, abstratos

    para quem no consegue ouvir seus sons e entonaes. Tanto para estudantes surdos quanto

    para estudantes ouvintes, o ato de escrever necessita ser objetivo, claro e, principalmente, ter

    significado. Somente haver apropriao do sistema de escrita, se os estudantes surdos

    participarem, ativamente, nas atividades de leitura e escrita, ou seja, necessrio que essa

    prtica faa sentido, para que possam realmente envolver-se no universo do letramento5.

    Assim, a aprendizagem da Lngua Portuguesa pelos estudantes surdos depende das

    estratgias utilizadas, durante todo o processo de ensino. Desse modo, a aprendizagem da

    produo textual, em L2, dever estar ligada, ter conexes, com as experincias vivenciadas

    pelos surdos em sua L1, estabelecendo assim, efetivamente, relaes lingusticas. Fernndez

    (2004) destaca que a relao entre as duas lnguas inevitvel, pois o conhecimento em L1

    facilitar a aprendizagem na L2.

    Em relao aos textos produzidos pelos estudantes surdos, os Parmetros Curriculares

    Nacionais de Lngua Portuguesa PCNs (1998) propem que ocorra uma avaliao

    diferenciada, ou seja, respeitando a interferncia dos aspectos estruturais da lngua de sinais,

    uma vez que, durante a correo dos textos escritos a partir da perspectiva de uma L2,

    fundamental que o professor analise as especificidades lingusticas apresentadas.

    A utilizao da lingustica contrastiva defendida por Quadros (1997) como uma

    forma de trabalhar com o conhecimento explcito, no ensino de lnguas, e envolve a

    comparao entre duas ou mais lnguas quanto aos nveis fonolgico, semntico/pragmtico, 5 Para Magda Soares (2003), a traduo para o portugus da palavra inglesa literacy que, etimologicamente,

    se origina da forma latina littera, cujo significado letra. Ao latim littera foi adicionado o sufixo -cy, que expressa estado ou condio, para formar o vocbulo ingls literacy. Parece que, do mesmo modo, se fez em portugus, ou seja, ao radical letra- foi acrescentado o sufixo -mento, formando assim, a nova palavra.

  • 37

    morfolgico e sinttico. A utilizao da lingustica contrastiva a metodologia sugerida

    apenas para ensino da Lngua Portuguesa, para surdos adolescentes e adultos, mas no para o

    ensino de crianas, pois trabalha com o conhecimento explcito das lnguas. Assim, durante o

    processo de aprendizagem da Lngua de Sinais e da Lngua Portuguesa na modalidade escrita,

    os surdos baseiam-se nos significados de sua L1, para compreenderem as relaes lingusticas

    na aprendizagem da L2, pois as duas lnguas no se desprendem completamente e os usurios,

    sempre que possvel, buscam pontos em comum entre elas para a elaborao lingustica.

    importante que o professor, mesmo com o apoio de profissional tradutor intrprete de Libras,

    tenha o mnimo de conhecimentos em L1 e L2, para favorecer o desenvolvimento do processo

    de aprendizagem dos estudantes surdos.

    1.4.4 O processo de aprendizagem da escrita L2 por surdos

    O processo de aprendizagem da escrita como L2 para os surdos no acontece da

    mesma forma que para os ouvintes, pois a lngua que os surdos utilizam no a mesma

    utilizada na escrita, tanto na estrutura quanto na modalidade6. A aprendizagem de uma nova

    lngua, independente da modalidade, perpassa por diferentes etapas, como a construo de

    hipteses e relaes de significao.

    Ferreiro (1996) e Ferreiro e Teberosky (1985) pesquisaram e identificaram estgios de

    evoluo da escrita com estudantes ouvintes, os quais foram caracterizados em quatro grandes

    nveis: Pr-Silbico, Silbico, Silbico-Alfabtico e Alfabtico. Entretanto, com os estudantes

    surdos, esses perodos no so identificados, pois os estgios dos ouvintes se correlacionam

    com som e grafia, e so baseados em uma lngua oral-auditiva; para os surdos, a

    aprendizagem da escrita corresponde apreenso de uma segunda lngua, pois estruturam seu

    aprendizado, conforme a estrutura da lngua de sinais. Portanto, estudantes surdos e ouvintes

    perpassam por diferentes etapas no processo de aprendizagem da escrita, devido s diferenas

    nas modalidades das lnguas.

    Para Snchez (2002), o termo alfabetizao, por relacionar-se diretamente com letras e

    sons, no suficiente para efetivar o sucesso, durante o ensino da lngua escrita para os

    surdos, mas sim o termo letramento, baseado na lngua de sinais, ao aprenderem a L2 na

    modalidade escrita. Fernandes (2006) esclarece que o desenvolvimento da lngua escrita, seja

    6 A Lngua Portuguesa se apresenta na modalidade oral e Libras, na modalidade visomotora.

  • 38

    para os surdos ou para os ouvintes, implica no domnio de trs distintos aspectos: o funcional,

    o lexical e o gramatical, explcitos ou implcitos na organizao textual.

    A lngua de sinais estabelece a base lingustica e o estabelecimento dos aspectos

    citados acima, pois, para Fernandes (2006, p. 14): Sem sua mediao, os alunos no podero

    compreender as relaes textuais na segunda lngua, j que necessitam perceber o que igual

    e o que diferente entre sua primeira lngua e a lngua que esto aprendendo. Para tanto,

    imprescindvel ter bases slidas e conhecimento de mundo na L1.

    Quadros (1997) salienta que a aprendizagem da escrita, como L2 para os surdos,

    relaciona-se com os tipos de conhecimentos envolvidos no processo de ensino: o

    conhecimento explcito e o conhecimento implcito. Assim, o conhecimento explcito

    (consciente, dedutivo) fomentado na escola e combinado com a aprendizagem implcita

    (inconsciente, indutiva) da lngua, envolvendo os processos de percepo, de comparao e de

    integrao. A partir desses conhecimentos, surgem os nveis de pr-escrita (planejamento ou a

    preparao para a escrita), de escrita (transposio de ideias para o papel, por meio de

    smbolos grficos) e de reescrita (processo de reelaborao). Portanto, para o bom

    desenvolvimentos desses nveis, so necessrios e relevantes, em primeiro lugar, o acesso

    sua L1, o ambiente, o tipo de interao (input, output e feedback), a idade, as estratgias e

    estilos de aprendizagem, os fatores emocionais e sociais, e a motivao dos alunos.

    Assim, os estudantes fluentes na L1 tero mais facilidade em aprender a L2. Desse

    modo, em muitos casos, os surdos, filhos de pais surdos, por serem fluentes na Libras, esto

    mais preparados para a aprendizagem da Lngua Portuguesa na modalidade escrita,

    apresentando bom desempenho na leitura e na escrita.

    De acordo com os PCNs de Lngua Portuguesa (1998), para que a aprendizagem da

    lngua escrita ocorra, h a necessidade de um ambiente que estimule os estudantes

    permanentemente, com prticas envolventes, para que possam manipular a ortografia da

    lngua, uma vez que:

    [...] a atividade realizada pode ter sido muito interessante, mas no ter permitido a

    apropriao do contedo e, nesse caso, os resultados podem no ser satisfatrios; os

    contedos selecionados podem no corresponder s necessidades dos alunos ou porque se referem a aspectos que j fazem parte de seu repertrio, ou porque

    pressupem o domnio de procedimentos ou de outros contedos que no tenham,

    ainda, se constitudo para o aprendiz , de modo que a realizao das atividades pouco contribuir para o desenvolvimento das capacidades pretendidas. (BRASIL,

    1998, p. 77).

  • 39

    Nesse sentido, observamos que os estudantes surdos encontram muitas dificuldades na

    produo escrita, visto que a Lngua Portuguesa representa a L2 e, de acordo com Fernandes

    (2009), as dificuldades encontradas pelos surdos, durante o processo de aprendizagem da

    Lngua Portuguesa, decorrem dos mtodos de ensino e do fato de desconhecerem tal lngua.

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (1996) define, no Art. 22, como

    objetivo da disciplina de Lngua Portuguesa na educao bsica, desenvolver o educando,

    assegurando-lhe formao indispensvel para o exerccio da cidadania e fornecer-lhe meios

    para progredir no trabalho e em estudos superiores. J em seu Art. 26, no pargrafo 1,

    dispe sobre a obrigatoriedade do estudo da Lngua Portuguesa, na perspectiva de entender o

    idioma como objetivo de conhecimento em expresso escrita, pois o aluno necessita desse

    domnio, em diferentes graus, para interagir em sociedade.

    De acordo com os PCNs de Lngua Portuguesa (1998), a linguagem uma atividade

    discursiva7, o texto uma unidade de ensino e a gramtica o conhecimento que o falante

    tem de sua linguagem. Portanto, o ensino da Lngua Portuguesa e de sua gramtica deve

    considerar o domnio da expresso oral e escrita em situaes de linguagem, a partir da

    produo social e material do texto, e da escolha dos gneros para a escrita textual.

    Consequentemente, necessrio refletir sobre como os estudantes devem aprender e

    pensar os diversos usos da lngua que est sendo ensinada, considerando a sua diversidade,

    para relacion-la em diferentes contextos e objetivos.

    Os estudantes surdos encontram muitas dificuldades em relao aprendizagem da

    Lngua Portuguesa na modalidade escrita, como j foi salientado, pois, em muitos casos, esse

    ensino no est pautado em metodologias para ensino de segunda lngua. Nesse contexto, o

    ensino, torna-se mecnico, sem significado e, por conseguinte, desmotivador. Saviani (2006)

    destaca que os estudantes no so apenas consumidores, mas produtores de conhecimento;

    desse modo, o intuito da escola, em relao aos estudantes, no deve se basear em apenas

    transferncia de contedos.

    7 Uma prtica constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produo de textos orais e

    escritos, que devem permitir, por meio da anlise e reflexo sobre os mltiplos aspectos envolvidos, a expanso

    e construo de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competncia discursiva.

    (PCN, 1998, p. 27).

  • 40

    1.4.5 A apropriao da segunda lngua pelo surdo

    A apropriao da segunda lngua pelos surdos transforma-se em uma tarefa

    extremamente complexa e desafiadora, pois as metodologias de ensino de lnguas esto

    voltadas para o aspecto fnico, tornando-se, em muitos casos, descontextualizadas e

    mecnicas, reproduzindo apenas modelos pr-estabelecidos. Desse modo, o ensino torna-se

    insuficiente e sem sentido, para os estudantes surdos em processo de aprendizagem de uma

    segunda lngua.

    Durante o processo de aprendizagem da leitura e da escrita, segundo Silva (2001),

    necessrio compreender que os surdos, antes de demonstrarem dificuldades na aprendizagem

    de contedos, apresentam defasagens na aquisio ou aprendizagem de lngua. Constatamos,

    nessas situaes, que as lacunas provocadas pela falta ou poucos conhecimentos em L1 e L2

    podem acarretar srias dificuldades durante a vida acadmica dos alunos surdos.

    Lodi e Lacerda (2009) reforam que o ensino da Lngua Portuguesa, como segunda

    lngua, emprega estratgias descontextualizadas, desfavorecendo as relaes discursivas entre

    os surdos e a produo escrita, causando insucessos e aumentando a barreira lingustica

    existente em relao aprendizagem da Lngua Portuguesa. Para as pesquisadoras, ntida a

    importncia do uso de metodologias que agreguem a escrita aos valores socioculturais e o

    ensino da Libras como base para o aprendizado. Assim, enfatizam que os resultados dessa

    prtica so adultos surdos, no final da escolarizao, incapazes de ler e escrever

    satisfatoriamente e, por conseguinte, com severas dificuldades em compreender os contedos

    curriculares.

    Segundo Quadros e Schmiedt (2006), quando os surdos so fluentes em Libras, a

    aprendizagem da Lngua Portuguesa na modalidade escrita acontece tal qual para os ouvintes

    fluentes na lngua oral.

    Entretanto, segundo Quadros (1997), quando comeam a constituir relaes com as

    letras e as palavras, vivenciam uma interrupo, uma vez que o sistema escrito expressa a

    lngua de sinais. Dessa forma, inicialmente, imprescindvel a apropriao da Libras para que

    o aprendizado da Lngua Portuguesa se efetive, na sequncia. Em vista disso, o ensino da

    Lngua Portuguesa na modalidade escrita no pode ser apenas uma reproduo dos sinais,

    pois a Libras uma lngua com gramtica e estrutura prprias.

    A produo escrita, como L2, pressupe um repertrio anterior em L1, o que assegura

    uma combinao entre os sinais da Libras e as palavras da Lngua Portuguesa, atuando em

    diferentes contextos.

  • 41

    Lodi e Lacerda (2009) enfatizam que a metodologia empregada no ensino com

    estudantes surdos, historicamente, foi calcada em estratgias isoladas do contexto enunciativo,

    e no como uma relao discursiva entre os aprendizes e a produo escrita.

    Desse modo, eles no desenvolvem o processo de leitura e escrita necessrios para a

    efetiva aprendizagem. As autoras entendem que esse ensino deve se fundamentar em uma

    metodologia que conduza interao entre a escrita e os valores socioculturais que a

    determinam. importante ressaltar que, de acordo com Lei N 10.436/2002, a Libras no

    poder substituir a modalidade escrita da Lngua Portuguesa, de forma alguma.

    1.4.6 Dificuldades do surdo na aprendizagem da escrita

    Uma questo surge, a partir das afirmaes anteriormente discutidas: quais so as

    formas de ensino que permitem o letramento de surdos na lngua escrita? Inicialmente,

    necessrio repensar os papis que a Libras e a Lngua Portuguesa, na modalidade escrita,

    representam para o surdo, durante o processo de aprendizagem, pois, como foi dito, a

    aquisio tardia da Libras e o ambiente em que se desenvolve dificultam a aprendizagem da

    Lngua Portuguesa.

    Para Uyeno, Cavallari e Mascia, (2014), a questo da aprendizagem da lngua de sinais

    perpassa pelos seguintes pontos:

    A estimulao na rea da linguagem, principalmente na lngua de sinais de surdos

    filhos de pais ouvintes, faz-se necessria, pois a maioria das crianas surdas inicia

    sua aquisio tardiamente e, por falta de input lingustico na lngua de sinais, h

    atraso na compreenso e na expresso, considerando a faixa etria. (UYENO;

    CAVALLARI; MASCIA, 2014, p. 119, grifo do autor).

    Assim, se a aquisio acontecer em uma comunidade lingustica, em que a lngua alvo

    no utilizada como meio de comunicao entre seus usurios, o grau de dificuldade ser

    muito maior prejudicando ou atrasando o processo de aprendizagem da L2, repercutindo,

    consideravelmente, na aprendizagem dos contedos curriculares e na escolarizao como um

    todo.

    1.4.7 Alfabetizao na perspectiva do letramento na educao dos surdos

    Para o processo de letramento dos surdos, fundamental levar em considerao suas

    experincias visuais, as hipteses e as formas de pensamento estruturadas por meio da Libras,

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    o que difere, em muito, do trabalho realizado com alunos ouvintes. Desse modo, no podemos

    considerar que estes aprendizes apenas decifrem e produzam um amontoado de palavras sem

    sentido na Lngua Portuguesa, haja vista que, primeiramente, esse processo deve acontecer na

    lngua de sinais.

    Botelho (2010) compreende o letramento como natureza poltica; como tal, a leitura e

    a escrita podem mostrar a realidade e, assim, transform-la, mas, infelizmente, com os

    estudantes surdos isso no tem ocorrido, perdendo, portanto, seu objeto principal: o uso de

    textos com funo social, em uma sociedade cen