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Cidadania Teólogo: um ser quase impossível - Leonardo Boff Segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011 - 21h10min Muitos estranham o fato de que, sendo teólogo e filósofo de formação, me meta em assuntos, alheios a estas disciplinas como a ecologia, a política, o aquecimento global e outros. Eu sempre respondo: faço, sim, teologia pura, mas me ocupo também de outros temas exatamente porque sou teólogo. A tarefa do teólogo, já ensinava o maior deles, Tomás de Aquino, na primeira questão da Suma Teológica é: estudar Deus e sua revelação e, em seguida, todas as demais coisas "à luz de Deus" (sub ratione Dei), pois Ele é o princípio e o fim de tudo. Portanto, cabe à teologia ocupar-se também de outras coisas que não Deus, desde que se faça "à luz de Deus". Falar de Deus e ainda das coisas é uma tarefa quase irrealizável. A primeira: como falar de Deus se Ele não cabe em nenhum dicionário? A segunda, como refletir sobre todas as demais coisas, se os saberes sobre elas são tantos que ninguém individualmente pode dominá-los? Logicamente, não se trata de falar de economia com um economista ou de política como um político. Mas falar de tais matérias na perspectiva de Deus, o que pressupõe conhecer previamente estas realidades de forma critica e não ingênua, respeitando sua autonomia e acolhendo seus resultados mais seguros. Somente depois deste árduo labor, pode o teólogo se perguntar como elas ficam quando confrontadas com Deus? Como se encaixam numa visão mais transcendente da vida e da história? Fazer teologia não é uma tarefa como qualquer outra como ver um filme ou ir ao teatro. É coisa seríssima, pois se trabalha com a categoria"Deus" que não é um objeto tangível como todos os demais. Por isso, é destituída de qualquer sentido, a busca da partícula "Deus" nos confins da matéria e no interior do "Campo Higgs". Isso suporia que Deus seria parte do mundo. Desse Deus eu sou ateu. Ele seria um pedaço do mundo e não Deus. Faço minhas as palavras de um sutil teólogo franciscano, Duns Scotus (+1308) que escreveu: "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe". Quer dizer, Deus não é da ordem das coisas que podem ser encontradas e descritas. É a Precondição e o Suporte para que estas coisas existam. Sem Ele as coisas teriam ficado no nada ou voltariam ao nada. Esta é a natureza de Deus: não ser coisa, mas a Origem das coisas. Aplico a Deus como Origem aquilo que os orientais aplicam à força que permite pensar: "a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada". A Origem das coisas não pode ser coisa. Como se depreende, é muito complicado fazer teologia. Henri Lacordaire (+1861), o grande orador francês, disse com razão: "O doutor católico é um homem quase impossível: pois tem de conhecer todo o depósito da fé e os atos do Papado e ainda o que São Paulo chama de os ‘elementos do mundo', isto é tudo e tudo". Lembremos o que asseverou René Descartes (+1650) no Discurso do Método, base do saber moderno: "se eu quisesse fazer teologia, era preciso ser mais que um homem". E Erasmo de Roterdam (+1536), o grande sábio dos tempos da Reforma, observava: "existe algo de sobrehumano na profissão do teólogo". Não nos admira que Martin Heidegger tenha dito que uma filosofia que não se confrontou com as questões da teologia, não chegou plenamente ainda a si mesma. Refiro isso não como automagnificacão da teologia, mas como confissão de que sua tarefa é quase impraticável, coisa que sinto dia a dia. Logicamente, há uma teologia que não merece este nome porque é preguiçosa e renuncia a pensar Deus. Apenas pensa o que os outros pensaram ou o que o que disseram os Papas. Meu sentimento do mundo me diz que hoje a teologia enquanto teologia tem que proclamar aos gritos: temos que preservar a natureza e harmonizarmo-nos com o universo, porque eles são o grande livro que Deus nos entregou. Lá se encontra o que Ele nos quer dizer. Porque desaprendemos a ler este livro, nos deu outro, as Escrituras, cristãs e de outros povos, para que reaprendêssemos a ler o livro da natureza. Hoje ela está sendo devastada. E com isso destruímos nosso acesso à revelação de Deus. Temos, pois, que

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Outro Mundo Possível é Possível - Jung Mo Sung

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Teólogo: um ser quase impossível - Leonardo BoffSegunda-feira, 21 de fevereiro de 2011 - 21h10min

Muitos estranham o fato de que, sendo teólogo e filósofo de formação, me meta em assuntos, alheios a estas disciplinas como a ecologia, a política, o aquecimento global e outros.

Eu sempre respondo: faço, sim, teologia pura, mas me ocupo também de outros temas exatamente porque sou teólogo. A tarefa do teólogo, já ensinava o maior deles, Tomás de Aquino, na primeira questão da Suma Teológica é: estudar Deus e sua revelação e, em seguida, todas as demais coisas "à luz de Deus" (sub ratione Dei), pois Ele é o princípio e o fim de tudo.

Portanto, cabe à teologia ocupar-se também de outras coisas que não Deus, desde que se faça "à luz de Deus". Falar de Deus e ainda das coisas é uma tarefa quase irrealizável. A primeira: como falar de Deus se Ele não cabe em nenhum dicionário? A segunda, como refletir sobre todas as demais coisas, se os saberes sobre elas são tantos que ninguém individualmente pode dominá-los? Logicamente, não se trata de falar de economia com um economista ou de política como um político. Mas falar de tais matérias na perspectiva de Deus, o que pressupõe conhecer previamente estas realidades de forma critica e não ingênua, respeitando sua autonomia e acolhendo seus resultados mais seguros. Somente depois deste árduo labor, pode o teólogo se perguntar como elas ficam quando confrontadas com Deus? Como se encaixam numa visão mais transcendente da vida e da história?

Fazer teologia não é uma tarefa como qualquer outra como ver um filme ou ir ao teatro. É coisa seríssima, pois se trabalha com a categoria"Deus" que não é um objeto tangível como todos os demais. Por isso, é destituída de qualquer sentido, a busca da partícula "Deus" nos confins da matéria e no interior do "Campo Higgs". Isso suporia que Deus seria parte do mundo. Desse Deus eu sou ateu. Ele seria um pedaço do mundo e não Deus. Faço minhas as palavras de um sutil teólogo franciscano, Duns Scotus (+1308) que escreveu: "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe". Quer dizer, Deus não é da ordem das coisas que podem ser encontradas e descritas. É a Precondição e o Suporte para que estas coisas existam. Sem Ele as coisas teriam ficado no nada ou voltariam ao nada. Esta é a natureza de Deus: não ser coisa, mas a Origem das coisas.

Aplico a Deus como Origem aquilo que os orientais aplicam à força que permite pensar: "a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada". A Origem das coisas não pode ser coisa.

Como se depreende, é muito complicado fazer teologia. Henri Lacordaire (+1861), o grande orador francês, disse com razão: "O doutor católico é um homem quase impossível: pois tem de conhecer todo o depósito da fé e os atos do Papado e ainda o que São Paulo chama de os ‘elementos do mundo', isto é tudo e tudo". Lembremos o que asseverou René Descartes (+1650) no Discurso do Método, base do saber moderno: "se eu quisesse fazer teologia, era preciso ser mais que um homem". E Erasmo de Roterdam (+1536), o grande sábio dos tempos da Reforma, observava: "existe algo de sobrehumano na profissão do teólogo". Não nos admira que Martin Heidegger tenha dito que uma filosofia que não se confrontou com as questões da teologia, não chegou plenamente ainda a si mesma. Refiro isso não como automagnificacão da teologia, mas como confissão de que sua tarefa é quase impraticável, coisa que sinto dia a dia.

Logicamente, há uma teologia que não merece este nome porque é preguiçosa e renuncia a pensar Deus. Apenas pensa o que os outros pensaram ou o que o que disseram os Papas.

Meu sentimento do mundo me diz que hoje a teologia enquanto teologia tem que proclamar aos gritos: temos que preservar a natureza e harmonizarmo-nos com o universo, porque eles são o grande livro que Deus nos entregou. Lá se encontra o que Ele nos quer dizer. Porque desaprendemos a ler este livro, nos deu outro, as Escrituras, cristãs e de outros povos, para que reaprendêssemos a ler o livro da natureza. Hoje ela está sendo devastada. E com isso destruímos nosso acesso à revelação de Deus. Temos, pois, que falar da natureza e do mundo à luz de Deus e da razão. Sem a natureza e o mundo preservados, os livros sagrados perderiam seu significado que é reensinarmos a ler a natureza e o mundo. O discurso teológico tem, pois, o seu lugar junto com os demais discursos.

[Leonardo e Clodovis Boff escreveram Como fazer teologia da libertação Vozes 2010].

Fonte: ADITAL

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O sonho de Nabucodonosor - Frei BettoSegunda-feira, 14 de fevereiro de 2011 - 2h34min

Os países ricos do Ocidente, cuja democracia se baseia no poder do dinheiro, não têm princípios, apenas interesses. Acusam Cuba de ser uma ditadura que não respeita os direitos humanos por não admitirem o caráter socialista daquela Revolução que, há mais de 50 anos, resiste às agressões do maior império econômico e bélico da história da humanidade.

No entanto, tecem loas à China. Fazem vista grossa ao regime escravocrata de mão de obra barata, onde se fabrica tudo aquilo que, no Ocidente, exigiria pagar salários mais altos, reduzindo a margem de lucro das empresas ocidentais. Inúmeros produtos em oferta em nossas lojas, embora grifadas por marcas originárias do Ocidente, são "made in China".

Para governos como o dos EUA, do Reino Unido, da França e da Alemanha, o fato de um ditador como Hosni Mubarak ocupar, por 30 anos, o poder no Egito, não tem a menor importância. Desde que sirva a seus interesses geopolíticos numa região explosiva. Vale para Mubarak o que John Foster Dulles dizia do ditador Anastácio Somoza, da Nicarágua: "É um filho da p., mas é nosso filho da p."

De olho no petróleo, os governos ocidentais sempre respaldaram os governos tirânicos do mundo árabe. Negócios, negócios, princípios à parte. Qual potência europeia rompeu com uma das tantas ditaduras militares que assolaram a América Latina nas décadas de 1960 e 1970?

O Ocidente nunca se incomodou com a ausência de eleições periódicas nos países árabes, a opressão da mulher, a perseguição aos homossexuais, o luxo nababesco dos governantes frente à miséria da grande maioria da população. Quantos ditadores africanos engordam os cofres dos bancos europeus?

Agora os EUA estão como o rei da história de Hans Christian Andersen: nu, despido de sua arrogância supostamente democrática, de sua prepotência imperial. E o pior, colocado entre a cruz e a caldeirinha: se Mubarak permanece, a Casa Branca sustenta uma ditadura e despreza o clamor do povo egípcio. Se é derrubado, há o risco de o Egito se transformar, como o Irã, numa nação islâmica, hostil a Israel e aos propósitos ocidentais.

Narra a Bíblia que o profeta Daniel (2, 31-36) foi convocado para interpretar um sonho que tanto inquietava o rei Nabucodonosor, da Babilônia: "Era uma grande estátua, alta e muito brilhante. Ela estava bem à frente de Vossa Majestade e tinha aparência impressionante. A cabeça era de ouro maciço; o peito e os braços eram de prata; a barriga e as coxas, de bronze; as canelas de ferro e os pés, parte de ferro e parte de barro. Vossa Majestade contemplava a estátua quando, sem ninguém jogar, caiu uma pedra que bateu exatamente nos pés de barro e ferro da estátua, quebrando-os. Em segundos, tudo desmoronou. Ferro, barro, bronze, prata e ouro ficaram como palha no terreiro em final de colheita, palha que o vento carrega sem deixar sinal. Depois, a pedra que tinha atingido a estátua se transformou numa enorme montanha que cobriu o mundo inteiro."

A pedra, no caso do mundo árabe, é a ânsia popular de democracia entendida como justiça social e paz. O que pensa um iraquiano vendo seu país há anos dominado por tropas ocidentais que tratam os habitantes como escória da humanidade? O que pensa um afegão vendo aviões ocidentais bombardearem aldeias, matando crianças, mulheres, idosos, sob a desculpa de se tratar de um refúgio talibã?

A pedra é a cultura religiosa, muçulmana, que grassa naqueles países, e que nada tem a ver com o suposto cristianismo do Ocidente. Em nome de Deus e de Jesus, o Ocidente subjugou, durante séculos, a África, a Ásia e a América Latina. Escravizou habitantes, extorquiu riquezas, transferiu para a Europa preciosidades arqueológicas, como a Pedra de Roseta - hoje no Museu Britânico -, fragmento de uma estela de granodiorito do Egito antigo, cujo texto foi crucial para a compreensão moderna dos hieróglifos egípcios. Sua inscrição registra um decreto promulgado em 196 a.C., na cidade de Mênfis, em nome do rei Ptolomeu V.

O pensamento islâmico não distingue a fronteira entre religião e política. Esta deve ser monitorada por aquela. E a autoridade religiosa é encarada, como ocorria no Ocidente medieval, detentora do poder político.

Para tal conjuntura, o Ocidente só conhece uma resposta: armas, guerras, ocupações, subornos e ditaduras. Porque é incapaz de empreender o diálogo interreligioso, de reconhecer o direito daqueles povos à autodeterminação, de pautar-se por princípios e não pela voracidade obsessiva do mercado por lucro.

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Se o fundamentalismo islâmico incute em jovens a mística do martírio, introduzindo uma forma de terrorismo incontrolável, o fundamentalismo do mercado incute nos ocidentais a convicção de que igrejas e mesquitas devem ceder lugar aos shopping centers, templos de consumismo e miniaturização do paraíso na Terra.

Eis a pergunta que, esta semana, se repete em Dakar, no Fórum Social Mundial, e exige resposta urgente: Um outro mundo é possível?

[Frei Betto é escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.Copyright 2011 - FREI BETTO - Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato - MHPAL - Agência Literária ([email protected])

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Um grito pelo fim da intolerância religiosa - Mara Sílvia Jucá AcácioSegunda-feira, 24 de janeiro de 2011 - 9h48min

por Mara Sílvia Jucá Acácio

A Constituição Federal garante liberdade religiosa a todo cidadão brasileiro. Isso inclui o direito de escolher a religião que deseja e o de expressar as tradições e ritos da crença escolhida. Mas, nas comunidades afro-religiosas do Brasil isso não vem ocorrendo há anos. Em cada canto do país, adeptos das diversas religiões "ditas verdadeiras", fazem suas próprias leis, perseguindo adeptos da Umbanda e do Candomblé, por pensarem não serem estas, "religiões verdadeiras", mas quem pode dizer o que é verdadeiro ou falso quando se trata de religiosidade. O "verdadeiro" está na fé de cada um, está nas boas ações, no entender o outro como seu igual, suprimindo as diferenças, respeitando o livre arbítrio.

Em todo o Brasil grupos afro-religiosos unem-se para pedir o fim da discriminação e intolerância religiosa. Tem sido comum, caminhadas e fóruns, nos quais, o segmento afro-religioso, e até artistas, intelectuais e representantes de várias crenças, denunciam o preconceito e a perseguição por parte de outros grupos religiosos ou não.

Cotidianamente, lê-se nas revistas e jornais que os ataques são "sistemáticos", inclusive pelos veículos de comunicação, por meio de programas evangélicos que mostram as religiões de matriz africana e ameríndias, como religiões do diabo.

O segmento afro-religioso convive com ofensas e com o desrespeito a sua crença; em cada esquina, vândalos depedram as oferendas aos orixás, que são simbologias importantíssimas para os afro-religiosos, dentre outros tipos de desrespeito e depedração.

Quem mais sofre com a intolerância e o preconceito são as crianças e as mulheres; as crianças, na escola, onde o Ensino religioso prega a religião cristã ou protestante, ao bel prazer dos professores, que sem pensar nas drásticas conseqüências de suas palavras para o psicológico de seus alunos, dizem a estes que os que não são católicos ou protestantes não são filhos de Deus. Fato recente, aconteceu com meu netinho de sete anos, na escola onde estuda, só porque ele ainda não está batizado em nenhuma religião. Quanto as mulheres, que têm de usar trajes na cor branca no período de suas obrigações, são taxadas de macumbeiras e seguidoras do diabo.

É fácil verificar que a idéia de intolerância religiosa parte da visão que muitos têm de que a sua religião é que é a verdadeira, e não abrem mão deste padrão, não se dão a chance de conhecer as outras culturas, outras religiões; contribuindo assim para o desrespeito com as demais religiões existentes, muitas delas, mais antigas que o catolicismo e que o protestantismo.

Tolerância religiosa significa reconhecer que cada povo, cada cultura, cada comunidade tem o direito de possuir sua própria religião e um modo próprio de reverenciar suas divindades. O que é padrão para um, pode não ser para outros, e ninguém tem o direito de impor qualquer religião ou crença a quem quer que seja. Tolerância significa aceitar o que parece errado, entender que o que é errado para uns, também tem sua verdade para outros; verdade esta que não é melhor nem pior do que qualquer outra verdade, e que deve ser respeitada não por bondade ou tolerância, mas principalmente, por acreditar que todos os grupos humanos possuem iguais poderes de ligação com a natureza divina; afinal, "ligação" ou "re-ligação " nada mais é do que "religião".

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Mara Sílvia Jucá Acácio, Profª substituta do Centro de Ciências Sociais e Educação - DLLT -Curso de Letras-UEPA e mestranda em Linguística da UFPa.

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Acabar com a miséria e a sensibilidade social - Jung Mo SungSegunda-feira, 6 de dezembro de 2010 - 12h59min

por Adital

A presidente (ou presidenta?) eleita vai tomar posse em janeiro com a meta social de acabar com a miséria no Brasil. Após um mês da vitória eleitoral, enquanto ela está montando o seu futuro gabinete (com muitas negociações políticas, pressões e outras coisas...), eu penso que vale a pena refletirmos algumas questões ligadas a essa meta.

Em primeiro lugar, há uma diferença grande entre pensar a política econômica e social em função do objetivo de acabar com a miséria e uma outra pensada com o objetivo de geração de riqueza ou do mero crescimento econômico. Pois, para superar miséria e pobreza se exigem políticas econômicas e sociais que podem entrar em conflito e até mesmo em contradição com outras que são necessárias quando se busca simplesmente o aumento da riqueza ou a elevação do Brasil à condição de um país rico.

 

Tomemos um exemplo bem prático, que provavelmente será objeto de discussão no próximo ano: a volta do CPMF ou a criação de um novo imposto para aumentar verbas para o sistema de saúde público no Brasil. Sem entrar aqui em discussão sobre a forma como é administrado o sistema de saúde público, podemos dizer que em torno dessa polêmica se dividem basicamente dois grupos: aqueles que, em nome da necessidade de um melhor atendimento do sistema de saúde pública para a população (basicamente pobre, porque as classes média e alta possuem planos de saúde privados), defendem o imposto; e outros que são contra, em nome de um Estado menor, com menos gastos, e de menos impostos para os "consumidores".

 

É claro que os que são contra mais dinheiro para saúde pública não são explicitamente contra a melhoria no atendimento, pelo contrário: também se indignam com o estado atual. Mas, tem como prioridade a defesa do seu direito de pagar menos impostos e a luta pela diminuição do papel do Estado na sociedade. Em certo sentido, podemos dizer que a sensibilidade com o seu bolso é maior do que a sensibilidade para com o sofrimento das pessoas que esperam meses na fila dos hospitais públicos. Essa insensibilidade é comumente encoberta com a acusação da má administração e corrupção do Estado; e com o argumento de que o aumento dos gastos públicos diminui o ritmo do crescimento econômico.

Com esse exemplo eu quero dizer que o objetivo de acabar com a miséria no Brasil, quando levado à prática no cotidiano do governo, vai entrar em choque com interesses de grupos e pessoas que tem pouca ou quase nenhuma sensibilidade em

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relação ao sofrimento dos miseráveis e pobres. Este é um campo de luta que as Igrejas, associações, ONGs e outros grupos podem e devem contribuir. Aumentar a sensibilidade sociedade e, com isso, a pressão sobre o parlamento e o governo para que nas horas "h" das decisões, a balança penda para as necessidades dos mais pobres. Sem esse apoio e pressão da sociedade, os lobbies dos grandes interesses econômicos e dos setores médios e ricos que estão "contentes" com o atual sistema econômico e social, aliados com os setores mais conservadores do mundo político, tomarão a direção da política econômica e social.

Mas as dificuldades não virão somente do lado dos que são insensíveis ou pouco sensíveis aos sofrimentos dos mais pobres. Haverá também aqueles que em nome de soluções "perfeitas", nunca estão satisfeitos com os avanços possíveis dentro das condições econômicas, políticas e sociais dadas, e aumentam o coro da oposição. Por ex., participei de um debate onde uma pessoa elogiava o governo Lula por ter aumentado o poder aquisitivo das camadas mais pobres, e, ao mesmo tempo, criticava porque as empresas ganharam muito dinheiro com esse aumento de compra por parte dos pobres. Eu respondi que ainda estamos no capitalismo e que por isso quando os pobres compram mais, as empresas vendem mais e ganham mais dinheiro. E uma forma de lidar com isso é aumentar o imposto dos que ganham muito para financiar programas econômicos e sociais em favor dos mais pobres.

Temos diante de nós a tarefa e o desafio de aumentar a sensibilidade da sociedade em relação aos sofrimentos dos mais pobres, sem cairmos no "infantilismo" de exigir soluções perfeitas e imediatas.

[Autor, em co-autoria com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres"].

O autor deste texto é coordenador de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo

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Duas mulheres. Uma mulher. Nenhuma mulher?! O poder na ponta do dedo-para-nós - Nancy CardosoSegunda-feira, 18 de outubro de 2010 - 13h05min

por Adital

Ao fim e ao cabo -quer dizer "afinal, depois de tudo", para enfatizar que é bem no "fim mesmo!"- o que está em disputa nestas eleições é o controle do ventre: da terra e das mulheres. Afinal estas são as duas formas básicas de produzir a vida, relações de relações de ficar vivo.

Com duas mulheres nas pontas dos dedos do eleitor no primeiro turno não é de se espantar que os mecanismos de controle das estruturas capitalistas e patriarcais se agitem e usem suas armas mais antigas e exclusivas: a Senhora Moral e a Senhora Religião.

Marina e Dilma são mulheres empoderadas pelo intenso trabalho de base e de organização de muitas comunidades e segmentos sociais ao longo dos últimos 30 anos: Mulheres! Muitas outras mulheres! Chegaram até aqui com trajetórias diferentes, mas alimentadas por práticas políticas de enfrentamento do machismo estrutural que a sociedade brasileira e também os movimentos sociais reproduzem. Hoje no Brasil já nos afirmamos com um feminismo classista. Um ecofeminismo socialista.

 

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Não foi e não é o bastante! Dilma e Marina -e tantas outras de nós!- tiveram que aprender a caminhar pelos atalhos da política partidária, dos espaços de poder negados/negociados. E Marina chegou assim com ecologismo sem-classe e Dilma com pac sem-classe. Mulheres-em-si...; mas, não mulheres-para-si.

 

Que quanta tanta barriga de mulher nas propagandas! Tanta mulher e nenhuma mulher porque não há nenhum projeto de escuta e de encaminhamento de políticas de mulheres-para-si: mulheres do campo e da cidade, proletárias, camponesas, suas misérias sociais e eróticas e suas lutas. Não! Não! Os representantes do capitalismo e das religiões do mercado cercam a barriga da mulher-em-si e proclamam a propriedade privada, o controle da igreja e o controle do Estado. Ui! Os senhores representantes das fundadas verdades fundamentais.

Os fundamentalismos são palavras contra os corpos, palavras sem os corpos, palavras apesar dos corpos. Palavras que se solidificam em políticas, palavras que silenciam palavras outras. Os fundamentalismos e suas variáveis têm em comum a suspensão da escolha. Acreditando-se em fundamentos fundamentais, paralisa-se a vertigem da interpretação. Se existem as verdades fundamentais, o que se espera das pessoas é que observem, decorem, repitam, cumpram, guardem, obedeçam, estudem...; que desistam de perguntar por quê? Até quando? E se...?

O capitalismo é o fundamentalismo econômico contra a terra, sem a terra, apesar da terra reduzida a "meio de produção", forma básica de renda e acumulação. No Brasil, não podemos perguntar pela reforma agrária, por outro modelo agrícola. Os fundamentos fundamentais do capitalismo paralisam a interpretação e os meios de comunicação pedem que as maiorias sem-território observem, decorem, repitam, cumpram, obedeçam às verdades eternas da propriedade privada.

Ao fim e ao cabo, o capitalismo precisa manter sob rédea curta as dinâmicas de produção e reprodução da vida social. O debate embutido e que foi mascarado pela propaganda verde-sem-classe de Marina é a questão da terra, da propriedade da terra, da função social da terra.

O projeto comum de dominação sobre a terra/natureza e sobre as mulheres se perpetua, ainda hoje, de forma mais ou menos sofisticada nos planos de governo e nos monólogos teológicos. A visão da natureza como recurso ilimitado que pode ser sempre tirado e tirado se articula com o trabalho da mulher/doméstica que é trabalho não-pago e movido a sacrifício. Estas são as duas formas básicas de extração de mais-valia, de acumulação básica do capital.

O modelo de produção e reprodução da vida no capitalismo é aquele que legitima o uso da violência e da exaustão como forma de produção do lucro. O agronegócio invade a terra sem pedir licença e sem se comprometer; em expansão o capital se enfia nas profundezas da terra e "goza" rápido, buscando as formas mais ligeiras e eficientes de lucro e de satisfação de si mesmo. A terra exaurida e violada gera "produtos" e "riquezas" num ciclo bárbaro, insustentável e depredador. A terra não pode dizer não! Ser contra a propriedade é ofender a Deus! O deus: capital!

A crise ecológica manifesta uma contradição fundamental do capitalismo: entre o sistema produtivo e as condições de produção. Desde os primórdios da acumulação primitiva do capital, a conquista de mais e mais lucro se dá com a destruição de trabalhadores e da natureza. (Revista Margem Esquerda n. 14, 2010)

O cotidiano das maiorias, de modo especial, e das maiorias de mulheres, em particular, é de alienação e violência de seus corpos na relação com o corpo do mundo - também alienado e violentado. A miséria erótico-sexual se perpetua pela sociedade, preservando as relações violentas no espaço doméstico.As mulheres não podem dizer não!

A superação/enfrentamento desse sistema de controle-disciplina-exploração não se dá pelo elogio da natureza feminina, ou pela celebração de uma suposta proximidade da mulher com/na natureza. O desafio é de identificar ou criticar os modelos históricos e econômicos de subserviência e a prática política cotidiana (macro, micro). A superação possível está na busca conjunta (de classe e de gênero e de etnias...) por outras formas de bem-viver.

No campo da religião diversos fatores precisam ser enfrentados. A preguiça com que muitas teologias neopatriarcais entre nós descartam a Teologia da Libertação e a Teologia Feminista se dá exatamente pela segunda milha que o caminho com os empobrecidos e empobrecidas exige de nós: da recriação no cotidiano das relações de poder homem/mulher (na Igreja!, na teologia!, nos movimentos!, na vida!, na cama!), do compromisso nos processos de luta de classes e suas novas formatações, na criação de estilos de vida que neguem e resistam ao capitalismo e sua febre de consumo.

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Os teólogos/sacerdotes do mercado não se arriscam com uma teologia que não garanta mais para eles mesmos -como classe e gênero- os mecanismos de controle e poder do antropocentrismo e do patriarcalismo. Preferem o caminho reformista da teologia que se acomoda na academia ou nas variações de uma teologia pública (sem luta de classes!). Não se ocupam das dinâmicas erótico-sexuais e têm medo de tudo que é gay...; apesar de viverem num mundinho de homossociabilidade exclusiva.

Hoje, parte do cristianismo inserido no capitalismo de consumo desistiu de fazer as perguntas honestas e radicais que o evangelho de Jesus nos faz... As respostas às dramáticas necessidades das maiorias pobres do planeta se expressam em projetos assistencialistas e caritativos que preferem seguir garantindo as necessidades da sobrevivência das institucionalidades, inclusive as igrejas.

Uma outra parte de cristãos não incluídos plenamente no capitalismo e mesmo as maiorias excluídas respondem com teologias da prosperidade, que é também uma teologia da propriedade que coloca as necessidades sociais na dimensão do individualismo das trocas com a divindade, o mercado. Não há uma resposta organizada às necessidades..., mas sim uma objetivação do sujeito, de modo a inseri-lo nos mecanismos de consumo. Malafaias e tfps, rccs e blogs gospel: leões de chácara do capitalismo.

Eu vou votar contra o PSDB.

Eu vou votar na Dilma.

Meu voto não é útil, porque no dia seguinte da eleição de Dilma Roussef vou me encontrar mais forte junto aos movimentos sociais, dos movimentos feministas na defesa dos direitos conquistados e por conquistar!

 

Nancy Cardoso Pereira é Pastora metodista. Agente/Assessora da CPT

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A Igreja dos pobres hoje e amanhã - José ComblinQuarta-feira, 7 de setembro de 2011 - 11h10min

por Adital - Notícias da América Latina e Caribe

O dia 11 de setembro foi um marco na história Esse dia foi o ocaso da revolução, o ocaso dos movimentos populares de libertação, a extinção da esperança dos pobres e oprimidos, o ocaso de Cristãos pelo Socialismo e uma advertência para a teologia da libertação que acabava de nascer e já nascia condenada. No dia 11 de setembro - o primeiro 11 de setembro - muitos sentiram isso. Mas era difícil aceitar. Muitos se negaram a aceitar o que sabiam ser inelutável.

Depois do 11 de setembro, os movimentos de revolução social foram destruídos pouco a pouco. Houve uma nova esperança na década dos 80 com os acontecimentos de Nicarágua e El Salvador. Mas era apenas o canto do cisne. Também isso sabíamos, no fundo de nós mesmos, mas não queríamos aceitar. Houve aquela triste ilusão da volta da democracia. Que democracia! A democracia com os mesmos de sempre lá em cima, doravante livres do medo sofrido na geração anterior.

Foi o triunfo do capitalismo na sua forma extrema de neoliberalismo. Foi um maremoto, uma avalancha. Em poucos anos os movimentos populares foram arrasados, os sindicatos reduzidos a nada e a classe dos camponeses tradicionais expulsa para as favelas das cidades. Na década dos 90 o neoliberalismo atingiu o auge e apareceu como indestrutível, como a fase final da história, doravante sem competidor possível.

A cultura individualista do capitalismo norte-americano invadiu o mundo inteiro, inundou América latina. Nessa cultura tudo está centrado no bem-estar do indivíduo. O que triunfa são as terapias que garantem a saúde física e psíquica, as dinâmicas de auto-ajuda, de desenvolvimento harmonioso do corpo, das sensações, das emoções, dos sentimentos. Felicidade, harmonia, equilíbrio, saúde, juventude eterna, beleza, triunfo são as novas palavras de ordem. 95% das publicações referem-se ao bem restar físico e psíquico. A publicidade oferece milhares de objetos que garantem a felicidade e a plena realização de si. Os valores são as férias, as viagens, o sexo, as comidas, o sonho das praias encantadas.

A religião ocupa um lugar importante na nova cultura. A religião também oferece receitas e modelos de bem-estar e de felicidade. Trata-se de uma religião "light" na linha do New Age, uma religião sem exigência e com puras promessas de felicidade. Não de felicidade no céu, mas de

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felicidade no imediato, felicidade sensível, feita de emoções agradáveis. Karl Marx foi substituído por Paulo Coelho, como símbolo da época. Doravante a religião interessou e o socialismo aborreceu.

A Igreja seguiu o movimento da sociedade. A nova geração, que não tinha conhecido as esperanças, os movimentos dos anos 50 que desembocaram nas revoluções das 60, entraram na nova cultura sem complexo porque era a cultura em que tinham nascido. O resto era história antiga, lamentação dos velhos sobre o tempo passado.

Na fase anterior muitos tinham feito opção pelos pobres por causa da sua força histórica. Uma vez desaparecida a força histórica sobraram apenas aqueles que como João XXIII tinham feito opção pelos pobres pela sua fraqueza, e estavam dispostos a compartilhar essa fraqueza. Não foram muitos os candidatos, mas subsistiu uma minoria fiel que não abandonou a bandeira de Vaticano II e de João XXIII.

Mas agora os sinais mudam de novo. No limiar do novo milênio a sociedade neoliberal entra em crise, e está consciente de entrar em crise. Houve um novo 11 de setembro que poderia permanecer também como marco histórico : o sinal do declínio da sociedade ocidental liderada pelos Estados Unidos.

Há sinais de uma revolta das massas dos excluídos do Terceiro Mundo lideradas por novas elites, que se manifestam tanto dentro do próprio primeiro mundo como no terceiro mundo. Tudo indica que entre os jovens e adolescentes que agora manifestam contra o imperialismo dos Estados Unidos vão aparecer novas lideranças. Que vão promover novos movimentos populares provavelmente bem diferentes dos anteriores.

A Igreja seguirá? Podemos presumir que sim. No meio dos jovens seminaristas angélicos que os atuais métodos de formação pretendem orientar para dirigir uma Igreja feliz e bem protegida, podem surgir lideres sociais com vocação revolucionária. Como sempre os formadores não sabem o que estão formando e podem descobrir que o resultado da sua ação deu exatamente o contrário daquilo que queriam. Quando os povos se organizarem em novas lutas, mundiais desta vez, haverá cristãos e católicos no meio deles, haverá sacerdotes e também possivelmente alguns bispos porque os núncios também podem errar na escolha dos bispos.

Estas novidades poderiam aparecer bem antes do previsto. Poderiam questionar toda essa procura da felicidade doce e suave que se buscou na ternura de um Jesus feito à medida de um amor "light". Poderiam relegar Paulo Coelho aos fundos das bibliotecas e condenar à reciclagem do papel toda essa literatura cor de rosa de um amor desencarnado.

José Comblin, falecido em 27 de março de 2011.

Cidadania

Grito dos Excluídos 2011 - Frei BettoTerça-feira, 6 de setembro de 2011 - 12h16min

por Adital - Notícias da América Latina e Caribe

O lema do 17o Grito é "Pela vida grita a Terra... Por direitos, todos nós!" Trata-se de associar a preservação ambiental do planeta aos direitos do povo brasileiro.

O salário mínimo atual -R$ 545,00- possui, hoje, metade do valor de compra de quando foi criado, em 1940. Para equipará-los, precisaria valer R$ 1.202,80. Segundo o DIEESE, para atender as necessidades básicas de uma família de quatro pessoas, conforme prescreve o art. 7 da Constituição, o atual salário mínimo deveria ser de R$ 2.149,76.

As políticas sociais do governo são, sem dúvida, importantes. Mas não suficientes para erradicar a miséria. Isso só se consegue promovendo distribuição de renda através de salários justos, e não mantendo milhões de famílias na dependência de recursos do poder público.

O Brasil começa a ser atingido pela crise financeira internacional. Com a recessão nos países ricos, nossas exportações tendem a diminuir. O único modo de evitar que o Brasil também caia na recessão é aquecendo o consumo interno - o que significa aumento de salários e de crédito, e redução dos juros.

A população extremamente pobre do Brasil é estimada em 16 milhões de pessoas. Dessas, 59% (9,6 milhões de pessoas) estão concentradas no Nordeste.

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Dos que padecem pobreza extrema no Brasil, 51% têm menos de 19 anos e, 40%, menos de 14. O desafio é livrar essas crianças e jovens da carência em que vivem, propiciando-lhes educação e profissionalização de qualidade.

Um dos fatores que impedem nosso governo de destinar mais investimentos aos programas sociais e à educação e saúde é a dívida pública. Hoje, a dívida federal, interna e externa, ultrapassa R$ 2 trilhões. Em 2010, o governo gastou, com juros e amortizações dessa dívida, 44,93% do orçamento geral da União.

Quem lucra e quem perde com as dívidas do governo? O Grito dos Excluídos propõe, há anos, uma auditoria das dívidas interna e externa. Ninguém ignora que boa parcela da dívida é fruto da mera especulação financeira. Como aqui os juros são mais altos, os especuladores estrangeiros canalizam seus dólares para o Brasil, a fim de obter maior rendimento.

Há um aspecto da realidade brasileira que atende à dupla dimensão do lema do Grito deste ano: preservação ambiental e direitos sociais. Trata-se da reforma agrária. Só ela poderá erradicar a miséria no campo e paralisar o progressivo desmatamento da Amazônia e de nossas florestas pela ambição desenfreada do latifúndio e do agronegócio.

Dados do governo indicam que, no Brasil, existem, hoje, 62,2 mil propriedades rurais improdutivas, abrangendo área de 228,5 milhões de ha (hectares). Mera terra de negócio e, portanto, segundo a Constituição, passível de desapropriação.

Comparados esses dados de 2010 aos de 2003, verifica-se que houve aumento de 18,7% no número de imóveis rurais ociosos, e a área se ampliou em 70,8%.

Se o maior crescimento de áreas improdutivas ocorreu na Amazônia, palco de violentos conflitos rurais e trabalho escravo, surpreende o incremento constatado no Sul do país. Em 2003, havia nesta região 5.413 imóveis classificados como improdutivos. Ano passado, o número passou para 7.139 imóveis - aumento de 32%. São 5,3 milhões de ha improdutivos em latifúndios do Sul do Brasil!

De 130,5 mil grandes propriedades rurais cadastradas em 2010, com área de 318,9 milhões de ha, 23,4 mil, com área de 66,3 milhões de ha, são propriedades irregulares - terras griladas ou devolutas (pertences ao governo), em geral ocupadas por latifúndios.

O Brasil tem, sim, margem para uma ampla reforma agrária, sem prejuízo dos produtores rurais e do agronegócio. Com ela, todos haverão de ganhar - o governo, por recolher mais impostos; a população, por ver reduzida a miséria no campo; os produtores, por multiplicarem suas safras e rebanhos, e venderem mais aos mercados interno e externo.

[Frei Betto é escritor, autor do romance "Minas do Ouro" (Rocco), entre outros livros.http://www.freibetto.org/twitter:@freibetto.Copyright 2011 - FREI BETTO - Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato - MHPAL - Agência Literária ([email protected])]

Frei Betto Escritor e assessor de movimentos sociais

Cidadania

Como um ser humano pode planejar tanta barbaridade? As raízes da violência e o coração humano - João Batista LibânioQuarta-feira, 31 de agosto de 2011 - 14h01min

por Adital Notícias da América Latina e do Caribe

A violência lança raízes no coração humano. Os seres de suave índole, como Francisco de Assis, não matam nem uma mosca. Podem viver em mar de conflitos e nunca recorrerão à violência. Infelizmente os Fransciscos rareiam cada vez mais. Por sua vez, Hobbes parece ter mais razão, ao afirmar que "homo homini lupus" - o ser humano é lobo para outro ser humano. Ele faz ressoar versos do poeta latino Plauto na sua obra "Asinaria", em que acrescenta: "somos advertidos para que tomemos cuidado em face do ser humano, como diante de um lobo".

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Os poetas intuem e alcançam o âmago do ser humano, sobre o qual políticos e sociólogos teorizam. Já nos inícios da humanidade, na poética e maravilhosa narração bíblica, de enorme perspicácia humana, o idílio esponsal entre Adão e Eva durou muito pouco. A nudez, o ser criado à imagem e semelhança de Deus, o ouvir os passos de Deus pelo jardim à brisa da tarde, o senhorio deslumbrante sobre toda a natureza, revelam a aura de harmonia do paraíso, logo desfeita. Veio a cena em que ambos comem do fruto proibido. E imediatamente o homem e a mulher se culpam, mutuamente. Já está aí a raiz da violência entre cônjuges.

A história desenha quadro infelizmente paradigmático. Os filhos Caim e Abel disputam até o assassinato. E depois segue triste história de crimes, de violência, de que Lamec se torna símbolo. Vejam que versos compôs para suas mulheres: "Matei um homem por uma ferida, um jovem por causa de um arranhão. Se Caim for vingado sete vezes, Lamec o será setenta e sete vezes" (Gênese 4,23). Está implantada a violência das violências, até terminar com o dilúvio. E, depois, tudo é retomado de novo.

Quando lemos essas páginas iniciais da Escritura, não como história que as ciências desmontaram, mas como revelação da raiz mesma da natureza humana, espantamo-nos com o alcance dos ensinamentos. Mais de dois mil anos depois, os nazistas repetiram Lamec, matando dez civis por um soldado morto em alguma emboscada, nas regiões dominadas. Esposos se acusam mutuamente nos cartórios, filhos disputam sangrentamente heranças e a violência campeia por todos os lados.

Ela não data de hoje. Não se funda em causas extrínsecas, mas dorme no interior de cada ser humano. Quem já esqueceu de Anders Breivik, que metralhou jovens em acampamento? E que dizer dos crimes das câmaras de gás, dos campos de concentração, das bombas atômicas lançadas pelos americanos? E as contínuas guerras, agressões armadas que atravessam os séculos e chegam até nós com requintes de violência?

Fica a pergunta: como um ser dito humano é capaz de planejar tanta barbaridade? Nem faltam crimes tramados em altas esferas por pessoas ilustradas e adestradas em universidades de alto reconhecimento acadêmico. Enquanto não movermos o coração para sentimentos humanos de beleza e de transcendência, dificilmente baixaremos o nível de violência.

Cidadania

A falta que o respeito faz - Leonardo BoffQuarta-feira, 31 de agosto de 2011 - 13h59min

por Adital Notícias da América Latina e do Caribe

A cultura moderna, desde os seus albores no século XVI, está assentada sobre uma brutal falta de respeito. Primeiro, para com a natureza, tratada como um torturador trata a sua vítima com o propósito de arrancar-lhe todos os segredos(Bacon). Depois, para com as populações originárias da América Latina. Em sua "Brevíssima Relação da Destruição das Indias” (1562) conta Bartolomé de las Casas, como testemunho ocular, que os espanhóis "em apenas 48 anos ocuparam uma extensão maior que o comprimento e a largura de toda a Europa, e uma parte da Ásia, roubando e usurpando tudo com crueldade, injustiça e tirania, havendo sido mortas e destruídas vinte milhões de almas de um país que tínhamos visto cheio de gente e de gente tão humana”(Décima Réplica). Em seguida, escravizou milhões de africanos trazidos para as

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Américas e negociados como "peças” no mercado e consumidos como carvão na produção.

Seria longa a ladainha dos desrespeitos de nossa cultura, culminando nos campos de extermínio nazista de milhões de judeus, de ciganos e de outros considerados inferiores.

Sabemos que uma sociedade só se constrói e dá um salto para relações minimamente humanas quando instaura o respeito de uns para com os outros. O respeito, como o mostrou bem Winnicott, nasce no seio da família, especialmente da figura do pai, responsável pela passagem do mundo do eu para o mundo dos outros que emergem como o primeiro limite a ser respeitado. Um dos critérios de uma cultura é o grau de respeito e de autolimitação que seus membros se impõem e observam. Surge, então, a justa medida, sinônimo de justiça. Rompidos os limites, vigora o desrespeito e a imposição sobre os demais. Respeito supõe reconhecer o outro como outro e seu valor intrínseco seja pessoas ou qualquer outro ser.

Dentre as muitas crises atuais, a falta generalizada de respeito é seguramente uma das mais graves. O desrespeito campeia em todas as instâncias da vida individual, familiar, social e internacional. Por esta razão, o pensador búlgaro-francês Tzvetan Todorov, em seu recente livro "O medo dos bárbaros” (Vozes 2010), adverte que se não superarmos o medo e o ressentimento e não assumirmos a responsabilidade coletiva e o respeito universal não teremos como proteger nosso frágil planeta e a vida na Terra já ameaçada.

O tema do respeito nos remete a Albert Schweitzer (1875-1965), prêmio Nobel da Paz de 1952. Da Alsácia, era um dos mais eminentes teólogos de seu tempo. Seu livro "A história da pesquisa sobre a vida de Jesus” é um clássico por mostrar que não se pode escrever cientificamente uma biografia de Jesus. Os evangelhos contêm história; mas não são livros históricos. São teologias que usam fatos históricos e narrativas com o objetivo de mostrar a significação de Jesus para a salvação do mundo. Por isso, sabemos pouco do real Jesus de Nazaré. Schweitzer compreendeu: histórico mesmo é o Sermão da Montanha e importa vivê-lo. Abandonou a cátedra de teologia, deixou de dar concertos de Bach (era um de seus melhores intérpretes) e se inscreveu na faculdade de medicina. Formado, foi a Lambarene no Gabão, na África, para fundar um hospital e servir a hansenianos. E ai trabalhou, dentro das maiores limitações, por todo o resto de sua vida.

Confessa explicitamente: "o que precisamos não é enviar para lá missionários que queiram converter os africanos mas pessoas que se disponham a fazer para os pobres o que deve ser feito, caso o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus possuam algum sentido. O que importa mesmo é, tornar-se um simples ser humano que, no espírito de Jesus, faz alguma coisa, por pequena que seja”.

No meio de seus afazeres de médico, encontrou tempo para escrever. Seu principal livro é: "Respeito diante da vida”, que ele colocou como o eixo articulador de toda ética. "O bem”, diz ele, "consiste em respeitar, conservar e elevar a vida até o seu máximo valor; o mal, em desrespeitar, destruir e impedir a vida de se desenvolver”. E conclui: "quando o ser humano aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante; a grande tragédia da vida é o que morre dentro do homem enquanto ele vive”.

Como é urgente ouvir e viver esta mensagem nos dias sombrios que a humanidade está atravessando.

[Leonardo Boff é autor de "Convivência, Respeito, Tolerância”, Vozes 2006].

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Cidadania

Necessitamos viver simplesmente para que outros possam simplesmente viver - GandhiSegunda-feira, 1 de agosto de 2011 - 8h54min

por Adital - Notícias da América Latina e do Caribe

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), em outubro próximo, o número de habitantes do planeta chegará a 7 bilhões. As estatísticas afirmam que durante os próximos dez anos algumas das nações mais pobres do mundo duplicarão sua população e em 2025 serão registrados 8 bilhões de habitantes. Nesse sentido, o Fundo de População da ONU exortou à reflexão e à análise sobre o que significa viver em um mundo com 7 bilhões de habitantes.A reflexão, a análise e as medidas são mais urgentes se considerarmos as implicações dessa cifra para a realidade dos países empobrecidos ou em desenvolvimento, como também são denominados. Esses terão que fazer esforços consideráveis para atender às necessidades de uma população em crescimento, se não quiserem ver aumentar em milhares de milhões seus níveis de pobreza e de exclusão. Agora mesmo os países empobrecidos têm 98% da população subnutrida do mundo (somente a América Latina e o Caribe têm 53 milhões de famintos); essa região também se caracteriza por uma alta e persistente desigualdade social que, facilmente, aparece devido a um contexto de baixa mobilidade. 14 países têm uma esperança de vida que não chega aos 50 anos. Os últimos nesse ranking são o Afeganistão e Lesoto, com 44,6 e 45,9 anos, respectivamente. O número de pessoas vivendo em extrema pobreza aumentou para 2.6 milhões, segundo o Relatório 2010 da ONU sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

Portanto, a situação de precariedade na qual vive uma significativa parcela da população mundial deve ser motivo de preocupação e prioridade, sobretudo, em um contexto global de acelerado crescimento demográfico. Claro está que as soluções para esses graves problemas não são alcançados com programas de controle da natalidade que promovam a anticoncepção, nem muito menos esperar passiva e indolentemente que surjam guerras ou epidemias para que reduzam a população à custa dos mais vulneráveis. Trata-se de orientar as estruturas e o funcionamento econômico e jurídico da sociedade, bem como seu sentido ético rumo a uma convivência digna, com participação e equidade na distribuição de recursos, com justiça ecológica, com equidade solidária, com segurança alimentar e nutricional e, sobretudo, com uma cultura da vida boa, isto é, uma cultura da inteligência, da compaixão e do compromisso.

Ignacio Ellacuría falava de uma civilização da pobreza "onde esta já não seria a privação do necessário e fundamental por parte de grupos, classes sociais ou conjunto de nações, mas um estado universal de coisas no qual esteja garantida a satisfação das necessidades fundamentais, a liberdade das opções pessoais e um âmbito de criatividade pessoal e comunitária que permita o aparecimento de novas formas de vida e de cultura...".

Jon Sobrino, atualizando essa proposta, propôs a necessidade de uma ecologia do espírito, descrita nos seguintes termos contraculturais: "o espírito de comunidade versus o individualismo isolacionista que facilmente degenera em egoísmo; a celebração versus a dimensão irresponsável, que degenera em alienação; a abertura versus o etnocentrismo cruel, que degenera em desentendimento do sofrimento dos outros; a criatividade versus a imitação servil, que facilmente degenera na perda da identidade; o compromisso versus a mera tolerância, que degenera na indiferença; a fé versus o burdo positivismo e pragmatismo, que degenera no semsentido da vida".

Como se pode observar, o desafio dos 7 bilhões de habitantes não pode nem deve ser reduzido a medidas quantitativas de ordem econômica, social, ecológica. Trata-se também de medidas qualitativas, culturais, éticas -nas quais não se costuma falar ao referir-se a esses temas-; de construir um novo modo de civilização que realmente nos torne seres humanos melhores, com capacidade para desenvolver relações humanizantes com a natureza e com os demais homens e mulheres que fazem parte da grande família humana. Dito com as palavras de Gandhi: "necessitamos viver simplesmente para que os outros possam simplesmente viver". O mundo da abundância requer, com urgência, esse modo de ver as coisas.

 

Carlos Ayala Ramírez

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Diretor da Rádio YsucaTradução: ADITAL

Cidadania

Não é possível diminuir a pobreza-miséria sem substituir as estruturas de pecado por estruturas de amor - Paul WessSegunda-feira, 25 de julho de 2011 - 13h53min

por Adital - Notícias da América Latina e Caribe

Entrevista com Paul Wess sobre o livroDEUS, Cristo e os Pobres. Libertação e Salvação na Fé à Luz da Bíblia

Maio de 2011L.L.: Padre Wess, o senhor é um teólogo europeu. O que o motivou a escrever um livro sobre a Teologia da Libertação latino-americana?P.W.: A motivação imediata foi o conflito desencadeado pela crítica que Clodovis Boff fez à Teologia da Libertação. Na Alemanha, o Instituto para Teologia e Política (Institut für Theologie und Politik, Münster, http://www.itpol.de/) publicou uma documentação detalhada, inclusive online. Mas os motivos para meu livro são ainda mais profundos. Também muitos europeus que vivem em países de bem-estar -como, por exemplo, no meu país, a Áustria- sofrem com a existência de tantas pessoas pobres no mundo. E a gente se pergunta o que pode fazer, como cristão em geral e, no meu caso, especialmente como padre e teólogo, para contribuir para a libertação dessas pessoas. Por isso, eu sempre me interessei muito pela Teologia da Libertação e acompanhei também de perto o conflito entre Roma e essa teologia. Quando escrevi minha "habilitação", para ser aceito como professor de teologia pastoral na Universidade de Innsbruck [Igreja de Comunidades - Lugar da Fé. A prática como fundamento e consequência da teologia; título original: Gemeindekirche - Ort des Glaubens. Die Praxis als Fundament und als Konsequenz der Theologie. Graz, 1989], eu me posicionei não só em relação aos documentos de Roma, mas estudei também criticamente algumas afirmações de teólogos da libertação.O conflito antigo com a Congregação para a Doutrina da Fé repete-se agora dentro da própria Teologia da Libertação e pode prejudicar suas preocupações que são tão importantes. Leonardo Boff expressa isso assim [REB 271, 2008]:

"Podemos imaginar que os que condenaram a Jon Sobrino (Clodovis aprova a Notificação romana), a Gustavo Gutiérrez, a Ivone Gebara, a Marcelo Barros, a José María Vigil, a Juan José Tamayo, a Castillo, a Dupuis, a Küng, entre outros, se acercarão a Clodovis e lhe dirão satisfeitos e com o peito inflado de fervor doutrinário: ‘Bravo, irmão. Enfim alguém que teve a coragem de desmascarar os equívocos e os graves e fatais erros da Teologia da Libertação'.''

Minha intenção foi propor uma volta à teologia bíblica e contribuir assim para a superação do conflito. Mas devo admitir que essa contribuição é teologicamente bem exigente. Afinal, trata-se de mostrar que ambas as partes do conflito argumentam a partir dos mesmos pressupostos da doutrina eclesiástica posterior, eles apenas os interpretam de modo contrário - por isso, chegam a conclusões contrárias. Esse impasse pode ser resolvido somente quando voltamos a premissas que estão em sintonia com a Bíblia.

L.L.: Parece que na vida do senhor há outros pontos de contato com a Teologia da Libertação?P.W.: Certo, tenho também um interesse prático. Depois do último Concílio implantei, junto com outras pessoas e com o apoio de Franz König, o então cardeal de Viena, uma tentativa de organizar uma paróquia recém-estabelecida de forma diferente. Procuramos "formar pequenas comunidades de cristãos maduros na fé", que depois se tornariam portadoras e modelos na pastoral. O sonho era realizar no nível de uma paróquia concreta as visões do Concílio sobre uma Igreja-Communio e sobre o sacerdócio comum de todos os fiéis. Primeiro, não sabíamos do surgimento das comunidades eclesiais de base na América Latina, mas a utopia e o desejo foram os mesmos. E assim que tivemos contato com CEBs, percebemos uma grande sintonia. Ela se mostrou até mesmo na formulação exatamente igual de uma resposta à pergunta: "Quando uma comunidade precisa se dividir para não se tornar anônima?" A resposta: "Uma comunidade precisa ser dividida assim que adquire um tamanho tal que já não se percebe quando alguém está faltando". Por causa disso, aquela paróquia de Viena tem hoje já três comunidades.

Achamos também que o melhor apoio que podíamos oferecer às CEBs na América Latina (e também às Pequenas Comunidades Cristãs na África a na Ásia) era ser um exemplo de que essas comunidades

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podem existir também em situações onde resolver a miséria e lutar pela justiça social não são os motivos principais, e que não é verdade que elas se dissolvem quando esses objetivos são alcançados ou inalcançáveis. Queríamos testemunhar que se trata de viver o legado de Jesus - o amor mútuo entre discípulas e discípulos (Jo 13,34s). Quando se realiza isso, a luta pela libertação faz parte do pacote, e isso nos brindou também com o contato com CEBs na Nicarágua e em Burundi.

L.L.: O senhor consegue resumir em poucas palavras sua opinião sobre os problemas teológicos na raiz do conflito entre Roma e agora também Clodovis Boff, por um lado, e as pessoas que defendem a Teologia da Libertação, por outro?P.W.: Vou tentar! A meu ver, é assim: Clodovis acusa seu irmão Leonardo e outros teólogos/as da libertação de não levar a transcendência de Deus a sério. Alega que colocam Deus e os pobres no mesmo plano, e que, dessa forma, a fé em Deus é politicamente instrumentalizada e chega a ser secundária. E assim vai. Leonardo tem toda razão quando diz que, segundo a teologia eclesiástica, Deus tornou-se ser humano em Jesus Cristo, portanto, que podemos também equiparar Deus e os pobres. Afinal, segundo Mt 25, o Homem-Deus Jesus Cristo identificou-se com os pobres. Ou seja, podemos dizer assim: Clodovis vê em Cristo em primeiro lugar Deus que adotou uma natureza adicional, a natureza humana. E Leonardo destaca que Deus se despojou em Cristo de seu Ser-Deus e se tornou igual aos pobres. Segundo a dogmática eclesiástica, ambas as posições são corretas, porque o Concílio de Calcedônia diz que o "Um e o Mesmo é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem". Por isso seria possível, diz a Congregação da Fé em sua Notificação sobre as obras do Pe. Jon Sobrino (No. 6), "atribuir as propriedades da divindade à humanidade e vice-versa".

Olha, já é aqui que se desrespeita a transcendência de Deus "sobre tudo e todos" (Ef 4,6), e não apenas na Teologia da Libertação, como pensa Clodovis. Por isso precisamos voltar à visão bíblica, e esta indica o seguinte: também para o Messias ungido por Deus, para Jesus Cristo, Deus foi maior do que ele (Jo 14,28), e ele se engajou pela fé no Deus único (Jo 17,3). Jesus não teria aceito ser igualado a Deus e ter as propriedades divinas atribuídas a si mesmo.

L.L.: Padre Wess, isso quer dizer que o senhor defende uma cristologia como a de Jon Sobrino, que foi rejeitada por Roma?P.W.: Sim, meu livro é em grande parte uma justificativa bíblica dessa divergência de Jon Sobrino em relação à doutrina eclesiástica. Além disso, verifico criticamente as interpretações costumeiras do Prólogo de João e do Hino Cristológico da Carta aos Filipenses, porque esses textos são aduzidos para justificar aqueles dogmas. E finalmente procuro mostrar que também a Igreja Católica precisa contar dentro de sua doutrina com elementos condicionados historicamente, portanto, que essa doutrina pode ser digna de revisão (aqui me baseio nas argumentações de Karl Rahner). É claro que essa revisão e correção da cristologia têm também consequências para a doutrina da salvação e da libertação.

L.L.: Quais consequências seriam, e o que significariam para as preocupações e os interesses da Teologia da Libertação?P.W.: Ora, por um lado, a consequência é que a salvação não pode ser esperada como algo que diviniza, ou seja, algo sobrenatural - como afirma o princípio da teologia greco-platônica: "Deus tornou-se homem para nós nos tornar Deuses". Ao contrário, salvação é somente possível como plenificação deste mundo finito que Deus vai operar algum dia, e isso já significa beatitude. E ainda há a consequência de que, também na fé cristã, não se pode abolir os limites da criação e o caráter sofrido de seu desenvolvimento natural e intelectual. A criação continua "em dores de parto" (Rm 8,22). Por isso precisamos nos reconciliar com sua finitude e basicamente com a presença do sofrimento neste mundo, para sermos capazes de lutar pela libertação de miséria e sofrimento.

Isso significa, primeiro, que a fé em Deus não pode substituir nosso engajamento por um mundo justo, mas que ela deve se realizar exatamente na luta pela libertação de pobreza e miséria. E significa, segundo, que um mundo salvo será até o fim dos tempos sempre uma meta, uma utopia, que nunca pode ser alcançada plenamente, nem mesmo pela luta mais engajada, e, claro, muito menos com meios violentos.

L.L.: Isto significa uma crítica não só aos conceitos soteriológicos da doutrina eclesiástica, mas também às ideias de alguns teólogos/as da libertação!P.W.: Certo, é isso mesmo. Mas há um segundo ponto importante em que minha opinião difere um pouco de ambas as partes.

L.L.: Qual é?P.W.: O atual papa, quando ainda era Prefeito da Congregação da Doutrina para a Fé, afirmou em 1996 em Guadalajara (México) numa palestra diante dos presidentes das Congregações para a Fé Latino-

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Americanas que o erro dos teólogos da libertação residisse no fato de querer superar pobreza, opressão e injustiça no mundo por meio de uma mudança radical das estruturas, por meio de um processo político, e não pela conversão individual. Para Roma, o caminho certo foi e ainda é a conversão individual e, com ela, a superação do pecado nos indivíduos. A Teologia da Libertação, porém, inclina-se pelo menos tendencialmente para a ideia de que os pobres como tais já possuem a atitude certa, e que essa atitude nascerá em todas as pessoas quando haverá estruturas justas. Ou seja, inclina-se para a ideia de que, no fundo, são só os ricos que precisam se converter.

Minha posição é um pouco diferente. É certo que as pessoas pobres estão em geral mais próximas da atitude certa do que as pessoas ricas (cf. Mt 19,23s). Mas quando sua vida melhora, não precisam mais dela e nem sempre a preservam, como mostram os desenvolvimentos recentes na Nicarágua. Por outro lado, não é possível diminuir a pobreza e a miséria (digo diminuir porque neste mundo não podemos esperar uma superação total, infelizmente) sem substituir as estruturas de pecado por estruturas de amor. Disso segue que precisamos das duas coisas juntas, ou seja: somente pessoas com uma atitude justa poderão estabelecer estruturas justas. Onde falta a atitude justa e/ou se muda estruturas com meios violentos, surge uma exploração por parte dos funcionários da nova ordem, como mostrou o exemplo do marxismo. Portanto, pessoas com uma atitude nova precisam começar a formar estruturas novas e convencer outras através de seu exemplo - como "sal da terra, luz do mundo, cidade no monte" (Mt 5,13-16). Esta seria a primeira e mais importante tarefa social da Igreja no serviço à libertação, e disso decorre a cooperação com todas as pessoas de boa vontade no engajamento político por uma ordem justa.

L.L.: É isso que o senhor considera também uma tarefa fundamental das comunidades eclesiais de base?P.W.: Sem dúvida! Mas neste ponto considero muito importante que a Igreja entenda suas comunidades não só de maneira funcional, não só a partir de tarefas e serviços, mas também, e em primeiro lugar, como um valor próprio, como lugares iniciais e fragmentários da salvação neste mundo - como sinais e sacramentos do Reino de Deus que se cumprirá plenamente na comunhão dos santos. É claro que comunidades devem servir, mas elas existem não só por causa do serviço. Elas têm seu valor próprio - assim como o matrimônio e a família - como a "nova família" dos Filhos e Filhas de Deus. Clodovis Boff critica com certa razão que a Teologia da Libertação "onguiza" a Igreja, mas ele não percebe que uma instrumentalização intraeclesial ou "religiosa" ocorre também quando Igrejas e comunidades são entendidas praticamente apenas a partir de suas funções fundamentais e suas muitas tarefas (é isso que acontece também no Documento de Aparecida). Desse jeito, a Igreja Católica não deve se admirar quando muita gente passa para Igrejas "crentes", onde as pessoas são antes de tudo bem-vindas por causa de si mesmas, e não só como potenciais colaboradoras no anúncio e em outras tarefas. A Igreja não pode ser uma cópia da meritocracia (da sociedade que reconhece só o mérito e o empenho). Ela poderá se tornar um espaço para experimentar o amor de Deus e, a partir disso, um lugar de fé, só quando cada pessoa é conhecida pelo nome e amada por causa de si mesma. Só numa "Igreja de Comunidades" desse tipo será também possível superar a divisão entre "clero" e "povo".

L.L.: Padre Wess, estas são ideias muito exigentes que nos desafiam a continuar pensando, e me parece que é um bom ponto para concluir nossa conversa. Muito obrigada e um grande "abrazo".[Paul Wess, nascido em 1936 em Viena (Áustria), estudou filosofia e teologia em Innsbruck (inclusive com Karl Rahner), onde obteve em 1961 seu doutorado em filosofia. Ordenou-se presbítero em 1962 e trabalhou em Viena como vigário paroquial e professor de ensino religioso. Após um tempo de reorientação e novos estudos (1965/1966), assumiu - inicialmente numa equipe de padres - o trabalho numa paróquia recém-fundada em Viena (Machstrasse - Rua Mach), com o objetivo de formar comunidades de base e fazer experiências concretas de uma igreja communio.

Em 1968 obteve o doutorado em teologia pela Universidade de Innsbruck com a tese "Como falar de Deus? Um debate com Karl Rahner" (Graz, 1970), e em 1989 a habilitação para o ensino universitário da teologia pastoral com a tese "Igreja de Comunidades - Lugar de fé. A prática como fundamento e consequência da teologia" (Graz, 1989). Liberado para o ensino universitário em 1996, foi primeiro professor convidado em Graz (Áustria) e Würzburg (Alemanha), e desde 2000 é professor de Teologia Pastoral na Universidade de Innsbruck. Em 1992 participou como membro da delegacia austríaca do 8º Intereclesial das CEBs em Santa Maria.

Nos países de fala alemã, Paul Wess é um dos principais defensores das comunidades de base, da revisão dos conteúdos da fé e da reestruturação da igreja católica segundo os princípios bíblicos de fraternidade e sororidade ("Geschwisterliche Kirche"). Seus inúmeros ensaios e artigos deram origem a

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vários livros e coletâneas, alguns deles já "verificados" pelo Vaticano; mas, por enquanto, ainda não objetos de notificações].

Cidadania

Voracidade consumista - Frei BettoSegunda-feira, 11 de julho de 2011 - 10h48min

por Adital

Para o filósofo Edgar Morin, a ciência, ao buscar autonomia fora da tutela da religião e da

filosofia, extrapolou os próprios limites éticos, como a produção de armas de destruição em

massa. Os cientistas não dispõem de recursos para controlar a própria obra. Há um divórcio

entre a cultura científica e a humanista.

Exemplo paradigmático desse divórcio é a atual crise econômica. Quem é o culpado? O

mercado? Concordar que sim é o mesmo que atribuir ao computador a responsabilidade por

um romance de péssima qualidade literária.

Um dos sintomas nefastos dos tempos em que vivemos é a tentativa de reduzir a ética à esfera

privada. Fora dela, tudo é permitido, em especial quando se trata de reforçar o poder e

aumentar a riqueza. Obama admitiu torturar os prisioneiros que deram a pista de Bin Laden, e

não houve protestos com suficiente veemência para fazê-lo corar de vergonha.

A globocolonização, inaugurada com a queda do Muro de Berlim, conhece agora sua primeira

crise econômica. E ela explode no bojo da fragmentação da modernidade. "Tudo que é sólido

se dissolve no ar...” Vale acrescentar: "... e o insólito, no bar”.

Esfareladas as grandes narrativas que norteavam a modernidade, abre-se amplo espaço ao

relativismo. O projeto emancipatório se dilui no terrorismo e no assistencialismo compensatório

guloso de votos. O futuro se desvanece.

Para os arautos do neoliberalismo, "a história terminou”. O presente é, hoje, o moto perpétuo.

O passado, mera evocação, como a pintura que se contempla na parede de um museu. Nada

de querer acertar contas com ele.

Graças às novas tecnologias, o espaço se contraiu e o tempo se acelerou. O outro lado do

mundo está logo ali, e o que lá ocorre é visto aqui em tempo real. Tudo isso impacta nossos

paradigmas e nossa escala de valores. Paradigmas e valores soam como contos da carochinha

comparados a ensaios de bionanotecnologia.

O mundo real se cindiu e não condiz com o seu duplo virtual. Via internet, qualquer um pode

assumir múltiplas identidades e os mais contraditórios discursos. Agora, todos podem ser

simulacros de si mesmos.

Não há mais propostas libertárias que fomentem utopias, nutrem esperanças e semeiem

otimismo. Ao olhar pela janela, não há horizonte. O que se vê reforça o pessimismo: o

aquecimento global, a ciranda especulativa, a ausência de ética no jogo político, a lei do mais

forte nas relações internacionais, a insustentabilidade do planeta.

Se não há futuro a se construir, vale a regra do prisioneiro confinado à sua cela: aproveitar ao

máximo o aqui e agora. Já não interessam os princípios, importam os resultados. O sexo se

dissocia do amor como os negócios da atividade produtiva.

A cultura do consumismo desencadeia duas reações contraditórias: a pulsão pela aquisição do

novo e a frustração de não ter tido tempo suficiente para usufruir do "velho” adquirido ontem...

A competitividade rege as relações entre pessoas e instituições. Somos todos acometidos de

permanente sensação de insaciabilidade. Nada preenche o coração humano. E o que poderia

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fazê-lo já não faz parte de nosso universo teleológico: o sentido da vida como fenômeno, não

apenas biológico; mas, sobretudo, biográfico, histórico.

Agora a voracidade consumista proclama a fé que identifica o infinito nos bens finitos. O

princípio do limite é encarado como anacrônico. Azar nosso, porque todo sistema tem seu

limite, da vida humana ao mercado. Sabemos por experiência própria o que acontece quando

se tenta ignorar os limites: o sistema entra em pane. Mas, em se tratando de finanças, não se

acreditava nisso. A riqueza dos donos do mundo parecia brotar de um poço sem fundo.

Duas dimensões da modernidade foram perdidas nesse processo: a dignidade do cidadão e o

contrato social. Marx sabia que a burguesia, nos seus primórdios, era uma classe

revolucionária. O que ignorava é que ela de tal modo revolucionaria o mundo, a ponto de

exterminar a própria cultura burguesa. Os valores da modernidade evaporam por força da

mercantilização de tudo: sentimentos, ideias, produtos e sonhos.

Para o neoliberalismo, a sociedade não existe, existem os indivíduos. E eles, cada vez mais,

trocam a liberdade pela segurança. O que abastece este exemplo singular de mercantilização

pós-moderna: a acirrada disputa pelo controle do mercado das almas. As religiões tradicionais

perdem seus espaços territoriais e o número de fiéis. Agora, no bazar das crendices, a religião

não promete o céu, e sim a prosperidade; não promete salvação, e sim segurança; não

promete o amor de Deus, e sim o fim da dor; não suscita compromisso, e sim consolo.

Assim, o amor e o idealismo ficam relegados ao reino das palavras inócuas. Lucro e proveito

pessoal são o que importam.

[Frei Betto é escritor, autor de "Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros.

Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio

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([email protected])]

Cidadania

Por uma economia que coloque as pessoas em primeiro lugarSexta-feira, 8 de julho de 2011 - 15h43min

por Prof. Marcus Eduardo de Oliveira

Para aqueles que labutam no desejo em construir uma economia com uma face mais humana, voltada a atender as necessidades das camadas populares mais necessitadas, um primeiro ponto de ruptura, para que isso, de fato, possa se suceder deve acontecer urgentemente. É imprescindível, para isso, que se rompa com a idéia dominante da estatística voltada unicamente na obtenção cega de elevadas taxas de crescimento econômico. A tradição da teoria econômica, desde a obra seminal de Adam Smith, em 1776, tem sido manifestada largamente nos livros-texto insistindo que o crescimento econômico é a receita infalível para o progresso de cada um.Em síntese, essa recomendação atesta que basta viver sobre uma economia em franco crescimento que as oportunidades sociais logo serão estendidas a todos, e as necessidades básicas de cada um, por conseqüência, serão plenamente satisfeitas. Para tanto, a economia tradicional concentra todas as forças na busca desse crescimento, ignorando, conseqüentemente, as ocorrências dos passivos ambientais advindos de um crescimento agressivo em termos de recursos naturais explorados à exaustão. A matemática do crescimento econômico a qualquer custo tem sido míope em termos de análises dos fatos colaterais. O que importa é crescer, recomenda com veemência a economia tradicional que vê crescimento como sinônimo de progresso, e confunde consumo material com felicidade.

Por outro lado, é importante ressaltar que, definitivamente, o ponto central de uma economia que seja mais humana e menos tecnicista, mais social e menos mecânica, diferente, portanto, dessa economia tradicional que tem dominado o ambiente econômico, está em usar as técnicas e modelos econômicos

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conhecidos de maneira a atender satisfatoriamente as necessidades dos mais desfavorecidos; dos "excluídos da economia mundial", para tomarmos emprestadas as palavras do Nobel Amartya Sen.

Nesse sentido, o eixo dessa economia mais solidária consiste em colocar as pessoas em primeiro lugar. O que importa para nós que defendemos essa linha de raciocínio são as pessoas e suas necessidades elementares, e não o mercado e suas mercadorias. Para nós comprometidos com a ruptura/mudança em favor de uma economia mais justa, crescimento é visto como algo tecnicamente quantitativo, enquanto que desenvolvimento envolve mudar o foco para os termos qualitativos, incluindo, evidentemente, a possibilidade de se atingir bem-estar.

Aceitar essa última premissa como verdade e, antes, fazer disso um ideal a ser buscado, é se colocar ao lado daqueles que tanto necessitam de ajuda: os "excluídos da economia mundial" cujas cifras são, ano após ano, cada vez mais assustadoras em termos mundiais: 1 bilhão de estômagos vazios; 1,5 bilhão de pessoas sem acesso à água potável; dezenove crianças com menos de cinco anos de idade mortas a cada cinco minutos de pneumonia; 500 mil mães morrendo a cada ano na hora do parto devido a assistência médica insuficiente; cinco milhões de crianças que, a cada ano, não chegam a completar cinco anos de vida.

Nesse pormenor, a economia (ciência e atividade produtiva) tem todas as condições de fazer avançar um programa de recuperação social, desde que, é claro, se rompa, abruptamente, com o pragmatismo dominante da tradicional economia que insiste em medir a realidade social pelos números e por valores monetários, como se a "vida econômica" fosse tão somente uma questão matemática. É urgente, pois, mudar-se o eixo da economia e, definitivamente, firmar políticas públicas que coloquem as pessoas em primeiro lugar; afinal, a economia, enquanto ciência, desde a parte final do século XVIII, nasceu para dar uma resposta positiva à vida de todos nós.

(*) Economista brasileiro, professor do UNIFIEO, da FAC-FITO.Mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e Especialista em Política Internacional. Autor dos livros "Conversando sobre Economia" (Ed. Alínea) e "Pensando como um Economista" (eBookBrasil). Contato: [email protected]

Cidadania

A “esperança equilibrista” dos evangélicos - Antonio Carlos RibeiroSegunda-feira, 13 de junho de 2011 - 15h39min

por Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC)

Para muitos a novela “Amor e Revolução”, do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), seria apenas uma tentativa de passar a limpo o período mais vergonhoso da história recente do país. Os militares bradaram, através de um sítio na internet, mas logo descobriram que no Estado de Direito da sociedade globalizada os berros podem virar sussurros. O programa tornou-se moldura para os depoimentos que, candentes e surreais, são a expressão dos que sobreviveram à tortura, à censura e à ditadura. Agora chegou a vez dos evangélicos e sua participação no movimento revolucionário iniciado no dia 31 de março à meia-noite, que logo se mostrou uma caricatural quartelada de 1º de abril que impôs ao país regras da caserna – incluída o cala a boca e o calabouço – com traços pitorescos, como o policial que leva o frade para jantar com sua família, antes de entregá-lo ao delegado. Agora começa o relato testemunhal de quem resistiu e guardou a memória do horror. Do líder carismático que entendeu que o golpe militar era a resposta à batalha do céu até o líder eclesial que negou a existência de tortura e teve como reação a transferência de uma assembleia mundial, em 1970. Ao mesmo tempo, havia comunidades de fé em sessões de oração e êxtase, enquanto brasileiros e brasileiras eram supliciados – do sequestro de filhos até o assassinato “exemplar” de militares – e de “acidentes” como o do Riocentro. Outras guardaram a memória dos torturados e assassinados, dos que morreram sem ver o país defrontar-se consigo mesmo, e dos que a vivem este momento. Pela fé. A repatriação de documentos do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), de Genebra, Suíça, e do Center for Research Libraries, de Chicago, EUA, na Procuradoria Regional da República da 3ª Região, é, talvez, o momento de maior maturidade vivido pela cidadania brasileira. Esse gesto coincide com a marca de

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lideranças religiosas como o rabino Henry Sobel – com apenas 32 anos e recém chegado ao Brasil, presidindo o sepultamento do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975 – para o qual pediu a ajuda do cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e do pastor James Wright – mais conhecido como Jaime – da Igreja Presbiteriana Unida. O Projeto “Brasil: nunca mais”, que se iniciou desse contato, levantou um conjunto de documentos entre 1979 e 1985, através de 30 advogados, obtendo informações de mais de  1 milhão de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar (STM) que, ao serem sistematizadas, revelaram a extensão da repressão política no Brasil no período de 1961 a 1979. A obra, de 312 páginas, foi assinada pelo cardeal Arns, que é Doutor em História pela Sorbonne, fazendo um registro histórico da repressão. O livro foi publicado pela editora Vozes em 1985. Um dos casos emblemáticos, que recebe destaque nesta semana, é o de Anivaldo Padilha, estudante de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP), preso em 1970, aos 29 anos, e torturado no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Ele admitiu até ter pensado em suicídio, pelo medo de trair os irmãos da igreja que partilhavam seus ideais de luta pela justiça, mas suportou calado a tortura, apesar do corpo franzino, e a prisão por dez meses, até ser mandado para o exílio, que amargou por 13 anos, no Uruguai, na Suíça e nos Estados Unidos. Houve muitos casos em que pessoas que atuavam na igreja sofreram essa dupla dor: estarem submetidas à ofensa, ameaça, pressão psicológica, estupros, sequestro de parentes, tortura diante de parentes – um verdadeiro bestiário moderno – e à segunda, ao se descobrir denunciado por um membro da mesma comunidade de fé, em alguns casos um membro da diretoria ou até mesmo o pastor. Muito recentemente, esse pano de fundo de horror voltou a dar as caras na articulação político-religiosa-inconstitucional para impedir a eleição de Dilma Rousseff, mostrando-se completamente frustrada. A participação dos setores mais conservadores das igrejas, liderados por padres, bispos e pastores que manipularam os grupos mais controlados e desinformados, como um lumpen operariado, despolitizado e economicamente vulnerável. Além disso, houve a articulação de púlpitos e sacristias assumindo o crime de orientar fieis pela internet e em horário eleitoral, e as coberturas de emissoras de rádio e TV, portais, revistas e jornais do país, articulando as redações num discurso único, mas acabaram obtendo míseros 5,5% de aumento em relação aos resultados do segundo turno das eleições anteriores. A última manifestação da direita religiosa, de poucos dias atrás, veio após a sessão em que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu os direitos civis de homossexuais e os tumultos causados pela reação em defesa da família, em que religiosos, militares, deputados de partidos conservadores, especialmente os que têm em comum as concessões de veículos de comunicação oferecidas pela ditadura como gesto de gratidão pelo apoio, com os quais exerce a influência sobre setores populacionais pobres, despolitizados e com necessidades básicas, atendidas a custo de votos. Em todos esses casos percebe-se que a participação política dos evangélicos tem – além da marca de sua fragmentação – a de bastante dependente de um conservadorismo baseado em lideranças, da influência da moral do dever e de certo deslumbramento diante da possibilidade de chegar ao poder.Veja mais notícias de Antonio Carlos Ribeiro

Cidadania

13 de maio: Avanços simbólicos e reais na luta dos negros no BrasilQuarta-feira, 11 de maio de 2011 - 16h03min

por Victória A. P. Mantoan

O tema da luta dos negros no Brasil é fundamental. Estamos chegando ao 13 de Maio, comemoração do fim da escravatura no país. Pode-se desenvolver, a partir da própria data comemorativa, vários questionamentos a respeito da luta negra e do seu espaço dentro da sociedade brasileira. A simbologia de um dia em que foi definida a abolição da escravatura marca uma evolução social, mas não deixa de ser em si uma data simbólica.

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Infelizmente a escravidão não teve seu fim pela percepção dos núcleos de poder da nossa sociedade de que os negros eram indivíduos e mereciam respeito e direitos iguais aos dos outros cidadãos. Ela acabou porque economicamente era muito mais interessante para a burguesia que vinha tomando o poder transformar essa mão-de-obra em assalariada e,  consequentemente, em mercado consumidor para a indústria que vinha surgindo.

Anos após esse impulso não tão bondoso, mas ainda assim significativo para os negros, seus descendentes são tidos como maioria no Brasil pela última pesquisa realizada pelo IBGE. Ou seja, a comunidade negra já ocupa uma parcela enorme da sociedade brasileira e, ainda assim, continua, em boa parte, numa situação periférica. Os brancos continuam a dominar o ambiente das grandes empresas e escritórios, das salas de aulas das universidades públicas e privadas e do corpo docente das melhores universidades do país. Qual o significado disso?

Continuamos a trabalhar com avanços simbólicos. Esquecemo-nos que estamos diante de uma herança sócio-cultural que subjuga o pobre e o negro, que muitas vezes são a mesma pessoa. Temos que reconhecer que muito foi feito para amenizar a diferença de direitos decorrente da cor, mas muito pouco avançou no sentido de passar essas mudanças para o cotidiano.

Hoje, é ilegal ter preconceitos contra os negros, não se pode deixar de empregar uma pessoa porque ela é negra, não se pode impedir que ela entre no seu restaurante pela sua cor, nem que ela namore sua filha; mas isso acontece. Talvez não com uma proibição direta, pode ser um preconceito mascarado, ou, até mesmo, um preconceito histórico, que nós, enquanto sociedade, ainda praticamos.

Nenhum projeto social conseguiu mudar a situação dos negros Não se conseguiu colocar uma maioria negra nas escolas, nas universidades, por conseqüência, muitos têm dificuldade de se inserir no mercado de trabalho de forma a receberem uma remuneração mais adequada e, logo, deixam de ter o acesso aos mesmos produtos e serviços que as elites econômicas têm.

As conquistas do movimento negro não devem, é claro, ser desvalorizadas, e são significativas, mas não se pode deixar de ver que o caminho ainda é muito longo e que a herança que nos foi deixada ainda é muito forte. Estamos vivendo de sucessivos “trezes” de Maio.

Victória A. P. Mantoan é estudante de Jornalismo.

Teologia da Libertação

Se a teologia se dedica a repetir o que já está dito, nunca avançará - José Maria CastilloQuarta-feira, 4 de abril de 2012 - 8h32min

por Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

Uma das coisas mais surpreendentes, que chama a atenção na recente "Notificação sobre algumas obras de Andrés Torres Queiruga" (30-03-2012), publicada pela Comissão para a Doutrina da Fé, da Conferência Episcopal Espanhola, é que este documento, relativamente curto (não chega a seis páginas, na edição que a Conferência Episcopal publicou na Internet), justifica com 80 notas de rodapé, a doutrina que se expõe no documento. É evidente que os autores da Notificação querem justificar solidamente suas afirmações.

O artigo é de José María Castillo, teólogo espanhol, com vários livros traduzidos para o português, publicado em seu blog Teología sin Censura, 02-04-2012. A tradução é do Cepat.

As referidas 80 notas dividem-se em dois blocos, claramente perceptíveis: o bloco de afirmações, que reproduzem os ensinamentos de Torres Queiruga, por um lado, e o bloco das afirmações dos censores (o bispo Adolfo Montes e o teólogo José Rico Pavés), que questionam ou rebatem os ensinamentos de Queiruga.

Pois bem, o notável é que quando se trata de questionar ou rebater o Torres Queiruga, os censores não aduzem argumentos adotados da Bíblia, dos Padres da Igreja ou dos grandes teólogos (encontrei

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somente uma citação de S. Tomás de Aquino). Ou seja, para rebater uma teologia solidamente bíblica, patrística e enraizada nos mais sérios ensinamentos dos grandes mestres da teologia cristã, os censores lançam mão dos ensinamentos do recente Magistério Eclesiástico. Eles mesclam indistintamente uma citação do Concílio de Trento, os ensinamentos do Catecismo da Igreja Católica ou as doutrinas apresentadas, recentemente, pela Congregação para a Doutrina da Fé, pela Conferência Episcopal Espanhola ou pela Comissão Teológica Internacional. E isto é feito sem especificar o valor teológico, vinculante à fé, que cada um desses documentos possui. Isto é preocupante, pois, como terá o mesmo valor doutrinal um ensinamento do Evangelho e um que se encontra no Catecismo?

No fundo, o pensamento dos censores nos vem dizer: o Magistério Eclesiástico afirma que isto é verdade ou isto é mentira, porque o mesmo Magistério disse que é verdade ou é mentira. Mediante semelhante procedimento, a Revelação, que os censores querem defender, na realidade fica deslocada. E é substituída pelo Magistério. Do ponto de vista da história da teologia cristã, isto é grave. Porque, definitivamente, com isso, coloca-se o Magistério acima da Revelação divina.

Porém, não é só isso. Se Torres Queiruga tem buscado algo, é o de "repensar" os grandes temas da teologia cristã. Neste sentido, dentro da ortodoxia teológica, Torres Queiruga tem sido um inovador. Isso exige uma razoável dose de "dissidência". Se a teologia se dedica a repetir o que já está dito, nunca avançará. E nunca, é claro, dará resposta às novas questões que os crentes se colocam. Isto é o que Torres Queiruga tem desejado superar. Atitude louvável e meritória.

Por isso, quero terminar esta reflexão recordando o que o dominicano Y. Congar escreveu para sua mãe, em setembro de 1956: "O papa atual (Pio XII), sobretudo a partir de 1950, desenvolveu um regime paternalista consistente, em que ele, e somente ele, diz ao mundo, e a cada um, o que pensar e como atuar. Pretende reduzir aos teólogos ao papel de comentaristas de seus discursos, sem que, sobretudo, possam ter a vontade de pensar algo, de ter qualquer iniciativa fora dos limites desse comentário: exceto, repito, numa margem muito estreita, perfeitamente demarcada e vigiada, de problemas sem consequências".

Isto, dizia aquele eminente teólogo que, ao final de seus dias, foi nomeado cardeal da Igreja pelo papa João Paulo II. Agora, o problema mais sério é que a situação está mais complicada. Porque já não se trata somente de repetir e comentar o que disse o papa, mas, além disso, repetir o que disse qualquer cardeal, qualquer bispo ou, inclusive, o teólogo conselheiro de uma comissão episcopal. E estranhamos que a Igreja tenha cada dia menos credibilidade? E, com estes procedimentos, surpreende-nos que os que mandam na Igreja sejam os primeiros que estão nos dividindo e enfrentando uns com outros?

Teologia da Libertação

Entrevista com Jon SobrinoQuinta-feira, 31 de março de 2011 - 10h17min

por Adital

Entrevista com Jon SobrinoJon Sobrino nasceu em Barcelona é um sacerdote e teólogo jesuíta que vive em El Salvador, importante expoente da Teologia da Libertação. Licenciado em Filosofia, mestre em Engenharia Mecânica (St. Louis University) e doutor em Teologia (Universidade de Frankfurt), é diretor do centro Monsenhor Romero e professor de teologia na Universidad Centroamericana de San Salvador - UCA.

Durante a ditadura militar salvadorenha, Sobrino escapou de ser assassinado no massacre à comunidade jesuíta ocorrido em 16 de novembro de 1989 quando um grupo paramilitar entrou na Universidad Centroamericana, onde era professor, e assassinou seis jesuítas, a cozinheira e sua filha. Sobrino não estava na casa por estar substituindo Leonardo Boff em um curso de Cristologia na Tailândia.

Foi condenado a silêncio obsequioso pela Congregação para a Doutrina da Fé (o antigo Santo Ofício, cuja função é promover e tutelar a doutrina da fé e da moral em todo o mundo católico romano).

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Escreveu diversas obras entre elas: Voz dos sem voz: a palavra profética de D. Oscar Romero (em co-autoria). São Paulo: Paulinas, 1987; Solidários pelo reino (em co-autoria com Juan Hernandez Pico). São Paulo: Loyola, 1992; A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas. Petrópolis: Vozes, 2001; Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo: Paulinas, 2008.

Escobar: Em um de seus livros "Fora dos pobres não há salvação", você diz que a igreja se perde a partir do momento em que se centraliza na culpa e não no sofrimento do ser humano. É ainda possível reverter essa centralidade?Jon Sobrino: O que eu quis dizer é o que está no fundo da conhecida frase de J.B. Metz: "O primeiro olhar de Jesus não se dirige ao pecado, mas ao sofrimento dos outros [...]. A doutrina cristã da redenção dramatizou em excesso a questão da culpa e relativizou a questão do sofrimento" (Memoria passionis, pp. 164-165).

Isto em absoluto ignora o "pecado", que há muitos anos defini como "o que gera morte". Pecado é aquilo que "deu morte ao Filho de Deus e pecado é o que gera a morte dos filhos e filhas de Deus". Nessas mortes, e em todo tipo de sofrimento infligido, deve se centralizar antes de tudo a igreja.

O central são as vítimas, e convém ter muito presente os que geram as vítimas, o que também a igreja tem dificuldade de fazer. Estes podem ser pessoas, grupos como oligarquias, exércitos, paramilitares, bem como estruturas econômicas e políticas que geram morte. Também os meios de comunicação, ambientes culturais, uma vez que podem facilitá-las ou acobertá-las.

Em breves palavras, quero agora citar uma das últimas frases de José Comblin, que acaba de morrer: "Não é preciso enrolar muito. O mundo se divide entre opressores e oprimidos". Indubitavelmente há que se levar em conta "a culpa" - sobretudo dos opressores, e também, em menor medida, a dos frágeis. Mas primeiro é o sofrimento dos frágeis. Assim começou tudo. Sejam quais forem os "pecados" das tribos de escravos do Egito, o olhar de Javé dirigiu-se a seus sofrimentos, e seus ouvidos a seus clamores. É possível ser humano e cristão desta forma? Sim. Assim foi Monsenhor Romero.

Escobar: Algumas correntes dizem que a Teologia da Libertação, com o passar dos anos, não se renovou e inclusive tendem a dizer que morreu. Como você vê esta afirmação?Jon Sobrino: A Teologia da Libertação surgiu com a irrupção dos pobres e de Deus neles, ao redor de Medellin. Houve uma geração de bispos que temos chamado de Padres da Igreja latino-americana: Don Helder Camara, Leonidas Proaño, Don Sergio e Don Samuel, Oscar Romero, grupos sacerdotais. Ocorreu a renovação da vida religiosa, que se cristalizou na CLAR, e a proliferação das comunidades de base... Nesse contexto surgiram teólogos como Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo, José Comblin, Leonardo Boff, Ignacio Ellacuría...

É certo que essa geração de teólogos passou, e não vejo que tenha surgido outra semelhante. Mas, sim, acredito que a irrupção original do pobre tem facilitado outras irrupções: os indígenas, afro-americanos, a mulher, a mãe terra... E essas irrupções seguem gerando pensamento teológico. Positivamente, vejo em vários teólogos e teólogas que as raízes da Teologia da Libertação estão vivas e que continuam produzindo pensamento. Outra coisa é qualidade intelectual, metafísica se assim se quer, que não tem porque ser como a dos pioneiros.

Em qualquer caso, chame-se como se chame, a Teologia da Libertação continua sendo uma necessidade em nosso continente e em nosso mundo. Enquanto for vista como necessidade, não está morta. O dia em que não for mais necessária, pensaria sim que morreu. E tampouco estaria muito vigorosa uma Cristologia de Jesus de Nazaré, nem uma teologia do Deus cuja glória é que o pobre viva, como dizia Monsenhor Romero.

E não há que esquecer que Rockefeller, em 1968, e Ronald Reagan, em 1981, declararam guerra à Teologia da Libertação. E que o Cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação da Fé, atacou-a com pouco conhecimento e sem rigor científico, na instrução de 1984. As cúrias e os seminários não a têm acolhido. Se a faísca permanece é meritório. Mas acima de tudo é frutífera porque a faísca continua sendo coisa real.

Escobar: Qual é o desafio da Teologia da Libertação diante do crescimento da Teologia da Prosperidade na América Latina?Jon Sobrino: Desconheço dita teologia. O nome me produz surpresa e acima de tudo suspeita.

Escobar: Algumas correntes eclesiásticas tendem a monopolizar a salvação ou dogmatizá-la. Qual é sua visão da salvação humana?

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Jon Sobrino: Monopolizar e dogmatizar são expressões que, logicamente, não podem acompanhar o conceito "salvação". Quem salva é "Deus", através de mediações, como dizemos hoje, ou de causas segundas, como se dizia antes. O que há que salvar é "o ser humano", pessoal e socialmente. O conteúdo é o "Deus tudo em todos", como diz Paulo; "o reino de Deus", como diz Jesus. O modo fundamental na salvação é a graça: "Deus nos amou primeiro". E, uma vez agraciados, "nós agraciarmos os demais".

Isto pode ser formulado de muitas maneiras na tradição bíblica e cristã, e em outras. Há que pensar em como fazê-lo real na história: a libertação, a humanização... Pessoalmente impacta-me e anima o que nos diz Deus em Miqueias 6,8: "Foi-te anunciado, ó homem, ó mulher, o que é bom, e o que o Senhor deseja de ti. Que pratiques a justiça, que ames com ternura e que caminhes humildemente com teu Deus". Jesus anima a um caminhar em seu seguimento. E Casaldáliga, com Antonio Machado, adverte ao caminhante, que não há caminho, senão que se faz caminho ao andar. Mas acrescenta que é preciso caminhar "de modo que os atrasados possam nos alcançar", isto é, para que possamos caminhar todos juntos. E certamente com os pobres e as vítimas deste mundo.

Viver assim é viver salvos, cada um e cada uma. Coloca-nos na direção de um mundo humano, com relações e estruturas humanas. E encaminha-nos, na confiança e disponibilidade, ao mistério, "o que os olhos não viram, nem ouvidos ouviram". A esse Deus Jesus chamou Pai e nele descansou. É esse Pai que não nos deixa descansar.

Escobar: Qual é o grande desafio das lutas populares no século XXI diante da globalização?Jon Sobrino: Não sou nenhum experto em lutas populares. Relembrando o que vivi em El Salvador nas décadas de setenta e oitenta, desejaria que os de baixo, oprimidos, reprimidos, exprimidos, tenham consciência coletiva de que "eles e elas" são povo, o povo da terra e o povo de Deus. Que não se deixem enganar pelos não pobres. Que não procurem o que é viver em abundância arrogante e cruel, "a civilização da riqueza" como dizia Ignacio Ellacuría. Que não percam o que lhes tem ensinado o viver em baixo da história: acolhida, fé, muitas vezes entrega, às vezes sem limites, até o martírio. Que tenham a grandeza, alguma vez, de nos perdoar. Obviamente, que se organizem, que acumulem energia social, que trabalhem e lutem sem desfalecer.

Aos pobres, esperaria que os ajudemos e possamos dar-lhes ânimo em tudo, como fazia Monsenhor Romero. É o milagre que formulou para os não-pobres com estas palavras metafísicas, se me é permitida a expressão: "o real não somos nós".

Podem ver que não tenho muito a dizer.

Escobar: É possível melhorar o capitalismo ou somente uma nova alternativa pode ser mais humana?Jon Sobrino: Até o dia de hoje, parecem-me de plena atualidade as palavras que pronunciou Ellacuría em Barcelona no dia 6 de novembro de 1989, dez dias antes de ser assassinado. O diagnóstico era, e é, o seguinte: "A análise cropológica, isto é, o estudo das fezes da nossa civilização, parece mostrar que esta civilização está gravemente doente e que para evitar um desenlace fatídico e fatal é necessário tentar mudá-la a partir de dentro de si mesma". E junto com a profecia do diagnóstico, indicou o caminho da utopia. "Somente utópica e esperançadamente podemos acreditar e ter ânimo para tentar, com todos os pobres e oprimidos do mundo, reverter a história, subvertê-la e lançá-la em outra direção". São palavras de um analista, um cristão e um mártir.

Repito que não sou experto em análise. Somente me ocorrem duas coisas. Uma, a mais realista, é apontar ao "mal menor", em meio a gente boa e comprometida. A outra é a obstinação cristã e latino-americana de Dom Pedro Casaldáliga: apesar de tudo há que manter sempre a esperança. E sempre há sinais de que alguma coisa se move em nosso mundo. A eles é preciso indicar e não abandoná-los nunca.

Escobar: A ideia em relação a Deus e que prevalece, em grande maioria no meio do atual sistema, é a figura de um Deus vencedor e soberano. Você fala de uma visão de um Deus que sofre e que se encontra em lugares onde não costuma ser procurado. Poderia nos deixar, para finalizar, uma pequena reflexão sobre esta forma de ver Deus?Jon Sobrino: Acredito que hoje prevaleçam várias ideias de Deus. Uma, pode ser a de um Deus vencedor e soberano, à qual se poderia acrescentar a de um Deus juiz e castigador no fim dos tempos. Outra, a de um Deus que se tem desentendido com este mundo. E há também o agnosticismo, a incredulidade e, cada vez mais, o desinteresse em um mistério último.

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Outros tomam - procuramos tomar - a sério o Emanuel, um Deus conosco. Escutam clamores. Querem colocar de pernas para o ar o mundo: "aos pobres os enaltece e aos ricos despede-os de mãos vazias". Querem salvar os escravos. Sua transcendência faz-se transdescendência para chegar a ser condescendência. É um Deus conosco, para nós e, às vezes, à mercê de nós. É o Deus da cruz de Jesus. Ama-nos impensavelmente, como dizem Paulo e João. Atualizamos suas palavras como estas de Martin Luther King:

"Vocês podem fazer o que queiram, mas nós os seguiremos amando. Enfiem-nos nas cadeias, e ainda assim os amaremos. Lacem bombas contra nossas casas, ameacem nossos filhos e, por difícil que seja, os amaremos também. Enviem assassinos às nossas casas na escuridão da meia-noite, espanquem-nos, e ainda estando moribundos, os amaremos".

É o Deus crucificado, presente em nós. E é também o Deus da ressurreição, a de Jesus, a de Monsenhor Romero, bem como a de muitos mártires e caídos. Historicamente, faz-se realidade o intenso desejo de que "o carrasco não triunfe sobre a vítima".

[Tradução: Paulo Escobar].

Cidadania

As aventuras dos jangadeiros do Nordeste - Elaine TavaresSegunda-feira, 19 de março de 2012 - 19h54min

por Adital Notícias da América Latina e do Caribe

Quem já viu uma jangada navegando suave no mar do nordeste certamente não sabe que este tipo de barco é genuinamente típico daquela região do Brasil, existindo apenas na pequena faixa do litoral de 2.600 quilômetros que vai do Ceará à Bahia. Nesse mar navegam 4.200 jangadas dirigidas por seres humanos que poderiam figurar entre os mais extraordinários da terra. Essa é visão do escritor Raimundo Caruso que vivenciou a luta diária dos jangadeiros durante seis meses, em pelo menos sete estados do Brasil. Junto com sua mulher Mariléia Caruso, Raimundo descortinou a história desses formidáveis navegadores, protagonistas de lutas homéricas, sendo que uma delas resultou numa conquista importante para todos os pescadores do país: a aposentadoria.

O resultado da pesquisa e das incontáveis entrevistas está no livro "Aventuras dos jangadeiros do nordeste" no qual Caruso conta sobre as grandes viagens feitas pelas frágeis jangadas e seus incríveis condutores para o Rio de Janeiro e Buenos Aires, em busca de visibilidade para suas lutas. Ali se pode saber sobre o maior de todos os jangadeiros, mestre Jerônimo, que, decidido a mostrar ao governo brasileiro sobre a necessidade de os pescadores terem direitos assegurados empreendeu três arriscadas viagens para o sul, a bordo da sua inseparável jangada, fazendo o que nenhum outro jangadeiro jamais havia sonhado. Sem bússola, sem carta náutica, sem nada além dos seus conhecimentos empíricos da vida no mar, ele e mais três companheiros enfrentaram o mar e os perigos do sul para lutar por todos os pescadores do Brasil.

O livro composto por Raimundo Caruso é um tropel de emoções. Impossível não se comover com a louca pureza desses navegadores nordestinos que numa embarcação tão frágil conseguem garantir seu sustento no rarefeito mar do nordeste, pouco piscoso. Pela mão do escritor vão surgindo os personagens que se

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dizem na voz deles mesmos ou de seus velhos companheiros. Palavra nordestina, voz jangadeira, filosofia do mar. A bordo de suas jangadas, velas ao vento, esses homens se arriscam todos os dias em epopeias marítimas de tirar o fôlego, mas que para eles é só mais um dia de trabalho. Não falam das tragédias passadas: "é preciso saber ler o que vem, não o que já passou", asseveram com sabedoria. E perscrutam o lá na frente em busca do peixe cotidiano, sempre de olho num bem-virá.

Uma das aventuras dos jangadeiros do Ceará é uma viagem feita até Buenos Aires que durou meses. Enfrentando um clima completamente adverso de suas paragens nordestinas, os jangadeiros tiveram de se amarrar à jangada para não serem arrastados pelas ondas geladas do sul. Nunca desistiram e chegaram ao porto de Buenos Aires onde seus irmãos pescadores os miravam com incredulidade a repetir: "imposible, imposible". Esses homens mágicos estão todos dentro desse livro incrível que merece ser conhecido. Porque nos coloca diante desses heróis cotidianos, que fazem a vida valer a pena. E a escrita de Caruso, forte como a vida dos jangadeiros, nos conduz a esse mundo de belezas e nos comove até as lágrimas. O exemplo da luta desses homens do mar do nordeste, que se alçam ao mar com suas velas enfunadas, foi o que garantiu a aposentadoria que hoje todos os pescadores do Brasil podem desfrutar. Só isso já vale para se debruçar sobre essas histórias heroicas.

O livro é uma edição do autor, não está nas livrarias, coisas do absurdo mundo editorial que prefere promover lixo, mas pode ser adquirido por correio, em contato direto com o autor (R$ 15,00). Raimundo Caruso é escritor veterano, de obras importantíssimas com escritos sobre a Bolívia, a Nicarágua, a República Dominicana. Também escreve ficção e até ganhou o prêmio nacional "Cidade de Belo Horizonte", com o romance Noturno, 1894.

Contato com o autor : [email protected] o vídeo - http://youtu.be/4EATm_wIytQ