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Arnold Toynbee Lorde James Bryce ATROCIDADES TURCAS NA ARMÊNIA DENÚNCIAS DE GRANDES PERSONALIDADES Apresentação Varujan Burmaian -V '

Atrocidades Turcas Na Armênia

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Aqui os leitores encontrarão o depoimento insuspeitodo mais renomado historiador dos tempos modernos,Arnold Toynbee, acompanhado do pronunciamento de LordeBryce na Câmara dos Lordes, na Inglaterra, ao tomarem ciênciadas agressões praticadas pelo governo Otomano contra o povoarmênio, no idos de 1915, isto é, durante a Primeira Grande GuerraMundial (1914-1918).

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  • Arnold Toynbee Lorde James Bryce

    ATROCIDADES TURCAS NA ARMNIA

    DENNCIAS DE GRANDES PERSONALIDADES

    A presentao V a r u ja n B u r m a ia n

    - V '

  • Por sua autenticidade histrica, trata-se de im portante docum ento para aqueles que, alm da curiosidade cientfica, desejam conhecer mais profundam ente certos aspectos da histria mais recente, inteirando-se dos fatos que marcaram de form a trgica o incio do sculo XX e que ficaram conhecidos como o 'genocdio armnio'. Aqui os leitores encontraro o depoim ento insuspeito do mais renomado historiador dos tem pos m odernos, Arnold Toynbee, acompanhado do pronunciam ento de Lorde Bryce na Cmara dos Lordes, na Inglaterra, ao tom arem cincia das agresses praticadas pelo governo O tom ano contra o povo armnio, no idos de 1915, isto , durante a Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918).( . . . )

    Neste livro encontramos o conceito que horrorizou o mundo: "acabar com a questo arm nia acabar com os a rm n io s ." A rgum ento que, mais tarde, prevaleceu na Alemanha, na deciso dos lderes nazistas de aplicar indizvel sofrim ento ao povo judeu, ao envi-lo para os campos da morte, dando origem ao segundo holocausto do sculo XX. Donde se v que atos crim inosos encontram imitadores e que, sejam quais forem os meios utilizados para seus fins, tm invariavelmente as mesmas conseqncias, que chocam e horrorizam os seres humanos civilizados.

    Varujan Burmaian Abril de 2003 - 88 ano do Genocidio Armnio

  • Um genocdio em julgamento:O processo Tallat Pax na Repblica de WeimarCom Prefcio de Paulo Srgio PinheiroTrata-se do processo movido contra o estudante arm nio Salomon Teilirian, acusado de assassinar o ex-m inistro do In terior da Turquia, Tallat Prax, que determ inara, por sua vez, o genocdio de cerca de 1 m ilho e meio de armnios.

    Histria da Armnia:Drama e esperana de uma naoAharon SapsezianViso panormica, clara e pedaggica da complexa tra jetria do povo armnio.Um texto que privilegia as principais questes da histria da Armnia: as origens, o massacre prom ovido pelos turcos, a "repb lica ", a dominao sovitica e os armnios no Brasil.

    Literatura Armnia: uma introduoAharon SapsezianApresentao da Literatura armnia, passado e presente, com o expresso da tra jetria histrica e cultural deste povo singular. O le itor in troduzido num universo rico das tradies seculares, de escritores, poetas e prosadores, transcritos e com entados atravs de excertos de suas obras.

    :

  • Os quarenta dias de Musa DaghFranz WerfelRomance inspirado na luta de um grupo de apenas 5 mil pessoas, form ado por homens, mulheres e crianas, contra os jovens turcos que, em perseguio aos armnios, haviam alcanado os vilarejos na costa da Sria, no M onte Dagh, ao sul do G olfo da Alexandretta.

    Passagem para AraratMichael J. ArlenQ uatro mil anos de histria, sendo a maioria marcada por perseguies e extermnios, o auto r se prope uma tarefa quase homrica: a recuperao de um povo esquecido: os armnios; numa viagem m uito pessoal de descoberta, sendo tam bm uma narrativa fascinante da histria de to d o um povo.

    Trabalho digital sob imagem doMonumento em Memria do Genocdio ArmnioFoto cedida por Stepn Hrair Chahinian

  • Atrocidades Turcas na ArmniaDenncias de grandes personalidades

    Amold T. Toynbee

    com um discurso proferido por

    Lorde Bryce

    na Cmara dos Lordes

    apresentao Varujan Burmaian

    PAZ E TERRA

  • by Paz e Terra

    CIP-Brasil. Catalogao-Na Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)

    Toynbee, Amold Joseph, 1889-1975

    Atrocidades turcas na Armnia em 1915: denncias de grandes personalidades.

    / por Amold T. Toynbee; com um discurso proferido por Lorde Bryce na Cmara dos Lordes. - So Paulo : Paz e Terra, 2003.

    Traduo de : Las atrocidades en Armnia

    ISBN 85-219-0647-1

    1. Massacre dos armnios, 1915-1923.I. Ttulo.

    03-0578 CDD 956.62CDU 94 (479.25) "1915/1923"

    002961

    EDITORA PAZ E TERRA S/A Rua do Triunfo, 177

    Santa Ifignia, So Paulo, SP CEP 01212-010 Tel.: (011)3337-8399

    Rua General Venncio Flores, 305 Sala 904 Rio de Janeiro, RJ CEP 22441-090

    Tel.: (021) 2512-8744 e-mail: [email protected]

    Home page: www.pazeterra.com.br

    2003Impresso no Brasil / Printed in Brazil

  • S u m r io

    Prefcio...................................................................... 11

    Exposio por lorde Bryce............................................ 17

    I. A Armnia antes dos morticnios........................... 25

    II. O plano dos morticnios........................................... 31

    III. A caminho da morte................................................. 41

    IV. O fim da jornada....................................................... 55

    V. Desculpas mentirosas............................................... 69

    VI. Assassinato s claras................................................. 81

    VII. Relao dos assassinatos.......................................... 95

    V E. A atitude da Alemanha............................................. 105

    Apndice.................................................................... 113

  • Mapa demonstrativo do Teatro das atrocidades

    Todos os lugares marcados neste mapa, com exceo de 12 encerrados entre parnteses, foram teatro de deportaes ou assassinatos ou de ambos, entre abril e novembro de 1915*

    * Dimotika, Malgara e Keshan, na Trcia, ficam demasiado afastadas ao oeste para poderem figurar o mapa, mas devem ser adicionados lista.

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  • Os nove lugares sublinhados foram os marcados para os armnios que l conseguiram chegar, servindo-lhes de antecmara da morte.

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  • LORDE JAMES BRYCE

    Nasceu em Belfast, Manda, em 1838. Poltico, Estudioso, Conselheiro do Partido Britnico Liberal, seu interesse pelos Armnios comeou quando de sua estadia em Cucaso em 1876.Tornou-se membro do Movimento Internacional Pr-Armnia (1904), participando de conferncias e reunies a favor dos Armnios perseguidos pelo imprio Otomano. Em 1907 foi nomeado Embaixador nos Estados Unidos da Amrica e em 1914, membro do Tribunal de Haia,Em 1915 o governo da Majestade Britnica solicitou que preparasse uma pesquisa sobre a perseguio e

    o massacre dos Armnios na Turquia, o material foi publicado em 1916 com o ttulo Blue Bok, um extenso documento que continha testemunhos confiveis descrevendo os acontecimento coletados pelo historiador Arnold Toynbee, evidenciando o massacre Armnio, e envolvendo a deportao e sistematizando o extermnio da nao Armnia no imprio Otomano enquanto o genocdio estava em progresso.

    ARNOLD TOYNBEE

    Historiador britnico, nasceu em 1889 em Londres. Foi diretor de pesquisas do Royal Institutefor International Affairs, orientou-se em direo filosofia. Interessado sobretudo pela evoluo das civilizaes, estabeleceu para elas uma teoria cclica. Escreveu The Rise and Fali ofCivilization, no qual condena o massacre Armnio comandado pelos Turcos durante o final do sculo XIX e o incio do sculo XX. Sua principal obra o Study ofHistory em 12 volumes

  • A TRO C ID A D ES A R M N IA S :

    o e x t e r m n i o d e u m n&o;&

    p o r :

    ARNOLD T. TOYNBEE,

    COM "UM DISCURSO PROFERIDO POR.

    . LORD BRYCE,

    NA CAMARA DS LORDS,s?

    ai Spotxiswoodb, L td.' IiNDOr.. =r *_____ ,

    1916.

    As

  • P refcio

    A primeira edio deste livro se deu em lngua portuguesa, em Londres, em 1916. Sua reedio trazida luz graas ao empenho do Prof. Hagop Kechichian e do interesse e seriedade que a Editora Paz e Terra dedica escolha dos temas de suas publicaes. Em realidade, o professor Kechichian, cuja preocupao com o rigor da autenticidade dos documentos patente, sugeriu que a presente edio reproduzisse a ortografia da original, o que se tomou invivel pela urgncia de conclu-la, fazendo coincidir o seu lanamento com a data de 24 de abril, em que, tradicionalmente, as comunidades armnias em todo o mundo rememoram o seu genocdio.

    Por sua autenticidade histrica, trata-se de importante documento para aqueles que, alm da curiosidade cientfica, desejam conhecer mais profundamente certos aspectos da histria mais recente, inteirando-se dos fatos que marcaram de forma trgica o incio do sculo XX e que ficaram conhecidos como o 'genocdio armnio'. Aqui os leitores encontraro o depoimento insuspeito do mais renomado historiador dos tempos modernos, Amold Toynbee, acompanhado do pronunciamento de Lorde Bryce na Cmara dos Lordes, na Inglaterra, ao tomarem cincia das agresses praticadas pelo governo Otomano contra o povo armnio, no idos de 1915, isto , durante a Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918).

    As veementes manifestaes de protesto daquelas exponenciais figuras condensam e reproduzem o brado de protesto de inmeros intelectuais da Europa, que se opunham, em nome de toda a humanidade civilizada, aos atos criminosos determinados pelo governo turco, exigindo providncias dos pases envolvidos no conflito de que era palco a Europa para fazerem cessar aquelas violncias. E o que esta obra reproduz vem somar-se enorme quantidade de documentos, depoimentos da poca e extensa literatura publicada em quase todas as lnguas, que relatam detalhes do genocdio armnio.

    II

  • No entanto, apesar dos apelos e protestos havidos, o governo turco, infelizmente com omisso dos pases envolvidos na conflagrao que dominou a primeira quadra do sculo passado, sentiu- se vontade para prosseguir na sua agresso contra a vida da populao civil armnia, que habitava territrios historicamente seus, mas sob o domnio do governo otomano.

    Neste livro encontramos o conceito que horrorizou o mundo: "acabar com a questo armnia acabar com os armnios." Argumento que, mais tarde, prevaleceu na Alemanha, na deciso dos lderes nazistas de aplicar indizvel sofrimento ao povo judeu, ao envi-lo para os campos da morte, dando origem ao segundo holocausto do sculo XX. Donde se v que atos criminosos encontram imitadores e que, sejam quais forem os meios utilizados para seus fins, tm invariavelmente as mesmas conseqncias, que chocam e horrorizam os seres humanos civilizados.

    O tempo decorrido tende a apagar da memria os acontecimentos no devidamente documentados, mas a histria provada no admite contestaes quantos aos fatos. E a anlise e interpretao deles sempre desejvel, pois, quando corretas, tomam-se fundamentais para o perfeito entendimento de suas razes e circunstncias.

    Mas as verdades de que cuida este livro o tempo no apagou: cada famlia armnia tem em sua histria marcas dolorosas daqueles acontecimentos. Quando o povo armnio, em todo o mundo, se rene anualmente no dia 24 de abril para rememorar seus mortos, para exigir o reconhecimento, pela Turquia, da responsabilidade de seus antecessores por aqueles vergonhosos fatos. E no o faz sem outro propsito, seno o de se ver atendido, pelo menos, na reparao moral a que tem direito pelos profundos danos que sofreu.

    Os sucessivos governos da Turquia reiteram a recusa do reconhecimento daqueles crimes, dos quais uma das mais eloqentes evidncias a dispora armnia, constituda pelos descendentes de uns poucos sobreviventes da tragdia, forados a emigrar dos seus antigos lares para se recomporem familiarmente em outros pases, nos quatro continentes.

    Mas mesmo os mais recentes pretendem ignorar os atos que vitimaram diretamente 1.500.000 armnios. No h muito, uma surpreendente manifestao de uma autoridade turca chamou a ateno dos leitores do jornal Tolha de So Paulo', ao vir a pblico para contestar matria que relatou o genocdio armnio; o embaixador

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  • turco em Braslia, num gesto de arrognda e duvidosa obrigao profissional, respondeu ao jornal negando o genocdio e argumentando que, no curso da guerra em que estava envolvida a Turquia, o ocorrido teria consistido na relocao de comunidade inteiras para reas 'mais seguras'.

    Esqueceu-se o diplomata de mencionar que as ditas 'reas seguras' eram no deserto da Anatlia, aonde os que l chegavam esta- vam condenados a morrerem de inanio. O que espantou foi a tentativa, de um diplomata, de negar veracidade ao publicado por um jornal de credibilidade irretocvel, utilizando um argumento ridculo. As interminveis caravanas de famlias armnias, arrancadas de seus lares e entregues a soldados e a criminosos comuns, que violentavam mulheres e crianas, rumavam para um nico destino -invariavelmente, a morte. As determinaes emanavam diretamente do governo turco, subscritas pelo seu Ministro do Interior, Tallat Prax, com ordens expressas aos governadores de provncias para massacrarem a populao armnia. As poucas autoridades que descumpriam tais ordens eram removidas e substitudas.

    Diante disto, torna-se difcil a qualquer ser humano deixar de retorquir ao desrespeito expresso por uma autoridade fora de seu pas, ousando contestar o que universalmente reconhecido h muito tempo. O melhor que lhe caberia seria calar-se, envergonhado, ao invs de insultar a inteligncia do jornalista, dos leitores do jornal e a memria das vtimas ede seus descendentes.

    O ser humano civilizado no admite a violncia em nenhuma escala, mesmo quando, por insanidade dos governadores de algum pas, sofre algum injusto constrangimento, vitimando-o em qualquer grau; com o retomo razo os sucessores daqueles governantes vm a pblico para confessar o erro, pedir desculpas s vtimas e reparar os danos causados. Exemplo dignificante, nesse sentido, foi o do ento presidente da Alemanha, Roman Herzog, que, em agosto de 1994, por ocasio do 50 aniversrio da insurreio de Varsvia, que sacrificou mais de 200.000 poloneses, em cerimnia pblica naquela cidade pediu desculpas pelos sofrimentos imposto pelos alemes aos poloneses durante a Segunda Guerra Mundial e pela brutalidade com que as foras nazistas sufocaram a conhecida Insurreio de Varsvia. No caso do genocdio armnio, at hoje ele no reconhecido pela Turquia. Com o indispensvel pedido de desculpas. Muito menos foram oferecidas reparaes de qualquer natureza aos titulares daqueles direitos.

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  • O entendimento mediano desse comportamento faz concluir que a Turquia persevera na mesma linha de conduta aos autores daqueles crimes. Postura de rgida negativa que levou pases, instituies e homens pblicos a se manifestarem nos anos que se seguiram ao genocdio, reclamando um comportamento adequado do governo turco. Assim que a Assemblia Nacional da Frana, recentemente, aprovou resoluo de reconhecimento como 'genocdio' o massacre de armnios ocorrido dentro do territrio do Imprio Otomano. Em 30 de janeiro de 2001, o presidente Jacques Chirac sancionou a deciso do parlamento, o que despertou a ferocidade do governo turco, com manifestaes de protesto seguidas de expressivas retaliaes comerciais. A Frana, mesmo com grandes interesses atingidos, no abriu mo do seu direito de respeitar a verdade histrica. Mas este no constituiu ato isolado na Frana. Anteriormente, dentre outros, o Parlamento Europeu, a Duma da Rssia e o Senado Belga reconheceram o 'genocdio armnio', demonstrando independncia, sem o receio de melindrarem um pas que, pela recusa em aceitar a verdade histrica, causa dvida quanto seriedade de seus governantes.

    Seria antecipar o que o texto deste livro trata com absoluta preciso histrica, mas no se pode deixar de relembrar que por conseqncia daqueles atos insanos os civis armnios se organizaram em algumas aldeias e cidade para se defenderem, com o de que dispunham, das investidas do exrcito turco, sendo conhecidos relatos verdadeiramente picos de sua resistncia. Durante a Primeira Guerra, a Alemanha tinha como aliada a Turquia, que no seu front oriental lutava contra a Rssia, em cujas fileiras se encontravam soldados armnios, que voluntariamente se alistavam para lutar contra o pas que sangrava os seus patrcios. Como se sabe, a guerra terminou com a derrota da Turquia e de seus aliados, batidos pelas tropas francesas, inglesas, russas e seus voluntrios armnios.

    A Turquia viu o seu vasto imprio se reduzir s dimenses hoje. O governo dos 'jovens turcos' foi deposto e seu Ministro do Interior, Tallat Prax, que subscrevia as ordens de deportao, condenado morte, sentena no executada em seu pas e da qual se livrou, refugiando em Berlim para viver uma vida tranqila. No muito mais tarde, em 15 de maro de 1921, o jovem estudante armnio, Sogoman Teilerian - ele mesmo vtima das conseqncias do genocdio, com a perda de toda sua famlia - liquidou em plena rua o ex-Ministro turco. A sentena do Tribunal alemo foi absolutria e se transfor

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  • mou num libelo de toda a nao armnia contra o crime praticado por homens como aquele. A editora Paz e Terra publicou na ntegra o julgamento de Teilerian, com o ttulo "Um Genocdio em Julgamento: O processo Talaat Pax na Repblica de Weimar", onde se encontram depoimentos impressionantes das testemunhas que compareceram ao Tribunal. O livro uma traduo do processo e do julgamento em que o autor da morte do ex-Ministro passou de ru a vtima, com a condenao explcita de Talaat Prax e de todos os que protagonizaram o morticnio por ele orquestrado.

    Nenhum outro tribunal julgou o genocdio armnio, mas a conscincia universal condenou, desde o primeiro momento, os atos criminosos a que foi submetida a sua populao. Neste livro ecoa a voz daquela conscincia - mais um testemunho da civilizao diante da barbrie.

    Com o fim da guerra, a Armnia conquistou sua independncia, num territrio restrito na parte oriental da sia Menor, no Cucaso, em regio dominada parte pela Rssia, parte pela Turquia, e que com o advento da Unio Sovitica passou a ser uma de suas repblicas. Em 1991, com a dissoluo da URSS, a Armnia proclamou sua independncia e hoje um pas soberano, exercitando a democracia no contexto das naes.

    Os armnios no vivem de dios. No desejam levar aos tribunais os descendentes dos autores daqueles crimes, no pleiteiam reparaes aos danos morais e materiais sofridos, mas no renunciam ao direito de exigir o reconhecimento pelo governo turco das violncias de que foram vtimas seus antepassados. Depois, podero at perdoar, mas certamente jamais esquecero os seus mortos.

    Varujan Burmaian - Abril de 2003 -

    88 ano do genocdio armnio.

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  • Discurso proferido por lorde Bryce na Cmara dos Lordes*

    Os M o r t ic n io s d a A r m n ia

    No tendo o governo britnico podido obter informaes oficiais, como natural, seno de um ou dois pontos, como seja do cnsul em Tiflis, citado por lorde Cromer, com relao ao que se est passando na Armnia e Turquia Asitica, resolvi publicar informaes adicionais que alcancei de vrias procedncias, em que deposito confiana, se bem que por motivos bvios no as posso citar aqui, expondo deste modo a perigos os meus informadores. Procedem estas narrativas de vrios pontos, mas esto conformes em essncia confirman- do-se reciprocamente. Passou a hora em que a publicidade poderia ser nociva e quanto maior for a publicidade que se der aos acontecimentos que tem tido lugar, tanto melhor ser por ser a nica probabilidade possvel de suspender estes morticnios, se que j no esto ultimados.

    Lamento ter de dizer que as informaes que de vrias fontes me tm vindo s mos tendem a mostrar que muito grande o nmero dos que tm perecido de diversas maneiras, como adiante terei ocasio de me referir. Calcula-se este nmero em uns 800 mil e, embora faa votos para que esta cifra esteja muito alm da verdade, no me atrevo a classific-la de incrvel. A destruio de vidas tem sido sem exemplo em toda a regio, desde as fronteiras da Prsia at ao Mar de Mrmara, tendo por ora escapado apenas algumas poucas cidades na costa do Mar Egeu. D-se isto, porque as operaes foram planejadas com tanto cuidado e executadas sistematicamente com

    * A verso aqui impressa, abrange a prpria reviso de lorde Bryce e a ampliao do relatrio oficial do seu discurso proferido na Cmara dos Lordes em 6 de outubro de 1915.

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  • to desapiedada eficincia, como at aqui nunca se vira entre os turcos. Representam esses morticnios o resultado de uma poltica que, pelo que se pode averiguar, tem estado em via de realizao h bastante tempo, por parte do bando de aventureiros sem escrpulo que agora se acham de posse do governo turco. Hesitaram em p-la em prtica antes que tivesse chegado o momento considerado por eles favorvel, e que parece ter sido no ms de abril. Foi ento que se publicaram estas ordens que, de resto, em todos os casos, baixaram de Constan- tinopla e que os funcionrios se viram forados a cumprir sob pena de demisso.

    No havia em jogo exaltao muulmana contra os cristos armnios. Tudo foi feito pela vontade do governo e no por consideraes de fanatismo religioso, mas simplesmente porque desejavam, por razes puramente polticas, desfazer- se de um elemento no muulmano que contrariava a homogeneidade do imprio e constitua um elemento que no poderia sempre sujeitar-se opresso. Tudo o que tenho sabido confirma o que j se diz em outros lugares, isto , que no h motivo para crer que neste caso o fanatismo muulmano tenha desempenhado qualquer papel. Pelo que se pode averiguar, se bem que as ndoles mais baixas tm aplaudido e aproveitado as oportunidades que as matanas e deportaes oferecem para a pilhagem, os morticnios tm sido encarados pela melhor classe de religiosos muulmanos mais com horror do que com simpatia. Seria talvez demais dizer que bastantes vezes tenham tentado intervir, mas em todo o caso no mostraram parecer aprovar o procedimento do governo turco.

    Nada se encontra nos preceitos do Islo que justifique a matana que se tem perpetrado. Sei de boa fonte que as autoridades religiosas superioras muulmanas condenaram os morticnios ordenados por Abdul Hamid e que so ainda mais atrozes. Em alguns casos, os governadores, como homens piedosos e humanos, recusaram-se a executar as ordens que haviam recebido e procuraram dar a proteo que lhes era possvel aos desgraados armnios. Sei de dois exemplos de governadores terem sido sumariamente demitidos por recu

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  • sarem-se a obedecer. Foram substitudos por outros mais flexveis e os morticnios postos em execuo.

    Como j disse, a maneira de proceder era extremamente sistemtica. Todos os habitantes armnios de cada cidade ou aldeia eram expulsos de suas casas depois de buscas domiciliares e, uma vez na rua, alguns dos homens eram lanados na priso, onde eram executados, algumas vezes, depois de torturados; o resto dos homens com as mulheres e crianas eram mandados para fora da povoao. Depois de chegar a certa distncia, separavam-se e os homens eram levados para qualquer lugar nas montanhas onde os soldados ou as tribos curdas, que tinham sido chamados para prestarem seu concurso nesta chacina, os exterminavam a tiro ou baioneta. As mulheres, crianas e velhos eram mandados escoltados com soldados da mais baixa espcie, muitos deles acabados de sair das prises, para seu longnquo destino, que era, s vezes, um dos distritos insalubres no centro da sia Menor, mas, com mais freqncia, o grande deserto na provncia de Der-el-Zor, que se acha ao leste de Aleppo na direo do Eufrates. Dias e dias tinham que marchar impelidos pelos soldados, a p, espancados ou abandonados morte se no tinham j foras para acompanhar a caravana; muitos eram os que ficavam pelo caminho ou que morreram de fome. O governo turco no lhes fornecia proviso alguma e, pelo contrrio, os expoliavam de tudo quanto possuam. No poucas das mulheres eram obrigadas a caminhar despidas debaixo de um sol ardente. Algumas mes enlouqueceram e abandonaram seus filhos, por j no terem foras para carreg-los.

    O rastro da caravana ficava assinalado por uma longa linha de corpos e poucos relativamente parecem ter sido os que chegaram ao destino que lhes fora designado, sem dvida escolhido por se tomar impossvel o regresso e por serem fracas as probabilidades de poderem sobreviver aos seus sofrimentos. Tenho recebido narrativas pormenorizadas dessas deportaes, que apresentam testemunhos bem evidentes de serem verdicas. Um amigo meu, que h pouco regressou de Constantinopla e que pertence a um pas neutro, disse-me que

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  • ouvira descries de fatos confirmando o que eu j sabia, e que o que mais o impressionara fora a relativa calma com que essas atrocidades eram contadas, com todos os seus requintes, por aqueles que primeiro delas haviam tido conhecimento; coisas que a ns custa a crer causam fraca surpresa aos turcos. Os massacres estavam na ordem do dia na Rumia em 1876 e em 1895-96 na Turquia Asitica.

    Quando a populao armnia foi expulsa de casa, muitas das mulheres no foram assassinadas, sendo porm reservadas para sorte mais humilhante. A maior parte delas ficou em poder de oficiais turcos ou funcionrios civis e encerradas nos seus harns. Outras foram vendidas em praa pblica, mas s a comprador muulmano, pois eram obrigadas converter-se ao islamismo fora, sem nunca mais tomarem a ver os pais ou os maridos. Em suma, mulheres crists eram condenadas em um momento escravido, ignomnia e apostasia. Os rapazes e raparigas eram vendidos em grande quantidade como escravos, a preos que em alguns casos no excedia de dez a 12 xelins, enquanto outros rapazes de tenra idade eram entregues a dervixes, que os levavam para uma espcie de mosteiro e ali obrigados a tornarem-se muulmanos.

    Para citar um exemplo da forma completa e implacvel com que se perpetraram essas matanas, basta referir-me ao caso de Trebizonda, testemunhado pelo cnsul da Itlia, que se achava presente quando teve lugar a carnificina, pois o seu pas ainda no havia declarado guerra contra a Turquia. Receberam-se ordens de Constantinopla para que todos os armnios cristos em Trebizonda fossem executados. Muitos dos muulmanos procuraram salvar os seus vizinhos cristos e ofereceram-lhes asilo em suas casas, mas as autoridades turcas foram implacveis. Obedecendo s ordens que haviam recebido, procuraram todos os cristos e, depois de reunidos, fizeram- nos caminhar pelas ruas da cidade, passando pela fortaleza at a praia. Ali foram metidos a bordo de navios a vela, transportados para certa distncia no Mar Negro e lanados para a gua. Por este meio foi destruda toda a populao armnia, entre 8 mil e 10 mil habitantes, em uma s tarde. Depois disto,

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  • no h motivo para duvidar de qualquer outra histria e, com bastante pesar o digo, todas as histrias que me tm sido enviadas encerram idnticos horrores intensificados em alguns casos, com pormenores de horrveis torturas. Os casos, porm, que inspiram mais compaixo no so os daqueles cujo padecer terminava por uma morte rpida, mas sim o das desgraadas mulheres que com seus filhos eram expulsas e foradas a perecer pelo deserto, onde no tinham provises e ficavam sendo vtimas das tribos de rabes brbaros que ali viviam.Ao que parece, foram exterminadas trs quartas ou quatro quintas partes da nao, e no consta de caso algum na Histria, certamente que no desde o tempo de Tamerlo, em que se tenha cometido um crime to horrendo e em to grande escala.

    Devo tambm acrescentar, por ter alguma importncia em vista das desculpas, que o governo alemo e seu embaixador em Washington se dizem terem dado pelo procedimento dos que so seus aliados, de que no h fundamento algum para a sugesto de ter havido qualquer insurreio por parte dos armnios. certo que um nmero de voluntrios armnios tem combatido ao lado dos russos no exrcito do Cucaso, mas esses vieram, segundo me informaram, da populao armnia da Transcaucsia. possvel que alguns punhados de armnios tenham atravessado a fronteira a fim de combater pela Rssia ao lado de seus irmos armnios na Transcaucsia mas, em todo o caso, o corpo de voluntrios que prestou servios to brilhantes ao exrcito russo, na primeira fase da guerra, era composto de armnios russos habitando o Cucaso. Onde quer que os armnios, quase todos desarmados, tm combatido, ainda assim tm-no feito em defesa prpria para defender as famlias e a si, da crueldade dos malfeitores que constituem o que se chama o governo da nao. No h desculpa alguma baseada sobre fins polticos para o procedimento do governo turco, o qual parece simplesmente estar pondo em prtica a mxima uma vez enunciada pelo sulto Abdul Hamid: "Para se pr termo questo armnia deve pr-se termo aos arm- ^

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  • nios". E a poltica de extermnio tem sido executada com mais crueza e sanguinolenta perfeio pelos atuais chefes da administrao turca, que se intitulam o "Comit da Unio e Progresso", do que o foi nos tempos de Abdul Hamid.

    Creio que ainda existem alguns (poucos) stios, onde os armnios expulsos para as montanhas esto-se defendendo como podem. Cerca de 5 mil foram recentemente recolhidos por um cruzador na costa da Sria e conduzidos para o Egito e que nas alturas de Sassoon e no norte da Sria, sendo tambm possvel nas montanhas da Cilcia, existam ainda alguns bandos com uma proviso muito limitada de armas e munies, mas defendem-se valentemente contra seus inimigos o melhor que lhes possvel.

    Portanto, ainda no se acha extinta toda a raa, pelo que se diz respeito a esses refugiados nas montanhas e os que tm escapado para a Transcaucsia, e estou certo que todos estamos sinceramente concordes em que se deveria fazer todos os esforos possveis para mandar auxlio aos infelizes sobreviventes, centos dos quais esto perecendo dia a dia, vtimas de necessidade e doena. s o que a Inglaterra pode agora fazer, faamo-lo pois sem demora.

    No tenho conseguido obter alguma informao autntica quanto ao papel desempenhado pelos funcionrios alemes em dirigir ou promover essas matanas e, por isso, no seria de razo emitir qualquer opinio a este respeito. Mas o que est perfeitamente claro que a nica probabilidade de se salvar os infelizes restos desta antiga nao crist encontra-se na expresso da opinio pblica do mundo, especialmente dos pases neutros, o que pode talvez exercer alguma influncia na prpria Alemanha e induzi-la a dar o nico passo com o qual se possam suspender as matanas. At aqui tem-se conservado espectadora com dura equanimidade. Digam, pois, agora ao governo turco que eles esto preparando para si uma retribuio bem adquirida e que h algumas coisas que a opinio pblica do mundo no tolera.

    Bryce

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  • T e s t e m u n h o s

    A seguinte narrao baseada sobre testemunhos incontestveis. So as narrativas dos missionrios tanto alemes como suos, americanos e outros cidados de pases neutros. H os relatrios do cnsules locais, incluindo tambm os representantes do imprio alemo e, ainda, as numerosas cartas particulares e cartas publicadas na imprensa dos aliados e na imprensa dos neutros, que registraram os depoimentos de testemunha ocular, do que viram. H, tambm, as sries de depoimentos pessoais, debaixo de juramento, que j foram publicados por um comit de cidados distintos dos Estados Unidos. Quanto mais atentamente se examinarem esses documentos independentes de evidncia, mais precisamente se ver que uns confirmam aos outros, nos menores detalhes. Os fatos que neles se contm so aqui apresentados com absoluta segurana de sua veracidade. claro, impossvel citar as fontes de informao que ainda no foram mencionadas na imprensa, pois exporia a perigo iminente as que ainda residem em terreno turco.

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  • I - A A r m n ia a n te s d o s m o r t ic n io s

    A guerra alem comeou por espalhar o terror e a desolao em lugares desacostumados: a pacfica Blgica e o corao industrial da Frana. Mais tarde, conseguiu abrir ainda mais as feridas j latentes em outros pases. A Polnia aprendeu a invejar a sua sorte anterior a agosto de 1914, os povos dos Blcs viram-se esbulhados da sua ltima esperana de fra- ternizao e, agora, na orla oriental da arena alem, os sofrimentos intermitentes da raa armnia chegaram ao ponto culminante de se ver prestes a ficar exterminada por meio de uma tentativa organizada com o maior sangue frio, empregando- se mtodos inconcebveis de barbaridade e perversidade.

    A raa armnia , talvez, a que h mais tempo se acha estabelecida na sia Ocidental e, sem dvida, a mais vigorosa hoje em dia. O seu habitat encontra-se no labirinto de elevadas montanhas entre os mares Cspio, Mediterrneo e Negro. aqui que o campons armnio desde tempos imemorveis tem passado a sua vida em rdua labutao at a vspera da sua derradeira catstrofe. aqui onde se formou um reino poderoso e civilizado, e foi o primeiro Estado do mundo a adotar o cristianismo como religio nacional. Foi aqui que a Igreja e o povo mantiveram as suas tradies com extraordinria vitalidade contra as ondas consecutivas de conquistadores estrangeiros de todos os pontos.

    Contudo, durante muitos sculos, a Armnia no tem sido compreensiva com a raa armnia, pois, nas provncias orientais do imprio turco d-se o mesmo fenmeno de amal- gamao racial e desintegrao, como tem tido lugar nos Blcs pelo exerccio do regime turco. Sob a administrao injusta do

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  • conquistador muulmano, as montanhas da velha Armnia tm sido invadidas por nmades muulmanos incultos, os curdos, que preferem os ermos para apascentar suas cabras e ovelhas e vem com maus olhos as aldeias bem cuidadas e campos lavrados dos primitivos habitantes da terra. Por esta forma, o armnio tem perdido a posse indivisa de seu prprio pas mas, para se compensar, tem levado os seus lares para alm das fronteiras. O armnio no s um campons ativo, como tambm dotado de talento para ocupaes mais intelectuais. Na aldeia mais sujeita a perseguies nas montanhas, no deixa nem por isso de se encontrar a sua escola, e tm sido estas escolas as que abriram caminho para uma espera mais ampla. O que o judeu tem sido na Europa Oriental, e o grego no Levante, tem sido o armnio no interior da Turquia Asitica. H oito meses, todas as cidades do norte da Sria e da Anatlia continham o seu populoso e prspero bairro armnio, foco da inteligncia, percia e comrcio local, bem como das relaes comerciais da cidade com Constantinopla e a Europa. Na prpria Constantinopla, a populao armnia j subia 200 mil, havendo outros tantos em Tiflis, capital do Cucaso russo. De fato, a Transcaucsia, com o seu governo cristo ordeiro e o seu auspicioso desenvolvimento econmico, havia se tomado uma segunda ptria da raa armnia. O catolics, ou chefe da igreja armnia, reside em territrio russo, em Etchmiadzin, havendo talvez cerca de 750 mil armnios no lado direito da fronteira russa. Deve haver, porm, uns seis meses, que esses representavam uma minoria da raa, pois cerca de 1,2 milho permaneciam ainda sob o domnio turco. Mais da metade desta maioria encontrava-se na Armnia original, a leste do Eufrates e norte do Tigre. O restante achava-se disperso por todas as cidades entre o Eufrates e Constantinopla. O seu maior nmero encontrava-se mais especialmente no distrito de Adam, na Cilicia, rica plancie marginando o recanto nordeste do Mediterrneo, ao passo que ao abrigo que as montanhas ofereciam sobre a plancie erguiam-se as cidades de Zeitun e Hadjin, centros florescentes de atividade armnia.

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  • A sorte deste milho e duzentas mil pessoas, cerca de 8% de toda a populao de imprio turco, nunca fora de invejar. Eram tratados como raa avassalada e privados do direito de usar armas, condio que, em um pas desregrado, os deixava facilmente expostos merc dos seus vizinhos muulmanos. Por outro lado, havia certas vantagens a contrapor a esses inconvenientes. No meio de uma populao turca bastante estpida e conservadora, o seu gnio comercial facilitava-lhes, por assim dizer, o monoplio do comrcio e um quinho de tamanho correspondente ao da riqueza do pas. Havia casos em que os lucros adquiridos com grande custo eram no raras vezes extorquidos pela tirania local, mas os talentos do armnio tomavam-se realmente indispensveis aos seus senhores, o que era fcil de se avaliar pela tolerncia que esses lhe concediam. De fato, o sdito cristo armnio inteligente e o muulmano dominante e turco agrrio mantinham-se em equilbrio efetivo, embora rudemente estabelecido.

    Esse antigo acordo do problema armnio fora pela primeira vez atacado pelo sulto Abdul Hamid. A sua experincia dos Blcs ensinara-lhe que o melhor meio de fazer prevalecer o seu domnio sobre as raas do imprio era incit-las a chacinar-se umas s outras. Aplicando este princpio s provncias orientais, mandou distribuir emblemas oficiais e espingardas modernas s tribos de curdos e, depois de transform-las em "Cavalaria Hamidieh", iniciou-os no seu gostoso dever. Os resultados foram os inauditos morticnios armnios por ordens oficiais, que encheram de horror o mundo civilizado e evocaram de Gladstone o seu grande e ltimo discurso em pblico, j no declinar de sua avanada idade. Quando Abdul-Hamid foi destronado em 1908 e o Comit da Unio e Progresso proclamou governo constitucional e direitos civis iguais para todos cidados otomanos, pareceu raiar a esperana de melhores tempos; mas no tinha passado um ano depois da constituio, e j ocorrera massacres igualmente atrozes, se bem que em uma rea mais circunscrita, em Aana.

    Esse paroxismo passou, mas deixando aps si um mal- estar crnico. Mr. Noel Buxton, que poucos meses antes de

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  • rebentar a guerra havia viajado pela Armnia turca, anunciava que os jovens turcos tinham seguido despreocupadamente a mesma poltica Hamidiana de armar os curdos e que era possvel que se desse um novo desastre a qualquer momento. Nisto comeou a guerra, a Turquia ps-se do lado de Alemanha e deu-se princpio aos crimes que passam a ser narrados nas pginas seguintes.

    A evidncia sobre a qual se baseia a seguinte relao derivada de vrios pontos. Uma parte mandada particularmente a lorde Biyce, o qual tem muitas relaes pessoais com o povo armnio. Concorda completamente com outros materiais incorporados no relatrio (publicado in extenso nos Estados Unidos, em 4 de outubro de 1915) da comisso americana de inqurito, grupo de 25 membros, incluindo dois ex-embaixadores da Sublime Porta e quatro diretores dos trabalhos das misses americanas no imprio otomano, bem como pessoas de eminncia individual, como o cardeal Gibbons, os bispo Greer e dr. Charles W. Elliot (ex-presidente da Universidade de Harvard), Mr. Charles R. Crane, Mr. Stephen S. Wise e Mr. John R. Mott.* A evidncia , na verdade, copiosa, direta e, ao mesmo tempo, pavorosa, pela uniformidade com que desenvolve a sua narrativa que, alis, dificilmente se acredita. Uma parte dos depoimentos foram colhidos de viva-voz de testemunhas neutras, viajantes europeus ou americanos e homens de negcios que tm regressado do interior da Turquia depois de comeada esta horrvel obra, ou de residentes estacionrios, suficientemente protegidos pela sua posio para poderem comunicar o que viram na localidade. O relatrio da comisso americana constitudo, na sua essncia, por testemunhos inequvocos, mas mes

    * Comisso Americana de Inqurito sobre as Atrocidades Armnias, Nova York: James L. Barton, presidente, secretrio do Comit de Misses Americanas, Samuel T. Dutton, (secretrio), Charles R. Crane, (tesoureiro), Cleveland H. Dodge, Frank M. North, Charles W. Elliot, Harry V. Osbom, cardeal J. Gibbons, reverendo 0'Rhinelander, reverendo David Greer, Karl D. Robinson, Norman Hapgood, William W. Rockwell, William I. Haven, Isaac N. Seligman, Maurice H. Harris, William Sloane, Arthur C. James, Edward L. Smith, Frederick Lynch, Oscar S. Straus, H. Pereira Mendes, Stanley White, John R. Mott, Stephen S. Wise.

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  • mo nestes casos a evidncia tem de ser apresentada, como medida de proteo, sob a capa do anonimato e ao tratar de testemunhos de fontes armnias, mais evidente se toma a necessidade da mais estrita reticncia. O crime foi cometido sem pretexto algum, mas aos autores e organizadores no desagradaria qualquer pretexto para prolong-lo nos casos de indivduos que tinham exposto os seus horrores. Todavia o testemunho dos armnios sobre seus prprios sofrimentos to claro como o depoimento de seus amigos mais bem protegidos. Acha- se encabeado pela declarao do prprio catolics transmitido da Rssia a Armenian National Defence Union nos Estados Unidos, e publicada na imprensa norte-americana de 27 de setembro; suas palavras foram corroboradas por uma carta confidencial que um outro eclesistico armnio, de superior hierarquia, residente em territrio neutro, recebeu de um proeminente compatriota, na zona vitimada. Seguem-se depois os refugiados, restos de uma nao, que acharam salvao por detrs das linhas russas do Cucaso ou se encaminharam para o Egito pelo benvolo Mediterrneo. Por exemplo, h 4,2 mil armnios homens, mulheres e crianas de Selejkah, porto de Antioquia, a quem a esquadra de cruzadores franceses fez desembarcar a salvamento em Port Said, em fins de setembro. Havia sete semanas que se achavam pelos montes defendendo as vidas com espingardas antiquadas e reduzidas munies, com as costas para o mar. As probabilidades de xito eram muito remotas, tendo que se haver com os soldados regulares turcos, reforados por todos os malfeitores dos bairros suspeitos de Aleppo. Sabiam, porm, que era a nica oportunidade que lhes restava, pois tinha vindo ordem para sua deportao dentro de uma semana e visto qual a sorte de todos os seus compatriotas e parentes deportados da Anatlia. No antecipemos, porm, a seqncia da relao. Os depoimentos que temos em mo acham-se regularmente indicados e melhor ser passar a expor o crime desde o comeo.

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  • II - O PLANO DOS MORTICNIOS

    A entrada da Turquia na guerra, durante o ltimo outono, no veio desde logo agravar a sorte dos armnios. A poltica dos jovens turcos havia tomado o encargo do servio militar extensivo aos cristos, bem como aos muulmanos; isto porm fora concedido por via de privilgio, reconhecimento da igualdade de todos os cidados otomanos perante a lei. Alm disso, muitos armnios haviam pago pela sua iseno do servio militar. Tem-se dito, e no demais fris-lo, que a raa era industriosa, prspera e dedicada a misteres pacficos. Inclua uma grande proporo de homens de superior educao e mulheres, que tinham estudado nas escolas e universidades da Europa ou nos excelentes colgios das misses americanas, e que havia suprido Turquia a classe de pensadores, inventores, professores, comerciantes e artistas que fornecem o crebro, mas no os nervos da guerra.* A guerra era dirigida contra potncias crists e empreendida por aqueles que h cinco anos tinham assassinado seus irmos em Adana. Para os armnios no era uma guerra de patriotismo; por isso, muitos deles deixaram-se ficar tranqilamente em suas casas e, quando os que haviam sido destacados foram desarmados por ordem do governo e organizados em batalhes de trabalhadores para as estradas, improvvel que eles se ressentissem da mudana de servios. Assim se passou o inverno com pequenos pressentimentos da prxima primavera.

    Entretanto, o governo em Constantinopla, se que a palavra governo no demasiado boa tratando-se de Enver, Talaat

    * Na Rssia, muitos armnios tem-se distinguido pelas armas, por exemplo, o prncipe Bagratian, adversrio de Napoleo em 1812, e os generais Melikoff e Lazareff, na guerra russo-turca de 1877-78.

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  • e resto do tal "Comit da Unio e Progresso", que lorde Bryce descreveu com justia como "um bando de malfeitores sem escrpulos", esta organizao, sem princpios mas de grande poderio, preparava seus planos e comeou a p-los em prtica, em abril.

    O projeto era nada menos do que o extermnio de toda a populao crist dentro das fronteiras otomanas. A guerra havia temporariamente libertado o governo otomano ao controle europeu. Por um lado, os beligerantes eram aliados da Turquia e muito bons amigos, e Enver, com miras no futuro, contava com a sua prometida vitria para se abrigar, bem como aos amigos, da vingana das potncias ocidentais e da Rssia, que sempre se havia interposto entre a hostilidade maligna do governo otomano e o desamparo em que viviam os sditos cristos. A denncia das "Capitulaes" deitou abaixo as barreiras de proteo estrangeira que serviram de defesa dos cristos otomanos. Nada mais faltava seno aproveitar a oportunidade e dar um golpe que no fosse preciso repetir. "Feito isto", disse Talaat Bey, quando deu o derradeiro sinal, "no haver mais questo armnia por cinqenta anos".

    O crime foi resolvido muito sistematicamente, pois h evidncia de diligncias idnticas de mais de cinqenta pontos. So elas por demais numerosas para serem aqui detalhadas, mas todas se acham indicadas no mapa anexo e ver-se- que incluem as cidades da Armnia propriamente dita e Anatlia oriental, bem como Ismid e Poroussa ao ocidente, sem contar uma poro de lugares na Trcia* Nada se adianta em repisar a montona narrao de horrores, pois as uniformes instrues de Constantinopla foram cumpridas com notvel preciso pelas autoridades locais.** Consta apenas de dois ca

    * Com exceo de seis pequenas aldeias nos montes cilicianos.** "No havia meio de me resolver a acreditar que tivesse sido por ordem do gover

    no central que os armnios haviam sido expulsos de suas casas. Foi s em Constantinopla que soube do fato que a presso exercida pelas embaixadas no produzira efeito algum/' Extrato de uma carta (escrita por um protestante armnio a um cidado americano) que foi publicada em 4 de setembro de 1915, pelo jornal armnio Gotchnag de Nova York.

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  • sos de funcionrios que se recusaram a cumprir com as instrues do governo. Um foi o governador local de Everek no distrito de Kaisarieh, que imediatamente foi substitudo por outro sucessor, mais malevel. Por outro lado, o caimaco de outro lugar respondeu ao protesto de um missionrio alemo. "Ainda mesmo que a lei e o sulto o proibissem, eu, a despeito de tudo isso, o faria e procederia como entendesse." Relatrio do Comit Americano.* Em geral, o que se passava era o que vem a seguir.

    Em determinado dia, as ruas da cidade de que se tratasse eram ocupadas pela gendarmaria local, de baioneta calada, e o governador intimava todos os homens aptos que eram isentos do servio militar a se apresentarem, sob pena de morte. A expresso "aptos" tinha uma interpretao muito liberal, visto que inclua todos os vares de 15 a 70 anos de idade, e estes eram conduzidos para fora da cidade pelos gendarmes. No tinham muito que caminhar, pois os gendarmes foram reforados para o efeito pelas cadeias, e os bandidos e os curdos achavam-se em liberdade, aguardando nos montes. Estavam esperando para assassinar os presos. No primeiro vale retirado que se proporcionasse realizava-se a matana e, completada a sua tarefa, os gendarmes retiravam-se sossegadamente para a cidade.

    Era esse o primeiro ato. Afastava a lamentvel possibilidade de resistncia ao segundo, que era de natureza mais engenhosa e de maior alcance. As mulheres, os velhos e as crianas, que completavam o restante da populao armnia, recebiam ento ordem imediata de deportao dentro de um certo prazo, uma semana talvez, ou dez dias, em geral uma semana e, em caso algum, nunca mais de 15 dias. Famlias inteiras tinham que ser arrancadas de seus lares e expulsas para destino desconhecido, enquanto as suas casas e bens eram transferidos para muulmanos por um sistema que mais adiante se descrever.

    * Daqui em diante mencionado como a c r .

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  • Custa a imaginar o que significa a publicao de semelhante decreto. No eram estes, selvagens, como os peles vermelhas que se retiraram perante os brancos no continente americano. No eram pastores nmades, como seus brbaros vizinhos, os curdos. Era gente que tinha o mesmo modo de vida que ns, burgueses de cidades, nelas estabelecidos h geraes e os principais criadores da sua prosperidade local. Era gente de hbitos sedentrios, mdicos e jurisconsultos, professores, homens de negcio, artistas e lojistas, que tinham erguido slidos monumentos sua inteligncia e indstria, igrejas de elevado custo e escolas bem organizadas. As suas mulheres eram to delicadas, to finas, to desacostumadas a privaes e brutalidade, como as mulheres da Europa ou dos Estados Unidos. Em suma, achavam-se em vivo contato com a civilizao do Ocidente, pois muitos dos centros em que o crime foi perpetrado serviram s misses e aos colgios americanos durante cinqenta anos, e pelo menos achavam-se familiarizados com os esplndidos homens e mulheres que os dirigiam.

    Comunidades como essa, depois de mutiladas pela cons- crio em massa ou assassinato dos pais e maridos, eram desarraigadas do solo e, sob a triste direo das mes e dos ancios, conduzidas para o exlio que iria terminar em morte com indizveis horrores.

    Havia apenas uma leve possibilidade de salvao, a apostasia, mas era prudente no mostrar-se muito solcito em pedi-la. Tinha sido facultada em 1895, e os homens de uma cidade no Eufrates procuraram aproveit-la para evadir a sua sorte, esperando poder regressar ao cristianismo em dias mais propcios. Mas a sua oferta desesperada fora recusada; e em uma outra cidade da Anatlia s foi aceite mediante a desumana condio de entregarem os filhos menores de 12 anos, a fim de serem educados em asilos desconhecidos para "rfos", na f muulmana.

    Claro est que esses asilos eram instituies puramente imaginrias. Eram conventos de dervixes, bastante reais e terr

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  • veis. Os dervixes so comunidades de devotos fanticos muulmanos que passam uma vida errante no interior da Anatlia; constituem reminiscncias brbaras de uma religio primitiva. Era- lhes permitido escolherem os rapazes armnios. Uma das testemunhas de lorde Bryce descreve como seus bandos iam ao encontro das caravanas dos armnios deportados e levavam as crianas, que iam gritando de terror, para educ-las como muulmanos na sua selvtica irmandade.

    Em certo lugar, "organizou-se vim plano para salvar as crianas, colocando-as em "escolas ou asilos de rfos, sob o cuidado de uma comisso organizada e auxiliada pelo arcebispo grego, da qual o Vali era presidente e o arcebispo, vice- presidente, com trs membros maometanos e trs membros cristos" (a c r ). Mas o plano foi rescindido por ordens superiores e "muitos dos rapazes foram mandados para outro distrito e distribudos por entre os lavradores. As raparigas de mais idade e mais bem aparentadas foram guardadas em casas para o prazer dos componentes do bando, que dirigem as coisas por aqui. Consta-me de boa fonte que um membro do Comit da Unio e Progresso tem dez das mais formosas raparigas em uma casa na parte central da cidade, para seu uso e de seus amigos" ( a c r ).

    O jornal armnio Horizon, de Tiflis, anuncia no seu nmero de 4 de setembro (22 de agosto, no calendrio antigo) que: "um telegrama de Bucareste comunica que os turcos mandaram da Anatlia quatro vages cheios de rfos armnios do interior do pas, para distribuio por entre as famlias muulmanas".

    Tal era a sorte reservada para as crianas armnias, que eram de idade bastante tenra para assimilao, mas este mesmo sacrifcio era apenas para "comutar" os pais que nisso consentiam, da morte imediata e no do prolongado tormento da deportao.

    S me consta de um lugar onde s vtimas foi dado a opo de resgatarem completamente a si e suas famlias aceitando o islamismo para todos. Diz a testemunha que os escritrios dos

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  • advogados que registravam as peties estavam apinhados de pessoas requerendo para se tomarem muulmanas. Muitos faziam-no por amor das esposas e filhos (...) ( a c r ) . Mas a sua salvao era ilusria; estes convertidos eram levados para fora da cidade da mesma forma que o resto e nunca mais se ficava sabendo deles.

    No era permitido maior parte da gente sequer alimentar esperanas de salvao, e a semana de graa era preenchida com cenas desoladoras. Na cidade ultimamente mencionada "o povo fez preparativos para cumprir as ordens do governo vendendo pelas ruas os seus bens domsticos. Havia artigos que eram vendidos por menos do que 10% do seu costumado valor, e os turcos das aldeias circunvizinhas enchiam as ruas caa de pechinchas" (a c r ). Neste caso, o governo chegou a castigar os muulmanos que se apoderaram de objectos fora; mas em geral as autoridades no eram to meticulosas. mister que repetimos que os armnios eram gente com bens, legitimamente adquiridos pela fora de sua inteligncia e seu trabalho, e os indigentes muulmanos dos bairros pobres viam sempre com maus olhos a prosperidade que Al concedera ao sdito infiel. Chegava agora a vez ao muulmano de entrar de posse do que julgava seu. Em um porto, na costa ciliciana, "ven- deram-se mquinas de costura por 1 Vi medjidiehs (cerca de seis xelins), camas de ferro por poucas piastras" e, em um porto do Mar Negro, florescente at aqui, deparava-se com uma cena de absoluta felonia.

    "As mil casas armnias da cidade esto sendo despojadas de toda a moblia pela polcia, e uma multido de mulheres e crianas turcas segue a polcia como um bando de abutres e apodera-se de quanto podem lanar mo. Depois que os objetos de mais valor so levados das casas pela polcia, invadem-na e acarretam com o resto. Todos os dias vejo cenas idnticas. Suponho que sero precisas algumas semanas para despejar todas as casas e depois ser a vez de serem despejadas as lojas e armazns armnios" (a c r).

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  • Trata-se da extirpao sistemtica de uma nao inteira planejada com este fim, pois que o cnsul da Alemanha disse testemunha que "ele no cria que os armnios tomassem a ter licena de regressar cidade em questo, ainda mesmo depois de terminada a guerra" (a c r ).

    De pouco servia, porm, aos armnios venderem os seus bens, pois as quantias que apuravam, insignificantes como eram, ainda assim excediam as que lhes era permitido levar consigo. O dinheiro para a jornada era rigorosamente limitado a uns magros xelins; para dizer a verdade, se tentassem levar maior quantia ser-lhes-ia subtrada pelos guardas. Contudo, se no podiam realizar seus bens, menor era ainda a esperana de os poderem transportar consigo. Em muitos casos, o prazo que lhes fora concedido era curto demais para poderem liquid-los ou empacot-los, e mais particularmente parece ter-se-dado isto na Cilcia.

    "Na aldeia das montanhas de Gben", por exemplo, "as mulheres estavam lavando nas celhas e foram obrigadas a deixar as roupas molhadas na gua e pr-se a caminho descalas e meio nuas, tal qual como se achavam. Em alguns casos, foi-lhes possvel levar parte dos seus poucos utenslios domsticos ou alfaias agrcolas, mas na maioria no lhes era dado transportar ou vender coisa alguma, ainda quando tivessem tempo para o fazer".(ACR).

    "Em Hadjin, a gente de meios que tinha preparado comestveis e roupas para a jornada, foi obrigada a deixar tudo na rua, tendo depois passado por grandes privaes".(ac r ).

    Os exilados tinham-se por felizes quando podiam encontrar meios de transporte para as suas pessoas, e s vezes, o governo anunciava que forneceria um carro de bois para cada famlia. Isso, porm, na maioria dos casos, era apenas uma outra ocasio de ludibriar os desgraados. Em um lugar onde a gente fora intimada a partir na quarta-fei- ra, os carros apareceram na tera-feira, s 3h30 da madru

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  • gada, sendo eles obrigados a partir em seguida. "Alguns foram arrancados das camas meio vestidos." Em outros casos, nada havia sido preparado. Por exemplo, na citada cidade sobre a costa do Mar Negro, o governador geral disse testemunha que "os armnios poderiam fazer os seus arranjos quanto aos transportes. Mas ningum", disse a testemunha, "parecia estar fazendo arranjo algum. Sei, porm, de um abastado negociante que pagou 15 libras (turcas) por um carro para transport-lo com sua esposa... Dentro de uns dez minutos de marcha, porm, foi-lhes ordenado pelos gendarmes que sassem da carruagem, a qual foi reconduzida para a cidade". E era sempre a mesma histria, porque os donos dos veculos eram sempre muulmanos do local, que no tinham inteno de acompanhar a malfadada caravana at ao seu longnquo destino. Depois de um ou dois dias de marcha, extorquidos os ltimos ceitis da vtima em gratificaes, os carreiros retiravam-se com os bois. No poucas vezes, a segunda poro da caravana, ao pr-se a caminho, via os carros destinados para a primeira poro regressarem vazios para a cidade e ficavam certos de que teriam de fazer a p a maior parte de sua imensa jornada pelas montanhas.*

    Pela impresso cansada nas testemunhas, a cena da partida deve ter sido em todos os casos bastante aflitiva. Da dita cidade na costa os exilados eram despachados em turmas sucessivas de uns 2 mil cada uma.

    "Os choros e lamentos das mulheres e crianas eram extremamente dolorosos. Algumas das pessoas pertenciam

    * Para exemplo, basta ler-se o seguinte incidente narrado em uma carta publicada pelo peridico de Nova York, Gotchnag, em 4 de setembro, a que j aludimos: "Quando o governo anunciou que a populao armnia teria de mudar-se para uma cidade do interior na Anatlia oriental, uma missionria americana, Miss Graffan, obteve permisso para acompanhar os deportados. Comprou uma carruagem, oito carros e seis jumentos, para uso dos discpulos e professores da escola missionria durante sua jornada. O governo pusera um carro de bois disposio de cada famlia, mas ningum sabe exatamente at que distncia as desgraadas famlias de deportados puderam fazer uso deles ou em que momento tiveram de andar a p".

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  • a sociedade abastada e fina, e alguns acostumados a luxo e comodidades. Encontravam-se sacerdotes, negociantes, banqueiros, advogados, mecnicos, alfaiates e pessoas de todas as profisses (...) Toda a populao muulmana sabia que esta gente era presa sua desde o comeo e era tratada como animais." (ac r ).

    Aqui damos outra descrio de um lugar diferente.

    "Toda a manh os carros iam gemendo para fora da cidade carregados de mulheres e crianas, misturadas com um homem aqui e ali que havia escapado das precedentes deportaes. As mulheres e crianas iam todas vestidas turca para no ficarem expostas aos olhares dos carroceiros e gendarmes, gente brutal trazida de outras regies. O pnico na cidade era terrvel. O povo compreendia que o governo estava determinado a exterminar a raa armnia e que esta no tinha os meios de lhe resistir. O povo sabia tambm que estavam sendo assassinados os homens e raptadas as mulheres. Muitos dos forados das prises tinham sido postos em liberdade e as montanhas em volta achavam-se cheias de bandos de facnoras. A maioria dos armnios do distrito achava-se sem meio algum de se defender. Muitos diziam que era pior do que um massacre. Ningum sabia o que estava para vir, mas todos tinham um pressentimento de que se aproximava o final. Os prprios ministros e chefes no tinham palavras de esperana para anim-los. Muitos comeavam a duvidar da existncia do prprio Deus.* Vtimas desta exaltao de esprito, muitos perderam o uso da razo, alguns deles para sempre." (ac r ).

    * Repetio de um caso que se deu durante os massacres de 1909 quando uma mulher que vira seu filho queimado em vida, na igreja da aldeia, e respondera aos que procuravam consol-la: "No vem o que aconteceu? Deus enlouqueceu".

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  • III - A CAMINHO DA MORTE

    Com o esprito torturado por apreenses, eram as mulheres armnias foradas a meter-se a caminho. Havia uma certa heroicidade no seu xodo, pois restava ainda uma pequena probabilidade de salvao, a mesma alternativa de apostasia que tentara seus maridos e pais. E, no lugar delas, pelo menos a apostasia trazia-lhe a certeza de vida, pois a condio imposta era a sua entrada imediata no harm de um turco. Vida esta custa da honra, a maior parte parece t-la rejeitado e, contudo, se tivessem sabido tudo quanto o futuro lhes reservava, talvez o tivessem considerado como o melhor expediente. Mas, nessas circunstncias, agarravam-se probabilidade desesperada de imunidade e apresentavam-se para a marcha, vtimas muito insuspeitas das tticas de seus condutores, pois que os gendarmes sados das cadeias no tinham inteno de conduzir a caravana intacta ao seu destino.

    Algumas eram vendidas para fins vergonhosos antes de comear a marcha. "Um muulmano contou que um gendarme lhe oferecera vender duas raparigas por um medjidih (quatro xelins)." Venderam as mais novas e mais formosas em todas as aldeias onde passavam a noite; e essas raparigas foram mercadejadas aos centos por todos os bordis do imprio otomano. Chegam numerosas notcias da prpria Constantinopla contando que elas foram vendidas na praa pblica da capital por alguns xelins; e uma das testemunhas de lorde Bryce uma rapariga de no mais de dez anos que foi levada para este fim, de uma cidade do nordeste da Anatlia para as praias do Bsforo. Eram essas mulheres, crists, to civilizadas e finas como as mulheres da Europa Ocidental e escravi

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  • zadas para sua degradao moral. Contudo, foram mais felizes que suas companheiras, cuja liberdade por este meio era negado na sua terrvel jornada. Eram mulheres de idade, mes de famlia, mes grvidas que, tocadas como animais, iam a caminho dos tormentos que as estavam esperando no termo da viagem.

    "Mulheres com criancinhas ao peito ou nos ltimos dias de gravidez eram obrigadas a caminhar fora de chicotada, como gado. Sei de trs casos diferentes em que a mulher deu luz durante a marcha e veio a falecer de hemorragia, por causa de seu brutal condutor t-la obrigado a apressar o passo. Algumas das mulheres ficavam to cansadas e incapazes de qualquer ao que deixavam cair as crianas beira da estrada" (a c r ).

    Este fato foi atestado por diversas testemunhas. A evidncia de lorde Bryce descreve como uma mulher atirou com o filho moribundo para dentro de um poo para lhe poupar o tormento de assistir s suas ltimas agonias.* Outra mulher, sufocada em um vago para gado, apinhado de gente, no caminho de ferro da Anatlia, atirou-se com a criana para a linha.

    "Seis angustiadas mes, de passagem por Konieh, nesse caminho de ferro, confiaram os seus filhinhos s famlias armnias da ddade a fim de lhes salvar as vidas; as autoridades locais, porm, os entregaram a muulmanos."

    Este ltimo incidente figura em carta confidencial a um eclesistico armnio de alta hierarquia, a que acima nos referimos e, junto com os depoimentos do relatrio do Comit Americano, evidencia ainda mais o horror.

    * O mesmo incidente acha-se tambm descrito por uma testemunha ocular que viera a Constantinopla, do interior (condizendo a sua descrio geral das deportaes com as narrativas pessoais que aqui damos), e que foi condensado em um artigo publicado pelo professor Hagopian em 1 de setembro de 1915, pelo jornal Armnia de Marselha.

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  • "Contou-me um armnio que havia abandonado dois filhos no caminho, por no poderem andar, e que no sabia se haviam perecido de frio e fome, se alguma alma carita- tiva tomara conta deles ou se tinham sido presa de animais silvestres. Parece que muitas crianas foram abandonadas deste modo. Consta que uma foi deitada em um poo."

    Isto confirmado pelo testemunho do mesmo incidente por outras fontes, e temos evidncia, de igual peso, de muitos outros incidentes igualmente horrveis.

    "Vi uma rapariga de dez anos e meio de idade, s com uma camisa esfarrapada. Tinha vindo a p (...) Estava terrivelmente magra e tremendo de frio, como quase todas as numerosas crianas que vi nesse dia." (a c r )

    H uma testemunha que viu uma dessas caravanas em marcha.

    "Caminhavam a passo, a maior parte caindo de fraqueza por falta de alimento. Vimos um pai com uma criana de um dia ao colo e seguido pela me, caminhando conforme podiam, forados pelo basto do guarda turco. No era fato extraordinrio ver uma mulher cair desfalecida e ser obrigada a levantar-se fora de bordoada." (a c r )

    "Uma jovem cujo marido tinha sido encarcerado foi levada com uma criana de 15 dias e um jumento para transportar a bagagem. Depois de dia e meio de marcha, um soldado roubou-lhe o jumento e ela teve que seguir a p com a criana ao colo." (a cr )

    Mas o roubo dos seus bens no era o pior. Essas pobres mulheres exaustas e famintas eram roubadas da sua honra sem rebuo algum, pois toda aquela que no tivesse metido alguns xelins nas algibeiras dos gendarmes, mediante a sua venda aos muulmanos mais ricos, era abandonada aos lascivos e brutais gendarmes.

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  • "Em certo lugar, o comandante da gendarmaria disse abertamente s praas a quem entregou um grande rancho de gente, que tinham plena liberdade de fazer o que quisessem com as mulheres e raparigas." (acr).

    "Os armnios deportados de certa cidade, disse outra testemunha que os vira passar, com o resultado de 12 dias de viagem j no se podiam reconhecer (...) Mesmo neste estado deplorvel todos os dias se davam atentados e atos de violncia." (acr).

    A idade era o nico motivo de iseno de ultraje, e havia mulheres de idade muito avanada nestas caravanas; pois nem a idade ou doena as isentava da morte lenta por deportao.

    "Um caso digno de meno foi o da irm de F. Seu marido trabalhara no nosso hospital como enfermeiro militar por muitos meses. Ela contraiu o tifo e foi conduzida ao nosso hospital (...) Poucos dias antes da deportao, o marido foi preso e exilado sem exame ou culpa. Quando os vizinhos do bairro em que moravam foram deportados, a me foi tirada do leito do hospital e colocaram-na em um carro de bois com os filhos." (acr).

    Para falar a verdade, quanto aos doentes e velhos, esperavam que eles fossem morrendo pelo caminho, sem haver necessidade de mat-los.

    "As mulheres acreditavam que teriam pior sorte que a morte, e muitas levavam veneno na algibeira para fazer uso dele chegada a ocasio. Outros levavam picaretas e ps para enterrar os que haveriam de perecer pelo caminho." (a c r )*

    Outras vezes, os seus males terminavam prontamente, quando seus carrascos sentiam-se prematuramente sequiosos

    * O mesmo incidente figura independentemente na evidncia de lorde Bryce. Os nomes de todos os interessados figuram com exatido em ambas as narrativas.

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  • de sangue. Em uma pequena aldeia, desenrolou-se toda a tragdia em uma cena.

    "Quarenta e cinco homens e mulheres foram levados a um vale curta distncia da aldeia. Primeiro, as mulheres foram vtimas dos instintos libidinosos da oficialidade da gendarmaria e, depois, entregues aos gendarmes para dis- porem delas. Segundo uma testemunha, mataram uma criana batendo-lhe com a cabea contra uma pedra. Os homens foram todos assassinados e no ficou viva uma nica pessoa deste grupo de 45" (a c r ).

    "O xodo forado da ltima parte da populao armnia de certo distrito ocorreu em 1 de junho de 1915. Todas as aldeias, bem como trs quartos da cidade, j tinham sido evacuadas. Uma escolta de 15 gendarmes seguia a terceira turma, incluindo de 4 mil a 5 mil pessoas. O prefeito da cidade desejara-lhes uma feliz viagem. Mas a poucas horas de distncia da cidade, a caravana viu-se cercada por bandos de uma tribo de salteadores e uma malta de camponeses turcos armados de espingardas, machados e cacetes. Comearam por roubar os deportados, passando uma busca rigorosa mesmo entre as tenras crianas. Os gendarmes venderam aos camponeses turcos o que no podiam levar consigo. Depois de tirarem tudo desta pobre gente, inclusive a prpria comida, comeou o morticnio dos vares, incluindo dois padres, um dos quais tinha noventa anos de idade. Dali a seis ou sete dias foram assassinados todos os vares acima de 15 anos. Foi o comeo do fim: gente montada erguia os vus das mulheres e levava as que fossem bonitas." (ac r ).

    Eis aqui a mesma histria contada por uma senhora ( a c r ) que chegou a experimentar os horrores desta marcha assassina. Ela conta como o crime comeou enforcando o bispo e sete outros notveis; e, seguindo a matana geral, em um bosque, de cerca de oitenta homens, depois de serem presos e aoutados no crcere. "O resto da populao foi enviada em trs contingentes; eu fazia parte do terceiro contingente. Meu

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  • marido morreu h oito anos, deixando-me com minha me e minha filha de oito anos extensas propriedades, de modo que estvamos vivendo abastadamente. Desde que comeou a mobilizao, tem um comandante otomano vivendo em nossa casa sem pagar renda. Disse-me ele que no partisse, mas entendi que era de meu dever partilhar da sorte do meu povo. Levei trs cavalos comigo carregados de provises. Minha filha tinha algumas moedas de cinco liras ao pescoo e eu levava umas vinte liras e quatro anis de diamantes comigo. Tudo o mais que possuamos tinha ficado para trs. O nosso grupo partiu em 1 de junho (calendrio antigo), indo conosco 15 gendarmes."

    Depois, descreve ela minuciosamente o ataque de surpresa, a matana de dois padres e de todos os vares acima de 15 anos de idade. Os cavalos, valores e comida, tudo foi roubado. "Muitas das mulheres e raparigas foram levadas para as montanhas, entre elas a minha irm, cujo filho de um ano, eles o abandonaram em um stio qualquer. Um turco o apanhou, levando-o no se sabe para onde. Minha me foi andando at no poder mais e caiu beira do caminho na montanha. Encontramos pela estrada adiante muitos que fizeram parte dos grupos anteriores e vimos os cadveres das mulheres ao lado dos maridos e filhos. Encontramos tambm alguns velhos e crianas ainda vivos, mas em estado lastimoso j sem poder gritar."

    Mais uma vez aqui a testemunha anterior corrobora exatamente a narrativa. "Pelo caminho", diz essa testemunha, "encontrvamos constantemente homens e mancebos assassinados, cobertos de sangue. Viam-se tambm mulheres e raparigas mortas junto dos maridos ou filhos. Nos altos das montanhas e nas profundezas dos vales encontravam-se bastantes velhos e crianas estendidos pelo cho."

    Achavam-se no rastro das precedentes caravanas, e as testemunhas que seguiram o roteiro de outra caravana, a pouca distncia do ponto de partida, apresentam a mesma pintura da morte. "Muitas pessoas eram obrigadas a seguir o cami

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  • nho sem recursos e com o que podiam levar de casa e carregar consigo. Essas pessoas, claro, ficavam to fracas dali a pouco que caam prostradas e eram baionetadas e lanadas para o rio, os corpos iam flutuando at o mar, ou ficavam encalhados na parte baixa do rio por entre os rochedos e ali se conservavam dez ou 12 dias at se putrefazerem." E mesmo assim, ainda podiam dar-se por felizes os que encontravam semelhante morte, pois escapavam dos tormentos constantes que os sobreviventes tinham de sofrer.

    "No nos deixavam dormir de noite nas aldeias", diz a senhora armnia, "e tnhamos que passar a noite nos arredores. Amparados pelas trevas das noites, os gendarmes, bandidos e aldees cometiam atos indescritveis. Muitos de ns morramos de fome ou de ataques apoplticos. Outros ficavam beira da estrada, impossibilitados de ir mais longe, pelo seu estado de fraqueza."

    A narrao paralela mais uma vez confirma em palavras quase idnticas, e acrescenta que essa gente se viu na dura necessidade de comer erva.

    Apesar de tudo isto, houve muitos que no chegaram a sucumbir, e os guardas tiveram que reduzir o nmero por meios ainda mais drsticos.

    "Os piores e mais incrveis horrores", continua a senhora, "achavam-se reservados para ns nas margens do Eufrates ocidental (Karasu) e a plancie de Erzindjan. Os corpos mutilados de mulheres, raparigas e criancinhas faziam estremecer de horror a todos. Os bandidos estavam cometendo toda espcie de terrveis atos sobre as mulheres e raparigas que se achavam conosco e cujos brados chegavam ao cu. No Eufrates, os bandidos e gendarmes lanaram no rio todas as restantes crianas com menos de 15 anos. As que sabiam nadar eram mortas a tiro enquanto se debatiam na gua."

    Anarradora estava, porm, condenada a sobreviver a esse espetculo. "Na seguinte etapa da jornada, os campos e as

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  • encostas dos montes achavam-se semeados de corpos inchados e enegrecidos, que enchiam e corrompiam a atmosfera com o seu cheiro." S depois de 32 dias de marcha que chegaram a um lugar de paragem temporria, onde esta narrativa atinge ao seu termo.

    No sabemos qual foi a sorte subseqente desta mulher, pois esta paragem estava a menos de meio caminho de seu destino final e impossvel conceber-se os padecimentos j sofridos durante aquele primeiro ms. J de si, a mera crueldade fsica de apavorar, imagine-se uma senhora delicada forada a uma jornada de 32 dias a p, por uma das regies montanhosas mais selvticas do mundo. Os tormentos espirituais s podem ser avaliados por quem os sofreu. E esta apenas uma narrativa entre dezenas, escolhida neste lugar por ter sido feita por duas testemunhas, com igual preciso e no porque de qualquer modo seja nica. Pelo contrrio, os mesmos horrores aconteciam em centenas de cidades e aldeias da Anatlia e sobre milhares de milhas de rudes trilhos nas montanhas, e repetidos desde o ms de maio at o presente momento. E no se trata de narrativas que inspirem dvidas. As colhidas e compiladas no relatrio do Comit Americano foram todas feitas sob juramento e notadas por ouvintes autorizados. To pouco so vagas denunciaes ou generalizaes altamente coloridas. H, claro est, muitas narrativas gerais dessas atrocidades, em adio aos testemunhos individuais, mas essas so notavelmente isentas de incertezas e exageros e, ao comparar-se com a evidncia de testemunhas oculares, apresentam plena concordncia mesmo nos detalhes mais minuciosos.

    Temos, por exemplo, o resumo do professor Hagopian (publicado no Armnia de Marselha, em 1 de setembro de 1915) das impresses gerais colhidas por uma testemunha que recentemente viera do interior da Anatlia para Constantinopla. Descreve sbria e exatamente as turmas de presos levados fora pelas montanhas, as pancadas dos gendarmes, as crianas nascidas em marcha, as mes e os velhos expirando de

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  • debilidade e at mesmo o incidente da mulher que atirou seu filho em um poo.

    A descrio, um tanto longa, dada na carta a um eclesistico armnio de alta hierarquia, em territrio neutro, to notvel na sua concordncia, que algumas passagens so dignas de ser citadas como exemplo.

    "Em quatro provncias", diz essa carta, "as autoridades locais deram facilidades aos j condenados deportao cinco ou dez dias de graa, permisso para executarem a venda parcial de seus bens e o privilgio de alugarem um carro entre vrias famlias; mas, ao fim de alguns dias, os carroceiros deixaram-nas na estrada e voltaram para a cidade. As caravanas formadas deste modo costumavam encontrar-se no. dia seguinte ou, s vezes, alguns dias depois de sua partida, com bandos de salteadores ou camponeses muulmanos que as despojavam de tudo quanto possuam. Os bandos fraternizavam-se com os gendarmes e assassinavam os poucos homens ou rapazes includos nas caravanas. As mulheres, raparigas e crianas eram levadas com eles, deixando apenas as mulheres velhas, a quem faziam caminhar fora de chicotadas dos gendarmes e pereciam de fome pelo caminho. Uma testemunha ocular diz-nos que as mulheres deportadas de certa provncia foram abandonadas, depois de alguns dias, na plancie de Kharpout, onde todas morreram de fome (57 por dia), e as autoridades apenas mandaram algumas pessoas sepultarem-nas, para no pr em perigo a sade da populao muulmana (...). As caravanas de mulheres e crianas ficam expostas em frente do edifcio das autoridades em todas as cidades ou aldeias por onde passam, a fim de que os muulmanos possam fazer a sua escolha. A caravana despachada de (...) (a prpria cidade donde foi deportada a senhora cuja narrativa citamos acima) foi reduzida desta maneira, e as mulheres e crianas que sobejaram foram atiradas para o Eufrates no local chamado Kemath-Boghazi, mesmo fora de Erzindjan

    Este perodo especialmente importante, porque relata acontecimentos de que j temos dois depoimentos de duas tes

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  • temunhas oculares inteiramente independentes. Quem comparar as frases em itlicos, com os extratos citados, da senhora armnia e de seus companheiros, ver que o relatrio geral, a histria como circula no interior da Anatlia e tem viajado at Constantinopla e Marselha, est muito longe de ser exagerado. menos horrvel, menos extremo nos seus detalhes do que o prprio testemunho original; e esta evidente sobriedade dos boatos gerais, em um caso que pode ser submetido prova, deve obviamente reforar a nossa crena nos casos em que os fatos alegados forem apoiados apenas por evidncia secundria.

    Essa evidncia secundria, porm, realmente suprflua. Os testemunhos de primeira mo so em suficiente abundncia e bastante convincentes por si para fornecerem uma plena exposio do crime. So declaraes concretas, inteiramente robustecidas por nomes de bem conhecidos indivduos que ou assistiram a essas atrocidades ou delas foram vtimas. Por motivos de prudncia natural, deixamos de divulgar os nomes, mas todo aquele que lanar uma vista d'olhos sobre o relatrio do Comit Americano ver, pelo nmero de nomes em branco, o quanto direta e pessoal esta evidncia.

    Alm disto, os testemunhos provem de muitos pontos independentes. Da cidade onde foi interrompida a jornada da senhora armnia, temos a narrativa de um residente estrangeiro, cidado de um Estado neutro. uma cidade no Eufrates oriental (Murad Su), ponto de encontro da estradas do norte com o sul, por onde passaram muitas caravanas de exilados.

    "Se", escreve o residente, "fosse simplesmente uma questo de ser obrigado a sair daqui para ir a qualquer outro ponto no seria to mau; todos sabem, porm, que uma questo de ir para a morte. Qualquer dvida que tenha havido a respeito acha-se j esclarecida pela chegada de vrias turmas, totalizando alguns milhares de pessoas, de Erzeroum e Erzindjan. Visitei o seu acampamento algumas vezes e falei com algumas das pessoas. Acham-se, quase sem exceo, esfarrapados, imundos, famintos e doentes.

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  • Nada disto de estranhar, se considerarmos que caminhavam pelas estradas sem mudar de roupa, sem meios de se lavar, sem abrigo e com pouco o que comer. O governo tem-lhes dado aqui umas magras raes. Estive os observando uma vez em que lhes estavam trazendo comida. Animais silvestres no poderiam ser piores. Atira- vam-se aos guardas que a traziam, e esses repeliam-nos paulada, batendo a valer, a ponto de chegar a matar. Quem os visse custar-lhe-ia crer que esta gente era composta de seres humanos. Quando se passa por este acampamento, as mes oferecem os filhos, implorando para que os levem. Efetivamente os turcos tm escolhido estas crianas e raparigas para escravos ou coisa pior. Tm mandado os seus mdicos para examinar as raparigas, para ficarem com as melhores.

    "H poucos homens entre eles, muito poucos, pois a maior parte foi morta pela estrada. Todos contam a mesma histria de terem sido atacados e roubados pelos curdos, por mais de uma vez e um grande nmero, sobretudo de homens, foi assassinado. Foram tambm mortas mulheres e crianas. Muitas morreram de doena e debilidade pelo caminho e, desde que tem estado aqui, tem havido falecimentos todos os dias. Tm chegado vrios grupos e, depois de ficarem um ou dois dias, continuam sua marcha, aparentemente sem destino. Os que tm chegado aqui so apenas uma pequena parte dos que marcharam. Continuando a for-los a marchar desta forma ser possvel dispor deles em espao de tempo relativamente curto.

    "Entre aqueles com quem tenho falado havia trs irms. Tinham sido educadas em (...) e falavam ingls excelentemente. Disseram que sua famlia era a mais rica em (...) e composta de 25 pessoas quando partiram, mas agora s restavam quatro sobreviventes. Os outros 11, incluindo o marido de uma delas e sua idosa av, foram assassinados sua vista pelos curdos. O sobrevivente mais velho do sexo masculino da famlia tinha oito anos de idade. Quan-

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  • do saram de (...) tinham dinheiro, cavalos e objetos de uso pessoal, mas tudo lhes fora roubado, incluindo a prpria roupa. Disseram que alguns tinham ficado absolutamente nus e outros com uma s vestimenta e, quando chegaram a uma aldeia, os seus gendarmes obtiveram- lhes roupas de algumas mulheres indgenas.

    "Outra rapariga com quem falei filha do pastor protestante de (...) Disse que todos os membros de sua famlia haviam sido mortos e ela ficara inteiramente s. Essa e outras so apenas uns poucos sobreviventes da melhor classe da gente exilada. Esto detidos em uma escola abandonada fora da cidade, onde ningum tem licena de entrar. Disseram que, por assim dizer, estavam presas, apesar de terem licena para ir a uma fonte que ficava fora do edifcio. Foi ali que tive a ocasio de v-los. Todos os demais esto acampados em um grande campo aberto, sem proteo alguma contra o sol.

    "O estado desta gente indica a sorte dos que partiram e acham-se prestes a partir daqui. Creio que nada se sabe deles, e provavelmente muito pouco se saber. O sistema que se tem seguido parece ser o de ter bandos de curdos espera deles na estrada, matar os homens especialmente, e alguns dos outros inddentalmente. O movimento todo parece ser o massacre mais completamente organizado e eficiente que se j viu neste pas."

    Tal o veridito de uma testemunha ocular que viu o plano do governo otomano em plena execuo. Estava assistindo, no sculo XX de Cristo, aos mesmos horrores que haviam sido perpetrados h seis ou oito sculos antes da Era Crist. Quando lemos que o governo assrio ou babilnio "levou cativos" tal povo vencido ou tribo, mal concebemos a significao desta frase. Mesmo quando vemos o processo gravado com cruel realismo nos baixos-relevos do conquistador, no desperta logo a nossa imaginao. Agora, porm, j o sabemos. Aconteceu nos nossos tempos, e o crime do assrio no era to diablico como o do turco. "Morticnio eficiente e organizado"

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  • o significado de tal deportao, e isso deve ter sido sempre a sua implicao. Mas, em todo o caso, o assrio dava aos sobreviventes a probabilidade de vida no fim da sua jornada. Recebiam casas e terrenos e, muitas vezes, davam lugar ao nascimento de uma nova comunidade no exlio. O turco foi mais consistente na sua crueldade. Esta gente tinha de ser deportada para a morte e nada disso a livraria. "Creio que nada se tem sabido dos que partiram daqui e, provavelmente, muito pouco se h de saber", diz a testemunha. Infelizmente estava enganado. Certamente que a maior parte daqueles que tinham sido forados para alm das montanhas do distante norte deve ter falecido, como ele presumia, na sua terrvel jornada. Havia outros, porm, da Cilcia e Sria do Norte, que tinham uma jornada mais curta a fazer e no conseguiram falecer pelo caminho. Estavam reservados para a ltima e mais pavorosa cena do drama.

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  • IV - F im d a j o r n a d a

    O desenlace final do jovem turco no foi completamente uma novidade. Haviam-no j ensaiado em miniatura h alguns anos, quando o Comit da Unio e Progresso suplantara o regime hamidiano em Constantinopla e se metera a acabar com os abusos da cidade. A pior mazela era o exrcito de ces sem dono, que geraes demasiado tolerantes tinham permitido que se estabelecessem pelas ruas, exercendo as funes de empregados da limpeza que as administraes municipais, por demais desleixadas, haviam deixado de prover na pessoa de seres humanos. O jovem turco arcou pronta e eficazmente com esses inconvenientes moradores da capital. Reuniu-os em barcos e mandou-os para uma ilha deserta no Mar de Mrmara, onde os animais resolveram o problema de seu futuro perecendo de fome. Quando Enver e seus amigos estavam calculando o problema dos armnios, na primavera, no esqueceram esse bem-sucedido precedente.

    Efetivamente, os armnios (ou os que sobreviveram ao processo da deportao) tinham de ser tratados da mesma forma que os ces de Istambul; assim, foram escolhidos dois lugares para sua derradeira disposio. Um deles era em Sultanieh, aldeia do distrito de Konia no centro da Anatlia. A escolha foi feita cientificamente, pois que a Anatlia um planalto rodeado por montanhas, bem arborizadas, bem regadas e na direco do mar, onde se acham situadas as cidades com seus habitantes armnios e um cruel deserto no seu interior, onde nem o prprio turcomano nmade poderia manter a sua existncia. Em Sultanieh, mil famlias de burgueses armnios, reunidas de todos os pontos fora de penosas marchas, ex

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  • perimentaram o que era o deserto; mil famlias e apenas cinqenta homens adultos entre elas* para prover as necessidades deste desamparado bando de mulheres, crianas e invlidos, reduzidos assim subitamente aos seus prprios recursos, em um meio to estranho para eles, como o seria para o povo da classe mdia de qualquer cidade em Inglaterra ou Frana. Tendo estabelecido esta "colnia agrcola no deserto", o governo deu-se por satisfeito e no se incomodou mais em saber dos seus colonos. Sabia com certeza que haveriam de morrer, mas talvez no previsse que o seu lamentvel abandono morte seria registrado por testemunhas fiis e comunicado ao mundo civilizado. A seguir, damos o testemunho de um residente em Konia. Data de 3 de setembro de 1915, e descreve todas fases do crime no deserto da Anatlia.

    "Em Eski Shehir, h uns 12 mil a 15 mil exilados no campo em tomo da estao, evidentemente padecendo de grande necessidade e misria. A maioria deles est sem abrigo; e o abrigo que h consiste em tendas de materiais dos mais frgeis, improvisadas com alguns poucos paus, cobertos com tapetes ou capachos em raros casos, mas muitas vezes s com pano de algodo, que no serve absolutamente de proteo alguma contra as chuvas torrenciais do outono, prestes a chegar (...)

    "Tambm no h disposio alguma para aliment-los. Parece que pouco ou nada tm de mantimentos, e calcu- la-se em trinta a quarenta o nmero de bitos que se esto dando por dia.

    "Em Alayund encontravam-se 5 mil exilados no mesmo estado. A maior parte eram de Broussa, e aqueles com quem consegui conversar contaram-me as mesmas histrias. H

    * isto provado por trs depoimentos independentes: uma testemunha no a c r ; uma carta escrita (segundo mostra a evidncia interna) por um protestante armnio a um cidado dos Estados Unidos, publicada no jornal armnio Gotchnag, em 4 de setembro de 1915; e uma carta de Constantinopla, de 15 de junho de 1915, que adiante citaremos mais extensamente.

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  • duas semanas o govemo fez duas distribuies de po, nenhuma das quais foi suficiente para mais de um dia. Eu prprio vi a polcia batendo no povo com chicotes e cacetes quando alguns deles, com a maior ordem possvel, tentavam falar com seus companheiros de exlio no comboio.

    "Em Tchad vi mais um par de milhares nas mesmas condies. Havia cado grandes chuvas, causando imensos sofrimentos, doenas e morte, especialmente entre as crianas (...)

    "Atualmente encontram-se uns 10 mil armnios refugiados (...) A maior parte da gente est acampada nos campos, perto da estao do caminho de ferro. Mal se podem dar dois passos pelo acampamento sem se ver gente doente, cada por todos os lados. No h medidas sanitrias de espcie alguma. Este estado de coisas o mais favorvel para o desenvolvimento de uma epidemia."

    Uma carta escrita cinco dias depois, em 8 de setembro, descreve com mais minuciosidade os sofrimentos na prpria Konia:

    "Os exilados esto acampados aqui em pleno descampado nas proximidades da estao do caminho de ferro. No dispem de agasalho algum. Procuram fazer tendas por meio de tapetes, esteiras ordinrias, casacos, sacos, lenos, pano de algodo, toalhas de mesa, lenos; de tudo tenho visto. Reina a disenteria.

    "O chicote e o cacete no descansam nas mos da polcia, que os aplica tanto s mulheres como s crianas. Imagine-se o que isto quer dizer tratando-se de pessoas, muitas das quais so ilustradas, educadas e finas, e serem tocadas de uma parte para a outra por uns selvagens, como se fossem ces. Tenho visto mulheres, todas pisadas e con- tusas pelas bordoadas recebidas. Na estao, algumas pessoas estavam procurando ajudar uma mulher que tinha uma coxa fraturada, para conseguir lev-la ao hospital; mas o comissrio da polcia aproximou-se e mandou-a no-

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  • vmente arrastar-se para o vago. Ontem um policial deu uma pancada na cabea de um rapaz no acampamento e matou-o. O pastor da igreja de Nicomedia levou chicotadas e abriram-lhe uma grande brecha na testa com uma pancada de cacete. Nos ltimos quatro dias os habitantes das aldeias acima de Baghchejik tm sido enviados para c aos cardumes e esto enchendo o acampamento. So arremessados para c com este ardente calor, sem abrigo e com to escassa proviso de gua que h uma luta constante na fonte para encherem as bilhas. Corta o corao ver como reinam as doenas entre eles. O nosso dispensrio est todo o dia cheio de doentes em vrios graus de adiantamento."

    Foi esta a ltima fase, perante Sultanieh, a nova "colnia agrcola" no meio do deserto.

    Mas, ainda assim, Sultanieh no era de modo algum o pior dos sepulcros a que estavam consignando o resto da raa armnia. O maior nmero foi mandado em uma jornada mais longa, ao sudeste e, depois, concentrado em Aleppo, a capital do norte da Sria, para serem dispersos por entre as distantes provncias rabes.

    Entre a Anatlia e a Arbia, a metade do noroeste do imprio otomano e o seu adjunto do sudeste, existe um contraste climatrico muito violento. As terras altas da Anatlia so fisio- logicamente idnticas s da Europa, e os que nelas habitam no s so europeus, como tambm esto habituados a um clima essencialmente europeu, o mesmo clima que se encontra na p