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“ASSALTANTE, TERRORISTA, SUBVERSIVO”: REPRESENTAÇÕES DE CARLOS MARIGHELLA NA REVISTA VEJA (1968-1969) 1 Sandro Leite Souza 2 Durante o período que vigorou a ditadura civil militar no Brasil (1964-1985), vários sujeitos se destacaram na luta contra o regime instaurado a partir de um golpe civil militar. Nesse sentido, elegemos Carlos Marighella como nosso objeto de estudo. Assim, pretendemos entender como foram construídas as representações em torno deste homem que tanto lutou e que perdeu a vida em nome da luta pela liberdade e pela democracia. Para que tentássemos responder aos nossos questionamentos utilizaremos algumas reportagens da Revista Veja que trataram sobre Marighella entre 1968-1969 nos valendo metodologicamente da análise do discurso na perspectiva de (ORLANDI, 2010). Dentro das discussões teóricas nos embasamos nas fundamentações de (RIDENTI, 2010), (RAUTENBERG, 2011), (SOARES, 2012), (CHARTIER, 1990) e (SILVA JÚNIOR, 2005). Marighella foi líder de uma das maiores organizações que lutou contra a ditadura, mas para muitos era apenas “(...) líder de um grupo de subversivos, assaltantes, e terroristas candidatos a guerrilheiros (...)”. Partindo desse pressuposto o que se pretende é analisar como foi construído o perfil desse guerrilheiro que atuou como um dos maiores combatentes ao regime militar instaurado no Brasil em 1964. Palavras-chaves: Marighella, Representações, Ditadura. INTRODUÇÃO Durante o tempo que vigorou a ditadura Civil-militar no Brasil, vários sujeitos se destacaram por resistirem ao regime. Dentre tantos, elegemos um para estudarmos. Nesse trabalho iremos debruçar nossas análises sobre um personagem específico, Carlos Marighella. Nesse texto trabalharemos com as representações acerca de Marighella a partir das análises de algumas reportagens que a Revista Veja publicou a seu respeito. Para tanto, o nosso objetivo aqui é compreender como a VEJA divulgou e construiu a imagem de terrorista e subversivo sobre Marighella. 1 Trabalho orientado pela professora Sandra Regina Barbosa da Silva Souza. Atualmente atua na coordenação da Comissão Estadual da Verdade Bahia. 2 Graduando em História pela Universidade do Estado da Bahia Campus XVIII Eunápolis-ba. E-mail: [email protected].

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“ASSALTANTE, TERRORISTA, SUBVERSIVO”: REPRESENTAÇÕES DE

CARLOS MARIGHELLA NA REVISTA VEJA (1968-1969)1

Sandro Leite Souza2

Durante o período que vigorou a ditadura civil militar no Brasil (1964-1985), vários sujeitos

se destacaram na luta contra o regime instaurado a partir de um golpe civil militar. Nesse

sentido, elegemos Carlos Marighella como nosso objeto de estudo. Assim, pretendemos

entender como foram construídas as representações em torno deste homem que tanto lutou e

que perdeu a vida em nome da luta pela liberdade e pela democracia. Para que tentássemos

responder aos nossos questionamentos utilizaremos algumas reportagens da Revista Veja que

trataram sobre Marighella entre 1968-1969 nos valendo metodologicamente da análise do

discurso na perspectiva de (ORLANDI, 2010). Dentro das discussões teóricas nos embasamos

nas fundamentações de (RIDENTI, 2010), (RAUTENBERG, 2011), (SOARES, 2012),

(CHARTIER, 1990) e (SILVA JÚNIOR, 2005). Marighella foi líder de uma das maiores

organizações que lutou contra a ditadura, mas para muitos era apenas “(...) líder de um grupo

de subversivos, assaltantes, e terroristas candidatos a guerrilheiros (...)”. Partindo desse

pressuposto o que se pretende é analisar como foi construído o perfil desse guerrilheiro que

atuou como um dos maiores combatentes ao regime militar instaurado no Brasil em 1964.

Palavras-chaves: Marighella, Representações, Ditadura.

INTRODUÇÃO

Durante o tempo que vigorou a ditadura Civil-militar no Brasil, vários sujeitos se destacaram

por resistirem ao regime. Dentre tantos, elegemos um para estudarmos. Nesse trabalho iremos

debruçar nossas análises sobre um personagem específico, Carlos Marighella. Nesse texto

trabalharemos com as representações acerca de Marighella a partir das análises de algumas

reportagens que a Revista Veja publicou a seu respeito. Para tanto, o nosso objetivo aqui é

compreender como a VEJA divulgou e construiu a imagem de terrorista e subversivo sobre

Marighella.

1 Trabalho orientado pela professora Sandra Regina Barbosa da Silva Souza. Atualmente atua na coordenação da

Comissão Estadual da Verdade – Bahia. 2 Graduando em História pela Universidade do Estado da Bahia Campus XVIII Eunápolis-ba. E-mail:

[email protected].

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O período da ditadura civil-militar no Brasil foi uma época em que os movimentos sociais e

as guerrilhas foram fundamentais para o declínio do Regime Militar implantado no nosso país

a partir de 1964. Contudo, segundo (RIDENTI 2010, p 29)

Ogolpe civil-militar e a derrota sem resistência das força ditas progressistas em

1964 marcaram profundamente os partidos e os movimentos de esquerda brasileiros.

Os nacionalistas, a POLOP e outros grupos, que já advertiam para a necessidade e

resistência armada a um golpe de direita, praticamente nada fizeram para levar

adiante a resistência, enquanto o PCB e outras forças reformistas assistiram

perplexos à demolição de seus ideais. Logo se faria sentir sobre o conjunto da

esquerda o “terremoto” de 1964, com a dispersão da maior parte das forças

populares que começavam a adentrar na cena política. (...).

Nessa conjuntura política que surge a Ação Libertadora Nacional (ALN) comandada por

Carlos Marighella e que se tornou uma das mais famosas organizações da esquerda durante a

ditadura civil militar instaurada em 1964. Com objetivo de realizar ações contra a ditadura

tanto no campo quanto a na cidade a ALN se destaca pelo seu caráter revolucionário

agrupando os dissidentes do PCB. Para Ridenti,

As principais cisões do PCB, nas bases e na cúpula, foram as capitaneadas pelo líder

Carlos Marighella, que criaria a Ação Libertadora Nacional (ALN), e pelo dirigente

Mário Alves, que daria origem ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário

(PCBR). ALNe PCBR tiraram militantes do PCB em todo o país, organizando-se

nacionalmente, embora a ALN tivesse sua força principal em São Paulo e o PCBR

na Guanabara. (RIDENTI, 2010, p. 30).

Com o surgimento das novas organizações de esquerda no país, passa-se a ter um

enfrentamento ao regime militar. Nessa luta cada um se valia da arma que tinha para se

defender ou atacar. Nesse cenário de combate entre esquerda e direita que se dá as ações de

Carlos Marighella como líder da ALN. Em meio a essedueloideológico surge a Revista Veja,

lançada em1968 com o objetivo de manter a sociedade brasileira informada sobre os

acontecimentos do Brasil e do mundo.

No primeiro editorial da revista, seu editor anuncia a chegada de uma revista inédita no país.

No texto, o autor coloca para que finalidade a revista nasceu.

Prezado leitor:

Onde quer que você esteja, na vastidão do território nacional, estará lendo estas

linhas praticamente ao mesmo tempo em que todos os demais leitores do País. Pois

VEJA quer ser a grande revista semanal de informação de todos os brasileiros. (...)

No decorrer dos últimos três meses, preparamos treze edições experimentais

completas — com capa, texto, fotos e anúncios —, a fim de treinarmos para a

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grande jornada que hoje se inicia. (...) Devemos esta revista — em primeiro lugar —

aos milhões de leitores que através dos anos têm prestigiado nossas publicações. Às

classes governantes, produtoras, intelectuais que reclamaram da Abril este

lançamento. Aos jornalistas, que com dedicação e espírito profissional o tornaram

possível. Aos quase mil gráficos que participam, entusiasticamente, de seu complexo

esquema de produção semanal. Aos distribuidores, jornaleiros e transportadores que

aceitaram o desafio de vencer as enormes distâncias nacionais na corrida até as

bancas, toda segunda-feira. E às agências e aos anunciantes que tomaram todo o

nosso espaço disponível sem sequer conhecerem o projeto final da revista, numa

comovedora prova de confiança. Conscientes da responsabilidade assumida ao editar

VEJA, dedicamos a revista a todas essas pessoas. Ao Brasil de hoje e de amanhã.

(VEJA 1ª edição 11/09/1968, p. 21-22).

No início do seu discurso Veja já diz a que veioque esta será a “voz” do país de norte a sul,

como a mesma afirma: “Onde quer que você esteja, na vastidão do território nacional, estará

lendo estas linhas praticamente ao mesmo tempo em que todos os demais leitores do País”, ou

seja, seu discurso enaltecedordos grandes empresários edo governo como sendo o clamor da

sociedade. Nesse sentido, entendemos que a imprensa e em especial a Revista Veja, tem

grande influência sobre seus leitores. Muitos desses sujeitos aceitam o que os periódicos

trazem como uma verdade e são incapazes de questioná-las. Dessa premissa, concordamos

com Edina Rautenberg (2011) quando afirma que:

A hiperabundância de informações veiculadas pela mídia constitui-se em uma

história que se resume em: subinformação (quantidade sem qualidade); sucessão de

fatos sem nexo; conhecimento fragmentado, não sistematizado e banalizado; os

elementos necessários para a compreensão crítica do evento estão sempre ausentes

(o evento é apresentado como inevitável; é dissociado de seus antecedentes,

retirando-o do processo histórico; é dissociado de seu contexto; é “analisado” em

escala local, sem referência a contextos mais amplos) (...) (RAUTENBER, 2011, p.

65).

Essa passividade dos receptores e intencionalidades vinculadas pela mídia, que permite aos

veículos de informação agir de maneira corrupta, manipulando o que é divulgado conforme

seus interesses, tanto políticos, econômicos e ideológicos. Nesse jogo de interesses “a

imprensa torna-se, portanto, importante instrumento de alguns atores dessa luta, onde os

setores dominantes implementam seu programa partidário, apresentado e recoberto de suposta

neutralidade, realizando uma distribuição específica de poder”3. Nessa perspectiva a Revista

Veja não fica de fora quando entendemos que a “notícia” não é necessariamente expressão da

verdade, mas algo produzido com um fim precípuo, o de ser vendido como qualquer outro

3 RAUTENBERG Edina. A revista Veja durante a ditadura civil-militar brasileira: uma discussão a respeito do

seu papel no campo do poder e da luta de classes. In: Em Debat: Rev., ISSNe 1980-3532, Florianópolis, Santa

Catarina, Brasil n. 5, p. 64-85, 2011. Disponível em:

https://periodicos.ufsc.br/index.php/emdebate/article/view/1980-3532.2011n5p64/19853.

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produto”4. Com isso, acreditamos que o interesse maior da maioria dos meios de comunicação

não é meramente informativo, pois “não refletem a realidade - como se fosse sobre ela um

espelho - mas têm algum tipo de relação com a realidade, que acaba por distorcê-la,

apresentando outra realidade que passa a ser base para a compreensão do real daqueles que os

ouvem/assistem/leem.”(SILVA, 2006, p.05).

Por saber dessa relação da imprensa com a manipulação da realidade que nesse trabalho

estamos procurando entender como o Guerrilheiro Carlos Marighella foi retratado pela

Revista Veja. Nesse sentido segundo Chartier (1990, p. 17)

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem

estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma

autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto

reformador ou justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.

Assim, entendemos o discurso de Revista Veja acerca de Carlos Marighella como uma

construção ideológica, pautada na negativação das suas ações através das informações

publicadas sobre ele. Deste modo, na noção de representação trabalhada por Chartier ele lança

mão para designar o modo pelo qual em “diferentes lugares e momentos uma determinada

realidade é construída, pensada, dada a ler”por diferentes grupos sociais (CHARTIER, 1990,

p.16). Nessa perspectiva, foram-se criando as representações sobre os movimentos de

esquerda e suas lideranças que atuavam em ações combativas contra o regime. Nessa

construção a Revista Veja serviu de fio condutor da ideologia do regime militar enquanto um

periódico de circulação nacional ao construir uma imagem descontextualizada sobre a

esquerda brasileira do período da ditadura.Nesse sentido Chartier nos auxilia dizendo que:

As representações do passado construídas ao longo de tempo os fizeram seus

protagonistas. As representações mentais sempre distorcem, ocultam ou manipulam

o que foi e essa é a razão pelaqual focalizar sobre elas não pode senão abrir os

caminhos do relativismo, do ceticismo e das falsificações. Para que possam exercer-

se de maneira adequada a “função critica que e inerente a historia”, os historiadores

precisam se libertar das representações ilusórias ou manipuladoras do passado e

estabelecer a realidade do que foi. (CHERTIER 2011, p. 16).

Percebendo essa dicotomia que assumem os sujeitos e seu papel na história,que optamos em

estudar Carlos Marighella e suas representações no discurso da Veja. Nesse caso entendemos

4 SILVA, Carla. Estudando a imprensa para produzir história. III Simpósio Estadual Lutas Sociais na América

Latina, 2006, Londrina. In: ANAIS, Crise das democracias latino-americanas: dilemas e contradições. Londrina:

Eduel, 2006.

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discurso como algo que “se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se

inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro.”

(ORLANDI, 2010, p, 43). Todo discurso proferido tem um sentido que carrega em si a

ideologia de quem o produziu. Por isso, entendemos que ao fazer a análise do discurso da

Veja sobre Marighella entenderemos o posicionamento da revista em relação ao Regime

Militar e seus opositores.

Desse modo, os sentidos sempre são determinados ideologicamente. Não há sentido

que não o seja. Tudo que dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a

outros traços ideológicos. E isso não está na essência das palavras mas na

discursividade, isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produza seus

efeitos, materializando-se nele.(...). (ORLANDI, 2010, p. 43).

Assim, o que é produzido pela revista Veja pode-se dizer que é um discurso materializado de

ideologias com a intenção de informar e ao mesmo tempo dizer como a população (leitores)

devem agir ou pensar segundo a ordem governante vigente.

CARLOS MARIGHELLA NAS PÁGINAS DA VEJA

Na edição de 11 de novembro de 1968 a revista traz em sua capa uma foto de Marighella com

a seguinte manchete: “Procura-se Marighella chefe comunista, crítico de futebol em

Copacabana, fã de cantadores de feira, assaltante de bancos, guerrilheiro, grande apreciador

de batidas de limão”. Na manchete que estampa a capa percebe-se que no discurso da Veja há

uma tentativa de desmoralização de Marighella com uma alternância de adjetivos pejorativos,

pois as expressões chefe comunista,assaltante de bancos e guerrilheiro veem em destaque

tentando chamar a atenção do leitor para àquele que a revista diz ser “crítico de futebol, fã

de cantores de feira e grande apreciador de batidas de limão”. Ao nos depararmos com

esse jogo de palavras proferido pela revista, percebemos que há um desencontro de

informações que nos leva a um paradoxo em relação da identidade que a revista que passar

sobre Carlos Marighella. Ela seria o mocinho ou o bandido da história? Cabe-nos nesse

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trabalho tentar desvendar essas contradições geradas pela Veja como podemos ver na

imagem5 abaixo.

A primeira reportagem de Veja sobre Marighella com ele na capa foi intitulada “A caçada”,

com a manchete da capa “Procura-se” apresenta-o como uma pessoa pacata, que gosta de

tomar sol nas praias de Copacabana. Segundo a revista esta vida tranquila acabou depois da

prisão de um estudante em um posto de gasolina que seria um dos informantes. Com a prisão

do estudante Paulo César Bezerra e depois de sua confissão, Carlos Marighella passou a ser

procurado como líder de uma organização nacional que realizava assalto a bancos e ações

subversivas em todo país.

De pé diante de um balcão de botequim no Posto Quatro de Copacabana, tomando

batida de limão, Carlos Marighela prestava o seu depoimento: "A seleção brasileira

de futebol este ano está muito fraquinha". Não muitos dias depois, começava a caça

nacional ao homem robusto de pele morena e cabelo claro já grisalho, que

diariamente tomava três horas de banho de sol e mar, comia cachorro-quente nas

praias cariocas e conversava com crianças. Sempre tendo à mão ou sobre mesinhas

de bar um copo de batida - sua bebida predileta -, vindo depois a laranjada e a água

de côco-da-baía. Ainda não tinha sido preso o estudante Paulo César Bezerra, que o

aponta como chefe nacional de uma organização subversiva que anda assaltando

bancos. (VEJA, 20/ 11/68, p. 15).

Nessareportagem a revista apresenta um discurso debochado, e mal intencionado, pois narra

as ações dos “terroristas” de meros vândalos que atacam e saqueiam sem nenhuma

preocupação. Falando sobre Marighella a revista afirma em tom de sarcasmo que sua vida se

transformou em uma grande novela, onde pode-se encontrar de tudo. Percebemos uma

5Capa Revista Veja 11 de outubro de 1968

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intencionalidade da Veja em criar uma imagem distorcida de Carlos Marighella ao levantar

várias suposições sobre as pessoas envolvidas no que a revista chama de “novela”. São

criadas várias personagens para compor a trama novelística como é tratada a situação na

reportagem de Veja. Há assaltantes armados, louras fatais, intrigas familiares e tudo que

compõe uma boa trama de novela.

Na novela desta caçada não falta nada do que compõe um bom programa de

televisão. Há assaltos espetaculares de homens com metralhadoras em bancos de

todo o País: há intrigas familiares - o principal acusador, o estudante Paulo César,

filho de um falecido militante comunista, é namorado da filha de um tenente-coronel

que já prestou serviços ao Serviço Nacional de Informações. Não faltam aventuras

amorosas - a mãe de Paulo César seria amante de Carlos Marighela, homem de 57

anos. Há também a inevitável loura de 35 anos, suposta companheira de Marighela

nos amores e nos assaltos, que seria estudante de Medicina no Ceará ou aluna de

Filosofia em São Paulo, mas sempre é apontada como loura de franjinhas. Ela atende

pelo nome de Sílvia e usa luvas cirúrgicas quando carrega metralhadoras para

assaltar bancos. (VEJA, 20/11/68, p. 15-16).

No discurso apresentado acima, quando a Veja compara as ações dos guerrilheiros com um

programa de televisão, há uma tentativa de desvalorizar as atitudes das pessoas envolvidas nas

ações que a revista chama de “subversivas”, principalmente Marighella. Em uma sociedade

movida por uma moral cristã, nada mais perspicaz do que criar uma imagem de adúltero de

uma dos maiores líderes da esquerda do período. Há uma dupla representação no discurso que

nos é apresentado pela Revista Veja. Primeiro “não faltam aventuras amorosas - a mãe de

Paulo César seria amante de Carlos Marighela”. Segundo, “há também a inevitável loura de

35 anos, suposta companheira de Marighela nos amores e nos assaltos, que seria estudante de

Medicina no Ceará ou aluna de Filosofia em São Paulo, mas sempre é apontada como loura de

franjinhas”.

Nos casos apresentados, cria-sea imagem de uma pessoa que é dada aos desejos e prazeres

carnais, um galanteador que sai ficando com todas as mulheres envolvidas nos esquemas

organizados por Marighella. Nesse sentido, entendemos que a Veja deseja ganhar o apoio da

sociedade, criando uma imagem distorcida ao apresentar uma visão sobre Carlos Marighella

de adúltero, boêmio, que passava seus dias pegando uma praia em Copacabana.

Segundo Ronchi (2011) uma das medidas adotadas pelo regime era a desmoralização política

da sociedade com a cassação dos mandatos políticos dos seus opositores, criminalização dos

movimentos e dos seus líderes.

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As medidas ditatoriais adotadas na primeira fase do regime militar visavam, além de

desmobilizar politicamente a sociedade, marginalizar as lideranças civis em relação

aos processos decisórios, agigantar o poder Executivo Federal frente aos demais

poderes e à autonomia dos estados e, por fim, exercer rígido controle sobre os

processos eleitorais a nível federal, estadual ou municipal. (RONCHI, 2011, p. 36).

Com isso, Veja faz muito bem seu papel ao criar uma imagem caricata de Marighella

colocando seus feitos como uma grande novela, cheia e confusões e conflitos. Destas

construções discursivas que a boa parte da sociedade passará a julgar todos àqueles que se

colocaram contra o regime ditatorial instaurado no país em 1964. Por muito tempo esse foi o

papel da imprensa na ditadura. Assim,

As empresas jornalísticas devem ser vistas como partidos de determinados grupos

políticos e econômicos, em consonância com seus programas, ou seja, suas

interpretações da realidade, acabam interferindo no conhecimento que se tem sobre a

realidade e na tomada de posições sobre elas. (SILVA, 2006, P. 02).

Partindo desse pressuposto, concordamos com (RONCHI, 2011, p. 09) quando este afirma

que, “o governo militar recorreu, em todo o período ditatorial, a diversos mecanismos

coercitivos os quais variaram da repressão policial às manifestações de rua até a

sistematização de todo um aparelho de espionagem, policiamento político e censura.” E

também ao poder dar mídia como fica claro a influência da Revista Veja pelo caráter de

alcance nacional.

A Veja tenta de todas as maneiras criar uma visão negativa sobre as ações guerrilheiras no

país “É preciso que o povo sinta a alta periculosidade dos elementos que estão tentando

quebrar a ordem no País, e nos ajude dando informações e evitando que esses elementos se

ocultem de nós”. (VEJA 25/09/68, p.23-24). Com esse tipo de informação sendo levada a

todos os cantos do Brasil, a Revista diminui todo o caráter ideológico e de resistência das

ações dos guerrilheiros, ao criar uma imagem pejorativa sobre seus atos.

A REVISTA VEJA E A MORTE DE CARLOS MARIGHELLA

Sobre Carlos Marighella se construiu várias representações no decorrer da sua vida e também

sobre a sua morte. “Segundo a polícia, a morte do dirigente comunista aconteceu devido à sua

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resistência à prisão. Marighella teria reagido, e seus seguranças teriam trocado tiros com os

policiais.” (SOARES, 2012, p. 08).

Nesse sentido, Veja levanta algumas possibilidades sobre como teria ocorrido a emboscada

que resultou na morte de Marighella.Na edição número 62 Marighella aparece ne sessão terror

da revista com a seguinte manchete “estratégias para matar o terror” se referindo ao aparato

policial que se formou para emboscar Carlos Marighella.

Ilustrando a primeira página da matéria, três fotos: Marighella morto no interior do

Volskswagen, seu corpo já fora do carro, e, por fim, a cova onde foi sepultado. As imagens

são acompanhadas pela seguinte afirmação: “Carlos Marighella está morto, sepultado em uma

cova rasa [...] Sua última batalha [...] acabou com o mito de que os generais do terror eram

perfeitos estrategistas” (VEJA, 12/11/69, p.22).

Seguindo com a reportagem a revista Veja levanta algumas possibilidades sobre como teria

ocorrido a emboscada que resultou na morte de Marighella. Veja cita o Mini Manual do

Guerrilheiro para desestabilizar as ações naquele dia. Faz uma fala, citando Marighella com

trechos retirados do seu livro onde ensina como o guerrilheiro deve agir em situações

extremas. No discurso apresentado pela Revista VejaMarighella aparece como aquele que

sabe dá conselhos, mas não os sabe seguir. Há um ar de sarcasmo com que dizendo, você não

era o melhor, o mais procurado, o mais temido e acabou caindo na sua própria armadilha.

Marighella em seu Mini Manual diz que "contra a surpresa o inimigo nada pode opor e rende-

se perplexo ou é aniquilado” dessa fala Veja ironiza a atual situação em que se encontra

Marighella afirmando que:

A surpresa, que Carlos Marighella considerava fundamental para o êxito de ações

subversivas, foi a arma usada pelo DOPS de São Paulo para derrotá-la. Em seu

"MiniManual do Guerrilheiro Urbano", o homem apontado como a alma da escalada

do terror no Brasil ensinava que "contra a surpresa o inimigo nada pode opor e

rende-se perplexo ou é aniquilado". Na noite de terça-feira da semana passada,

surpreendido numa armadilha, cercado por quase quarenta policiais, Marighella não

se rendeu. E foi aniquilado. (VEJA 12/11/69 p. 22).

A Vejase ampara no seu poder de alcance na sociedade e do grande número de pessoas que a

companha para disseminar e criar suas verdades e que vá de acordo com os interesses do

regime militar. Nesse caso especifico a Revista cria uma situação onde Carlos Marighella,

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apesar de todo seu conhecimento sobre as ações subversivas, suas táticas falhou ao se deparar

com a astúcia dos policiais do DOPS, ao montarem o esquema que resultou na sua morte.

Segundo a revista Marighella e seus companheiros estavam confiantes demais no esquema

que haviam planejado que nem se deram conta que estavam indo pra uma emboscada.

“Esse esquema falhou. Seu mais eficiente guarda costas, "Gaúcho", não observou

outro ensinamento do Mini-Manual: "O guerrilheiro urbano deve possuir uma

grande capacidade de observação, estar muito bem informado de tudo,

principalmente dos movimentos do inimigo". (VEJA 12/11/69 p. 22).

Com a morte de Marighella imaginou-se que haveria uma recuada das ações guerrilheiras no

país, como nos afirma Soares (2012),

A morte de Carlos Marighella, se não significa o fim do terrorismo, põe por terra

pelo menos a impressão de uma estrutura sólida e imbatível da subversão. Em todo o

país, as declarações de autoridades policiais, militares e de políticos revelam essa

tendência otimista para o combate ao terror. (...) (p. 25).

Marighella era tido como o líder máximo do terror, “o inimigo número um da ditadura”, mas

segundo discurso apresentado pela Revista Veja, foram usadas na captura de Carlos

Marighella as mesmas táticas para se capturar um criminoso comum. Citando a fala do

delegado DOPS6 que afirma que as táticas são as mesmas tanto para terroristas ou bandidos

comuns. Nesse discurso, a intencionalidade é inferiorizar um dos maiores líderes da esquerda

brasileira tratando-o como um bandido qualquer, como evidenciamos no trecho da Veja que

segue.

Usaram sua experiência no combate a marginais comuns. Para eles, a motivação

política era secundária. Um assalto a banco, praticado por terrorista, deveria ser

investigado como um assalto comum. O terrorista que roubasse um automóvel

deveria ser procurado como qualquer "puxador". A tática usada no cerco de

Marighella, segundo um delegado do DOPS, foi a mesma empregada normalmente

na captura de marginais: "Quando a gente prende um malandro, ladrão ou assassino,

enfim um bandido, e a gente sabe que ele tem um companheiro, obrigamos o preso a

nos levar até o barraco onde o outro mora. O bandido vai lá, bate na porta, o outro

pergunta 'Quem é?', e o bandido responde 'Sou eu'. O camarada abre a porta e

entram dez policiais junto com o bandido". (VEJA, 12/11/69 p. 26).

Das construções discursivas apresentadas na Revista Veja sobre Marighella há uma tendência

em sempre mostrar um lado negativo, carregado de pretensões, que os leitores,na maioria das

vezes desinformados do real contexto onde se realizou a ação, se apropriam desse discurso

6 Departamento de Ordem Política e Social.

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como sendo a verdade. Assim, entendemos que uma narrativa é sempre carregada das

ideologias de quem a produziu. Os discursos tomam formatos de acordo com as

intencionalidades do seu produtor, chegando aos seus receptores como algo verdadeiro e

inquestionável. De maneira geral a imprensa tem esse poder, pois, a sua narrativa nunca é

neutra e gera interpretações sobre os diversos aspectos da vida humana: seja o

macroeconômico, seja o micro comportamental. Através delas as pessoas tomam posição e

circunscrevem suas visões de mundo. Acaba sendo uma forma de manutenção da hegemonia

vigente. (SILVA, 2006, p. 02).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho tentamos entender como foram construídas as representações sobre Marighella

à luz das reportagens da Revista Veja, e como esta influenciava os seus leitores disseminando

suas verdades. Carlos Marighella sempre aparece na sessão intitulada “Terror” ou

“Subversivos”. Diante disso, percebemos que o periódico tentou a todo o momento criar uma

imagem negativa, distorcida, sobre Marighella. São passadas informações

descontextualizadas, criando assim estereótipos sobre todos que uma forma ou de outra atuou

nas ações de combate à ditadura civil-militar que se instaurou no Brasil em primeiro de abril

de 1964.

Carlos Marighella está longe de ser o representante do povo brasileiro durante a ditadura. Foi

um homem que lutou contra um sistema econômico e político de exclusão e exploração.

Almejava um sistema socialista, sonho que com a ditadura ficou impossível de realizar.

As imagens de terrorista, subversivo, inimigo, traidor, etc. foram assimiladas por grande

parte da sociedade deixando no esquecimento o lado herói, justiceiro, libertador dos

oprimidos. O que aconteceu com Marighella não é diferente de hoje, muitos dos heróis que

possuímosestão aclamados nos estádios de futebol lotados. Este que deu a vida pelo que

acreditava, por muito tempo foi esquecido pela sociedade, ficou ausente da memória, da

história do povo brasileiro. As memórias construídas – à esquerda e à direita – não servem à

história. E, provavelmente, uma e outra sejam desconhecidas do povo brasileiro. Homens sós,

nas suas vidas, nas suas mortes e assim permanecem nas memórias que os isolam da história.

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