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Castillo, Lisa Earl (2005) Oralidade e Escrita nos Candomblés da Bahia [tese]

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  • Universidade Federal da Bahia

    Instituto de Letras PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS E LINGSTICA Rua Baro de Geremoabo, n147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitrio Ondina Sal ador-BA v

    Tel.: (71) 263 - 6256 Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: [email protected]

    ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA

    Percepes e sos do discurso etnogrfico no candombl da Bahia

    por

    LISA LOUISE EARL CASTILLO

    Orientadora: Prof. Dr. Florentina da Silva Souza

    Co-orientador: Prof. Dr. Luis Nicolau Pars

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Letras e Lingstica do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia

    como parte dos requisitos para obteno do grau de Doutor em Letras.

    SALVADOR 2005

  • 2

    Biblioteca Central Reitor Macdo Costa

    C352 Castillo, Lisa Louise Earl. Entre a oralidade e a escrita : percepes e usos do discurso etnogrfico no candombl da Bahia / por Lisa Louise Earl Castillo. - 2005. 244 f. : il. Inclui anexos. Orientadora: Prof. Dr. Florentina da Silva Souza. Co-Orientador: Prof. Dr. Luis Nicolau Pars. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, 2005.

    1. Candombl - Bahia. 2. Tradio oral. 3. Literatura e antropologia. 4. Fotografia na etnologia. I. Silva, Florentina da Souza . II. Pars, Luis Nicolau. III. Universidade

    Federal da Bahia. Instituto de Letras. IV. Ttulo.

    CDU 299.6(813.8) CDD - 299.67098142

  • 3

    SUMRIO DO TRABALHO INTEGRAL

    INTRODUO ...............................................................................................................................1

    1 O QUADRO EPISTEMOLGICO:

    A TRANSMISSO DO SABER E O SEGREDO...........................................................................18 1.1 A transmisso do saber religioso: por que a oralidade?............................................... 19 1.2 O segredo: trs vertentes.............................................................................................. 28

    1.2.1 O segredo e a distribuio hierrquica do saber.................................................29 1.2.2 O segredo e as relaes de poder....................................................................... 33 1.2.3 O segredo e o contexto social externo............................................................... 41

    1.3 O discurso etnogrfico, a hierarquia, e o segredo........................................................ 52

    2 OS ENTRELUGARES DA ORALIDADE:

    USOS MICOS DA ESCRITA E DA FOTOGRAFIA...................................................................58

    2.1 A escrita no cotidiano pblico dos terreiros.................................................................62

    2.2 Usos pblicos da escrita no passado: inscries........................................................ 64 2.2.1 Inscries no-islmicas: o caso da famlia Bambox......................................70

    2.3 Usos pblicos da fotografia......................................................................................... 75 2.4 Outros usos da escrita e da fotografia: a comunicao com o orun............................. 81

    2.4.1 Prticas Mals envolvendo a escrita................................................................. 83 2.4.2 Pedidos e oferendas s entidades espirituais..................................................... 85

    2.5 Cadernos de fundamento.............................................................................................. 92 2.5.1 Caminhos de Odu: um caderno publicado, de origens contestadas.................102

    2.6 Usos micos da escrita e da fotografia: o controle sobre o saber e a invocao de poder.........................................................106

    3 MARTINIANO DO BOMFIM E A CONSTRUO

    DO DISCURSO SOBRE O CANDOMBL: A ASCENSO ETNOGRFICA DO OP AFONJ....................................................................108

    3.1 A primeira etapa da pesquisa sobre o candombl: 1890-1930.................................... 111 3.1.1 Nina Rodrigues..................................................................................................111

    3.1.2 Manuel Querino................................................................................................ 119 3.1.3 Arthur Ramos.................................................................................................... 125

    3.2 A consolidao do discurso sobre o candombl na dcada de 1930............................ 126 3.2.1 Martiniano do Bomfim e a segunda gerao de estudiosos ..............................126 3.2.2 A aproximao dos terreiros com a etnografia:

    os artigos de O Estado da Bahia....................................................................... 131 3.2.3 O II Congresso Afro-Brasileiro......................................................................... 140

    3.2.4 Pureza versus senioridade: a ascenso etnogrfica do Op Afonj................... 148 3.3 O Op Afonj e a apropriao do discurso etnogrfico............................................... 154

  • 4

    4 PERCEPES CONTEMPORNEAS: LEITORES E ESCRITORES NOS TERREIROS...................................................................... 160 4.1 Gneros de discurso: o que etnogrfico?..................................................................162 4.2 O discurso etnogrfico e para-etnogrfico nos terreiros: peas no jogo entre a preservao e a transformao da tradio............................172

    4.2.1 O machado duplo da escrita: a preservao da tradio e a rebelio contra ela no discurso de sacerdotes-autores.............................................................176

    4.3 Vozes de leitores: trajetrias diversas, perspectivas variadas...................................... 182 4.4 A produo textual de sacerdotes na Bahia.................................................................194

    4.4.1 O Il Ax Op Afonj.....................................................................................196

    CONCLUSO................................................................................................................................................207 REFERNCIAS IBLIOGRFICAS...........................................................................................................212

    APNDICES..................................................................................................................................................230 Tabela 1: Terreiros visitados.......................................................................................................... 230 Tabela 2: Pessoas entrevistadas................................................................................................... 231 Tabela 3: Roteiro bsico para entrevistas.......................................................................................232 Tabela 4: Bestsellers da Editora Pallas na Bahia........................................................................... 233

    ANEXOS..........................................................................................................................................................234

    1. Manchete do jornal A Tarde, sobre invaso policial de um terreiro, 1940................................234 2. Escena de iniciao de ia, publicada em O Cruzeiro, 1951.....................................................235 3. Convite para festa de Oxum no Terreiro de Maroketu, 2004....................................................236 4. Aougue com inscrio islmica sobre a entrada, final do sculo XIX..................................... 237 5. Inscrio em iorub na casa de Felisberto Sowzer, 1930s........................................................ 238 6. Maria Jlia da Conceio Nazar, fundadora do Gantois, final do sculo XIX........................239 7. Pulquria Maria da Conceio, sucessora de Jlia, final do sculo XIX.................................. 240 8. Piedade Manjebassa, me de Martiniano do Bomfim...............................................................241 9. Martiniano do Bomfim, ca. 1880s.............................................................................................242 10. Martiniano do Bomfim, fotografado por O Estado da Bahia, 1936........................................ 243 11. Severiano Manoel de Abreu, Jubiab, fotografado por O Estado da Bahia, 1936...............244

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    SUMRIO DA PARTE DO TRABALHO INCLUDA AQUI

    INTRODUO TESE 6

    INTRODUES AOS CAPTULOS

    1 A TRANSMISSO DO SABER E O SEGREDO 21

    2 OS ENTRELUGARES DA ORALIDADE 23 USOS MICOS DA ESCRITA E DA FOTOGRAFIA

    3 MARTINIANO DO BOMFIM 27 E A ASCENSO ETNOGRFICA DO OP AFONJ

    4 PERCEPES CONTEMPORNEAS 30 LEITORES E ESCRITORES NOS TERREIROS

    CONCLUSO 33

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICA S 38

  • 6

    INTRODUO

    Neste estudo examino as percepes do povo-de-santo de Salvador em relao ao

    discurso etnogrfico sobre o seu universo religioso e o uso que se faz desse discurso,

    discutindo depoimentos e observaes de campo e cotejando-os com dados histricos

    colhidos em arquivos, para construir uma viso diacrnica desta questo. Acreditando, com

    Foucault, que as prticas discursivas no deveriam ser compreendidas de maneira isolada,

    mas como uma rede complexa de ns, que so distintos, porm interligados, tambm abordo

    uma questo freqentemente ignorada por estudiosos do candombl: os mltiplos pequenos

    usos que a escrita e a fotografia tm nos terreiros, em coexistncia com o que

    freqentemente percebido como uma tradio que se apia exclusivamente na oralidade. De

    acordo com Michel de Certeau, entretanto, a oralidade e a escrita no so oposies binrias,

    mutuamente excludentes, mas sim pares relacionais, cujas posies no so fixas, mas

    relativas, configuradas e re-configuradas de acordo com mudanas no contexto social 1. Nesse

    sentido, sustento que, para compreender o percurso do discurso etnogrfico nos terreiros,

    preciso contextualiz-lo nos interstcios flutuantes entre a oralidade e a escrita.

    Nesta tentativa, procuro documentar as diversas maneiras pelas quais o povo-de-santo

    percebe e interage com a escrita no contexto religioso, analisando os usos micos da escrita e

    da fotografia em pocas anteriores e traando as continuidades e rupturas com a

    contemporaneidade do candombl na cidade de Salvador. Realizei tambm um extensivo

    trabalho de campo em diversos terreiros, desde os mais conhecidos e antigos at outros,

    estabelecidos h pouco tempo.

    A abordagem do estudo menos terica do que emprica. Entretanto, no deixa de

    inserir-se, implicitamente, em importantes discusses tericas sobre as relaes entre o saber

    1 CERTEAU, Michel de. The writing of history. New York: Columbia University Press, 1988 [1975]Refiro-me especificamente a dois ensaios: The Formality of Practices: From Religious Systems to the Ethics of the Enlightenment (the Seventeenth and Eighteenth Centuries e Ethno-Graphy: Speech or the Space of the Other in Jean de Lry.

  • 7

    e o poder nos campos da antropologia e dos estudos culturais. Na antropologia, na esteira da

    descolonizao do Terceiro Mundo, surgiram crticas, a partir da dcada de 70, das

    especificidades histricas que tinham alimentado a idia de que seria possvel uma cincia do

    homem, concebida como uma metanarrativa universal. Tais questionamentos levaram a uma

    re-avaliao crtica da relao entre o discurso etnogrfico e o seu objeto. Nos anos 80, alguns

    estudiosos norte-americanos, influenciados pelo pensamento ps-moderno e ps-

    estruturalista, comearam a analisar a etnografia atravs dos seus tropos literrios e estratgias

    narrativas. Nessa perspectiva, as escritas dos antroplogos passaram a ser, no dizer de James

    Clifford 2, verdades parciais, enquanto para Clifford Geertz, as narrativas etnogrficas

    seriam fices, no sentido de que so construdas, modeladas o sentido original de fictio

    no que sejam falsas, no-factuais, ou apenas experimentos de pensamento 3. Para uma

    disciplina que nasceu e cresceu no auge do colonialismo, tal perspectiva significava que seu

    regime de verdade era inseparvel do contexto poltico de relaes de poder entre o

    colonizador e o colonizado, ou seja, entre o primeiro e o terceiro mundo.

    A crise ps-moderna na antropologia foi alimentada por crescentes questionamentos

    das pretenses de objetividade das cincias sociais, na obra de tericos culturais de outras

    reas de estudo. Atravs do seu Gramatologia, publicado em francs em 1967, Jacques

    Derrida 4 analisou a construo da oralidade na epistemologia ocidental, mostrando o

    etnocentrismo subjacente atribuio da oralidade como caracterstica do Outro, na qual o

    discurso etnogrfico se ancorava. Na obra de autores como Michel Foucault 5 e Raymond

    Williams 6, tornar-se-iam evidentes as imbricaes entre as relaes sociais de poder e as

    prticas discursivas legitimadas pela sociedade, preocupaes que posteriormente se

    tornariam centrais no emergente campo de estudos culturais.

    No Brasil, na rea de estudos da religiosidade afro-brasileira, os questionamentos ps-

    estruturalistas e ps-modernos sobre a antropologia surgiram na dcada de 80, atravs de

    2 CLIFFORD, James. Introduction: Partial Truths. In: CLIFFORD; MARCUS, George (orgs.). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986, p.6. (1986, p. 7) 3 GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Guanabra Koogan, 1989, p. 26. Para anlises interessantes sobre o processo hermenetico do antroplogo, ver Rabinow (1977); Clifford e Marcus (1986); Clifford (1988); Abu-Lughod (1993); e Behar (1993), entre outros. 4 DERRIDA, Jacques. Gramatologia. So Paulo: Perspectiva, 1973 [1967]. 5 Penso particularmente em As Palavras e as Coisas, publicado em francs em 1966, e Vigiar e Punir (1975). 6 Marxism and Literature (1977).

  • 8

    indagaes levantadas por estudiosos como Beatriz Dantas 7sobre os pressupostos nos quais a

    viso etnogrfica sobre a religiosidade afro-brasileira se apoiava. Questionando o fato de as

    prticas religiosas dos nags serem reificadas pelos estudiosos como mais fiis pureza

    africana, Dantas argumentou que o privilgio antropolgico para a religiosidade dos nags

    tinha levado a um desprezo para as prticas das outras naes, as quais tinham sido

    descartadas como misturadas e deturpadas 8.

    A abordagem de Dantas, ao desmascarar o papel da ideologia na construo do

    discurso sobre o candombl, se insere claramente nas discusses ps-modernas na

    antropologia que ganharam visibilidade internacional na dcada de 70. Contudo,

    interessante constatar que, de uma certa forma, questionamentos sobre a objetividade das

    construes etnogrficas e a possibilidade de que o discurso sobre o candombl fosse lido

    e contestado pelo objeto do seu olhar j tinham surgido na Bahia h dcadas. Em 1936,

    numa srie de entrevistas publicadas no jornal O Estado da Bahia, Edison Carneiro

    documentou o pensamento crtico de vrios sacerdotes, entre eles Martiniano do Bomfim, a

    respeito da produo textual sobre os terreiros. Dez anos depois, Roger Bastide, aps sua

    primeira viagem Bahia, sugeriu que o discurso etnogrfico tinha a possibilidade de tornar-se

    influente nos terreiros como fonte indireta de informaes sobre a frica 9.

    A questo levantada por Bastide, de se o discurso etnogrfico exerceu uma influncia

    sobre o processo de re-africanizao do candombl, atravs do qual comearia um resgate

    das continuidades entre as religies afro-brasileiras e as africanas, seria retomada, tornando-se

    controversa, nos anos 60, quando o antroplogo norte-americano Melville Herskovits criticou

    Pierre Verger por ter mostrado suas fotografias dos iorub na frica para o povo-de-santo na

    Bahia 10. Para Herskovits, a interveno de Verger, ao estimular reflexes nos terreiros sobre

    7 DANTAS, Beatriz Gis. Vov nag e papai branco: usos e abusos da frica no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 8 Como analisarei no Captulo 3, esta tendncia est enraizada na perspectiva evolucionista de Nina Rodrigues, segundo a qual as etnias da frica ocidental seriam mais avanadas do que as da frica central. 9 BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. So Paulo: Perspectiva, 1983, p. 169. 10 LHNING, ngela. Pierre Fatumbi Verger e sua obra. Afro-sia, no. 21-22, pp. 315-364, 1999b. Com as suas viagens constantes para a frica, [Verger] realmente tornou-se o mensageiro aproveitou este termo para um dos seus ltimos lbuns fotogrficos, Le Messager (Paris, 1993) entre os dois lados do Atlntico, renovando e inovando, criando e recriando os contatos humanos, numa poca em que... tinham se tornado menos freqentes e menos fundamentais do que nos sculos anteriores. Nem sempre esta sua atitude de unir foi vista com bons olhos. Verger sempre contava, com um certo tom de amusement, de divertimento, que o seu colega antroplogo norte-americano Melville Herskovits mostrou-se bastante contrariado com a ao conciliadora de Verger, dizendo que este tinha destrudo a situao de laboratrio natural encontrado por ele, Herskovits, na

  • 9

    as continuidades e rupturas entre as prticas afro-brasileiras e as africanas, ultrapassou uma

    barreira implcita entre o antroplogo e seu objeto.

    Nesta poca, o objetivo da antropologia era concebido como o de descobrir a base

    natural das sociedades humanas, atravs da anlise de suas regras inconscientes, em contraste

    com o campo das outras cincias humanas, que se preocupavam com o estudo de regras

    conscientes 11. Nessa perspectiva, o acesso ao discurso etnogrfico pelas pessoas estudadas

    pelos antroplogos, por incentivar a reflexo consciente sobre si mesmo, transformaria a

    natura inconsciente em cultura consciente, destruindo a prpria caracterstica que tornava os

    nativos interessantes para o antroplogo. Curiosamente, Verger, que se identificava como

    um mensageiro entre a frica e a Bahia, posteriormente adotaria uma postura semelhante

    do seu adversrio. Na dcada de 80, Verger criticou Os Nag e a Morte, de Juana Elbein 12,

    alegando que este livro poderia contaminar a viso do povo-de-santo sobre si prprio, atravs

    de erros factuais e distores tericas 13.

    Nas entrelinhas dessas discusses sobre o efeito poluidor do antroplogo sobre seu

    objeto de estudo est uma oposio conceitual entre a pureza e a deturpao. Por um lado,

    acreditava-se que o primitivo caracterizava-se por um estado de suposta inocncia humana,

    ou natura. Por outro, as sociedades concebidas como culturas eram reificadas por serem

    civilizadas, mas, simultaneamente, eram vistas como tendo perdido aquele estado de graa

    original. Tais contrastes, centrais viso antropolgica sobre a diversidade humana, foram

    eloqentemente evocados na dcada de 50 por Lvi-Strauss, em Tristes Trpicos, levando

    este livro a ser um dos mais comentados por estudiosos ps-modernistas e ps-estruturalistas,

    entre eles Clifford 14 e Derrida 15.

    Foram justamente essas oposies entre pureza e contaminao que Beatriz Dantas

    identificou no seu livro, Vov Nag e Papai Branco: Usos e Abusos da frica no Brasil,

    Bahia [em 1941-42]. Mas, poucos anos depois... Verger comeou a realizar suas pesquisas nos dois lados do Atlntico, refazendo os contatos, temporariamente adormecidos aps a abolio, reaproximando famlias, rituais e fatos (LHNING, 1999b, p. 323-324). 11 LVI-STRAUSS, Claude, Structural Anthropology. New York: Basic Books, 1963. 12 ELBEIN DOS SANTOS, Juana. Os nag e a morte: pad, asese e o culto egn na Bahia. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1975. 13 VERGER, 1982. Etnografia religiosa iorub e probidade cientfica. Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, ISER, no. 8, 1982, p. 5. 14 CLIFFORD, op. cit.; CLIFFORD,The predicament of culture: twentieth-century ethnography, literature and art. Cambridge, Mass: Harvard university Press, 1988. 15 DERRIDA, Jacques, op. cit.

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    como constituindo a ancoragem terica da etnografia sobre o candombl. Partindo de uma

    anlise das diferenas entre as idias sobre o que constitua a pureza africana nos terreiros

    da Bahia e de Sergipe, Dantas inferiu que as divergncias entre os dois lugares apontavam

    para uma influncia exercida pelos antroplogos sobre o povo-de-santo da Bahia. Dantas

    tambm identificou uma polarizao, no processo de legitimizao social do candombl,

    entre, por um lado, as prticas rotuladas de feitiaria e curandeirismo, consideradas como

    impuras, e, por outro, as elogiadas como religiosas e puramente africanas. Para Dantas,

    tais oposies, decorrentes da influncia do discurso antropolgico, tinham iniciado o

    processo de re-africanizao nos terreiros.

    As indagaes de Dantas sobre a influncia do discurso etnogrfico na re-

    africanizao seriam retomadas por outros estudiosos no contexto do candombl do Sudeste

    do Brasil, entre eles Vagner Gonalves da Silva 16 e Stefania Capone 17. Na viso destes

    pesquisadores, a etnografia sobre o candombl tem uma funo importante no processo de re-

    africanizao nos terreiros dessa regio, exercendo uma influncia normalizadora sobre o que

    se considera autntico e correto na praxe ritual. Na Bahia, entretanto, o antroplogo

    Ordep Serra rejeitou a idia de que o discurso etnogrfico exercesse qualquer influncia sobre

    os terreiros, sustentando que Dantas tinha retratado os grandes pais e mes-de-santo como

    meros bonecos dos antroplogos 18. Para Serra, a re-africanizao dos terreiros, longe de ser

    catalisada pelo discurso etnogrfico, teria existido desde as origens do candombl, sendo

    evidente desde a primeira metade do sculo XIX, nas celebradas viagens para a frica de

    personalidades como Iy Nass, a primeira ialorix da Casa Branca, e Marcos Pimentel, um

    dos fundadores do culto dos ancestrais (Bab Egum) na Bahia. Contudo, no seu entusiasmo

    para mostrar que a valorizao das razes africanas uma categoria mica no candombl,

    Serra acaba descartando o que considero ser uma das observaes mais importantes de

    Dantas: a insero do discurso etnogrfico sobre o candombl nas relaes de poder entre os

    terreiros e a conseqente reificao da nao nag vis-a-vis a sociedade dominante.

    Apesar da longevidade dos debates acadmicos sobre o significado do discurso

    etnogrfico nos terreiros, a discusso tem se limitado s questes especficas da re-

    16 SILVA, Vagner Gonalves da. Orixs da Metrpole. Petrpolis: Vozes, 1995. 17 CAPONE, Stefania. CAPONE, Stefania. LAfrique rinvente ou la construction de la tradition dans les cultes afro-brsiliens. Archives Europennes de Sociologie, vol. 40, no. 1, pp.3-27, 1999a. CAPONE, Stefania, La qute de lAfrique dans le candombl: pouvoir et tradition au Brsil. Paris: ditions Karthala, 1999b. 18 SERRA, Ordep. guas do rei. Petropolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 55, 59, 75.

  • 11

    africanizao e do nagocentrismo. Curiosamente, ambas posies tericas tanto as que

    rejeitam quanto as que defendem a possibilidade de os terreiros serem influenciados (ou

    corrompidos) pelas etnografias partem, implicitamente, de um pressuposto em comum: o de

    se pensar a funo dos textos exclusivamente em termos de serem lidos, ou no, como fontes

    de saber religioso.

    Tal viso, entretanto, parece-me marcada pelos traos do paradigma judaico-cristo,

    no qual o papel do texto no mbito religioso pensado em termos de sua capacidade de

    definir a cosmogonia religiosa para os praticantes da religio, o que considero no dar conta

    da funo prtica do discurso etnogrfico nos terreiros. Durante o trabalho de campo para este

    estudo, encontrei muitas pessoas nos terreiros que consideraram o trabalho dos estudiosos

    sobre os terreiros de pouco interesse no que tange prtica religiosa. Mesmo assim, muita

    gente o valorizou, considerando-o importante na criao de um dilogo entre os terreiros e a

    sociedade, e permitindo, portanto, a projeo de uma imagem externa mais positiva do

    candombl. Tais idias, apoiadas pelas informaes que colhi de fontes histricas, sugeriram-

    me que examinar as percepes do discurso etnogrfico nos terreiros significa tambm pensar

    o discurso como estratgia do exerccio de poder, da maneira colocada por Foucault 19. Para

    os terreiros, ser objeto do olhar etnogrfico trouxe uma nova visibilidade perante a sociedade

    externa, a qual representava uma ruptura com o passado, quando a sua sobrevivncia dependia

    da invisibilidade social 20. Como mostrarei no Captulo 1, tal ruptura nas estratgias de auto-

    preservao provocou uma re-estruturao do conceito do segredo no candombl, segundo o

    qual o saber ritual distribudo de acordo com a hierarquia religiosa.

    De acordo com Dantas 21, este processo de legitimizao social atravs da visibilidade

    etnogrfica implicava a exaltao de prticas puras, consideradas religiosas, a qual foi

    acompanhada pela marginalizao de prticas rotuladas como impuras e classificadas como

    feitiaria e curandeirismo. Na medida em que alguns terreiros tiveram mais sucesso em

    navegar nesta transformao na estratgia de relaes exteriores, houve uma re-estruturao

    19 FOUCAULT, Michel. The subject and power. In: DREFUS, Hubert e RABINOW, Paul. Michel Foucault: beyond structuralism and hermeneutics, 2a ed. Chicago: University of Chicago Press, pp.208-226, 1983. _______. Power/knowledge: selected interviews and other writings, 1972-1977. GORDON, Colin (org.). New York: Pantheon Books, 1980. _______. Discipline and punish. New York: Vintage Books, 1977 [1975]. 20 Como Lhning (1995) e Braga (1995) mostram, durante a maior parte da primeira metade do sculo XX, os jornais divulgaram e at incentivaram as invases policiais dos terreiros. (LHNING, ngela, 1995. Acabe com este santo, Pedrito vem a: mito e realidade da perseguio policial ao candombl baiano entre 1920 e 1942. Revista USP, no. 28, 1995. BRAGA, Jlio, 1995. Na gamela do feitio: represso e resistncia nos candombls da Bahia. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 1995.)

  • 12

    paralela nas relaes de poder entre os terreiros, pois tal oposio discursiva alimentou uma

    viso hierrquica das diversas prticas religiosas, segundo a qual os valores epistemolgicos

    de uma pequena minoria dos terreiros seriam vistas como mais puras, constituindo uma

    espcie de cultura alta. Ao mesmo tempo, a praxe ritual de outros sacerdotes foi

    desvalorizada, levando seus terreiros a constituirem um tipo de periferia da religiosidade afro-

    brasileira.

    De fato, o argumento de que a etnografia sobre o candombl enfatiza o prestgio de

    uma pequena elite dos terreiros (e mais especificamente ainda, dos terreiros soteropolitanos 22) fica muito claro atravs de uma anlise deste discurso. Apesar de existirem, atualmente,

    mais de 2000 terreiros de candombl na cidade do Salvador, desde o comeo dos estudos da

    religiosidade afro-brasileira na Bahia, um pequeno tringulo de terreiros da nao nag ou

    ktu, constitudo pela Casa Branca e duas casas descendentes, o Gantois e o Il Ax Op

    Afonj, tem fascinado os estudiosos da religiosidade afro-brasileira na Bahia, com um efeito

    correspondente sobre outras formas de produo cultural, como os romances de Jorge Amado,

    a iconografia de Caryb e a fotografia de Pierre Verger. Numa transposio curiosa, a Casa

    Branca, que tinha sido conhecida como um dos terreiros mais antigos, acabou sendo

    promovido como o mais antigo de todos os existentes, passando a ser conhecido, ao longo do

    tempo, como o primeiro. Tal alterao aparece no discurso etnogrfico sobre o candombl a

    partir da dcada de 40, quando Edison Carneiro escreveu, no seu Candombls da Bahia, que

    o Engenho Velho [] o mais antigo de todos... [e] de uma maneira ou outra, dele se

    originaram todos os demais 23.

    Hoje, aps um sculo de existncia do discurso etnogrfico sobre o candombl, as

    crticas hegemonia destes trs terreiros tendem a se concentrar num questionamento das

    idias de pureza nag que marcaram o pensamento de tantas geraes de antroplogos.

    Considero, porm, que o assunto mais complexo de que simplesmente uma preferncia

    etnogrfica para todos os terreiros nags. Tampouco se reduz a uma questo da antigidade

    destas trs casas. Fora o tringulo composto pela Casa Branca, o Gantois e o Op Afonj,

    tambm existem outras linhagens nags, igualmente antigas, como o Alaketu, por exemplo,

    21 DANTAS, Beatriz, op. cit. 22 Agradeo os comentrios esclarecedores de Luzia Gomes sobre este assunto. Ela ressalta que alm de privilegiar os terreiros baianos o discurso etnogrfico tambm focaliza os terreiros da capital, sem analisar os do Recncavo ou outras regies do interior.

  • 13

    mas cujas histrias ficaram, curiosamente, relativamente excludas da etnografia. E mesmo

    entre estas trs casas, o olhar etnogrfico manifestava preferncias sutis. Como procuro

    mostrar no Captulo 3, nos estudos de Nina Rodrigues e Arthur Ramos, o Gantois

    predominava como lugar de pesquisa, mas a partir dos anos 30, o Op Afonj, o mais novo

    dos trs terreiros, comeou a segurar cada vez mais o olhar etnogrfico, paulatinamente

    ultrapassando os outros dois.

    Um dos objetivos principais atravs desta tese mostrar que a hegemonia do Op

    Afonj nos estudos sobre o candombl representa, de certa forma, um paradoxo para o

    pensamento etnogrfico. Apesar de ser reificado pela etnografia como o terreiro mais fiel

    pureza nag, pensado como uma cultura oral, as relaes do Op Afonj com a escrita so

    antigas e estreitas, sendo registradas praticamente desde a fundao do terreiro por meio de

    cadernos contendo os registros dos barcos de ias iniciados no terreiro. O babala

    Martiniano do Bomfim foi grande amigo da fundadora do Op Afonj, Me Aninha. Membro

    da associao civil do terreiro, Martiniano era letrado em portugus e tambm dominava o

    ingls e o iorub, falado e escrito 24. Consultado por todos os estudiosos do candombl

    durante o perodo de consolidao do discurso etnogrfico, desde a poca de Nina Rodrigues

    no final do sculo XIX, at a segunda gerao de estudiosos na dcada de 30, Martiniano

    exerceu um papel definitivo na aproximao do Op Afonj ao discurso etnogrfico, a partir

    dos anos 30.

    Conta-se que Me Aninha dizia que queria ver seus netos de santo com anel de

    doutor nos dedos, aos ps de Xang 25. Com esta afirmao, a fundadora do terreiro mais

    conhecido por sua fidelidade tradio oral deu seu voto para a importncia de se vincular

    com a escrita. Ainda nos ltimos anos de Me Aninha, quando o discurso etnogrfico sobre o

    candombl estava se consolidando, o Op Afonj tomou a frente ao se envolver com a

    etnografia, no simplesmente no fornecimento de informaes para os pesquisadores, mas

    tambm na produo de textos, posio que se mantm at hoje. Em contraste, apesar de o

    Gantois e a Casa Branca tambm contarem, entre seus membros, com numerosos artistas e

    intelectuais, os sacerdotes destes dois terreiros no publicam textos sobre o candombl.

    23 CARNEIRO, dison. 1991a, Candombls da Bahia. 8a ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1991a [1948], p. 46. 24 CARNEIRO, Edison, op. cit., entre outros. 25 MARTINS, Clo. LODY, Raul (orgs.) Faraimar: o caador traz alegria: Me Stella: 60 anos de iniciao. Rio de Janeiro: Pallas, 2000, p. 121

  • 14

    * * *

    No incio deste projeto, pensei abordar apenas a recepo da etnografia sobre o

    candombl. Esse recorte estreito acabou abrindo-se, entretanto, para dar espao tambm

    fotografia etnogrfica, pois logo aps comear a pesquisa, ficou claro que muitas pessoas nos

    terreiros no tinham um engajamento direto com os textos etnogrficos, e que um dos fatores

    foi a linguagem acadmica empregada pelos estudiosos nos seus escritos. O fato de Pierre

    Verger ser um estudioso de referncia no campo dos estudos sobre a religiosidade afro-

    brasileira me motivou a considerar a importncia da imagem como meio de representao

    etnogrfica.

    Ao incluir a questo da fotografia, descobri que as atitudes sobre seus usos

    etnogrficos, fora dos terreiros, era relacionado com seus usos dentro das comunidades de

    candombl. Ademais, descobri que os usos micos da fotografia foram acompanhados por

    prticas envolvendo a escrita. Desta forma, percebi que para poder compreender

    adequadamente as percepes sobre a etnografia, tanto visual como textual, era interessante

    abrir o campo de estudo mais ainda para analisar os usos micos da escrita e da fotografia.

    No final do estudo, comecei a valorizar tambm a importncia de um meio mais

    recente: a de gravaes de cantigas, as quais parecem ser extremamente valorizadas e bem

    difundidas entre o povo-de-santo. Entretanto, era tarde para comear a coleta sistemtica de

    dados sobre este aspecto, e a abordagem do estudo atual j tinha se ampliado bastante.

    Porm, pela importncia que parece ter nos terreiros, e pela falta de estudos sobre o assunto,

    permanece uma rea extremamente interessante para futuros trabalhos 26.

    26 Ver dois artigos de ngela Lhning, Os sons da Bahia: pesquisas etnomusicolgicas (2004) para um resumo da evoluo histrica da etnomusicologia na Bahia, e O jogo de espelhos: reflexes sobre a questo da reintegrao de gravaes histricas do candombl baiano nas comunidades atuais (2004), que trata das tentativas desta pesquisadora de resgatar gravaes de cantigas de candombl realizadas por Melville Herskovits no incio da dcada de 40, disponibilizando-as ao povo-de-santo, sobretudo aos terreiros onde foram gravadas.

  • 15

    O estudo partiu de um levantamento bibliogrfico da literatura antropolgica, com

    nfase na etnografia sobre o candombl, realizado nas bibliotecas da University of California

    (Berkeley) e do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, alm de

    um trabalho de campo extensivo, envolvendo observaes e entrevistas. No decorrer da

    pesquisa, recorri tambm pesquisa documental, cuidadosamente colhendo informaes

    valiosas de fontes histricas originais nos arquivos do Instituto Geogrfico e Histrico da

    Bahia, da Fundao Pierre Verger e da Biblioteca do Estado da Bahia. Finalmente, a pesquisa

    feita na Internet tambm trouxe informaes relevantes para o estudo, pois, nos ltimos anos,

    alm de tornar-se uma fonte importante para a disseminao do trabalho de estudiosos, a

    Internet cada vez mais utilizada para a divulgao da produo textual e visual dos terreiros

    do candombl.

    Devido escassez de registros escritos por pessoas de candombl em relao

    etnografia sobre seu universo religioso, a realizao do trabalho de campo, apesar de ser

    pouco comum nos estudos literrios, tornou-se imprescendvel. A utilizao desta

    metodologia aumentou mais ainda o carcter interdisciplinar do presente estudo: alm do seu

    tema ocupar um entrelugar entre a antropologia e a literatura, sua metodologia e anlise se

    apoiam tanto nas cincias sociais quanto nos estudos literrios. Creio que este aspecto

    inovador do estudo consoante com a interdisciplinaridade que caracteriza os estudos

    culturais realizadas no campo de literatura hoje em dia, embora de uma forma invertida.

    Enquanto os estudos culturais tendem a aplicar as metodologias da rea da literatura anlise

    de temticas convencionalmente consideradas pertencentes s cincias sociais, o presente

    estudo utiliza a metodologia das cincias sociais para analisar a recepo da literatura

    etnogrfica nos terreiros.

    Mesmo antes de ter conhecido pessoas que me convidassem para as festas de

    candombl, foi fcil freqentar as celebradas casas de ktu. Seus calendrios de rituais so

    extensivos, a informao sobre elas circula muito pela cidade e comum a presena, nas suas

    festas, de pessoas totalmente estranhas casa, inclusive turistas, a maioria europeus e

    americanos de descendncia europia. Sendo norte-americana e branca, fui muitas vezes

    tomada por turista, o que tendia a criar barreiras para mim nos candombls, barreiras que

    levaram tempo e persistncia para vencer, pois a relao com turistas nos candombls

    delicada. Por um lado, receber visitas de gente de fora desejvel, evidncia, de uma certa

    forma, da fama do terreiro. Por outro, os turistas tendem a ignorar, mesmo sem querer, os

  • 16

    sinais de respeito e de boa conduta dentro do candombl, como por exemplo, pelo uso de

    roupa considerada inadequada, ou por ficar em p em cima dos bancos para assistir melhor o

    ritual.

    Desta forma, freqentei muitas festas nas grandes casas de ktu, sem conseguir

    contatos com ningum. Com o passar do tempo, entretanto, comecei a ser convidada, atravs

    de amigos da universidade, dos meios artsticos e de movimentos sociais, que faziam parte da

    comunidade de casas como a Casa Branca, o Op Afonj, o Gantois, o Oxumar, o Op

    Aganju, a Casa do Cobre e o Pilo de Prata. Assim, eu comecei a me tornar uma parte, mesmo

    perifrica, deste circuito, o que mudou minha relao com as pessoas nos terreiros. Sendo

    apresentada por pessoas com laos com a casa, sejam de sangue, de parentesco espiritual ou

    de amizade, passei a ser cumprimentada quando chegava, chamada para comer depois da festa

    e at a presenciar outros rituais, mais ntimos e freqentados por menos pessoas. Com o

    tempo, fui convidada para festas de aniversrio, almoos familiares, e outros eventos no

    especificamente religiosos, mas freqentados por pessoas que compem o crculo de amizade

    ou parentesco dos terreiros. Considero o fato de ser convidada para tais eventos e de poder

    estender tambm convites para eventos do meu universo social um grande privilgio, um

    smbolo de um grau de confiana e de dilogo que sinalizou ter chegado num patamar

    importante para mim como uma pesquisadora de fora em vrios sentidos: de outro pas, de

    outra lngua, de outro grupo tnico-racial, e sem iniciao no candombl.

    Minha tcnica de esperar ser apresentada por meus amigos, embora efetiva para

    conhecer as pessoas nas grandes casas de ktu e seus descendentes, no funcionou to bem

    para casas de outras naes, como as de angola 27. O contraste aponta para diferenas scio-

    econmicas subjacentes s grandes casas de ktu e s menos conhecidas. Com poucas

    excees, como a do Bate Folha, os terreiros de angola tendem a ser menores, menos

    freqentadas pelos intelectuais e pela classe mdia, tendo, na sua maioria, escassos recursos

    financeiros. Alm disso, as festas muitas vezes comeam mais tarde, terminando de

    madrugada, o que dificulta o transporte de volta para pessoas de outros bairros. Talvez isto

    seja um motivo para o fato de a maioria do pblico ser moradores do bairro ou pessoas

    especificamente convidadas por algum da casa.

    27 No caso do jeje, outro fator pode ser o fato de existirem muito poucos terreiros dessa nao em Salvador hoje em dia.

  • 17

    Realizar um estudo etnogrfico sobre uma cultura que no a sua traz um paradoxo,

    nascido do contraste entre as possibilidades maiores que a perspectiva de fora oferece ao

    pesquisador, na percepo e interpretao de fenmenos que, s vezes, passam despercebidas

    pelo nativo; e as limitaes de compreenso que esta prpria condio de estrangeiro tambm

    impe. Como James Clifford 28 argumenta, a credibilidade da narrativa etnogrfica depende

    da sua habilidade de convencer o leitor que representa a cultura como ela realmente .

    Portanto, as narrativas etnogrficas, construdas atravs do processo interpretativo do

    pesquisador, acabam sendo marcadas pela sua subjetividade. Quando o pesquisador no

    domina a lngua da comunidade estudada, como foi meu caso no incio da pesquisa, o

    processo de analisar os depoimentos complica-se mais ainda, mas de certa forma, as sutilezas

    dos usos da linguagem e do estilo de comunicao especficas ao contexto social do grupo

    estudado constituem, muitas vezes, um desafio at para pesquisadores que so falantes nativos

    da lngua.

    Neste sentido, um dos problemas metodologicas que surgiu nesta pesquisa foi o uso da

    entrevista como tcnica de colhir dados. Para o socilogo Pierre Bourdieu 29, uma

    compreenso do que pode ser chamado de a cultura da entrevista deveria ser uma

    preocupao central na pesquisa etnogrfica. Bourdieu observa que:

    Fatos so fabricados, construdos, observaes no so independentes de teoria, e o etnlogo e seus informantes so colaboradores num trabalho de interpretao, com os informantes propondo para o etnlogo seguindo uma retrica de apresentao inteiramente particular explicaes inventadas por eles mesmos em funo... das suas expectativas, e ao custo de um verdadeiro esforo terico, o qual implica que assumem uma postura extraordinria, induzida pela prpria situao da entrevista (BOURDIEU, 1977, p. 164-165) 30.

    Em outras palavras, a pesquisa etnogrfica, como a fsica nuclear, parece ser regida

    pelo princpio de Heisenberg, segundo o qual os dados acabam sendo modificados pelo

    prprio processo de coleta, deixando, assim, a objetividade sempre fora do alcance do

    pesquisador. Nesse sentido, Pierre Verger se queixava muito da confiabilidade das

    informaes obtidas atravs de entrevistas, seguindo uma lgica parecida de Bourdieu. Para

    Verger, a entrevista, por ser um artifcio, traz resultados que so suspeitos em duas maneiras:

    28 CLIFFORD, James, op. cit. 29 BOURDIEU, Pierre. Afterword. In: RABINOW, Paul, Reflections on Fieldwork in Morocco. Berkeley: University of California Press, pp. 163-67, 1977.

  • 18

    um, porque as interrogaes do pesquisador trazem informaes sobre assuntos considerados

    importantes por ele, mas no necessariamente pela pessoa entrevistada; e outro, porque as

    respostas s perguntas so influenciadas pelo que o pesquisador, mesmo sem querer, mostrou

    para o entrevistado que queria ouvir 31.

    No contexto especfico do candombl, a pergunta como tcnica metodolgica

    apresenta um problema em termos das normas nos terreiros para interaes entre os mais

    velhos e mais novos. Perguntar sobre o saber religioso, de certa forma, pode ser considerado

    uma falta de respeito para os limites do corpo interior de conhecimento religioso chamado

    fundamentos. Isto me foi assinalado logo, na primeira entrevista que realizei, pela ebmim

    Dona Zinha, que apesar de perceber minha falta de experincia, confiou nas minhas boas

    intenes. Ela me avisou, gentilmente:

    Dentro do candombl no se faz perguntas. A pessoa tem que observar. Todos os brancos que chegam aqui sabe disso. No se pergunta nada. A gente diz, aos prprios negros, Voc vai fazer seu santo? Voc no pergunte nada, porque ningum vai lhe dizer. Se voc quiser aprender uma coisa, voc tem que ficar calado, no fale. Tudo, Lisa, se voc conseguir, vai ser um aprendizado, vai ser um tempo que voc vai ter que passar ou teria que estar dentro j de uma casa de candombl. (Dona Zinha, informao verbal) 32

    Naquele dia, Dona Zinha tambm me ensinou que, [Quando a gente] passa a

    sabedoria, precisa ser para uma pessoa... de confiana, voc precisa estudar aquela pessoa,

    para ver como ela por dentro. Em outra ocasio, ela ligou o problema da pergunta com o do

    processo de se pesquisar sobre o candombl, de uma forma muito explcita:

    [No candombl,] aquele que tem o poder do conhecimento, ele forte. Se ele sabe coisas de folhas, coisas de feitios, vai ser muito mais fcil dominar o outro, ento, ele nunca vai falar para ningum. A, o antroplogo chega com um caderno na mo, e comea a perguntar! Se o candombl silncio? (Dona Zinha, informao verbal) 33

    Sempre lembrei de suas palavras, mas s ao longo do tempo percebi que sua

    importncia real ultrapassava a relao entre o terreiro e o pesquisador, sendo esses conceitos

    30 Traduo minha. 31 VERGER, entrevistado por Gautrand, 1993, p. 31, apud COHEN, Peter. Pierre Fatumbi Verger as social scientist. Cahiers du Brsil Contemporain, 38-39, pp. 127-151, 1999. 32 Entrevista realizada em 06 de junho de 1998.

  • 19

    os fios condutores na transmisso do saber dentro do prprio candombl. Com estas poucas

    palavras, Dona Zinha tinha assinalado dois conceitos fundamentais para a compreenso das

    percepes sobre o processo de pesquisa. Primeiro, uma grande parte do saber religioso

    guardada em segredo e transmitida pelos mais velhos para os mais novos aos poucos.

    Segundo, h uma forte hierarquia religiosa, dentro da qual a posse do saber ritual se traduz em

    poder. Por isso, perguntar visto, muitas vezes, como uma falta de respeito para os limites do

    segredo, evidenciando tambm pouca educao em termos da boa conduta perante os mais

    velhos.

    Apesar de perceber, atravs dos ensinamentos de Dona Zinha e outras pessoas, a

    importncia de me sensibilizar em relao maneira de como minhas tentativas de levantar

    informaes seriam vistas pelas pessoas que entrevistei, mesmo assim encontrei-me, como

    tantos outros pesquisadores antes de mim, presa nos conflitos epistemolgicos que a

    metodologia necessria para o meu trabalho apresentava dentro do universo dos terreiros.

    Conforme as exigncias de normas impostas universidade por regras federais, eu, como

    doutoranda, estava obrigada a providenciar as informaes pertinentes ao tema e a elaborar

    uma tese dentro de um prazo que, na perspectiva dos terreiros nos quais a aprendizagem da

    ia demora sete anos era muito pouco. O fato de no ter iniciao no candombl, e nem

    sequer laos de parentesco ou de amizade prvia fez com que, no incio, fosse difcil

    equilibrar as exigncias dos prazos da academia com as normas de boa conduta dentro dos

    terreiros. No era possvel, portanto, realizar a minha pesquisa sem recorrer a perguntas e sem

    realizar entrevistas. Contudo, no esqueci dos ensinamentos de Dona Zinha, e, ao me dirigir

    s pessoas nos terreiros, preocupei-me em deixar que me conhecessem um pouco antes de

    tentar marcar entrevistas.

    Na realizao das entrevistas 34, eu partia de um roteiro de perguntas bsicas mas

    deixava que a pessoa levasse a conversa na direo que queria, para mostrar respeito para os

    limites do segredo, e para que elas pudessem levantar assuntos importantes para elas. Assim,

    evitei perguntas que comunicassem a resposta correta, ou seja, a que eu esperava ouvir. Por

    outro lado, este tipo de entrevista aberta apresentava um novo desafio, pois freqentemente

    33 Entrevista realizada em 23 de maio de 1999. 34 Tabelas dos terreiros visitados, informaes sobre as pessoas entrevistadas e um roteiro das entrevistas encontram-se nos Apndices. Cabe mencionar que algumas pessoas no queriam que usasse seu nome verdadeiro, enquanto outros no se incomodavam que seu nome fosse usado, mas no queria que colocasse o

  • 20

    acabava focalizando questes que tinham pouco a ver com meu objeto de pesquisa. Quando a

    pessoa entrevistada tinha pouca escolaridade a tcnica da entrevista trouxe outro desafio. Seja

    pela maneira que eu, com sotaque de estrangeira, construa minhas frases, ou pelo fato da

    pessoa ser inexperiente na cultura da entrevista, as minhas perguntas frequentemente

    resultavam numa falta de dilogo, a qual intensificou pelo fato de essas pessoas geralmente

    terem pouco contato com a etnografia sobre o candombl, pois estavam na posio de

    responder a perguntas sobre um assunto que, apesar de ser relevante para minha pesquisa, de

    fato no era para elas. Desta forma, a grande maioria das entrevistas que realizei formalmente,

    ou seja, as conversas que foram gravadas e transcritas 35, foram com pessoas que tinham pelo

    menos o primeiro grau completo, e desse grupo, mais que a metade tinha terminado tambm o

    segundo grau. Um nmero significativo das pessoas entrevistadas tinham um nvel superior

    de estudos.

    nome do seu terreiro. Dessa forma, alguns dos nomes citados no texto so fictcios, enquanto outros so verdadeiros, segundo a preferncia da pessoa. 35 Vale a pena observar que na transcrio das entrevistas, optei por preservar o estilo narrativo das pessoas, acrescentando pontuao, mas editando apenas algumas repeties que surgem naturalmente em depoimentos orais mas que so desnecessrias na escrita. De forma igual, na citao de fontes histricas, optei por no atualizar a ortografia da poca.

  • 21

    1

    O QUADRO EPISTEMOLGICO:

    A TRANSMISSO DO SABER E O SEGREDO

    No discurso sobre o candombl, fala-se de uma resistncia generalizada no uso do

    registro escrito e fotogrfico nos terreiros. Tal resistncia considerada um dos motivos da

    preservao das tradies afro-brasileiras ao longo da sua histria, num contexto social

    opressivo 36. Assim, como ponto de partida para a minha anlise de como o discurso

    etnogrfico percebido nos terreiros, examinarei, neste primeiro captulo, os pressupostos

    epistemolgicos da transmisso tradicional do saber religioso nos terreiros, a chamada

    tradio oral, e os problemas que a escrita apresenta para este processo.

    O conflito atribudo relao entre a oralidade e a escrita no candombl parece

    remeter a duas questes bsicas, porm complexas. Uma o fato de os discursos escrito e

    fotogrfico possibilitarem uma aprendizagem que descontextualizada e disembodied 37,

    atravs da qual, como Susan Sontag 38 observa, o que se sabe pode ser separado do que se

    vivencia. Dentro do candombl, a aquisio do saber religioso concebida como um processo

    multissensorial, experiencial, embodied, no qual os canais analticos, verbais, e at visuais,

    so considerados no necessariamente inapropriados, mas inadequados de per se, para

    representarem a riqueza e a complexidade da experincia religiosa. Textos escritos e

    fotografias, por serem passveis de serem utilizados fora de contexto e por comunicarem seu

    contedo exclusivamente atravs dos domnios verbais ou visuais, respectivamente, so

    considerados substitutos empobrecidos da experincia direta.

    36 Ver, entre outros, Elbein dos Santos, op. cit.; OLIVEIRA, Maria Ins Cortes de, O liberto: seu mundo e os outros. Salvador: Corrupio, 1988; VERGER, Pierre, Os libertos: sete caminhos na liberdade de escravos da Bahia no sculo XIX. Salvador: Corrupio, 1992. 37 Seguindo a literatura antropolgica brasileira, os termos ingleses disembodied, embodied e embodiment sero mantidos, por no haver termos no portugus que comuniquem o sentido adequado. Uma possibilidade seria desincorporado, incorporado e incorporao, mas, no contexto do candombl, isto pode ser confundido com a incorporao do orix. Ao examinar a importncia do conceito de embodiment para a antropologia, Csordas (1990) analisa a idea da percepo proposta pelo fenomenologista Maurice Merleau-Ponty, e a noo de prtica, elaborada pelo socilogo Pierre Bourdieu. 38 SONTAG, Susan, Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Editora Arbor, 1983.

  • 22

    Outra preocupao com os discursos escrito e visual sobre o candombl a de que eles

    transgridem os espaos discursivos de um corpo secreto de conhecimento, cuja circulao

    restrita em vrios nveis e que s vezes chamado de fundamento, s vezes de segredo. O

    argumento usado aqui que o controle sobre o acesso ao segredo est relacionado a trs

    fatores: a hierarquia interna formal, a concorrncia interna pelo poder e o contexto social

    externo. A ltima destas faces do segredo talvez seja mais intensa no caso da fotografia,

    precisamente porque, sendo uma forma visual de discurso, ela pode ultrapassar o raciocnio

    verbal/analtico, provocando reaes negativas quando a foto vista por um espectador alheio

    ao culto. Isso aconteceu com as fotografias feitas por Jos Medeiros e publicadas pela revista

    O Cruzeiro em 15 de setembro de 1951 na reportagem intitulada As Noivas dos Deuses

    Sanguinrios, com texto de Arlindo Silva, que descreve os rituais de iniciao. O texto veio

    acompanhado por dezenas de fotos que focalizam o derramamento de sangue animal sobre o

    corpo humano. Como veremos mais adiante neste captulo, a publicao dessas imagens foi

    percebida nos terreiros como incentivando o preconceito contra o candombl.

    O caso das fotos publicadas em O Cruzeiro ilustra que o segredo prejudicado no

    apenas pela mera existncia de formas escritas ou visuais de per se, nem ainda pelo fato de

    estas conterem, e contarem, conhecimento considerado secreto, mas pela maneira como este

    discurso circula. No simplesmente o fato de certa informao ter sido escrita ou

    fotografada, mas o fato de o terreiro perder o controle sobre quem tem acesso a ela. O

    problema da perda de controle intensificado quando a informao entra no mbito pblico

    atravs de publicao.

  • 23

    2

    OS ENTRELUGARES DA ORALIDADE:

    USOS MICOS DA ESCRITA E DA FOTOGRAFIA

    Talvez seja desnecessrio dizer que o discurso etnogrfico sobre o candombl, tanto

    escrito quanto visual, uma forma narrativa especfica, entre muitas outras que existem, ns

    em uma rede, no dizer de Foucault. Menciono isto aqui, entretanto, para destacar um ponto

    importante: as percepes dos textos etnogrficos e da fotografia etnogrfica, nos terreiros,

    parecem estar relacionadas com, e informadas por, outras prticas discursivas, micas e mais

    antigas, envolvendo a escrita e as imagens fotogrficas. Tanto a escrita como a fotografia tm

    usos no candombl que so visveis e publicamente reconhecidos pelos terreiros, porm pouco

    estudados por pesquisadores. E ambos os gneros discursivos tm seus usos privados, que so

    velados em segredo.

    Falar em usos antigos da escrita nos terreiros pode soar um pouco estranho, pois,

    como vimos no captulo anterior, o processo de adquirir saber religioso, no candombl

    compreendido mais como um processo multissensorial do que analtico-verbal. Nos estudos

    sobre o candombl, a idia segundo a qual o saber religioso preservado na memria coletiva

    dos terreiros e transmitida oralmente (ou atravs de aprendizagem experiencial), dos mais

    velhos para os mais novos, tem sido paradigmtica. Apesar de a maioria dos estudos mais

    antigos 39 fazer referncia ao uso da escrita nos terreiros, este assunto no foi abordado em

    detalhe. curioso observar que a tradio oral tenha permanecido como um conceito

    onisciente, mas raramente explicitado, at os anos 70, quando comea a ser abordado

    diretamente. Num artigo sobre a aprendizagem do conhecimento do If e das folhas entre os

    iorub na frica, Verger (1972, p. 5, traduo minha) sustentou que um ensinamento

    39 RODRIGUES, Nina, Os africanos no Brasil. 7a ed. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1982 [1906,1932]; _______. O animismo fetichista dos negros bahianos, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, Bibliotheca de Divulgao Scientfica, vol II, 1935 [1900]; QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Recife: Fundao Joaquim Nabuco Editora Massangana. Srie Abolio, 20, 1938[1917]; PIERSON, Donald, Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato racial, So Paulo: Companhia Editora Nacional, Brasiliana vol. 241, 1971; LANDES, Ruth, A Cidade das Mulheres, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002; CARNEIRO, Edison, Candombles da Bahia, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1991a.

  • 24

    aprendido atravs de um livro... sem valor na civilizao oral, pois falta um elemento

    essencial: a fora da palavra pronunciada, enquanto Juana Elbein (1975, p. 51), concordando,

    apontava para isso como o motivo para a inexistncia de uma escrita de origem nag .

    A prevalncia de certos pressupostos sobre a oralidade nos estudos sobre o candombl

    no surpreendente. Na teoria social que norteava o projeto antropolgico, a diversidade

    cultural humana era vista de uma perspectiva evolucionista, que considerava sociedades

    letradas como mais avanadas do que os grupos onde a oralidade prevalece 40. A falta da

    escrita foi pensada como uma das caractersticas identificantes que separavam os chamados

    primitivos, que a antropologia adotou como seu objeto, dos civilizados, o objeto natural

    das outras cincias humanas 41. Como Fabian defende, a idia de que culturas onde a escrita

    era desconhecida eram o objeto natural da antropologia foi acompanhada pelo pressuposto

    correspondente de que a falta de um registro escrito tornava impossvel uma perspectiva

    histrica 42. Isto gerou uma tendncia de se considerar a cultura estudada como se fosse

    congelada no tempo, focalizando a estabilidade do presente e desconsiderando a possibilidade

    de mudanas atravs do tempo. Esse desinteresse por perspectivas diacrnicas pode ter sido

    outro motivo para a falta de ateno, nos estudos sobre o candombl, para a transmisso do

    saber religioso de uma gerao para a outra.

    Um exemplo interessante da tendncia etnogrfica a desconhecer o uso da escrita nos

    terreiros de candombl surge no livro de Ruth Landes, Cidade das Mulheres (2002). Na

    dcada de 30, Landes registrou o uso da escrita em diversas ocasies em relao sacerdotisa

    Sabina, da nao de caboclo. A primeira meno de Sabina ocorre quando Landes e Edison

    Carneiro a encontram na rua e Sabina pede que ele coloque uma notcia no jornal sobre o

    ritual de presentes para Janana que est para acontecer no seu terreiro 43. Ao assistir ao ritual

    de oferenda, Landes observa cartas para a cabocla sendo colocadas nos balaios, entre os

    sabonetes, flores e outras coisas a serem levadas para o mar (op. cit., p. 215). Em outro

    encontro com Landes (op. cit., p. 230), Sabina fala com orgulho do bom desempenho da sua

    40 Ver Clifford e Marcus op. cit., para uma anlise da relao da viso social da antropologia com o projeto da colonizao europia. 41 Ver Lvi-Strauss (1955 e 1963); Derrida, 1976; e Foucault, 1970, entre outros, para perspectivas interessantes sobre o assunto. 42 FABIAN, Johannes. Time and the other: how anthropology makes its object. New York: Columbia University Press, 1983. 43 LANDES, op. cit., p. 213)

  • 25

    filha na escrita, mostrando para a pesquisadora os cadernos nos quais a menina tomara nota

    de muitos cnticos de candombl.

    Na narrativa de Landes, Sabina quase a nica pessoa dos terreiros a ser representada

    como algum que utiliza a escrita nos rituais. Sabina tambm retratada como no-

    tradicional, ocidentalizada, e com muita pouca credibilidade entre os grandes nomes do povo-

    de-santo: Me Menininha a ridiculariza pelo fato de ela no ter sido feita, e Martiniano do

    Bomfim a acusa de simular o transe. A prpria Landes no esconde que considera Sabina uma

    interesseira com afetaes burguesas, criticando-a por andar nas ruas vestidas em roupas da

    moda corrente, em vez de utilizar as saias tradicionais dos terreiros. De certa forma, Sabina

    torna-se a vil de Cidade das Mulheres, e a escrita, por ser associada exclusivamente a ela,

    acaba sendo vinculada tambm a suas outras caractersticas duvidosas: a perda da

    autenticidade africana e a degradao ritual, simbolizadas pelas prticas ligadas aos caboclos,

    a ambio, e o charlatanismo.

    Deixando de lado os julgamentos de valor da autora quanto legitimidade de Sabina,

    seus usos da escrita revelam vrias coisas importantes para a nossa discusso. Em primeiro

    lugar, vemos que a me-de-santo est ciente de que seu contato com Carneiro como

    pesquisador e tambm como editor de uma recente srie de artigos jornalsticos promovendo

    uma viso mais positiva do candombl 44 podia ser til para aumentar o renome do seu

    terreiro. Em segundo lugar, Landes nos deixa observar o uso ritual da escrita como um meio

    de comunicar-se com entidades espirituais (no caso, caboclos). Finalmente, vemos a escrita

    sendo utilizada como um mecanismo para a preservao e a transmisso do saber religioso.

    Se, no texto de Landes, a deslegitimizao do uso da escrita to evidente, isto

    decorre principalmente do fato de, diferentemente de tantos outros pesquisadores, ela haver

    tido a originalidade de levantar explicitamente um assunto que outros estudiosos

    cuidadosamente evitaram abordar. Na maioria dos estudos clssicos sobre o candombl, a

    questo dos usos da escrita nos terreiros mais notvel pelo grande silncio que rodeia o

    assunto. Desde os anos 80, entretanto, Jlio Braga tem sido um dos poucos estudiosos a

    chamar a ateno para as maneiras pelas quais a tradio oral do candombl coexiste com o

    uso da escrita. A lacuna, nos estudos do candombl, em relao aos pequenos mas reais usos

    44 Esta srie de artigos, publicada em O Estado da Bahia em 1936, ser analisada no Captulo 3.

  • 26

    da escrita nos terreiros, diz ele, acaba apagando a importncia da escrita, em prol de enfatizar

    a oralidade como o nico meio para a transmisso do saber religioso 45. O autor (2002, p. 88)

    ainda sugere que tal perspectiva parece vir de fora para dentro, no sentido de que, para o

    povo-de-santo, qualquer recurso vlido para ampliar o conhecimento do universo mgico-

    religioso, mesmo que se manifestem contrariamente a tais atitudes. Contudo, importante

    distinguir entre, por um lado, os usos da escrita que so considerados pblicos nos terreiros

    por no transgredirem o espao discursivo do segredo, e, por outro lado, outros usos que so

    guardados em silncio.

    Minha deciso, na primeira fase deste estudo, de estender a abordagem do discurso

    etnogrfico sobre o candombl para alm das narrativas escritas, englobando tambm a

    fotografia como elemento de anlise, acabou sendo esclarecedora para a compreenso do

    problema do discurso escrito, pois descobri que h muita imbricao entre as maneiras pelas

    quais as duas formas discursivas so percebidas nos terreiros. A fotografia, como a escrita,

    tem usos pblicos. E, como a escrita, ela tambm serve a prticas extremamente privadas, de

    difcil acesso para mim enquanto pesquisadora no-iniciada. Os limites entre o permissvel e o

    proibido, no caso da fotografia, diferentemente do caso da escrita, surgem constantemente

    durante os rituais pblicos, pois nos grandes terreiros tradicionais, a fascinao dos turistas

    em tirar fotos das festas e a luta dos ogs para que isto no acontea j praticamente fazem

    parte do ritual, enquanto que, em outros terreiros, a documentao fotogrfica est cada vez

    mais na moda. Analisar os motivos desta contradio aparente me foi extremamente

    importante para poder dissociar a questo da representao em si, da questo do controle

    sobre a representao, e para apontar para as implicaes disto em relao escrita.

    Neste captulo, fao uma tentativa de catalogar e classificar as maneiras, s vezes quase

    imperceptveis, nas quais a escrita e a fotografia coexistem com a oralidade no candombl

    contemporneo, examinando tambm o registro histrico para a meno destas formas

    discursivas. Sugiro que os usos micos da escrita e da fotografia partem de uma viso de

    sua utilizao como invocaes dos poderes das deidades e outras entidades espirituais, um

    conceito que parece ter um paralelo na percepo da utilidade do discurso etnogrfico como

    um meio para catalisar a proteo de pessoas e entidades de poder na sociedade baiana.

    45 BRAGA, op. cit., p. 130

  • 27

    3

    A CONSTRUO DO DISCURSO SOBRE O CANDOMBL:

    MARTINIANO DO BOMFIM E A ASCENSO ETNOGRFICA DO OP

    AFONJ

    Este captulo consiste em uma anlise histrica da relao entre os terreiros e a

    academia durante as primeiras cinco dcadas do discurso sobre o candombl (1890-1940).

    Mostra-se o desenvolvimento de uma relao privilegiada entre a academia e os terreiros da

    nao ktu ou nag, que existe at hoje. Aponto tambm para um certo estreitamento desta

    relao, a partir do final da dcada de 30, para favorecer especialmente o Il Ax Op

    Afonj, como o lugar preferido para pesquisas sobre o candombl. Considero que o perodo

    que abordarei aqui, quando o discurso etnogrfico sobre o candombl tomou forma e se

    consolidou, atravs das obras ainda referenciais de Nina Rodrigues, Manuel Querino, Arthur

    Ramos, Edison Carneiro, Donald Pierson e Ruth Landes, pode ser considerado como gerador

    de um paradigma de pesquisa, tanto para os estudiosos quanto para os terreiros. As seqelas

    das relaes formadas durante esta poca so visveis at hoje na dinmica entre

    pesquisadores e pessoas de candombl, nos laos singulares entre o Op Afonj e os

    intelectuais, dos quais o recente ttulo de Doutora Honoris Causa, conferido ialorix atual

    do terreiro, Me Stella, pela Universidade Federal da Bahia, torna-se um dos exemplos mais

    recentes.

    O captulo visa a esclarecer os antecedentes das relaes observadas hoje entre os

    terreiros e os estudiosos, com o objetivo de contextualizar os usos contemporneos do

    discurso etnogrfico. Espero que, por demonstrar os laos pessoais entre alguns terreiros e os

    pesquisadores, este captulo tambm ajude a esclarecer as percepes e os usos do discurso

    etnogrfico por diversos terreiros: desde as casas famosas da nao ktu, prestigiadas por sua

    antigidade, pela renovao peridica dos seus laos com a frica e por suas reivindicaes

    nobreza dos seus fundadores e seus descendentes; aos pequenos terreiros, a outras naes

    menosprezadas por no serem consideradas suficientemente puras ou antigas para justificar a

  • 28

    realizao de pesquisas, ou a ainda outras, que, apesar de serem de raiz ktu, de linhagens

    tambm antigas, pelo fato de no remeteram casa de I Nass, foram ignoradas, ou quase

    isso, aps a consolidao do discurso etnogrfico sobre o candombl.

    Para mostrar o desdobramento desta situao, examinarei as primeiras cinco dcadas

    do discurso etnogrfico sobre o candombl, dividindo-o em duas etapas. Considero que a

    primeira se inicia com as pesquisas de Nina Rodrigues e termina com a morte de Manuel

    Querino na dcada de 1920. Nesta fase, o discurso sobre o candombl privilegiou o Gantois.

    A segunda etapa de pesquisa sobre o candombl comeou na dcada de 1930, com a re-edio

    dos estudos de Rodrigues e Querino, e a realizao de novos estudos por pesquisadores como

    Arthur Ramos e os jovens intelectuais da chamada Academia dos Rebeldes, entre eles,

    Edison Carneiro e Jorge Amado.

    Na formao da dinmica entre os pesquisadores e os terreiros, a personalidade

    carismtica de um babala, hoje considerado lendrio, Martiniano Eliseu do Bomfim, parece

    ter exercido um papel crescente nestas duas primeiras etapas. Na segunda etapa, a amizade

    entre Martiniano e Edison Carneiro impulsionou um reconhecimento, sobretudo no terreiro ao

    qual Martiniano era vinculado, o Op Afonj, da utilidade do discurso etnogrfico como uma

    estratgia de publicidade, incentivando a autoproduo de discurso sobre o candombl pelo

    povo-de-santo, em contraste com a posio de objeto at ento ocupada pelas pessoas dos

    terreiros nas etnografias sobre o tema.

    Vale mencionar que na minha releitura dos textos das primeiras dcadas de pesquisa

    sobre o candombl, em busca das relaes pessoais entre pesquisador e pesquisado, o prprio

    estilo narrativo deste discurso foi um grande desafio. No final do sculo XIX e o incio do

    sculo XX, as narrativas antropolgicas, no Brasil como em outras partes do mundo,

    empregavam um estilo positivista, baseado nos gneros narrativos das cincias fsicas, muitas

    vezes no constando no texto a identidade das pessoas que forneceram as informaes ao

    pesquisador 46. Desde a poca de Nina Rodrigues, as pessoas entrevistadas pelos

    pesquisadores raramente apareciam no texto, e quando houve uma referncia especfica, o

    informante freqentemente no foi identificado por nome ou pelo seu terreiro, sendo,

  • 29

    portanto, tido como representativa de candombl como um todo, como se fosse uma entidade

    homognea, com uma nica perspectiva doutrinria, aceita como dogma 47. O resultado deste

    tipo de abordagem que as opinies e reaes quanto ao processo da pesquisa por parte das

    pessoas cujos depoimentos fornecem informaes para a mesma quase no eram registradas

    de uma maneira reconhecvel, por no serem consideradas importantes as vozes dos ditos

    sujeitos etnogrficos.

    Contudo, apesar da falta de uma abordagem explcita sobre como as pessoas de

    candombl percebiam a etnografia sobre o seu universo, uma leitura cuidadosa revela a

    existncia de referncias anedotais sobre este assunto, em comentrios passageiros ou nas

    entrelinhas, o que possibilita uma tentativa de uma abordagem arqueolgica do importante

    papel das relaes inter-pessoais e dos pressupostos tericos na construo do discurso sobre

    o candombl.

    46 Ver Clifford e Marcus (1986), para perspectivas sobre as estratgias narrativas do discurso etnogrfico. 47 James Clifford (1986, 1988), que analisou bastante esta poca do discurso etnogrfico, comenta que este estilo procurou apagar os aspectos subjetivos da relao entre o pesquisador e o objeto da pesquisa, para fortalecer a suposta objetividade do trabalho.

  • 30

    4

    PERCEPES CONTEMPORNEAS LEITORES E ESCRITORES NOS TERREIROS

    No primeiro captulo desta tese, mostrei que os fundamentos religiosos do candombl

    so de acesso restrito, o qual repercute na hierarquia interna dos terreiros. Este sistema

    epistemolgico fundamentado num conceito do aprendizado que conceptualiza o saber

    como no apenas analtico-verbal, mas holstico, adquirido atravs do envolvimento de todos

    os sentidos e do corpo. Nesse paradigma epistemolgico, o uso do discurso escrito e visual

    como fontes do saber religioso apresentam certos problemas. Entretanto, tambm existem

    mecanismos oficiais e no-oficiais que entram na transmisso do saber, alterando, s vezes, a

    regra da transmisso dos fundamentos de acordo com a hierarquia religiosa.

    No segundo captulo, demonstrei que apesar de uma resistncia a priori ao discurso

    escrito e fotogrfico enquanto substituto para a aprendizagem face-a-face e multissensorial

    [embodied] de fundamentos religiosos, os terreiros tambm tm uma longa histria de utilizar

    a escrita, a qual abrange usos pblicos e privados. A intensidade do segredo que rodeia o

    caderno de fundamento surge da sua importncia como registro do saber religioso e, portanto,

    da sua possibilidade de tornar-se, atravs da circulao no-controlada, um mecanismo para

    contrariar a hierarquia religiosa na aquisio do saber religioso.

    No Captulo 3, mostrei que a etnografia do candombl, como uma forma discursiva

    que pblica, foi adotada por alguns terreiros por sua utilidade em assegurar e consolidar

    prestgio perante a sociedade externa, til no processo de legimizao social das religies

    afro-brasileiras. Vimos que tal estratgia, que distinta da estratgia de us-lo como fonte de

    saber ritual, tem sido empregada com mais sucesso pelo Il Ax Op Afonj. Por outro lado,

    apesar das vantagens especficas de aproximar-se do discurso etnogrfico, a idia de que a

    circulao de discurso sobre o candombl podia ser positivo para os terreiros apresentava

    conflitos para o povo-de-santo. Como vimos, o conceito do segredo no candombl

    influenciado por um conjunto complexo de fatores, desde aspectos estritamente religiosos,

  • 31

    independentes da hierrquia e do contexto social, at aspectos do segredo que funcionavam

    como mecanismo de auto-defesa diante um contexto social extremamente hostil s religies

    afro-brasileiras. Ao representar o candombl para um pblico fora dos terreiros, o discurso

    sobre o candombl tanto etnogrfico quanto jornalstico tambm atingiu estes aspectos

    do segredo. Neste sentido, a idia de que a visibilidade social que o discurso sobre o

    candombl trouxe para os terreiros podia ser algo positivo representou um divisor de guas,

    uma ruptura com a antiga estratgia para auto-defesa na qual a sobrevivncia se dava, de

    modo geral, atravs da invisibilidade.

    Este captulo final servir como complemento para a perspectiva histrica sobre o

    discurso etnogrfico que comecei no captulo anterior. Aqui, examinarei perspectivas

    contemporneas. Mostrarei que, apesar das objees oficiais circulao do discurso escrito

    e fotogrfico sobre o candombl, enquanto fontes de fundamentos de saber religioso, existe

    tambm uma ambivalncia, pois so cada vez mais presentes e, simultaneamente, contestadas,

    no cotidiano dos terreiros. Ao analisar essa dinmica, retomarei tambm algumas questes

    levantadas na discusso sobre a hierarquia religiosa e o segredo, mostrando que h uma

    diversidade de idias nos terreiros sobre o que que constitui, especificamente, o corpo

    secreto do saber religioso, e em que medida a escrita e a fotografia so adequadas para

    registrar o saber religioso. Tal heterogeneidade remete a um conjunto complexo de fatores:

    diferenas de nao, de senioridade, do prestgio da casa, e da trajetria do indivduo de

    envolvimento no universo scio-cultural dos terreiros, entre outros.

    Nesse captulo, compararei tambm as percepes do povo-de-santo sobre as

    narrativas dos estudiosos com os textos produzidos por sacerdotes e dirigidos a outros

    religiosos, os quais tm ganhado uma visibilidade crescente na ltima dcada, na forma de

    livros, revistas, e sites da Internet 48. Alm de examinar o discurso sobre o candombl desde a

    48 A minha discusso ser limitada a livros e revistas comercialmente disponveis (principalmente os da editora Pallas, do Rio e a Minuano, de So Paulo), abrangendo tambm, a em medida menor, sites da Internet. Esse recorte relacionado a questes de distribuio e acesso. Sem dvida, h uma outra produo textual sobre o candombl que extremamente significativa, em termos de volume, na forma de teses e dissertaes que no chegam a ser publicadas. Entretanto, a circulao desses textos nos terreiros extremamente limitada. Apenas uma das pessoas que entrevistei mencionou ter tido a oportunidade de ler uma tese no-publicada. Acesso a livros e revistas comercialmente publicados muito mais fcil; entretanto, o preo de livros ainda limita este acesso para muitas pessoas de candombl. Os textos escritos por estudiosos tendem a ser caros, o que serve para definir seu pblico. Por exemplo, Orixs, de Pierre Verger, vendido por R$ 120,00. As fotografias so difceis de xerocar em preto e branco, e xerocar a cores sai to caro como comprar o livro original. Por outro lado, h outros livros, como Os Nag e a Morte, que so mais baratos (R$ 45,00) mas ainda caro para a maioria das pessoas. Textos escritos por religiosos, por outro lado, raramente custam mais de R$ 25, e podem ser xerocados

  • 32

    perspectiva dos leitores desses textos, tambm prestarei ateno produo de textos por

    religiosos, j que a produo de textos sugere um nvel de engajamento como leitor, e tambm

    porque as caractersticas desses textos podem ser interpretadas como indicadores da viso dos

    seus autores em relao ao discurso sobre o candombl.

    por muito menos. De fato, fotocpias encadernadas parecem circular nos terreiros to freqentemente como livros originais. Em termos da Internet, a possibilidade de utiliz-la para obter saber religioso est aumentando cada vez mais, de acordo com a exploso de lugares para acessar a Internet na cidade, um fenmeno que tornou-se significativo apenas no ltimo ano desta pesquisa, quando a maioria das entrevistas j tinham sido realizadas e eu estava na fase de elaborao. Entretanto, acredito que, at a concluso desta pesquisa, ainda tenha sido uma pequena minoria do povo-de-santo que tem acesso regular Internet.

  • 33

    CONCLUSO

    Nesta tese, examinei vrias dimenses relacionadas com as percepes e os usos do

    discurso etnogrfico, tanto escrito quanto fotogrfico, nos terreiros de Salvador.

    Diferentemente das discusses anteriores sobre essa questo, as quais focalizaram a influncia

    da etnografia sobre a re-africanizao das prticas rituais, procurei compreender o papel da

    etnografia em relao a um conjunto de prticas micas nos terreiros envolvendo a escrita e a

    fotografia, examinando tambm sua relevncia para a transmisso do saber religioso e para a

    distribuio hierrquica desse saber. Uma explorao do processo de aproximao entre os

    terreiros e a etnografia nas primeiras dcadas do sculo XX foi complementada por uma

    anlise da relao contempornea dos terreiros com o discurso etnogrfico e pra-etnogrfico

    sobre a religiosidade afro-brasileira.

    Estudos sobre o candombl em So Paulo e no Rio de Janeiro, como os de Silva 49 e

    Capone 50 sugerem que os sacerdotes do Sudeste consideram que a etnografia fornece

    informaes importantes para o processo de re-africanizao ritual, tendo, assim, uma

    relevncia imediata para a prtica religiosa. Contudo, o presente estudo mostra que no

    contexto de Salvador a etnografia exerce um papel diferente. Para as pessoas que entrevistei,

    ser consciente do discurso etnogrfico, perceb-lo como valioso, raramente decorria de uma

    idia de que ele fosse til para a sua praxe ritual. Foi comum, entretanto, a percepo de que a

    etnografia preenche uma funo importante como formador de opinio pblica, servindo de

    ponte no estabelecimento e no fortalecimento de laos entre os terreiros e a sociedade.

    Ao interpretar-se a aparente disparidade regional na relevncia da etnografia para os

    terreiros, interessante observar-se tambm que h um agudo contraste entre o grande volume

    de produo textual de sacerdotes do Sudeste tanto na forma de livros e revistas quanto em

    termos de sites da Internet e o nmero reduzido de sacerdotes/autores na Bahia. Tais

    diferenas regionais sugerem que as particularidades especficas do contexto local exercem

    uma influncia importante e que deveriam ser consideradas cuidadosamente em futuras

    49 SILVA, Vagner Gonalves, da, op. cit.

  • 34

    anlises dos usos da escrita, de modo geral, e da etnografia, especificamente, no universo

    religioso afro-brasileiro.

    Se o discurso etnogrfico percebido hoje nos terreiros de Salvador como um

    importante mecanismo na legitimizao social do candombl, os depoimentos de sacerdotes

    registrados nos anos 30, analisados em Captulo 3, evidenciam uma ambivalncia marcada em

    relao etnografia, a qual reflete a realidade social vivenciada pelos terreiros nessa poca.

    Na dcada de 30, a perseguio policial ainda fazia parte do cotidiano do candombl, e a

    segurana fsica dos membros do culto freqentemente dependia da sua capacidade de se

    manterem invisveis s autoridades. Nesse sentido, considerei particularmente significativa a

    perspectiva da idosa ebmim para quem o poder mstico de envultamento estava ligado

    necessidade de fugir da perseguio policial. A sugesto dessa senhora, de que esse

    conhecimento morreu junto com os grandes sacerdotes de outrora, apresenta-se como

    metfora para a ruptura entre o passado dos terreiros, marcado pela perseguio, a

    marginalizao social e a imprescindibilidade do sigilo, e a sua contemporaneidade, na qual a

    insero do candombl na esfera pblica cada vez mais evidente, atravs dos tombamentos

    federais e estaduais e das homenagens prestadas a sacerdotes por instituies de renome 51.

    Essa ruptura entre a invisibilidade e a visibilidade social dos terreiros coincide com a

    sua aproximao ao discurso etnogrfico. Nesse processo, a etnografia, como mecanismo para

    a legitimizao do candombl atravs da visibilidade social, exerceu uma funo semelhante a

    outras formas de produo cultural, tais como os romances de Jorge Amado e a obra de

    Caryb, tambm importantes na construo da imagem pblica dos terreiros. Neste processo,

    o Op Afonj, devido aos laos com intelectuais e artistas (entre eles, Amado e Caryb)

    consolidados na poca de Me Senhora, foi particularmente favorecido. Aps a morte de

    Senhora em meados da dcada de 60, o Gantois, liderado ento por Me Menininha, comeou

    a se firmar tambm nessa rea, atravs de vnculos com msicos como Dorival Caymmi,

    Maria Bethnia e Caetano Veloso. Contudo, a relao do Op Afonj com o discurso

    etnogrfico continua a ser nica, atravs da produo textual de Mestre Didi e Me Stella, e

    da realizao anual do congresso reunindo sacerdotes e estudiosos, o Alaiand Xir.

    50 CAPONE, Stefania, 1999b. 51 A Casa Branca, o Gantois, o Op Afonj, o Alaketu e o Bate Folha foram tombados pelo IPAC e pelo IPHAN; enquanto o Pilo de Prata , o Terreiro de So Jorge e o Oxumar so tombados pelo IPAC. Em 2004, Mestre Didi foi homeageado durante uma semana de atividades que incluiram solenidades na Universidade Federal da

  • 35

    Paralelamente ao aumento da visibilidade social dos terreiros, houve tambm uma re-

    configurao do espao discursivo do segredo. Johnson 52 , cujo trabalho de campo foi

    realizado no Rio de Janeiro, considera que a entrada do candombl na esfera pblica eliminou

    o segredo, deixando no seu lugar apenas o secretismo: um discurso sobre segredos que na

    realidade no existem mais. Contudo, os depoimentos das pessoas entrevistadas neste estudo

    sugerem que o conceito do segredo ainda continua a ser importante nos terreiros. Em

    primeiro lugar, h o conceito de que o saber ritual, a priori, deveria ser restrito a poucas

    pessoas e no divulgado livremente para qualquer um. Entretanto, ao longo do sculo XX,

    houve uma abertura nas atitudes sociais em relao ao candombl, a qual reduziu a

    necessidade de se utilizar o segredo como mecanismo de autoproteo contra as autoridades.

    No obstante, a importncia do segredo, no que tange s exigncias da distribuio

    hierrquica do saber dentro do terreiro, e a concorrncia para o prestgio entre os terreiros,

    continua. Nessa corrida interna, na qual o saber percebido como significante do poder, a

    relevncia do segredo tambm continua.

    Outra questo importante que surgiu atravs deste estudo a necessidade de re-avaliar

    o pensamento acadmico em relao oralidade nos terreiros. Ao analisar as percepes de

    pessoas iniciadas sobre a aquisio do saber religioso do candombl, mostrei que a

    transmisso do saber nos terreiros pode ser mais bem descrito como uma tradio

    multissensorial e experiencial [embodied] do que oral. Levantei outro questionamento em

    relao tradio oral, demonstrando que h uma variedade de usos da escrita e da

    fotografia nos terreiros. Apesar da escassez de registros dessas prticas na literatura

    etnogrfica, a pouca evidncia que existe sugere que a escrita, de uma forma ou outra, tem

    sido utilizada desde o sculo XIX. Dessa forma, considero importante a observao de Jlio

    Braga, de que a coexistncia da oralidade com prticas envolvendo a escrita deveria ser

    compreendida no como uma deturpao da tradio afro-brasileira, mas sim como um

    importante instrumento de suporte que constitui uma parte integral daquela tradio.53 Assim,

    a anlise da aproximao dos terreiros ao discurso etnogrfico, como uma estratgia para a

    autoproteo no aiy, deveria levar em conta a funo semelhante de certas prticas

    discursivas nos terreiros, nas quais a escrita utilizada para chamar a proteo de entidades

    Bahia e na Cmara de Vereadores da Cidade do Salvador, e uma me-de-santo de Cachoeira, Gaiaku Luisa, tambm foi homenageada. Em maio de 2005, Me Stella recebeu o ttulo de Doutora Honoris Causa. 52 JOHNSON, Paul Christopher. Secrets, gossip, and gods: the transformation of Brazilian candombl. New York e London: Oxford University Press, 2002. 53 Jlio Braga, informao verbal, em 10 de maio de 2002.

  • 36

    do orun. Isto no sugerir que a etnografia seja uma rplica contempornea da invocao:

    simplesmente quero observar que tal uso do discurso etnogrfico no deveria ser pensado

    como apenas uma intruso ocidental na pureza oral das prticas discursivas africanas, e sim

    como uma re-configurao de prticas j existentes.

    A construo etnogrfica da oralidade dos terreiros como oposta ao uso da escrita

    desestabiliza-se mais ainda quando percebemos que o terreiro mais elogiado na etnografia

    como o modelo da autenticidade africana, o Il Ax Op Afonj, tem uma das histrias mais

    longas em termos de seu envolvimento com a escrita. Na poca da sua fundao, no incio do

    sculo XX, o terreiro tinha laos estreitos com a famlia Bambox 54, cujos membros incluiam

    pessoas envolvidas com a escrita. Posteriormente, o Op Afonj esteve vinculado a outros

    indivduos letrados, como o babala Martiniano do Bomfim, que escrevia em trs lnguas e

    foi o tradutor de Nina Rodrigues 55 e Agenor Miranda Rocha, filho de uma famlia portuguesa

    da classe mdia, que tinha nvel superior de escolaridade 56 . A relao do Op Afonj com a

    escrita tambm se destaca pelo fato de o uso do caderno de fundamento, por vrios indivduos

    associados a essa casa, ser documentado desde a segunda dcada do sculo XX. No

    supreendente, p