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Rua Sarmento Leite, 320/518 - Campus Centro UFRGS, Porto Alegre/RS, BRASIL CEP 90050-170 Telefone: + 55 (51) 3308-3263 Website: www.ufrgs.br/gpit E-mail: [email protected] A Paisagem na Fotografia, os rastros da memória nas imagens Letícia Castilhos Coelho Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2000. Mestranda na linha de pesquisa Cidade, Cultura e Política do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional - PROPUR na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua na área de Arquitetura e Urbanismo; Planejamento Urbano e Regional; Preservação e Restauração do Patrimônio Cultural; Meio Ambiente. Resumo Este trabalho propõe algumas reflexões sobre o estudo da paisagem através da fotografia como forma de compreender a paisagem contemporânea e as diversas camadas temporais que a compõe. Utilizando a imagem como fonte de registro dos olhares sobre a cultura, essas representações trazem consigo o valor intrínseco da subjetividade e permitem que se aprofunde o conhecimento sobre a cidade. A imagem, enquanto registro de diferentes tempos e testemunho das transformações urbanas, apresenta-se como um importante instrumento de pesquisa, assim, ao considerá-la como fonte para a investigação, somos conduzidos a um campo do conhecimento que trata das criações e produções humanas e valoriza os registros deixados pelo homem como uma experiência sensível do mundo, podendo se oferecer à leitura e permitindo a apreensão de seus significados. Nessa perspectiva, o trabalho parte da compreensão da paisagem enquanto um fenômeno visível, em suas dimensões culturais, e busca traçar um percurso que inicia com algumas construções conceituais e chega na proposição de uma possibilidade metodológica para a leitura e interpretação da paisagem.

Castilhos Leticia a Paisagem Na Fotografia

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  • Rua Sarmento Leite, 320/518 - Campus Centro UFRGS, Porto Alegre/RS, BRASIL CEP 90050-170 Telefone: + 55 (51) 3308-3263 Website: www.ufrgs.br/gpit E-mail: [email protected]

    A Paisagem na Fotografia, os rastros da memria nas imagens

    Letcia Castilhos Coelho Possui graduao em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2000. Mestranda na linha de pesquisa Cidade, Cultura e Poltica do Programa de Ps-Graduao em Planejamento Urbano e Regional - PROPUR na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua na rea de Arquitetura e Urbanismo; Planejamento Urbano e Regional; Preservao e Restaurao do Patrimnio Cultural; Meio Ambiente.

    Resumo

    Este trabalho prope algumas reflexes sobre o estudo da paisagem atravs da

    fotografia como forma de compreender a paisagem contempornea e as diversas camadas temporais que a compe. Utilizando a imagem como fonte de registro dos olhares sobre a

    cultura, essas representaes trazem consigo o valor intrnseco da subjetividade e permitem que se aprofunde o conhecimento sobre a cidade. A imagem, enquanto registro de diferentes tempos e testemunho das transformaes urbanas, apresenta-se como um importante instrumento de pesquisa, assim, ao consider-la como fonte para a investigao, somos conduzidos a um campo do conhecimento que trata das criaes e produes humanas e valoriza os registros deixados pelo homem como uma experincia sensvel do mundo, podendo se oferecer leitura e permitindo a apreenso de seus significados. Nessa perspectiva, o trabalho parte da compreenso da paisagem enquanto um fenmeno visvel,

    em suas dimenses culturais, e busca traar um percurso que inicia com algumas construes conceituais e chega na proposio de uma possibilidade metodolgica para a

    leitura e interpretao da paisagem.

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    1. Introduo

    A paisagem, em suas mltiplas possibilidades de enfoques, permite um olhar para a

    cidade que integra diversos aspectos sobre a relao homem-natureza, e, ao expressar os diferentes momentos da ao de uma cultura sobre o espao tambm uma acumulao de tempos. Ao ser pensada como um momento de reconciliao frente aos conflitos e rupturas com os quais convive o habitante da cidade, a paisagem, desde o incio de sua apreenso como fenmeno visvel, esteve no centro do conflito entre objetivo e subjetivo, sensvel e factual, fsico e fenomenolgico, portanto pens-la em toda a sua complexidade estar ciente destas dicotomias.

    A inteno de representar algo ausente ou no todo inapreensvel revela o carter

    subjetivo desse processo, assim, enquanto representao, a paisagem portadora de significados e expressa os diferentes momentos de desenvolvimento de uma sociedade,

    adquirindo uma dimenso simblica passvel de leituras espaos-temporais. Conduzidos por esse desafio de decifrar as representaes, tendo a paisagem como

    tema e objeto, preciso desenvolver um olhar especial que permita alcanar as diversas dimenses do espao e do tempo. Se admitirmos que a dimenso espacial que se oferece ao olhar tem marcada sobre si a passagem do tempo, possvel ver no espao transformado, destrudo, desgastado, renovado pelo tempo, a cidade do passado e sua memria. Como um palimpsesto, um enigma a ser interpretado, a paisagem se apresenta em imagens como possibilidade de compreenso do tempo presente. Assim, a reflexo que pretende este

    trabalho surge da necessidade de melhor compreender a cidade em relao s dinmicas de suas paisagens interpretando-as atravs dos vestgios espaos-temporais encontrados em

    fotografias.

    2. Por que estudar a paisagem?

    Nos ltimos anos, frente s rpidas transformaes urbanas que em muitas ocasies colocam em risco os valores naturais, culturais e histricos das paisagens surgem diversas iniciativas com o objetivo de uma adequada gesto da paisagem. Considerando a necessidade de que a gesto da paisagem passe a integrar as polticas pblicas urbanas, um

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    importante desafio, e contribuio que pretende este trabalho, o de propor uma possibilidade metodolgica para seu estudo, interpretao e avaliao.

    Normalmente, ao olhar para a paisagem contempornea de muitas cidades brasileiras, nos deparamos com uma imagem confusa em sua organizao espacial e em suas representaes simblicas. Com freqncia somos tomados por um sentimento de nostalgia e acreditamos que no passado o espao urbano era de melhor qualidade, sensaes essas que caracterizam a inquietao esttica e ecolgica do momento em que vivemos. Essa nostalgia ao nos depararmos com paisagens que foram degradas ou transformadas, levou muitos estudiosos a admitirem a morte da paisagem, esquecendo-se que a mesma, como resultado das interaes entre a sociedade e a natureza, um sistema de valores construdo

    historicamente e apreendido diferentemente, no tempo-espao, pela percepo humana (LUCHIARI, 2001).

    Ao se referir a Alain Roger em seu Breve tratado da paisagem, Luchiari (2001) apresenta as duas principais posies que levaram a essa considerao sobre a morte da paisagem. A primeira remete destruio e descaracterizao de paisagens tradicionais pela sociedade contempornea e se fundamenta na materialidade das paisagens e em certa nostalgia pelas paisagens do passado, colocando em questo os modelos de desenvolvimento e os processos que orientam o crescimento urbano. Nesse sentido, cabe ressaltar que a valorizao dos elementos simblicos e da memria coletiva essencial para o fortalecimento cultural e para a construo de uma sociedade em que os aspectos

    econmicos no sejam os nicos determinantes nas transformaes urbanas. A segunda posio aponta para a inexistncia de um modelo visual que nos permita apreciar as

    paisagens que temos nossa disposio no mundo contemporneo. Sem dvida, temos um novo modelo de paisagem, mas no sabemos como decifr-lo. Essa incapacidade de leitura invade nossa viso e no nos deixa ver que existem, sim, belas paisagensi.

    Contudo, se considerarmos que a paisagem contempornea decorrente de processos de transformao construdos socialmente, entenderemos que a paisagem no se esgota, e,

    que o desaparecimento de uma paisagem significa a substituio daquela paisagem por outra, no sua morte (embora essas substituies nem sempre representem mudanas positivas, acontecendo muitas vezes de forma autoritria e aleatria).

    Ao pensarmos a paisagem como resultado da ao da cultura sobre a natureza, veremos que a passagem do tempo tambm altera suas formas. Abrigando os espaos construdos em

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    mltiplas combinaes por superposio, substituio ou composio, a cidade, enquanto materialidade, composta por vrias camadas, mais ou menos aparentes. Se as formas se

    alteram pela ao do tempo sobre o espao, as funes e significados tambm se transformam, fazendo com que a cidade esteja constantemente se refazendo.

    Nessa construo, a paisagem contempornea concebida como uma paisagem hbrida, um palimpsesto, uma paisagem de mil folhas que exige a convivncia de vrias paisagens, ritmos, percepes, escalas e perspectivas (LUCHIARI, 2001). Ao contrrio do que nos fez acreditar o projeto de modernidade, a natureza no est mais fora para ser dominada, a sociedade e a natureza agora devem ser vistas de forma integrada e o olhar sobre a paisagem nos permite esta integrao e uma possibilidade de reconciliao entre

    sujeito e objeto. Reside nesse potencial um campo de revisitao das prticas que exercemos e da idia de paisagem que propagamos ao longo do tempo enquanto uma

    relao entre natureza e cultura.

    3. Apontamentos sobre o conceito de paisagem

    A paisagem enquanto representao resulta da apreenso do olhar, um enquadramento, uma seleo que existe a partir do indivduo que organiza, combina e promove arranjos de contedo e forma. Comporta uma pluralidade semntica, sempre associada idia de recorte espacial, bem como evoca o carter de coleo e conjunto. Entretanto, sua representao tambm comporta aspectos subjetivos, pois remete ao universo do simblico.

    Segundo Georg Simmel, em A Filosofia da Paisagemii, para que se adquira a conscincia para ver uma paisagem, precisamos que um certo contedo do campo de viso cative o nosso esprito e tenha, alm dos elementos, um novo conjunto, uma nova unidade. Um pedao de natureza, conforme o autor argumenta, trata-se de uma contradio, pois a natureza no tem pedaos, ela a unidade de um todo, e ao destacar-lhe um fragmento, este no ser mais inteiramente natureza. Assim, olhar como uma

    paisagem considerar uma parcela de natureza como uma unidade. Para Simmel o que permite um determinado pedao de natureza constituir-se em uma paisagem um

    sentimento da ordem da subjetividade e da afetividade, ao qual o autor denomina Stimmung, um estado de esprito, tom, tonalidade, sentimento pessoal.

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    Simone Maldonadoiii, ao apresentar o texto de Simmel, mostra que o autor fala de Stimmung como um horizonte, o conceito unificador que confere sentido aos construtos do

    olhar que ao delimitar a base material da paisagem, isola um trecho, que no necessariamente se constituiria como paisagem. a subjetividade do olhar que permite que se fale de paisagem quando o que se poderia ter ao dissociar elementos da natureza seja na fruio da vista seja na inscrio pictrica da obra de arte, nada mais seria do que um pedao de natureza. Pois, o que ns dominamos com um olhar no a paisagem, mas ao mximo a sua matria, porm torna-se uma a partir do instante em que um certo conceito unificador a envolve.

    Em relao emergncia da paisagem, importante destacar que a iniciativa de colocar

    a natureza em perspectiva e de constru-la como paisagem se inscreve na modernidade. Esse um olhar do homem da cidade, que por no estar mais em contato direto com a

    natureza, o que gera um distanciamento, faz este recorte esttico. A cidade tambm passa a ser foco de ateno dos artistas que procuram encontrar o belo onde ele no era normalmente encontrado, a valorizar o pitoresco e o cotidiano, que passam a ser incorporados como paisagem de uma vida. A cidade passa a ser representada como paisagem, assim, o homem se apropria da natureza e da cidade como paisagem com um olhar que no mais nos abandonar.

    Na sociedade ocidental, a concepo de paisagem emerge no mesmo perodo em que a cincia enfatiza a dicotomia entre sociedade e natureza. Porm, contraditoriamente, ao

    separar-se da natureza, a sociedade moderna inventou e valorizou a concepo de paisagem. Seu significado esttico, pleno de subjetividade, transformou o gosto pela paisagem em antdoto para o homem moderno (LUCHIARI, 2001).

    Esse dualismo, no qual, segundo Simmel, o detalhe aspira a se tornar um todo, enquanto que o seu pertencimento a um conjunto mais amplo lhe concede apenas o papel de membro, resulta em inmeros conflitos e rupturas de ordem social e tcnica, espiritual e moral. Porm, esse mesmo modelo, diante da natureza, produz a riqueza conciliante da

    paisagem, entidade individual, homognea, apaziguada em si, que no obstante permanece tributria, sem contradio, do todo da natureza e da sua unidade.

    Ao pensar nesse duplo processo do olhar que seleciona e do sentimento que unifica (Stimmung) surge a questo a respeito de qual deles se desencadeia primeiro, Simmel afirma nesse sentido:

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    Sempre que, diante da paisagem por exemplo, a unidade da existncia natural se

    esfora por nos integrar ao seu tecido, a brecha entre um eu que v e um eu que

    sente, se mostra duplamente visvel. com toda a nossa pessoa que nos plantamos diante da paisagem, seja ela natural ou artstica, e o ato que a cria para ns simultaneamente um ver e um sentir, cindido em instncias isoladas pela

    reflexo.

    Na perspectiva da paisagem como mediao das dicotomias entre subjetivo e objetivo, sensvel e factual, fsico e fenomenolgico, o gegrafo Augustin Berque afirma que a

    paisagem no reside somente no objeto, nem somente no sujeito, mas na interao complexa entre os dois termos. Esta relao que coloca em jogo diversas escalas de tempo e espao, implica tanto a instituio mental da realidade quanto a constituio material das

    coisas (BERQUE, 1998). Nessa mudana filosfica e epistemolgica de uma rejeio ao dualismo cartesiano,

    Berque (1998) apresenta a idia de trajection: A idia expressa por trans (tra) a de um limite, de passar para o outro lado. O limite, no caso, aquele que o dualismo moderno instituiu entre o mundo interior

    subjetivo e o mundo exterior objetivo. Ora, essa dicotomia radicalmente incapaz de explicar a realidade do ecmeno, logo, da paisagem. Com efeito, como

    mostrou a fenomenologia (principalmente Watsuji) e a antropologia pr-histrica (principalmente Leroi-Gourhan), os ambientes humanos so, por assim dizer, uma extenso de nosso prprio corpo, tanto pelo smbolo quanto pela tcnica. A

    tcnica estende materialmente as funes do corpo humano (...). O smbolo, inversamente, anula materialmente as distncias. A trajection conjuga, assim, transferncia material e metfora imaterial (BERQUE, 1998).

    Entendemos, pois, que a paisagem no contexto da cidade contempornea oportuniza um trabalho de cruzamento de dados objetivos obras, traos, sinais que nos chegam, sob a forma de imagens com as subjetividades e suas possibilidades de leitura para muito alm do espao, encaminhando-se para as representaes simblicas da paisagem.

    4. A paisagem como fenmeno visvel e sua dimenso cultural

    As paisagens de artistas, gegrafos, arquitetos, turistas, ecologistas, planejadores e pessoas comuns no recobrem a mesma realidade, a materialidade pode ser a mesma, mas so diferentes representaes. Ao longo da histria, a paisagem assumiu vrios

    significados, sendo usada com as mais variadas conotaes. Assim, ao tratar das

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    representaes simblicas buscando interpretar a (re)significao da paisagem na sociedade contempornea, expressa sua ligao direta dimenso cultural.

    Para se entender o papel que as paisagens desempenham dentro dos sistemas

    culturais, necessrio centrar nossa ateno na significao da paisagem, assim como investigar o papel da intertextualidade no debate dos discursos e nos

    conflitos sobre o significado das paisagens (DUNCAN, 2001). Se as intervenes humanas na natureza envolvem sua transformao em cultura, todas

    as paisagens possuem significados simblicos enquanto produto da apropriao e transformao da natureza pelo homem. Dessa forma, a paisagem existe na sua relao com um sujeito coletivo: a sociedade que a produziu, que a reproduz e a transforma em funo de uma certa lgica. Procurar definir essa lgica para compreender seu sentido o ponto de vista cultural (BERQUE, 1998).

    Em relao s representaes em imagem, a pintura busca reproduzir objetivamente um fragmento de natureza, mas o ponto de observao, o ngulo e o enquadramento da vista

    resultam de uma escolha, existe, portanto, uma dimenso subjetiva na base de uma representao. A representao de paisagem aparece como uma expresso popular, acompanhada por uma arte florescente de incluir a paisagem na pintura, na poesia, no teatro e na concepo de parques e jardins (COSGROVE, 1998).

    A idia de paisagem sempre esteve intimamente relacionada sua representao. Simmel (1996) argumenta que essa viso da forma artstica naturalmente desencadeada ao vermos uma paisagem:

    O que o artista faz subtrair ao fluxo catico e infinito do mundo, como

    imediatamente dado, um pedao delimitado, o alcanar e o formar como unidade

    aquilo que at ento encontra em si seu prprio sentido e cortar os fios que a ligam ao universo precisamente o que ns tambm fazemos, em dimenses

    menores, sem tantos princpios e de modo fragmentrio, pouco seguro das suas

    fronteiras, quando temos a viso de uma paisagem no lugar de um prado e de uma casa, de um riacho e de um cortejo de nuvens. (...) Sempre que vejamos uma paisagem e no mais um agregado de objetos naturais, teremos uma obra de arte in statu nascendi (...) uma tal viso da forma artstica se torna viva em ns, atua, e que, sem poder aceder a essa criatividade prpria, vibra pelo menos no desejo desta, da sua antecipao anterior.

    Enquanto gnero artstico as origens da representao de paisagem remontam ao

    Quattrocento quando surge na Europa o seu enquadramento pictrico (DONADIEU, 2007).

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    O surgimento da paisagem como forma de pintura uma das conseqncias da revoluo que o uso da perspectiva introduz. Para Paul Claval (2004) a inveno decisiva, na histria da paisagem ocidental, a da janela na pintura flamenga da primeira metade do sculo XV. A apario da janela no interior do quadro permite que a perspectiva isole o exterior, dando autonomia paisagem, Jan Van Eyck na pintura Madona com o Chanceler Rolin (1433), Figura 1, representa trs planos sucessivos de uma caracterstica paisagem flamenga.

    Ao conceber um enquadramento, um quadro no quadro, permite-se que a passagem por essa veduta (a vista pela janela) embora se deva a uma reduo, ou seja, a uma miniaturizao , afaste o observador da cena religiosa, que geralmente ocupava a frente da

    cena, assim, ao se laicizar a vista ela se transforma em paisagem autnoma (CLAVAL, 2004).

    importante ressaltar que a representao de paisagem foi alterada sucessivamente na histria. No Ocidente medieval, a paisagem no existia como representao. a partir do sculo XVI que a noo de paisagem emerge das novas tcnicas de pintura e se expande

    Figura 1 Jan Van Eyck, Madona com o Chanceler Rolin, 1433.

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    para a literatura, ainda sem possuir um sentido de unidade, era um sentimento da natureza, reproduzido.

    At o sculo XVIII, a paisagem era sinnimo de pintura, e foi na mediao com a arte que o stio adquiriu estatuto de paisagem. Um momento significativo na histria da representao de paisagens aquele quando as paisagens pintadas se apropriam da totalidade do quadro, tratando no somente dos objetos, mas da relao entre eles. Nasce a arte da paisagem moderna. Com Patinir e Drer, as paisagens ocupam toda a cena e no oferecem a ver somente os objetos, mas a relao entre eles. Na Figura 2, podemos ver exemplos de paisagens representativas desse momento.

    Estes quadros apresentam paisagens panormicas realistas e oferecem vises bastante diferentes do quadro-janela, sem um ponto de fuga central. Jan Van Goyen (1596-1656), Vermeer (1632-1675) e Meindert Hobbema (1638-1709) so representantes prestigiados na pintura de paisagens, graas a suas representaes realistas de cidades, rios e campanhas

    flamengas, conforme nos mostra as pinturas da Figura 3.

    Figura 3 esquerda pintura de Johannes Vermeer, 1659-60 e direita de Jan van Goyen, 1650.

    Figura 2 esquerda pintura de Patinir (s/d), e direita de Albrecht Drer, 1495.

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    O sculo XIX paisagista por excelncia, tanto na Europa quanto nos pases da colonizao, perodo esse que corresponde s grandes transformaes advindas da

    modernidade. Na Frana foi marcado por duas importantes escolas de pintura: a escola de Babizon (com Jean-Baptiste Corot) e a dos impressionistas (Monet, Daubigny, Pissaro e outros). A subjetividade ganha maior expresso com Van Gogh, Czanne e os fauvistas at superar o dualismo que distanciava o artista da paisagem Figura 4.

    Aps a inveno do daguerretipo em 1838, a fotografia que d continuidade produo de imagens de paisagem, contribuindo para popularizar as cenas de paisagens pitorescas graas aos cartes postais, e posteriormente a todo tipo de mdia desenvolvida no fim do sculo XX. A imagem de paisagem assim tornada popular.

    A transio da pintura para a fotografia na representao de paisagens envolve algumas mudanas conceituais, pois o surgimento da fotografia representou tambm uma mudana na maneira de olhar. A fotografia surge no momento em que o mundo vive grandes

    transformaes na forma de produo e consumo, gerando um desejo por novas imagens. A busca por captar o instantneo e registrar as mudanas que estavam ocorrendo faz com que a arte tambm se preocupe em registrar a transitoriedade da vida moderna. A fotografia gera uma revoluo na pintura devido aos processos de mudana do olhar, e a paisagem tambm est inserida nessa transformao da representao da realidade. Diversos pintores

    passam a utilizar a fotografia como recurso tcnico, produzindo vistas da natureza a partir de fotografias.

    Conforme Walter Benjaminiv, no momento em que Daguerre conseguiu fixar as imagens Figura 5, os tcnicos substituram os pintores; contudo, a pintura de paisagem no foi a maior vtima da fotografia, pois no chegou a ser substituda por esta, como no caso do retrato em miniatura.

    Figura 4 Czanne (esquerda) e Van Gogh (direita), exemplos de expresso subjetiva na pintura.

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    Em relao representao da paisagem na fotografia, difunde-se no final do sculo XIX a produo de panoramas e vistas da cidade vendidos em lbuns. Esse estilo de fotografia conhecido como vistas urbanas seria o precursor dos instantneos, tcnica que

    j permitiria maior agilidade na reproduo, atingindo seu pice com a febre dos cartes postais, onde os novos padres visuais urbanos de acordo com o iderio da burguesia eram

    veiculados. Na Figura 6 encontram-se exemplos de vistas urbanas fotografadas por Marc Ferrez na cidade do Rio de Janeiro.

    5. A imagem como fonte para o estudo da paisagem

    Ao adotar a imagem como fonte podemos realizar um percurso no tempo, atravs do uso de fotografias de diferentes perodos, em busca dos traos que revelem as dinmicas de (trans)formao da paisagem. As imagens histricas servem de subsdio para a compreenso do tempo presente, possibilitando desvelar as diferentes camadas espaos-temporais superpostas na paisagem.

    Figura 6 Vistas do Rio de Janeiro fotografadas por Marc Ferrez no final do sculo XIX.

    Figura 5 fotografias de Dagurre, final sculo XIX.

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    Nessa perspectiva, somos conduzidos a um campo do conhecimento que trata das criaes e produes humanas e valoriza os registros deixados pelo homem como uma

    experincia sensvel do mundo, podendo se oferecer leitura e permitindo a apreenso de seus significados (PESAVENTO, 2002).

    Segundo Sandra Pesaventov, a histria cultural, ao trabalhar com as representaes, opera um retorno sobre o social, pois centra a ateno sobre as estratgias simblicas valorizando no somente os processos econmicos que ocorrem na cidade, mas as representaes que se constroem na e sobre a cidade, levando ao estudo do imaginrio urbano.

    Assim, a proposta desse campo do conhecimento est centrada em decifrar a realidade

    do passado por meio de suas representaes, tentando acessar quelas formas discursivas e imagticas, pelas quais os homens expressaram a si prprios e o mundo. Um processo

    complexo que busca a leitura dos cdigos de outros tempos atravs de registros e indcios do passado que chegam at o tempo presente.

    Esses indcios substituem os fatos ocorridos, e ao encar-los como registros de significado para as questes que levanta, o pesquisador transforma essas representaes do passado em fontes ou documentos para sua pesquisa, que muitas vezes podem parecer estranhas aos cdigos e valores do momento presente.

    So as experincias sensveis do mundo expressas em atos, em ritos, em palavras e imagens, em objetos da vida material, em materialidades do espao construdo que revelam uma subjetividade ou uma sensibilidade partilhada, coletiva, e se oferece leitura enquanto fonte, remetendo ao mundo do imaginrio, da cultura e de seu conjunto de significaes construdo sobre determinada realidade.

    A partir da interpretao de traos e registros de uma determinada cultura, acionamos uma estrutura espao-temporal que permite a elaborao de tramas em um trabalho de

    construo capaz de produzir sentido, como em um puzzle. Aos poucos, as peas se articulam, oferecem diferentes combinaes e revelam explicaes que permitem uma

    leitura do espao em diferentes tempos. Se em cada poca os homens constroem representaes para conferir sentido ao real, o

    imaginrio torna-se, assim, uma possibilidade de acessar as sensibilidades de outros tempos atravs dos registros e dos rastros que chegam at o presente, sejam eles falados, imagticos ou materiais, so passveis de serem resgatados pelo pesquisador. Na construo do

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    imaginrio, o real sempre o referente e remete ao cotidiano da vida dos homens, mas comporta tambm utopias e elaboraes mentais sobre coisas que no existem, e ambos os

    aspectos constituem o que se entende por real. Para ler uma imagem, deve-se ter em mente alguns objetivos, principalmente sobre o

    que se quer ver/ ler. Podem ser identificados na leitura de uma imagem os aspectos referentes ao sentido e ao significado, que remetem ao plano do simblico; pode-se buscar tambm a origem, a explicao de determinada realidade, pois as imagens guardam em si vestgios da realidade, caracterizando-se dessa forma como uma narrativa que conduz o espectador pelos caminhos do imaginrio, pois, ao representar o real, cria-se uma nova realidade.

    Nesse sentido, Alberto Manguel (2003) lana algumas questes: Qualquer imagem pode ser lida? Qualquer imagem admite traduo em uma linguagem compreensvel, revelando ao espectador aquilo que podemos chamar

    de Narrativa? (MANGUEL, 2003). A partir dessas indagaes, esse mesmo autor traz para o debate o fato de que s

    podemos ver as coisas para as quais j possumos imagens identificveis, acionando, ao entrar em contato com uma imagem, outras imagens que temos disposio em nosso arquivo de imagens, formado por elementos ligados a uma iconografia mundial, mas tambm por diferentes circunstncias sociais, culturais, individuais. Ao acionar o

    vocabulrio para interpretar uma imagem, as narrativas constroem-se por meio de outras narrativas, como conseqncia desse conhecimento tcnico e histrico.

    5.1. Reflexes sobre o trabalho com a fotografia Historicamente, a fotografia compe, juntamente com outros tipos de texto de carter verbal e no-verbal, a textualidade de uma determinada poca. Tal idia

    implica a noo de intertextualidade para a compreenso ampla das maneiras de ser e agir de um determinado contexto histrico: medida que os textos

    histricos no so autnomos, necessitam de outros para sua interpretao. Da

    mesma forma, a fotografia - para ser utilizada como fonte histrica, ultrapassando

    seu mero aspecto ilustrativo - deve compor uma srie extensa e homognea no sentido de dar conta das semelhanas e diferenas prprias ao conjunto de imagens que se escolheu analisar (MAUAD, 1996).

    Se considerarmos que as imagens so histricas, nos deparamos com as variveis tcnicas e estticas do contexto em que foram produzidas e com as diferentes vises de

    mundo em torno das relaes sociais envolvidas. Assim, as fotografias so suportes que

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    guardam, em sua superfcie sensvel, as marcas do passado. No momento de sua produo foram memria presente, e ao entrar em contato com este presente/ passado o investimos

    de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos contemporneos da imagem, mas prprio problemtica ser estudada (MAUAD, 1996). Aquele que analisa imagens do passado precisa desenvolver habilidades para a partir do problema proposto e da construo do objeto de estudo fazer a imagem falar, e para isso necessrio que perguntas sejam feitas.

    Nesse sentido, se tivermos a inteno de compreender a paisagem contempornea como resultado de uma superposio de tempos em um mesmo espao, partindo da situao presente para resgatar no passado os vestgios deixados pelos homens de outras pocas,

    algumas questes poderiam ser feitas: Na paisagem contempornea, quais so os indcios que nos informam sobre as rupturas

    e as permanncias que simbolizam as expresses da relao sociedade-natureza significativas para a memria coletiva? Como fazer a identificao e interpretao da paisagem para revelar seus valores e potenciais (para alm do valor comercial) passveis de serem incorporados/ traduzidos em polticas de planejamento e gesto de paisagens?

    6. Delineando uma proposio metodolgica

    As principais referncias terico-metodolgicas para a descrio e interpretao da

    paisagem na fotografia so oferecidas pela Histria Cultural, atravs da leitura de imagens e do mtodo da montagem de Walter Benjamin, associadas a construes metodolgicas de caracterizao da paisagem oferecidas pela Geografia.

    O procedimento metodolgico aqui apresentado prope a leitura de imagens como forma de compreenso da paisagem. Essa leitura, a ser realizada pelo pesquisador-intrprete, acontece atravs de um processo de observao, descrio, anlise e interpretao das imagens fotogrficas. A abordagem, entendida como uma maneira de olhar, articula e confronta as mltiplas dualidades que caracterizam a essncia da paisagem, assim, entre o subjetivo e o objetivo, se o objeto no deve ser absorvido pelo sujeito, o sujeito est, portanto onipresente na paisagem (BERINGUIER, 1991).

    Cabe salientar, que o mtodo da montagem surge como possibilidade terico-metodolgica para trabalhar as informaes de maneira a construir uma trama que relaciona

    os traos e registros do passado atravs de um trabalho de construo, de quebra-cabeas,

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    para ento produzir sentido para uma leitura e obter a revelao da coerncia de sentido de uma poca. Sandra Pesavento (2005) enfatiza o processo da montagem:

    (...) preciso recolher traos e registros do passado, mas realizar com eles um trabalho de construo, verdadeiro quebra-cabeas, capaz de produzir sentido. Assim, as peas se articulam em composio ou justaposio, cruzando-se em todas as combinaes possveis, de modo a revelar analogias e relaes de

    significado, ou ento se combinam por contraste, a expor oposies ou discrepncias. Nas mltiplas combinaes que se estabelecem, argumenta

    Benjamin, algo ser revelado, conexes sero desnudadas, explicaes se oferecem para a leitura do passado.

    Analisando a obra de Benjamin, Willi Bolle (1994) analisa a tcnica da montagem, tomada de emprstimo das vanguardas artsticas do incio do sculo XX, afirmando que o

    mtodo benjaminiano, como construo, pressupe um trabalho de destruio e desmontagem daquilo que o passado oferece, visando a uma nova construo, ditada pelo

    agora.

    O autor sugere que, a partir dos diferentes mtodos de montagem propostos por Benjamin, as tcnicas de montagem por contraste e montagem por superposio seriam as mais indicadas para trabalhar a cidade. A montagem em forma de contraste, confronta as imagens antitticas e, por conseguinte, dialticas, para promover o despertar ou a revelao. Seguindo a estratgia metodolgica da montagem por contraste, possvel pr frente a frente as representaes antagnicas da cidade que propicia aos seus habitantes vises contraditrias do espao e das vivncias que a ocorrem, como aquelas que falam de

    progresso ou tradio, as que celebram o urbano ou idealizam o rural, o imaginrio dos consumidores frente ao dos produtores do espao, a viso das elites frente a dos populares

    (PESAVENTO, 2002). Ainda obedecendo ao princpio da desmontagem e remontagem dos fragmentos do

    urbano, obtidos por idias e imagens de representao coletiva que so contrastadas com o

    intuito de revelar uma nova constelao de significados, Willi Bolle indica uma outra tcnica de inteligibilidade: a montagem por superposio. Refere que esta seria talvez a

    mais propcia para radiografar o imaginrio coletivo, pois nela a tomada de conscincia se daria aos poucos e no por efeito da revelao por choque, mencionada anteriormente. Seria o processo metodolgico atravs do qual se justapem personagens, imagens, discursos, eventos, performances reais ou imaginrias da cidade.

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    Para Pesavento (1995), essa seria a tcnica que mais se aproxima ao que comumente se chamaria a contextualizao, o referencial de circunstncia ou, ainda,o quadro de

    contingncias que demarca a situao a ser analisada. As tcnicas de montagem por justaposio e contraste no so, em si, excludentes, e, na prtica, tanto se pode utilizar uma quanto a outra, contextualizando e opondo imagens e discursos antitticos, na busca de significados e correspondncias.

    Nessa perspectiva, a estratgia metodolgica pretende desenvolver algumas reflexes a respeito de como realizar a leitura e interpretao da paisagem como possibilidade para a compreenso de processos urbanos em uma trama construda a partir dos registros humanos.

    6.1. Desmontagem e (re) montagem etapas a serem percorridas 6.1.1. ETAPA 1 Escolha das imagens

    A escolha das imagens inicia com a documentao encontrada em pesquisas

    preliminares (acervos, colees, lbuns, etc). Segundo Panofsky (1991) essa seleo do material para observao e exame predeterminada, por uma teoria ou por uma concepo histrica genrica. Isso ainda evidente dentro do prprio processo, onde cada passo rumo ao sistema que faa sentido pressupe os precedentes e os subseqentes.

    A partir da seleo prvia podem ser compostos alguns conjuntos de imagens que permitem a identificao de caractersticas comuns a linguagem esttica, os enquadramentos, a tcnica de representao, os artistas, o perodo assim as imagens possibilitam um percurso no tempo atravs de diferentes olhares.

    Essa etapa permite reconhecer uma viso de conjunto. Os modos de observao e os olhares lanados para a paisagem devem ser mltiplos para permitir que a diversidade de

    informaes se complemente, oferecendo diferentes combinaes possveis. A escolha das imagens caracteriza-se como o momento de delimitao da paisagem no espao, a sua amplitude, olhada como um espao globalmente abarcado pela viso.

    Para orientar a seleo e os agrupamentos na formao dos conjuntos de imagens, alguns critrios podem ser seguidos:

    a. Enquadramentos e pontos de vista: as escolhas buscam contemplar vises panormicas, que englobam o conjunto, oferecendo uma pluralidade de pontos de vista e enquadramentos.

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    b. ngulos de viso: em funo das direes da viso (horizontal e oblqua) nas representaes da paisagem. Esse critrio permite observar as variaes na maneira de

    representar a paisagem ao longo do tempo. c. Escalas/ zoom: refere-se ao grau de distanciamento do observador. Observa-se,

    tambm nesse critrio, a multiplicidade de escalas, considerando que as imagens distanciadas permitem a viso da totalidade reforando o efeito de massa, mas tambm de distanciamento do observador, e que as imagens aproximadas facilitam a apreenso dos detalhes, do refinamento do olhar sobre os elementos e principalmente aproximam o observador do elemento humano, sujeitos da interao com a paisagem.

    d. Perodos: em relao aos perodos as imagens so agrupadas segundo uma ordem

    cronolgica, permitindo a observao das transformaes ocorridas na paisagem, ou, reunindo em um mesmo perodo as diferentes formas de apropriao e de manifestaes da

    vida social cotidiana presentes na paisagem.

    6.1.2. ETAPA 2 Anlise desmontagem

    Esta etapa d incio anlise da paisagem e tem o propsito de decompor as imagens como estratgia analtica.

    Ao ser feita a opo de compreender a paisagem contempornea enquanto resultado de diversas transformaes espaos-temporais, prioriza-se na anlise o aspecto da dinmica da

    paisagem, sua histria ou evoluo como via primordial de entendimento. As paisagens so produtos histricos, que fixam o processo que as forma, pois

    acumulam heranas. A histria de uma paisagem , assim, um mtodo e tambm um de seus valores, possibilitando a distino de cronologias muito distintas segundo seus componentes. Contm em sua essncia a caracterstica da transformao atravs de suas modificaes estruturais, morfolgicas e funcionais, assim, o estudo de suas dinmicas tm especial importncia.

    Est claro que a paisagem no um cenrio morto. ativa como conjunto no tempo e no espao e est composta por constituintes no inertes, seno tambm ativos. No s est afetada por dinmicas, seno que a paisagem dinmica, e esta uma de suas propriedades

    fundamentais que perpassa tanto o conjunto da paisagem como os seus componentes. A luz dessa compreenso, inicia-se a desmontagem da imagem segundo suas diferentes camadas

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    superpostas com o objetivo de realizar a leitura de formas, funes, elementos e estruturas em relao s suas dinmicas prprias:

    a. Forma pode ser entendida como a configurao adquirida em um dado momento, o volume da paisagem visvel, em cuja textura se realiza a existncia. a conformao e a figura, sendo o objetivo nessa fase o de identificar a geometria da paisagem, a partir de suas linhas, seus volumes e suas massas.

    b. Elementos os elementos de uma paisagem so mltiplos, diversificados e aparecem mesclados, combinados. As agrupaes de elementos, se existem, so igualmente individualizveis e classificveis e podem ser compostas por: elementos edificados, ambiente fsico e ambiente biolgico.

    c. Funo as funes preenchem as paisagens de substncia. A paisagem se insere em redes territoriais e regionais maiores e tem funcionalidade em muitos nveis, fortemente

    formalizada com elementos materiais relacionando-se aos aspectos de utilidade no sentido de suprir as necessidades humanas.

    d. Estrutura revela a totalidade das relaes na paisagem: transformaes, autoregulao, formalizao. Como um conjunto de elementos solidrios entre si ou cujas partes so funes umas das outras, cujos componentes se inter-relacionam, articulam, compenetram funcionalmente.

    A partir da desmontagem realizada atravs da leitura nas diferentes camadas temporais, parte-se para a identificao dos diferentes traos presentes nessa paisagem.

    Os traos referem-se aos vestgios relativos ao tempo, podem ser atuais como antigos. Segundo Beringuier (1991), tomando a paisagem como um palimpsesto, os traos remetem ao relevo da histria com seus mltiplos vestgios acomodados atravs das dinmicas espaciais ao longo do tempo. Pode-se, ento, descobrir na paisagem as tramas sucessivas de sua construo segundo os legados herdados e transformados, assim, a paisagem se

    decompe em camadas superpostas. Para estudar esses tempos da paisagem, o mesmo autor sugere que se elabore uma

    estratificao da paisagem a partir dos processos de criao-decomposio-recomposio da paisagem. Assim, quatro gneros podem ser distinguidos nas paisagens atuais:

    a. Os traos fsseis, que resultam de formas de ordenao produzidas pelos sistemas sociais atualmente desaparecidos ou quase. Esses traos no necessariamente

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    desapareceram, podem ser muito visveis, mas so abandonados, sem real utilizao social. Compem paisagens do abandono com suas formas mais ou menos degradadas.

    b. Os traos reinseridos tm graus de desaparecimento diversos. O essencial que esses traos foram reutilizados por novas funes, freqentemente por uma mudana de uso. Em algumas situaes, mais ou menos modificados, continuam a obedecer lgica funcional original.

    c. Os traos mantidos no estado de origem, mesmo que sua funo social tenha sido modificada, eles so os vestgios conservados de pocas anteriores, e por vezes as relquias cuidadosamente preservadas por polticas de proteo do patrimnio.

    d. Os traos da modernidade, so componentes contemporneos da paisagem. Esses

    traos novos podem ser mais ou menos integrados paisagem, mais ou menos aceitos pelos habitantes.

    A paisagem resulta do entrecruzamento desses quatro tipos de traos, mesclados, justapostos, segundo sua prpria ordenao. O pesquisador recompor essas camadas mais ou menos harmoniosas sem esquecer a dimenso dos usos sociais.

    6.1.3. ETAPA 3 Sntese (re)montagem Com os dados produzidos anteriormente, essa etapa opera o cruzamento das

    informaes e a interpretao das anlises, incorporando como resultado a sntese. No mtodo da montagem, proposto por Walter Benjamin, o momento de entrelaamento das informaes e reconstruo da trama, que relaciona e articula os diversos significados, pretende aprofundar a anlise e explorar suas possibilidades interpretativas produzindo

    sentido a leitura realizada. Nessa construo das tramas para produzir o sentido a leitura, busca-se atribuir as qualidades e os valores da paisagem, seus aspectos simblicos e as marcas da memria coletiva.

    Nesse agrupamento das informaes e reconstruo do mosaico da paisagem a sntese guiada pela busca daquilo que dominante na paisagem, nos dois sentidos do termo, o mais vigoroso ou forte, e tambm aquilo que especfico do meio estudado. O observador seleciona, escolhe e rene os elementos que informam e do a significao que permitem compreender e sentir a natureza da paisagem, aqueles que evocam o melhor movimento,

    que manifestam mais claramente os princpios de organizao espacial do meio. Esses traos dominantes fazem a assinatura da paisagem, permitindo que se reconhea a sua

    especificidade, a sua identidade. A partir da existe a possibilidade de serem apontadas as

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    potencialidades e ameaas com vistas proteo, gesto e ordenao da paisagem, enquanto possibilidades de cenrios resultantes das dinmicas espaos-temporais

    anteriormente analisadas.

    7. Consideraes

    Tomando a paisagem enquanto representao, acredita-se que sua leitura atravs da

    fotografia possa ser um instrumento terico-metodolgico que possibilite a construo de uma, das tantas, interpretaes possveis de paisagens. As fotografias nos transportam para outros tempos e nos levam a reconstruir narrativas sobre as formas de interao que uma sociedade constri na relao com a natureza e na transformao do espao onde vive. Ao acessar alguns dos mltiplos significados contidos em uma paisagem, abre-se uma porta que permite compreender os diversos processos sociais e culturais impressos como traos e vestgios a serem decifrados.

    Mas para que nasa a paisagem necessrio, preciso inegavelmente que a

    pulsao da vida, na percepo e no sentimento, seja arrancada da homogeneidade da natureza e que o produto especial assim criado, depois de

    transferido para uma camada inteiramente nova, se abra ainda por assim dizer,

    vida universal e acolha o ilimitado nos seus limites sem falhas.vi

    8. Referncias Bibliogrficas

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    i Nesse sentido, Yves Lacoste (1987), ao buscar definir a paisagem, pergunta-se o que uma bela paisagem? e argumentaque, ao se tornarem valores de mercado, muitas vezes essa pergunta se relaciona somente aos preos de terrenos de onde se tem uma boa vista para a paisagem, mas se olhar uma paisagem serve para encontrar sua beleza, o interesse sensvel sobre a mesma requer algumas mudanas culturais.

    ii O texto A Filosofia da paisagem de Georg Simmel data de 1913, sendo um dos primeiros filsofos a tratar

    da temtica da paisagem, seu texto representa uma importante referncia sobre o assunto.

    iii Simone Maldonado fez, em 1996, a traduo do texto de Simmel para o portugus e, em uma apresentao

    sobre o trabalho, comenta as principais idias tratadas pelo filsofo alemo.

    iv Em Pequena histria da fotografia, Walter Benjamin traa a trajetria da fotografia desde o seu surgimento

    e as possveis transformaes que esta tcnica traria na relao do ser humano com as imagens.

    v A respeito da abordagem trabalhada pela Histria Cultural, diversos trabalhos produzidos pela historiadora

    Sandra Jatahy Pesavento esclarecem e elucidam conceitos, procedimentos metodolgicos e a interface com outras reas do conhecimento.

    vi SIMMEL, Georg. A filosofia da paisagem, 1996.