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As Origens da Adoração Cristã- Larry Hurtado

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AS DORIG&S ADORAÇÃO

CRISTA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hurtado, Larry W.

As origens da adoração cristã: o caráter da devoção no ambiente da igreja

primitiva / Larry W. Hurtado; tradução A. G. Mendes. — São Paulo: Vida Nova,

2011.

Título original: At the origins of Christian worship: the context and character

of earliest Christian devotion. Bibliografia. ISBN 978-85-275-0482-9

1. Cristianismo 2. Igreja - História 3. Igreja primitiva I. Título.

11-11183 CDD-270.1

Índices para catálogo sistemático:

1. Igreja cristã primitiva : História 270.1

LARRY W. H U RTADO

„ORId\S ADORAÇÃO

CRISTA O CARÁTER DA DEVOÇÃO NO

AMBIENTE DA IGREJA PRIMITIVA

CGM

TRADUÇÃO A. G. MENDES

Dg VIDA NOVA

Copyright ©1999, de Larry W Hurtado Título original: At the origins of Christian worship: the context and character of earliest Christian devotion. Traduzido da edição publicada pela W B. EERDMANS PUBLISHING COMPANY, Grand Rapids, Michigan, EUA.

1.a edição: 2011

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA, Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 wwwvidanova.com.br / e-mail: [email protected]

Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

ISBN 978-85-275-0482-9

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

SUPERVISÃO EDITORIAL Marisa K. A. de Siqueira Lopes

COORDENAÇÃO EDITORIAL Fabiano Silveira Medeiros

REVISÃO Josemar de Souza Pinto

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Sérgio Siqueira Moura

REVISÃO DE PROVAS Ubevaldo G. Sampaio

DIAGRAMAÇÃO Luciana Di Iorio

CAPA OM Designers Gráficos

Para

Shannon.

SUMÁRIO

Prefácio 9

Abreviações 13

Introdução 15

1. O ambiente religioso 21

2. Características da adoração cristã primitiva 55

3. O formato binitário da adoração cristã primitiva 81

4. Reflexões sobre a adoração cristã hoje 119

Bibliografia 141

PREFÁCIO

Em 1999, tive a honra de ser convidado para proferir as Preleções Didsbury, no British Isles Nazarene College de Manchester.

Este livro contém as quatro preleções feitas na ocasião, ligeiramen-te editadas para publicação, além de introdução, notas e uma lista das obras citadas. Os primeiros três capítulos se debruçam sobre as questões históricas que cercam o culto cristão primitivo com ênfase no contexto romano do cristianismo primitivo e no caráter do culto celebrado nesse entorno religioso. Nesses capítulos, sigo algumas linhas de investigação que venho explorando há vários anos. Tentei tornar o debate acessível ao leitor interessado, seja ele quem for; mas espero também que esse debate contribua de algum modo para a compreensão histórica da devoção cristã em seus primórdios.

No último capítulo, reflito um pouco sobre o culto cristão con-temporâneo. Hoje em dia, há uma tolerância maior que no passado em relação aos estudiosos que se expõem com franqueza, mas ha-verá talvez alguém que ainda se sinta incomodado. Em um campo como o cristianismo primitivo, tem mais credibilidade o estudioso

que se apresentar sem nenhum interesse pessoal no assunto. Pode-mos, entretanto, nos esforçar para apresentar os dados com a maior exatidão possível, mais ainda quando nos referirmos às opiniões

10 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

daqueles que discordam de nós. Além disso, podemos simplesmen-te procurar compreender, com paciência e empatia. Talvez alguns leitores para quem a fé religiosa não combina com o academicismo crítico vejam em mim um indivíduo mal-intencionado só pelo fato de admitir a expectativa de que um júri composto por cidadãos de mente imparcial me condene sob a acusação de que sou cristão. (Contudo, admito também que há dias em que só mesmo um bom advogado de defesa pode me livrar da acusação que pesa sobre meu comportamento!) Todavia, seja qual for a opinião de meus leitores, espero que o tratamento dado às questões históricas nos capítulos de 1 a 3 seja de algum valor para os interessados nas origens do cristianismo. O capítulo 4, embora preocupado com a prática con-temporânea do culto cristão, poderá ser de algum interesse para o observador não-cristão, bem como para os adeptos do cristianismo.

É somente minha a responsabilidade pelas páginas que se seguem; entretanto, não posso deixar de citar aqui também Troy Miller, meu aluno do doutorado, que leu o capítulo 1 e fez ob-servações úteis. Algumas ideias apresentadas nas preleções foram também debatidas com colegas da Faculdade de Teologia, parti-cularmente Nick Wyatt (antecedentes "pagãos" greco-romanos) e Peter Hayman (antecedentes judaicos). Desde que me mudei para Edimburgo, em 1996, tive o privilégio de fazer parte de um sólido grupo de estudiosos que constituem o corpo docente da Faculdade de Teologia (atualmente chamada de New College), a quem agra-deço a acolhida e o companheirismo demonstrado. Isso foi muito significativo para mim, em se tratando de um grupo de colegas de inclinações acadêmicas as mais variadas, os quais representam, sem dúvida, uma diversidade de posicionamentos em torno de questões relativas à fé religiosa.

O capítulo 3 é uma versão adaptada de uma comunicação so-bre "As origens históricas do culto a Jesus" que apresentei a convite do Congresso Internacional realizado na St. Andrews University de 13 a 17 de junho de 1998. A comunicação foi também publicada nos anais do congresso. Agradeço aos editores do referido volume,

PREFÁCIO

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dr. James Davila e dr. Carey Newman, e também à editora, E. J. Brill, a permissão para que eu usasse a comunicação aqui também.

Em dezembro de 1998, minha esposa, Shannon, e eu, come-moramos nosso vigésimo aniversário de casamento. Foram vinte anos de companheirismo cordial e amoroso, sobretudo porque não nos faltou consolo em meio às demandas e dificuldades desses anos. Minha esposa, embora intensamente envolvida com sua pesquisa — história da arte e da cultura britânicas no século xix —, sempre demonstrou interesse por meus temas de estudo, além de muita pa-ciência. A ela dedico este livro com gratidão e amor.

New College, Edimburgo

ABREVIAÇÕES

As abreviações dos livros da Bíblia seguem as utilizadas na versão Almeida século 21, de Edições Vida Nova. As abre-

viações dos apócrifos, de Filo, de Josefo e dos escritos cristãos deuterocanônicos primitivos seguem o padrão do Journal of Biblical Literature.

A21 Almeida século 21 ANF The ante-Nicene Fathers, organizado por Roberts e

Donaldson AT Antigo Testamento BJ A Bíblia de Jerusalém CEV Contemporary English version CRINT Compendia Rerum Judaicarum ad Norem Testamentum FIE História eclesiástica, de Eusébio JTS Journal of Theological Studies pcx Septuaginta MM The vocabulary of the Greek Testament illustrated from the

papyri and other non-literary sources, de Moulton e Milligan NAB New American Bible NEB New English Bible NIV New international version

14 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

NRSV New revised standard version

NT Novo Testamento NTS New Testament studies

NVI Nova versão internacional

RGG Die Religion in Geschichte und Gegenwart, organizado por K. Galling

INTRODUÇÃO

Ahistória do culto cristão é longa e complexa. Esta pequena obra trata dos estágios mais antigos acessíveis à observação.

Dediquei-me nas últimas duas décadas à pesquisa dos dois primei-ros séculos do movimento cristão, com atenção especial às origens e ao desenvolvimento inicial da devoção a Cristo. Debrucei-me prin-cipalmente sobre como essa devoção se expressava no ambiente do culto. Sou, porém, especialista em Novo Testamento e origens cristãs, não um historiador da liturgia. Ainda assim, dediquei considerável atenção ao culto cristão antigo por sua importância para o entendi-mento do cristianismo primitivo. Sob pena de incorrer em grave reducionismo, creio que uma das principais atividades dos cristãos primitivos era a celebração do culto. O cristianismo primitivo era, afi-nal de contas, um movimento religioso que se esforçava por orientar seus adeptos sobre os propósitos divinos proclamados em sua mensa-gem evangélica. Portanto, se quisermos analisar os grandes fenôme-nos do cristianismo primitivo, as práticas devocionais dos cristãos são, sem dúvida, elementos essenciais que merecem atenção. Contudo, o culto dos primeiros cristãos também lança luz sobre outros aspec-

tos do movimento cristão. Nos capítulos que se seguem, examino o culto cristão primitivo, situando-o no contexto do mundo romano (com ênfase especial na tradição judaica) em que ele emergiu.

16 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Estudiosos do NT e das origens cristãs dedicaram especial atenção às crenças religiosas dos primeiros cristãos, e os dados que colheram em seus estudos sempre foram, na grande maioria, expressões verbais das crenças encontradas em textos cristãos antigos, bem como o vo-cabulário dessas expressões. As expressões verbais das crenças cristãs primitivas, por exemplo, sua "cristologia", são naturalmente impor-tantes. Contudo, nas pesquisas e nos debates acadêmicos mais acalo-rados, as grandes questões têm girado em torno do significado dessas expressões de fé. O que, por exemplo, os cristãos primitivos queriam dizer quando chamavam Cristo de "senhor"? Os termos grego e ara-maico traduzidos por "senhor" podem ter diversos significados, co-meçando por uma forma polida de tratamento usada para se dirigir a um superior na hierarquia social (p. ex., "sr.", "patrão") e mesmo a uma divindade. Defendo que a prática devocional dos cristãos primi-tivos constitui o contexto por excelência para a avaliação do signifi-cado de suas expressões verbais de crenças sobre Cristo. A linguística moderna tem nos ajudado a entender que as palavras, de sentidos tan-tas vezes complexos e diversos, adquirem um significado específico no contexto em que são usadas. Sustento que a conotação específica dos títulos cristológicos primitivos e das práticas devocionais pode ser mais bem avaliada levando-se em conta a totalidade do contexto em que foram usados. Por exemplo, ao se dirigir a Jesus como "senhor" no contexto do culto, utilizando o termo para invocar Jesus e ape-lar a ele, conferia-se ao termo uma conotação muito mais precisa e contundente do que outras possibilidades semânticas mais genéricas. Significava dirigir-se a ele no contexto e da forma que os antigos se dirigiam às divindades que adoravam em suas celebrações. Referir-se a Jesus como "senhor" em outros cenários podia ter uma conotação totalmente distinta, como, por exemplo, o reconhecimento de que ele era mestre ou líder de seus devotos. Contudo, dirigir-se a ele como "senhor" no culto coletivo dos grupos cristãos primitivos dá ao termo uma conotação muito mais precisa e elevada.'

'V o verbete "Lord" ["Senhor"] (L. W HURTADO, in: HAWTHORNE & MARTIN, orgs., Dictionary of Paul and his letters, p. 560-9), no qual faço uma análise de como Paulo emprega o título Kyrios, mostrando suas inúmeras cono-tações, dependendo do contexto em que é usado.

INTRODUÇÃO 17

É igualmente importante avaliar o culto dos cristãos primitivos em razão de sua relevância no período romano como parte e manifestação que era da religião. Sobretudo no mundo antigo, a religião da pessoa era entendida e avaliada pelos critérios de como, quando e o que o indivíduo adorava. O culto era uma expressão característica e vital da orientação e do compromisso religioso da pessoa. Por isso, custa-me entender por que tantos estudiosos que professam um compromisso com a interpretação histórica do cristianismo primitivo em seu contexto original nem sempre atentam para a importância das práticas e dos modelos devocionais dos pri-meiros cristãos. Para dar um exemplo, entre as queixas feitas contra os cristãos nos três primeiros séculos, nota-se a acusação recorrente de que desprezavam o culto dos deuses tradicionais. Não há dú-vida de que os antigos críticos dos cristãos viam na expressão de seu culto um traço essencial e definidor. Quando os cristãos eram levados aos tribunais (como se vê, por exemplo, na famosa carta de Plínio a Trajano e também em O martírio de Policarpo), eram obri-gados a certas práticas cultuais, como invocar os deuses, oferecer in-censo à imagem do imperador e blasfemar contra Jesus durante esse cerimonial.2 Em todo relato do cristianismo antigo que procura le-var em conta o contexto histórico, portanto, as práticas devocionais e o escrúpulo dos cristãos têm importância fundamental.

No antigo contexto romano, duas características em particular marcavam e distinguiam o culto cristão primitivo. Em primeiro lugar, ele era exclusivista, isto é, desprezava o culto das inúme-ras divindades do entorno romano; em segundo lugar, sua devo-ção era dirigida exclusivamente ao Deus da Bíblia e a Cristo. Essas duas características constituem, de fato, indicadores eloquentes da importância do tema abordado por este livro e servem de arcabou-ço lógico para seu conteúdo e para as preleções em que tiveram origem. Portanto, os primeiros dois capítulos partem da premissa

21)1,1N10, Epistles 10.96 (texto e comentário em The letters of Pliny, de Sherwin-White [p. 691-710]). Martyrdom of Polycarp 8-9 (texto e tradução em The Apostolic Fathers: Greeh texts and English translations of their writings, de Lightfoot, Harmer e Holmes [p. 232-5]).

18 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

da exclusividade do culto cristão primitivo no contexto do mundo romano, ao passo que o capítulo 3 trata do que chamei de "modelo binitário" do culto cristão primitivo, em que Deus e Cristo eram alvo exclusivo do culto dos crentes que se consideravam verdadeiros monoteístas devotos.

No capítulo 1, delineio o ambiente religioso romano em que os cristãos se encontravam, sobretudo os cristãos gentios do pri-meiro século que viviam em cidades fora da Palestina romana. Meu objetivo não é esgotar o assunto, tampouco catalogar as divindades e os movimentos religiosos. Em vez disso, apresento um panorama geral no intuito de comunicar algo do lugar e do papel da religião na vida das pessoas. Quero enfatizar quanto a prática da religião era diversificada, proeminente e generalizada, provavelmente para um grande número de pessoas. No caso dos cristãos gentios, renunciar às práticas religiosas que cultivavam antes de se converterem e des-denhá-las significava dar as costas a costumes cultuais exuberantes e envolventes que tinham muito a oferecer aos devotos. Significava também abandonar uma característica fundamental do dia a dia das cidades romanas, algo que era um componente básico do conjunto de coisas que unia famílias e pessoas. Não entenderemos o culto cristão primitivo se não mantivermos diante dos olhos o fato de que, para o cristão gentio, o cristianismo era um culto substituto. Ele era, ao mesmo tempo, uma renúncia, um posicionamento devocio-nal firme e exigente com profundas repercussões.

No capítulo 2, procuro apresentar algumas características ge-rais do culto cristão primitivo. Nesse sentido, minha preocupação consiste em compreender o que os fiéis parecem ter inferido de sua prática devocional coletiva. Esperava-se que renunciassem ao rico cardápio religioso "pagão"' à disposição no mundo romano.

30 termo "pagão" tem inúmeras conotações em vários círculos, dentre elas, uma conotação depreciativa em certos usos populares (p. ex., "depravado" etc.). Não é essa minha intenção aqui. Alguns estudiosos do Novo Testamento prefe-rem evitar completamente o termo, mas não conheço nenhum substituto mais prático. Além disso, o termo era usado por classicistas e historiadores antigos simplesmente para designar as religiões não-cristãs, ou pré-cristãs e não-judaicas. E desse modo que pretendo usar o termo neste livro.

INTRODUÇÃO 19

O que foi que inferiram do culto cristão que, a propósito, deveria ser o único culto legítimo que deveriam celebrar? Nesse contex-to, analisamos o cenário e as práticas do culto cristão do primeiro século, bem como os meios pelos quais os cristãos atribuíam um significado profundo e poderoso ao seu culto. Veremos que, para os cristãos primitivos, os encontros de adoração constituíam uma nova oportunidade para o compartilhamento de experiências religiosas e para a prática da identidade comunitária que antes desfrutavam em seus rituais religiosos pagãos. Além disso, veremos também como o culto cristão primitivo era dotado de um rico significado, de uma importância transcendente, embora exteriormente parecesse inex-pressivo em comparação com as cerimônias quase sempre muito elaboradas e vibrantes do entorno romano.

Em seguida, no capítulo 3, faço uma análise pormenorizada do lugar de Cristo no culto monoteísta dos cristãos primitivos. Re-tomo aqui e amplio uma análise mais detalhada das ações cultuais dirigidas a Cristo e o modo pelo qual Cristo aparece na vida devo-cional pública e coletiva dos cristãos.`' Tanto em um livro anterior quanto neste capítulo, minha intenção foi mostrar que Cristo foi alvo do tipo de devoção que podemos chamar de adoração plena-mente cultual, e que podemos com total justiça descrever o culto cristão das primeiras décadas como genuinamente "binitário". Em outros termos, defendo que nessa etapa remotíssima o culto cristão tinha dois focos, Deus e Cristo, e mesmo assim os cristãos primi-tivos se consideravam monoteístas, de tal forma que a inclusão de Cristo em sua vida devocional de modo algum comprometia a ex-clusividade do Deus único a quem se haviam convertido por meio do evangelho. Este tópico já foi objeto de muita pesquisa e debate em anos recentes; por isso, convoco vários outros estudiosos neste capítulo, principalmente nas numerosas notas.

Esses três capítulos de pesquisa histórica são seguidos por um capí-tulo final que trata de questões relativas ao culto cristão contemporâneo.

4HuRTADo, One God, one Lord: early Christian devotion and ancient Jewish monotheism.

20 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

A discussão e os pontos de vista dos primeiros três capítulos não pres-supõem nenhuma postura específica de fé e serão, assim espero, de alguma valia para quem se interesse pelo cristianismo histórico. Nesse último capítulo, escrevo na condição de cristão e de adorador, recor-rendo à pesquisa acadêmica para oferecer algumas reflexões com o propósito de ajudar a dar forma ao culto cristão atual. Naturalmente, aqueles leitores que não tiverem nenhum interesse na prática con-temporânea da fé cristã estão livres para desconsiderar esse último ca-pítulo. Todavia, convido aqueles que, por um motivo qualquer, não compartilham da fé cristã, mas talvez achem interessante "ouvir" o que um cristão tem a dizer sobre o assunto a outros cristãos que levem em conta a discussão de caráter histórico dos três primeiros capítulos. Não tenho a competência e não disponho de espaço neste livro para outra coisa senão refletir sobre uns poucos pontos escolhidos que tra-tam da maneira que os cristãos devem celebrar hoje seu culto, procu-rando modelá-lo em conformidade com a ênfase e o caráter do culto cristão em seu período fundacional.

CAPÍTULO

O AMBIENTE RELIGIOSO

O culto cristão primitivo não se deu no vácuo religioso. O mundo romano fervia em sua religiosidade, havendo

um número estonteante de grupos, movimentos e costumes reli-giosos com toda a parafernália correspondente. A fé cristã dos pri-mórdios não representava uma religiosidade em oposição a uma cultura ímpia; pelo contrário, ela teve de entrar no "tráfego" intenso e por demais familiar da atividade religiosa na condição de movi-mento novato. Esse ambiente religioso vibrante e diversificado do mundo romano é extremamente importante para a compreensão desse mundo e para a avaliação precisa do culto cristão primitivo.

Partindo-se do pressuposto de que todo método histórico sóli-do procura, tanto quanto possível, avaliar o objeto de sua investiga-ção em seu contexto histórico, segue-se que o culto cristão e a vida devocional dos primeiros tempos do cristianismo devem ser inter-pretados no contexto das variáveis religiosas do mundo romano, sobretudo os fenômenos relativos à vida devocional desse período. Os limites deste capítulo não nos permitem discutir nem sequer mencionar toda a vasta temática do entorno religioso da época. Por isso, selecionaremos uma série de características da religiosidade da Era Romana que nos ajudará, assim esperamos, a nos familia-rizar com os antecedentes nos quais o culto cristão apareceu pela

22 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

primeira vez.' Nos capítulos seguintes, examinaremos mais detida-mente os fenômenos do culto cristão primitivo, o que os primeiros cristãos aparentemente quiseram dizer com suas práticas devocio-nais e o que foi que inferiram dela. Aqui, porém, nosso objetivo é nos prepararmos para ver de que modo as práticas devocionais cristãs refletiam a época e o contexto em que ocorreram e de que modo eram também, talvez, incomuns ou deliberadamente contrá-rias à religiosidade dominante.

Nas linhas que se seguem, devo muito aos estudos mais detalha-dos sobre o contexto religioso romano escritos por outros estudiosos.2 Minha contribuição específica para este capítulo limita-se a chamar a atenção para algumas características desse ambiente especialmente selecionadas por sua grande importância para a avaliação histórica da vida e da prática devocional cristãs em seus primórdios.

Embora a vida religiosa dos judeus nessa era deva, sem dúvida, ser considerada parte do panorama romano mais abrangente, os ju-deus piedosos viam suas tradições e compromissos religiosos como coisa distinta e mantinham-se em geral distantes de boa parte da vida religiosa do mundo romano. Portanto, trataremos da vida reli-giosa dos judeus separadamente, depois de analisar os traços típicos do entorno "pagão" ou religioso em geral.

'Quanto a descrições breves dos termos grego e latino correspondentes a "religiosidade", "piedade" etc., v "Religion, terms relating to" (in: HAMMOND &

SCULLARD, The Oxford classical dictionary, p. 917). 2Ferguson (Backgrounds of early Christianity, p. 112-253 [sobre o contexto

religioso de "pagão"]; p. 315-463 [sobre o ambiente religioso judeu]), p. ex., apresenta uma ampla discussão introdutória e vasta referência bibliográfica. Finegan (Myth & mystery: an introduction to the pagan religions of the bibli-cal world) analisa inúmeras tradições religiosas contemporâneas do Antigo e do Novo Testamentos. V tb., de MacMullen, Paganism in the Roman Empire; de Teixidor, The pagan God; de L. H. MARTIN, Hellenistic religions: an introduction; de R. M. Grant, Gods and the one God; de Armstrong (org.), Classical Mediter-ranean spirituality: Egyptian, Greek, Roman; de Klauck, Die Religiose Umwelt. Em relação à vida religiosa da mulher, quase sempre desprezada quando se estuda a religião na Era Romana da religião, v., de Kraemer, Maenads, martyrs, matrons, monastics: a sourcebook on women's religions in the Greco-Roman world.

O AMBIENTE RELIGIOSO

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Ubiquidade

Talvez a primeira coisa a ressaltar seja a penetração da religião no mundo romano. Na verdade, é difícil apontar algum aspecto da vida naquele tempo que não fosse explicitamente relacionado à religião. Nascimento, morte, casamento, a esfera doméstica, ci-vil, a vida política em geral, o segmento militar, a vida social, o entretenimento, as artes, a música — tudo estava carregado de significado e de associações religiosas. Os ofícios civis e públicos tinham também conotações religiosas e quase sempre estavam re-lacionados ex officio a deveres religiosos, tais como a condução pública de cerimônias periódicas em honra aos deuses das cidades. Toda associação comercial tinha seu padroeiro. Nas reuniões, ha-via práticas rituais em honra à divindade. Em praticamente todas as refeições, e certamente em todo jantar formal, havia o reco-nhecimento ritual das divindades, e podiam, não raro, ser servidos em salas que faziam parte do templo desta ou daquela divindade. Toda unidade militar tinha seu padroeiro e realizava regularmente cerimônias religiosas em honra a eles. As divindades da cozinha eram homenageadas no decorrer das tarefas cotidianas do lar e no preparo das refeições. Portanto, em situações solenes e impo-nentes, e na rotina dos lares, e no cotidiano das pessoas, a religião estava presente, e os deuses eram reverenciados conforme se exigia nas várias cerimônias devocionais.

É claro que, assim como hoje, também existiam na época cé-ticos em relação à religião, alguns dos quais pertenciam à elite cultural, os literati, cujas obras sobrevivem e cujos autores cos-tumam estar entre os escritores antigos estudados nos departa-mentos de antiguidade clássica das universidades. É possível até que entre esses indivíduos que se consideravam sofisticados, tanto naquela época quanto agora, o ceticismo em relação à validade e à eficácia da religião não fosse algo raro. No entanto, tudo indica que a maioria esmagadora de pessoas do período romano apro-vava as manifestações religiosas onde quer que as encontrasse e

24 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

participava das atividades religiosas regularmente e com entu-siasmo.' Especialmente para aqueles de nós que vivemos em so-ciedades mais secularizadas, em que a religião e as instituições religiosas foram relegadas a um passatempo particular e cujo papel é extremamente limitado na sociedade de modo geral, é impor-tante tentar compreender o lugar de predominância e ubiquidade ocupado pela religião no mundo romano.

Além disso, embora os estudiosos tenham por vezes comen-tado a perda de confiança nos deuses do paganismo romano, tais observações parecem motivadas por preocupações apologéticas (porque partem do pressuposto e da certeza da superioridade óbvia do cristianismo) ou baseadas em pressupostos históricos simplistas (a fé cristã conseguiu se fixar, portanto a concorrência religiosa deve ter sido fraca). As evidências ao nosso dispor acerca da religio-sidade pagã dos romanos indicam uma participação entusiástica. Além disso, as inúmeras expressões tangíveis de agradecimento aos deuses pelas preces respondidas e favores diversos (os inúmeros ex-votos, por exemplo, são uma expressão da religiosidade popular) apontam para um sentimento amplamente compartilhado de que os deuses estavam em ação e de que a devoção a eles "funcionava" como canal de bênçãos de todos os tipos.4

Importância

Outra maneira de avaliar a importância e a penetração da religião no período romano consiste em atentar para sua simples visibili-dade. Áreas consideráveis do espaço urbano eram ocupadas por

3SAffREy, The piety and prayers of ordinary men and women in late Anti-quity, in: A. H. ARMSTRONG, org., Classical Mediterranean spirituality, p. 195-213. O excesso de confiança nas obras literárias dos autores clássicos que retratam as atitudes e as crenças das pessoas comuns do mundo romano em geral (compor-tamento bastante comum nos primeiros tempos dos estudos acadêmicos) é como tomar as opiniões de Gore Vidal e crer que elas representem as atitudes e práticas religiosas do final do século xx.

4V. "Votive offerings" (in: HAMMOND & SCULLARD, Oxford classical dictionary, p. 1132-3).

O AMBIENTE RELIGIOSO 25

inúmeros templos, edifícios que, não raro, eram os maiores, mais sofisticados e mais caros das cidades. Era impossível visitar uma ci-dade da Era Romana sem se sentir necessariamente impactado pelo lugar reservado aos deuses. A arquitetura do mundo antigo que chegou até nós ainda reflete isso, conforme poderá atestar quem quer que visite a Acrópole de Atenas ou o Fórum de Roma. Essas estruturas eram feitas de pedras caras, geralmente pintadas e deco-radas com cores vivas, e eram sempre erguidas em lugares centrais e de destaque nas cidades. Além disso, a construção de novos templos e a reforma e ampliação dos templos já existentes foram frequentes em todo o período romano. Quem visitasse praticamente qualquer cidade romana nessa época notaria uma grande quantidade de pro-jetos em construção, muitos deles para fins religiosos.'

Havia também santuários fora das cidades. Eram locais tradi-cionais de devoção às divindades ou lugares em que devotos mais recentes se sentiram orientados por um deus ou deusa a erguer ali um santuário. Alguns deles eram grandes e bem imponentes e, ao que tudo indica, atraíram grandes contingentes de peregrinos às fes-tas especiais e aos dias santos associados às divindades ali cultuadas.

As cerimônias de devoção religiosa eram igualmente muito expressivas. Na verdade, seu propósito parece ter sido mesmo cha-mar atenção. Muitos deuses tinham cultos periódicos (geralmen-

te anuais) com procissões nas ruas, coros acompanhados de vários músicos, sacerdotes e outros devotos trajando vestimentas especiais das divindades homenageadas pela procissão, bem como encena-ções de rituais. Tudo isso atraía as multidões que vinham observar as atividades e participar delas. Às vezes, juntavam-se às festividades mímicos e outros artistas que encenavam os mitos associados aos deuses. Temos a descrição de uma procissão dessas no divertido conto clássico (por vezes obsceno) O asno de ouro, de Apuleio, do

5L. M. WHITE, Building God's house in the Roman world: architectural adap-tation among pagans, Jews, and Christians, p. 27-31.

26 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

segundo século d.C.6 O autor descreve com alguns detalhes uma procissão em honra a isis em que aparecem pessoas com fantasias diversas representando diferentes ocupações e papéis sociais; havia também animais, alguns deles vestidos como se fossem seres hu-manos; mulheres e homens em vestimentas cerimoniais; músicos; iniciados no culto da deusa de ambos os sexos; sacerdotes transpor-tando acessórios e símbolos cultuais, além de outros indivíduos e estátuas representando divindades diversas.

Havia templos com teatros anexos onde provavelmente eram encenadas histórias tradicionais das divindades, decerto durante os festivais mais importantes de cada deus. Era costume nessas cele-brações periódicas a realização de banquetes custeados por patro-nos abonados.

No caso de algumas divindades, pelo menos, havia também rituais diários, como os dedicados a fsis, de que temos notícia, e que compreendiam a abertura ritual dos templos da deusa pela ma-nhã e seu fechamento no final do dia, bem como banhos públicos e a paramentação de sua imagem, tudo isso acompanhado de um gestual elaborado e quase sempre com música e cânticos. Dado o grande número de divindades homenageadas na Era Romana, cada uma em ocasião e com cerimonial próprios, era possível assistir a celebrações religiosas notáveis em qualquer dia da semana, além de eventos maiores e mais elaborados várias vezes durante o ano.

Na Era Romana, a religião não era uma questão de foro ínti-mo apenas, mas também um aspecto visivelmente público da vida. A cerimônia religiosa tinha como finalidade deliberada atrair a atenção das pessoas e cativar toda a aldeia ou cidade. Na verdade, é provável que o número espantoso de eventos públicos fosse ex-plicitamente religioso em seu caráter, e que a maioria esmagadora de atividades e eventos religiosos fosse pública e expressasse a par-ticipação do indivíduo em seu núcleo familiar, em sua cidade e em

6V, p. ex., a tradução para o inglês feita por Robert Graves das Metamorfoses de Lúcio ou O asno de ouro, que recebeu o título The transformations of Lucius, otherwise known as the Golden Ass by Lucius Apuleius (p. 230-3).

O AMBIENTE RELIGIOSO

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sua relação com outras pessoas, bem como no oikoumene (do grego, "mundo", "império").

Diversidade

Além da ubiquidade e da importância da religião no período roma-no, é preciso levar em conta também sua diversidade. Para as pessoas da época, com exceção dos judeus e dos cristãos devotos, os deuses eram muitos, e o que poderíamos chamar de "divino" se mani-festava de formas diversas, havendo incontáveis seres divinos, todos eles, em princípio, válidos. Era piedoso quem se dispusesse a honrar todas essas manifestações da divindade de acordo com as tradições religiosas a elas associadas. Com exceção dos judeus, os grupos ét-nicos do mundo romano tinham sua coleção particular de deidades a ser reverenciadas. Algumas delas estavam particularmente ligadas a esta ou àquela cidade (Atena, por exemplo, estava associada a Ate-nas; Ártemis, a Éfeso) e eram reverenciadas como protetoras dessas cidades. O bem-estar das cidades dependia da veneração apropriada a suas divindades.

É importante também compreender que a honra dedicada às divindades tradicionais de forma alguma era impedimento para que os deuses de outros povos fossem igualmente tidos como válidos. Era perfeitamente aceitável que os grupos étnicos reverenciassem e continuassem a reverenciar seus deuses. A política oficial do Império Romano consistia em reconhecer e até mesmo apoiar a devoção religiosa tradicional de todos os povos aos quais sub-jugava. As autoridades romanas locais e as que por ali passavam demonstravam essa disposição visitando santuários importantes e fazendo oferendas em honra a suas divindades. Essa política romana estendia-se até mesmo à religião judaica, a despeito da recusa por parte desta em reverenciar outros deuses e de sua polêmica contra outras tradições religiosas, as quais qualificava de idólatras.

No ecúmeno romano, em que as pessoas viajavam por toda parte livremente, mudavam-se voluntariamente para fazer negócios, com-prar e vender, ou eram obrigadas a mudar em razão de conquistas ou

28 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

escravidão (e geralmente libertas pouco tempo depois), os deuses e as práticas religiosas de vários povos caminhavam lado a lado, sobretu-do nas grandes cidades. Imigrantes e até mesmo escravos geralmente tinham permissão para seguir as tradições religiosas de seu grupo étnico. Quando, além disso, essas pessoas desfrutavam de boas condi-ções econômicas, construíam santuários e templos para suas divinda-des tradicionais nas cidades e regiões para onde haviam se mudado. Assim, por exemplo, imigrantes egípcios erguiam santuários a Isis, enquanto os judeus da Diáspora construíam sinagogas.

A maneira muito transparente em que cada religião era pratica-da com todas as suas peculiaridades era sinal de que a diversidade reli-giosa e a complexidade das cidades romanas também eram elementos importantes. À medida que as pessoas faziam contato com gente de antecedentes variados, havia oportunidades e convites para a parti-cipação no culto formal e em práticas devocionais menos formais dirigidas a divindades distintas daquelas da tradição do grupo étni-co a que o indivíduo pertencia. Tais oportunidades eram geralmente bem-vindas e plenamente desfrutadas, sem a preocupação de que, com isso, a pessoa estivesse sendo infiel às suas obrigações religiosas pessoais. Tampouco tal atitude representava uma objeção à validade e às afirmações das divindades tradicionais de seu povo. Os visitantes participavam livremente das festividades religiosas das cidades e das regiões onde se encontravam sem nenhum escrúpulo de consciência.

É à luz dessa atitude receptiva e dessa curiosidade atenta à rica variedade das tradições e práticas religiosas à disposição nas cidades romanas que podemos compreender o fenômeno dos gentios que frequentavam as sinagogas da Diáspora, conforme descrito nos relatos das viagens de Paulo em Atos, bem como de indivíduos como Cornélio, que tinham até um interesse considerável pela religião judaica.' Os inúmeros convites e oportunidades que as cidades

'Atente, p. ex., para as referências, em Atos 13.16,48; 14.1; 17.1-5,12; 18.4, aos gentios nas sinagogas judaicas e para a descrição de Cornélio em Atos 10.1-5. Sobre a evidência dos prosélitos gentios e "tementes a Deus", v., de Levinskaya, The book of Acts in its Diaspora setting (p. 1-126).

O AMBIENTE RELIGIOSO

29

romanas ofereciam a quem desejasse participar de suas incontáveis atividades religiosas aparecem também nas instruções detalhadas de Paulo em 1Coríntios 8-10, em que o apóstolo responde a dúvidas sobre a participação dos cristãos no culto a outros deuses (10.1-22), se devem ou não aceitar o convite de seus conhecidos e familiares não-cristãos para que os acompanhem aos templos pagãos e par-ticipem de festividades religiosas (8.7-13), bem como jantar com não-cristãos em outras circunstâncias (10.27-30). Embora Paulo estabeleça algumas condições para que o cristão participe de re-feições na companhia de não-cristãos, ele se opõe completamente a que o cristão participe do culto pagão, a ponto de advertir aos crentes que se abstenham de qualquer refeição que esteja explici-tamente associada à oferta sacrificial a um deus. Cauteloso, Paulo mostra quanto ele se opõe ao compromisso dominante da diversi-dade religiosa e à consequente liberdade de participar das inúmeras cerimônias religiosas que caracterizavam o período romano.

Além dos inúmeros deuses associados às várias cidades, povos e regiões do ecúmeno romano, havia sempre uma miríade de seres

divinos com práticas devocionais próprias e que eram invocados especificamente em inúmeras esferas da vida, como mencionamos

anteriormente. Durante as refeições, eram comuns as pequenas li-bações oferecidas aos deuses do lar, que eram também reverencia-dos em santuários domésticos perante os quais a família realizava com frequência suas práticas devocionais. Divindades regionais ou das cidades eram reverenciadas pelo populacho, especialmente nas festas sazonais em que manifestavam sua lealdade aos deuses e de-les requisitavam que continuassem a favorecê-los. As divindades de cada guilda eram reverenciadas em suas reuniões e jantares. A par-

tir do governo de Júlio César, primeiramente no Oriente e depois também, aos poucos, no Ocidente, a deusa Roma (representante da Roma imperial), bem como o imperador, passaram a receber as honras que caracterizavam as práticas devocionais das antigas reli-giões (nos templos, no culto à sua imagem, com sacrifícios e hinos),

30 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

exprimindo assim lealdade a Roma e gratidão genuína pelos bene-fícios concedidos pelo governo romano.'

Além dos cultos públicos, havia também um sem-número de grupos voluntários ou privados que se dedicavam, por vezes, a uma divindade também adorada em circunstâncias mais solenes e públi-cas, mas que se dedicavam também, outras vezes, a deuses distin-tos daqueles específicos da religião pública da cidade ou da região. Essas celebrações particulares ocorriam muitas vezes nos lares dos membros mais ricos. A realização de jantares em grupo parece ter sido uma expressão frequente e essencial de sua identidade religiosa. Na verdade, às vezes os membros parecem provir em grande parte, ou totalmente, do núcleo doméstico ampliado (em que se incluíam, é claro, os escravos) de um indivíduo abonado que liderava o grupo (é interessante que, às vezes, esse líder era uma mulher rica).9

A Era Romana também se caracterizou pela disseminação não só para outras regiões, mas também para o exterior, do culto a algumas divindades que, embora fossem a princípio deuses locais ou heróis divinizados, ganharam grande fama e muitos seguido-res. Um exemplo citado com frequência é o de Isis, deusa egípcia de importância secundária a princípio, mas que alcançou relati-vo sucesso ao ser promovida a deusa de todo o ecúmeno.'° Nes-

se caso específico, deparamos com uma demonstração interessante da aceitação plena da diversidade nas tradições religiosas, uma vez que Isis passou a ser reverenciada como deusa por povos diversos sob diferentes nomes." Outro bom exemplo de tradição religiosa

'I.. R. TAYLOR, The divinity of the Roman enzperor. PRICE, Rituais and power: the Roman imperial cult in Asia Minor.

9L. M. WHITE, Buüding God's house, p. 26-59. l'EGAN, Isis: goddess of the oikoumene, in: L. W HURTADO, org., Goddesses

in religions and modern debate, p. 123-42. FERGUSON, Backgrounds of early Chris-tianity, p. 211-20. Hegedus propõe-se analisar a difusão geográfica do culto a Isis em todo o período romano.

"Um texto de Apuleio citado com muita frequência, O asno de ouro, apre-senta no livro 11 uma prece dirigida a Isis que a associa a várias figuras de deusas (p. ex., Ceres, Vênus, Proserpina). Para uma tradução da obra em língua inglesa, v. a de Robert Graves, The transfornzations of Lucius (p. 226-7).

O AMBIENTE RELIGIOSO

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específica que se disseminou para outras regiões e para o exterior é a do deus dos judeus, que sempre esteve explicitamente associado a este povo, mas parece ter atraído o interesse, em graus variados, de numerosos gentios, bem como de moradores de Roma, Antioquia, Alexandria e outras cidades em que houvesse a concentração de judeus da Diáspora." À medida que os deuses e as tradições de vá-rios povos entravam em contato uns com os outros num processo dinâmico e se espalhavam, fosse pela conquista, pelo comércio, pela imigração ou por outros meios, as pessoas tinham a oportunida-de de adotar práticas devocionais dirigidas a divindades novas para elas. Podemos dizer então que a associação religiosa voluntária cres-ceu no período romano."

Deparamos vez por outra com referências à Era Romana como um período de intensa propagação de seitas "orientais" e de um sem número de conversões às novas religiões importadas do Egito, da Síria e de outras localidades do Oriente distante. Cabem aqui duas advertências importantes.'4 Em primeiro lugar, são frágeis as evi-dências concretas de qualquer apropriação significativa de novas tradições religiosas importadas de uma região para outra. Parece que algumas divindades tiveram um sucesso razoável, tendo sido expor-tadas para além de sua região de origem. Em alguns casos, talvez por seu apelo exótico, elas teriam conseguido atrair a atenção de algu-mas pessoas com tempo e inclinação suficientes para diversificar sua dieta religiosa. Esses indivíduos geralmente provinham de classes de maior poder econômico, cujo interesse pelos deuses "estrangeiros" atraía a atenção (e, por vezes, as críticas) da elite literária, cujos escri-tos nos transmitiram essas informações. De modo geral, porém, os devotos das divindades importadas do Oriente parecem, de fato, ter

121). ex., de Levinskaya, The book of Acts (p. 19-126). inCLOPPENBORG & WILSON, orgs., Voluntary associations in the Graeco-

Roman world. '40 estudo clássico é o de Nock, Conpersion: the old and the neto in religion

from Alexander the Great to Augusthze of Hippo. Mais recentemente, v. a análise incisiva de MacMullen (Paganisrn, p. 94-112). Igualmente importante para minha discussão é The pagan God, de Teixidor (esp. p. 4-5, 144).

32 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

sido imigrantes (inclusive escravos) que trouxeram com eles os deu-ses de sua terra de origem — além, é claro, de seus descendentes e, não raro, seus respectivos cônjuges.15 O mitraísmo, como mostram alguns lugares e fontes romanas, não tem proeminência alguma nas áreas orientais onde supostamente teria surgido, e parece mais provável que tenha sido uma inovação dos romanos, provavelmente no Ocidente. Embora desfrutasse de alguma popularidade entre os militares e funcionários do governo do médio escalão, jamais foi realmente propagado entre o povo em geral.16

Em segundo lugar, mesmo quando alguém se tornava devoto de fsis ou de outra divindade importada, isso nunca era entendido como menosprezo e muito menos renúncia à devoção religiosa que se tinha anteriormente ou à devoção às práticas de outras religiões, como a dos ancestrais, ou às divindades da localidade ou cidade que antes o indivíduo cultuava. Em outras palavras, a difusão de novos deuses no período romano não acarretava necessariamente a "conversão" de antigas práticas religiosas em compromissos religio-sos novos e exclusivos. O interesse pelas divindades e pelos cultos importados era, em geral, simplesmente um passatempo religioso e espontâneo a mais que se somava às atividades e práticas religiosas mais abrangentes do indivíduo. Isso permite entender um pouco melhor por que Paulo achou necessário lidar com as dúvidas de quem queria saber se os cristãos gentios deveriam continuar a parti-cipar dos cultos pagãos e dos eventos tão frequentes em sua home-nagem. O exclusivismo que se esperava dos convertidos cristãos, a renúncia a todas as demais atividades cerimoniais dirigidas a outros deuses, só encontrava paralelo nas demandas feitas aos prosélitos da religião judaica. Nisto, as exigências tanto de judeus quanto de cristãos se opunham às atitudes religiosas da Era Romana.

'51). ex., as evidências deixadas pelas inscrições de devotos de Ísis na Itália e na Sicília citadas em Paganism (MAcMuLLEN, p. 14-5).

16ULANSEY, The origins of the Mithraic mysteries; idem Solving the Mithraic mysteries, Biblical Archaeology Review, v. 20, p. 41-53, Sept./Oct. 1994. BECK, Mithraism since Franz Cumont, in: TEMPORINI & HAASE, orgs., Aufstieg und Niedergang der romischen Welt, p. 2003-215.

O AMBIENTE RELIGIOSO 33

As evidências mostram que, embora as divindades, as tradições e as práticas religiosas passassem às vezes por reformulações e mu-danças e embora certos deuses parecessem ter sido mais favorecidos dessa ou daquela vez, nessa área ou em outra e entre esse ou aquele grupo de pessoas, em geral a religião pagã não sofreu mudanças significativas. Isso se dava principalmente entre o público de modo geral, conforme mostram as evidências deixadas em inscrições e outros dados arqueológicos. Não há indicação alguma de que te-nha havido um declínio generalizado do entusiasmo religioso pelos deuses e pelas práticas devocionais a eles associadas, tampouco hou-ve sinal algum de um mal-estar religioso ou de insatisfação com a religião tradicional. Têm pouca base as afirmações em contrário, bem como as inúmeras referências à "ansiedade" pagã a que se re-corre às vezes para explicar o sucesso do cristianismo primitivo."

De igual modo, são frágeis as bases a que por vezes recorrem os estudiosos quando invocam uma "inclinação" ou "tendência" ao monoteísmo no período romano. Sem dúvida, entre alguns auto-res sofisticados do mundo antigo houve tentativas de postular uma unidade por trás da diversidade de deuses. Dificilmente, porém, po-demos identificar tal tentativa com o monoteísmo que conhecemos nas formas clássicas do judaísmo, cristianismo ou islamismo, em que uma divindade é adorada em detrimento de todas as demais. Os autores pagãos em questão continuaram a afirmar a validade de todos os deuses e a adoração a todos eles. Para esses autores, os deuses eram expressão e forma de alguma essência divina comum que os unia. Além disso, advogavam a adoração dos deuses como reverência devida a todas essas manifestações válidas da essência divina. Em suma, as poucas expressões de um suposto monoteís-mo jamais serviram de base para qualquer mudança significativa na prática religiosa e jamais desafiaram as tradições e as devoções politeístas da época. Devemos entender as declarações de unidade divina como tentativas de encontrar alguma coerência abstrata na

"TEIXIDOR, The pagan God, p. 4-5. V tb. a crítica mais extensa de MacMullen a Cumont e outros (Paganism, p. 112-30).

34 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

diversidade de deuses e nas tradições religiosas que se tornaram tão óbvias no Império Romano à medida que pessoas, em grande nú-mero, e suas respectivas tradições entravam em contato umas com as outras. Todavia, não há diferença visível nas práticas religiosas de quaisquer daqueles indivíduos que postulavam a unidade divina por

trás dos muitos deuses."

Lugares sagrados

Como em quase todos os tempos e culturas, também no mundo romano a prática da religião estava intimamente associada aos luga-res sagrados. Embora os deuses pudessem ser invocados sempre que houvesse necessidade, acreditava-se que era mais eficaz fazê-lo nos templos, santuários e outros lugares sagrados aos quais estavam mais diretamente associados. A realização de sacrifícios ocorria com mais frequência nesses lugares, e, em alguns casos, era proibido oferecê-los em outra parte. Pelo que sabemos, no caso dos judeus mais devotos, por exemplo, o templo de Jerusalém era o único lugar em que se podia oferecer sacrifício de sangue ao Deus de Israel. As demais divindades da Era Romana também tinham templos e santuários em sua honra. Aliás, seria estranho se uma divindade não tivesse seu lugar santo.

Em alguns casos, esses locais situavam-se onde, segundo a tra-dição, essa ou aquela divindade aparecera a um devoto. A teofania

santificava posteriormente o local em honra à divindade. Às vezes, a aparição do deus ou deusa era acompanhada de relatos em que a divindade dava instruções para a santificação do lugar, talvez até para a construção de um santuário. Como já mencionei, no caso dos deuses das cidades, os templos eram localizados em áreas cen-trais e de destaque, manifestando dessa forma a suma importância das divindades nas cidades que as reverenciavam de modo especial

como protetoras e despenseiras de prosperidade e bem-estar.

I8V., em One God, one Lord: early Christian devotion and ancient jetvish

monotheism (p. 129-30), referências a afirmações acadêmicas atuais sobre o "monoteísmo" pagão, além de meus comentários.

O AMBIENTE RELIGIOSO 35

Quando as cidades ou distritos queriam expressar devoção ao imperador romano, pediam sua permissão para erigir um templo dedicado a ele ou para colocar uma imagem sua ao lado da imagem da deusa Roma nos templos erigidos em sua honra, tornando assim o templo um lugar sagrado tanto para Roma quanto para o impe-rador divino. Essa atitude deixa clara a ideia de que as divindades deveriam ter seu lugar sagrado onde pudessem ser adoradas com toda a honra que lhes era devida.

Já me referi ao volume considerável de espaço cívico da Era

Romana ocupado pelos templos e a despesa enorme que represen-tavam. Cumpre lembrar que em qualquer cidade da época havia numerosos templos e santuários dedicados a divindades diversas. É o que diz, por exemplo, MacMullen sobre as cidades italianas:

A típica cidade romana E...] tinha de reservar espaço para os tem-plos da Tríade Capitolina (Júpiter, Juno e Minerva), além de Mer-cúrio, Ísis e Serápis, Apolo, Líber Páter, Hércules, Marte, Vênus, Vulcano e Ceres.'`'

Esses templos localizados nas cidades eram, no mínimo, tão co-muns e tão proeminentes quanto as inúmeras igrejas majestosas que dominaram as cidades europeias até o realce recente das torres de escritórios e de instituições financeiras na silhueta de concreto de várias cidades.

Em muitos casos, esses templos monumentais eram complexos onde havia inúmeras instalações que serviam a necessidades diver-sas. Cito MacMullen novamente:

Além de centros religiosos, eram também centros culturais com zoológicos, aviários, museus, galerias de arte, local para concertos e preleções públicas, ou o equivalente de todas essas coisas; havia ainda jardins botânicos...'-"

' 9Paganism, p. 1. "P. 35. Toda a discussão de MacMullen em Paganism (p. 34-42) apresenta

um insOt valioso sobre os lugares sagrados da era romana c sua importância para a vida religiosa e cultural da época.

36 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Isso significa que os lugares sagrados dedicados aos deuses não eram apenas locais de grande evidência, mas também muito frequenta-dos, tanto por seu apelo obviamente religioso quanto pelo que pro-porcionavam do ponto de vista social e cultural. De modo especial, os centros de culto eram lugares onde as pessoas podiam comer e beber facilmente juntas. Vou me estender mais sobre as refeições religiosas posteriormente. Neste momento gostaria de salientar que os templos dos deuses pagãos também eram muitas vezes usados como locais muito cômodos para a realização de jantares sociais, não raro havendo espaços anexos ao santuário central que podiam ser usados para esse objetivo (eram provavelmente alugados).'' Portanto, os templos da Era Romana devem ser entendidos, ao me-nos em parte, como elementos de grande importância na vida ur-bana, porque as pessoas os frequentavam movidas por propósitos diversos, aliando assim facilmente as atividades da vida religiosa e social num mesmo recinto. Gastava-se muito com os santuários e os templos, e boa parte da vida das pessoas estava ligada a eles.

Imagens

Tão comuns quanto os templos e os santuários eram as imagens cultuais dos deuses, sendo os templos como que casas das divinda-des conforme representadas por sua imagem cultual. Vemos aqui, uma vez mais, a natureza acentuadamente visual do ambiente re-ligioso da Era Romana. Era tido como perfeitamente natural ter e usar imagens que representassem os deuses adorados. Como já afirmamos, a devoção ao imperador divino que ia ganhando força nos primórdios do período imperial tem valor especial para nós por

-'Como observa MacMullen (Paganismo, p. 36), mesmo nas casas mais amplas do período romano teria sido difícil acomodar mais de dez pessoas ou algo assim para um banquete. As casas da maioria da população não tinham um cômodo específico para refeições. Os templos ofereciam espaços e mesas onde amigos e fa-mílias, guildas e outros grupos podiam comer juntos. V tb., em St. Paul's Corinth: texts and archaeology, a discussão e os desenhos das estruturas dos templos em que são retratadas essas salas de jantar (MuRPHv-O'CoNNoR, p. 161-7).

O AMBIENTE RELIGIOSO 37

ilustrar a importância das imagens cultuais. Aos pedidos feitos ao imperador por uma cidade ou região para que lhes fosse permitido homenageá-lo com uma cerimônia religiosa, acrescentava-se tam-bém o pedido de permissão para a construção de uma imagem do imperador que receberia honras cultuais.'' 2 Era simplesmente ini-maginável reverenciar uma figura qualquer como divindade sem que essa reverência fosse marcada pela confecção e pelo uso de imagens sagradas.

Os cristãos primitivos herdaram da tradição judaica da época a proibição do culto às imagens. Por esse motivo, entre outros, seu culto pareceu estranho a seus contemporâneos do mundo romano. Os filósofos podiam argumentar que os deuses não estavam confi-nados às imagens e que deveriam ser concebidos como substâncias espirituais, sendo as imagens nada mais que objetos materiais me-díocres que não deveriam ser confundidos com eles. Contudo, esses pensadores sofisticados não advogavam o abandono dos templos e do culto das imagens; na verdade, ratificavam totalmente as ima-gens, proporcionando apenas uma compreensão refinada da relação metafísica entre elas e as divindades por elas representadas. Diziam que as imagens funcionavam meramente como objetos que facili-tavam a devoção aos deuses, constituindo um foco tangível e loca-lizado de adoração."

Todavia, não devemos concluir que a proibição imposta por judeus e cristãos ao culto de imagens significasse o banimento absoluto de todas elas nos lugares de adoração. A partir das escava-ções feitas no sítio arqueológico de Dura Europos, tornou-se cada vez mais evidente a utilização abundante de imagens nas antigas

*0 IN que tange à devoção ao imperador, além das obras de Taylor e de Price citadas anteriormente, v., de Schowalter, The emperor and the gods. Para uma bibliografia mais extensa, v., de Herz, "Bibliographie zum rõmischen Kaiserkult" (in: TEMPORINI & HAASE, orgs., Aufstieg und Niedergang).

23BEVAN, Holy images: an inquiry into idolatry and image-worship in Ancient paganism and in Christianity. Quanto à atitude dos judeus da Era Ro-mana no tocante às imagens cultuais dos gentios, v., p. ex., o Decálogo, de Filo (66-7); v. tb. Sabedoria de Salomão 13 e 14.

38 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

sinagogas judaicas, inclusive a representação objetiva de persona-gens bíblicas e de símbolos que provavelmente se referiam a Deus (i.e., imagens solares).24 A mais antiga arte cristã que chegou até nós data do terceiro século, ou talvez de fins do segundo século, e traz representações de Jesus. Contudo, não parece que funcionasse da mesma forma que as imagens cultuais dos deuses no contexto re-ligioso geral. Em outras palavras, as imagens cristãs primitivas não parecem ter servido de objeto de culto. Essa ausência de imagens cultuais no judaísmo e no cristianismo, bem como sua recusa em prestar veneração às imagens de outros deuses, foi uma das princi-pais razões pelas quais seus adeptos foram acusados de "ateísmo". O uso generalizado de imagens cultuais na religião da Era Romana fez que judeus e cristãos, inclusive no templo de Jerusalém, se posi-cionassem, por uma questão de consciência, contra essa caracterís-tica tão relevante daquele contexto religioso.

À luz do papel de destaque do culto às imagens e de sua importância, é possível entender melhor o significado das referências honoríficas a Cristo como imagem (eikon) de Deus (p. ex., 2Co 4.4; Cl 1.15). Numa cultura em que as imagens dos deuses serviam de manifestação de sua presença e em que reverenciá-las era reveren-ciar os deuses, alçar Cristo à condição de imagem do Deus vivo e verdadeiro sem dúvida alguma era tê-lo em alta estima e possi-velmente deixava implícito aí um desafio às imagens cultuais da-quele contexto religioso. As referências a Cristo como imagem de Deus também são reflexo da devoção cultual que lhe era conferida e eram entendidas, ao mesmo tempo, como oferta feita igualmente a Deus-"Pai".

24HOPKINS, The discovery of Dura Europos. BICKERMAN, Symbolism in the Dura Synagogue, in: BICKERMAN, Studies in _Jewish and Christian history. HACHLILI, Ancient jewish art and arcllaeology in the land of Israel; idem Early Jewish art and architecture, in: D. N. FREEDMAN, org., Ancilar Bible dictionary. OVADIAH, The art of the ancient synagogues in Israel, in: URMAN & FLESHER,

orgs., Ancient synagogues: historical analysis and archaeological discovery. "Sobre o posicionamento dos cristãos primitivos em relação ao uso de ima-

gens na igreja, v., de Finney, The invisible God: the earliest Christians on art.

O AMBIENTE RELIGIOSO 39

Rituais

É difícil imaginar a prática da religião sem algum tipo de ritual, atos revestidos de significado sagrado especial e que expressem uma piedade característica desse ou daquele grupo religioso ou tradição. Na religião da Era Romana, como em quase todas as religiões anti-gas, havia uma rica variedade de ações rituais para ocasiões diversas e inúmeras divindades.

O sacrificio era elemento comum do ritual de adoração da maio-ria das divindades, incluindo-se, é claro, o Deus de Israel. Em razão do desenvolvimento por que passou a semântica do termo "sacrifí-cio", que adquiriu a conotação de perda sofrida por causa de alguém ou de qualquer coisa, com ênfase no custo incorrido por quem faz o sacrifício, é preciso deixar claro que, no mundo antigo, fazer um sa-crifício era fazer uma oferta, oferecer um presente aos deuses, e tinha significado muito positivo e até mesmo de júbilo.26 Na maior parte dos casos, por exemplo, as ofertas sacrificiais parecem ter sido feitas em agradecimento a um deus por bênçãos recebidas, geralmente em resposta a uma oração. Também o sacrifício a favor de grupos (p. ex., cidades, famílias e outros) era, tudo indica, um evento alegre, em que se fazia à divindade uma oferenda de gratidão.

Cumpre notar, evidentemente, que na maior parte dos sacri-fícios de animais a festa era um componente do ritual em que a vítima sacrificada era o prato principal. Na verdade, para a maior parte da população dos tempos romanos, uma das poucas oportu-nidades para comer carne era durante os eventos em que os ricos faziam sacrifícios em quantidade suficiente para um grande núme-ro de participantes, fossem eles membros da família, da guilda ou do populacho da cidade.'' Parte da vítima sacrificial era oferecida ao

"YERIC_ES, Sacrifice in Greek and Roman religions and early judaism. V tb. "Sacrifice" (in: HAMMOND & SCULLARD, Oxford classical dictionary, p. 943-5.)

ANDERSON, Sacrifice and sacrificial offerings (oT), in: D. N. FREEDMAN, org., Anchor Bible dictionary.

"A maior parte das pessoas raramente comia carne ou bebia vinho em exces-so, exceto quando o contexto religioso permitia" (MACMULLEN, Paganisrn, p. 40).

40 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

deus, isto é, ao templo e também aos sacerdotes. Prova do entusias-mo pelo sacrifício de animais era o fato de que, com frequência, os templos não davam conta de todas as ofertas e acabavam por vender o excesso a mascates, que o revendiam no mercado ao público em geral. Isso deixava inquietos alguns crentes de Corinto, que ficavam em dúvida se deviam comprar e comer a carne à venda no mercado, porque era possível que tivesse sido anteriormente consagrada a um deus pagão. A orientação de Paulo em 1Coríntios 10.25,26 de que podiam comê-la em sã consciência foi dada para tranquilizá-los.

Além de não possuírem templo algum e de não cultuarem ima-gens, os cristãos primitivos não ofereciam sacrifícios a seu Deus, e nisso também pareceu a seus vizinhos pagãos que eles formavam um grupo religioso estranho. A ausência desses componentes im-portantes e tão "normais" da religião explica, em parte, por que alguns observadores externos consideravam os grupos cristãos mais uma associação filosófica que um grupo religioso propriamente di-to.2' Contribuiu ainda mais para essa impressão "escolástica" o fato de que os cristãos haviam tomado da sinagoga judaica a prática da leitura das Escrituras do Antigo Testamento juntamente com a lei-tura dos escritos cristãos (p. ex., as cartas de Paulo), além de sermões e discursos sobre tópicos religiosos que se tornaram componentes regulares de seus cultos.

É evidente que os primeiros cristãos seguiam um ritual. A exem-plo de alguns outros grupos religiosos daquele tempo, tinham um ritual de iniciação — no caso, o batismo —, e o revestiam de grande significado.29 Os rituais de iniciação dos grupos religiosos pagãos variavam, mas eram sempre elaborados e exuberantes e, por vezes, deliberadamente exóticos. Era o caso sobretudo dos grupos religio-

28JuDGE, The early Christians as a scholastic community, /mimai of Religious History, v. 1, p. 15, 125-37, 1960/1961.

"P. ex., de Cullmann, Baptisrn in the New Testament, e de Beasley-Murray, Baptism in the Nev Testament. Para comparações entre os rituais cristãos e pagãos, v., de Nock, Early gentile Christianity and its Hellenistic background (esp. p. 109-45). WEDDERBURN, Baptism and resurrection: studies in Pauline theology against its Graeco-Roman background.

O AMBIENTE RELIGIOSO 41

sos conhecidos como "religiões de mistério".'" Muitas vezes, as ce-

rimônias eram realizadas (ou atingiam seu momento culminante) à

noite, à luz de tochas, com os sacerdotes devidamente paramentados,

os objetos sagrados expostos à vista de todos, incenso, música ou sons

altos orquestrados, declamação de frases de efeito e gestos especiais

com que, por exemplo, os iniciados eram despidos e posteriormente

vestidos. O objetivo imediato parece ter sido criar uma experiência

impressionante e memorável para iniciados e circunstantes. Embora

possa ter havido alguns rituais desse tipo ou com alguns desses ele-

mentos, os quais eram reservados para os iniciados e membros do

culto, não devemos imaginar que os chamados "mistérios" eram as-

sim tão secretos quanto muitas vezes se imagina. Os mistérios eleu-

sinos, por exemplo, eram celebrados em muitas cerimônias públicas.

Também no caso desses grupos, um dos objetivos dos rituais era

atrair as multidões e, desse modo, recrutar devotos ou, pelo menos,

promover a fama de seu deus.31 Assim como outros aspectos da fé

cristã, o rito primitivo de iniciação ao cristianismo deve ter parecido bem simples, sem nenhuma sofisticação, e pouco atraente para os

observadores pagãos habituados a eventos mais elaborados. É verda-

de que havia na época várias outras associações religiosas que se reu-

niam nos lares, todas elas pequenas e sem os ornamentos dos eventos

cultuais de caráter mais público, lembrando assim, sob alguns aspec-

tos, os grupos cristãos. Todavia, diferentemente dos encontros de

adoração dos cristãos, essas associações cultuais privadas jamais pre-

tenderam substituir as várias outras atividades cultuais do contexto

religioso pagão da época. O que torna o cristianismo aparentemente

distinto dos demais grupos é precisamente essa postura diferenciada

de cultos caseiros comparativamente mais despojados do que a vida

ritualística tão expressiva daquele contexto.

30M. W. Meyer, em The ancient mysteries: a sourcebook, apresenta uma intro-dução e uma antologia de textos antigos traduzidos.

31MAcMuLLEN, Paganisni, p. 23-4. 32L. M. WHITE, Bbidding God's pouse, p. 31-40.

42 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Refeições

Já afirmei em vários lugares aqui que as refeições eram um in-grediente importante da religião na Era Romana.33 Como já foi mencionado, o sacrifício sempre era acompanhado de uma refeição partilhada pelos devotos, e, ao que tudo indica, todos os grupos religiosos conhecidos tinham refeições sagradas que conferiam ex-pressão muito significativa e especial a sua piedade compartilhada. Contudo, é preciso deixar claro que essa piedade à mesa não era de forma alguma solene. A ocasião era bastante festiva; portanto, comia-se e bebia-se com muito entusiasmo e em grandes quantida-des. Tanto é assim, que uma das regras a ser observadas no momen-to em que se entrava em alguns santuários pagãos era a advertência para que o conviva não vomitasse seu vinho no recinto sagrado — o que mostra muito bem o que se passava nessas ocasiões!"

Entre as várias festas sagradas, havia as realizadas em honra à ci-dade ou aos deuses locais, abertas a grandes contingentes da popu-lação, havia as destinadas aos iniciados apenas e havia os banquetes privados para somente convidados. Mencionei anteriormente que, de modo especial nas cidades, as pessoas tinham a oportunidade de participar de vários grupos religiosos, ou eram convidadas a fazê-lo, muitas vezes participando de refeições consagradas a esse ou àquele deus. Embora a maior parte desses convites provavelmente fosse feita oralmente, chegaram-nos exemplares escritos da Anti-guidade. Alguns dos convites são para jantares em salas anexas ao templo do deus e outros em casas particulares (ambos os tipos de cenários geralmente acomodavam grupos de oito a doze pessoas). É consenso entre os estudiosos que em todos esses casos as refei-ções em questão tinham significado e caráter religioso. Na verdade, parece que o deus em cuja honra a refeição era servida seria um dos

"D. E. SMITH, Graeco-Roman meal customs e Graeco-Roman sacred meais, in: D. N. FREEDMAN, org., Anchor Bible dictionary.

34MAcMuLLEN, Paganism, F 12, 146 (nota 58). "Horsley, em "Invitations to the kline of Sarapis" (in: HORSLEY, org., New

docurnents illustrating early Christianity, p. 5-9), apresenta uma excelente discussão por meio de textos e traduções.

O AMBIENTE RELIGIOSO 43

convivas à mesa participando de um modo espiritual do banquete, provavelmente como anfitrião ou convidado de honra.36 Tanto isso é verdade, que em um dos convites ainda existentes o próprio deus Serápis é quem convida!" A ideia de que os deuses estavam presen-tes nesses jantares pode estar por trás das advertências de Paulo aos cristãos de Corinto de que se abstivessem do "cálice dos demônios" ou da "mesa dos demônios" (1Co 10.20,21), conforme ele se refere pejorativamente às festas em honra aos deuses pagãos.38

A refeição sagrada mais conhecida dos judeus é, naturalmen-te, a da Festa da Páscoa." Ela também deveria ser celebrada com espírito festivo, e é possível que, além do cântico de salmos e da postura inclinada requerida à mesa, a orientação rabínica tardia de que na Páscoa fossem servidos quatro cálices de vinho preserva a natureza festiva da ocasião conforme celebrada no período do Se-gundo Templo.46 O local por excelência para celebração da Páscoa era Jerusalém, pelo menos enquanto o templo permaneceu de pé, mas havia outras oportunidades para que os judeus devotos expres-sassem sua fé em refeições comunitárias (p. ex., nas Luas Novas) sem que tivessem de ir a Jerusalém. A comunidade de Cunrã tinha sua refeição comunitária própria, com significado religioso espe-cial, celebrada num espírito de muita alegria.4' Sem dúvida, é mui-to provável que as refeições sagradas dos judeus fossem celebradas

"V a discussão dos textos e representações visuais cm "Invitations", de Horsley (p. 6, 8).

"Lê-se em um texto do Oxirrinco: "O deus o convida a um banquete que ocorrerá no Thoereion, na hora nona". Texto e tradução em "Invitations", de Horsley (p. 5).

"O comentário de Paulo sobre o convite feito pelos descrentes para as refei-ções que ofereciam (E'i -rtç KGXEi iipék Tc3v Crri.crtwv; 1Co 10.27) lembra a forma dos convites escritos, como observou Horsley ("Invitations", p. 9).

39BoxsER, Unleavened Bread and Passover, Feasts of, in: D. N. FREEDMAN, org., Anchor Bible dictionary.

"V análise recente de vários tipos de refeições judaicas que formariam o contexto dos relatos da ceia do Senhor nos Evangelhos por Kodell (The Eucharist Ur the New Testament, p. 38-52).

41K. G. KUHN, Ender:vartung und gegenwèirtiges Heil: Untersuchungen zu den Gemeindeliedern von Qumran.

44 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

com menos excessos no volume de bebida consumida e no com-portamento dos participantes, ao contrário do que parece ter sido a regra nas festas pagãs, em que era necessário um esforço consciente maior de advertência nesse sentido. Mas, com ou sem tais excessos, a refeição sagrada da Antiguidade era uma ocasião social alegre e não se percebia tensão alguma entre o caráter religioso da refeição ao deus e sua dimensão social.

Dada a presença generalizada das refeições no contexto reli-gioso da época, é compreensível que nos círculos cristãos primitivos a refeição sagrada fosse um traço típico da vida devocional coletiva. Essas refeições de comunhão cristã eram celebradas nas casas dos crentes em que houvesse espaço para acomodá-los (é importante frisar novamente que a maior parte das casas não teria acomoda-ções adequadas para jantares comunitários em que houvesse mais de oito a dez pessoas).

A vida religiosa dos judeus Embora já tenhamos feito algumas breves referências à religião judaica anteriormente, gostaria agora de me estender um pouco mais no assunto. Dada a importância da religião dos judeus para as origens do cristianismo, vale a pena destacar essa faceta do con-texto religioso romano e dar a ela atenção especial. Reitero que terei de ser parcial e me dedicar a certas características da prática da piedade judaica no período inicial do Império Romano correspon-dente às origens do cristianismo.42

'Embora haja muitos estudos sobre a religião judaica no período, a maioria se ocupa principalmente da literatura, das crenças, festas e instituições, tendo pouco que dizer objetivamente sobre a prática da piedade judaica. São exceções Sanders (Judaism: practice and belief, 63 BCE-66 ca); vários capítulos em The Jewish people in the first century: historical geography, political history, social, cultural and religious life and institutions, de Safrai e Stern; The history of the Jewish people in the age of Jesus Christ, de Schürer (3/1, p. 138-49). Faith and piety in early Judaism: texts and documents, de Nickelsburg e Stone, é uma antologia muito útil que apresenta algumas crenças e certos aspectos da prática religiosa, porém surpreendentemente pouco dos aspectos práticos, se levarmos em conta o título original da obra: Fé e piedade no judaísmo primitivo.

O AMBIENTE RELIGIOSO 45

Já fizemos referência a duas características da antiga religião judaica que a distinguiam do contexto religioso romano em geral: a ausência do culto a imagens e a exclusividade exigida. Essas duas características foram notadas por observadores pagãos da época. Nem nas sinagogas, nem no templo de Jerusalém, onde havia ofer-ta de sacrifícios, se viam imagens do Deus de Israel a ser veneradas como eram veneradas as imagens cultuais típicas da religião da Era Romana. Os pagãos sempre acharam isso muito curioso.

A exclusividade da religião dos judeus era mais que mera curio-sidade: era vista como comportamento explicitamente antissocial. Deve ter tido, sem dúvida alguma, efeitos profundos e inevitáveis sobre as interações sociais dos judeus devotos com os não-judeus da Diáspora, em razão dessa ligação com os deuses presentes prati-camente em todas as ocasiões sociais. Alguns judeus simplesmente assimilaram a prática pagã, e certamente muitos outros assumiram vários graus de transigência e acomodação. Contudo, tanto judeus quanto não-judeus sabiam perfeitamente que a fidelidade à reli-gião judaica vinha acompanhada de escrúpulos profundos acerca da participação no culto a outros deuses.

Além disso, havia também muito escrúpulo em relação à re-verência descabida ao séquito celestial divino, ou a outros agentes quaisquer de Deus, como os venerados patriarcas (p. ex., Moisés), ou os messias. O "monoteísmo" judaico acolhia perfeitamente uma variedade de seres muito exaltados e poderosos além de Deus, mas a adoração cultual (i.e., a oração e o louvor públicos pela comunidade e, é claro, o sacrifício) era sempre reservada somente a Deus.43

Duas instituições principais eram responsáveis pela expressão coletiva da religião judaica nesse período: o templo de Jerusalém e a sinagoga. Para a maior parte dos judeus, o templo de Jerusa-lém era o único lugar em que se podiam genuinamente oferecer sacrifícios a Deus. Milhares de judeus de outras regiões da Pales-tina romana e da Diáspora faziam peregrinações a Jerusalém para

131-1uRTADo, First-century Jewish monotheism, journa/for the Study of the New Testament, v. 71, p. 3-26, 1988.

46 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

participar de uma ou mais ocasiões festivas: Páscoa, Primícias (Pentecostes) e Tendas (Sukkoth).44 Os judeus que não podiam ir a Jerusalém ainda assim participavam da manutenção do templo e colaboravam com ela mediante um imposto anual (contribuição de meio siclo requerida de todos os adultos do sexo masculino, reco-lhida em várias cidades da Diáspora e levada para Jerusalém).

Contudo, para a maior parte dos judeus, a expressão e a práti-ca coletivas da religião, mais comuns para eles, ocorriam em suas sinagogas e famílias.45 Principalmente na Diáspora, onde os judeus eram minoria e sua identidade religiosa estava sob pressão constan-te para que assimilassem a cultura religiosa dominante, é provável que as sinagogas tivessem um papel importante na manutenção de algum nível de solidariedade religiosa entre os judeus.46 Os roma-nos costumavam conceder direitos especiais aos judeus da Diáspora; entre eles, o de se reunirem e praticarem seus costumes religiosos ancestrais.47 Portanto, a sinagoga, principal expressão da identidade religiosa coletiva dos judeus, deve ter um forte significado étnico, político, social e religioso.

'Em relação ao templo e a seu funcionamento, v. Judaistn, de Sanders

(p. 47-118); "The Temple", de Safrai (in: SAFRAI & STERN, The Jewish people, p. 865-907); The religious world of Jesus: an introduction to second temple Palestinian Judaism, de E J. Murphy (p. 71-92); Jerusalém no tempo de Jesus, de Jeremias;

History of the Jewish people, de Schürer (v. 2, p. 237-313); The Jewish Temple: a non-biblical sourcebook, de Hayward. Parece que para a seita de Cunrã o templo

de Jerusalém caíra sob a administração dúbia dos sacerdotes, os quais seguiam

um calendário religioso incorreto de eventos e sacrifícios sagrados de validade

questionável. Essa postura não era comum entre os judeus piedosos da época.

Jerusalém conservava um significado especial, e o grupo de Cunrã aguardava

uma purificação escatológica com um novo templo, sacrifícios válidos, bem

como uma liderança sacerdotal e um calendário legítimos. V, p. ex., de Schiffman,

Reclaiming the Dead Sea scrolls (p. 262-8, 385-94). 45SCHIffMAN, Reclaimin' the Dead Sea scrolls, p. 423-63. SAFRAI, The syna-

gogue, in: SAFRAI & STERN, The Jewish people, p. 908-44. URMAN & FLESHER, Ancient synagogues.

46P ex., "Synagogues as `houses of prayee and 'holy places`, in the Jewish

communities ofHellenistic and Roman Egypt", de Kasher (in: URMAN & FLESHER,

orgs., Ancient synagogues). 47Em Antiq. 14.213-64, Josefo apresenta diversos decretos romanos que ga-

rantem ou ratificam direitos concedidos aos judeus em várias cidades e distritos.

O AMBIENTE RELIGIOSO 47

A palavra "sinagoga" vem do grego synagoge e significa "reu-nião", porém o termo grego mais antigo usado para se referir aos locais das reuniões religiosas dos judeus da Diáspora é proseuche,

"[lugar de] oração", indicando que a adoração a Deus era o prin-cipal objetivo das reuniões realizadas nesses lugares. É possível que tenha havido algumas diferenças significativas na prática das sina-gogas da Palestina e da Diáspora, porém nossa principal preocu-pação aqui é com o contexto da Diáspora, onde inúmeros grupos de cristãos primitivos (constituídos por judeus cristãos ou cristãos gentios) tiveram contato com a prática judaica.

Não havia nenhum livro de oração padronizado ou liturgia a ser seguida na sinagoga no período do Segundo Templo e não havia orações fixas ou um lecionário padronizado, mas provavel-mente havia práticas que foram se tornando convencionais ao lon-go do tempo. Afinal de contas, já no primeiro século as sinagogas judaicas faziam parte da vida dos judeus da Diáspora, e em alguns centros isso já ocorria havia pelo menos duzentos anos ou mais." Portanto, as orações feitas nas sinagogas em vários lugares podiam muito bem ter sido marcadas por temas amplamente difundidos, como os que foram posteriormente padronizados nas Dezoito bên-

çãos, que se tornaram a oração principal da liturgia sinagoga1.49 Ações de graças a Deus por seus dons e misericórdias e petições de misericórdia perene sobre Israel eram provavelmente bem comuns.

"V, p. ex., de Griffiths, "Egypt and the rire of the synagogue" (in: URMAN

& FLESHER, orgs., Ancient synagogues, p. 3-16). 49Em relação às origens e ao desenvolvimento da liturgia na sinagoga judai-

ca, v., de Elbogen, Der jüdische Gottesdienst in seiner geschichtlichen Entwicklung;

e agora, de Reif, Judaism alui Hebreu, prayer: new perspectives on Jelvish liturgical history. Sobre antigas evidências em torno da oração sinagoga], v. tb., de Talmon, "The emergente of institutionalised prayer in Israel in the light of the Qumran literature" (in: DELCOR, org., Qumran: sa piété, sa théologie et sa milieu) e, de Falk, "Jewish prayer literature and the Jerusalem church in Acts" (in: BAUCKHAM,

org., The book of Acts in lis first century setting). Para unia introdução à oração judaica tradicional, v., de Reuven Kimelman, "The Shema and the Amidah: rab-binic prayer" (in: KILEY, org., Prayer from Alexander to Constantine: a critical anthology, p. 108-20).

48 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

É possível entender um pouco melhor como eram as orações devocionais examinando-se as orações registradas em vários textos judaicos escritos ou usados no período do Segundo Templo (p. ex., Dn 9.4-19; Tobias 3.1-6,11-15; Judite 9.2-14).'"

O Sheiná, a confissão de fé que começa com as célebres pa-lavras "Ouve, ó Israel: o SENHOR nosso Deus é o único SENHOR", baseada em Deuteronômio 6.4-9 e 11.13-21 e Números 15.37-41, era provavelmente recitada nas sinagogas (se em todas, onde quer que estivessem localizadas, não sabemos)." Essa confissão expressa-va o monoteísmo exclusivista dos judeus devotos da época, como já observamos, e constituía, portanto, uma identificação litúrgica fun-damental da identidade religiosa dos judeus em oposição à grande diversidade religiosa do período romano.''- O papiro Nash indica o uso catequético ou litúrgico do Shemá no Egito bem antes do aparecimento do cristianismo.';

É provável também que houvesse cânticos ou recitação dos salmos bíblicos e talvez outras composições parecidas com as que se encontram no Saltério, conforme se vê no material de Cunrã (no rolo de hinos e nos salmos extracanônicos)." Especialmente em ocasiões em que se celebravam as Luas Novas e nos festivais anuais, como a Chanucá, recitações ou cânticos podem ter desempenhado um papel importante na adoração da sinagoga judaica.

Contudo, os testemunhos encontrados com mais frequên-cia consistem na leitura da Escritura como atividade central de

5°ENERMALM-OGAWA, Une langage de prière juif en grec: le temoinage des deux premieres livres des Maccabées. N. B. JOHNSON, Prayer hz the Apocrypha and Pseudepigrapha.

51 `The Shema" and the Shemoneh"Esreh"(in: SCHÜRER, History of thejewish people, v. 2, p. 454-63).

52HuRTADo, Jewish monotheism. 53ALBRIGHT, A biblical fragment from the Maccabean Age: the Nash Papyrus. 54GROZINGER, Musik und Gesang in der Theologie der frülien jüdischen Li-

teratur. FLUSSER, Psalms, hymns and prayers, in: STONE, Org., Jewish writings of the Second Temple period, p. 551-77. CHARLESWORTH, Jewish hynms, odes, and prayers (ca. 167 EcE-135 cE), in: KRAFT & NICKELSBURG, orgs., Early judaism and its rnodern interpreters.

O AMBIENTE RELIGIOSO 49

expressão da identidade religiosa judaica nas sinagogas. Embora pareça provável que não houvesse um sistema lecionário fixo, é possível que no decorrer de alguns anos as sinagogas tenham se esforçado para ler toda a Toro (o Pentateuco) nas reuniões semanais. É possível também que os profetas fossem lidos em várias sinago-gas da época. Algum tipo de homilia devia também ser frequente. A leitura da Escritura e as homilias aparecem, por exemplo, nos relatos do Novo Testamento a respeito das atividades da sinagoga (At 13.15, entre outros), os quais devem ser tomados como evi-dência de uma prática do primeiro século conhecida dos autores." Tanto Josefo quanto Filo de Alexandria fazem referência à leitu-ra, à explicação e ao ensino da Escritura como atividades regulares das reuniões semanais da sinagoga do primeiro século d.C.56 Nas sinagogas da Diáspora, é provável que as Escrituras fossem lidas em grego. A tradução da Bíblia hebraica para o grego começou no terceiro século a.C., em grande medida, ao que tudo indica, para atender ao desejo dos judeus de fala grega de ler e estudar suas Escrituras?' A leitura das Escrituras judaicas em língua grega teria permitido também que os gentios em visita às sinagogas da Diáspora acompanhassem o que se passava e aprendessem sobre a religião judaica. Em outros termos, para os judeus da Diáspora, a leitura litúrgica de suas Escrituras também funcionava, em certo sentido, como meio de promover o conhecimento de sua religião. Ao mesmo tempo, via-se com isso que se tratava de um povo cuja tradição religiosa valorizava a leitura e o conhecimento.

A exemplo de outros grupos da época, os judeus também ti-nham banquetes religiosos que eram expressão importante de sua fé. A refeição vespertina semanal do Shabat (na sexta-feira) tinha

55PERROT, The reading of the Bible in the Ancient synagogue, in: MULDER

& SYSLING, orgs., Mikra: text, translation, reading and interpretation of the Hebrew Bible in ancient Judaism and early Christianity, p. 137-59.

"P. ex., de Josefo, Contra Ápion 2.175; de Filo, De Somiis 2.127.

57P. ex., de Tov, "The Septuagint" (in: MULDER & SYSLING, orgs., Mitra, p. 161-88).

50 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

significado religioso. Como já mostramos, em ocasiões especiais como na Lua Nova e nas festas anuais (p. ex., dos Pães Asmos/ Páscoa, Pentecostes, Tendas [Sukkoth], Dedicação do Templo), os judeus tinham festividades religiosas mais elaboradas, com vinho e a melhor refeição que pudessem oferecer." Como muitos outros exemplos de refeições comuns de caráter religioso do período ro-mano, essas refeições religiosas expressavam a solidariedade do gru-po na religião, lembravam grandes eventos da história religiosa dos judeus, sendo eventos alegres e conduzidos em tom de celebração.

É difícil saber detalhadamente de que maneira os judeus entendiam o caráter sagrado dessas refeições, e havia nelas algum tipo de conotação "sacramental", no sentido de que Deus estava presente de algum modo, junto a eles, em suas festas religiosas, conforme parecia ser o caso entre os pagãos. A seita de Cunrã certa-mente conferia grande importância às refeições comunitárias. Relatos sobre grupos de judeus conhecidos como essênios e terapeutas ates-tam que eles faziam refeições de profundo significado religioso. Contudo, os estudiosos divergem 1) quanto à comunidade de Cun-rã, se ela estava ou não ligada aos essênios ou aos terapeutas, e 2) quanto às refeições festivas dos judeus, ou as da seita de Cunrã, sem saber ao certo se de fato "sacramentais", isto é, se transmitiam de algum modo a "presença real" de Deus.59 As refeições sacrificiais partilhadas pelos adoradores no templo de Jerusalém certamente se-riam consideradas muito significativas, e a referência de Filo a Deus como "Anfitrião [...] a quem passa a pertencer a oferta apresentada na festa [sacrificial]..." indica que havia ali algum tipo de relação entre Deus e os devotos que participavam da refeição sacrificial. É

"SCHÜRER, History of the Jewish People, 3/1, p. 144-5 (para discussão e refe-rências à evidência primária).

"No que se refere ao caráter das refeições de Cunrã, cf. o ensaio de Kuhn Enderwartung undgegenwiirtges Heil (cit. anteriormente) e também The eschatological commullity of the Dead Sea scrolls (ScmffmAN, p. 59-67). Para citações de fontes antigas e uma discussão da relação de Cunrã com esses outros grupos, v., p. ex., de Schürer, History of the Jewish People (v. 2, p. 583-97).

60Spec. Leg. 1.221.

O AMBIENTE RELIGIOSO 51

bem possível que, sob vários aspectos, os judeus da Diáspora vissem suas festas religiosas especiais como mais do que simplesmente ce-lebrações memoriais. Contudo, é preciso cautela para não enxergar nas refeições religiosas dos judeus conotações da eucaristia cristã. É possível, porém, que as ideias eucarísticas que aparecem no antigo escrito cristão conhecido como Didaquê, que parece guardar traços muito fortes de influências judeu-cristãs, talvez não estejam muito longe do modo em que os judeus entendiam suas festas religiosas: celebrações rituais da solidariedade religiosa que havia entre eles, bem como da providência e das promessas misericordiosas de Deus.6 '

Além da sinagoga, o lar era um local importante para a vida religiosa. O Shabat, principal festividade religiosa da semana, era celebrado em casa e também na sinagoga. A refeição vespertina da sexta-feira era o momento em que a família partilhava da prática da piedade. As orações diárias (manhã e noite), com a provável recitação do Shemá, eram feitas por judeus devotos em suas casas, e podem ter sido uma oportunidade a mais para que as famílias ex-pressassem sua devoção religiosa.62 Alguns judeus piedosos da épo-ca usavam os tefilin (caixinhas de couro com partes importantes da Bíblia que sempre durante as orações eram amarradas aos braços e à testa por meio de tiras);63 usavam também as mezuzoth (pequenos recipientes que continham passagens bíblicas, geralmente o Shernd,

os quais eram amarrados às portas de entrada das casas). Esses itens de piedade judaica são mencionados em fontes da Diáspora", e foram encontrados exemplos da Era Romana no sítio de Cunrã, sinal de que havia algum grau de prática compartilhada tanto na Palestina romana quanto na Diáspora."

"Did. 9-10. Examinaremos no capítulo seguinte as práticas e as ideias da eucaristia cristã primitiva.

62SAFRAI, Religion in everyday life, in: S. SAFRAI & M. STERN, orgs., The Jewish people, p. 793-833.

"Substantivo plural. Não confundir com "tefilim" (subst. sing.), espécie de colar nupcial, cujo plural é "tefilins". (N. dos E.)

"Arist. 158-60. "Josefo também alude à mezuzá e aos ttfilin (Antiq. 4.212-3).

52 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Fosse na sinagoga ou em casa, na Palestina romana ou na

Diáspora, a oração feita na direção de Jerusalém parece ter sido uma prática amplamente difundida da piedade judaica. A alusão mais antiga a esse costume é encontrada em Daniel 6.10. As sina-

gogas antigas eram dispostas de tal forma que as orações pudes-sem ser feitas na direção de Jerusalém." Aí temos uma das muitas

indicações da importância religiosa de Jerusalém e do templo.

Essa orientação em relação ao templo significava também para os

judeus devotos que, onde quer que estivessem e qualquer que fos-se a percepção que tivessem de seu envolvimento local, eles tam-

bém eram parte de uma tradição religiosa que não se limitava ao lugar em que se encontravam, que tinha raízes históricas e fortes

laços coletivos.

Resumo

Poderíamos dizer muito mais sobre o contexto religioso do cristia-nismo primitivo, mas espero que tenhamos conseguido listar alguns

pontos básicos, sendo o mais importante deles a atenção ao ambien-te religioso romano para uma compreensão histórica da vida devo-

cional e da prática cristã primitivas. Como já mencionei, em alguns

aspectos (p. ex., na comunhão doméstica em torno de uma refeição

sagrada) o cenário de adoração e de práticas dos cristãos primitivos pode ser entendido como reflexo do seu entorno. Em outros, sobre-

tudo no que diz respeito aos convertidos pagãos que abandonavam suas divindades e cultos, a diferença era muito grande. Era de es-

perar que os cristãos da Era Romana refletissem de várias maneiras seu contexto histórico nas crenças e na prática religiosa que ado-

tavam, e se diferenciassem sob outros aspectos. Todavia, somente a análise paciente da religiosidade cristã primitiva em seu contexto

66LANDSBERGER, The sacred direction in synagogue and church, Hebrew Union College Annual, v. 28, p. 181-203, 1957. Erik PETERSON, Die geschicht-liche Bedeutung der Jüdischen Gebetsrichtung, in: PETERSON, Frühkirche,Judentum und Gnosis: Studien und Untersuchungen.

O AMBI ENTE RELIGIOSO 53

histórico pode ajudar a entender em detalhes de que modo e onde a situação era uma ou outra."

Em segundo lugar, como já afirmei, sem dúvida o entorno re-ligioso do cristianismo primitivo era diverso, vigoroso e florescente. Não havia grandes contingentes de indivíduos no Império Roma-no insatisfeitos com a religiosidade existente e à espera de que algo como o cristianismo aparecesse para lhes dar significado religioso. É um erro, portanto, tentar explicar a disseminação da fé cristã pelo império como obra de um movimento religioso pujante e bem-sucedido em oposição a algum tipo de fastio religioso generalizado. O fato de alguns pagãos terem abraçado a fé cristã e renunciado à sua antiga vida religiosa, e de alguns judeus terem reconhecido a revelação escatológica do Deus de Israel, não pode ser entendido atribuindo-se ao paganismo romano ou à religião judaica da época a incapacidade de proporcionar meios significativos e razoavelmen-te eficazes para a prática de uma vida devocional. O cristianismo teve de competir num "mercado" religioso muito dinâmico e, se conquistou adeptos, ele o fez oferecendo "produtos" e "serviços" que pareciam bons em comparação aos demais à disposição. Prin-cipalmente porque, conforme se exigia dos prosélitos da religião judaica, esperava-se dos cristãos que fizessem da religião cristã sua única religião e renunciassem a fazer parte de outras opções religio-sas da época. O que era oferecido nos grupos cristãos tinha de levar seus adeptos à convicção de que valia a pena abandonar as alterna-tivas. Era necessário que houvesse características muito atraentes." Além disso, é preciso conceder ao cristianismo algum grau de su-cesso no processo de dar forma ao "mercado", assim como muitas vezes o empresário que oferece novos produtos e serviços precisa

67Paganistn and Christianity 100-425 CE, de MacMullen, Ramsey e Lane, é uma coleção acessível de várias evidências pertinentes ao tratamento que defendo, embora esteja mais relacionada com a "Antiguidade tardia" e, portanto, com a situação da prática cristã posterior, e não primitiva.

"P. ex., MacMullen enfatizou a importância das afirmações feitas pelos cristãos de que operavam milagres em "Christianizing the Roman Empire, AD

100-400".

54 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

criar ou ampliar a percepção do público de que eles são necessários. Por exemplo, devemos partir do princípio de que o sucesso de Paulo em ganhar convertidos dependia em parte de persuadi-los primeira-mente de que a devoção religiosa ao paganismo estava equivocada e de que precisavam ser salvos de seu passado religioso.

Contudo, não é meu propósito neste livro analisar por que o cristianismo cresceu, e sim estabelecer os contornos do culto cristão primitivo. Sustento que os primeiros cristãos adoravam a Deus em meio a um contexto religioso animado e dinâmico. Nos capítulos que se seguem, examinarei alguns traços específicos do culto cris-tão primitivo à luz desse contexto religioso, com atenção especial à elevação de Cristo à categoria de alvo da devoção cultual, o que deu ao culto cristão uma forma "binitária" característica que o dis-tinguiu das práticas judaicas e pagãs da época.

CAPÍTULO

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA

E xistem basicamente duas marcas principais que identificam a adoração cristã primitiva do ponto de vista de seu contexto

religioso: 1) Cristo é reverenciado como divino juntamente com

Deus e 2) a adoração de todos os outros deuses é rejeitada. Anali-

saremos no capítulo seguinte a primeira dessas duas características.

Nosso debate neste capítulo parte da premissa proposta pela se-

gunda marca de identificação, a exclusividade que caracterizava a

adoração cristã primitiva, o que para Wayne Meeks "talvez seja a

característica mais estranha do cristianismo, bem como do judaís-

mo, aos olhos de um pagão comum")

Da tradição judaica da época, o cristianismo primitivo herdou uma adoração monoteísta exclusivista que exigia de seus adeptos a

renúncia ao culto prestado a outros deuses. Os judeus cristãos, pelo menos nas primeiras décadas do cristianismo, parecem ter conti-

nuado a participar das atividades religiosas do templo e da sinagoga

e dos eventos em Jerusalém (i.e, das festas anuais, como a Páscoa,

'The first urban Christians: the social world of the apostle Paul, p. 150. Vale a pena consultar o capítulo inteiro que Meeks dedica ao "ritual" cristão primitivo (p. 140-63).

56 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

da oração no templo, dos sacrifícios).' Paulo, o apóstolo aos gentios, continuou firme no relacionamento que mantinha com os judeus e deixou isso muito claro na disposição que demonstrou várias vezes em se submeter aos castigos físicos impostos pela sinagoga a quem violasse a religiosidade judaica por meio de atos não especificados conforme decisão das autoridades da sinagoga (2Co 11.24). Em outras palavras, pelo menos nessa etapa dos primórdios, a exclusivi-dade da adoração cristã não compreendia a renúncia à participação na adoração judaica. Isso ocorria pelo motivo óbvio de que o Deus dos cristãos primitivos era identificado com o Deus do Antigo Tes-tamento e de Israel, o Deus adorado na sinagoga e no templo de Jerusalém. Contudo, a participação em atividades de grupos reli-giosos pagãos era coisa completamente distinta.

Embora Paulo permitisse a seus convertidos gentios de Corin-to o contato social com vizinhos pagãos sob certas condições (1Co 10.23-30), rejeitava veementemente a participação em ativi-dades em que houvesse qualquer reverência explícita ou óbvia a deuses pagãos (1Co 8.1-13; 10.14-22,28).3 Isso exigia dos crentes que abrissem mão de diversas atividades religiosas fora da adora-ção cristã. Os cristãos, por exemplo, não deveriam participar jun-tamente com seus vizinhos de eventos cultuais em honra explícita a outros deuses, tais como festas sacrificiais e jantares dedicados a divindades. Também seria considerado extremamente questionável participar de paradas religiosas exuberantes e de outras cerimônias em honra aos deuses da cidade. Em suma, o espectro ou "menu" de atividades religiosas e das devoções aceitáveis era muito restrito para os cristãos, principalmente para os gentios convertidos, cuja re-ligiosidade anterior à conversão absorvia tudo o que achasse conve-niente de toda a devoção religiosa e das divindades à disposição. No

'Para os casos da participação no templo de Jerusalém, v., p. ex., At 2.46; 3.1; 5.12,21,42; 21.17-26.

3BORGEN, "Yes", "No", "How far"?: the participation ofJews and Christians in pagan cults, in: ENGBERG-PEDERSEN, org., Paul in {lis Hellenistic contexi. V tb., de Winter, "Acts and Roman religion" (in: GILL & GEMPF, orgs., The book of Acts in its Graeco-Roman setting).

CARACTERISTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 57

lugar da dieta "variada" de opções e atividades religiosas pagãs, os cristãos deviam adorar somente ao único Deus em nome de Jesus.

Além disso, o cristianismo dos primeiros tempos não tinha lu-

gares sagrados, nenhum santuário, nenhum templo de estruturas imponentes, nenhuma imagem cultual de Deus ou de Cristo que concentrasse e estimulasse a devoção, nenhuma procissão pública que impressionasse, e não havia sacerdotes nem ritos sacrificiais. No fim das contas, no contexto da expressão cultual da religião da Era

Romana, a adoração cristã primitiva devia passar uma imagem de muito modesta e sem expressão. Era, sem dúvida, low-tech. Nesse sentido, o que se pedia dos convertidos era que abrissem mão de boa parte do contexto religioso que parece ter proporcionado a eles alegria e atendido a várias necessidades religiosas e sociais. Toda-via, não há dúvida de que havia grupos de convertidos e adeptos

da religião cristã. Podemos, portanto, examinar a adoração cristã primitiva procurando descobrir os traços que a caracterizavam e que devem ter se constituído em atração ou valor para os cristãos convertidos a quem se pedia que deixassem tanta coisa. Não esta-

mos interessados especialmente aqui nas características exclusivas do culto cristão. Em vez disso, queremos compreender o que a ado-ração cristã do primeiro século oferecia aos convertidos. A discussão que se segue será organizada em torno da identificação de algumas características gerais.

Intimidade

O ambiente físico da adoração cristã primitiva era o lar; na maioria

dos casos, provavelmente os lares dos cristãos de situação financeira relativamente melhor, os quais dispunham de recursos econômi-cos que lhes permitiam espaço suficiente para acomodar as reu-niões de adoração.`' Mais especificamente, uma vez que a refeição

`Sobre a evolução dos lugares cristãos de culto, v., de L. M. White, Building God's house in the Ronian world: architectural adaptation anioni pagansjews, and Chris- tians. V tb., de Blue, "Acts and the house church" Gim n GEMPF, orgs., AdS).

58 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

comunitária era fundamental na adoração cristã do primeiro século,

o ambiente em que se davam as reuniões era o local da casa reser-

vado às refeições. Escavações feitas nas casas de pessoas prósperas

das cidades romanas revelaram que a área em que se faziam as re-feições dificilmente acomodaria grupos de mais de nove pessoas ou

algo assim. Basta ter em mente as almofadas em que os convivas se

reclinavam à moda helênica, costume esse tão amplamente difun-

dido no período romano. Mesmo que a área do pátio da casa fosse

usada para ampliar o espaço disponível, a maior parte das mansões

romanas não teria condições de acomodar um grupo maior do que quarenta a cinquenta pessoas.' Portanto, o ambiente doméstico, o

tamanho do grupo que constituía a igreja domiciliar e o papel fun-damental da refeição comunitária na prática da adoração podem

ser entendidos como elementos que contribuíram para a intimidade social e a forte solidariedade entre os participantes.°

A julgar pelo que disse Paulo — "Há somente um pão, e nós,

embora muitos, somos um só corpo, pois todos participamos do

mesmo pão" (1Co 10.17) —, a impressão que se tem é a de que, de modo geral, os grupos que constituíam as igrejas domiciliares, se-

gundo a orientação de Paulo, expressavam sua intimidade social nas

cerimônias em que partiam o pão durante as refeições comunitárias.

Nos relatos da ceia do Senhor que encontramos nos Evangelhos, Jesus aparece partindo o pão e distribuindo-o entre os discípulos, e

o mesmo ele faz com o cálice de vinho (p. ex., Mc 14.22,23). Se, conforme é geralmente aceito, essas narrativas tiveram a intenção de

prefigurar e refletir as práticas eucarísticas das primeiras igrejas, os

relatos do que Jesus fez devem ser entendidos como evidências su-

plementares de que os aspectos de compartilhamento e intimidade

das reuniões na igreja domiciliar se manifestavam de forma vívida na partilha de um só pão e de um só cálice para todos.

5MURPHY-O'CONNOR, St. Paul's Corinth: texts and archaeology, p. 153-61. 'V, de Meeks, Urban Christians (p. 157-62), sobre "The Lord's Supper: ritual

of solidarity".

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 59

A solidariedade e a intimidade dos grupos cristãos primitivos

durante a adoração aparecem também de forma igualmente muito vívida no que parece ter sido outro traço característico do culto: o beijo da comunhão litúrgica cristã. Há referências ao "beijo san-

to" em diversas cartas de Paulo (Rm 16.16; 1Co 16.20; 2Co 13.12; 1Ts 5.26), e provavelmente o mesmo gesto recebe o nome de "beijo de santo amor" em 1Pedro 5.14. A simples exortação de comparti-lhar o beijo, sem outras explicações, indica que o gesto era bastante

difundido e conhecido entre os grupos cristãos do primeiro século. Uma vez que as epístolas do Novo Testamento parecem ter sido

escritas para a leitura litúrgica e trazem fórmulas litúrgicas (p. ex., a saudação "graça e paz" e a bênção da graça, as expressões "amém"

e "Aba, Pai", o "maranata" de 1Co 16.22), é possível que o "beijo

santo" ou "beijo de amor [ágape]" fosse dado e recebido durante o culto.' Referências posteriores ao beijo santo nos escritos cristãos

do segundo século e dos séculos posteriores sempre dão a ele tra-tamento de evento litúrgico, frequentemente associado de maneira específica à Eucaristia.' Além disso, sabemos que era dado na boca,

de forma recíproca, como expressão de intimidade e de afeição mú-

tua entre todos os adoradores, e que, pelo menos durante o primeiro

século ou pouco depois disso, havia troca de beijos entre pessoas do mesmo sexo e também do sexo oposto. Com o tempo, dado o

receio de que pudesse haver desvios de conduta, e também como

parte de uma campanha para atenuar os rumores entre os pagãos de que os cristãos seriam promíscuos, as autoridades posteriores da

'Sobre as fórmulas litúrgicas das epístolas paulinas, v., de J. L. White, "New Testament epistolary literature in the Framework of ancient epistolography" (in: TEMPORINI & HAASE, orgs., AO- tieg und Niederçan' der rortzischen Welt, esp. p. 1739-49), e, de Wu, "Liturgical elements" (in: HAWTHORNE & MARTIN, orgs., Dictionary of Paul and his letters).

8BROOKS, "Kiss of peace", in: FERGUSON, org., Encyclopedia o/ early Chris-tianity, p. 521-2. THRAEDE, Ursprung und Formen des "hl. Kuss" in frühen Christentum, Jarhbuchfir Antike und Christentum 11 (12): 124-80, 1968-1969.

STÃHLIN, (DliE4), in: KITTEL & FRIEDRICH, orgs., Theological dictionary of the New Testament. BENKO, Pagou Rome and the early Christians, p. 79-102.

60

AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

igreja procuraram restringir o beijo aos membros do mesmo sexo.9

Outras regras baseadas nos mesmos motivos previam que o bei-

jo santo fosse dado de boca fechada, sendo proibido um segundo

beijo!rn As advertências do NT contra o adultério (p. ex., 1Ts 4.1-8) refletem igualmente a preocupação de que poderiam surgir inte-

resses sexuais inadequados entre os cristãos precisamente por causa

da intimidade que havia entre eles em decorrência de sua prática de adoração e do etos religioso em geral.

Entre muitos povos antigos do Mediterrâneo, o beijo era si-nal de saudação, respeito e afeição comum entre os membros de

uma mesma família. Nas sociedades do Oriente Médio, o beijo era

estendido aos círculos mais amplos de pessoas que partilhavam do

mesmo convívio social em sinal de honra e de comunhão (p. ex.,

a crítica que Jesus faz ao anfitrião que o convidara para jantar por

não cumprimentá-lo com um beijo em Lc 7.45). Contudo, a prá-

tica cristã primitiva se apresentava como algo inusitado pelo fato

de favorecer a transformação do beijo em gesto litúrgico regular e

estender o círculo de intimidade permitido aos membros da igreja de ambos os sexos.

A linguagem do discurso cristão primitivo empregada na ado-

ração coletiva deixa clara essa intimidade." Os cristãos referiam-se

uns aos outros como irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai celes-

tial, ou membros de um corpo (1Co 12.27). É provável que, como

membros do que os cientistas sociais chamam de "família fictícia"

de irmãos e irmãs em Cristo, os primeiros cristãos achassem a fa-miliaridade do beijo de comunhão — aceitável entre os membros da mesma família biológica — igualmente adequada ao ambiente

de adoração cristã, onde sua relação familiar sob Deus encontrava

expressão especial.

9P. ex., Apostolic Constitutions 2.7; 8.2.10 (ANF, 7.422, p. 486). thATENAGORAS, Legatio 32 (ANF, 2.146). "BANKS, Paul's idea of community: the early house churches in their histori-

cal setting, esp. p. 33-42, 52-70.

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 61

Participação

Em princípio, a intimidade da comunhão devia ser estendida a to-dos os membros da igreja a despeito de status social, situação eco-nômica e sexo. "Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo", diz o apóstolo Paulo aos gálatas (Gl 3.28; cf. Cl 3.11). Em-bora em seu contexto imediato essa afirmação faça parte da dis-cussão de Paulo sobre o pleno direito dos gentios convertidos, bem como dos cristãos de origem judaica, à comunhão da família cons-tituída pelo povo redimido por Deus, os filhos de Abraão, todos os quais pertencem a Cristo, é evidente que o apóstolo faz referência aqui também aos ideais que devem estar presentes nas reuniões de adoração do movimento cristão primitivo.

Assim, por exemplo, embora em outros lugares Paulo insista em que se preserve a distinção dos sexos no penteado de homens e mulheres, ele também diz especificamente que ambos os sexos de-vem participar da adoração coletiva por meio de expressões como a oração e a profecia públicas (1Co 11.2-16, esp. v. 6). Além disso, quando o apóstolo discute a diversidade dos dons espirituais que podem se manifestar publicamente no culto (1Co 12.1-31), não há indicação alguma de que o status social ou o sexo da pessoa façam alguma diferençai' Em vez disso, a impressão que se tem é de que a contribuição divinamente engendrada virá de quem Deus achar por bem escolher, e esse alguém poderá ser qualquer pessoa entre muitas. A promessa profética de Joel é citada como explicação de fenômenos da experiência religiosa dos cristão primitivos, em que o Espírito de Deus se manifesta nos filhos e nas filhas, jovens e velhos, escravos e livres (p. ex., At 2.17, que cita J1 2.28-32). De fato, em Atos 21.9 lemos especificamente sobre as quatro filhas do

'20s versículos bem conhecidos de 14.34-35 parecem ser agora mais uma interpolação de uma nota marginal de um escriba, e não as palavras de Paulo. V., p. ex., de Fee, The first epistle to the Corinthians (p. 696-708) e, de PAYNE, "Fuldensis, sigla for variants in Vaticanus, and 1 Cor. 14:34-35" (New Testament

Studies, v. 41, p. 240-62, 1995).

62 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

líder cristão Filipe que eram crentes e foram agraciadas com o dom da profecia. Em Filipenses 4.2,3, duas mulheres, Evódia e Síntique, são citadas como líderes, e, em Romanos 16, cerca de um terço dos vários líderes cristãos mencionados são mulheres. Parece, portan-to, que o cristianismo primitivo dava oportunidades importantes às mulheres, concedendo-lhes visibilidade e respeito como líderes de fato, inclusive permitindo que participassem abertamente da vida litúrgica pública.

Semelhante atitude de abertura à participação de indivíduos

de status social e econômico inferior, até mesmo escravos, inclusive com participação visível na adoração comunitária, parece ter sido comum entre os primeiros grupos cristãos. Conforme era de espe-rar, a prática real variava, e a estratificação econômica do mundo romano podia se manifestar no ambiente da adoração cristã. Assim, Paulo condena as divisões e a discriminação entre ricos e pobres que se haviam infiltrado no culto da igreja de Corinto durante a celebração da ceia do Senhor (iCo 11.17-22). Certamente, porém, a exortação cristã do NT se inclina em grande medida pela plena participação nas celebrações de adoração de pessoas de qualquer sexo e de todos os estratos sociais. Diante do sucesso do movimento cristão primitivo em recrutar convertidos de ambos os sexos e de vários estratos sociais e econômicos, faz sentido imaginar que tenha havido algum grau significativo de emancipação em larga escala.

As agremiações cristãs não eram as únicas em que homens e mulheres, incluindo pessoas de diferentes estratos sociais e nacio-nalidades, podiam se juntar em atividades coletivas de culto, mas uma das características mais destacadas da adoração cristã era a di-mensão em que se dava essa participação.13 Talvez especialmente no caso das mulheres e daqueles cujo status social ou antecedentes étnicos pudessem ser desvantajosos, era extremamente importante

"Sobre as oportunidades das mulheres na religião da era romana, v., de Kraemer, Maenads, martyrs, ~troas, wonastics: a sourcebook on women's religions

in the Greco-Roman world e, do mesmo autor, Her share of the ble c• • , °moi s religions among pagans,Jews, and Christians.

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 63

vivenciar uma solidariedade comunitária na adoração que relativi-

zasse ou transcendesse as linhas de diferenciação e de marginaliza-

ção que pautavam sua vida fora do ambiente de culto. Muitas vezes,

a liderança das igrejas domiciliares recaía sobre aqueles membros

de grupos pequenos com habilidades sociais em número compa-

rativamente maior, experiência à altura e maior nível educacional,

mais habituados que estavam ao exercício de tais papéis. Em outras

palavras, esses líderes provinham geralmente de melhores condições

sociais e econômicas. Não havia, porém, sacerdócio hereditário. Na

verdade, no primeiro século não havia nenhum tipo de ordem sa-

cerdotal cristã. A adoração nos primeiros grupos cristãos era com-

parativamente informal e, em princípio, aberta a contribuições dos

membros que se sentissem inspirados ou a quem os demais consi-

derassem agraciados por Deus.

Fervor

A ideia dos dons divinos, dos carismas do Espírito de vários tipos,

juntamente com outros conceitos e afirmações religiosos expres-

sos na proclamação e na instrução cristã primitiva, impregnou de

fervor a adoração dos primeiros tempos. Com base em relatos de

outros grupos religiosos da Era Romana, fica evidente que a exube-

rância, a alegria, a sensação de encontro com o divino e até mesmo

um forte êxtase religioso eram, não raro, buscados pelos devotos e

cultivados de várias maneiras nos cultos. Os grupos cristãos não

tinham à disposição a variedade de recursos a que recorriam outros

grupos (e que, em séculos subsequentes, seriam apropriados tam-

bém pelo cristianismo) para dar aos devotos experiências religiosas

marcantes ou, pelo menos, uma sensação de maravilhamento (p. ex.,

cerimônias sofisticadas ou templos imponentes), mas é evidente que o fervor religioso sempre caracterizou a adoração cristã primitiva

e teria sido, ao mesmo tempo, característica atraente e importante

dos cultos cristãos. Na verdade, o forte fervor religioso na adoração

pode ter ajudado a compensar outras atividades religiosas das quais

64 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

aquelas pessoas tinham aberto mão, e pode ter ajudado a preservar

o compromisso com a exclusividade cristã na adoração. Com base na discussão de Paulo sobre os problemas das prá-

ticas de adoração em Corinto, é possível ter uma ideia muito ní-tida do fervor que às vezes se manifestava, mas de um modo que

o apóstolo julgava infrutífero. As inúmeras atividades relacionadas ao culto mencionadas em 1Corintios 14.26 fazem referência, todas elas, a adoradores cuja inspiração e exaltação vinham diretamente de Deus. Não apenas "revelação" e "língua ou interpretação", mas

também "hino" e "palavra de instrução" devem, provavelmente, ser

considerados contribuições espontâneas que se acreditava serem ins-piradas pelo Espírito Santo. Há uma lista ainda maior de fenômenos em 1Coríntios 12.4-11, com manifestações divinamente inspiradas de sabedoria, conhecimento, profecia e variedade de línguas, dons de curar e operação de milagres, bem como "o dom de discernir espí-

ritos" (que pode estar associado ao exorcismo). Além disso, quando em Gálatas 3.5 Paulo desafia os cristãos da Galácia a dizer qual seria

a base, na opinião deles, das manifestações do Espírito e dos mila-gres operados entre eles, é possível que ele tenha em mente os cultos de adoração como cenário dessas bênçãos divinas. Em Colossenses 3.16 e Efésios 5.18-20, o ensino inspirado, a admoestação e o cantar

com gratidão "salmos, hinos e cânticos espirituais" a Deus devem ser todos entendidos, provavelmente, como fenômenos da adoração

coletiva que ilustram a exaltação e o fervor religiosos buscados nos grupos cristãos primitivos. Em 1Tessalonicenses 5.19-21, Paulo in-siste com os cristãos de Tessalônica, dizendo-lhes: "Não apagueis o Espírito". Pede a eles também que deem espaço à profecia (em-

bora com a distinção apropriada entre manifestações espirituais

boas e ruins). Também nesse caso, é a reunião de adoração que o apóstolo tem em mente para a expressão de tais manifestações de fervor religioso.14

, de Fee, God's empoivering presence: the Holy Spirit in the letters of Paul

(esp. p. 883-95: "The Spirit and worship").

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 65

A frequência em que aparece a palavra "alegria" (chara) e as re-ferências a "regozijo" (agalliaomai) no NT refletem o júbilo incenti-vado e experimentado principalmente (mas não exclusivamente) na adoração.'' Essa alegria estava relacionada à ideia de encontro direto com Deus, uma ideia poderosa do "numinoso" em que o Espírito era entendido como veículo pelo qual Deus se comunicava de for-ma direta e o ambiente de adoração era entendido como a ocasião típica de tal acontecimento (p. ex., At 2.26-47).16

A proclamação cristã primitiva retratava a redenção dramática em relação ao juízo divino, a emancipação completa dos conversos gentios e seu acolhimento entre os eleitos do Deus de Israel, bem como a salvação escatológica a se realizar no retorno de Cristo, mas já manifesta nos dons do Espírito e no sucesso da proclamação. Em uma passagem em que adverte do perigo da apostasia, o autor de Hebreus se refere aos cristãos como "aqueles que uma vez foram iluminados, experimentaram o dom celestial e se tornaram partici-pantes do Espírito Santo, e experimentaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro" (Hb 6.4,5). Esse texto mostra a natureza intrinsecamente experiencial da religiosidade cristã, e o conceito dessa experiência religiosa como algo repleto de signi-ficado profundo. Os primeiros cristãos acreditavam que haviam "experimentado" as coisas celestiais, que tinham recebido o Espí-rito Santo e provado dos poderes escatológicos. Tais convicções, reforçadas por meio de experiências religiosas impactantes, teriam naturalmente suscitado a alegria e o fervor religiosos."

Alegria e fervor não se sustentam automaticamente. São coisas que têm de ser estimuladas e cultivadas de forma sistemática. Além disso, as experiências da vida são de tal ordem, que a anomia, a

'5BEYREUTHER & FINKENRATH, jOy, rejoice, in: BROWN, org., The 11C14, inter-national dictionary of New Testanzent theology, p. 352-61.

' 6DuNN,jesus and the Spirit, p. 185-8, esp. p. 188.

17 Religious experiente in earliest Christianity, de L. T. Johnson, é um apelo aos estudiosos do Novo Testamento para que levem mais a sério as experiências religiosas neotestamentárias em suas tentativas de caracterização do cristianismo primitivo.

66 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

desorientação e o desânimo são previsíveis. A reunião de adoração não era apenas a ocasião em que o júbilo e o fervor cristãos eram expressos de forma coletiva. Era também uma oportunidade e um meio extremamente importante de renovar o fervor religioso com-partilhado por meio da adoração, do louvor e dos fenômenos que acompanhavam o culto. Não é preciso muita imaginação ou argu-mentação para perceber que o cultivo do entusiasmo religioso se dá de maneira mais eficaz e duradoura nos atos coletivos de afirmação e de celebração. O apelo à perseverança de Hebreus 10.19-25 mos-tra aos crentes que não devem jamais negligenciar os encontros de adoração e, por meio deles, o encorajamento mútuo.

Relevância

Embora o ambiente domiciliar da adoração da igreja primitiva fosse doméstico e simples, os crentes eram incentivados a ver as reuniões como algo muito importante. Em grande medida, tal relevância estava relacionada à importância coletiva do grupo de redimidos. Paulo ensina aos convertidos de Corinto a pensar em si mesmos coletivamente como lavoura de Deus (1Co 3.5-9), como edifí-cio de Deus com Jesus por pedra fundamental (3.10-15) e como templo de Deus habitado pelo divino Espírito. Ele os adverte de que é sacrílega, portanto, a ameaça de divisões à unidade da igre-ja (3.16,17).18 Com essa ideia de igreja reunida como templo de Deus, o NT mostra uma analogia com opiniões semelhantes às da comunidade de Cunrã.19 Em outros textos, ficamos sabendo que os crentes cristãos foram escolhidos por Deus e destinados, antes da criação, a uma herança escatológica (Ef 1.3-12). De fato, eles já foram exaltados e agraciados com o status celestial juntamente com Cristo (Ef 2.4-7), tendo sido feitos "concidadãos com os santos e membros da família de Deus", formando assim um "templo santo

'8GÃRTNER, The temple and conununity in Qumran and the Neli) Testament. MCKELVEY, The New Temple: the church in the New Testament.

19Alem do estudo de Gãrtner Temple and community, v. tb., de Klinzing, Die Umdeutung des Kultus in der Quntrangemeinde und im Nenen Testament.

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 67

no Senhor" onde o próprio Deus habitará (Ef 2.19-22). Como tem-plo de Deus, feito de "pedras vivas", e como "sacerdócio santo", eles oferecem "sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo" (1Pe 2.4,5). Cristo fez dos cristãos "um reino e sacerdotes para servir a seu Deus e Pai" (Ap 1.6), e a eles foram prometidas coisas como "a coroa da vida" (Ap 2.10), "autoridade sobre as na-ções" (2.26) e um lugar com Cristo em seu trono (3.21). O autor de Hebreus fala da participação na comunidade de crentes cristãos em termos que impressionam:

Mas tendes chegado ao monte Sião, à cidade do Deus vivo, à Jeni-salem celestial, ao incontável número de anjos em reunião festiva; à igreja dos primogênitos registrados nos céus, a Deus, o juiz de todos, aos espíritos dos justos aperfeiçoados; a Jesus, o mediador de urna nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o sangue de Abel (Hb 12.22-24).

Uma vez que os cristãos foram ensinados a pensar sobre si mesmos a partir de um prisma coletivo, é compreensível que seus cultos sejam repletos de significado e também de relevância. Eles não tinham templos suntuosos e tampouco rituais que fossem conhecidos pela comunidade religiosa em geral, mas o grupo reunido (talvez) fosse em si mesmo (exatamente por isso) um santuário vivo, e seu louvor e adoração, sacrifícios espirituais agradáveis a Deus. Não havia uma ordem sacerdotal; em vez disso, eles viam a si mesmos, coletiva-mente, como sacerdotes, todos eles, portanto santos de um modo especial, e seu encontro, uma ocasião santa.

Suas assembleias não eram meros eventos humanos. Havia ne-las uma dimensão transcendente. Para eles, Deus estava presente de maneira direta e real por meio de seu Espírito. Na verdade, bastava um ajuntamento de dois ou três crentes para que fossem abençoa-dos com a presença de Cristo (Mt 18.20), que lhes dava eficácia na oração c em outras ações. Em 1Corintios 11.10, na curiosa referên-

cia à presença de anjos na assembleia de adoradores, vê-se como essa ideia era difundida. Ao que tudo indica, os leitores de Paulo em Corinto não precisavam de nenhuma explicação a mais (embora

68 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

bem que gostaríamos que o apóstolo tivesse dado alguma!).2° Como "santos" de Deus, os crentes acreditavam que suas reuniões de ado-ração eram frequentadas por "santos" celestiais, anjos, cuja presença apontava para o significado celestial de suas humildes assembleias reunidas na igreja domiciliar. É nesse sentido que a adoração cristã coletiva participa do culto celestial conforme expressão posterior do texto litúrgico tradicional: "Portanto, com anjos e arcanjos, e com toda a hoste celestial, louvamos e engrandecemos teu nome glorio-so". Os estudiosos encontram semelhanças com a seita de Cunrã, cujos membros parecem ter acreditado que sua adoração era parte também do culto angélico celestial e igualmente abençoado pela presença dos anjos." Portanto, a ideia de que suas reuniões eram uma extensão da adoração por excelência das hostes celestiais da qual participavam, e por acreditarem que seus encontros eram agra-ciados com a presença dos santos anjos de Deus, participar dessas ocasiões revestia-se para aqueles crentes de uma relevância trans-cendente e muito viva.

A sensação que se tinha na adoração coletiva também era de grande importância escatológica. Na verdade, para os grupos reli-giosos com forte percepção das realidades celestiais e munidos de esperanças escatológicas, a adoração é vista, por conseguinte, como ocasião em que as realidades espirituais se manifestam na terra e há o antegozo, no presente, das esperanças escatológicas. Na antiga escatologia judaica e cristã, o que se espera é o triunfo do governo de Deus sobre a terra, que é sempre seguro no céu: "Venha o teu reino, seja feita tua vontade, assim na terra como no céu". O profeta João retrata a consumação escatológica como a Jerusalém celestial

mEm minha opinião, os autores que tratam melhor desse versículo são Hooker, em "Authority on her head: an examination of 1 Cor. 1:10" (New Testa-ment Studies, 10), e Fitzmyer, em The Semitic background of the New Testament.

Angelology in the Qumran texts, esp. p. 184-99. DAVIDSON, Angels at Qumran: a comparative study of 1 Enoch 1-36, 72-108 and sectarian writings from Qumran. MACH, Entwicklungsstadien des jüdischen Engelglaubens in vorrab-binischer Zeit, p. 216-40. JAusERT, La notion d'alliance dans le judaisme aux abords de l'ère chrétienne, p. 189-97.

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 69

que desce à terra onde Deus habitará (Ap 21.1-4). Consequente-mente, assim como a adoração pode ser a ocasião em que o céu e a terra se unem de modo especial, o que confere à adoração terrena uma dimensão transcendente, ela também pode ser entendida pelos devotos como a realização presente, ainda que provisória, de condi-ções que se esperam sejam permanentes na era por vir.

Mais uma vez, a seita de Cunrã nos dá uma analogia con-temporânea de um grupo religioso judeu do primeiro século com esperanças escatológicas intensas, cujo culto era entendido nesses termos.22 Em um estudo muito interessante do NT, dos textos de Cunrã e da coleção de cânticos cristãos dos primórdios, As odes de Salomão, David Aune mostrou que os grupos religiosos cultivavam com grande zelo esperanças escatológicas, mas tinham ao mesmo tempo uma percepção muito forte do que os estudiosos chamam de "escatologia concretizada", que se manifestava, sobretudo, no ambiente do culto."

Acreditando-se eleitos a quem a salvação da ira vindoura havia sido concedida, com a promessa de que participariam da salvação escatológica (p. ex., 1Ts 1.9,10; Rm 8.18-23), a experiência que os primeiros cristãos tiveram do Espírito divino foi a dos "primei-ros frutos" (Rm 8.23), do primeiro sinal ou garantia (2Co 1.22) da salvação escatológica. Quando se reuniam para adorar, ocasião em que experimentavam o Espírito de modo mais objetivo e tangível, vivenciavam de forma arrebatadora os poderes da era por vir, e em seus rituais de adoração antegozavam esperanças escatológicas.

Quase todos os estudiosos acreditam, por exemplo, que entre os significados atribuídos às primeiras ceias eucarísticas havia o da dimensão escatológica, em que o alimento da igreja prefigurava o banquete messiânico que Jesus haveria de presidir.24 Evidentemente, a

"H. W KUHN, Enderwartung und gegenwiirtzges Heil: Untersuchungen zu den Gerneindeliedern von Qunzran.

"AuNE, The cultic setting of realized eschatology in early Christianity. 24y, p. ex. p ex., de Cullmann, "The meaning of the Lord's Supper in primitive

Christianity" (p. 5-23); de McCormick, The Lord's Supper: a bíblica! interpretation (p. 88-107) e, de Marshall, Last Supper and Lord's Supper (p. 146-55).

70 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

eucaristia também está associada à morte redentora de Jesus, porém tanto sua paixão quanto a eucaristia se encontram num contex-to de expectativa escatológica e, portanto, revestem-se igualmen-te de valor escatológico, conforme a assertiva paulina de que, na ceia, os crentes "[proclamam] a morte do Senhor, até que ele venha"

(1Co 11.26). De igual modo, é preciso entender que a prática ritual cristã da

confissão/aclamação de Jesus como Senhor — ao que tudo indica, um traço típico da adoração coletiva dos primórdios tanto entre grupos de fala grega (p. ex., Rm 10.9,10; 1Co 12.3) quanto aramai-ca (como se vê no emprego da fórmula maranata [Vem, Senhor!] em 1Co 16.22, rodapé) — tinha como objetivo antecipar o mo-mento em que Jesus seria aclamado e reverenciado universalmente como Senhor, algo que ocupava o centro das esperanças escatoló-gicas dos crentes (p. ex., Fp 2.9-11).25 Para aqueles cristãos, Jesus já havia sido exaltado à mão direita de Deus e a ele seria submetido tudo o que existe (1Co 15.20-28). Na aclamação e confissão cole-tivas do senhorio de Jesus, eles estruturavam ritualmente seu círculo de adoração, oferecendo a Cristo a submissão devida, expressando assim, antecipadamente e em local definido, o cumprimento dos propósitos derradeiros de Deus.

Seu ritual de iniciação, o batismo, revestia-se também de enor-me importância.26 Não era um simples ato de obediência individual, mas um ritual cujo significado era a ligação poderosa dos crentes com a morte e a ressurreição de Jesus que deveria inaugurar uma "novidade de vida" escatológica expressa no presente pela transfor-mação moral (Rm 6.1-4) e, em última análise, pela vida ressurreta plena no porvir. Pelo batismo, os convertidos se uniam em um mes-mo corpo espiritual, transcendendo assim as diferenças individuais

25R. P. MARTIN, An early Christian conkssion: Philippians 2.5-11 in recent interpretation. V., de Michel, ónoXoya.) (in: KITTEL & FRIEDRICH, orgs., Theo-logical dictionary of the New 1-estatueta, esp. p. 215-7), para o lugar da confissão de fé como ato litúrgico.

Sobre o batismo, v., p. ex., de Meeks, First urban Christians (p. 150-7) e a discussão da prática no próximo capítulo deste livro.

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 71

de nacionalidade ou status social (1Co 12.12,13). Mais uma vez, um ritual de natureza bastante simples ganhava profundidade de enorme significado. Na verdade, tal como ocorria com várias outras manifestações da adoração cristã, talvez os crentes tivessem sentido necessidade de trabalhar intensamente os temas de seus rituais bas-tante simples, revestindo-os de enorme importância, precisamente pelo fato de em si mesmos não comportarem externamente aquelas características tão expressivas das práticas cultuais do entorno reli-gioso pagão.

Os termos usados para fazer referência à reunião cristã e às suas atividades indicam também um esforço de revesti-las de um significado maior. O termo usado para se referir especialmente ao encontro de crentes cristãos, ekklesia, revela uma escolha interes-sante da parte dos primeiros cristãos em relação a si mesmos. Havia diversos termos disponíveis e usados com frequência, como, por exemplo, thiasos (termo característico de um grupo de pessoas que se reuniam para adorar uma divindade específica),27 eranos (asso-ciação que promovia festas religiosas com as quais os participantes contribuíam), koinon (associação) ou synodos (grupo que seguia um ensinamento específico), mas, até onde se sabe, ekklesia não estava

entre eles.28 Ekklesia, conforme o histórico de uso do termo no grego, de-

signava a reunião de cidadãos para deliberação de assuntos cívicos de uma cidade. Tais eventos tinham sempre um caráter religioso e começavam com uma oferta aos deuses, mas a ekklesia não se reunia com o propósito específico de adoração. Uma inscrição efé-

sia de 103-104 d.C. prevê a colocação de imagens dos deuses em pedestais no teatro para toda ekklesia. Isso mostra que tais reuniões formais de cidadãos aptos de uma cidade, encarregados de lidar com questões importantes, também eram conduzidas sob a autoridade expressa dos deuses aos quais reverenciavam.29 Conforme observou

"HAMMOND & ScuLLARD,Thiasos, in: idem, The ado- rd classical dictionary. "COENEN, New international dictionary of New Testatnent theology, p. 291-2. 29DEIssmANN, Light from the Aliciem East, p. 112-3.

72 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Adolf Deissmann, ekklesia foi um empréstimo tomado do grego pelo latim anterior à influência cristã, embora houvesse certamen-te termos latinos para "assembleia", sinal de que ekklesia era uma palavra que tinha uma conotação especial e cuja importância era reconhecida pelos falantes latinos, não podendo, portanto, ser facil-mente traduzida.3°

Outro uso importante de ekklesia fora do NT ocorre no AT gre-go (a Bíblia da maioria dos cristãos primitivos de origem judaica ou gentílica), em que é usado regularmente em referência a Israel como "congregação" do Senhor (ekklesia Kyriou; p. ex., Dt 23.2 e 1Cr 28.8, que traduzem com frequência o hebraico qaha0. No uso que o AT faz de ekklesia, o termo designa o apelo a Israel da parte de Deus para que se reúna em algum ato de obediência. Contudo, embora o termo tivesse esse uso bíblico, não era usado pelos ju-deus no período romano em suas reuniões religiosas, que preferiam

synagoge (também usado na Lxx) ao outro termo grego?' Portanto, tudo indica que os cristãos primitivos adotaram de-

liberadamente, por uma questão de preferência, uma autodesigna-ção que os distinguisse, um termo que não era usado pelos grupos religiosos pagãos ou judeus para se referir às suas reuniões cultuais, embora seu uso pré-cristão tivesse uma conotação formal e, no AT,

aparecesse associado de maneira especial à religião. Mais especifi-camente, o termo reflete a compreensão que os grupos cristãos dos primórdios tinham sobre si mesmos como continuadores e herdei-ros do Israel do AT, e também como assembleias do povo de Deus chamado por ele à obediência e ao serviço, proclamando seu reino neste mundo. No uso do termo ekklesia para as reuniões de adora-ção (tanto no caso da "igreja toda" de determinada cidade [como, p. ex., em At 5.11; Rm 16.23; 1Co 14.23], quanto para os gru-pos reunidos em igrejas domiciliares [como, p. ex., em Rm 16.5;

3°Ibid., p. 12-3. "Para discussão e citação de fontes, v., de Schmidt, Theological dictionary

of the New Testament (Karicrta, esp. p. 513-8) e, de Coenen, Dictionary of New Testament theology (p. 291-307).

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 73

1Co 16.19; Cl 4.15]), temos a indicação de um esforço por revestir essas reuniões, naturalmente modestas, de um significado elevado, o que, entre outras coisas, teria ajudado os membros a encontrar ne-las uma lógica para não se envolverem com qualquer outra religião, exceto a cristã.

Outro termo que provavelmente soava importante era o ad-

jetivo kyriakos, usado no NT por Paulo para se referir à santa ceia como "ceia do Senhor" (1Co 11.20), e no Apocalipse para se referir ao domingo como "dia do Senhor" (Ap 1.10). Kyriakos também é usado em outros escritos do alvorecer do cristianismo, sinal de que seu emprego era bastante difundido (Magnos. 9.1; Did. 14.1; Ev. de Pedro. 9.35; 12.50). Considero correta a proposta de Deissmann, feita há várias décadas, de que o termo deriva da utilização que dele fazia o Império Romano para designar as coisas que pertenciam ou diziam respeito ao imperador (p. ex., "o tesouro imperial" [ton kyriakon logon], o "serviço imperial" [tas kyriakos hyperesias]).32 Os cristãos do primeiro século, fossem eles judeus ou gentios, teriam tido conhecimento desse uso e da conotação que lhe dava o impé-rio; portanto, a adoção do termo muito provavelmente teria trans-mitido a eles o alto grau de importância que se atribuía à santa ceia,

assim como era importante também, e oficial, o dia designado para as reuniões. Deissmann propôs uma hipótese interessante: a de que a apropriação desse termo extraído do "vocabulário oficial do direi-to imperial" para designar o dia das reuniões dos cristãos e da ceia religiosa dessa assembleia "talvez estivesse relacionada a sentimentos

conscientes de protesto contra o culto ao imperador e seu "Dia de Augusto" [Sebaste]." Parece-me difícil, sem dúvida, evitar a im-pressão de que o termo kyriakos não tivesse como objetivo atribuir às práticas da adoração cristã uma importância do mais alto grau.

"DEISSMANN, Bible studies, p. 217-9; idem, Ancient East, p. 357-61. V tb., p. ex., de Bauer et. al., A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature (p. 458, s.v. "KuptaKoç"; MM, p. 364, s.v. "Kuptaxoç") para exemplos.

"DEISSMANN, Ancient East, p. 359.

74 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Potência

Quando discorri sobre o fervor religioso dos primeiros cultos, fiz menção dos fenômenos de profecia e milagres de cura. Agora que-ro chamar a atenção para o fato de que esses fenômenos também demonstravam a potência que para os primeiros cristãos estava dis-ponível e em operação em suas reuniões de adoração. Em outras palavras, para os cristãos daqueles primeiros tempos, o culto não era simplesmente um exercício religioso de que participavam, uma oportunidade para reafirmar aquilo em que criam e tomar parte de seus rituais. Era uma ocasião para a manifestação e a experiên-cia dos poderes divinos." Nesse sentido, parece que as expectativas eram sempre elevadas durante o culto, porque se esperava que o en-contro com Deus fosse exuberante. No contexto de uma longa dis-cussão sobre atitudes e práticas de adoração em 1Coríntios 12-14, Paulo se refere a vários "dons" (charismata) do Espírito, várias formas de serviço (diakoniai) e várias "operações" (energemata, termo grego usado regularmente no NT para se referir a fenômenos atribuídos a forças sobrenaturais) de Deus (1Co 12.4-6)."

O tipo de comunicação que se observava na adoração cristã primitiva consistia, entre outras coisas, na experiência de Deus, que falava por meio do que diziam os profetas cristãos e também de outros fenômenos.3° Em 1Corintios 12.4-11, Paulo recorre a diver-sas expressões quando se refere às declarações cuja inspiração era atribuída diretamente ao Espírito de Deus; por exemplo, "palavra de sabedoria" e "palavra de conhecimento" (v. 8), "profecia", "va-riedade de línguas" e "interpretação de línguas" (v. 10). De igual modo, em 1Corintios 14.6, em que Paulo critica a manifestação de línguas sem interpretação na adoração coletiva, porque não serão compreendidas e, portanto, não trarão edificação, ele prefere que

34V. a ênfase de L. T. Johnson sobre o sentido do poder divino nos textos do Novo Testamento (Religious experiente, p. ex., p. 6-12).

"DuNN, Jesus and the Spirit, p. 199-258. 'AuNE, Prophecy in early Christianity and the ancient Mediterranean world.

GJLLESPIE, The first theologians: a study in early Christian prophecy.

CARACTERISTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 75

o crente fale "por meio de revelação, ou de conhecimento, ou de profecia, ou de ensino". É difícil distinguirmos com certeza os fe-nômenos aos quais esses vários termos se referem, e pode até ser que Paulo não quisesse dizer que fossem tipos mutuamente excludentes de discurso. Qualquer que seja a relação entre "profecia", "palavra de conhecimento", "palavra de sabedoria", "revelação" e outros ter-mos que parecem referir-se aos discursos inspirados, é evidente que as manifestações verbais do poder divino ocorriam com frequência. Aliás, pelo menos nas reuniões da igreja de Corinto, as expressões verbais do Espírito eram tão comuns, que Paulo achou necessário estipular regras para que elas se manifestassem de forma organizada.

Com base nas orientações que ele dá aos coríntios sobre o exer-cício da profecia nas reuniões da igreja em 1Corintios 14.29-33, pode-se concluir que havia com frequência inúmeros profetas num mesmo grupo e que a profecia vinha por "revelação". Em Atos 13.1-3, temos uma demonstração de como as elocuções proféticas ocorriam no ambiente de culto e eram tomadas como palavras do Espírito de Deus, dadas por meio de pessoas inspiradas — nesse caso específico, tratava-se de orientações sobre o chamamento de Paulo e Silas para o trabalho missionário itinerante?'

Além do poder divino expresso no discurso profético, há tam-bém referência a "milagres" entre os primeiros grupos de cristãos. O termo grego comumente traduzido por "milagre" é dynameis,

plural do equivalente grego para "poder". Portanto, a conotação original dizia respeito a fenômenos considerados especiais, mani-festações diretas do poder de Deus, "fatos/obras poderosos/magní-ficos". Em 1Corintios 12.10, Paulo faz referência à "realização de milagres" (energemata dynameon) como uma das várias coisas que

"Não precisamos nos deter na questão da historicidade desse episódio espe-cífico. Mesmo que haja suspeitas de que se trate aqui de uma narrativa de ficção (ou que o autor tenha fornecido os detalhes) para tornar verossímil o episódio, o autor de Atos, sem dúvida alguma, tinha de reproduzir os fenômenos com que seus leitores originais estariam familiarizados, dando-nos assim, pelo menos, uma indicação geral e indireta do que provavelmente aconteceu nos cultos de adora-ção do primeiro século do cristianismo.

76 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Deus faz nas reuniões da igreja. Em Gálatas 3.5, ele diz aos cristãos da Galácia que a distribuição divina do Espírito e a operação de milagres entre eles são prova da validade da sua religião. As duas epístolas são dirigidas a grupos de crentes e deveriam ser lidas nos cultos. Tudo leva a crer, portanto, que o momento da adoração era a ocasião típica em que os "milagres" ocorriam.

Contudo, não sabemos exatamente a que Paulo estava se refe-rindo. Uma vez mais, a exemplo do fenômeno de elocução proféti-ca, talvez não devamos interpretar os "milagres" como algo restrito e muito específico. O termo pode ter sido usado em sentido mais geral para se referir a determinado espectro de fenômenos viven-ciados pelos crentes como manifestações diretas e impactantes do poder divino.

Entre esses fenômenos talvez estivessem também "os dons de curar" que Paulo menciona em 1Coríntios 12.9. Os leitores do NT

estão familiarizados com as histórias de curas milagrosas do minis-tério de Jesus relatadas pelos Evangelhos, bem como com as ati-vidades dos líderes cristãos registradas em Atos. Nesses casos, as curas são colocadas no contexto da proclamação e da missão (p. ex., At 3.1-10; 5.12-16; 9.32-35; 14.8-18). Todavia, conforme indica Tiago 5.14-18, a cura miraculosa também estava disponível aos crentes, sendo algo que eles podiam buscar no contexto da comu-nhão cristã.3s Além disso, a referência de Paulo à cura em 1Corín-tios 12.9 se dá no contexto de outros fenômenos da adoração cristã coletiva e num ambiente mais amplo dedicado à discussão do que é considerado conveniente nas reuniões de adoração (1Co 1-14) e quais as atitudes adequadas nesse contexto. Paulo afirma ainda ex-plicitamente em 12.7 que cada uma das manifestações divinas que ele menciona foram dadas "para benefício comum", o que significa,

`Os destinatários de Tiago 5.14-18 eram certamente crentes que são enco-rajados a chamar os "presbíteros" de seu grupo cristão para ungi-los e orar por sua cura. A referência à eficácia poderosa da oração (v. 16) e a menção a Elias, que orou pedindo chuva (v. 17,18), parecem apontar claramente para uma interpreta-ção da cura oferecida como algo miraculoso.

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 77

provavelmente, que esses fenômenos estão situados aqui no âmbi-to da igreja reunida. Consequentemente, podemos concluir que as curas milagrosas estavam entre as manifestações de poder divino vivenciadas na ekklesia.39

Outras referências indicam que a ekklesia reunida podia expe-rimentar o poder divino de modos mais funestos. Ainda no corpus paulino encontramos a curiosa passagem de 1Coríntios 5.1-8 so-bre um homem da igreja de Corinto que vivia em conúbio sexual com "a esposa do pai". Não podemos estender-nos aqui na dis-cussão das várias dificuldades interessantes dessa passagem.4° Para nosso propósito, o que importa é a forma pela qual Paulo se refere à natureza da assembleia cristã e à atitude que ele requer dela. De-pois de julgar o caso, Paulo ordena à igreja que se reúna em nome do Senhor Jesus (v. 4) e "[entregue] esse homem a Satanás para destruição da carne [ou da sua carne], para que o [seu] espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus" (v. 5). Congregados em nome de Jesus, eles se reúnem "com o poder de nosso Senhor Jesus" também presente (v. 4) e assim, com esse poder, podem proceder ao julgamento, que implica não somente a exclusão do ofensor da comunhão da ekklesia (v. 9-13), mas também o exercício do poder espiritual que pode ser comparado, fenomenologicamente e sob alguns aspectos, a uma maldição ritual. Pelo poder de Jesus, poder invocado pelo uso ritual do nome de Jesus, o ofensor é entregue ao castigo satânico, embora, assim parece, com o propósito de redimi-lo a longo prazo num processo que incluiria o arrependi-mento do ofensor.41

"Sobre 1Corintios 12.4-11, v. a excelente discussão de Fee em Corinthians (p. 582-600).

40Uma vez mais, v. a discussão completa de Fee em Corinthians (p. 198-214). 410 artigo "Atonement texture in 1 Corinthians 5.5", de Schillington (Jour-

nal for the Study of the New Testament,v. 71, p. 29-50, 1998), passa em revista a dis-cussão recente desse versículo e diz que ele não antecipa a restauração do ofensor, e sim a purificação e a preservação da igreja. É claro que Paulo estava preocupado com isso, mas não estou convencido da interpretação que Schillington dá a esse versículo. V minha discussão dessa passagem no próximo capítulo deste livro.

78

AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Aqui temos um exemplo notável da força espiritual que os cris-tãos do primeiro século viam associada à reunião da ekklesia. Em sua experiência, trata-se do poder divino, do poder do Senhor Jesus, que opera em seu nome e se manifesta, especialmente, no ajunta-mento da igreja. O mesmo poder que podia ser percebido nos "mi-lagres" de natureza benéfica, na revelação, na profecia e em outras manifestações inspiradas, aqui é invocado para a execução do juízo contra um ofensor.

Em 1Corintios 11.27-32, Paulo adverte aos crentes cristãos que incorre em perigo de condenação quem come e bebe do pão e do cá-lice da ceia do Senhor e pratica os abusos que ele condena, e acrescenta que "há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que já morreram", os quais, para o apóstolo, manifestam em si o julgamento divino pelos abusos cometidos. A lógica parece ser a de que, como ceia do Senhor que é, a santa ceia é um evento no qual Cristo está presente com poder para o bem daqueles crentes alinhados com seus propósitos e para o possível julgamento daqueles que não reconhecem que a ekklesia reu-nida é (e deve ser tratada como) o "corpo" do Senhor.

Resumo

Começamos esta discussão salientando que, para os pagãos conver-tidos, a adoração cristã seria a única forma permitida de devoção cultual entre as muitas da rica variedade em oferta no contexto romano. Diante disso, é extremamente importante considerar quais teriam sido as características da adoração cristã primitiva, o que estava "em oferta", por assim dizer, e de que modo a adoração dos primeiros cristãos infundia significado a seus adeptos. É evidente que, apesar da exigência relativamente severa e incomum de um compromisso devocional exclusivo, o movimento cristão primitivo fez conversos. Não podemos dizer que a adoração desses grupos era, em si mesma, um fator de evangelização, mas, para preservar os convertidos, a comunhão cristã e a vida religiosa da coletividade no âmbito dessa comunhão tinham de ser suficientemente signifi-cativas e satisfatórias para atender às várias atividades religiosas das quais se esperava que abrissem mão.

CARACTERÍSTICAS DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 79

Enfatizar, como fiz neste capítulo, as qualidades e as carac-terísticas da adoração cristã primitiva, não implica de modo al-gum afirmar que tais traços fossem exclusivos dos grupos cristãos. A adoração "pagã" da época também oferecia estímulos muito atra-entes e características satisfatórias para os participantes. Em suas vá-rias formas e contextos, essas características consistiam, em geral, em coisas como um senso de pertença e de intimidade, bem como rituais que se revestiam de enorme importância. Meu objetivo neste capítulo foi mostrar que a adoração cristã primitiva, embora fos-se extremamente simples e pouco atraente em comparação com as práticas religiosas mais elaboradas do período romano, nem por isso deixava de oferecer coisas que muito provavelmente atendiam às necessidades religiosas, pessoais e sociais dos crentes.

Defendo que as características apresentadas aqui nos ajudam a ver o que os cristãos dos primórdios extraíam da sua adoração e que coisas podem ter compensado a singeleza e a simplicidade do ambiente de culto e dos rituais em relação ao seu entorno. O tama-nho reduzido e o contexto doméstico ofereciam à igreja um clima de intimidade quando ela se reunia para adorar. A abertura a tipos diversos de contribuição à adoração e aos dons inspirados manifes-tos por homens e mulheres e por pessoas de vários estratos sociais davam aos crentes uma sensação de envolvimento e de participação direta. A sensação muito forte de que a assembleia de adoradores cristãos era a ocasião por excelência para a manifestação do Espí-rito sob diversas formas muito expressivas, bem como a percepção acentuada da importância dos grupos a que os crentes pertenciam, refletiam e promoviam um forte fervor religioso. Esses pequenos grupos caseiros viam a si mesmos como portadores da significação histórica da salvação. Suas reuniões na ekklesia de Deus eram con-vocadas em resposta ao chamado divino proclamado na mensagem do evangelho. Sua assembleia de adoração era em si mesma um evento de significado escatológico, uma pequena amostra das bên-çãos do porvir em que a igreja partilhava das realidades celestiais, dentre elas a presença dos santos anjos e a presença e o poder de Cristo vivenciados nos fenômenos que os crentes viam como ma-nifestações do poder divino.

CAPÍTULO

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA

No capítulo anterior, examinamos algumas características gerais da adoração cristã primitiva. Gostaríamos agora

de nos deter no que poderíamos chamar de "formato binitário". O termo se refere à inclusão de Cristo ao lado de Deus ("o Pai") como alvo da adoração.' É claro que, com o amadurecimento das tradições cristãs posteriores, as três pessoas da Trindade ("Pai", "Filho" e "Espírito Santo") passaram a ser adoradas como um só Deus. Contudo, nos primeiros estágios da adoração cristã, como se pode observar no Novo Testamento, a devoção é dirigida a Deus Pai e a Jesus (e por meio deste). O Espírito Santo é, sem dúvida, sempre citado como agente do poder divino entre os cristãos e por

'Dentre os vários estudos sobre adoração no Novo Testamento, citamos os seguintes, por serem extremamente proveitosos: BRADSHAW, The search for the origins of Christian worship; CABANISS, Pattern in early Christian worship; CULLMANN, Early Christian worship; DELLING, Worship in the New Testament; HAHN, The worship of the early church; R. P. MARTIN, Adoração na igreja primitiva; idem, Worship, in: HAWTHORNE & MARTIN, orgs., Dictionary of Paul and his letters; idem, Worship and liturgy, in: MARTIN & DAVIDS, orgs., Dictionary of the later New Testament and its developments; MOULE, Worship in the New Testament; NIELEN, Gebet und Gottesdienst im Neuen Testament. Merece atenção especial o mais recente levantamento sobre o assunto feito por Aune: "Worship, early Christian" (in: D. N. FREEDMAN, org., Anchor Bible dictionary).

82 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

intermédio deles, sendo ele também o meio da capacitação e da presença divina especificamente na adoração. No NT, a adoração é oferecida por meio do Espírito Santo, mas não fica muito claro se o Espírito também deve ser adorado. Com isso, não queremos cri-ticar de modo algum as práticas trinitárias posteriores de adoração mais desenvolvidas da tradição cristã. Queremos apenas chamar a atenção para o fato de que, em seu estágio observável mais antigo, a adoração cristã era mais "binitária", isto é, a devoção era dirigida a Deus e a Cristo. A experiência religiosa cristã primitiva girava em torno de Deus, Cristo e o Espírito; mas o padrão devocional era mais "binitário" no que diz respeito a quem recebia a adoração.'

Antes de nos aprofundarmos nessa discussão, é preciso tratar de outro assunto. No decorrer dos últimos dez anos aproximada-mente, houve uma investigação rigorosa, além de muito debate so-bre as origens e os antecedentes da adoração de Cristo.' Foi feito um trabalho muito importante, especialmente no que diz respeito à investigação da matriz religiosa judaica, que serviu de base para o desenvolvimento do cristianismo primitivo.4 Parece-nos, entretanto,

'De fato, parece que a adoração cristã permaneceu funcionalmente "binitá-ria", já que grande parte dos hinos, orações e outros componentes do culto e da devoção era dirigida a Deus e a Cristo. E verdade que, com o desenvolvimento da teologia na tradição cristã, o Espírito Santo também recebe formalmente a adoração, como se vê no Credo niceno-constantinopolitano (381 d.C.): "Creio no Espírito Santo [...] [que] com o Pai e o Filho é adorado e glorificado". Para texto e discussão, v. p. ex., de Schaff, The creeds of Christendom (v. 1, p. 24-29) e, de Leith, Creeds of the churches (p. 31-3). Isso, porém, nos leva muito além dos pri-meiros anos do cristianismo, que é nossa preocupação aqui.

'Podemos citar três obras em especial que consideramos estimulantes para esse debate: Two powers in heapen: early Rabbinic reports abola Christianity and Gnosticism, de Segal; "The worship of Jesus in Apocalyptic Christianiry", de Bauckham (New Testanient Studies, v. 27, p. 322-41, 1981); One God, one Lord: early Christian deeotion and ancient Jewish monotheism, de Hurtado. Em junho de 1998, a Universidade de St. Andrews promoveu a "Conferência Internacional sobre as Origens Históricas da Adoração a Jesus", prova da relevância do tema nos estudos acadêmicos recentes.

4No prefácio à segunda edição de Orle God, one Lord, tratei brevemente dos vários estudos que apareceram nos dez anos que se seguiram entre a primeira e a segunda edições.

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 83

que a discussão peca pela insuficiência de clareza nas definições das principais categorias e termos. Antes de procedermos ao exame das práticas de adoração do cristianismo em seus primórdios, cremos que vale a pena estabelecer e defender rapidamente alguns termos fundamentais que passaremos a usar.

Adoração

A palavra "adoração" em nosso idioma e seus equivalentes no gre-go coiné têm ampla gama de possibilidades semânticas. Portanto, quando se diz que essa ou aquela figura recebe "adoração", não está sempre ou automaticamente claro o que isso significa. No culto tradicional de casamento do Livro de oração comum, por exemplo, quando o noivo coloca a aliança no dedo da noiva, ele promete, na redação original, "Com meu corpo te adoro", o que significa basicamente um compromisso de fidelidade sexual e de respeito cercado de amor pela esposa. Como se trata de um culto formal de casamento cristão, não existe aí divinização alguma da noiva, tam-pouco se deve temer pela violação do monoteísmo! De modo geral, as definições que os dicionários dão do substantivo vão desde "cor-tesia ou reverência ao que é digno de recebê-la", portanto "honra e respeito", até "honras prestadas a uma divindade", além de "respeito obsequioso ou devoção"?

Espectro semântico semelhante é também encontrado em vá-rios termos gregos afins, sobretudo se levarmos em conta seu em-prego em inúmeros conjuntos de provas e situações diversas. Nos textos bíblicos, porém, as palavras tendem a ser usadas com maior frequência no que se refere à reverência prestada a uma figura tra-tada como divindade. No NT, o verbo latretto (21 ocorrências) e o substantivo cognato 'atrela (5 ocorrências) estão relacionados

'The form of solemnization of matrimony, The book of common prayer,

London: Mowbray. Adoração, in: Webster's new collegiate dictionary, Springfield: Merriam, 1961. A redação oficial da Igreja Anglicana no Brasil hoje traz: "De alma e corpo te honro" (N. do E.).

84 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

exclusivamente a Deus (ou outras divindades), e é ele seu objeto.' De igual modo, threskeia (4 ocorrências) denota de forma sistemá-tica no NT a devoção religiosa dirigida a uma divindade.' O verbo leitourgeo e o substantivo cognato leitourgia aparecem somente al-gumas vezes no NT e em todos os casos (numa provável demons-tração da influência da Lxx) se referem diretamente à atividade de culto e adoração (Lc 1.23; At 13.2; Hb 8.6; 9.21; 10.11) ou a outros atos religiosos em que a intenção é claramente dotar os atos de sabor cultual (Rm 15.27; 2Co 9.12; Fp 2.17,30).8 O fato é que em vários desses termos a conotação dada às ações parece ir além do caráter especificamente cultual, ganhando uma dimensão em que diversas devoções religiosas servem de expressão ao culto oferecido à divindade.'

Contudo, proskyneo, o verbo empregado com maior frequência (60 ocorrências no NT), pode, nos diversos usos que faz dele a Sep-tuaginta, aludir à reverência ou ao respeito para com uma variedade de figuras sem que isso implique a divinização do recipiendário:1°

Rute e Boaz (Rt 2.10); os irmãos de José e o próprio José (Gn 37.9,10 et al.); um suplicante e um profeta/homem santo (2Rs 2.15; 4.37); um vassalo e o rei (1Sm 24.9; 1Rs 1.16,23,31; 1Cr 21.21); Moisés e seu sogro (Êx 18.7); e outros que demonstraram profundo res-

6STRATHMANN, XcupEikn, Xcerpcia, ine KITTEL & FRIEDRICH, OrgS., Theo-logical dictionary of the New Testament.

7SCHMIDT, OprIcrxcia, etc., in: KITTEL & FRIEDRICH, OrgS., Theological dictionary. 8STRATHMANN & MEYER, ActroupyEco, 2LeLTOupylX, in: KITTEL & FRIEDRICH,

orgs., Theological dictionary. 'Os estudiosos discutem se Colossenses 2.18 (threskeia ton angellon) se refere

à adoração oferecida pelos anjos ou se trata de acusação contra os que adoram anjos. Seja como for, o termo tem a conotação de reverência cultual do tipo prestada às divindades. João 16.2 previne os seguidores de Jesus de que, para os judeus, matá-los será como "[prestar] culto a Deus" (latreian prospherein to theo).

wGREEVEN, TWoCSKUVECJ, TCp06KOVTiT1ic, in: KITTEL & FRIEDRICH, orgs., Theological dictionary. O estudo mais completo do fenômeno de proskynesis ainda é o de Horst, Proskynein: zur Anbetung im Urchristentum nach ihrer religionsges-chichtlichen Eigenart, que não foi suficientemente levado em conta em algumas discussões atuais da adoração cristã primitiva.

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 85

peito por um superior ou por alguém de quem esperavam um ato de bondade (p. ex., Jacó e Esaú, Gn 33.3-7; Abraão e os heteus, Gn 23.7,12; um mensageiro cuxita e Joabe, 2Sm 18.21; o servo de-sonesto que suplicava demência de seu rei, Mt 18.26). Aliás, Moisés profetiza que os egípcios o reverenciarão ao lhe pedirem que leve com ele os israelitas quando sair do Egito (Éx 11.8).

Nas passagens bíblicas mais enfaticamente monoteístas, os elei-tos recebem a promessa de que os gentios lhes farão reverência em reconhecimento à singularidade de Deus e ao favor por ele de-monstrado a Israel (Is 45.14,15; 49.7,23). É a essa promessa de vin-dicação dos eleitos que provavelmente faz alusão Apocalipse 3.9, em que os cristãos de Filadélfia recebem a promessa de que seus adversários farão reverência a eles com o mesmo gesto que as na-ções usarão para demonstrar obediência a Deus em Apocalipse 15.4. A propósito, parece-nos muito provável que as passagens das Similitudes de 1Enoque, em que a figura do "Filho do homem" é reverenciada pelas nações (48.5; 62.1-9) devam ser consideradas de-vedoras das passagens de Isaías. Portanto, para o autor de 1Enoque, a obediência prestada ao "Filho do homem" não tinha a conotação de adoração cultual ou de divinização dessa figura mais do que tinham as descrições equivalentes de obediência feitas em relação a Israel/o servo/o eleito em Isaías, ou as prometidas aos eleitos em Apocalipse.

Contudo, na Septuaginta, certamente proskyneo também se re-fere com muita frequência ao ato de reverência a Deus ou a outras divindades (p. ex., Ex 20.5; 23.24; 34.8; 1Sm 1.3; Ne 8.6; 9.3). No NT, o termo tem essa conotação na maior parte das vezes. Quanto ao seu emprego nas demais partes do NT, além dos dois casos em que Satanás pede a Jesus que o reverencie (Mt 4.9; Lc 4.7) e que possivelmente representam a tentação de adorar Satanás, há um em que Pedro é reverenciado, mas recusa o gesto (At 10.25), e uma ocorrência em Hebreus 1.6, em que anjos recebem a ordem de re-verenciar o Filho. Há ainda outros quinze casos nos Evangelhos em

que o termo descreve a reverência a Jesus durante seu ministério (p. ex., Mc 5.6; Mt 20.20; cf. a obediência zombeteira de Mc 15.19) e depois da ressurreição (Mt 28.9,17; Lc 24.52).

86 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Dada a extensão da conotação de reverência presente no ges-to de proskynesis (indicado pelo verbo proskyneo) em seu uso mais amplo, nem sempre é fácil saber ao certo que grau de reverência é expresso em relação à pessoa de Jesus em casos específicos em que o Jesus "anterior à Páscoa" é alvo de tal gesto. De igual modo, não devemos tomar todos os casos de proskynesis relacionados a outras figuras, em outras fontes, como se sua conotação fosse também a de adoração cultual de uma divindade. Em si mesmo, o gesto (que consistia originalmente em uma mesura e um beijo) parece sempre expressar reverência ou respeito à figura a quem é dirigido, mas o significado ou a importância específica da reverência ou respeito varia de acordo com as pretensões da figura objeto da reverência. Portanto, proskynesis diante de um oficial do rei significa apenas que, por meio desse gesto, a pessoa demonstra aceitar a posição do oficial como superior à sua e, portanto, merecedora de respeito. Assim, por exemplo, a recusa de Mardoqueu em prestar reverência a Hamã (Et 3.1-6) é sinal de que Mardoqueu o despreza e, possivel-mente, despreza também o estilo obsequioso observado na corte."

A diversidade de sentidos e o alcance que a ideia de reverên-cia encontra em proskynesis aparecem de modo muito vívido em 1Crônicas 29.20-22, em que o povo se curva e reverencia Deus e o rei Davi (v. 20b). A adoração cultual aqui, entretanto, é dirigida exclusivamente a Deus, porque Davi ordena ao povo "Bendizei ao SENHOR, vosso Deus!" (v. 20a), e os sacrifícios e as ofertas são di-rigidos especificamente a Iavé (v. 21,22). A proskynesis dirigida ao rei parece querer dizer que ele também é reverenciado como rei justo que conta com a aprovação divina e, por isso, as ordens do rei para que Deus seja adorado devem ser obedecidas.12 A reverência ao

"É possível que o autor quisesse estabelecer o contraste entre a reverência servil de Hamã, a mais alta autoridade da corte, e a reverência a Mardoqueu, elevado a uma posição tal, que o deixava próximo do rei (Et 10.2), e da qual ele se vale para promover o bem-estar de seu povo.

'Em relação ao tratamento dado ao rei pelo cronista, v., de Kuntzmann, "Le trône de Dieu dans l'oeuvre du chroniste" (in: PHILONENKO, org., Le trône de Dieu).

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 87

rei não é, porém, a mesma adoração a Deus aqui, embora o mesmo gesto seja usado para expressar as duas coisas."

No título deste capítulo, o termo "adoração" foi usado no senti-do de atos de reverência cujo propósito é exprimir especificamente o tipo de devoção religiosa dirigida a uma divindade nas culturas ou tradições cujo impacto direto sobre o cristianismo primitivo foi mais significativo. Em outras palavras, o termo é usado para designar a adoração "cultual", especialmente a devoção oferecida num contexto (litúrgico) específico de adoração, a qual se expressa em louvor, ações de graças, comunhão e súplica e que, de maneira objetiva, representa, manifesta e reforça a relação do adorador com o divino." Visto que os cristãos primitivos se reuniam em grupos, estamos particularmente interessados na devoção religiosa típica desses ajuntamentos, na ex-pressão comunitária de sua orientação e de suas convicções religiosas. Além disso, vamos examinar também as características da prática de-vocional em outros contextos (p. ex., a oração pessoal), à medida que tais características são mencionadas abertamente pelos cristãos primi-tivos e acrescentadas por eles ao seu "modelo" devocional comuni-tário." Estamos interessados aqui na análise desses atos devocionais

'3A imagem de Salomão sentado "como rei no trono do SENHOR" (1Cr 29.23)

faz referência, naturalmente, à sua condição de ocupante do trono real à frente de um reino teocrático estabelecido pela divindade; trata-se de um rei que reina por designação divina e que age como representante da divindade. Nada na passagem indica qualquer possível confusão do rei com Iavé, tampouco vislumbra qualquer oferta de sacrifício ou adoração cultual formal ao rei.

14V., p. ex., os verbetes "cultus", "cultus vere divines", "latria" (MuLLER, Diction-ary of Latiu and Greek theological terras). Aune (Adoração, p. 975) cita a definição de "culto" de S. Mowinckel: "formas visíveis, eficazes, organizadas e ordenadas social-mente por meio das quais a experiência religiosa entre a divindade e a "comunidade" ganha expressão e seus efeitos são manifestos" (S. MOWINCKEL, Rcc, v. 4, p. 120-1).

15Diante das provas obtidas nos últimos séculos, é evidente que pelo menos al-guns cristãos praticavam atos religiosos ou rituais fora do contexto "litúrgico", atos esses que compreendiam, entre outras coisas, encantamentos, uso de amuletos etc., e, às vezes, esses mesmos cristãos invocavam outras figuras que não Deus e Cristo ou junto com eles. Na presente discussão, porém, concentramo-nos nas ações devocio-nais abertamente incentivadas, em que os cristãos participavam e as quais ratificavam como expressões diretas de sua identidade religiosa. V., p. ex., de Aune, "Magic in ear-ly Christianity" (in: TEMPORINI & HAASE, orgs., Azifstieg und Niedetgang der romischen Welt) e ainda, de Meyer e Smith, Ancient Christian magic: Coptic texts of ritual power.

88 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

que, para os cristãos primitivos, constituíam as convicções religiosas que com mais carinho cultivavam em relação ao divino.

Binitário Uma vez que as atitudes religiosas dos primeiros cristãos eram pautadas por escrúpulos bíblicos/judaicos que os levavam a evitar a adoração cultual de outros deuses, seres humanos, anjos e quaisquer figuras a não ser o Deus verdadeiro da tradição bíblica, a inclu-são explícita e programática de Cristo em sua prática devocional não deixa de ser interessante, até mesmo surpreendente, como já pudemos demonstrar em outro lugar.16 Na próxima seção desta análise, trataremos dos fenômenos específicos da "devoção a Cris-to" entre os cristãos primitivos. Conforme esperamos demonstrar na parte final deste capítulo, a inclusão de Cristo como objeto da devoção religiosa não era um artifício por meio do qual os pri-meiros cristãos reconheciam a existência de outro deus. Embora o "diteísmo" representasse muito bem o tipo de acusação que pelo menos alguns críticos faziam aos cristãos (p. ex., Jo 5.18; 10.33), o

termo não parece expressar a opinião que tinham de seu modelo devocional. Nossa proposta é que nessa duidade característica da prática devocional daqueles crentes havia também um padrão de comportamento religioso que relacionava Cristo a Deus por meios cujo objetivo parece ter sido preservar uma posição "monoteísta" exclusivista. É a essa solução cristã primitiva, em que Cristo surge como figura ao lado de Deus "Pai" no âmbito de um compromisso religioso monoteísta muito forte, que chamamos de modelo "bini-tário" de adoração cristã.17

16V. esp., de Hurtado, One God, one Lord e, do mesmo autor, "First-century Jewish monotheism" (Journal for the Study of the New Testament, v. 71, p. 3-26, 1998).

"Alguns estudiosos empregam o termo "monoteísmo cristológico" para se referir à inclusão de Cristo ao lado de Deus no cristianismo primitivo. V., p. ex., de Bauckham, God crucified: monotheism and Chrístology in the New Testament (esp. p. 25-42).

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 89

Fenômenos da devoção cultual cristã primitiva

Incomodam-nos as abstrações que não possam ser imediatamente testadas; por isso mesmo, temos plena consciência das dificulda-des de compreender as concepções não expressas (ou vagamente expressas) dos antigos e de evitar o anacronismo no desenvolvi-mento de categorias conceituais para a análise das crenças cristãs em seus primórdios. Consequentemente, enfatizamos a importân-cia de uma abordagem indutiva que se concentre nos fenômenos reais da devoção religiosa." Foi pensando assim que em nosso livro One God, one Lord [Um Deus, uni Senhor] lidamos com a prática

devocional cristã primitiva dirigida a Cristo, referindo-nos à evi-dência de uma "mutação" na devoção monoteísta com base no que restou dos antigos documentos literários do primeiro século do cristianismo.' 9 Listamos e discutimos brevemente seis fenômenos da devoção religiosa cristã dos primórdios que, em nossa opinião, resultaram em um modelo de devoção sem paralelos entre outros grupos religiosos conhecidos que se identificavam com a tradição bíblica/judaica. Esse modelo de devoção constitui, portanto, uma "mutação" bem definida na prática monoteísta judaica, com um caráter nitidamente "binitário".

Nos onze anos que se seguiram à primeira edição do livro citado, alguns estudiosos questionaram se os fenômenos constituiriam real-mente uma "mutação" significativa na prática monoteísta e se repre-sentariam, de fato, a expressão da adoração cultual a Cristo. Outros, apontando para o que consideravam ser precedentes e analogias,

''Em "First-century Jewish monotheism", p. ex., recomendamos que se re-corra a uma estratégia indutiva ao definir o termo "monoteísmo" aplicado à antiga religião judaica e ao cristianismo em seus primórdios.

19HURTADO, Que God, one Lord, esp. p. 99-100, 124. Para uma discussão proveitosa das práticas/rituais de adoração nas igrejas paulinas, v., de Meeks, The first urban Christians: the social world of the apostle Paul (p. 140-63). Quanto às práticas religiosas/cultuais pagãs, v, de MacMullen, Patanism in the Roinan Em-pire (esp. p. 1-48). Para uma pesquisa recente sobre as práticas das antigas sina-gogas judaicas, v., de Reif, judaism and Hebreu' prayer: nem perspectives on lema liturgical history (esp. p. 53-87).

90 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

admitiram que os cristãos primitivos adoravam Cristo, mas questio-

naram se era algo realmente inovador e significativo no decurso da

história conforme eu dissera.2° Portanto, acreditamos ser oportuno

retomar os fenômenos específicos da "devoção cristã" primitiva, os

quais, como continuamos a sustentar, constituem efetivamente um

modelo comunitário bem definido de devoção binitária no qual

Cristo se acha incluído ao lado de Deus como objeto de uma de-

voção que pode ser bem entendida como adoração.21 Como nossa

preocupação aqui é de caráter primordialmente histórico, destaca-

remos de modo particular as evidências dos estágios mais antigos

da prática devocional cristã. Significa que nos concentraremos nos

textos paulinos e em outras referências que possam ser tomadas

como reflexos de uma prática cristã bastante remota.

À luz das críticas feitas à nossa posição, gostaríamos de en-

fatizar duas coisas sobre os fenômenos a ser discutidos. Em pri-

meiro lugar, são uma constelação de práticas devocionais, e é a

força coletiva dos fenômenos que constitui a "mutação" da prática

monoteísta aqui sustentada. No caso dos fenômenos tomados in-

dividualmente, poderá haver analogias interessantes. Já se aventou

a hipótese, por exemplo, de que a invocação de anjos no corpus ju-

daico "de práticas mágicas" ou a menção reverente a eles em outras

fontes judaicas seria um tipo de analogia parcial da oração dirigida

a Jesus e da invocação ritual feita a ele.22 Contudo, desconhecemos

20Dunn (The theology of Paul the apostle, p. 257-60) prefere interpretar a devoção paulina a Cristo como "veneração de Cristo, querendo dizer com isso que não se tratava de veneração plena". Fletcher-Louis diz ter reunido vários precedentes para a adoração de Cristo (Luke-Acts: angels, Christology and sote-riology, p. 120-9, 214).

"V. a importante discussão de Bauckham, "Jesus, worship to", para uma perspectiva semelhante. Entre os estudos antigos, v., de Conzelmann, "Christus im Gottesdienst der neutestamentlichen Zeit" (in: idem, Theoloçie als Schrftaus- , legung: Aufsãtze zum Neuen Testament, p. 120-30).

22v esp., de Stuckenbruck, Angel veneration and Christology e nossa critica no rs (v. 47, p. 248-53,1996).

O FORMATO BIN ITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 91

se já foi proposta alguma analogia para o modelo de fenômenos

devocionais centrado em Jesus.23

Em segundo lugar, e talvez até de forma mais importante, es-

ses fenômenos constituem a prática devocional real dos adeptos de

um movimento religioso conhecido, funcionando como marcas de

identificação de sua vida devocional. Referências dispersas a essa

ou àquela figura reverenciada em cenas literárias situadas no passa-

do cósmico (p. ex., a ordem dada aos anjos para que reverenciem

Adão como "imagem" de Deus em Vitae Adae et Evae [A vida de

Adão e Eva] 13-14), no futuro escatológico (p. ex., a reverência

dos reis estrangeiros à figura do Eleito/Filho do homem em fEno-

que 48.5; 62.9) ou em visões figuradas situadas num plano celestial

(a obediência das estrelas a Moisés em Ezequiel, o dramaturgo) são

interessantes porque ilustram as direções e formas especulativas que

o pensamento judeu antigo pode ter tomado no tocante à exaltação

"Horbury (Jewish niessianism and the mit of Christ) acredita que a ado-ração a Cristo se explica pelo messianismo judaico. Contudo, o fato é que o louvor dado aos governantes judeus e a retórica honorífica conferida às figu-ras messiânicas não oferecem nenhum paralelo real para o padrão de devoção cultual a Cristo expresso no NT. Horbury usa o termo "culto" de forma muito ampla, a ponto de estendê-lo a qualquer tipo de respeito e reverência presta-dos a uma figura. Isso obscurece os fatos. A mesma crítica pode ser feita em relação à associação que Horbury faz entre a adoração a Cristo e a reverência prestada pelos cristãos primitivos e judeus aos mártires ("The cult of Christ and the cult of the saints", New Testament Studies, v. 44, p. 444-69, 1998). Contra Horbury, O martírio de Policarpo 17.3 faz uma clara distinção entre os dois tipos de reverência. Some-se a isso a seguinte declaração dc Ireneu: "Tampouco ela [a igreja] faz o que quer que seja por meio de invocação aos anjos, de encan-tamentos ou de qualquer outra arte ímpia e estranha; pelo contrário, orando ao Senhor, que fez todas as coisas, em espírito de pureza, sinceridade e retidão, e invocando o nome do nosso Senhor Jesus Cristo, ela está habituada a realizar milagres para o bem da humanidade..." (Against heresies, 2.32.5, apud v. 2, p. 409). O que se discute aqui não é se todos os cristãos seguiam sempre esse tipo de prática, e sim que tipo de modelo devocional era incentivado e consi-derado correto. A devoção a Cristo fazia parte disso, ao passo que a devoção a outras figuras, não.

92 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

das figuras simbólicas.24 Contudo, nenhum dos exemplos apresen-tados nos dá evidências de movimentos ou grupos religiosos cujo modelo devocional incluísse a reverência cultual a quaisquer dessas figuras. Pelo contrário, as cenas de reverência a elas parecem ser todas fenômenos literários apenas. Isso significa que a obediência descrita não é exatamente a "adoração" de tais figuras como divin-dades por um grupo real qualquer de judeus devotos. No caso das evidências do NT sobre a devoção a Cristo, temos características da práxis devocional do movimento cristão primitivo, sendo a reverên-cia parte do modelo cultual dos grupos cristãos em seus primórdios.

1. Oração25 Como era de esperar, no NT e em outras fontes cristãs primitivas, a oração é dirigida sobretudo a Deus (p. ex., At 4.24-30). Mas também é verdade que é dirigida a Deus "por meio" de Jesus (p. ex., Rm 1.8) ou em nome de Jesus (p. ex., Jo 16.23,24), algo que, até onde sabe-mos, não encontra paralelo nas evidências da prática de oração ju-daica antiga. O fato é que a oração neotestamentária é muitas vezes dirigida a "Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" (p. ex., 2Co 1.3; Ef 1.3; Cl 1.3). Esta última expressão encontra seu correspondente em referências ao "Deus de Abraão, [...] Deus de Isaque e [...] Deus de

"Steenburg faz referência à cena de A vida de Adão e Eva, em latim, mas re-conhece que não há prova de que algum grupo judeu praticasse uma reverência cultual a Adão e que fosse esse seu modelo de devoção cultual ("The worship of Adam and Christ as the image of God", journal for the Study of the New Testa-ment, v. 39, p. 95-109, 1990). As traduções em inglês desses e de outros textos extracanônicos podem ser encontradas em The Old Testament pseudepigrapha, de Charlesworth.

"Entre os grandes estudos sobre a oração cristã primitiva, destacam-se, de Hamman, La prière, 1: le Noveau Testament; do mesmo autor, "La prière chré-tienne et la prière païenne, formes et différences"; de Dõlger, Sol Saltais: Gebet und Gesang im christlichen Altertum mit besonderer Rücksicht auf die Ostung in Gebet und Liturgie; de Klawek, Das Gebet zu Jesus. Seine Berechtigung und Ubung nach den Schriftett des Nenen Testaments: eine biblische-theologische Studie; de Jung-mann, The ¡lace of Christ in liturgical prayer; de Lebreton, Histoire du dognie de la trinité (v. 2, p. 175-247) e, de Cullmann, Prayer in the New Testament.

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 93

Jacó" (Êx 3.6; Mc 12.26), porém essa reidentificação de Deus toman-do Jesus como referência mostra, sem dúvida alguma, a importância de Jesus na devoção cristã dos primórdios como referencial de identi-dade do grupo e artífice do seu modelo de piedade.

Além disso, embora não seja muito frequente, encontramos evidências de orações a Jesus dirigidas igualmente a Deus, bem como outras diretamente a Jesus apenas.26 Nas epístolas paulinas, diversas passagens que são tecnicamente expressões de um desejo de oração devem ser interpretadas como ecos de práticas de ora-ção dirigidas a Deus e a Jesus, que eram invocados conjuntamente (1Ts 3.11-13; 2Ts 2.16,17; 3.5). A elas devemos acrescentar a sau-dação de "graça e paz" que Paulo usa na abertura de suas cartas, em que invoca Deus e Jesus, e que provavelmente devem ser en-tendidas como adaptação feita pelo apóstolo de expressões e prá-ticas religiosas usadas em suas igrejas (Rm 1.7; 1Co 1.3; 2Co 1.3; Gl 1.3; Fp 1.2; 2Ts 1.2).27 Igualmente importante é a bênção que o apóstolo dispensa, invocando a graça de Deus na conclusão de suas cartas, e que remete também às práticas devocionais e litúrgi-cas dos primeiros cristãos, em que Jesus é invocado como fonte da graça, quase sempre sozinho (Rm 16.20; 1Co 16.23; Gl 6.18; Fp 4.23; 1Ts 5.28; 2Ts 3.18), e uma vez na expressão triádica de 2Co-ríntios 13.14 conhecida de muitos cristãos. Tais expressões, usadas em cartas que deveriam ser lidas durante a adoração pelos grupos cristãos a que eram endereçadas e que exprimiam as manifestações litúrgicas típicas desses grupos, mostram que já nas primeiras duas décadas de existência do movimento cristão era comum (e fato as-sentado entre os crentes) pôr Jesus ao lado de Deus como fonte de bênçãos e alvo de súplicas na vida devocional dos cristãos.

2613auckham queixa-se de que "as evidências no NT para a oração pessoal dirigida a Jesus são, por vezes, subestimadas", e cita a seguir as mesmas evidências referidas aqui (Jesus, worship to, p. 813). A análise de Hamman é crucial para as evidências paulinas (La priêre, p. 245-337). V esp. sua discussão que busca iden-tificar a quem a oração é dirigida em Paulo (p. 264-80).

27P. ex., de J. L. White, "New Testament epistolary literature in the fra-mework of ancient epistolography" (in: TEMPORINI & HAASE, orgs., Aufstieg und Niedergang der rifunischen Welt).

94 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Nas epístolas paulinas, a oração direta e pessoal a Jesus aparece

explicitamente apenas em 2Coríntios 12.8,9, em que Paulo faz re-petidos apelos ao "Senhor" para que ele remova uma aflição enviada

por Satanás. É correto afirmar que Paulo se refere aqui provavel-mente à oração particular. Portanto, não se trata de um texto sobre a

oração coletiva. Contudo, a tranquilidade com que o apóstolo relata tais coisas indica que ele crê que seus leitores estejam familiarizados com as súplicas em forma de oração dirigidas a Jesus, as quais seriam

comuns à práxis devocional cristã aceita pela comunidade. O relato da morte de Estêvão, embora muitos acreditem ter

sido escrito numa época posterior às cartas de Paulo, é mais um

exemplo de oração direta dirigida a Jesus (At 7.59,60). Trata-se aqui também de uma oração pessoal, mas é possível que o autor espere que seus leitores cristãos estejam bastante familiarizados com Jesus como recipiendário das orações.28 O fato é que a oração dirigida diretamente a Jesus é muito mais frequente na literatura cristã apó-

crifa. Como esses escritos são comumente tomados como exemplos

de piedade cristã "popular", não como prática mais monitorada e "oficial", é possível que a oração feita diretamente a Jesus fosse mais

frequente na prática popular cristã — até mesmo no período mais remoto do cristianismo — do que nas referências explícitas feitas a ela nas páginas do NT.29 A referência em Atos 13.2 aos discípu-los de Antioquia, que "adoravam o Senhor" (NvI) (leitourgounton de

autor to kyrio), embora ligeiramente ambígua, pode muito bem relacionar-se ao Jesus exaltado.3°

nLebreton (Dogme de la trinité, p. 226-38) chama a atenção para um mode-lo de oração feita diretamente a Cristo nos relatos dos martírios cristãos, dos quais o martírio de Estêvão é o mais antigo e paradigma por excelência dos demais. O vínculo entre a oração a Jesus e os relatos dos mártires cristãos também aparece em Bauckham ("Jesus, worship to", p. 817).

Sobre a oração dirigida a Jesus na literatura cristã apócrifa, v, de Jung-mann, Liturgical Proyer (p. 165-8).

"A expressão aparece frequentemente na Bíblia grega, onde tem claro sen-tido cultual: p. ex., 1Sm 3.1; 2Cr 1.14; 35.3; Jl 1.13; 2.17; Judite 4.14; Sirácida [ou Eclesiástico] 7.30; 45.15.

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 95

2. Invocação e confissão

Seja qual for a frequência e a importância das orações dirigidas a Jesus na adoração coletiva cristã, tanto diretamente quanto ao lado de Deus, fica muito claro que havia também outros rituais de ado-ração coletiva em que Jesus era invocado e também objeto da adora-ção; além disso, essas práticas remontam às décadas mais antigas do movimento cristão. Por motivos cronológicos, o conhecido frag-mento cristão em aramaico utilizado na liturgia e preservado na transliteração grega de 1Corintios 16.22, maranatha, merece desta-que especial.31 O sentido que se costuma atribuir a ele é o de apelo imperativo, que pode ser assim traduzido: "Vem, Senhor nosso!", apelo ou exclamação que surgiu nas reuniões de adoração dos cris-tãos de língua aramaica. Quando 1Corintios foi escrito (c. 55 d.C.), a expressão havia se tornado uma fórmula litúrgica tão comum, que não requeria mais tradução, nem mesmo entre os gentios de fala grega convertidos pela instrumentalidade do apóstolo Paulo." A função precisa da expressão em seu contexto original é motivo de debate, mas há um consenso atualmente de que nesse fragmen-to das práticas litúrgicas das primeiras décadas Jesus é tratado pelo ritual (e, provavelmente, de forma coletiva) como "Senhor". Quer essa invocação tenha o objetivo de pedir sua presença no culto, quer (conforme se acredita comumente hoje) seja urna súplica por sua vinda escatológica, tal apelo feito a Jesus no contexto da adora-ção cristã primitiva não tem paralelo conhecido em nenhum outro grupo vinculado à matriz religiosa judaica. Portanto, essa prática ritual evidencia a incorporação de Jesus à vida devocional daqueles

''V nossa discussão em Que God, one Lord (p. 106-7). V. tb., de Conzelmann, 1 Corinthians (p. 300-1) c, de Fee, The first epistle to the Corinthians (p. 837-9); e agora tb., de Davis, The narre and way of the Lord: Old Testament Theines, New Te.slament Christology (p. 136-9), cujas análises finais, entretanto, me pareceram demasiado frágeis.

3=É claro que, como é sabido, a fórmula também aparece sem tradução na Didaquê (10.6) como parte da oração eucarística ali prescrita.

96 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

cristãos num papel normalmente reservado a Deus." Isso não sig-nifica apenas que Jesus agora é "o Senhor" cuja volta é esperada e, quando isso acontecer, que endireitará todas as coisas, assumindo assim um papel que na expectativa judaica era atribuído a Deus (p. ex., lEnoque 1.9). Mais extraordinário ainda que isso é a modifi-cação evidente da prática litúrgica desse ritual de invocação a Jesus — de resto, reconhecidamente monoteísta.

Nas cartas de Paulo, encontramos outras referências a atos ri-tuais dirigidos nominalmente a Jesus. Entre elas, Romanos 10.9-13 merece especial atenção. Aqui, Paulo diz que confessar (hornologeo)

"Jesus como Senhor" (Kyrios Jesus, v. 9) e crer em sua ressurreição são critérios de salvação escatológica.34 Conforme sabemos muito bem, basicamente a mesma confissão está registrada em 1Coríntios 12.3, em que aparece diretamente relacionada ao impulso do Espíri-to Santo num contexto claramente preocupado com questões litúr-gicas (1Co 12-14), e, em Filipenses 2.11, em que ela é a aclamação escatológica de toda a criação numa passagem que se acredita ori-ginária das práticas litúrgicas das primeiras décadas do cristianismo.

Os antecedentes linguísticos e semânticos e as implicações do título kyrios foram amplamente examinados e debatidos pelos estu-diosos, mas queremos enfatizar aqui o contexto litúrgico e a função da fólinula. Em todas as referências colhidas no corpos paulino, o contexto das expressões é a congregação cristã e a adoração coleti-va." Em Christian confessions (p. 60-7), Neufeld procura, de forma pouco convincente, relacionar o ato de confissão de maneira mui-to estreita a situações de provação, conflito e perseguição. Desse modo, o ato (provavelmente coletivo) de confissão do senhorio de

"No que se refere aos antecedentes escatológicos da expressão, que mostra a transferência para Jesus da expectativa originalmente dirigida a Deus, v, de Black, "The maranatha invocation and Jude 14, 15 (1 Enoch 1.9)" (in: LINDARS & SMALLEY, orgs., Christ and Spirit in the New Testament, p. 189-96).

"NEUFELD, The earliest Christian confessions, p. 42-68. "Cf., de Neufeld, Christian confessions (p. 60-7), que tenta, de forma não

convincente, vincular intimamente o ato de confissão a situações de provações, conflitos e perseguição.

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 97

Cristo seria um ato litúrgico cuja função ritual era afirmar a nature-za do grupo reunido sob a autoridade e a eficácia de Jesus. O fato é que essa aclamação litúrgica da exaltação presente de Jesus e de seu triunfo escatológico parece ter a intenção de decretar seu triunfo pelo ritual na assembleia cristã.

Por sinal, Paulo e outros autores neotestamentários referem-se aos cristãos como aqueles que ritualmente invocam (epikaloumai)Je-sus como Senhor, sinal de que o ato litúrgico conotado por essa ex-pressão foi visto desde cedo como elemento constituinte e denotativo da vida devocional cristã.3ó Introduzida pouco depois da referência à confissão crucial de Jesus como "Senhor" como meio de salvação em Romanos 10.9, a citação que Paulo faz de Joel 2.32 ("E todo aquele que invocar o nome do SENHOR será salvo") só pode ser entendida em referência à invocação ritual de Jesus. Tanto assim que em 1Corintios 1.2b Paulo cita Jesus pelo nome como Senhor que é invocado e torna o ato cultual um evento que acolhe todos os crentes (v. tb., p. ex., At 9.14,21; 22.16; 2Tm 2.22). No Antigo Testamento, "invocar o nome do SENHOR" (traduzido sistematicamente na Lxx por formas médias de epikaleo) é um ato ritual de adoração.37 É bem provável que "in-vocar o nome do Senhor Jesus" inclua especificamente a "confissão" litúrgica de Jesus como Senhor." Contudo, à luz dos antecedentes neotestamentários da expressão, creio que "invocar o nome do Se-nhor (Jesus)" aponte para a práxis mais disseminada de tratar o Jesus exaltado como alvo da devoção da comunidade cristã por meio da invocação, da oração e do louvor. A utilização dessa expressão neotes-tamentária, que ali se refere à devoção cultual a Deus, para designar a devoção cultual a Jesus, é uma apropriação linguística extraordinária.

"V. nossa discussão anterior em One God, one Lord (p. 108-11). Em relação aos antecedentes veterotestamenrários em que essa frase e ação ocorrem, e às referências do NT a ela, v., de Davis, Name and way (p. 103-40).

37Ibidem, p. 103-10. SCHMIDT, EITI,KGXECD, KITTEL & FRIEDRICH, orgs., Theological dictionary, p. 496-500.

"Kramer (Christ, Lord, Son of God, p. 79) observa que a apropriação cristã da expressão estava a princípio associada à confissão cultual, espalhando-se pos-teriormente para outros atos rituais. V tb., de Vielhauer, Aufsatze zuni Neuen Testament (p. 141-98).

98 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Todavia, o fenômeno a que a frase se refere, isto é, a elevação de Je-sus à condição de objeto da devoção cultual organizada nas igrejas cristãs dos primórdios, é algo ainda mais ousado e digno de nota.39 Não há dúvida de que a adoção/adaptação da expressão cultual do AT para exprimir a devoção a Jesus deve ser entendida, ao que tudo indica, como sinal de que os primeiros cristãos pretendiam fazer uma associação e uma analogia direta entre sua devoção a Jesus e a devoção cultual do AT a Iavé.

Essa associação objetiva de Jesus com Deus na vida cultual das igrejas primitivas aparece com muita força em 1Corintios 5.1-5, em que Paulo ordena à igreja de Corinto que discipline um homem que vivia sexualmente com "a esposa de seu pai". O julgamento coletivo desse homem deverá ser feito no contexto cultual (de ado-ração). Reunidos "em nome do Senhor Jesus" e com "o poder de nosso Senhor Jesus", a igreja deve entregar o ofensor a Satanás, apa-rentemente na esperança de que o homem seja salvo no "dia do Senhor".4° Jesus é o Senhor escatológico cuja vinda é referida aqui

"HURTADO, One God, one Lord, p. 109, 165 (nota 58). "Cremos que a expressão "em nome de nosso Senhor Jesus" neste caso mo-

difica a oração participial, synachthenton bytnnon ["quando vos reunirdes"], em sintonia com a tradução das versões NVI, A21, BI, NEB e em oposição à da izsv, NRsv, CEV, NAB. Cf., de Fee, Corinthians (p. 206-8). Mesmo que a oração seja interpre-tada como se modificasse o veredicto de Paulo, caberia ainda à igreja agir "com o poder de nosso Senhor Jesus", o que faz dessa passagem, sem dúvida alguma, uma cena e um ato cultual em que Jesus é central. Com relação às variantes textuais do v. 4 ("em nome do [nosso] Senhor Jesus"), v., de Fee, Corinthians (p. 198). A estreita vinculação entre o senhorio escatológico e presente/cultual de Jesus nes-sa passagem ilustra também a falácia da ideia de que esses dois temas têm uma história à parte e podem ser mais bem entendidos com base em alguma teoria evolucionária. Em "Atonement texture in 1 Corinthians 5.5" (puma! for the Study of the Neiv Testament, v. 71, p. 29-50, 1998), Schillington diz (e é apoiado por outros) que Paulo vislumbra a morte do homem incestuoso, e que a oração final (hino to pneuma sothe en te hemera tou kyriou) ["para que o espírito seja salvo no dia do Senhor"] refere-se à preservação do Espírito Santo na igreja, não ao espírito do homem. Contudo, carece de base a insistência com que Schillington enfatiza a "alusão" ao bode expiatório ritual (de Lv 16) nessa passagem; além disso, ele des-considera 1Timóteo 1.20, em que o autor também se refere à entrega de pessoas a Satanás como medida disciplinar para os ofensores. Em relação a 1Corintios 5.1-5, creio que a discussão de Fee é bastante proveitosa (Corinthians, p. 199-214).

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 99

com a expressão veterotestamentária da aparição salvífica de Deus, um vínculo notável com Jesus desempenhando funções divinas.'" Mais extraordinário ainda é o fato de que o "Senhor Jesus" também é aquele em cujo nome e poder o ajuntamento cultual ocorre e o julgamento disciplinar é feito. Devemos inferir a prática de uma invocação ritual do nome de Jesus para a reunião da assembleia, e a ação disciplinar que Paulo prescreve provavelmente incluía também uma invocação ritual do nome e do poder de Jesus para sua realiza-ção. A presença e o poder de Jesus no culto funcionam claramente aqui de um modo que geralmente associamos a um deus.42 Além disso, simplesmente não há paralelo algum desse tipo de manifesta-ção em nenhum outro grupo da época com vínculos comparáveis ao escrúpulo monoteísta bíblico/judaico contrário ao envolvimento de figuras, exceto a do Deus de Israel, na devoção cultual. Por outro lado, cumpre notar a ênfase que lEnoque dá ao nome de Deus: em relação aos que negam seu nome (45.1; 46.7), aos que o glorifi-cam/bendizem/exaltam (46.6; 48.6; 61.9,11,12; 63.7) e aos eleitos vitoriosos por meio do nome de Deus (50.2,3). A ação que Paulo prescreve aqui pode não ser aquela que tomaríamos normalmente como "adoração", mas se trata inegavelmente de um contexto e de uma ação cultuais cuja eficácia provém do nome e do poder de Jesus, o que certamente lhe confere um lugar central na vida cultual mais ampla dessas igrejas.

A invocação do nome de Jesus durante o culto aparece prova-velmente também em Filipenses 2.9-11, em que a aclamação uni-versal do senhorio de Jesus deve ser feita "em nome de Jesus" (v. 10; en to onomati Iesou). Acredita-se que a aclamação universal projetada nesses versículos fosse interpretada pelos cristãos como justificativa escatológica da confissão cultual do senhorio de Jesus já celebrado pela prática cultual cristã dos primórdios. Acredita-se também que a expressão "em nome de Jesus" deriva provavelmente da retórica e

41KREITZER, Jesus and God in Panl's eschatology. 42Cf. os relatos do AT, em que o tratamento cultual que se dá a Iavé serve à

preservação da pureza/obediência da comunidade; p. ex., Js 7.10-26.

100 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

da prática cultuais do cristianismo, em que o nome de Jesus era in-vocado ritualmente para a instalação do momento de adoração em que ele era igualmente aclamado como Senhor.43

3. Batismo

Sem dúvida alguma, o rito principal por meio do qual as pessoas se tornavam membros dos grupos cristãos primitivos era um batismo que compreendia a invocação do nome de Jesus (epi to onomati lesou,

At 8.16; en to onomati _lesou Christou, At 10.48).4 Vincular o rito de entrada na comunidade dos eleitos de maneira tão direta a Jesus é, por si só, notável, porque reflete a crença em Jesus como fiador vivo da salvação prometida àqueles que nele confiam. Essa invocação ri-tual do nome de Jesus sobre os batizados não tem paralelo em outra prática de prosélitos do judaísmo ou nos ritos de entrada de grupos como o da seita de Cunrã e é, certamente, outra forte indicação da reformulação da prática cultual monoteísta típica dos círculos cristãos primitivos. Além disso, conforme Hartman observou, o uso do título Kyrios na fórmula dessa ação cultual significaria provavelmente que Jesus era considerado sob aspectos análogos aos de Deus, e o uso ba-tismal desse título aplicado a Jesus é uma boa evidência de que, em tais casos, há nele a força de um título divino.45

43Deissmann, em "The name Jesus- BELL & DEISSMANN, orgs., Myste- dum Christi: Christological studies by British and German theologians), discute os antecedentes históricos do nome "Jesus".

"A c redi ta-se que a fórmula batismal "trinitária" de Mateus 28.19 e de Did. 7.1 (cf., porém, 9.5!) seja provavelmente uma expressão algo tardia e que a prá-tica mais remota siga a fórmula "em nome de Jesus". HEITMULLER, "Irn Namen Jesu": eine sprach-und-religionsgeschichtliche Untersuchung zum Neuen Tes-tament, speziell zur altchristlichen Taufe. HARTMAN, Baptism "into the name of Jesus" and early Christology: some tentative considerations, Studia Theologicn, v. 28, p. 21-48, 1974; idem, "Into the name of Jesus", Neiv Testament Studies, v. 20, p. 432-40, 1974; idem, Baptism, in: D. N. FREEDMAN, org., Anchor Bible dictionary; idem, "Into the nome of the Lord Jesus": baptism in the early church. BEASLEY-MURRAY, Baptism in the New Testament.

45HARTMAN, Early baptism—early Christology, in: MALHERBE & MEEKS,

orgs., The future of Christology: essays in honor of Leander E. Keck, p. 197.

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 101

Essa invocação ritual de Jesus aparece nas referências de Paulo ao batismo "em [eis] Cristo Jesus" (Rm 6.3; Gl 3.27) e também no lembrete que Paulo faz aos coríntios de que certamente eles não foram batizados em (eis) seu nome (1Co 1.15)." Proferir o nome de Jesus no batismo deve ter funcionado como um meio ritual de comunicar ao batizado o poder do Jesus exaltado e marcava a pessoa como propriedade dele (p. ex., 1Co 1.12; 3.23; Gl 3.29).47 É por isso que Paulo descreve o batizado como alguém que "se revestiu de Cristo" (Gl 3.27) e que foi "sepultado com ele [Cristo] em sua morte" por meio do rito (Rm 6.4).

Embora os questionamentos relativos à influência dos cultos pagãos sobre a prática e o pensamento cristãos primitivos exijam uma análise mais complexa da que podemos fazer aqui, é claro que há certas analogias fenomenológicas entre a importância e o papel de Jesus no batismo cristão primitivo e a importância e o papel das divindades nos mistérios pagãos. Tal como nos ritos pagãos, em que os iniciados recebiam a garantia de que a divindade de cujos ritos começavam a participar era poderosa, assim também o batis-mo cristão primitivo parecia introduzir seu beneficiário no âmbito do poder de Jesus, a quem Deus fizera Senhor." Portanto, o batismo, em que o nome de Jesus operava como poder eficaz invocado, é outra característica importante do padrão devocional dos grupos cristãos dos primórdios.

"A referência de Paulo a "nossos pais [...] batizados em Moisés, na nuvem e no mar", assim como as referências aos israelitas que consumiam "alimento espiritual" e "bebida espiritual" (1Co 10.1-5), retomam as narrativas do AT que são então aplicadas aos rituais e à linguagem cultual das igrejas paulinas em conformidade com o esforço mais abrangente do apóstolo de encorajá-las den-tro de um contexto mais amplo. Certamente não há evidência alguma de que a conversão ao judaísmo exigisse a invocação ritual de Moisés. Em relação a essa passagem, v, p. ex., de Fee, Corinthians (p. 443-8); v. tb., de Beasley-Murray, Baptism (p. 181-5).

47Flartman, em "Baptism", revela o contexto legal da fórmula "em nome". "V, p. ex., de Wedderburn, Baptism and resurrection: studies in Pauline

theology against its Graeco-Roman background (esp. p. 331, 357-8).

102 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

4. A "ceia do Senhor"49

Não é necessário aqui discutir a forma da ceia e a possível evo-lução de suas práticas e fórmulas entre os grupos cristãos primi-tivos?' Acredita-se que uma ceia santa, cujo significado, entre outros, aponta de certa forma para a comunhão religiosa dos par-ticipantes, fosse típica dos grupos cristãos dos primeiros tempos em diante. As referências mais antigas a esse respeito se encon-tram em 1Corintios 11.17-34, em que Paulo corrige alguns des-vios comportamentais no contexto da santa ceia; e, em 10.14-22, em que a santa ceia é comparada e contrastada com as refeições dos cultos dos deuses pagãos de Corinto. Para o nosso propósito, o que nos interessa é saber que tipo de ligação há entre a ceia cultual cristã e o Jesus exaltado.

Em primeiro lugar, quaisquer que sejam as práticas e fórmu-las específicas da ceia, a frequência com que era realizada (p. ex., diária ou semanalmente) e as ênfases explícitas a ela atribuídas pelos vários grupos cristãos primitivos (p. ex., ênfase escatológica, uma ligação com a morte/sacrifício de Jesus etc.), é correto se referir à ceia da comunhão cristã como ocasião de "culto", isto é, ocasião de adoração formal que fazia parte de seu modelo de-vocional. Uma ceia comunitária que expressasse especificamente

49Mais recentemente, de Klauck, "Lord's Supper" (in: D. N. FREEDMAN, Org., Anchor Bible dictionary), e, do mesmo autor, Herremnahl und hellenistischer Kult. Para uma discussão mais acessível do tema, v., de Marshall, Last Supper and Lord's Supper e tb., de Kodell, The Eucharist in the New Testament.

'OP. ex., a teoria clássica de Lietzmann, Mass and Lord's Supper: a study in the history of the liturgy. Kodell (Eucharist, p. 22-37) apresenta um panorama muito interessante das pesquisas recentes. As propostas detalhadas de Marxen sobre a evolução da prática mais remota da ceia do Senhor dependem excessivamente de noções simplistas de esferas "palestinas" e "helênicas" do cristianismo primitivo e do pressuposto, não comprovado, de um processo evolutivo (The beginnings of Christology together u'ith the Lord's Supper as a Christological problem). Em relação ao uso das palavras empregadas na instituição das narrativas da santa ceia na prática eucarística dos primórdios, v., de McGowan, "Is there a liturgical text in this Gospel?" The institution narratives and their early interpretive communities, Journal of Biblical Literature, v. 18,p. 73-87, 1999.

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 103

a comunhão cristã daqueles crentes era, sem dúvida, um traço

importante da vida congregacional dos grupos cristãos primitivos, e era igualmente, é óbvio, muito mais que uma refeição em um

horário convenientemente programado. Nas referências de Paulo

à ceia em 1Corintios, há temas religiosos profundos associados

ao rito, os quais, tudo indica, já eram tradicionais na década de

cinquenta do primeiro século (isto é, nas primeiras duas décadas do movimento cristão).

Paulo faz referência à ceia chamando-a de "ceia do Senhor"

(kyriakon deipnon, 1Co 11.20), associando diretamente a ceia a Je-

sus na condição de Senhor da congregação cristã.51 Em 1Corin-tios 11.27 e 10.21, o apóstolo faz referência ao "cálice do Senhor" (poterion kyriou) e à "mesa do Senhor" (trapezes kyriou), em que se percebe a mesma associação direta. Em 11.23-26, Paulo faz men-

ção de algo que ele vincula à tradição que lhe foi dada "[pelo]

Senhor", o que, para muitos estudiosos, significa que o apóstolo

aprendeu essas tradições com pessoas que ele, em outro lugar, diz

que "estavam em Cristo antes de mim" (Rm 16.7)." De acordo

com essa tradição, o pão e o vinho estavam diretamente associados

à morte redentora de Jesus (11.24,25), tornando-se assim parte in-

dispensável da "nova aliança" (v. 25). Paulo faz da prática contínua

da ceia cultual um ato de proclamação da morte do "Senhor" até

seu retorno escatológico (v. 26).

510 termo kyriakos fora do uso cristão que se faz dele em "ceia do Se-nhor" c "dia do Senhor", era usado no período romano em referência a assun-tos e problemas diversos do Império, corno observamos no cap. 2 e já foi há tempos demonstrado por Deissmann (Bible studies, p. 217-9; idem, Light from the ancient East, p. 357-60); v. tb. MM (p. 364). Não podemos aqui partilhar da tese de Deissmann de que o termo foi deliberadamente apropriado por Paulo e aplicado à ceia cristã numa atitude claramente política em que o apóstolo, desse modo, pretendia fazer uma crítica às pretensões do imperador roma-no. Cf., de Foerster, "Koptcocoç" (in: KITTEL & FRIEDRICH, orgs., Theological dictionary).

52P ex., de Hunter, Paul and bis predecessors.

104 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Quando trata da participação do cristão nos banquetes cul-

tuais dos deuses pagãos (1Co 10.14-22), Paulo diz que tais festas e a ceia cultual cristã são mutuamente excludentes. Ele transforma o cálice e o pão em "comunhão" (koinonia) no sangue e no corpo

de Cristo (v. 16) e faz uma analogia direta entre essa comunhão cultual e a comunhão daqueles que partilham coletivamente dos banquetes sacrificiais no templo de Jerusalém (v. 18). Numa lin-guagem influenciada pelo AT, Paulo faz referência aqui ao perigo de "[provocar] os ciúmes do Senhor" (v. 22), o que ilustra com muita clareza o lugar cultual de Jesus como Senhor e cujo poder divino deve ser reconhecido, como se vê também em 11.29-32,

em que Paulo adverte os crentes das sérias consequências de ser julgados pelo "Senhor" por comportamento inadequado à mesa da ceia.

Em suma, a ceia cultual da igreja cristã aparece aqui de modo enfático como a ocasião em que o Senhor Jesus desempenha um pa-pel explicitamente comparado ao das divindades dos cultos pagãos e de Deus!" Trata-se não somente de uma festa em memória de um herói morto. Jesus é retratado como o poder vivo que é dono da ceia e a preside, e com quem os crentes comungam como quem comunga com um deus.

Mais uma vez, não conheço figura alguma que tenha papel

cultual análogo a esse, a não ser Deus, nos círculos religiosos judai-cos do período do Segundo Templo. Como enfatizamos em One

God, one Lord, nas ceias cultuais/santas de outros grupos judaicos, como, por exemplo, a seita de Cunrã, nenhuma das figuras tão pro-eminentes em sua perspectiva escatológica (p. ex., o Professor da Justiça, o Sacerdote, o Messias real, Melquisedeque) tem lugar com-parável ao de Jesus na santa ceia dos grupos cristãos primitivos.'`

"KLAucx, Presence in the Lord's Supper: 1 Corinthians 11.23-26 in the context of Hellenistic religious history.

54P. 111-2. CE, de K. G. Kuhn, "The Lord's Supper and the communal meai at Qumran" (in: STENDHAL, org., The scrolls and the New Testament, p. 65-93, esp. p. 77-8).

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 105

5. Hinos

Diversas passagens do NT deixam claro o lugar de destaque da músi-

ca na vida devocional do cristianismo primitivo (p. ex., 1Co 14.26;

Cl 3.16,17; Ef 5.18-20; Tg 5.14; At 16.25). Para os estudiosos, inú-

meras passagens do NT apresentam um material tomado de hinos da

vida devocional dos círculos cristãos primitivos (p. ex., Fp 2.6-11;

Cl 1.15-20; Jo 1.1-18; Ef 5.14; 1Tm 3.16).56 O grande volume de

estudos especializados sobre esse material se preocupou sobretudo com o conteúdo, as ideias cristológicas e as crenças refletidas nessas

passagens. Alguns poucos estudos se detiveram nas características formais dos hinos, e foi feito um grande esforço para determinar se foram todos compostos em grego ou se, em alguns casos, os ori-

ginais foram redigidos em aramaico. O suposto hino de Filipenses

2.6-11 talvez tenha atraído mais atenção que qualquer outra pas-

sagem, e os inúmeros estudos feitos sobre ele são um bom exemplo

55DEICHGRÃBER, Gotteshymnus und Christushymnus in der frühen Christenheit. SCHILLE, Frühchristliche Hymnen. WENGST, Christologische Formeln und Lieder des Urchristentums. KENNEL, Frühchristliche Hymnen? Gattungskritische Studien zur Frage nach den Leidern der frühen Christenheits. KROLL, Die christliche Hymnodie bis zu Klemens von Alexandria. J. T. SANDERS, The New Testament Christological hytims: their historical religious background. THOMPSON, Hymns in early Christian worship, Ançlican Theological Review, v. 55, p. 458-72, 1973.

W S. SMITH, Musical aspects of the New Testament. MCKINNON, Music in early Christian literatura. Em várias publicações, Martin Hengel enfatiza a importân-cia dos hinos corno meio de afirmação cristológica: "Hymns and Christology" (in: HENGEL, Betiveen Jesus and Paul); do mesmo autor, "The song about Christ in earliest worship" HENGE1, Studies in early Christology). V. tb., de R. P Martin, "Some reflections on New Testament Hymns" ROWDON, org.,

Christ is Lord: studies presented to Donald Guthrie). Para o contexto mais amplo, de Lattke, Hymnus: Materialien zu einer Geschichte der antiken Hymnologie; de

Quasten, Musik und Gesang in den Kulten der heidnischen Antike und christlichen Frühzeit; de Guthrie, "Hymnus" HAMMOND & SCULLARD, orgs., The Oxfin-d Classical dictionary); de Grõzinger, Musik und Gesang in der Theologie der frühen jüdischen Literatur.

"A afirmação de Cabaniss de que não havia cânticos na adoração cristã primitiva é surpreendente (Pattern in early Christian worship, p. 50-1, 53).

106 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

das preocupações aqui mencionadas?' Nossa ênfase aqui, porém, é nos hinos/músicas cristológicos como característica da prática de-vocional. Analisamos o fenômeno da música, como os hinos cristo-lógicos, na qualidade de elementos das práticas cultuais dos grupos cristãos primitivos, constituindo assim uma característica impor-tante do modelo de adoração binitária em que Jesus aparece com tanto destaque."

Como salientou Deichgrãber, os hinos do NT se preocupam principalmente com a celebração da importância de Jesus e de sua obra, detendo-se muito mais na pessoa de Jesus que na de Deus.59 Desse modo, a impressão que se tem é que as músicas cantadas/ entoadas em honra a Jesus não eram algo esporádico, e sim típico da adoração cristã primitiva." Essa é, naturalmente, a impressão exa-ta que se tem da adoração cristã primitiva relatada por Plínio em uma carta a Trajano (111-112 d.C.) e bem conhecida, na qual ele faz referência à prática do canto de antífonas "a Cristo como seu Deus" (carmenque Cristo quasi deo); é bem possível que o "canto" a que Plínio se refere fosse desprovido de acompanhamento." O can-to cristológico aparece também nas cartas de Inácio de Antioquia (Epístola aos efésios, 4.1,2; Epístola aos romanos, 2.2), aproximada-mente na mesma época das cartas de Plínio.

"MARTIN, Carmen Christi: Phillipians 2.5-11 in recent interpretation and in the setting of early Christian worship. Na segunda edição do livro, Martin atualiza a crítica da discussão acadêmica dessa passagem.

"HURTADO, One God, one Lord, p. 101-4. "Gotteshyrnnus uncl Christushyrnnus, p. 60-1, 207-8. "Não é fácil dizer com precisão que tipo de música era executada, porém

o "canto" sem acompanhamento ou a melodia monotônica eram bastante fre-quentes. Em relação aos termos usados e às evidências do "modo da execução musical", v., de W S. Smith, Musical aspects of the Neto Testament (esp. p. 22-7).

61PLÍNIo, Epistles 10.96.7. SHERWIN-WHITE, coment., The letters of Pliny, p. 691-710. Tertuliano (Apology 2.6) e Eusébio (HE 3.33.1) citam a declaração de Plínio e mostram que, para esses autores, a citação de Plínio referia-se aos hinos de louvor a Cristo, e sobre ele, como se fossem dirigidos a um deus. Cf., de Hengel, "The song about Christ" (p. 263). V 2Clem 1.1: "Irmãos, devemos pensar de Jesus Cristo o que pensamos de Deus..." [phronein peri Lesou Christou hos peri Theou].

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 107

Vale a pena notar que, além dos hinos do NT e de outras fontes cristãs antigas, é bem provável que a maior parte dos hinos cris-tãos da igreja primitiva fosse composta dos salmos do AT reinterpre-tados cristologicamente.e A influência do salmo 110, por exemplo, e de outros salmos que aparecem no NT se deve possivelmente ao fato de que eram amplamente conhecidos e usados na adoração cristã primitiva.° Creio que no contexto da adoração em seus pri-mórdios, em que se esperava do Espírito que inspirasse os crentes e concedesse revelações, os salmos do AT, sobretudo os que já come-çavam a ser lidos por um ângulo régio/messiânico em alguns círcu-los judaicos pré-cristãos, tenham sido "decifrados" como predições de Jesus e com descrições de sua glória. À medida que os cristãos eram "iluminados" e passavam a entender os salmos cristologica-mente, estes eram cantados em louvor a Jesus, e é bem provável que se tenham tornado parte típica da adoração primitiva (p. ex., 1Co 14.26; Cl 3.16; Ef 5.19). A "exegese" dessas passagens vetero-testamentárias de importância crucial não era feita em seminários, em grupos de discussão ou em torno de uma mesa. Ela emergiu inicialmente em intuições inspiradas em um contexto exaltado de adoração pneumática. Junto com essa interpretação/apropriação cristológica dos salmos do AT, havia também composições novas inspiradas pelo Espírito que seguiam o modelo dos salmos bíblicos (p. ex., Lc 1.46-55,67-79; 2.29-32; Fp 2.6-11, bem como os hi-nos celestiais de Ap 4.11; 5.9,10), o que também acontecia na seita de Cunrã (p. ex., 1QH e nos textos extracanônicos nos rolos dos

"Assim, p. ex., de Hengel, "The song about Christ" (p. 258-60); de Old, "The psalms of praise in the worship of the New Testament church" (Interpreta-tion, v. 39, p. 20-33, 1985).

63HAY, Glory at the right hand: Psalm 110 in early Christianity. JuEL, Mes-sianic exegesis: Christological interpretation of the Old Testament in early Chris-tianity. Dentre os inúmeros estudos em que o NT interpreta o AT, não conheço nenhum que enfatize suficientemente o contexto da adoração como lugar em que e por meio do qual os textos do AT ganharam pela primeira vez uma inter-pretação cristológica significativa.

108 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

salmos, como o 12Ps)64 O fato é que é difícil dizer se o "salmo" re-

produzido em tais passagens do NT em que aparece como elemento

característico da adoração cristã deve ser tomado como tal ou como material extraído da coleção do AT. Talvez os dois tipos estivessem presentes, já que ambos teriam brotado da inspiração do Espírito, quer como revelação do significado do material veterotestamentá-rio, quer como louvor de criação recente.

É inegável o acento cristológico de boa parte da hinologia cris-tã primitiva ou mesmo de toda ela, e é também peculiar em relação

às evidências que temos dos grupos religiosos judeus do período." É evidente que no Saltério há salmos em louvor ao rei (p. ex., 51 2; 42; 10) que provavelmente eram cantados em contextos de adora-

ção judaica. Além disso, no material extracanônico daquele tempo

havia composições que falavam de uma figura messiânica e que podem ter sido usadas na liturgia por grupos entre os quais as com-posições teriam se originado (p. ex., Salmos de Salomão 17 e 18).66 Mas não há nada parecido com o destaque conferido à figura de

Jesus que caracterizava o cântico litúrgico cristão no alvorecer do cristianismo. Portanto, só nos resta reconhecer a existência de uma

grande diferença entre as práticas e os modelos litúrgicos cristãos da época e outros típicos dos grupos judaicos de então.

Além disso, embora os cristãos primitivos resistissem bra-vamente às acusações de que adoravam dois deuses e de que sua devoção a Jesus constituía uma ameaça a seu compromisso mono-teísta (como enfatizaremos na seção final deste capítulo), a intuição

'Para traduções em inglês desses e de outros textos de Cunrã, v, p. ex., de Martínez, The Dead Sea Scrolls translated: the Qumran texts in English. Para 1QH, v. p. 317-70; para 11QPs, v. p. 304-10.

65FLUSSER, Psalms, hymns and prayers, in: M. E. STONE, org.,Jewish writings of the Second Temple period. CHARLESWORTH, Jewish hymns, odes, and prayers (ca. 167 a.C.-135 d.C.), in: KRAFT & NICKELSBURG, orgs., Early Judaism and its modern interpreters.

66Para uma tradução em inglês dos Salmos de Salomão (e vários outros tex-tos extracanônicos), v, de Sparks, The apocryphal Old Testament, ou, de Charles-worth, Pseudepigrapha.

O FORMATO BINITÃRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 109

extremamente aguçada que tinham do poder exaltado de Jesus e de sua relação com o Senhor direcionava de maneira muito profunda tudo o que faziam e a forma pela qual compreendiam essa relação. Assim, por exemplo, temos referências da adoração e do louvor ofe-recidos a Deus, e em nome de Jesus, e por intermédio de Jesus (p. ex., Cl 3.16,17). Em outras palavras, Jesus é muitas vezes o conteúdo e a ocasião da adoração, do cântico ou do canto monotônico, e é também aquele por meio do qual a adoração e o louvor são sempre eficazes.

Em algumas passagens do NT, temos indicações de hinos di-rigidos a Jesus.67 Efésios 5.19 aconselha que se cante "ao Senhor", que é provavelmente o Jesus exaltado (cf. "a Deus" na passagem correspondente de Cl 3.16), e em Apocalipse temos louvor e ado-ração, incluindo louvores em forma de hinos, dirigidos ao mesmo tempo a Deus e "ao Cordeiro" (5.8-10,13,14; 7.9-12). Tais cenas de adoração celestial são certamente idealizadas, por isso não podemos tomá-las como provas objetivas das práticas litúrgicas das igrejas da Ásia Menor, às quais o profeta João escreve; mas é provável que os temas e a interpretação dada à adoração nessas cenas celestiais sejam influenciados pela experiência terrena de adoração do autor.68

Portanto, tudo nos leva a crer que, na experiência do autor, o louvor do culto era dirigido a Jesus e a Deus, e havia consciência de que assim era feito.

J. D. G. Dunn conclui que as referências ao louvor dirigido a Jesus deixam entrever que os cristãos do período pós-paulino ha-viam perdido de vista a grande "reserva" em relação a esse tipo de adoração que Dunn atribui a Paulo. O autor faz referência também a uma "transição contínua na adoração" nesses primeiros círculos cristãos, um avanço que ele não crê que Paulo aprovasse se tivesse

"HURTADO, One God, one Lord, p. 102-3. "MowRv, Revelation 4-5 and early Christian liturgical usage, Journal of

Biblical Literature, v. 71, p. 75-84, 1952. PIPER, The Apocalypse of John and the liturgy of the ancient church, Church History, v. 20, p. 10-22, 1951.

110 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

chegado a seu conhecimento.69 Na seção final deste capítulo, discu-tiremos novamente como foi que os primeiros cristãos interpreta-ram sua devoção a Cristo no contexto do compromisso que tinham com o Deus único. Anteciparemos brevemente aqui essa discussão para deixar claro que, em nossa opinião, não cremos que "a formu-lação mais cuidadosamente nuançada que se emprega quando se fala da veneração cultual a Jesus no cristianismo dos primórdios", conforme diz Dunn, seja, de fato, demonstrada pelos comentários que ele mesmo fez.7°

Quando Dunn atribui a Paulo uma "reserva", isso dá a enten-der que o apóstolo refletiu sobre o louvor direto a Jesus e procu-rou manter distância dele, ou se opôs a ele. A referência de Dunn à "transição" significa que é possível observar o deslocamento de uma prática de louvor para outra. Cremos que nenhuma das duas ideias tem base nas evidências. Dada a intensidade da devoção a Jesus típica de Paulo (p. ex., Fp 3.7-16; 2Co 3.12-4.6), é duvidoso atribuir a ele qualquer "reserva" em relação a Cristo. As referências do apóstolo à oração e à adoração a Deus por meio de Jesus e em nome de Jesus apontam para uma "mutação" sem precedentes na linguagem e nas práticas devocionais geralmente observadas entre os judeus devotos do primeiro século. Não há indício algum nas epístolas paulinas de que, entre os problemas com os quais o após-tolo teve de lidar, estivesse a angústia de que a devoção a Jesus pu-desse representar uma possível negação de Deus ou ameaça à sua centralidade. A linha final do "hino" de Filipenses 2.6-11 remete a

'Theology of Paul, p. 260. "Ibidem, p. 260. A "antiga distinção entre 'adoração' e 'veneração"' a que

Dunn se refere não é antiga o bastante para que seja levada em conta na exegese do NT. As distinções técnicas entre "latria" (reverência a Deus), "hiperdulia" (re-verência à Virgem Maria) e "dulia" (reverência aos santos) na teologia ortodoxa e católica romana surgiram em resposta a comportamentos que foram considera-dos abusivos no tocante à veneração dos santos no quinto século d.C.! V, p. ex., os verbetes "Latria", "Dulia", "Hiperdulia" e "Saints, worship to the" em Oxford dictionary of the Christian church, de Cross e Livingstone. Cf. O martírio de Poli-carpo 17.2,3 e a forte distinção estabelecida no segundo século entre a adoração a Jesus e o amor e o respeito aos mártires.

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 111

aclamação universal futura à glória de Deus (v. 11b), legitimando assim tal aclamação e dando a ela sentido no contexto da tradição bíblica. É claro que, como observou Dunn,71 o vínculo que Paulo estabelece entre a aclamação de Jesus e a glória de Deus pode ser perfeitamente empregado para descartar a ideia de que a aclamação de Jesus exija o deslocamento de Deus. Todavia, não há motivo algum para imaginar que Paulo estivesse ciente de algum tipo de interferência e quisesse evitá-la.

Além disso, seria duvidoso tomar os louvores dirigidos a Deus e ao Cordeiro em Apocalipse e achar que apontam para alguma "transição" significativa na adoração cristã primitiva. O autor de Apocalipse tem uma atitude extremamente negativa em relação a outros cristãos que defendem o que lhe parece ser inovações na prática litúrgica ou nos escrúpulos no que diz respeito à adoração. É o caso daqueles a quem acusa de seguirem "a doutrina de Balaão" (2.14) e a profetisa a quem ele chama de "Jezabel" (2.20), os quais ele acusa de "[prostituição] e [de] comerem das coisas sacrificadas a ídolos". Em todo o livro de Apocalipse, o autor adverte contra a adoração à "besta" (9.20; 13.4,8,12,15; 14.9,11; 16.2; 19.20; 20.4) e apregoa a adoração exclusiva a Deus (14.7; 19.10; 22.9). No contex-to do escrúpulo rigoroso com que o autor trata a adoração, a apro-vação que ele concede à reverência ao Cordeiro é notável e também sem precedentes na história do judaísmo. Contudo, a atitude extre-mamente conservadora do autor no que diz respeito à adoração dá a entender que a descrição que ele faz da adoração como algo diri-gido a Deus e a Jesus refletia a atitude e o entendimento tradicionais a esse respeito. Além disso, as tradições de que tinha conhecimento o profeta judeu cristão compreendiam provavelmente as práticas dos grupos de judeus cristãos, indicando com isso que nesses círcu-los, bem como nos grupos de gentios cristãos, a reverência cultual era prestada tanto a Deus quanto a Jesus, e a reverência a Jesus era entendida como extensão e expressão da reverência a Deus.

7 iTheology of Paul, p. 251-2.

112 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

6. Profecia72

O discurso profético, isto é, os oráculos entregues sob a forma de discurso de revelação, foi outra característica comum das assem-bleias de adoração do cristianismo primitivo. Paulo insere a pro-fecia na lista dos fenômenos dispensados aos cristãos (1Co 12.10; Rm 12.8; e ainda em Ef 4.11), e o tratamento que dá à profecia em comparação com o dom de línguas em 1Coríntios 14 é sinal de que ele considera essa forma de contribuição congregacional particu-larmente válida (esp. 14.1-5,24,25,31). A característica principal da profecia é a afirmação de que o profeta fala sob inspiração divina direta, em que o oráculo são palavras da divindade. Isso explica, portanto, a fórmula profética do AT "[assim] diz o SENHOR".

Para o nosso propósito, é importante notar que a profecia do cristianismo primitivo, que deveria ser entregue no contexto da assembleia dos adoradores, parece ter incluído oráculos cuja inspi-ração teria sido dada por Jesus. Nesses casos, o entendimento que se tinha de Jesus era que ele agia na capacidade atribuída a Deus, ou ao Espírito de Deus, no AT e na tradição judaica subsequente, isto é, aquele cujas palavras são proferidas pelo profeta! David Aune identificou dezenove oráculos no NT em que Jesus aparece como aquele que transmite o oráculo ou como fonte ou autoridade do discurso profético. Além disso, Aune encontrou também outros nove discursos proféticos de Jesus na coleção cristã primitiva de hinos intitulada Odes de Salomão.74 As mensagens de Jesus às sete

"Fina., New Testament prophecy. AUNE, Prophecy in early Christianity and the ancient Mediterranean world. BORING, Prophecy (early Christian), in: D. N. FREEDMAN, org., Anchor Bible dictionary.

73LINDBLOM, Prophecy in ancient Israel. AUNE, Prophecy in ancient Israel; idem, Prophecy, p. 81-152. SCHMITT, Prophecy (pre-exilic Hebrew), in: D. N. FREED-MAN, org., Anchor Bible dictionary. BARTON, Prophecy (postexilic Hebrew), in: D. N. FREEDMAN, org., Anchor Bible dictionary.

74AuNE, Prophecy in early Christianity, p. 328-9. Entre os textos do NT que o autor cita estão os sete oráculos às igrejas em Ap 2 e 3, além dos seguintes: Ap 16.15; 22.12-15,16,20; 2Co 12.9; At 18.19; 23.1; 1Ts 4.14-17; 1Co 14.37,38; 1Ts 4.2; 2Ts 3.6,12.

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 113

igrejas em Apocalipse 2 e 3 também são atribuídas ao Espírito (cf. 2.1,7,8,11,12,17,18,29; 3.1,6,7,13,14,22), assim como a profecia do AT pode ser vinculada a Iavé e ao Espírito. Isso confirma que a ideia do Jesus exaltado na profecia neotestamentária tem papel bastante semelhante ao de Deus. Além dos textos citados por Aune, vale a pena atentar também para Atos 9.10-17, em que Jesus convoca Ananias num oráculo visionário, dizendo-lhe que acolhesse Saulo de Tarso como a um companheiro da fé. Independentemente da historicidade da narrativa, o simples fato de que Jesus é representado dessa maneira mostra que nos círculos cristãos primitivos a profecia podia se manifestar pela voz do Jesus exaltado.

Há fortes evidências nos escritos paulinos de que Jesus esta-ria ligado diretamente ao fenômeno da profecia cristã. Diversas passagens parecem ser palavras proféticas do Jesus exaltado. Em 2Coríntios 12.9, Paulo cita um desses oráculos que lhe fora dado pessoalmente. Acredita-se que 1Tessalonicenses 4.15-17 deva ser entendido como um oráculo (ou baseado em um oráculo) do Jesus ressurreto, e Aune apresenta argumentos para que 1Tessalonicenses 4.2 e 2Tessalonicenses 3.6,12 sejam interpretados como exemplos do mesmo fenômeno. Em 1Corintios 14.37,38, Paulo parece rei-vindicar essa autoridade profética para o ensinamento que proferiu acerca do comportamento na assembleia dos adoradores.

Dada a preocupação presente no AT com a falsa profecia (p. ex., Dt 13.1-5), além da ausência de exemplos paralelos de oráculos proféticos nos cultos de adoração dos grupos judeus do primeiro século atribuídos a outros agentes divinos, concluímos que a atri-buição da profecia ao Jesus exaltado é simplesmente extraordiná-ria. Outra coisa que gostaríamos de reiterar aqui é o fato de que a profecia entre os grupos cristãos dos primórdios era característica típica da vida litúrgica desses grupos e de ocorrência frequente. Isso justifica que se tomem os oráculos proféticos do Jesus ressurreto como mais uma característica surpreendente do modelo de adora-ção desses grupos. Como Senhor dos céus que se dirigia a eles com autoridade profética, cujos oráculos eram provavelmente buscados em oração, Jesus estava presente em sua vida litúrgica/devocional de

114 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

um modo que aponta para um avanço significativo no que se refere à prática monoteísta judaica.

A natureza binitária da adoração cristã primitiva

Quando dizemos que a adoração cristã primitiva era tipicamente "binitária", enfatizamos com isso o fato de que, apesar da dualidade (Deus e Jesus como alvos da devoção), há também claramente um compromisso evidente com um monoteísmo exclusivista.75 O mo-delo devocional cristão primitivo não comporta duas divindades, embora haja certamente duas figuras às quais sua devoção é dirigi-da. Como observamos anteriormente, na oração neotestamentária o louvor e a ação de graças são, em geral, dirigidos a Deus por meio de Cristo ou em nome de Jesus. Richardson observa, por exemplo, que "Deus é sempre o objeto das ações de graças de Paulo, porém o conteúdo é sempre explícita ou implicitamente cristológico".76 Temos também, sem dúvida, evidências de oração e súplica diretas a Jesus. Ele é invocado e a ele se apela especialmente como Senhor da igreja, a qual se reúne em seu nome e, portanto, em sua presença poderosa; mas ela se acha reunida, numa perspectiva mais ampla, para oferecer verdadeira adoração a Deus "Pai" (p. ex., Mt 18.19,20).

Observamos também anteriormente que o foco cristológico da música cultual (mais ou menos elaborada) dos primeiros grupos cristãos, que mostra a inclusão de Jesus no modelo devocional, é acompanhado de indicações claras de que essa reverência a Jesus expressa o louvor e a obediência a Deus. Assim como a aclama-ção escatológica e universal de Jesus como Senhor está associada à exaltação dele por Deus e redunda em glória a Deus (Fp 2.9-11),

"Dentre os vários estudos importantes sobre o assunto, destacamos o de Rohde, "Gottesglaube und Kyriosglaube bei Paulus" (Zeitschrift für die Neutes-tamentliche Wissenschaft, v. 22, p. 43-57, 1923), o de Thüsing, Per Christum in Deum: Studien zum Verhiiltnis von Christozentrik und Theozentrik in den pau-linischen Hauptbriefen, o de Kreitzer, Jesus and God, e o de Richardson, Paul's language about God.

MRICHARDSON, Paul's language, p. 259. P. ex., 1Ts 2.13; 3.9; Fp 1.3; 2Co 8.16.

O FORMATO BINITÃRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 115

assim também em outros lugares o culto a Cristo é aceitável a Deus (Rm 14.18), seguir a Jesus glorifica Deus (Rm 15.6), e por meio do Filho divino de Deus, Jesus Cristo, os crentes dizem "Amém" às promessas de Deus e o fazem para a glória de Deus (1Co 1.19,20). Jesus é reverenciado no contexto cultual e em ações (como de praxe em outros grupos judaicos) geralmente reservadas a Deus. Mas o motivo pelo qual se confere a Jesus tal reverência explica-se pelo fato de que Deus lhe outorgou esse status. Deus colocou todas as coisas sob sua sujeição, e o resultado do governo de Jesus é que "Deus seja tudo em todos" (1Co 15.20-28). Como "imagem" de Deus, Jesus compartilha e manifesta a glória de Deus (2Co 3.12-4.4; Cl 1.15-20; Ef 1.16-23; Hb 1.1-4; 2.9); portanto, é desse modo e por esse motivo que ele deve ser reverenciado de formas tão surpreendentes.77

Exaltado por Deus, Jesus agora concede o Espírito Santo (At 2.36), cujas manifestações capacitam os diversos ministérios de Jesus, o Senhor, e cujas "atividades" são as mesmas de Deus (1Co 12.4-6). E por isso que Paulo, em suas cartas, saúda seus des-tinatários com "graça e paz" da parte de Deus e de Jesus, e é por isso também que elas trazem quase sempre uma expressão de ação de graças a Deus nas primeiras linhas e outra em que o apóstolo abençoa com a graça de Jesus seus leitores no final de suas epístolas. O Jesus exaltado outorga agora essas bênçãos divinas.

Além disso, essa reverência a Jesus é muito diferente de tudo o que conhecemos dos movimentos pagãos da Era Romana. Jesus não é reverenciado como um novo deus ou herói divinizado. Não recebe culto próprio distinto do culto prestado a Deus "Pai", e não se recorre a ele em busca de favores ou necessidades específicas, como se ele tivesse província ou esfera divina de bênçãos distintas das que Deus concede. Embora a ceia do Senhor guarde algumas analogias com as ceias cultuais dos vários deuses da Era Romana,

77"Für Paulus ist die Zusammenstellung von Gott und Christus durch die Auferstehung hergestellt worden." ("Para Paulo, a conexão entre Deus e Cristo fica demonstrada pela ressurreição".) ROHDE, Gottesglaube und Kyriosglaube.

116 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

essa comunhão cultual com ele à mesa não é algo que se esgota em si mesma; antes, trata-se de uma manifestação e um meio pelo qual a assembleia de crentes lhe presta culto como Senhor designado por Deus, e por intermédio desse Senhor a Deus Pai." Além do mais, a entrada de Jesus na vida devocional dos crentes dos primórdios não se faz acompanhar da reverência a várias divindades típica do contexto religioso romano da época. Em vez disso, Jesus passa a fa-zer parte de um modelo exclusivista de devoção em que há espaço para apenas um Deus e um Senhor (p. ex., 1Co 8.5,6). Portanto, o que temos aqui é um monoteísmo binitário e exclusivista capaz de acomodar Jesus, mas que despreza qualquer outro deus ou senhor que se julgue digno de receber devoção."

Essa reverência cultual plena, que pode ser descrita como "adoração", é tributada a Jesus não porque os cristãos primitivos se sentissem com total liberdade para fazê-lo, mas porque se sentiam compelidos a isso por Deus. Eles reverenciavam Jesus em obser-vância à sua exaltação por Deus e em obediência à sua vontade reve-lada. Essa convicção é expressa de maneira polêmica em João 5.23: "Para que todos honrem o Filho, assim como honrem o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou". Também para Paulo, quem não reconhece Jesus como Senhor, aquele que traz em si a imagem e a glória divinas, tem a mente "insensível", cegada pelo "deus deste século" (2Co 3.14; 4.4).

Isso demonstra enfaticamente que a reverência cultual a Jesus não era uma experiência posta em prática por pessoas em busca de uma vivência litúrgica que fosse "além dos limites estabeleci-dos". Era, antes, o resultado de convicções profundas possivelmen-te transmitidas mediante experiências religiosas impactantes que

"Esse ponto também foi destacado por Rohde em "Gottesglaube und Kyriosglaube" (p. 56).

norgen apresenta uma discussão muito útil em que analisa os detalhes específicos de como judeus e cristãos negociaram seus escrúpulos particulares no dia a dia da cidade romana ("Yes", "No", "How far?": the participation of Jews and Christians in pagan cults, in: ENGBERG-PEDERSEN, org., Paul in his Helennistic context).

O FORMATO BINITÁRIO DA ADORAÇÃO CRISTÃ PRIMITIVA 117

sobrevieram a seus beneficiários como revelações de Deus.8° Essa "mutação" incomum na prática monoteísta contribui significati-vamente, por sua vez, para um esforço subsequente e complicado de estruturação de uma nova doutrina de Deus, que ocupou os cristãos nos vários séculos que se seguiram."

"HuRTADo, One God, one Lord, p. 14-23, esp. 17-22; idem, Religious ex-perience and religious innovation in the New Testament, Journa/ of

"Em relação ao segundo século, cuja importância é crucial, v., de Osborn, The emergente of Christian theology.

CAPÍTULO

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE

Nos capítulos anteriores, versamos sobre alguns aspectos do contexto histórico em que surgiu a adoração cristã primi-

tiva e sobre algumas de suas principais características, mostrando

de que maneira os cristãos incluíram Cristo ao lado de Deus em

sua vida devocional de monoteístas praticantes. As pesquisas e as

publicações em que trabalhamos ao longo dos últimos vinte anos

aproximadamente priorizaram as questões históricas associadas ao

surgimento da devoção a Cristo nos primeiros dois séculos do cris-

tianismo.' Em seguida, porém, apresentamos sucintamente algumas

ideias sobre como o conhecimento que temos das origens histó-ricas dessa devoção pode enriquecer e dar forma à adoração dos cristãos dos dias de hoje. Com isso, deixamos agora um pouco de lado as questões de caráter mais histórico para tratarmos de temas

'O leitor não especializado poderá consultar uma introdução a algumas das questões tratadas em minhas pesquisas anteriores em "The origins of the worship of Christ" (HuRmoo,Thenielios, 19 [2]: 4-8, Jan. 1994). O artigo em questão baseia-se em larga medida em meu livro One God, one Lord: early Chris-tian devotion and ancient jewish monotheism. O alcance e os objetivos do meu programa de pesquisas estão esboçados em meu artigo "Christ-devotion in the first two centuries: reflections and a proposal" (TorontoJournal of Theology, v. 12, p. 17-33, 1996).

120 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

contemporâneos "práticos" e que dizem respeito ao que escrevemos

na condição de adoradores. Embora o tema aqui tratado esteja relacionado com a adora-

ção especificamente cristã, sendo, portanto, do interesse imediato de

outros cristãos, convido tanto os cristãos quanto as demais pessoas a interagir conosco neste debate. Não há nada de "particular" ou confidencial no que segue. Depois de passar dezoito anos no De-partamento de Religião de uma grande universidade pública do Canadá antes de assumir meu posto atual (leciono Teologia e Es-

tudos da Religião no curso de graduação), acostumei-me a lidar com alunos e acadêmicos de convicções diversas e com as crenças e

práticas de inúmeras tradições religiosas. É um exercício interessan-te, por vezes muito exigente, tentar compreender as crenças, práticas e a lógica de uma fé da qual não comungamos, e é também um bom teste para o estudioso que esteja disposto a fazê-lo de modo acolhedor e com algum grau de precisão. Cremos também que é bom para as religiões refletir sobre sua fé e prática "ao ar livre", por

assim dizer, convidando ouvintes e visitantes, bem como adeptos, para que ouçam e deem sua opinião. Propomos às religiões um teste de raciocínio claro: em que medida são capazes de apresentar suas crenças e práticas com clareza e algum poder de convicção aos não-

adeptos interessados nela?' Uma das discussões mais desafiadoras e estimulantes que já tive foi com dois muçulmanos iranianos, alunos da graduação, que, depois de participarem conosco de um jantar de

'A complexa discussão de Paulo em 1Coríntios 14.20-25 parece indicar que os "descrentes" (apistoi) e os "de fora" (idiotai) talvez estivessem presentes às reuniões de adoração dos primeiros cristãos, e o apóstolo chega até mesmo a considerar a capacidade dessas pessoas de entender o que se passa corno crité-rio de clareza. Em 2Coríntios 4.1-6, Paulo defende a "proclamação pública da verdade" à "[consciência] de todos os homens diante de Deus" como modelo de sua proclamação. Embora eu não seja teólogo no sentido técnico da palavra, ouso dizer que a teologia cristã teria se beneficiado imensamente nos últimos sé-culos se tivesse sido formulada com base num diálogo mais abrangente e genuíno com outras tradições religiosas.

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 121

Natal, exigiram energicamente explicações para as crenças cristãs sobre Deus e Cristo em termos que pudessem realmente entender.

Além disso, num mundo tão interconectado como o de hoje, e especialmente nas sociedades multiculturais do Ocidente, as crenças e as práticas religiosas são assuntos que nos dizem respeito a todos, qualquer que seja nossa posição em relação a esta ou aquela religião ou às confissões religiosas de modo geral. As crenças e as práticas religiosas têm impacto em nossa vida, quer as partilhemos, quer não. Além disso, é preciso interagir de maneira respeitosa e inteli-gente com pessoas de fés diversas, não importando se nosso objetivo é promover nossa fé diante de outras pessoas, se desejamos simples-mente cultivar a tolerância e o entendimento entre as religiões ou se queremos envolver os cidadãos de nossa sociedade ou pessoas de outras culturas nas questões sociais, éticas e políticas inevitáveis do nosso tempo.' A suposição secular de que a religião atrofiaria e se tornaria irrelevante se revelou fragorosamente falsa em nosso tem-po.4 Religiões particulares brotam ou murcham, mas tudo indica que nós, seres humanos, de modo geral, jamais abandonaremos os temas de que tratam as religiões e dos quais elas se ocupam, tam-pouco o empenho com que procuramos lidar com eles por meio das várias formas de fé e de prática religiosa. Consequentemente, o estudo sério das religiões é importante e de enorme valor nas sociedades modernas. Essa é a lógica do estudo das religiões no cur-rículo universitário moderno, e é também parte da razão pela qual se devem convidar os leitores a "ouvir" a discussão que segue, quer participem da adoração cristã, quer prefiram não fazê-lo.'

'Quanto a um exemplo instrutivo de envolvimento elegante e crítico com outras religiões por um pensador cristão, recomendo, de Cragg, The Christ and the faiths.

4V., p. ex., de Casanova, Public religions in the modero u'orld e, de Kepel, The reveme of Gol: the resurgence of IshomChristianity andftulaism in the modero world.

'Elaborei um pouco mais esse tópico em minha palestra inaugural "New Testament studies at the turn of the Millenium: questions for the discipline" (Scottish Journal of Theology).

122 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

As reflexões das próximas páginas baseiam-se na premissa de que a adoração e o pensamento cristãos contemporâneos devem buscar uma relação genuína e de confiança com os precedentes bíblicos, estruturando-se, ao mesmo tempo, à luz dos fatores his-tóricos em processo. No espaço de que dispomos, não é possível proceder a uma discussão adequada, sobretudo em se tratando de

um interlocutor que não esteja inclinado a concordar com nos-sos pontos de vista ou com as premissas nas quais estão baseados. Esperamos, porém, pelo menos estimular o pensamento de outros,

qualquer que seja sua reação para com os nossos pensamentos. Estou perfeitamente ciente também de que me aventuro aqui no tipo de discurso mais costumeiramente (e, sem dúvida, de maneira mais competente) exercitado pelos "teólogos" no sentido verdadeiro da palavra, estudiosos cujo principal compromisso em suas pesqui-

sas é lidar com as necessidades contemporâneas do pensamento teo-lógico cristão e suas consequências práticas.'

Monoteísmo e adoração de Cristo

Como vimos no capítulo anterior, desde os primeiros estágios observáveis, a adoração cristã era dirigida a Deus com e pelo Cristo que ascendeu aos céus. Em outras palavras, em sua prática devocio-nal, assim como em sua crença, os primeiros cristãos tinham uma forma binitária de monoteísmo. Queremos saber, portanto, em pri-meiro lugar, de que maneira a adoração atual dos cristãos pode ser

transposta para o contexto e a perspectiva do monoteísmo bíblico. Isso vai exigir de nós algumas reflexões bastante criteriosas, como é de praxe entre cristãos sérios!

Por exemplo, a tentativa de Ário, mestre do quarto século, de acomodar o monoteísmo por meio da distinção entre a natureza divina de Cristo e a natureza divina de Deus Pai revelou-se, no

6Enveredo aqui no tipo de discurso analisado mais extensamente por um professor de Didbury anterior ao meu tempo; v., de Torrance, Worship, connnu-nity, and the triune God ofgrace.

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 123

fim das contas, equivocada e inaceitável no decorrer dos debates travados nesse século, em parte porque os críticos da ideia vi-ram implícita nela a adoração de dois deuses. Contra os arianos, Atanásio defendia a ideia de que a relação de Deus Pai e Deus Filho implicava o compartilhamento de uma natureza divina úni-ca, embora fosse evidentemente indissociável. Ao defender esse ponto de vista, Atanásio tinha em mente uma teologia que fosse genuinamente monoteísta e permitisse, ao mesmo tempo, a práti-ca devocional cristã tradicional que fazia de Cristo objeto de ado-ração juntamente com Deus, embora não se confundissem. Nesse processo, Atanásio articulou uma forma extremamente relacional e dinâmica de monoteísmo que insistia no fato de que a unidade divina transcendia todas as analogias humanas e não era limitada pelos conceitos finitos da unicidade.'

Embora boa parte do seu pensamento, a forma com que usava a Bíblia e o tom que empregava na disputa com seus adversários me-reçam uma análise crítica, as ideias básicas de Atanásio continuam a merecer consideração. Cremos que ele acertou ao postular que a teologia e a adoração cristãs deveriam ter alguma relação recíproca genuína. Isso significa que as discussões sobre Deus e a cristologia entre os teólogos não devem levar em conta apenas as questões de foro intelectual. É preciso que elas lidem também com a prática devocional que está no cerne das igrejas cristãs.

Portanto, se o monoteísmo genuíno exclui a divindade de Cristo, como insistem alguns hoje, disso se segue que a devoção cristã teria de fazer uma distinção muito clara entre a reverência dada a Cristo e a Deus.' Caso contrário, os cristãos incorreriam no risco de violar seu compromisso histórico professo de adorar exclu-sivamente o verdadeiro Deus único. Cumpre observar, entretanto, que, se tal distinção tão drástica fosse feita, o modelo inteiro da prática devocional cristã tradicional teria de ser radicalmente altera-

TETTERSEN, AthallaSiUS. Quanto às ideias de Atanásio sobre Deus, v. esp. p. 36-99.

SP. ex., de Casey, FroniJewish prophet to gentile God (esp. p. 162-81).

124 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

do. Se, por um lado, os cristãos estão sinceramente comprometidos com o monoteísmo que professam e, contudo, sentem-se obrigados a dar continuidade ao modelo histórico de devoção cristã em que conferem a Cristo a reverência que comumente reservam a Deus, segue-se que há necessidade — ou, no mínimo, parece-nos sensato que assim seja — de algum tipo de inclusão profunda de Cristo em Deus tal como foi articulada na cristologia nicênica (embora não necessariamente a mesma articulação). Em um estudo sobre a for-mação das doutrinas cristãs nos primeiros séculos, Maurice Wiles disse que "qualquer interpretação da pessoa do Filho deve obriga-toriamente levar em conta o lugar dado a ele na prática devocional cristã".9 Em outros termos, a forma distinta (alguns diriam, pecu-liar) de monoteísmo que se desenvolveu nos primeiros séculos tinha como objetivo proporcionar uma lógica doutrinária que explicasse por que Cristo era tratado como ser genuinamente divino na prá-tica devocional (como se tornara hábito na maior parte dos grupos cristãos) no âmbito do compromisso com o Deus único.

Todavia, embora alguns cristãos tenham dificuldades intelec-tuais com a divindade de Cristo, há outros problemas possivelmente mais comuns a boa parte da piedade popular cristã até os dias de hoje. Qualquer pessoa experiente na devoção cristã desprovida de instru-ção formal sabe perfeitamente que não é rara a confusão entre Jesus e Deus (o "Pai"), ou já notou um diteísmo funcional em que Deus e Jesus são tratados como dois deuses à revelia de todo e qualquer escrúpulo monoteísta (e quando se soma aos dois o Espírito Santo, muita gente fica realmente confusa!).1° Coisas assim costumam ser mais frequentes em orações informais e raramente aparecem na li-turgia estruturada na tradição e na teologia. Contudo, os cristãos de

'The inaking of Christian doctrine: a study in the principies of early doctrinal development, p. 62-93, p. 74 (citação).

'Para exemplificar essa confusão, cito um trecho de uma oração que ouvi recentemente num culto: "Pai celestial, obrigado porque o Senhor morreu por nós na cruz [...]!". Não está claro se essa oração mostra a dificuldade de absorver o ensino trinitário básico da relação entre Deus e Cristo ou se temos aqui um caso de "cristomonismo", em que Cristo, de algum modo, tomou o lugar de Deus.

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 125

todas as denominações e estilos litúrgicos terão muito a ganhar se refletirem seriamente sobre a natureza fundamentalmente monoteísta da fé cristã.

Os benefícios virão se examinarem com atenção as verdades bíblicas e as lições do passado de sua fé. Os antigos credos e fórmu-las, como é o caso do Credo niceno, trazem as marcas, é claro, dos tempos em que foram escritos, mas são na verdade muito mais ricos do que se costuma admitir atualmente. Bastará um exemplo para que nosso ponto fique claro: os cristãos tradicionalmente adoram Jesus, a quem consideram real e genuinamente divino, assim como Deus é divino para nós. Contudo, no texto do Credo niceno, que é tido pelos cristãos como documento pedagógico da fé e convi-te à reflexão contínua, Cristo é descrito como "luz da luz, Deus de Deus"." Note-se que nessa formulação Cristo não é descrito como um segundo Deus, e sim como "imagem", "Filho" e "Palavra" exclusiva e única do Deus único e, como tal, Senhor único dos cristãos, aquele que foi feito Senhor pelo Senhor Deus único (p. ex., At 2.36; Fp. 2.9; 1Co 15.20-28).

No NT, encontramos uma preocupação semelhante nas referên-cias a orações que evitam o "diteísmo", uma vez que são dirigidas a Deus e em nome de ou por meio de Jesus. Na tradição cristã, a ora-ção feita diretamente a Jesus e a invocação de seu nome são também consideradas apropriadas, na esfera tanto particular quanto coletiva, como se vê algumas vezes no NT (p. ex., At 7.59; 2Co 12.8). Contudo, é importante frisar que, na tradição devocional do NT e das práticas litúrgicas clássicas, toda oração feita diretamente a Cristo, ou apelo dirigido a ele, é sempre feita no contexto da soberania do Deus úni-co, e seu alcance e frequência são efetivamente bastante limitados.12

Assim, quando nós, cristãos, aclamamos como se deve a Je-sus como único Kyrios (Senhor), nós o fazemos "para a glória de

Deus Pai" (Fp 2.9-11), e não independentemente da glória do Deus

"Para tradução e comentário em inglês, v., p. ex., de Schaff, The creeds of. Christendom.

12V, p. ex., de Jungmann, The place of Christ in liturgical prayer.

126 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

único, tampouco à custa dela, ou à parte do aspecto monoteísta manifesto na expressão paulina. Nos modelos tradicionais de ora-ção eucarística, os cristãos dão ações de graças a Deus por seu Filho, Jesus Cristo, com quem podem comungar e por meio de quem são levados a Deus. Além disso, do NT em diante, os cristãos sempre cantaram hinos a Deus que celebram os atos e atributos divinos, bem como a obra e a importância do Filho de Deus. Em suma, na proclamação e na prática religiosa do NT, igualmente típica das tradições cristãs majoritárias ao longo dos séculos, a importância da obra redentora e reveladora de Jesus é entendida e celebrada como decorrência de sua condição de agente único da vontade divina. Em outras palavras, o significado de Cristo é sempre expresso da pers-pectiva de sua relação com Deus. Tudo o que se diz sobre Cristo no NT está relacionado com um significado que vem de Deus.13 Até mesmo no conceito de Cristo como Filho divino desde a eternida-de, essa definição de Cristo em relação a Deus Pai permanece clara.

Os cristãos são chamados a amar e a adorar a Deus com a men-te e também com o coração. Nossos vizinhos muçulmanos e judeus às vezes se dizem preocupados com o monoteísmo cristão, embora essa ansiedade, não raro, pareça aos cristãos desprovida de informa-ções a respeito do ensino tradicional cristão. É claro que, apesar da reprovação de outros adeptos de tradições monoteístas, o cristão não pode abrir mão facilmente da adoração a Jesus, ou fazer objeção a ela, e ainda achar que continua fiel à tradição cristã. Contudo, nós, cristãos, devemos, não apenas porque outros assim o exigem, porém muito mais em virtude de nossa posição monoteísta confessa, ado-rar a Cristo no âmbito do nosso compromisso com o Deus único, reconhecendo Jesus como Filho único de Deus Pai. A preocupação de muçulmanos e judeus deve ser entendida de maneira positiva pelo cristão, e serve de lembrete para nossa profissão de fé, pela qual confessamos e adoramos um só Deus.

13V., p. ex., as excelentes discussões de Kreitzer (Jesus and God in Paul's eschatology), especialmente a análise mais alentada que faz Richardson da lingua-gem usada por Paulo em referência a Deus e a Cristo (Paid's lamuage about God).

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 127

Como mencionamos anteriormente, essa preocupação mono-teísta é, na verdade, o que está por trás da doutrina central no cristianismo da Trindade divina. Um compromisso sólido com a preservação de uma postura monoteísta exigiu formulações e de-bates teológicos excessivamente longos e complexos nos primeiros séculos do cristianismo. Se aqueles cristãos não estivessem ansiosos para ser monoteístas, sua vida teria sido muito mais simples! Não era difícil divinizar um novo deus ou semideus no mundo roma-no, e os cristãos poderiam perfeitamente ter feito isso com Jesus sem pensar duas vezes.'4 De fato, os sistemas gnósticos cristãos que se desenvolveram mostram que alguns cristãos mais antigos não estavam muito preocupados com o monoteísmo; pelo contrário, em suas projeções do divino havia múltiplas divindades.'' Toda-via, a principal preocupação cristã consistia em desenvolver uma compreensão da importância da divindade de Jesus no âmbito da fé

no Deus Unico.16 Os pensadores cristãos se apropriaram do vocabu-lário e das categorias conceituais do mundo antigo e, no momento em que elas não foram mais suficientes, criaram novas categorias e novos significados para as palavras num esforço por desenvolver e articular uma fé e uma lógica para a prática devocional cristã que

14V., p. ex., o estudo de Lõsch (DeitasJesu und Antike Apotheose: ein Beitrag zur Exegese und Religionsgeschichte), em que o autor analisa a divinização dos governantes humanos no inundo romano.

'5Michael Williams contestou a ideia de que houvesse um "gnosticismo" coeso, mas é evidente que havia grupos cristãos cujas crenças demonstravam uma falta de preocupação com o monoteísmo a que nos referimos aqui. É interessante observar de que modo, em vários textos importantes quase sempre apontados como "gnósticos", as declarações de exclusivismo de lave, p. ex., em Is 45.21,22 — passagem de fundamental importância para as crenças monoteístas de judeus e cristãos —, são consideradas equivocadas ou mentirosas e obra de um deus inferior (p. ex., The apocryphon of John 11.20 [apud ROBINSON, org., The Nag Hammadi library in English, p. iii]).

16v, p. ex., de Lortz, "Das Christentum als Monotheismus in den Apologien des zweiten Jahrhunderts" (in: KOENIGER, org., Beitra:çe zur Geschichte des christ-lichen Altertums und der Byzantinischen Literatur: Festgabc Albert Ehrhard) e, de Osborn, The ernetgence of Christian theology.

128 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

concedesse a Cristo reverência plena como ser divino e, ao mesmo tempo, retivesse uma "postura monoteísta"."

Pedimos licença a todos os cristãos para lhes dirigirmos a pa-lavra: em nossa prática cristã, bem como na profissão da nossa fé, sejamos genuinamente trinitários, e que a verdade e a adoração do nosso cristianismo estejam em mútua sintonia. Seria um exercí-cio saudável para os cristãos refletirem sobre o significado do Deus único em nossa vida devocional, bem como desenvolver uma práti-ca de oração que não confunda necessariamente Deus e Jesus, mas celebre o Filho único divino do Deus único. O estudo das expres-sões usadas nas orações encontradas no NT e nas liturgias e orações da tradição cristã (como o Livro de oração comum, e que foram de-senvolvidas ao longo de séculos de prática de adoração cristã) seriam fonte de estímulo e recursos valiosos.

Adoração a Deus e identidade cristã

A adoração a Jesus no contexto do monoteísmo bíblico e do ensino trinitário cristão traz também implicações profundas para o au-toentendimento cristão e as perspectivas da fé sobre salvação. Os cristãos tradicionalmente adoram Jesus como Filho único de Deus Pai. Essa exclusividade de filiação de Jesus é importante.

Filiação exclusiva significa que a relação dos cristãos com Deus deve ser entendida como derivada, não como se os cristãos a possuís-sem naturalmente ou como se fosse uma propriedade intrínseca, mas como algo concedido pela graça de Deus por meio de Cristo? Paulo, por exemplo, retrata a relação filial dos crentes com Deus como algo

17Um exemplo de inovação cristã antiga na terminologia e nos significados fica evidente na apropriação do termo latino persona e no desenvolvimento de um significado cristão novo e específico para o grego hypostasis, por meio dos quais aqueles pensadores tentavam articular um modo pelo qual a fé em "um só Deus" poderia acomodar o modelo tríplice da experiência e da convicção religiosa dos cristãos dos primórdios. V., p. ex., de Wiles, The making of Christian doctrine: a study in the principies of early doctrinal development (p. 13-40).

"Para mais detalhes, v., de Torrance, Comrnunity, and the triune God of Gracc (esp. p. 6-31).

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 129

outorgado por meio de Jesus, o Filho paradigmático de Deus. Jesus é o "primogênito entre muitos irmãos" (Rm 8.29), e o Espírito do Filho de Deus, Jesus, confere aos crentes a percepção de sua relação filial com Deus (Gl 4.6).19 Nós, cristãos, adoramos tradicionalmente a Jesus como o acesso a Deus que nos foi divinamente designado. Em outras palavras, adoramos a Jesus em razão de quem ele é e por cau-sa do papel que lhe foi atribuído pela divindade na redenção como Mediador e Redentor. A menos que entendamos a avaliação que o NT faz da difícil situação do homem, isto é, de sua alienação moral e espiritual em relação ao Deus único e verdadeiro, não seremos ca-pazes de compreender a importância de Jesus como Filho único de Deus enviado para nos propiciar reconciliação e adoção por meio da relação filial com Deus. Tampouco entenderemos que essa relação filial deriva da filiação exclusiva de Jesus.

Nós, cristãos, adoramos a Deus em nome de Jesus e por intermé-dio dele. Não cremos que os cristãos compreendam perfeitamente o significado disso. Orar em nome de Jesus e por meio dele significa que temos acesso ao favor de Deus por Jesus, e invocamos a posi-ção de Jesus em relação a Deus e a eficácia de sua obra redentora (em oposição à situação deficitária em que nos encontramos em decorrência do pecado) para ganhar acesso a Deus. Sob esse aspecto, os cristãos não se aproximam de Deus como expressão de algum sentimentalismo mal-alicerçado sobre a paternidade divina. Eles acertadamente chamam Deus de "Pai" não para fazer dele "senhor" do mundo ou nosso, tampouco porque queremos divinizar a pa-ternidade e a masculinidade, mas porque é precisamente assim que entramos na relação de Jesus com Deus Pai. Devemos nos conside-rar incluídos nessa relação.

Afirmamos a intimidade de Jesus com Deus e dizemos tam-bém que ele é a revelação de Deus, ao repercutirmos e afirmarmos

"Para o uso que Paulo faz da linguagem de filiação divina, v., de Hurtado, "Filho de Deus" (in: HAWTHORNE & MARTIN, orgs., Dictionary of Paul and bis letters). Sobre o tema de Romanos, v., de Hurtado, "Jesus' divine sonship in Paul's epistle to the Romans" (in: SODERLUND & WRIGHT, orgs., Rornans and the people

God: essays in honor of Gordon D. Fee on the occasion of his 65" birthday).

130 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

a relação pessoal de Jesus com Deus em nossas orações. Como observamos anteriormente, no NT Deus é "Deus e Pai de nosso Se-

nhor Jesus Cristo" (p. ex., Et 1.3; 2Co 1.3; Rm 15.6; 1Pe 1.3). Por-tanto, os cristãos devem compreender que nos dirigimos a Deus como "nosso Pai" de forma derivada e como expressão do nosso re-conhecimento da filiação de Jesus. Fazemos isso porque a filiação de Jesus é poderosa e eficaz para nossa redenção, elevando os cristãos à posição de Jesus junto a Deus (p. ex., Hb 2.10-18).

O termo "Pai" aparece na oração tradicionalmente conhecida como "pai-nosso", formalmente lembrada nos relatos dos Evange-lhos canônicos como dada à prática cristã por Jesus (Mt 6.7-14; Lc 11.1-4). Essa oração e essa maneira de se dirigir a Deus foram ensinadas por Jesus aos discípulos, conforme o relato evangélico. Paulo faz da invocação de Deus como "Pai" a manifestação do Espírito do Filho de Deus nos crentes cristãos (Rm 8.9-17, esp. v. 15,16; GI 4.4-6).20 A prática cristã faz alusão a essa consciência de que nosso status filial é de dependência e de que ele nos foi conce-dido quando, por exemplo, nas introduções litúrgicas tradicionais à oração do "pai-nosso", os cristãos são convidados a se unirem em oração "Conforme nosso Salvador nos ensinou...", ou "Portanto, ousamos dizer..." (e desse "portanto" depende a ousadia!).

Adoração e patriarcado

Há certa crítica feminista que, embora infundada, não deixa de ser instrutiva para a adoração cristã. Carece de fundamento dizer que reverenciar Deus e dirigir-se a ele como "Pai" e reverenciar Jesus e dirigir-se a ele como "Filho" significa necessariamente privilegiar a masculinidade e conferir a ela validação transcendente ao mesmo tempo que tal status é negado à feminilidade e à maternidade. Esse

"Infelizmente, certo sentimentalismo em torno da ideia neotestamentária da paternidade divina ficou associado ao termo "Aba" empregado pelo Novo Testa-mento. Diferentemente do que propõe essa ideia sentimental, "Aba" não significa "Paizinho". V esp. os estudos de Barr (Abba isn't daddy, Journal of Theological Studies, v. 39, p. 28-47, 1998) e de D'Angelo (Abba and Father: imperial theology and the Jesus traditions, Journal of Biblical Literature, v. 111, p. 611-30, 1992).

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 131

tipo de crítica feminina parte do princípio de que toda adoração consiste na projeção e na divinização objetivas de atributos pró-prios da criatura, como é o caso da masculinidade, e que o obje-to da adoração seria uma espécie de versão idealizada dos atributos do adorador. Com base nesse pressuposto, a exigência que se faz, naturalmente, é que tanto a masculinidade quanto a feminilida-de deveriam ser divinizadas. Caso contrário, as mulheres ficam sem um objeto idealizado com o qual se possam identificar. Se fossem corretos tais pressupostos, a reivindicação seria mais do que justa.

Bem entendida, porém, a adoração cristã do Deus triúno não é (ou, no mínimo, não deveria compreender) a divinização de características humanas. A adoração cristã não deve ser a projeção de nossos atributos pessoais ao status ideal, divino. Isso seria a dei-ficação da criatura, uma autoadoração que, sem dúvida, transmite com precisão o caráter típico da "religiosidade" humana. Todavia, do ponto de vista da tradição bíblica, toda e qualquer divinização de facto da criatura deixa clara a distância que a separa da revelação real do Deus vivo e verdadeiro. A adoração que se oferece em respos-ta ao Deus revelado, vivo e verdadeiro deve evitar toda e qualquer deificação da criatura.

Os textos do AT e do NT se posicionam contra a adoração de qualquer projeção de nós mesmos. Na tradição bíblica, toda divi-nização da criatura, incluindo a adoração de qualquer atributo ou faculdade humana, constitui idolatria. Deuteronômio 4.15-20, por exemplo, proíbe que se façam "imagens" de Deus com base em categorias ou fenômenos humanos e que tais imagens sejam usadas como objeto de adoração, e é interessante notar que a passagem faz referência a "macho ou fêmea" (v. 16) quando alude às caracterís-ticas humanas que não devem ser adoradas. Entre as passagens bem conhecidas do NT, Romanos 1.18-23 capta a natureza essencial da idolatria ao caracterizá-la precisamente como a confusão que se faz entre criatura e Criador. Também nessa passagem, a confusão con-denada faz referências a imagens "semelhantes ao homem corruptí-vel" (en homoioinati elkonos phthartou anthropou, v. 23).

Por isso, objetamos a que se associe automaticamente a adoração de Deus e Pai do Senhor Jesus Cristo, adoração oferecida por meio

132 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

de seu Filho único, à divinização do "macho". Trata-se de uma falsa questão. Os ensinamentos bíblicos e teológicos mostram claramente que, bem entendida e praticada, a adoração cristã não se presta a tal crítica. Os cristãos reverenciam Deus e o chamam de "Pai" somente porque temos acesso à relação filial de Jesus com Deus, não porque nos sintamos movidos por um desejo de glorificar a masculinidade ou a paternidade em detrimento da feminilidade e da maternidade.

Infelizmente, porém, boa parte da adoração cristã não se acha devidamente baseada na Bíblia e na tradição teológica e litúrgica cristãs, mesmo a adoração de alguns que se consideram bastante tradicionais e ortodoxos! Diante disso, a crítica feminista é válida e instrutiva, porque aponta para uma versão de idolatria que, caso contrário, passaria despercebida simplesmente porque talvez se tenha tornado tão familiar, tão "natural" e, não bastasse isso, sua expres-são possivelmente se valha de termos extraídos da tradição cristã. Adorar a Deus "em Espírito e em verdade", entretanto, consiste em elevar essa adoração acima do privilégio idolátrico concedido a esse ou àquele lugar, a esse ou àquele idioma, a essa ou àquela etnia e a qualquer outro aspecto da condição própria da criatura.2'

2'Aludimos aqui, naturalmente, a João 4.20-24, passagem particularmente fértil no que se refere ao caráter da verdadeira adoração à luz das questões de gê-nero. O espaço permite apenas algumas breves orientações para reflexão poste-rior sobre a possível relevância dessa passagem. 1) O diálogo em João 4.7-26 põe deliberadamente em cena, não há dúvida disso, Jesus e uma mulher. Os leitores costumam apontar a tensão entre os sexos implícita dessa passagem (p. ex., o v. 9, "Como tu, um judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?"). 2) No diálogo que a mulher trava aqui, e também em sua vida, a mulher se identifica completamente por meio de parâmetros masculinos (as referências que faz a "nosso pai Jacó", v. 12, e "nossos pais", v. 20; seus inúmeros relacionamentos com homens, v. 16-18). Sob essa perspectiva, a promessa de uma nova adoração do "Pai" baseada em "Espírito e em verdade" (em que o primeiro termo provavelmente identifica o segundo, isto é, "o Espírito que é a verdade") pode ser interpretada como algo que transcende o privilégio de que desfrutam as tradições humanas caracterizadas pelo predomínio do macho. Isso possivelmente se reflete na descrição que o evangelista faz da revelação de Jesus à mulher e na conversão dela à testemunha fidedigna pe-rante outros samaritanos (v. 39). Os estudiosos estão cada vez mais convencidos de que as várias narrativas do evangelho de João refletem (e tinham como objetivo) as preocupações e experiências dos primeiros cristãos para quem foi escrito.

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 133

Nesse sentido, talvez uma maneira pela qual cristãos e não-cristãos possam avaliar se uma adoração cristã em particular está sendo conduzida, de fato, "em Espírito e em verdade", consista em discernir se a referência a Deus Pai no culto em questão é sinônimo em nossa vida do privilégio que concedemos à masculinidade, a uma hierarquia do tipo feudal, em que uma característica huma-na sobrepuja as demais. Se em nossa vida conferirmos tratamento especial à masculinidade, por exemplo, é bem possível que nossa adoração cristã tenha se convertido em idolatria, cujo caráter noci-vo não será menos danoso só porque recorre à terminologia cristã (na verdade, a distorção cristã da revelação divina deveria ser dupla-mente repreensível para qualquer cristão). De modo especial, se a referência a Deus Pai servir de justificativa para privilégios conce-didos ao sexo masculino, estaremos então diante de um equívoco sério de interpretação do significado e do raciocínio, da perspectiva da teologia cristã, do termo "Pai" como forma de nos dirigirmos a Deus. Nesse caso, a crítica feminista ao "Pai" será verdadeira, e deve ser acolhida com gratidão.

O "Pai" celestial deve ser adorado não como extensão de nós mesmos, não como patriarcado justificador, e sim como Deus úni-co situado em uma categoria transcendente acima da criatura. Em outras palavras, deve ser adorado como "Pai" unicamente por meio de Jesus Cristo. Esse Deus transcende a criação e, desse modo, revela e julga a maneira deficiente com que ela o representa, bem como a forma abusiva com que recorremos a categorias humanas, como é o caso dos gêneros. Ao mesmo tempo, porém, esse Deus trans-cendente, exatamente por ser transcendente e se situar além dos atributos das criaturas, pode afirmar, validar e redimir a criação inteira (Rm 8.18-23), incluindo nossa masculinidade e feminilida-de (GI 2.28,29). Em face do modelo de redenção divina, que não faz discriminação entre os sexos, é importante que nós, como cristãos, nos perguntemos se essa atitude não discriminatória é evidente em nossa vida, em nossa família e em nossos relacionamentos, se o valor inerente da criação (inerente a ela como criatura amada por Deus que é), se o masculino e o feminino, igualmente importantes, são

134 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

evidentes em nossa igreja. A teologia pode ajudar a nos orientar a viver da maneira correta (embora, é claro, o viver correto que se requer do cristão exija uma transformação real, e não apenas uma mera instrução). Todavia, também é verdade que o caráter do nosso viver cristão em particular é, por sua vez, uma boa indicação de como realmente compreendemos e exprimimos o que professamos ser nossas crenças teológicas. Em outros termos, nosso viver é um excelente reflexo do valor real da nossa teologia!

É claro que toda teologia sofre influência de fatores socioló-gicos. É por isso que somos a favor de que se teste o significado da nossa linguagem sociológica por meio da análise de nossas práti-cas sociais. As circunstâncias e as condições sociais também podem contribuir para a reflexão teológica e a reforma dela. Por exemplo, a repulsa causada pela política de exterminação dos judeus orques-trada pelos nazistas ajudou a produzir nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial uma conscientização mais aprofundada do antissemitismo na teologia e nas tradições cristãs."- Contudo, uma reflexão teológica cuidadosa e incisiva também pode contri-buir para a reforma das realidades sociais. Talvez a reflexão cristã sobre o sentido apropriado de Deus Pai (e sobre os usos idolátricos do termo a que os cristãos tanto recorrem) pudesse ajudar a vencer o patriarcado que os cristãos herdaram de várias culturas e que tem sido apropriado e validado de maneira tão acrítica na prática cristã.

A crítica feminista da prática cristã nos interessa à medida que lança luz sobre a apropriação acrítica do que hoje se chama "pa-triarcado". Esse nega a validade e a dignidade próprias do feminino, o que é um pecado, além de ser motivo de objeção para quem tem preocupações feministas. É tanto uma ofensa contra as mulheres quanto um pecado de idolatria contra Deus. Em outras palavras, identificar a influência do patriarcado não é apenas uma questão humanitária. Há também profundas razões teológicas que reme-tem à necessidade de distinguir a revelação de Deus de imagens heréticas e distorcidas.

"V, p. ex., de Klein, Anti-Judaism in Christian theology.

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 135

Adoração terrena e transcendente

Trataremos agora de outro assunto importante. Como observamos em nossa discussão sobre os conceitos que prevaleciam na adora-ção e na prática cristãs primitivas, surge com o NT a ideia de que a adoração deve ser entendida como a participação terrena em uma realidade celestial. No capítulo 2, observamos que essa ideia de participação na adoração celestial está por trás da expressão tradi-cional "Portanto, com anjos, arcanjos e toda a companhia celestial louvamos e magnificamos teu nome glorioso", expressão que con-duz à recitação, ou canto, pela igreja, do Trisagion (do grego, "três vezes santo", termo extraído do cântico das criaturas celestiais de Isaías 6.3) nas tradições litúrgicas da Eucaristia cristã.23 O frase-ado introdutório e o Trisagion juntos expressam a ideia de que o louvor terreno da igreja deve ser oferecido no espírito de imitação e em sintonia com o verdadeiro louvor a Deus por parte de "toda companhia celestial". Como observamos no capítulo 2, o NT dá testemunho de que, desde o início, os crentes interpretaram seus humildes encontros de adoração em pequenos grupos domiciliares como eventos dotados de importância e caráter transcendentais.

Em nossa época, constitui um desafio para os cristãos se apro-priarem novamente e de modo significativo da ideia de estar na pre-sença de anjos no momento do culto, bem como da percepção da ideia de que a adoração terrena pode também significar a participa-ção na liturgia celeste.24 Hinos tradicionais como "O guardas santos, celestiais,/ Vós, anjos, querubins reais,/ Dai-lhe glórias! Aleluia!", ou "A Cristo coroai,/ Cordeiro que venceu", além de hinos com apelos como "Anjos e homens reverentes,/ Adorai-o com fervor" escapam ao cristão moderno ou simplesmente nos causam curiosidade, a não ser, é claro, que encontremos novamente um significado por trás des-sas imagens e tradições e nos apropriemos delas de modo que seja-mos tocados em nossa modernidade.

23V, de Cross e Livingstone, Oxford dictionary of the Christian church (p. 1395-6). "Sobre transcendência e modernidade, v, de Berger, A rurnour of angels:

modern society and the rediscopery of the supernatural.

136 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

Nós, cristãos modernos e ocidentalizados, teríamos muito a ganhar se erguêssemos os olhos litúrgicos além das alternativas que nos propomos: de um lado, conceitos rasos de "relevância"; de outro, a formalidade gélida contra a qual tantas vezes se insurgem as exigências de "relevância"; e mais: ir além de "alternativas como a da mera elegância humana ou a simplicidade austera rumo a uma adoração que nos torne conscientes de sua realidade e do seu sentido "vertical". Não se trata de um embate entre guitarra e órgão, de um estilo sóbrio em oposição a outro festivo. A transcendência da adora-ção cristã, se acreditamos nela, não se dá pelo emprego de um estilo litúrgico ou de práticas particulares, mas pela adoração do Deus úni-co e daquele que, tendo sido feito Cristo e Senhor, está agora senta-do à "mão direita" de Deus, encarnando em si o favor e a autoridade incomparáveis de Deus. Em outras palavras, se a adoração cristã for oferecida de modo genuíno ao Deus verdadeiro e transcendente, em cuja revelação ela diz crer, então esse Deus transcendente, e somente ele, dá à adoração terrena alguma esperança de significado maior do que podem lhe dar meras convenções e transações terrenas. Contu-do, os cristãos podem talvez experimentar e participar de maneira mais consciente, deliberada e completa dessa realidade transcendente se aprenderem com o NT e com a tradição cristã e procurarem mo-delar e inspirar comportamentos cristãos modernos que permitam à adoração alcançar possibilidades mais elevadas.

Ao nos reunirmos para adorar com a sensação de estar na pre-sença de Deus, reunidos diante dele, alinhados com as realidades celestiais, a experiência que temos é diferente de ir a um clube ou a uma reunião de negócios, tampouco se trata de uma tentativa infor-mal de adquirir certa intimidade uns com os outros. É claro que as pessoas desejam criar laços sólidos e desenvolver uma rede de co-nhecidos, como é desejo de todo ser humano. Todavia, os cristãos precisam igualmente se dar conta de que todos os nossos esforços são respaldados e contextualizados pela realidade e pelos propósitos divinos que invocamos e que fazem de nós uma ekklesia, um grupo que recebeu de Deus uma vocação elevada e cuja reunião tem um significado "solene".

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 137

Adoração e escatologia

Outra característica da adoração cristã primitiva que nos pode levar a refletir sobre seu significado atual consiste no forte tom escato-lógico do culto daquela época. De acordo com o NT, a adoração cristã deve ser entendida como uma antecipação e urna declaração do triunfo final de Deus e do propósito de Deus em Cristo. Em ter-mos teológicos, a aclamação cristã de Jesus corno Kyrios (Senhor) é, portanto, uma ação escatológica que conduz os participantes ao de-senlace final dos propósitos redentores de Deus. O tema da presença dos anjos na assembleia de adoradores mencionado anteriormente em nossa análise chama a atenção do cristão para uma lealdade e cidadania mais elevados e para as dimensões mais profundas da re-alidade. Desse modo, o reconhecimento de que a aclamação pela igreja histórica terrena deriva da exaltação de Jesus por Deus e de que ela antecipa a futura aclamação universal do senhorio de Jesus fará que ela erga os olhos da congregação de adoradores além das rotinas e dos atos monótonos da liturgia e além da mera expressão religiosa. O reconhecimento de que a adoração cristã tem essa di-mensão escatológica elevará o rosto dos fiéis na direção da aurora futura da obra redentora e vitoriosa de Cristo. Será a consumação de todas as coisas nele, confoiiiie assevera a proclamação cristã.

Depois de Constantino, o cristianismo imperial perdeu a com-preensão de testemunha provisória do Reino de Deus que tinha inicialmente e logo passou a achar que era ele mesmo esse Rei-no, com estruturas próprias e proeminência terrena (o que, de fato, ficara estabelecido sob Constantino pelo uso bastante conhecido da força imperial). De igual modo, o cristianismo imperial per-deu aquela percepção aguda que tinha da esperança escatológica, acomodando-se no que se tornou uma rotina insípida de atos re-ligiosos com um fim em si mesmos. Contudo, é de fundamental importância para a proclamação registrada no NT o entendimento

de que todas as nossas ações contrastam com o horizonte do triunfo final de Deus, pela graça, por meio de Jesus Cristo. Aguardando com esperança a vitória escatológica de Deus sobre tudo o que

138 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

diminui e destrói a criação é que a ação cristã terá algum significa-do maior que a mera versão curiosa do esforço humano.

Mais especificamente, a adoração cristã poderia ser novamente vivificada e enriquecida se nos lembrássemos do imenso alcance dos propósitos de Deus, que se estendem além do nosso contexto e tempo imediatos, cobrindo toda a história humana, prometendo-nos a vitória futura sobre o mal e a consumação da graça redentora. Se subtrairmos a esperança do triunfo divino sobre o mal, e a con-fiança de que Jesus é realmente o Senhor apontado por Deus em quem todas as coisas encontram sentido, segue-se que a aclamação cristã do senhorio de Jesus não passa de uma estupidez, objeto de repulsa e escárnio por parte das poderosas realidades negativas da criatura que somos: das tiranias políticas e econômicas que cons-truímos, das forças religiosas e irreligiosas, dos eventos sociais e cul-turais que fazem a fé cristã parecer fútil e nossa adoração pouco mais que um passatempo curioso.

Devoção a Cristo e reivindicações políticas

Não podemos fugir também à questão política, principalmente em face da experiência do século xx com os regimes políticos totali-tários. Corretamente entendida, a adoração a Deus e a Jesus, Filho unigênito do Deus único, também compreende a recusa em adorar e em obedecer acriticamente a quem quer que assim o exija. No NT, a afirmação típica que distinguia a adoração cristã era: "Jesus é Senhor". Nos primeiros séculos, os cristãos viram que essa aclama-ção produzia tensões entre as reivindicações divinas e as exigências do sistema romano. Mesmo em séculos posteriores, os cristãos pas-saram por ocasiões em que tiveram de fazer uma escolha igualmen-

te decisiva.'' 5 Tal como nossos primos judeus, os cristãos sempre

"Consulte-se a coleção de textos básicos em Das frühe Christentum bis ZUM Ende der Verfolgungen (GuYoT & KLEIN, Band 1: Die Christen im heidnischen Staat. [Texte zur Forschung, 60]). A literatura acadêmica a respeito do conflito cristão com o Estado romano é imensa. Entre os estudos recentes, v, de Keresztes (Impe-rial Rome and the Christians: from Herod the Great to about 200 AD).

REFLEXÕES SOBRE A ADORAÇÃO CRISTÃ HOJE 139

oraram por governantes terrenos, e não a eles. A fé monoteísta do cristão o impede de qualquer outra coisa, se quiser permanecer fiel a ela. Toda e qualquer lealdade política do cristão deve ficar muito aquém de conceder ao governante, ou ao regime, submissão total e acrítica. A reverência dos primeiros cristãos a Cristo compreendia sempre o uso deliberado de termos e títulos igualmente reivindi-cados pelo sistema romano, como "Filho de Deus".26 Portanto, a reverência que tinham por Cristo era ao mesmo tempo um ato reli-gioso e um ato de profundas conotações e consequências políticas. Ao confessar que Jesus era "o Senhor" e "o Filho de Deus", aqueles primeiros cristãos inevitavelmente, e não raro conscientemente, ne-gavam ao governante romano esse mesmo status.27

Nossa situação temporal e geográfica nas democracias moder-nas e seculares talvez não nos confronte com as mesmas disputas óbvias entre a adoração a Cristo e a reverência indevida a governan-tes ou a outros objetos de culto. Ninguém nos pede que ofereça-mos incenso à imagem de quem nos governa ou que nos unamos à adoração dos deuses da nação. Contudo, talvez a dificuldade que o Ocidente moderno sinta em compreender de que maneira a adora-ção cristã primitiva nos ajuda a entender nossa relação com outras instâncias que reclamam nossa lealdade se deva, em grande parte, ao fato de que é pobre demais a percepção que temos daquilo que deveríamos fazer ao adorarmos a Deus! Creio que um compromisso honesto e coletivo com a adoração séria, ponderada e genuína àque-le que "está assentado no trono e ao Cordeiro" (Ap 5.13) depuraria nossa visão e nos permitiria ver as demandas impróprias (incluindo aquelas a que estamos habituados) que nos faz nossa cultura. Vería-mos também se hoje, ao nosso modo, nós, cristãos, não estaríamos consentindo com "coisas sacrificadas a ídolos" (Ap 2.14,20). Nossas

"A discussão de Deissmann sobre o uso pelos cristãos primitivos da retórica também usada pela propaganda imperial romana continua válida pelas citações básicas que apresenta. Cf. Light from the Ancient East (p. 338-78).

270 uso característico do artigo definido nas aclamações neotestamentárias de Jesus com esses títulos trazem consigo uma conotação implícita de exclusivismo.

140 AS ORIGENS DA ADORAÇÃO CRISTÃ

inclinações idólatras podem nos parecer mais sutis, mas nem por isso deixam de ser contrárias à fé que professamos. Um entendi-mento mais profundo da nossa fé deixaria mais bem preparado o cristão contemporâneo em seu dia a dia social e político, bem como nas áreas mais íntimas da moral particular, às quais algumas formas de piedade cristã dedicam atenção praticamente exclusiva.

Conclusão

Neste último capítulo, defendemos que a adoração atual dos cris-tãos deve ser estruturada e enriquecida pelos ensinamentos bíblicos e conduzida de maneira séria à luz da necessidade de distinguir entre a mera religião humana (que sempre tende à idolatria, quer cristã, quer não) e a revelação de Deus. Exatamente porque a ado-ração parece uma atividade familiar aos cristãos contemporâneos é que se faz mais necessária uma reflexão séria, nada tendo por certo e considerando mais uma vez os significados e as implicações da devoção cristã.

A adoração cristã do Deus único é oferecida por meio de Je-sus, e juntamente com ele, a Deus. Como vimos, a adoração de Jesus não é meramente a adoração de um deus a mais, ou uma reve-rência que se faz a um herói divino em consonância com o modelo que predominava no contexto religioso romano no tempo do cris-tianismo primitivo. Tampouco essa adoração representa a suplan-tação de uma divindade antiga e obsoleta por outra mais jovem. A adoração de Jesus, bem-entendida, é a adoração do Deus único por meio de Jesus Cristo, em quem aquele se revelou de modo inigua-lável. Portanto, a adoração inteligente de Jesus requer que juntemos a ela o entendimento do que o evangelho de Jesus Cristo nos diz a respeito dos propósitos divinos. Refletir hoje sobre a adoração de Jesus levará os cristãos a uma descoberta mais profunda de Deus e daquilo que são chamados a ser na graça redentora de Deus.

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