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1 Arcanjo Gabriel Parte 01 1º Edição 2013 Revisão: Letícia Vidor ([email protected] ) Foto Capa: Isaias G. Neto ([email protected] )

Arcanjo Gabriel - PerSe · * Nefilins - do hebraico “nephilim” - normalmente se traduz por gigantes, mas tanto pode referir-se à estatura dos homens, como à sua

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Arcanjo Gabriel

Parte 01

1º Edição – 2013

Revisão:

Letícia Vidor ([email protected])

Foto Capa:

Isaias G. Neto ([email protected])

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Agradecimentos:

Concluir essa obra demandou coragem, existiram dias

que não acreditei que seria capaz de terminá-la.

Agradeço ao CASVI (Centro de Apoio e Solidariedade

à Vida) pelo apoio na divulgação. Em especial aos meus

amigos Genésio da Silva e Anselmo Figueiredo que lutam

por causas tão urgentes na nossa sociedade.

Ao SEMAC (Secretaria Municipal de Ação Cultural de

Piracicaba) por meio do FAC (Fundo de Apoio à Cultura)

pelo incentivo financeiro.

À Letícia Vidor, que com muita presteza revisou o

romance.

Ao Isaias Germano que cedeu a linda foto da capa.

Ao Carlos Paduan por ceder seu valioso tempo.

E a tantos outros que me mostraram os caminhos, que

me ajudaram em travessias e que me fizeram feliz.

A lista seria infindável, portanto só tenho a agradecer a

dádiva de ter conhecido tantas pessoas bacanas. Foi por

conhecê-los que percebi que a vida fazia sentido.

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Carta ao Leitor.

Estimado leitor, ao se debruçar para ler esta obra,

abstraia qualquer teor religioso, filosófico ou espiritual.

Trata-se exclusivamente de uma obra de ficção, com

o único intuito de entretenimento e lazer. Procurei transportá-

lo a um universo de magia e para isso apeguei-me aos

aspectos mais místicos da nossa sociedade. Espero que

tenha ao fim da leitura a mesma sensação agradável que tive

ao escrever.

Ao leitor, o meu mais verdadeiro agradecimento.

Evandro Mangueira

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A claudicação do arcanjo Gabriel

Naqueles dias estavam os nefilins na terra, e também depois, quando os anjos conheceram as filhas dos homens, entraram nelas e lhes deram filhos. Esses nefilins eram os valentes, os homens de fama, que existiram na antiguidade.

Gênese 6:4

E assim em Judas, capítulo único versículos seis e sete, está dito que o pecado dos anjos foi semelhante ao pecado dos habitantes de Sodoma e Gomorra, sendo que a palavra grega é “ekporneúsasai”, derivada de porneia, tendo um significado sempre de natureza sexual...

* Nefilins - do hebraico “nephilim” - normalmente se traduz por gigantes, mas tanto pode referir-se à estatura dos homens, como à sua ferocidade; à degradação de seu caráter ou à ilegitimidade de seu nascimento.

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A cidade de Jaspe e o anjo sem asas

Os pés doíam, estavam em carne viva, o suor escorria em seu rosto magro, os cabelos compridos e loiros estavam totalmente desarrumados e, nitidamente, podia-se notar que era um estrangeiro andando em terras desconhecidas, com fome e sem a menor vontade de continuar o seu caminho.

Arzel decide sentar-se em uma pedra, talvez a única coisa mais próxima de um descanso confortável. Refletindo sobre si próprio, percebeu pela primeira vez como seria realmente difícil ser um mortal. Nunca precisou andar tanto, nunca precisou beber água, ou mesmo comer, mas hoje, pela primeira de muitas outras vezes, talvez, se sobrevivesse, teria que andar e sentir cada músculo trabalhar, e desejou ter aceitado o pão, naquela ocasião em que o mago lhe ofereceu e isso pareceu impróprio.

Deserto para todos os lados, e bem pouca esperança depois de um dia e meio, caminhando sem parar, não avistando comida nem água, Arzel, o qual agora descansa em uma pedra e pensa que, definitivamente, não pertence àquele mundo, embora ele tenha amado a humanidade, mesmo quando não sabia o que era o amor.

Com suas mãos trêmulas, amarra o cabelo em forma de coque e ajusta a roupa ao corpo suado, limpa a boca, a qual se encontra mais seca do que nunca, e levanta-se com um pouco da fé que ainda lhe resta. Não acreditava que algum dos deuses iria ajudá-lo. Nesse momento, os céus não eram mais confiáveis e o melhor a fazer ele fez:

Seguiu pisando fofo em areias quentes, e a única proteção que tinha nos pés era um par de chinelos de couro, o qual sabia que não deveria usar por muito tempo. Tinha consciência de que, parte de sua condenação, seria permanecer descalço (quem mandou herdar os pecados do mundo!). Caso renegasse isso, sabia perfeitamente o que iria acontecer! Até tentou ir descalço, mas seu sangue, que

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agora era vermelho escarlate, lavava o chão escaldante e, se continuasse a perder tanto sangue, não chegaria com vida à cidade prometida.

Sentia sede também e, só após alguns minutos caminhando sem parar, é que encontra uma planta, algo parecido com um cacto. Arzel não desconhece que esse tipo de planta armazena água, mas não sabe ao certo como usufruir disso. Então, tira um pequeno canivete que traz no cós e rasga a planta, tentando extrair o maior volume de água possível. Corta-a em um dos nódulos e, em seguida, faz um corte mais acima.

Seus olhos negros e pequenos veem água, depois de muito tempo, e ele bebe-a, como se nada no mundo fosse tão gostoso e sagrado. Antes, ele conhecera várias formas de água, mas nada se comparava à necessidade humana de se hidratar. Sentia alívio, não deixando cair nem uma gota sequer, e seu corpo ganha uma nova vida.

Segue um pouco mais adiante, e seus pés param de afundar na areia. Surge então, em seu caminho, uma nova forma de terreno, algo muito mais próximo de pedra e barro. Ele sente firmeza ao pisar e uma brisa leve carrega uns fios do coque, os quais estavam soltos, para o mais longe possível de seu rosto.

O ar era fresco, sinal de que a noite estava caindo sobre ele, e também que logo encontraria a trilha de pedras brancas. Não era novidade, pois, quando criança, sempre ouvia de sua mãe que um dos deuses fizera com suas próprias lágrimas aquele caminho de pedra branca. Esta era uma lenda antiga, mas Arzel sabia que era verdade, porque ele mesmo já estivera em frente ao deus que chorava pelos pecados do mundo. A única coisa que ele não sabia era que sua mãe, um dia, se apaixonou pelo mesmo deus que lhe doara as alpercatas de couro, as quais salvaram sua vida, mas pôs em risco a vida da sua irmã.

O calor diminuía consideravelmente e uma brisa úmida batia em seu rosto. Como eram agradáveis as

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sensações! Podia tocar em si mesmo e sentir vida, sua pele era macia.

Ele sabia que era composto de carne, músculo e sangue e sentia esse último quente, correndo em suas veias e o cheiro do seu corpo suado. Isso era vida afinal.

Já era noite completa, quando avista as primeiras pedras brancas, que eram redondas e brilhantes, brancas e perfeitas, pedras de mais ou menos uns vinte centímetros de diâmetro, as quais começavam a surgir embaixo de seus pés. Arzel imediatamente tirou os chinelos e esperava que Safir ainda estivesse viva.

A trilha de pedras foi facilmente seguida, já que ele andava com vontade e, entre uma pedra e outra, a sujava de sangue, o qual saía de muitos cortes finos que tinha na sola dos seus pés, mas seguiu firme, com certa felicidade porque não precisava mais usar o chinelo.

Em sua volta, toda a trilha era de pedras brancas. A cidade de Jaspe estava próxima, não poderia estar tão longe, então se sentou mais um pouco e descansou por alguns minutos, contemplando um céu límpido e estrelado, mas optou por não descansar muito e continuar a jornada, já que sabia que estava próximo e a noite fria congelava o seu corpo magro.

Até o frio o lembrava que era humano agora! Arzel ouviu o som de águas como ondas, como

cachoeiras, era a garantia de que a cidade de Jaspe estava bem perto, ao longe, o vermelho já tomava forma e a cada passo dado surgiam novas casas.

Muros do mais puro jaspe emergiam à sua frente. Sentiu cansaço, talvez por empolgação, ou mesmo

porque tinha usado toda força de que era capaz para chegar até ali e aí o mundo escurece e ele cai! Apagou-se tudo à sua volta!

Com os olhos ainda fechados, Arzel ouve uma conversa, a voz era conhecida, já ouvira suas preces muitas vezes. Em um tom de quase choro, a voz resmungava mais

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para si do que para os outros que Safir sobreviveu, a febre diminuía e que, em breve, ela estaria de pé.

Ninguém imaginava como Arzel conseguira passar pelo vale da Morte e que, graças sejam louvadas às divindades por terem tido misericórdia de um anjo deserdado.

– Quem me trouxe até a sua casa – a voz do deserdado saía como um gemido – gostaria de pedir perdão à Safir por ter usado os chinelos por tanto tempo, mas o deserto estava escaldante e sem eles eu não teria conseguido chegar aqui.

– Safir... – começou uma voz envelhecida e cheia de bondade.

– Passou entre febre e delírios esses dias em que você usou os chinelos, mas resistiu firme, sabia que você precisava atravessar o vale e os deuses sejam louvados! Você está vivo aqui em nossa casa! Sabe quantos anjos deserdados sobrevivem? Eu temia que você não encontrasse água a tempo de saber o que era sede. Imaginei por várias horas que os abutres teriam prazer em comer carne de anjo. Louvei à Jafé desde o momento em que soube que você fora deserdado, imaginei que após perder suas asas, não iria conseguir caminhar. Quero saber tudo o que aconteceu. O seu aiô me contou aos pontapés, quase não me sobrou fé para continuar a louvar Jafé, temia que sua misericórdia não conseguisse ver que você não sobreviveria a essa batalha... Conte-me, o que aconteceu?

Arzel ia começar a falar quando seus olhos viram Safir e um sorriso discreto apareceu em seu rosto e, imediatamente, ele levanta-se da cama, abraça-a e, em prantos, se expressa:

– Perdão, perdão por usar os chinelos. Tive medo de não conseguir, tive medo de morrer. Achei que você não iria sobreviver para lhe pedir perdão, achei que meu fracasso iria matá-la. Minha aiô, não suportaria viver sabendo que você estaria morta... Perdoe-me...

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– Arzel – uma voz calma, porém cansada e fraca saía da boca de uma linda mulher, que só sendo filha de um deus teria tanta presença – Jamais iria culpá-lo por usar os chinelos, sei como é passar pelo vale da Morte, também passei por lá. Entre nós não existirá culpados, estou feliz que você tenha sobrevivido, achei que iria perdê-lo! Fiquei com muito medo, a febre era insuportável, mas louvei à Jafé para que você não morresse. Pedia-lhe que o ajudasse e ainda bem que você tinha as alpercatas. Jafé cobrou de mim a saúde por dias, mas fiquei feliz em saber que você pode usar os chinelos.

– Arzel – a voz ficou mais doce nesse momento e seu olhar mais misericordioso –, conte-nos tudo o que aconteceu desde o início, soube que o próprio Jafé quem lhe deu os chinelos, isso é verdade?

– Jafé – o anjo começou com voz firme, mas era perceptível a angústia que envolvia sua fala – me deu os chinelos na porta de entrada do vale, entre as duas montanhas de meia lua e o rio seco. Mesmo sabendo que não poderia usá-los por muito tempo, porque você iria sofrer as consequências, decidi por usá-los, todavia temi por sua morte e sou consciente de minhas obrigações.

Um silêncio pairava sobre a casa enquanto todos esperavam Arzel se recuperar para recomeçar a falar, o que demandou um tempo porque ele não conteve o choro. Suas lágrimas salgavam sua boca, mas lavavam sua alma. Apesar de ser deserdado, agora tinha alma, talvez não como a luz que tinha antigamente, mas possuía uma alma humana, na verdade uma alma humanizada.

Atravessar o vale da Morte não era exatamente o fim de tudo, mas, muito provavelmente o começo, um começo como humano. Ele nunca esteve tão perto da humanidade como agora, mas sempre esteve ao lado dela.

Quando a guerra foi anunciada, o partido que Arzel tomou sempre foi o de salvar as almas e respeitar o livre arbítrio. Essas lágrimas que ele sentia escorrer pelo seu

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rosto eram lágrimas de tristeza, mas também eram de alegria, porque estava vivo e sabia que muitos estariam ao seu lado.

Enquanto chorava, seus pensamentos voaram longe e pararam em um recorte da cena onde tudo começou...

Um século antes e o deus Jafé

Arzel volta de seu pensamento e encara todos ao seu redor, respira forte mais umas duas vezes e começa a falar:

– Safir, você esteve comigo no final do último século e essa foi a última vez que nos vimos, eu ainda era um anjo e você a semideusa, linda como sempre fora – respirou e deu continuidade:

– Existem partes da história que você não conhece. Preciso contá-la desde quando Jafé me procurou no sétimo céu, minha querida Safir...

– Nós somos filhos de Jafé! – essa informação causou espanto e temor em todos.

Os presentes começaram a falar sem parar, e Arzel sentiu o olhar curioso de cada um e de todos sobre si. Eram como muitos olhos e uma só cabeça, em único pensamento.

Queriam saber a verdade e entender tudo o que acontecia entre os céus e porque fora guardado esse segredo por tanto tempo; no entanto, Arzel continuou como se a novidade não tivesse causado o espanto que causou.

– Quando a chamo de minha aiô, não é apenas um hábito que adquiri por ser anjo, todos somos tratados como aiô no sétimo céu, mas você, em especial, é filha de Jafé e por isso é minha adorada aiô! Sendo assim, você carrega as orações do mundo e eu os pecados. E graças a essa particularidade que perdi minhas asas.

– Jafé não irá nos ajudar muito neste momento e tudo graças ao Gabriel que é o novo soberano, já que ele

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tem o controle das sete trombetas e é o senhor da morte e da vida hoje, e tudo isso começou naquele dia em que estávamos em seu reino e fui chamado por Jafé.

Com uma lágrima que saiu do olho esquerdo e que desceu até o meio do rosto de Arzel, mas secou rápido na sua face aquecida, ele começou a narrar cada passo dos acontecimentos dos últimos cem anos e como se deu o fato de perder suas asas. Sentiu seu rosto quente pela primeira vez e percebeu que, embora fosse vivo, fatalmente sucumbiria à morte.

Respirou fundo, forçou sua memória que agora, sendo humana, poderia denunciar as falhas do esquecimento e tentou organizar os pensamentos... Sua primeira palavra depois desse tempo foi Jafé e prosseguiu, parando hora ou outra apenas para ouvir comentários de sua plateia fiel e atenciosa.

Ao terminar, percebeu exatamente como seria seu fim e sabia que os chinelos o ajudariam a chegar até Safir, mas a cidade de Jaspe era só o começo para o fim de um anjo deserdado...

E assim começou... – Jafé era o deus que reinava no terceiro céu e,

como todos sabem, não é possível ter um posto de maior autoridade entre os que temos contato.

Poucos dos imortais conheceram o segundo e o primeiro céu. Apenas Gabriel e Lúcifer adentraram nas sagradas terras e existem rumores de que nem mesmo eles chegaram a ver como era o primeiro céu.

– Nunca esperei por encontrar Jafé e Gabriel juntos no sétimo céu; ora vejam vocês, se no primeiro céu eles não eram dignos de entrar, jamais iriam se rebaixar ao sétimo. E é de conhecimento que, no sexto e talvez no quinto eu os

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encontrasse e, como você mesma sabe, Safir, as visitas ao quarto céu eram feitas por Jafé vez ou outra para vê-la.

O anjo retorna a um dia muito distante, há aproximadamente cem anos:

– No dia em que estava no seu reino, vendo as lindas margaridas do teu jardim, um querubim me procurou e, em um pergaminho muito bem escrito, tinha uma ordem para que voltasse urgentemente ao sétimo céu. Fiz isso sem me despedir de você e hoje, depois de tanto tempo, encontro-a aqui e quase a levo à morte pelo uso dos chinelos.

Safir, que já o havia perdoado por isso, começava a demonstrar desconforto com o assunto e ia desandar a falar, mas, percebendo que Arzel retomava a oratória, que era o real interesse de todos ali, calou-se e o anjo continuou:

– Saí do quarto céu e segui os caminhos tortuosos que levavam ao sétimo céu, o lugar onde os anjos, arcanjos e querubins dividiam suas tarefas rotineiras. Cheguei ao grande castelo e percebi que a atmosfera estava pesada naquele momento. Vi juntos, na sala principal à minha espera, não Jafé, como previa, mas Jafé e Gabriel. Nunca tinha visto aquele arcanjo e fiquei espantadíssimo ao perceber como ele era bonito, como era grandioso, e como era arrogante.

As asas de Gabriel tinham um branco degradê, as plumas reluziam e a abertura de suas asas era esplendorosa. No final de cada pena existia um brilho dourado.

Era magro, quase esquelético, rosto fino, cabelos longos, um fulgor em cada fio de seu longo cabelo preto; no entanto se destacava uma mecha dourada, dourada como ouro. Seus olhos eram mortos, brancos e cinzas e podíamos ver a eternidade neles.

Gabriel era o primeiro e único arcanjo desde a existência do universo que ainda habitava os reinos, mas o que Arzel não sabia era do seu poder de presença, da sua

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autoridade até mesmo em silêncio e de sua força de persuasão.

Suas vestes puras e transparentes mostravam um corpo desejável, um corpo magro, um corpo que o fez desejar e amar aquele arcanjo, no momento que o viu.

– Conhecia a lenda sobre Gabriel e Lúcifer – dizia o deserdado a todos que se encontravam na casa e ouviam a história secular – ambos são de uma beleza desejável no primeiro impacto e depois mostram o seu poder e, para os dois, para o poder não existe mal e nem bem e, por isso, são tão próximos; dizem até que são aiô – houve mais suspiros e vozes, enquanto ele continuava como se silenciosa fosse a plateia.

Ao lado do arcanjo de asas alvas e cabelos negros, encontrava-se Jafé em sua personificação preferida.

Parecia um mago, daqueles conhecidos do reino proibido. Altura mediana, cabelos brancos e barba comprida, rosto magro e vestes esvoaçantes.

Não paravam de se movimentar, suas vestes sempre tinham vida própria! Alguns dizem que a razão disso é o fato dele flutuar, outros dizem que a única parte personificada é a que pode ser vista e o resto do corpo coberto por veste continua divindade e, por essa razão, suas vestes movimentam-se tanto.

Mas Jafé, em sua glória e esplendor, se personificava em uma criatura tão meiga e simplista como um mago e, ao lado de Gabriel, ele parecia um mortal.

–Louvado seja Jafé entre os homens da Terra e os seres dos céus, que sua bondade nos acompanhe sempre e que sua sabedoria seja passada dos anjos para os homens e dos homens para os seus filhos. Dito isso, Arzel fez reverência, voltou o olhar a Gabriel e cumprimentou-o:

– Salve o arcanjo que conhece os segredos das terras e dos céus, a que me deve a honra de receber não só a divindade Jafé, como o Anjo dos anjos, Gabriel?

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Jafé começaria a falar se não fosse tomada a sua frente, quando o Anjo dos anjos disse:

– Jafé, seja objetivo, fale da mãe do Arzel, fale da guerra e fale o que Arzel precisa fazer. Nosso tempo aqui é curto!

Diante dessa ordem, Jafé não hesitou e começou a falar: sua voz era calma, mas objetiva. Demonstrava entre uma frase ou outra uma preocupação, mas manteve a tranquilidade e assim informou o que ocorrera em um tempo muito longínquo, tão distante quanto às estrelas...

– Arzel – dizia Jafé – conheci sua mãe há muitos séculos e, na ocasião em que a conheci, me apaixonei por ela, sabia que ela era um anjo que não poderia me envolver, mas posso lhe garantir que não me apaixonaria tão facilmente se não fosse ela tão sedutora e envolvente. Portanto, o que aconteceu entre nós foi algo errado, mas bonito e, fruto disso nasceu você, mas teve uma consequência e quero lhe pedir desculpas.

Nesse momento, Jafé baixou a cabeça e não pôde ver os olhos de espanto do anjo.

– Foi realmente um erro – recomeçou – e o preço foi que você nasceu com um estigma: você é o anjo que carrega os pecados do mundo...

– Arzel, meu querido – continuou em tom casual – já conheci em meus muitos momentos de eternidade anjos que carregavam os pecados do mundo, mas eles eram eleitos por outras razões e, além do mais, você é o único imortal. Todos sabem que os anjos têm um limite para se tornarem luz e que esse limite ultrapassa muitos séculos, mas nem um deles, Arzel, viveu tanto quanto você já viveu, você é eterno e só deixará de ser caso se torne um mortal, caso seja deserdado.

– Isso se deu devido a sua mãe ser anjo e eu, o seu pai, um deus. É uma junção rara, mas o preço que tivemos que pagar foi pouco, considerando-se as maravilhas que você é capaz, pois você é o anjo mais poderoso do sétimo

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céu e o quê pagar por isso? Você carrega os pecados do mundo...

A fúria tomou conta do anjo: – Não posso acreditar que esses anos todos não

sabia que parte de mim era deus, que sou quase um semideus... Não posso acreditar em tudo isso assim, Jafé!

Mas, no fundo acreditava porque sempre estranhou o fato de não sofrer com o passar dos anos, de permanecer forte, de ter visto muitos sucumbirem e ele continuar firme, com a certeza de que nunca iria se transformar em luz.

Sabia que a luz era a forma de morte dos anjos, que alguns se entregavam a esse momento, outros apenas aceitavam, mas que não era o seu caso.

Sempre imaginava que isso não aconteceria consigo. Nunca entendeu direito o porquê, mas que agora era óbvio: era filho de Jafé... E carregava consigo os pecados do mundo!

Seus pés continham muitos cortes, enquanto o anjo vivia nos reinos, eles nunca sangraram como estava acontecendo agora na cidade de Jaspe.

Não sentia dores, mas os sentiam, os percebiam, aqueles pequeníssimos cortes.

Eventualmente, um novo surgia e isso o incomodava, mas não a ponto de chamar-lhe a atenção para tal fato.

Jafé começou justamente por esse ponto: – Os seus pés têm esses cortes para cada pecado

existente na Terra e, caso surja um novo pecado, um novo corte abrolhará em seus pés, por sorte a humanidade não é tão criativa e cada pecado existente no mundo só se repete, mas dificilmente aparecem novos.

Como um conselheiro, indagou o deus: – Caso você um dia se torne mortal, isso seria um

problema gravíssimo para resolvermos. Temo que ainda tenha mais um agravante para esse fato: só existem anjos que carregam os pecados do mundo se eles tiverem um aiô

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que carregue as orações e essa ligação é essencial para termos um anjo capaz de tal proeza. De tempos em tempos, surge um anjo solitário sem a ligação, esse anjo não aguenta esse fardo e, fatalmente, se torna luz antes do tempo. No seu caso, nós tivemos duas felicidades: a primeira é o fato de você ser um imortal e a segunda de ter uma aiô.

– Aiô? Como uma aiô? Minha mãe já não existe há muitos séculos, como tenho uma aiô? – e a explicação caiu como um peso sobre os seus ombros – Claro, você tem mais filhos!

– Isso Arzel, tenho mais um filho, na verdade uma filha e você gosta muito de sua companhia: ela é a Safir.

– A mãe de Safir é uma mortal – disse assim Jafé – e filho de deus com mortal gera um semideus, no caso semideusa, e Safir jamais morrerá. No entanto, ela não possui os poderes dos deuses e será sempre sentimental com os mesmos conceitos de bondade e maldade dos seres humanos, sempre com o sentimentalismo dos mortais e, em consequência disso, ela herdou o fardo de carregar as orações do mundo. Você viu suas margaridas?

Continuou a explicação: – Elas são a personificação das orações e Safir

cuida de cada uma delas. As orações nem sempre são atendidas e as que são, Safir, não precisa mais cuidar. Mas, as que não são atendidas, ela é obrigada a tomar conta e, por isso mesmo, sempre ensino aos anjos e aos mortais, quando tenho oportunidade, que os deuses são vaidosos e, ao invés de orarem: Louvem! Louvem! Os louvores chegam mais rápido aos ouvidos dos deuses.

Jafé tinha um sorriso no rosto e um olhar de prazer ao falar isso.

– Mas não vim ensiná-lo e sim informá-lo, sua aiô terá que passar a viver na cidade de Jaspe junto com alguns escolhidos que guardo naquele lugar. Ela já foi comunicada, porque, nesse momento, nesse exato momento, existe uma guerra e você sabe dela.

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A guerra era apenas entre os anjos, mas há algum tempo chegou aos deuses.

Essa guerra, que ninguém mais se lembrava a razão que a iniciou, tem muitos, muitos milênios que acontece entre os anjos.

Existia um acordo, um protocolo que se costumava seguir nos reinos:

Os do terceiro céu, os deuses, embora fossem divididos porque tinham opiniões diferentes, respeitavam-se e sabiam que, essa divisão entre os anjos do céu e os caídos junto com Lúcifer, era uma guerra pequena e que, naturalmente, servia para equilibrar o que os humanos chamam de bem e mal.

Mas algo aconteceu que surpreendeu a todos do terceiro céu. Os deuses se separaram em opinião e agora existe uma divisão clara de que lado cada um se encontra.

Diante esse cenário conhecido, Jafé prosseguiu: – Existem deuses querendo as sete trombetas e, se

isso acontecer, apenas a cidade de Jaspe estará protegida, meu querido Arzel.

O tom de voz de Jafé quase ficou equivalente a um sussurro.

– Temos pouco tempo e, no momento em que o chamei aqui, um dos seus aiô, um anjo que confio muito, levou Safir até a cidade de Jaspe e um querubim o trouxe até mim.

Gabriel permaneceu calado o tempo todo, enquanto Jafé se fazia ouvir:

– Safir tem que viver, mesmo que seja na cidade de Jaspe, ela é a guardiã das orações e o mundo sem oração seria um mundo sem fé e, se as pessoas perderem sua fé, não existirá mais alma a ser salva.

– Procurei Gabriel porque sei que ele é o único que conhece os segredos das sete trombetas e preciso poupar a Terra desse sofrimento, porque sempre tive admiração pelos mortais, mas Arzel, sozinho não terei forças para lidar com

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as sete trombetas. Preciso de toda a ajuda que tivermos, principalmente porque o quinto céu será de domínio da parte dos que desejam aniquilar a Terra, da parte que não se importa com as almas dos mortais e eles têm um acordo com os anjos caídos e posso garanti-lo: essa guerra que existia antes não chegará nem aos pés da que está por vir!

Dito isso, houve um silêncio no sétimo céu até Gabriel tomar o posto de Jafé:

– Não costumo me envolver nessas questões, mas não irei admitir o uso das trombetas, não é o momento, não enquanto ainda eu existir!

Sua voz era firme e forte, como muitas águas – Faça-nos um favor, preciso que prepare todos os

anjos que conseguir para uma nova etapa dessa guerra, poderemos ser atacados a qualquer momento e as lâminas de nossas espadas nos ferem profundamente e naturalmente nos elimina. Os caídos possuem as mesmas espadas que temos aqui e talvez até armas melhores do que as nossas. Creio que bem poucos dos anjos expulsos tenham coragem de me atacar, mas não posso dizer o mesmo a seu respeito.

– Você carrega uma valiosa herança, os pecados do mundo e Safir as orações. Temos que tomar muito cuidado com isso, pois se esses dons caírem em mãos erradas, todas as almas estarão perdidas!

Fizeram-se alguns minutos de silêncio e a voz como de muitas águas continuou:

– Existe algo que pode ser feito, o paraíso possui o rio da vida, porém, depois que foi lacrado, não teve mais acesso e posso lhe garantir que muitos anjos, inclusive Lúcifer, gostariam de beber a água da vida eterna – dito isso, Gabriel virou-se, abriu suas grandes asas e parou diante de uma das janelas, voltando-se momentos depois e continuando sua fala – Embora ele talvez tenha acesso, mesmo que restrito ao paraíso, mas! Não temos muito tempo, precisamos salvar a Terra.

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As sete trombetas, os sete selos e as sete taças, uma profecia antiga conhecida por vários, era o que ocupava todos os pensamentos de Gabriel.

– Precisamos tomar a dianteira para que o domínio dos elementos da antiga profecia seja nosso. Nem um anjo caído poderá colocar as mãos em tais objetos, em artefatos tão sagrados e, ao mesmo tempo, tão perigosos! Por enquanto, sou quem cuida das sete trombetas, o que nos importa agora são as sete taças – o olhar de Gabriel era como fogo – precisamos das sete taças, precisamos da água da vida e só você poderá nos ajudar!

– E como se dará isso tudo? Como entrarei no paraíso? E pegarei a água da vida de que forma? – eram muitas as perguntas que ele gostaria de fazer, mas se conteve com essas três.

Gabriel calmo, no entanto poderosamente, prosseguiu o assunto de forma sucinta:

– Falarei tudo no seu devido tempo, o importante agora é você saber o que são as sete taças, como adquirir a primeira e acredito que a segunda será mais fácil, porque são protegidas da mesma maneira. O mais importante nesse momento é você saber o significado dessas duas taças e não se preocupe com a água da vida por hora, queremos apenas as taças.

Jafé olhou intrigado para Gabriel e, notoriamente, havia desconforto da parte do arcanjo, mas esse prosseguiu inabalado:

– Sejamos objetivos, você já ouviu falar das taças? Elas foram uso de revelação para a humanidade há muito tempo, mas existem desde a formação do universo, muito antes do primeiro humano habitar a Terra. Posso assegurá-lo, juntas são possuidoras de poderes fabulosos! Separadas são destrutivas se usadas por alguém mais ganancioso.

– Mas, somente com a água da vida, só com essa água poderemos usar as sete taças e toda a sua glória!

O olho de Gabriel era azul escuro nesse momento.

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A primeira taça: Úlceras malignas e perniciosas. A segunda taça: O mar se converte em sangue. – Essas duas taças se encontram no mesmo lugar,

o vale do Zerá. Você precisará de alguns anjos, escolha-os e sigam para o vale, tragam para mim essas duas taças, estarei esperando no terceiro céu, juntamente com Jafé pelos que sobreviverem.

– Saberá como achá-las, use a luz sempre, evite maiores contatos e siga ininterruptamente até o ponto mais escuro do vale que é o seu núcleo. Traga-as o mais rápido possível, precisaremos de tempo para reorganizar as coisas por aqui, enquanto isso, nós estaremos protegendo as sete trombetas, eu e Jafé...

O término foi magistral. Gabriel abriu suas asas de forma gloriosa, inclinou uma das pernas e partiu voando com uma leveza nunca vista por Arzel antes.

Jafé simplesmente desapareceu, sumiu diante dos olhos do anjo que ficou meditando por algum tempo.

Percebendo a missão que lhe foi dada e o quão importante parecia ser, resolveu apoiar a causa sem questionamento e, em seguida, foi escolher entre os seus um grupo suficientemente grande para vencerem qualquer obstáculo e que, ao mesmo tempo, o número de membros fosse fácil de manter total controle.

Em poucas horas, estavam marchando para o vale do Zerá.

Eram em oitos anjos.

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O Vale do Zerá e o esconder do Sol

Oito anjos optaram por andar ao invés de voar com o intuito de manterem um diálogo, mas também porque sabiam que em breve precisariam das luzes e não poderiam gastar suas forças com vôos. E isso porque necessitariam de muita energia, assim que entrassem no vale do Crepúsculo ou, como Gabriel prefere chamar, no vale do Zerá.

O dia era claro e já estavam caminhando há algum tempo quando um dos anjos, o Vaizata, que também era o que mais reclamava, começou a demonstrar cansaço daquilo tudo.

O caminho assustava, encontraram animais mortos, e por onde passavam o cheiro de carne apodrecendo era fortíssimo, como um cemitério a céu aberto; ossos e mais ossos espalhados pelo chão, toda espécie de criatura parecia ir àquele local para depositar-se em morte.

Vaizata, um anjo robusto, tom de pele levemente escurecido, cabelos mais curtos do que o de qualquer outro anjo. Semblante de investigação fazia parte de seu rosto fino, mas de traços que lembravam uma madeira talhada por um machado.

O que impressionava em Vaizata era o olhar: tinha um olhar terno, lembrava uma criança, se não fosse seu tamanho desproporcional aos demais e sua aparência que lembrava um nefilin.

No entanto, quando olhava para os demais anjos, ele parecia pedir ajuda ou compreensão, mas sua personalidade era forte demais. Às vezes impetuoso, outras horas chegava a ser pedante, mas, em geral era um dos anjos em que mais se podia confiar.

Não demorou muito, ele começou a reclamar e, em um dos seus muitos lamentos, dizia:

– O Vale do Zerá – falou em tom de dono da verdade – é um dos piores lugares para um anjo. Lá, as nossas energias são sugadas de uma forma tão intensa que,

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se metade de nós sobreviver, vou considerar um milagre. Você, Arzel, sabe muito bem quantos seres ficaram perdidos por lá, quantos anjos que tentaram passar pelo vale e morreram. Se é que foi esse o destino deles mesmo, porque nunca ouvi falar de alguém ter voltado com vida desse lugar.

– Pára de resmungar! – Não estou resmungando Arzel, você sabe muito

bem que os seres de todas as espécies, imortais ou não, querem entrar naquele vale e não é só pelas taças que estão lá. Dizem que a espada das espadas, a primeira, a espada alfa, aquela que daria a qualquer criatura o poder eterno, também se encontra lá!

– Sim, todos nós conhecemos a lenda, mas, nesse momento, o que nos importa são as taças – disse em tom de total reprovação.

– Claro – continuou Vaizata – não acredito nessas histórias, acho que o que dizem de Miguel ter escondido a espada naquele vale é pura lenda, não creio que seja realmente verdade... Imagine só! Miguel teria sobrevivido ao vale? E sozinho? Não, acho que não...

– Você já falou com Miguel alguma vez? – perguntou Arzel, no tom mais alto que conseguiu, e Vaizata respondeu com raiva:

– Não, claro que não! – Portanto, pare de falar sobre o que você não

conhece, e agora vamos tentar nos concentrar em como sobreviveremos ao vale, porque o portal é logo adiante! – e dizendo isso avistou um grande portal feito de ossos e pedras cinza.

O portal era alto e circular e, à sua volta inteira, se via muitas plantas nascendo. Mas, o que era mais importante estava do seu lado: uma placa montada em um pedestal feito de crânios.

Não eram exatamente crânios humanos, mas os anjos suspeitavam que fossem de alguma criatura bem próxima aos humanos. No entanto, como Vaizata repetia o

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tempo todo que lembrava crânios de cachorro, começaram a ver um pouco de semelhança entre o pedestal e as cabeças de cachorros.

Não demorou muito, estavam todos ao lado da tal placa e, chegando mais perto, puderam vê-la melhor e conseguiram ler, em uma língua muita antiga, conhecida por poucos dos anjos. Contudo, foi Vaizata quem falou alto:

– Eu sabia que era isso que estava escrito! Alguém mais leu? – houve silêncio, então ele prosseguiu – A morte será o desejo de quem levianamente entrar por este portal, mas aos que desejarem a morte, esses nunca irão alcançá-la...

O silêncio foi quebrado novamente pelo anjo que lembrava um nefilin:

– Para os que acreditam que as pessoas morrem ao entrar aí, veja a prova de que é mentira, ninguém morre nesse vale, mas o que tem aí dentro deve fazer qualquer um desejar a morte... – o seu tom de voz agora era sombrio.

O portal terminava em um penhasco, dando passagem para uma estrada que era possível de se ver logo após o portal. No entanto, não deixaram de notar que dos dois lados da estrada, que era estreita e parecia seguir ao infinito, existia apenas o abismo.

Arzel já imaginava a resposta, mas quis ouvir a opinião dos outros anjos e então perguntou:

– Onde será que esse abismo termina? Muitos começaram a falar, mas a voz perturbadora

que ouviram não era de nenhum dos anjos e vinha, sim, do portal:

– Aos valentes que desejam conhecer os segredos fundamentados desde o tempo do Verbo, estes terão que limpar as suas mentes e os seus corações de todo o conhecimento e de todo o sentimento. Aos que desejam apenas guardar bens valiosos que deverão ser esquecidos para sempre, o vale do Zerá é como um sepulcro caiado.

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Mas aviso a todos: o vale do Zerá não devolve nem os bens, nem os sentimentos.

E, depois de ouvirem isso, Arzel foi o primeiro a colocar os pés na parte de dentro do portal; os demais demoraram um pouco, mas passaram-no e, quando o último dos anjos entrou, sentiram frio.

Um frio insuportável! Não sabiam o que estava acontecendo e,

involuntariamente, todos os anjos estavam de braços cruzados e se agachando por conta dos calafrios que sentiam.

Após alguns segundos que pareciam horas, Vaizata, voltando à posição de pé, olhou para Arzel e perguntou:

– O que acabou de acontecer conosco? Nunca tinha sentido frio antes...

– Vaizata – após alguns segundos, se recompôs, e continuou – acho que você sabe a resposta, nós não somos exatamente como anjos dentro desse portal, somos agora mais parecidos com os humanos...

– Mas ainda tenho minha luz! – exclamou Vaizata, e a sua volta apareceu um circulo de luz fortemente dourada.

A luz é uma das armas mais eficaz dos anjos, pois com ela conseguem afastar quase todos os tipos de males a sua volta e em torno dos humanos que protegem quando essa é uma de suas missões. O fato de ainda possuírem a luz era reconfortante, porque ainda estavam seguros.

– Acredito, Vaizata, que ainda somos ou pelo menos temos os poderes de anjos – a voz saía de sua boca, porém era como se não fosse ele quem falasse – mas acho que não será por muito tempo e, por isso, vamos seguir em frente nesse trajeto. Sugiro a todos que usem sua luz, porque no vale o sol irá se por e não voltará mais.

Era dia do lado de fora do portal, mas agora, na parte de dentro, o sol começava a sumir, como um crepúsculo forçado e, em alguns minutos, o sol já não existia.

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A passagem que seguiram era estreita, um caminho para uma única pessoa e, para continuarem, fazia-se necessário uma fila indiana.

Do lado esquerdo e do lado direito, um abismo sem fim; ouviam-se ecos quando caía uma pedra no penhasco, e suas asas já não sabiam o que era voar e a única coisa que lhes restava era a luz.

Aos poucos, a luz ia ficando mais fraca e Arzel atrevia-se a olhar para trás, volta e meia, verificando se todos ainda o seguiam.

E foi em um momento inesperado que o frio tomou novamente os seus corpos, o curioso era que sentiam muito mais que frio, sentiam medo e angústia.

Um anjo que estava perto de Vaizata começou a gritar, gemer e falar coisas sem nexo.

Era assustador para os demais anjos, porque não tinham como se aproximar dele.

Vaizata era o penúltimo e tentou fazer de tudo para acalmá-lo, mas aterrorizantemente, o anjo ficou imóvel, branco transparente, olhou para frente e disse:

– Gostaria de ter conseguido – dito isso, tombou para o lado direito e caiu, caiu rápido e pesadamente. Todos ficaram em silêncio, mas os gritos dele vinham em forma de eco de baixo para cima e, depois que continuaram a andar, ainda era possível ouvir muitos outros lamentos.

– Arzel – Vaizata começou tímido –, estou ouvindo vozes no meu íntimo e estou sentindo algo que poderia definir como tristeza.

– Também estou sentindo as mesmas coisas que você, mas já devemos estar próximo ao local das taças.

Sentiram a presença do medo os seguindo, esperavam que mais nenhum dos anjos tombasse pelo abismo sem fim e continuavam vigilantes para ter certeza de que todos estavam vivos.

Caminharam por alguns minutos e a escuridão era quase completa agora, suas luzes já não tinham tanta força e

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Arzel esperava o momento em que um dos aiô caísse do lado direito ou esquerdo do precipício, do abismo que consumia vidas. Tinha que andar pé ante pé, porque a estrada era estreita e a escuridão consumia sua orientação.

Não demorou muito, o segundo anjo tombou para o lado esquerdo e seus gritos e gemidos eram mais dolorosos para os que estavam no vale do que o do primeiro.

Os que permaneceram sentiam angústia e Arzel desejou que fosse consigo que estivesse acontecendo, mas a voz de Vaizata, pela primeira vez, o animou:

– Veja Arzel, logo à frente, veja! Tem um campo. Era um momento de alegria, quase inexistente, mas

que os fortaleceu suficientemente; podiam ver ao longe uma esperança.

Andaram rápido com receio de que mais algum dos anjos não aguentasse o sofrimento da travessia e, assim que seus pés tocaram a grama, a felicidade foi restaurada quase milagrosamente.

O campo era de uma linda grama verde e de grandes pedras, ao fundo algumas árvores e uma fonte de onde minava água constantemente.

Ainda estava escuro, mas já não era uma escuridão tão temida; ao lado da fonte outro pedestal, mas dessa vez não era de caveiras, lembrava mais correntes flutuando. Se não fosse o brilho de dentro das taças, Arzel não teria conseguido vê-las, as duas estavam lá, por cima das correntes, mas ao mesmo tempo entrelaçadas nelas. Ele correu para pegá-las e uma voz semelhante à do portal começou a altercar:

– Os que foram fracos não conheceram o vale, mas os que sobreviveram até aqui terão um preço a mais a pagar; uma vida espontânea terá que ser doada e aquele que desejar que seus amigos sigam em frente que pague o preço de ficar eternamente aqui no vale.