Constituição Weimar

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     A REPÚBLICA DE WEIMAR E A CONSTITUIÇÃO: LIÇÕES DE

    LIMITAÇÕES

    THE WEIMAR REPUBLIC AND THE CONSTITUTION:LESSONS ON LIMITATIONS

    BRUNO  DE  SOUZA  VICHIEspecialista em Direito Constitucional pela ESDC. Professor licenciado de

    Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional da Unib/SP. Diretor Jurídicoda Radiobrás – Empresa Brasileira de Comunicação S.A.

    SUMÁRIO: 1. Advertências iniciais – 2. República de Weimar e a sua

    Constituição: 2.1 Contexto histórico; 2.2 Contexto jurídico – 3. Definições

    de Constituição – 4. Telos constitucional – 5. Dos limites da Constituição

     – 6. Realidade constitucional brasileira – 7. A experiência constitucional

    brasileira – 8. Comparações finais – 9. Conclusões.

    RESUMO:  “Na paisagem histórica do século XX poucas épocas eregimes políticos foram tão conturbados quanto o período englobado

    pela chamada República de Weimar. Durante quatorze anos, do final

    de 1918 ao início de 1933, a Alemanha fez a sua primeira experiência

    republicana em meio ao caos: greves, assassinatos políticos, tentativas

    de tomada do poder à direita e à esquerda, militarização dos partidos

    políticos e progressivo esvaziamento das instituições estatais”.1   O

    período referido acima encontra sua identidade terminológica estrita-

    mente relacionada a um dos documentos jurídicos de significativo

    destaque do cenário histórico mundial do século passado: a Constituição

    de Weimar. Mas essa identidade supera a mera questão de termino-

    logia. Inquestionavelmente vanguardista no tocante a jurisdicização dosdireitos fundamentais,2  sensivelmente impotente às transformações do

    contexto histórico alemão da época, muitos atribuem à Carta Magna

    alemã os louros pela mudança, em nível global, de paradigmas jurídicos

    relacionados à transformação dos direitos dos homens e das mulheres,

    outros tantos a ela conferem o ônus pela ascensão da principal chaga

    do século passado: o nazismo. O presente trabalho, partindo do estudo

    do contexto histórico-político do período de Weimar (1918 a 1933) e

    de uma análise científica da Constituição, estabelece confrontos entre

    a experiência constitucional alemã do início do século e a experiência

    constitucional brasileira atual – Constituição brasileira de 1988. As

    limitações da Constituição sob as clássicas acepções do “telos 

    constitucional” são o resultado desta investigação científica.

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    PALAVRAS-CHAVE: Weimar. Telos   constitucional. Limites. Força normativa.

    ABSTRACT: In the 20th  Century’s historical landscape, few époques and political

    regimes have been quite as turbulent as that of the Weimar Republic. For 14 years

    from the end of 1918 until the beginning of 1933, Germany had its first republicanexperience amid much chaos. A chaos generated by strikes, political murders, coup

    attempts by the right and left-wing, militarization of political parties and the gradual

    sacking of state institutions.3   The terminological definition of this period is strictly

    connected to one of the 20th  Century’s most important legal documents: that of the

    Weimar Republic. But this identity is greater than mere semantics. It was unques-

    tionably in the vanguard on the compartmentalisation and legalisation of fundamental

    rights.4   It was clearly to Germany’s historical transformations during that period. So

    much so that many refer to it as the German Magna Carta crediting it with changing

    throughout the world, the legal paradigms related to the transformation of the rights

    of men and women. Others credit it with being the cause for the ascension of one

    of the 20

    th

     Century’s worst afflictions; Nazism. This article begins with a study of thehistory and politics of the Weimar period (1918 to 1933) and a scientific analysis of

    the constitution. The article identifies conflicts between the German constitutional

    experience of the beginning of the century, and the current Brazilian constitutional

    experience – that of the Brazilian constitution of 1988. The limits of the Constitution

    over the classic and fullest meaning of “constitutional telos ” are the result of this

    scientific investigation.

    KEY WORDS: Weimar. Constitutional telos . Limits. Normative force.

    Recebido para publicação em janeiro de 2004.

    1. Advertências iniciais

    Qualquer comparação a respeito da si-tuação social vivida nos anos de Weimarna Alemanha com a atual situação brasi-leira, exercida de maneira simplista e de-

    savisada, pode levar a conclusões inade-quadas.

    Os fatores históricos que ensejaram apobreza e o caos social na sociedade alemãe seu reflexo mais significativo, a eclosãodo nazismo, possuem justificativas históri-cas que em larga medida se diferenciam docontexto social brasileiro, sob a égide daConstituição de 1988. Ademais, ainda queseja possível identificar certas semelhançasentre a problemática social alemã do início

    do século passado e a brasileira, a partir dofinal do século passado, não se podeconcluir, apenas sob o olhar da possibili-dade de interferência das Constituições nosseus respectivos Estados, que as conse-qüências de tal situação nos levarão a uma

    experiência idêntica à alemã, ainda que sobvários aspectos estas mesmas Constituiçõesapresentem semelhanças (principalmentequanto à generosidade referente aos direi-tos fundamentais).

    Conforme se verá, o caos provocadopela derrota em uma guerra de proporçõesglobais, a instabilidade política causadapelas disputas entre os partidos políticosemergentes e, principalmente, a celebraçãodo famigerado Tratado de Versalhes, acor-

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    do internacional do pós-guerra que impri-miu à Alemanha uma série de restriçõespolíticas, militares e financeiras, foramfatores determinantes para o agravamentodas condições sociais do Estado alemão,bem como para a viabilização do projetonazista. Já a realidade brasileira foi marca-da por uma experiência antidemocráticamalsucedida dos militares e, recentemente,em face da abertura de seu mercado internoe pela necessidade de obtenção de recursosfinanceiros de agências econômicas inter-nacionais, sensivelmente influenciada porpolíticas internacionais. Cite-se, a título deexemplo, o tão comentado e pouco conhe-cido Consenso de Washington.5  Entretan-to, não se verifica a possibilidade de ascen-são de uma ideologia reacionária (a não serpor meio de um discurso reacionário vol-tado ao combate à criminalidade); pelocontrário, percebe-se um esgotamento emrelação ao pensamento conservador brasi-leiro, com a ascensão gradativa de quadrospolíticos comprometidos com a causa so-cial brasileira.

    Com efeito, é preciso reconhecer que,em ambos os casos, a Constituição nãorepresentou nem representa o fator deter-minante para a estabilização das relaçõessociais de um Estado.

    2. República de Weimar e a sua Cons-tituição

    2.1 Contexto histórico

    O período histórico-político conhecidocomo República de Weimar inicia-se apóso término da 1.ª Grande Guerra e perduraaté o início do ano de 1933. Identifica-oo nome da cidade em que a AssembléiaConstituinte alemã, responsável pela edi-ção da Carta Magna da época, realizou seustrabalhos, Weimar, na Turíngia.

    Para a melhor compreensão deste perío-do, todavia, é importante voltar no tempoaté o ano de 1871, em que a guerra franco-prussiana teve seu fim, com uma fragorosaderrota francesa para os alemães. É nessemesmo período que se consolida o primeiroimpério alemão (1.º Reich), sob a forma deuma confederação em que prevalecia ahegemonia prussiana.

    A Alemanha permaneceu sob a regênciade Bismark até o ano de 1890. A partir deentão, inicia-se uma fase de rápida indus-trialização que perdura até os anos que

    antecedem a 1.ª Guerra Mundial, trazendosignificativos reflexos para o país. “A suapopulação aumentou vertiginosamente,passando de 41 milhões em 1871 a 49milhões em 1890 e 67 milhões em 1914.O crescimento da população e o aumentodo peso da indústria acarretaram a forma-ção de uma classe operária numericamentecompacta e concentrada em indústrias entãomodernas, nos ramos da siderurgia, quími-

    ca e eletrônica. Paralelamente deu-se umprocesso de urbanização de grande enver-gadura: enquanto em 1841 apenas 1/3 dosalemães viviam nas cidades, em 1910 eram2/3 os que nela habitavam. A população deBerlim passou de 700 mil habitantes em1867 para 4 milhões em 1913. Essa urba-nização correspondia a um impressionanteaumento numérico da classe operária emrelação ao conjunto da população: em

    1907, 44,3% eram operários e cerca de68% eram constituídos de assalariados,incluindo os comerciários e os empregado-res em serviços.”6

    É nesse período que nasce o PartidoComunista Alemão (KPD) e inicia-se oprocesso de consolidação do Partido Social-Democrata Alemão (SPD).

    No ano de 1914 irrompe a Guerra.Contrariamente ao que ensinam os manuais

    de história sobre seu estopim – assassinato

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    do príncipe herdeiro austríaco Francisco-Ferdinando, por um estudante na Bósnia,então anexada à Áustria-Hungria –, duasforam as efetivas causas do embate. Aprimeira delas era a opressão sofrida pelaexpansão industrial alemã, que se debatiacontra o rígido controle colonial do Tercei-ro Mundo exercido sobretudo pela Ingla-terra e pela França. A segunda era oproblema das nacionalidades oprimidas,sensível na Polônia e na região dos Bálcãs,e que ameaçava derrubar as fronteiras devários impérios históricos, como o austro-húngaro e o russo. Em meio a esta confron-tação encontravam-se, de um lado, a Fran-ça e o seu principal aliado, a Rússia dosczares, e de outro, a Alemanha e a Áustria-Hungria.

    Com a vitória francesa sobre os ale-mães, a França pôde experimentar o saborda vingança, materializado no documentoque selou as condições impostas pelosvencedores da Guerra: o Tratado de Ver-

    salhes.“A conferência de paz iniciada em

    Paris, em janeiro de 1919, e sem a presençados países derrotados, terminou por produ-zir um documento destinado a humilhar aAlemanha. Este texto foi entregue aosalemães em maio, com um prazo de 15(quinze) dias para resposta. Tratava-se naverdade daquilo que eles chamaram Diktat ,onde ficavam evidentes os anseios de

    revanche da França, derrotada pela Alema-nha em 1871. Os aliados exigiam a entregados poucos territórios coloniais que a Ale-manha possuía (Togo, Camerum e Sudesteafricano) e de várias fatias do próprioterritório alemão: a Alsácia-Lorena, partedo Schleswig, uma saída para o mar paraa nova Polônia através do chamado ‘cor-redor de Dantzig’ (hoje Gdansk), que cor-tava o país em duas partes, e um trecho da

    Baixa-Silésia, que viria a integrar a nova

    Tcheco-Eslováquia; tudo num total de 1/8do território alemão de 1/10 de sua popu-lação. Exigiam ainda a desmilitarização damargem esquerda do rio Reno, na fronteiraoeste, a redução do exército a oficiais decarreira em um número não superior a 100mil homens, a redução drástica do arma-mento, a quase destruição da marinha, adissolução do Estado-Maior do exército, odireito de julgar alguns ‘responsáveis deguerra’, a proibição do  Anschluss – unifi-cação voluntária da Alemanha e da Áustria– e, por fim, a fixação de pesadas somasa serem estabelecidas em dinheiro e maté-rias-primas como reparações de guerra.”

    Pelo que se denota do conteúdo destedocumento percebe-se que sua participaçãofoi marcante durante todo o período daRepública de Weimar. Talvez essa termi-nologia devesse mesmo ser alterada deforma a espelhar exatamente a influênciaque o Tratado de Versalhes teve sobre aAlemanha de 1918 a 1933, em detrimento

    do peso da Constituição...É valiosíssimo o comentário de Rei-nhard Rurup, que trata justamente do pe-ríodo inicial da República de Weimar,assinalando que “(...) A finales de juniohabía sido firmado el Tratado de Versalles,el 31 de julio fue aprobada la Constitución.Las disposiciones del tratado de paz pare-cían concretas en demasía y de gravesconsecuencias, los artículos de la Consti-

    tución, por el contrario, parecían abstractosy sin consecuencias inmediatas. La mayo-ría del pueblo hablaba del dictado de la pazy no de la Constitución”.7

    Antes ainda da celebração destes doisdocumentos de inquestionável relevo paraa Alemanha do início do século passado,um acontecimento político de significati-vas proporções ocorria: a Revolução de1918, que ensejaria a primeira experiência

    republicana deste país e viabilizaria a for-

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    mação da Assembléia Constituinte genitorada Carta de Weimar.

    Esse movimento teve como protagonis-

    tas principais a burguesia alemã, descon-tente pelo desprestígio que sofria em facedos reacionários generais alemães, e ospartidos políticos de origem proletária,dentre eles o SPD, que consagraria suahegemonia por meio da esmagadora supe-rioridade eleitoral no pleito de formação daAssembléia Constituinte, sua dissidência, oPartido Social Democrata Independente(USPD) e o Partido Comunista Alemão

    (KPD).Os fatos trazidos não deixam dúvidasde que a Alemanha ocupou destacadaposição no contexto geopolítico mundialnão somente pela participação direta nasduas guerras mundiais, mas em face dainfluência que exerceu, ao longo de todoo globo, no espaço de tempo entre elas,seja porque o movimento operário ganhou,na Alemanha, proporções significativas e,

    conseqüentemente, tornou-se um ambientefértil para a propagação do ideário mar-xista, seja porque desde esse período aAlemanha se situava entre as duas corren-tes ideológicas que polarizaram o globo aolongo do século passado: o capitalismo eo comunismo.

    De 1919 a 1922 a Alemanha enfrentouum período de grande instabilidade econô-mica, em larga medida acarretada pelos

    termos do Tratado de Versalhes, ensejandoa desvalorização do marco e a sensaçãopelas camadas médias de que o SPD erao grande responsável por tal situação.Ainda que se tenha tentado um “governooperário” formado por membros do SPD edo USPD com a complacência do KPD,como resposta à revolta de 1920 conduzidapela extrema direita (general Kapp doPartido Nacional Alemão e o general Von

    Lutwitz), o ambiente político desarticulado

    na Alemanha acarretava tensões sociais,agravamento das condições miseráveis dapopulação, bem como o surgimento de umanova corrente política – nacionalista –formada pelo exército (antidemocrático eanti-republicano, desde seus altos escalõesaté as patentes mais rasas), pelos “corposfrancos” (associações paramilitares e clan-destinas financiadas pelas grandes indús-trias), bem como pelos tradicionais parti-dos de direita – o Nacional Alemão e oPopular Alemão.

    Angela Mendes de Almeida lembra

    ainda que: “um outro problema enfrentadopela Alemanha nesse período era o dainflação. Os dados da sua ascensão podemdemonstrar os seus efeitos sobre a popu-lação: em 1919 o marco em papel-moedavalia 1/4 do marco-ouro; em 1920, 1/13;em 1921, 1/21; em janeiro de 1922, 1/50;em outro de 1922, 1/1000; em janeiro de1923, 1/40.000. As principais vítimas doprocesso inflacionário foram os assalaria-

    dos e a classe média, que havia feito suaseconomias em dinheiro. Em compensação,os meios financeiros, os proprietários ru-rais e os industriais nutriram-se da infla-ção”.8

    O ano de 1923 foi marcado pelo agu-çamento da crise social, política e financei-ra alemã. Apesar da desaprovação dosingleses e norte-americanos, os exércitosfranco-belgas ocuparam o Vale do Ruhr

    como forma de “garantir” o fornecimentode matéria-prima, visando o pagamento dasreparações de guerra. A maneira passivacomo o primeiro-ministro alemão, Cuno,aceitou tal situação, o agravamento damiséria e o clima explosivo levaram nova-mente as massas, bem como a coalizãoentre a social-democracia e a burguesia, aderrubar o governo.

    O novo governo compunha uma vasta

    coalizão nacional destinada a fazer face à

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    crise e às dificuldades exteriores. Era chefia-do por Gustav Stresemann, do PartidoPopular Alemão, figura destacada por en-tender ser possível a convivência entre acapital e a república, e contava com quatroministros social-democratas em postos-chave. Seus dois principais objetivos, umacordo com os aliados e a estabilização domarco, contribuíram para a estabilização daRepública de Weimar durante os anos de1924 a 1929. Isso não impediu, todavia,que, ainda em 1923, fosse deflagrado umgolpe nacionalista fracassado liderado por

    Hitler e Ludendorff, que acabou culminan-do na queda de Stresemann; este, por suavez, passou a exercer a função de Ministrodas Relações Exteriores. Era o início de umperíodo de estabilidade.

    Tal estabilidade alemã esteve intrinse-camente relacionada à mudança no cursoda política internacional dos aliados emface da Alemanha. “Até fins de 1923 osEstados Unidos haviam permanecido no

    mais total isolamento, recusando inclusivea participar da Sociedade das Nações. Mas,tendo alcançado ao final da Primeira Guer-ra Mundial a posição de potência econô-mica e militar, o país sentiu a necessidadede abrir campo para investir os vastoscapitais acumulados. Sob esse ponto devista a Alemanha apresentava as melhorescondições: falta de capital para investimen-to e uma forte capacidade produtiva poten-

    cial. O único senão era sua permanentecrise política.”9  Com o apoio dos inglesese diante da aparente estabilização da criseinterna alemã, em abril de 1924 foi cele-brado o Plano Dawes, pelo qual injetava-se capital na Alemanha, de forma a revi-talizar a economia, recuperando seu índicesde crescimento do pré-guerra (entre os anosde 1928 e 1929 as taxas de crescimentochegaram a 15%), bem como a vida social

    (na arquitetura o movimento  Bauhaus, no

    cinema o expressionismo, no teatro aspeças de cunho político de Erwin Piscator,Ernst Toller e Brecht, além do desenvol-vimento da pintura, música e filosofia);todavia, tornava o país totalmente depen-dente da Bolsa de Nova York.

    Cinco anos mais tarde, no entanto, ocrash da Bolsa de Nova York, a morte deStresemann e o retorno da instabilidadepolítica interna marcada pela incessantedisputa entre os partidos de centro-esquerdae esquerda (SPD, USPD, KPD) reabriram asferidas da crise alemã, agora de maneira

    implacável, viabilizando o espaço que erapreciso para que a extrema-direita divulgas-se seu discurso fácil nacionalista. Nesseperíodo a produção industrial teve uma quedada ordem de 33,2% e o número de desem-pregados, que em 1929 havia chegado a 3milhões, atingiu o número de 6 milhões noinício de 1932, o que correspondia a poucomenos de 1/3 dos assalariados. De notar quequase metade desses assalariados era sindi-

    calizada. Significa dizer que a crise econô-mica foi um golpe sobre a influência socialque exerciam os sindicatos.

    Em 1930, o deputado do centro católicoBruning assumiu o cargo de PrimeiroMinistro. É o início da ruptura institucionalformal. Sem a maioria no Congresso, Bru-ning passou indiscriminadamente a gover-nar por meio de decretos, mediante o usodistorcido de um dispositivo constitucio-

    nal, o art. 48. O SPD, que tinha maioria noCongresso, passou a fazer “vistas grossas”,pois, temendo a ascensão da direita nazistaou ainda uma efetiva ruptura institucionalpor meio de um golpe, entendia essa práticacomo um “mal menor”. Nesse período, oPartido Nacional Socialista, liderado porAdolf Hitler, ganhou proporções significa-tivas, obtendo a simpatia, quer do deses-perado e desorientado proletariado (com o

    discurso de reforma agrária sem indeniza-

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    ção, nacionalização dos trusts e responsa-bilização dos judeus-marxistas e republica-nos pela crise), quer dos altos industriais(com o discurso xenófobo e de reserva demercado e pelo fortalecimento da econo-mia alemã). O KPD estava desorientado emface do endurecimento da política de Sta-lin, durante o período de 1927 a 1930.Ademais, subestimaram os nazistas. Paraesses grupos, “(...) A instalação da ditadurafascista aberta, destruindo todas as ilusõesdemocráticas das massas e liberando-as dainfluência social-democrata, acelera o rit-mo do desenvolvimento da Alemanha emdireção à revolução proletária”. Cite-se ofato de terem votado, juntamente com osnazistas, em 1931, pela dissolução doCongresso, via referendum, na Prússia.

    Em verdade, o SPD, USPD e KPD – quesó perceberam a consolidação do projetonazista de Hitler muito “em cima da hora”– abriram um vácuo dentro do movimentoproletário permitindo a ascensão do nazis-

    mo. No dia 29.01.1933, Hitler é indicadochanceler da Alemanha e, em 24.03.1933,é decretada a Lei Plenipotenciária outor-gando poderes absolutos ao ditador alemãoe consolidando o processo de erosão cons-titucional.

    2.2 Contexto jurídico

    A primeira minuta da Constituição de

    Weimar foi elaborada pelo especialista deDireito Público berlinense Hugo PreuB,um liberal de esquerda, e contou com osuporte de vários cientistas consagrados,dentre eles Max Weber. Como objetivoprincipal, pode-se dizer que a Constituiçãode Weimar buscava consolidar o ideáriosocial-democrata e instaurar uma Repúbli-ca Parlamentarista.

    Jorge Miranda, ao comentar sobre aConstituição de Weimar, afirma que “(...)

    pode considerar-se o mais importante textonessa altura concebido e espelha bem todaa mudança no modo de encarar os proble-mas políticos, sociais e econômicos doséculo XIX para o século XX. O seuinteresse é múltiplo, quer no plano siste-mático quer no da experimentação consti-tucional; e, por isso, ficaria registrada nahistória e no direito comparado”.10

    Estabelecia a Constituição que o Presi-dente que fosse eleito por sufrágio univer-sal (art. 41) exerceria seu mandato por umprazo de sete anos, podendo ser reeleito

    (art. 43), e teria poderes para nomear edemitir o chanceler e, sob proposta deste,os ministros (art. 53); poderes para dissol-ver o Parlamento, embora uma só vez pelomesmo motivo (art. 25); promulgar leisvotadas em conformidade com a Constitui-ção (art. 70) e poder submetê-las a referen-do (art. 73); em caso de emergência,competindo-lhe decretar as medidas neces-sárias ao restabelecimento da lei e da

    segurança, podendo inclusive, para essefim, suspender alguns dos direitos funda-mentais (art. 48). Em contrapartida, podeo Presidente ser destituído por voto popu-lar, precedendo deliberação da Assembléiapor maioria de dois terços (art. 43).

    Além disso, “(...) La Constitución deWeimar era la primera de un Estado mo-derno grande que introducía, con el plebis-cito, formas de la democracia directa e nun

    sistema parlamentario-presidencialista. Jun-to ao referendum (Volksentscheid) se pusola iniciativa popular (Volksbegehren), esdecir, la iniciativa legislativa del pueblo. Escierto que posteriormente se vio que lasignificación práctica de estas posibilida-des constitucionales era más escasa de loque se había creído al principio: durante eltiempo que duró la Republica sólo hubosiete intentos de implantar una ley por lavía de la iniciativa popular y los siete

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    fracasaron. Sin embargo, justamente estasdisposiciones pertenecen a las partes de laConstitución que dan lugar a su fama como‘una de las Constituciones más libres delmundo’”.11

    Quanto aos direitos fundamentais a Cartade Weimar inovou:

    Direitos Humanos invioláveis (ho-mens e mulheres)

    Poderes obedientes aos direitosfundamentais

    Restrição a direitos fundamentaissó por meio de lei geral

    Tutela jurisdicional contra os atosofensivos aos direitos fundamentais

    Além disso, assinala Jorge Miranda que“(...) Constituição de Weimar é sobretudoa primeira das grandes Constituições euro-péias a interessar-se profundamente pela

    questão social, em contraste com a aparenteneutralidade das Constituições liberais doséculo passado.

    Essa relevância constitucional dos pro-blemas sociais traduz-se principalmenteem: 1.º) a regulamentação de domínios atéentão esquecidos, como o casamento (art.119), a juventude (art. 120), a educação(arts. 142 e sgs.); 2.º) a atribuição aoscidadãos de direitos sociais; 3.º) as limita-

    ções impostas ao princípio da liberdadecontratual (art. 152) e à propriedade priva-da (art. 153), em virtude da função socialque desempenham”.12

    De toda a Constituição, sem contar comas disposições finais e transitórias, dos seus165 artigos, 56 tratam de direitos funda-mentais.

    É indiscutível, portanto, a notoriedadedos avanços trazidos pela Constituição de

    Weimar atinentes aos direitos fundamen-

    tais. Por outro lado, conforme se pode notarde seu comentário transcrito anteriormente,o jurista alemão Reinhard Rurup chama aatenção para o fato de que a Carta Magnaalemã era indiscutivelmente bem intencio-nada; todavia, sua concretização encontra-va embaraços, seja pelo seu distanciamentoda realidade político-social alemã da épo-ca, seja porque o seu nascedouro foi mar-cado pela manifestação caoticamente de-mocrática dos partidos responsáveis pelasua elaboração, fazendo de seu produto umprojeto social de natureza manifestamente

    fragmentada. Com efeito, “Teniendo encuenta el hecho de que la Constitución deWeimar había sido creada por una coali-ción de partidos, con la colaboración inclu-so de aquellos que estaban en oposiciónradical, la parte de los derechos fundamen-tales no podía pasar a fin de cuentas de seruna retahíla de las más diversas reivindi-caciones, una yuxtaposición de normas yde ideas sobre objetivos socialistas, libera-

    les, confesionales y conservadoras. No selogró dar al nuevo Estado un ‘rumbo’claro. Los derechos fundamentales no for-maban un programa cerrado, sino, por así decirlo, una oferta polifacética, para queeligiera libremente en el futuro aquellafuerza política que tuviera más fuerza encada caso. No era un ‘proyecto de unaRepública democrática’, sino más bien unbaluarte contra más movimientos subver-

    sivos, un instrumento para mantener elstatus quo”.13

    Por fim, importa notar o teor do fami-gerado art. 48 da Constituição de Weimar– estabelecendo poderes para o Presidentegovernar por meio de decretos. Seu pará-grafo primeiro outorgava ao Presidente odireito de obrigar a um Estado, por meiodas forças armadas, a cumprir as obriga-ções que foram impostas pela Constituição

    do  Reich  ou pelas leis estaduais. Além

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    disso, o parágrafo segundo estabelecia queo Presidente poderia, em caso de risco àsegurança e à ordem pública do  Reich,tomar as medidas necessárias para restabe-lecê-las, se necessário com o uso das forçasarmadas. Por este fim poderiam ser suspen-sos direitos fundamentais.

    Não obstante a afirmação de que aruptura institucional formal se deu a partirdos anos 30, é imperioso notar que asituação de deturpação do espírito daConstituição permeou todo o período decrise alemã durante as duas grandes guer-

    ras. Nos primeiros anos da crise foi feitouso excessivo e desmedido de decretos,substituindo o caminho da via legislativa.Até 1925 já haviam sido expedidos 135decretos de urgência. O art. 48 da Cons-tituição conferiu ao Presidente a função deguardião da Constituição, mas, ao mesmotempo, por esse artigo, conferiu a possibi-lidade de miná-la. Também por esta Cons-tituição se fez uma outra opção pelo Poder

    Executivo e não pelos representantes do Reichstag, pois era o primeiro que definiao que era “estado de emergência”.14

    Diante de todo o exposto, e apesar desua louvável intenção social, a Constitui-ção de Weimar é reflexo de um momentopolítico conturbado; é resultado de umarevolução fracassada, não de uma revolu-ção coroada pelo êxito.

    É indiscutível que a Constituição de

    Weimar trouxe inequívocos avanços naseara dos direitos fundamentais. Por outrolado, é evidente o seu descompasso com arealidade alemã do Pós-Guerra. Por maisque suas disposições fossem vanguardistase bem intencionadas, não foram suficientespara reverter o cenário alemão do início doséculo passado. Nada mais compreensível.De que adianta uma Constituição “criadaem laboratório” em meio a um contexto

    social opressivo, marcado por golpes, re-

    voluções e principalmente por restriçõesexternas de ordem político-financeira ad-vindas de uma devastadora guerra perdida.A Constituição de Weimar não se encaixa-va no contexto alemão de sua época.

    Reinhard Rurup desfecha que: “Y aun-que se reconoce el esfuerzo por crear una‘Constitución ejemplar por antonomasia’,se la valora a fin de cuentas como unasimples creación de laboratorio, que acausa de la ‘errónea instauración de insti-tuciones constitucionales fundamentales’habría contribuido esencialmente a la inca-

    pacidad de funcionamiento del sistemaparlamentario desde 1930. Si Preub argu-menta, refiriéndose a la Constitución delReich de Bismarck, que la calidad de unaConstitución se demuestra no en los bue-nos, sino en los malos tiempos, natural-mente debería ser válido este argumentotambién para su propia creación y, en elúltimo término, no se puede dejar deadvertir que la Constitución de Weimar no

    constituyó un dique efectivo contra la‘disolución’ de la República y la Machter-greifung, la toma del poder por los nazis.Sin embargo, hay que guardarse de exigirmás de la cuenta de esta. – o de cualquier– Constitución: una Constitución no puedesustituir jamás a la actuación política, sinosólo ser un presupuesto mejor o peor deella. Por lo regular no sirve de nuchointentar responsabilizar a una Constitución

    del fracaso de un sistema político, más bienhabrá que investigar las estructuras socia-les, las responsabilidades políticas y lassituaciones decisorias concretas para des-cubrir las causas reales”.15

    Na mesma linha de raciocínio, o cons-titucionalista português Jorge Miranda aodiscorrer sobre a Carta de Weimar asseveraque: “Não bastam as fórmulas constitucio-nais, por melhores que sejam, para prevenir

    ou resolver os problemas políticos – e isto

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    deve ser, para os juristas, suficiente conviteà humildade.

    Como a corrupção da Constituição de

    Weimar foi, a justo título, uma das causasda conquista do poder pelos nacional-socialistas, no segundo pós-guerra haveriade ser mais forte a consciência das limi-tações dos sistemas jurídico-formais, assimcomo se haveria de procurar colher aslições da provação por que a Alemanhatinha acabado de passar”.16

    As considerações apresentadas acimadão conta dos limites dos quais não escapa

    uma Constituição. Qual a sua finalidade,então? Como não frustrar sua razão de ser?

    De forma a responder adequadamentetais indagações, mister se faz reportar-se àslições da doutrina consagrada.

    3. Definições de Constituição

    A Constituição é um dos objetos da

    ciência jurídica com maior número dedefinições, em face da sua natureza singu-lar e das funções que exerce dentro doordenamento jurídico.

    Desde longa data a doutrina se debatena busca de uma definição para a Consti-tuição que se sustente nas mais diversasteorias de Direito. Canotilho define-a comoo “estatuto jurídico do fenômeno político”.José Afonso da Silva como o “conjunto de

    normas que organizam os elementos doEstado”. Para Heller, a Constituição enfei-xa os “princípios de Mediação entre oEstado e a Sociedade”. Celso Bastos, sobum enfoque formal, conceitua a Constitui-ção como “normas com especial solenida-de, do ponto de vista material ‘forçassociais, políticas, ideológicas que configu-ram o Estado’ e, do ponto de vista subs-tancial o ‘conjunto de normas estruturais de

    uma sociedade política’”.

    Partindo-se da simplificada definição deJosé Afonso da Silva acima referida, misterse faz compreender o conceito de Estado,que na lição de Dalmo de Abreu Dallari éuma sociedade política, cujos elementossão:  finalidade política  que “engloba atotalidade dos fatores dos homens, mani-

     festações de conjunto ordenadas, por meiode um ordenamento jurídico e poder social,que se define como sendo ordem jurídicasoberana; e que tem por fim o bem comumde um povo situado em um determinadoterritório”.17

    Diante da complexidade do sentido deEstado atribuído por Dalmo de AbreuDallari e admitindo-se que a Constituiçãorepresenta um instrumento de organizaçãodos elementos do Estado pelos quais sepercebe não apenas uma identidade jurídi-ca, mas também política, não há dúvidasde que muito se pode dizer a respeito daConstituição.

    Para Ferdinand Lasalle,18  por exemplo,

    as Constituições nada mais são do que osfatores reais de poder transcritos numa“folha de papel”, pois, no seu entender, sãoos “fatores reais de poder” que representama força ativa que informa todas as leis einstituições jurídicas vigentes, determinan-do que não possam ser, em substância, anão ser tal como elas são.

    Com efeito, “constituem fatores reais depoder o conjunto de forças que atuam

    politicamente, com base na lei [na Cons-tituição] para conservar as instituições ju-rídicas vigentes. Constituem esses fatoresa monarquia, a aristocracia, a grande bur-guesia, os banqueiros e, com específicas eespeciais conotações, a pequena burguesiae a classe operária, e o que elas represen-tam da ciência nacional”.

    É célebre a resposta dada por Lassaleà seguinte indagação que, diga-se, sintetizasua concepção de Constituição: Quando se

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    pode dizer que uma constituição escrita éboa e duradoura?

    Diz ele: “A resposta é clara e partelogicamente de quanto temos exposto:Quando essa constituição escrita corres-ponder à constituição real e tiver suasraízes nos fatores reais de poder que regemo país.

    Onde a constituição escrita não corres-ponder à real, irrompe inevitavelmente umconflito que é impossível evitar e no qual,mais dia menos dia, a constituição escrita,a folha de papel, sucumbirá necessariamen-

    te, perante a constituição real, a das ver-dadeiras forças vitais do país”.Ainda que pareça simplista, tal concep-

    ção traz consigo a idéia de que a ordem jurídica maior não possui autonomia, “seriaum mero instrumento escrito com o obje-tivo de coagir condutas através da ameaçade punições”.19

    A compreensão juspositivista de HansKelsen sobre a Constituição limita-se a

    atribuí-la a condição de fundamento devalidade das normas que compõem o or-denamento jurídico positivo. Por meio desua Teoria pura do direito, em certa me-dida influenciada pelos episódios históri-cos que marcaram a Alemanha durante aRepública de Weimar até o desfecho daSegunda Guerra Mundial, Kelsen afasta daConstituição e das demais normas infra-constitucionais qualquer preocupação ex-

    trajurídica, uma vez que o Direito constituium sistema fechado.

    Em verdade, a racionalidade formal deKelsen prioriza os “meios”, elegendo anorma jurídica como o objeto de suaproposta científica. Todo o pensamentokelseniano é fundado na validade da normae não na sua eficácia. Da própria definição,cunhada a partir de seus textos, de que oDireito é um conjunto de normas queregem coercitivamente a vida em socieda-

    de, é possível extrair-se que o objeto deanálise científica do Direito é o elementoque o compõe – a norma – e não afinalidade a que ele se propõe, seja ela qualfor. O Direito é um conjunto de normas (...)e não deve ser  “um conjunto de normas queregem coercitivamente a vida em socieda-de”. Nesse sentido, o Direito não deve serinstrumento pelo qual (i) se viabiliza aorganização de uma comunidade ou mes-mo (ii) se justifica qualquer ideologiapolítica, por mais que fundada em argu-mentos de liberdade, igualdade ou mesmo

     justiça. Para Kelsen, o Direito pode trazercomo resultado uma sociedade mais justa,mas essa não é a sua razão de ser.

    De qualquer forma, Kelsen não despre-za a relevância que a eficácia tem para oDireito. Em verdade, para Kelsen, a eficá-cia é condição de validade do Direito. O

     jurista alemão entende que o Direito é umaordem social coercitiva e que a eficácia éa “força ou poder atrás da ordem”. Ao

    tratá-lo assim – Direito como ordem socialcoercitiva – ele o concebe como uma“técnica social específica”, com o propó-sito de ocasionar certa conduta dos ho-mens, considerada pelo legislador como“desejável”. Para que uma ordem sejaconsiderada válida é preciso que a condutahumana a que se refere esteja em confor-midade com essa ordem. Todavia, daí confundir o Direito como veículo para a

    promoção de justiça, por exemplo, há umadiferença muito grande...

    Muito antes de Lassale e Hans Kelsen,todavia, um outro enfoque era dado às“leis”, nas quais se incluía a Constituição.Platão foi o primeiro a entendê-la comoagente educador e programático, ou seja,instrumento de transformação da sociedade.

    Pois bem. Colocando em contraposição justamente a compreensão de Lasalle coma concepção positivista, Willis Santiago

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    Guerra Filho considera que: “(...), emambos sentidos têm-se conceitos de Cons-tituição infrutíferos, que tiram a ela [inter-pretação constitucional] qualquer impor-tância, pois tanto uma constituição que émero flatus vocis como aquela que se limitea descrever a ordem fundamental vigentena sociedade, mostram-se como perfeita-mente inúteis e dispensáveis, correspon-dendo respectivamente, na conhecida clas-sificação de Loewenstein, às Constituições‘nominalistas’ e “semânticas’”.

    Para esse mesmo autor, “O importante

    na identificação desses dois extremos é apossibilidade de elaborar uma solução decompromisso, pela qual se chega ao con-ceito de uma ‘Constituição normativa’,como aquela que realmente regula o pro-cesso político ao ser adotada efetivamentecomo critério para julgar a legalidade (ouilegalidade) das relações de poder existen-tes, o que se não leva a modificar direta-mente a realidade, não deixa de ser um

    fator de grande influência mediata paramodificá-la. Nesse sentido, a Constituiçãoaparece não só como o resultado do jogodaquelas forças, mas principalmente con-dicionando-os, que vai depender, em gran-de parte, da circunstância dela já trazerestabelecidos em seu próprio bojo os requi-sitos necessários à sua realização e efeti-vação”. E, por fim, o autor conclui que:

    “(...) Trata-se, portanto, de uma via de

    acesso a modificações sociais através dasinstituições e com o seu fortalecimento, oque se torna de extrema necessidade emuma época como a nossa, onde o aparato dadefesa estatal se encontra armado a umponto que inviabiliza as revoluções popula-res, vistas no passado como a forma deresgatar a legitimidade e a normatividade doordenamento jurídico, dando-lhe uma cons-tituição em consonância com os anseios de

    transformação da sociedade”.20

    4. Telos  constitucional

    O nascimento do Estado Constitucional,ainda em 1215, com a edição da MagnaCarta, assinada pelo Rei João Sem-Terra,na Inglaterra, bem como a sua consolida-ção, já no século XVIII, nos EstadosUnidos e na França, não deixam dúvidasde que o propósito original deste instru-mento jurídico era impor restrições aosmonarcas, retirando-lhes o caráter pessoalpara outorgar-lhes fundamento legal, ouseja, limitação do poder. Essa é a concep-

    ção de constitucionalistas consagrados comoKarl Loewenstein: “En sentido ontológico,se deberá considerar como el telos de todaconstitución la creación de institucionespara limitar y controlar el poder político.En este sentido, cada constitución presentauna doble significación ideológica: liberara los destinatarios del poder del controlsocial absoluto de sus dominadores y asig-narles una legítima participación en el

    proceso del poder”.21

    A percepção de que a Constituição temum propósito ativo dentro do sistema socialé marcadamente destacada pelos juristas dasegunda metade do século XX. Se é ver-dade que alguns deles, como Niklas Luh-mann, por meio de uma concepção sistê-mica fechada do Direito entende que opropósito transformador da sociedade éestranho ao Direito, pois a ele compete

    simplesmente garantir expectativas nor-mativas, mediante uma postura operativa-mente fechada e apenas cognitivamenteaberta, outros, como Canotilho e Hesse,concebem o Direito e, em especial a Cons-tituição, como um sistema aberto, absolu-tamente sensível às questões estranhas aosistema jurídico que são internalizadas e

     juridicizadas retornando ao seu ambienteapós um processo de interpretativo e à luz

    do ordenamento jurídico como forma de

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    concretização da Constituição (sistema deinputs  e outputs).

    Hesse fala no caráter incompleto da

    Constituição como forma de viabilizar suanormatização ao longo do tempo. Por maisque guarde estreita relação com o momentohistórico de sua criação, é vital que aConstituição mantenha-se aberta para via-bilizar sua conformação com o contextosocial ao longo do tempo. Nesse sentido,Hesse insiste na necessidade de a Consti-tuição manter-se incompleta e mal-acaba-da  de forma a concretizar sua  força nor-

    mativa.Em sua obra, Hesse deixa claro que a

    Constituição não representa apenas a con-solidação de uma dada realidade, pois,tendo em vista o seu caráter normativo, elainterfere nesta realidade. Não obstante, fazquestão de registrar a obrigatória necessi-dade de a Constituição estar sempre ads-trita à realidade de seu tempo. São dele asseguintes palavras: “Em síntese, pode-se

    afirmar: a Constituição jurídica está condi-cionada pela realidade histórica. Ela nãopode ser separada da realidade concreta deseu tempo. A pretensão de eficácia daConstituição somente pode ser realizada sese levar em conta essa realidade. Graças aoelemento normativo, ela ordena e conformaa realidade política e social. As possibili-dades, mas também os limites da forçanormativa da Constituição, resultam da

    correlação entre ser (Sein) e dever ser(Sollen)”.Mas não pára por aí. Ao fazer referência

    a Wilhem von Humbolt, o referido cons-titucionalista alemão faz consideraçõesacerca da necessidade de a Constituiçãoguardar relação com o contexto histórico-social do seu respectivo Estado, a saber: “oNinguma constitución política – afirmaHumbolt en una de sus primera obras –

    puede prosperar aquella que surja del

    enfrentamiento entre ele azar y la razón’,la que, com otras palabras, conecte con lascircunstancias de la concreta situación his-tórica, relacionando sus condicionamientoscon la regulación jurídica inspirada por loscriterios de la razón. ‘(...) A partir delconjunto de la disposición individual delpresente – se dice más adelante – surge laconsecuencia. Los provectos que la razónse esfuerza entonces por imponer, reciben(...) del objectomismo al que se dirigenforma y modificación. Así puede alcanzarduración y resultar útiles. De aquella

    manera, aunque sean realizados, permane-cen estériles para siempre (...) La razóntiene desde luego capacidad para confor-mar la materia existente, pero carece defuerza para producirla nueva. Esta fuerzase basa exclusivamente en la naturaleza delas cosas, la razón verdaderamente sabia lasmueve a acturar tratando de orientarlas. Así logra mantenerse modestamente. Las cons-tituciones políticas no pueden injertarse en

    los hombres como se injertan árboles.Donde la naturaleza y el tiempo no hantrabajado previamente es como se se atasenflores con hilo. El primer sol de melodíalas agosta’”.

    E mais adiante, em consonância comHumbolt, Hesse arremata: “Atraves deestas frases Humbolt deja claros desde unprimer momento los limites de la fuerzanormativa de la Constitución. La Constitu-

    ción – aquí en el sentido de ‘constitución jurídica’ – no puede tratar de construir eleEstado de modo por así decir teórico-abstracto, sin consideración a las circuns-tancias e fuerzas históricas, si no quierepermanecer ‘eternamente estéril’. La Cons-titución no es capaz de engendrar nada quenon se halle ya en la disposición individualdel presente.  Donde estos presupuestos

     faltan, la Constitución no puede dar ‘forma

     y modificación’; donde no es posible tam-

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     poco orientar dicha fuerza; donde la

    Constitución ignora las leyes espirituales,

    sociales, políticas o económicas de su

    época, carecerá del germen imprescindible

    de la fuerza vital, siendo incapaz de hacer 

    que llegue a producirse ele estado que

    norma en contradicción con dichas leyes”.(Grifos nossos.)

    “Pero con ello queda también precisadoel carácter y posible medida de la fuerzavital y de actuación de la Constitución. Lanorma constitucional puede ser operantecuando trata de construir de cara al futuro

    las circunstancias radicadas en la estructuraindividual del presente, como dijo Humbolten otra ocasión, consigue fuerza y prestigiocuando aparece determinada por el princi-pio de necesidad. Con otras palabras, la

     fuerza y la eficacia de la Constitución

    descansan en su vinculación a las fuerzas

    espontáneas y las tendencias vitales de la

    época, en su capacidad para desarrollar 

     y coordinar objetivamente estas fuerzas,

     para ser por su mismo objeto, el ordenglobal determinado, es decir, material de

    las relaciones sociales concretas.”22  (Gri-fos nossos.)

     A melhor prova acerca das considera-ções assinaladas se opera pela experiênciada Alemanha sob a égide da Constituiçãode Weimar, indiscutivelmente marcada poruma conjunção de fatos políticos, militarese econômicos que em nada refletiam a

    artificialidade de uma Constituição feitaem laboratórios, por cientistas que engen-draram uma Carta imortalizada pela histó-ria pelo seu vanguardismo social, mas quepouco pode concretizar, em virtude de seudistanciamento da realidade alemã após aPrimeira Grande Guerra.

    Não basta que a Carta seja um docu-mento cheio de boas intenções ou queproponha um projeto social para o Estado

    que seja impraticável em face das circuns-

    tâncias sociais, políticas, econômicas eculturais. Que o Estado deve desempenharum papel ativo na sociedade, não há dú-vidas. Vide por exemplo o art. 3.º daConstituição brasileira que estabelece comoobjetivos fundamentais: a (i) construção deuma sociedade livre; (ii) a garantia dodesenvolvimento nacional; (iii) a erradica-ção da pobreza e da marginalização, bemcomo a redução das desigualdades sociaise regionais; e (iv) a promoção do bem detodos, sem preconceitos de origem, raça,sexo, cor, idade e quaisquer outras formasde discriminação. Mas é preciso que essasfinalidades sejam factíveis. Em outraspalavras, a força normativa da Constituiçãosomente se opera em um cenário em queseus dispositivos estejam sintonizados aocontexto social real, com aberturas estra-tégicas para sua conformação ao longo dotempo.

    A Constituição de Weimar não logrouêxito nesse sentido, pois ignorou fatores

    concretos como as restrições de toda sortedo Pós-Guerra, projetando-se para umdocumento ideal, todavia, de consecuçãoinviável. Mas principalmente a Constitui-ção de Weimar foi impotente diante de ummomento de convulsão social que, escora-do nas disputas políticas e no agravamentodas condições sociais da sociedade alemã,fez eclodir a famigerada ideologia fascista.Diante do golpe sobre as instituições

    amparadas pelas forças políticas e pelamanipulação das massas não há Constitui-ção que resista. Algumas coisas escapamde seu espectro de atuação. Por maissoberana que seja, a Constituição tem seuslimites.

    5. Dos limites da Constituição

    Ao tratar da força normativa da Cons-

    tituição, Konrad Hesse é enfático ao per-

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    ceber seus limites. Em outra passagemassevera que: “A Constituição jurídica lograconferir forma e modificação à realidade.Ela logra despertar ‘a força que reside nanatureza das coisas’ tornando-a ativa. Elaprópria converte-se em força ativa queinflui e determina a realidade política esocial. Essa força impõe-se de forma tantomais efetiva quanto mais ampla for aconvicção sobre a inviolabilidade da Cons-tituição, quanto mais forte mostrar-se essaconvicção entre os principais responsáveispela vida constitucional. Portanto, a inten-

    sidade da força normativa da Constituiçãoapresenta-se, em primeiro plano, comouma questão de vontade normativa, devontade de Constituição (Wille zur Verfas-sung).

    “Constatam-se os limites da força nor-mativa da Constituição quando a ordena-ção constitucional não mais se baseia nanatureza singular do presente (individuelle

     Beschaffenheit der Gegennwart ). Esses li-

    mites não são, todavia, precisos uma vezque essa qualidade singular é formada tantopela idéia de vontade de Constituição,menos significativas hão de ser as restri-ções e os limites impostos à força norma-tiva da Constituição. A vontade de Cons-tituição não é capaz, porém, de suprimiresses limites. Nenhum poder do mundo,nem mesmo a Constituição, pode alterar ascondicionantes naturais. Tudo depende,

    portanto, de que se conforme a Constitui-ção a esses limites. Se os pressupostos daforça normativa encontrarem correspon-dência na Constituição, se as forças emcondições de violá-la ou de alterá-la mos-trarem-se dispostas a render-lhe homena-gem, se, também em tempos difíceis, aConstituição lograr preservar a sua forçanormativa, então ela configura verdadeiraforça viva capaz de proteger a vida do

    Estado contra as desmedidas investidas do

    arbítrio. Não é, portanto, em tempos tran-qüilos e felizes que a Constituição norma-tiva vê-se submetida à sua prova de força.Em verdade, esta prova dá-se nas situaçõesde emergência, nos tempos de necessida-de”.23

    Ao tratar do Direito Constitucional,Hesse novamente reconhece os limites deseu objeto precípuo. Diz ele: “Isso significaque o Direito Constitucional deve preser-var, modestamente, a consciência de seuslimites.  Até porque a força normativa daConstituição é apenas uma das forças de

    cuja atuação resulta a realidade do Esta-do. E esta força tem limites. A sua eficáciadepende da satisfação dos pressupostosacima enunciados. Subsiste para o DireitoConstitucional uma enorme tarefa, sobre-tudo porque a força normativa da Consti-tuição não está assegurada de plano, con-figurando missão que, somente em deter-minadas condições, poderá ser realizada deforma excelente. A concretização plena da

    força normativa constitui meta a ser alme- jada pela Ciência do Direito Constitucio-nal. Ela cumpre seu mister de forma ade-quada não quando procura demonstrar queas questões do poder, mas quando envidaesforços para evitar que elas se convertamem questões de poder ( Machtfragen)”.24

    (Grifos nossos.)

    Um outro tipo de limitação da Consti-tuição está diretamente relacionado aos

    seus destinatários, em especial àqueles quesofrem seu influxo direto e sobre os quaiscompete-lhe sua aplicação imediata: osagentes públicos (dentre eles os políticos)e os operadores do Direito. Como docu-mento jurídico que é, a Constituição depen-de de uma interpretação de pessoas, seumanuseio se opera por homens. Trata-se demero instrumento de organização do Esta-do absolutamente dependente da vontade

    social em aplicá-la corretamente. Uma

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    Constituição, por mais democrática quepossa ser, necessita de concretização e esteprocesso passa necessariamente pela inter-pretação daqueles a ela submetidos.

    A preocupação de Konrad Hesse a esserespeito está evidenciada no tratamentodado a questão da ausência de regulamen-tação específica que tratasse de situaçõesde emergência no âmbito político, econô-mico ou social na Constituição de Bohn,sucessora da Constituição de Weimar epromulgada no Pós-Guerra de 1949, tendoem vista a desastrada experiência a que se

    submeteu a República Alemanha com ouso indiscriminado e distorcido do malsi-nado art. 48 da Constituição de Weimar.Na hipótese de ocorrência de uma situaçãode emergência, a solução ficaria entregueao poder dos fatos. Para Hesse, “As me-didas eventualmente empreendidas pode-riam ser justificadas com base num estadode necessidade suprapositivo. Ressalte-seque o conteúdo dessa regra jurídica supra-

    positiva somente poderia expressar a idéiade que a necessidade não conhece limites.Tal proposição não conteria, portanto, re-gulação normativa, não podendo, por isso,desenvolver força normativa”.25

    Entende-se que a melhor resposta paraesse tipo de situação seria dada pela inter-pretação sistemática do ordenamento queoferecesse condições para a solução destasituação. De qualquer forma, o manuseio

    dos dispositivos constitucionais existentesà época estava adstrito ao legítimo interes-se dos agentes públicos e operadores doDireito em concretizar o espírito constitu-cional. Sempre foi e será assim. Portanto,a efetividade da Constituição, seja emsituações de omissão legislativa ou não,depende da manifestação volitiva de seusoperadores, posto que o Direito é uminstrumento de convivência entre os ho-

    mens, cabendo somente a estes a sua

    efetiva aplicação. É nesse contexto quecabe falar no processo de conscientização

     jurídica.

    O Prof. Celso Antônio Bandeira deMello em palestra ministrada na CâmaraMunicipal da cidade de São Paulo, em1983, já tratou, de forma irretocável, comolhe é peculiar, deste assunto.26  Inicialmenteversando sobre o tema Poder Constituinte,ele passa a discorrer sobre questões desociologia jurídica, enfrentando a questãoacerca do papel do Direito na sociedade,como instrumento de transformações soci-

    ais ou de consagração da realidade. Niti-damente divergente da posição científicado Prof. Willis Santiago Guerra Filhoreferida anteriormente, são dele (Prof.Bandeira de Mello) as seguintes palavras:“Notoriamente normativista, criticado acer-badamente por ser normativista, e nãoobstante, eu não creio em Direito que alteraa realidade. Para mim o Direito é superes-trutura. Não tem nada a ver uma visão

    normativista, que, pretendo eu, é a visãocientífica do Direito, com a circunstânciade alguém saber ou reconhecer que oDireito é uma superestrutura. Não é oDireito que modifica a realidade. O Direitoé um dos instrumentos, modesto instru-mento, de transformação da sociedade. Odireito é acima de tudo um instrumento deconsagração de uma dada realidade. Isto éque é o Direito, acima de tudo. Como o

    Direito não é o grande fator de transforma-ção, as leis, as normas, não são fator socialde alto poder. Que podemos nós da área

     jurídica esperar do ângulo político? Achoque podemos esperar a mudança de cons-ciência jurídica”.

    Visíveis, para o administrativista, por-tanto, as limitações do Direito e, por viade conseqüência, do instrumento que lhesustenta: a Constituição. Para ele o direito

    é uma superestrutura que sozinha pouco

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    (Monografias) Revista Brasileira de Direito Constitucional , N. 3, jan./jun. – 2004

    pode fazer para transformar a realidadesocial. A Constituição e o restante doordenamento jurídico, por si sós, não con-seguem desfechar tal função. Para o Prof.Celso Antônio esse papel depende essen-cialmente de um processo de conscientiza-ção jurídica a ser iniciado pelos operadoresdo Direito até chegar à classe média,formadora de opinião das sociedades emgeral.

    Significa dizer, é preciso inicialmenteextrair do bojo da Constituição aquilo que

     juridicamente ela pode oferecer pela via da

    interpretação constitucional e que esteja emsintonia com a ordem jurídica vigente e, aomesmo tempo, com a realidade social, umavez que o poder emana do povo e em nomedele deve ser exercido. E isso quem pro-move são os operadores do Direito, são osagentes públicos, aí incluídos os políticos.Mas só isso não basta. A consciência

     jurídica não deve ser apenas privilégio dosbacharéis, mas deve alcançar a camada

    social formadora de opinião: a classe média.Apesar de as considerações do Prof.Celso Antônio Bandeira de Mello teremquase duas décadas, continuam sendo ab-solutamente apropriadas para o atual con-texto histórico nacional.

    6. Realidade constitucional brasileira

    Conforme comentado anteriormente, aConstituição brasileira de 1988, assim comoa Constituição de Weimar, foi promulgadaapós um período conturbado, num contextohistórico de mudanças político-sociais.Instituto jurídico democrático, foi editadano período de abertura política, tendo sidoreconhecidamente precedida por um pro-cesso indiscutivelmente democrático quecontou com a participação de diversascorrentes ideológicas em que se discutiramamplamente os termos do documento jurí-

    dico mais alto do nosso ordenamento.27  AConstituição brasileira reproduz a “fisiono-mia” do Brasil, consagrando a manifesta-ção caótica e fragmentada de uma socie-dade solidariamente desigual com interes-ses justapostos, em sua grande maioriaconflitantes.

    De fato, as semelhanças dos contextoshistóricos entre o período que antecedeu asConstituições brasileira (1988) e alemã(1918) são consideravelmente tênues, pois,apesar de marcados por períodos político-sociais conturbados em face da mudança de

    regimes políticos, as razões de tais contex-tos são significativamente diferentes (aAlemanha havia sido o foco central de umaGuerra Mundial, enquanto o Brasil passavapor um período de redemocratização). Operíodo que sucede a promulgação de taisConstituições, bem como o próprio conteú-do destes institutos jurídicos, todavia apre-sentam semelhanças que merecem atençãoem face da proposta deste trabalho.

    Assim como a Constituição de Weimar,a Carta Magna brasileira é generosa no quetange a consolidação de direitos fundamen-tais, de todos os níveis – 1.ª, 2.ª e 3.ªgerações – consagrando de forma clara seupropósito maior, encartado no Preâmbulo,que é a instituição de um Estado verdadei-ramente democrático. Quanto ao contextohistórico social, o País desde sua promul-gação vive um processo de agravamento das

    condições sociais, com aumento dos índicesde criminalidade, altos índices de miserabi-lidade, processos de urbanização desenfrea-da e, da mesma forma que a Alemanha dosanos de 1923-1929, nos anos mais recentes,sensivelmente dependente das políticas in-ternacionais em decorrência do processo deabertura política e comercial contemporâ-neo, bem como de densificação da globa-lização. As políticas públicas internas bra-sileiras são em larga medida determinadas

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    Revista Brasileira de Direito Constitucional , N. 3, jan./jun. – 2004 (Monografias)

    em face de metas estabelecidas por organis-mos internacionais visando a obtenção definanciamentos para a viabilização de suaconsecução. O País encontra-se inegavel-mente dependente da política internacionale sujeito às intempéries do mercado finan-ceiro internacional.

    Chama a atenção o descompasso entrea generosidade dos dispositivos constitu-cionais brasileiros e a dura realidade dasociedade brasileira. Contrariamente ao queestabelece a Constituição, agrava-se o pro-cesso de desigualdades sociais e regio-

    nais28

     e cada vez mais se distancia o projetode construção de uma sociedade justa, sempobreza e marginalização. Trata-se deobjetivos fundamentais do Estado brasilei-ro (art. 3.º) e, não obstante, sua concreti-zação nunca esteve tão distante.

    Dispositivos como “saúde é direito detodos e dever do Estado” (art. 196), “aeducação, direito de todos e dever do Estadoe da família” (art. 205); “salário mínimo (...)

    capaz de atender as suas [do trabalhador]necessidades vitais básicas, e às de suafamília como moradia, alimentação, saúde,lazer, vestuário, higiene, transporte e pre-vidência social (...)” (art. 7.º IV) enfeixamvistosa “carta de boas intenções”, mas aindaestão muito distante da realidade brasileira.

    É verdade que a Constituição tem umpapel educador e até em certa medidaprospectivo. Também é verdade, conforme

    leciona Canotilho, que não existem maisnormas programáticas, pelo menos no sen-tido clássico que é atribuído a esta expres-são, ou seja, não há mais normas consti-tucionais tidas como simples programas.Nesse sentido, vigoram por meio de umavinculação permanente do legislador emconcretizá-las. Outrossim, estas normasrepresentam diretivas materiais permanen-tes, vinculando todos os órgãos concretiza-

    dores em qualquer dos momentos da ati-

    vidade concretizadora (legislação, execu-ção, jurisdição), bem como fixam limitesnegativos, sob a forma de inconstituciona-lidade em relação aos atos que os contra-riam. Por outro lado, quando a realidadeconcreta impede a empreitada coletivavisando a concretização de todos os dispo-sitivos supramencionados, seja em funçãode restrições macroeconômicas alheias aocontrole do Estado soberano, seja em fun-ção questões políticas estranhas ao Direito,está-se diante de uma limitação à forçanormativa da Constituição.

    Ressalvada a contextualização históricadiversa, décadas de diferença, não há comonegar as semelhanças relativas às condiçõessociopolíticas entre as sociedades brasileirae alemã nos períodos considerados nestetrabalho. Disso, obviamente, não se extraique os riscos da sociedade brasileira são osmesmos suportados pela sociedade alemãpós-Weimar. Conforme considerado ante-riormente, todavia, é nítida a percepção de

    que à Constituição não pode ser atribuídanem o papel de agente principal na tarefade transformação social, tampouco o supor-te exclusivo para a estabilização das rela-ções sociais de um Estado.

    A título de exemplo, cite-se novamente,ainda que por exaustão, o uso indiscrimi-nado do art. 48 da Constituição de Weimar,ainda na década de 20, consubstanciandoflagrante usurpação do espírito democrático

    da Constituição alemã; porém, tal situaçãofoi aceita passivamente pelas forças políti-cas da época, bem como pelas instituições

     jurídicas responsáveis pela guarda da Cons-tituição. Situação semelhante se denota douso desmedido das medidas provisórias aolongo do segundo mandato do PresidenteFernando Henrique Cardoso flagrantemen-te contrário à essência da Carta brasileira.Ainda que não se perceba qualquer tendên-

    cia ideológica de extrema-direita por detrás

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    (Monografias) Revista Brasileira de Direito Constitucional , N. 3, jan./jun. – 2004

    desta conduta, não há como negar que aforma ditatorial como foram editados osincontáveis atos presidenciais com força delei, sob a complacência e omissão do Su-premo Tribunal Federal, expressa a mani-festação corruptiva do regime democrático,objeto maior do Estado Constitucional.

    De conseguinte, como fixar um critérioobjetivo de diferenciação entre a distorçãodos conceitos de “relevância e urgência”encartados na Constituição brasileira e“estado de necessidade” do famigerado art.48 da Carta de Weimar? Por óbvio, o

    crescimento do ideário nazista independiada corrupção do art. 48; contudo, não hácomo negar que a corrupção do sistemademocrático constitucional viabilizou aconsolidação do regime racista ariano. Umavez usurpados a supremacia constitucionale os demais princípios atinentes ao cons-titucionalismo, assumem-se os riscos dasvariantes ideológicas dos detentores dopoder...

    Diante desta situação, onde se coloca aConstituição? Qual o seu papel enquantonorma suprema do ordenamento jurídico?

    Na lição de Konrad Hesse “El DerechoConstitucional crea reglas de actuación ydecisión políticas; proporciona a la políticadirectrices y puntos de orientación, pero sinque pueda substituirla. Por ello la Consti-tución deja espacio para la actuación de lasfuerzas políticas”.29  Em outras palavras, a

    força normativa da Constituição encontralimites, seja não somente em face damandatória necessidade de vinculação aocontexto social em que se insere, comotambém pela impotência diante de seusoperadores e da omissão de seus guardiões.

    7. A experiência constitucional brasileira

    Sem prejuízo das comparações entre a

    realidade sociojurídica alemã e brasileira

    apresentadas anteriormente, oportuno sefaz avançar na experiência constitucionalbrasileira e, diante das críticas feitas anossa Carta, perceber, a partir das limita-ções da Constituição, quais as lições quese podem extrair, em larga medida associa-das ao processo de maturidade e conscien-tização jurídica.

    Uma das críticas mais vorazes à Cons-

    tituição brasileira atual é o seu caráter 

    analítico. De fato, não há como negar que,

    no afã de tratar amplamente de todos os

    temas e interesses trazidos pelos diferentes

    grupos que participaram do seu processode confecção, e talvez na tentativa de

    suplantar suas limitações intrínsecas,  aConstituição acabou por  conformar-se numemaranhado de normas ecléticas de forma

    a confundir a verdadeira missão do Estado

    brasileiro. Seu conteúdo é verdadeiramen-

    te fragmentado, justapondo normas para o

    contentamento das forças sociais com

    condições para interferir na agenda polí-

    tica brasileira. Nesse sentido, a doutrinaconstitucionalista é quase unânime ao clas-

    sificar a nossa Carta Magna como exces-

    sivamente detalhista em determinados as-

     pectos materiais.

    Ademais, destaca-se o caráter rígido daConstituição, sujeita a um processo estreitoe rigoroso para os casos de alteração(emenda constitucional).

    A questão que se coloca é saber se tais

    características da nossa Constituição Fede-ral afetam a dinâmica social brasileira e/oua governabilidade.

    Em primeiro lugar, entende-se por di-nâmica social o processo de inter-relacio-namento entre as instituições brasileiras,incluídos aí os nossos Tribunais, a vontadepopular, os agentes sociais representativose os estatutos jurídicos. Por governabilida-de entende-se um status  social capaz deviabilizar condutas estatais compatíveis com

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    Revista Brasileira de Direito Constitucional , N. 3, jan./jun. – 2004 (Monografias)

    a manutenção do funcionamento harmo-nioso das instituições brasileiras em rela-ção à sociedade em que estão inseridas.

    O fato de a Constituição Federal apre-sentar as características de analítica e rígi-da, numa análise superficial e estática, nãosuscita qualquer dúvida quanto a ausênciade prejuízo à dinâmica social e à governa-bilidade, pois devido o texto constitucionalapresentar tratamento detalhado sobre nor-mas jurídicas de regulação social, normasestas de difícil alteração, pode parecer,apenas esclarecem e auxiliam o adequado

    funcionamento da sociedade.Entretanto, esta situação muda se admi-tida a idéia de que a Constituição se inserenum contexto social dinâmico, com variá-veis de espaço e, principalmente, de tempo.E, se isso é verdade, a condição analíticada Carta enseja um acúmulo de regras aconformar, mas ao mesmo tempo a dificul-tar o funcionamento do Estado brasileiro,dado o alto grau de complexidade norma-

    tiva decorrente deste acúmulo excessivo denormas constitucionais. Some-se a isso oconseqüente aumento de questões constitu-cionais a serem levadas ao Tribunal máxi-mo brasileiro, em detrimento do seu ade-quado funcionamento, que é o tratamentode questões de relevo no contexto nacional,dizendo o Direito em último grau. Direitoeste, cuja finalidade precípua, na lição deNiklas Luhmann, é garantir expectativas

    normativas  nas sociedades complexasatuais.Somado a isso, aponte-se a dificuldade

    de alterar tal situação constitucional dadaa rigidez do texto constitucional.

    A despeito de tais considerações, épreciso observar que a concretização doDireito se dá pelo exercício interpretativointeligente, a ser promovido por todosoperadores do Direito. Mesmo diante deum plexo excessivo de normas é absolu-

    tamente viável a conformação do Estadobrasileiro ao seu papel precípuo encartadono seu Preâmbulo, bem como no seu art.3.º, já referido anteriormente. Trata-se deum processo de maturidade lento, masabsolutamente imprescindível para o exer-cício e consolidação de um regime verda-deiramente democrático.

    Especificamente no que tange ao exer-cício da função jurisdicional do SupremoTribunal Federal, vale notar, ainda, que adinâmica social não está exclusivamentevinculada a ele. Significa dizer que o

    funcionamento da sociedade se dá, porvezes, de forma alheia a ação da CorteSuprema. Ou seja, a grande maioria derelações sociais que compõem a teia socialbrasileira sequer resvala na jurisdição desteTribunal, diga-se, não porque sua essêncianão configure tema de natureza constitu-cional, até mesmo em virtude da abrangên-cia excessiva do texto constitucional, masporque o acesso a justiça institucional em

    larga medida não alcança grande parte dasociedade brasileira. As relações de poderentre os membros da sociedade brasileiramuitas vezes se operam fora do âmbito dasinstituições classicamente consideradas.30

    O acúmulo de lides do Supremo TribunalFederal decorre muito mais da cultura

     jurídica brasileira excessivamente incon-formada e recursiva do que do caráteranalítico da Constituição.

    A questão da governabilidade, maissensível à problemática da rigidez consti-tucional, não deve perceber a dificuldadede alteração do texto constitucional comoum obstáculo para a implementação depolíticas públicas. Pelo contrário, deveaceitar esta condição como um desafiadorinstrumento de reafirmação e consolidaçãode maturidade política e, conseqüentemen-te, de legitimação do exercício de poder,

    embasada na idéia de que é a Constituição

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    (Monografias) Revista Brasileira de Direito Constitucional , N. 3, jan./jun. – 2004

    que enfeixa os ditames democráticos deorganização e funcionamento do Estadobrasileiro. Aos operadores do Direito, res-ponsáveis pela doutrina e jurisprudênciaconstitucional, compete a função de ade-quá-la à realidade brasileira ao longo dahistória.

    Justificar a ingovernabilidade pela rigi-dez constitucional ou pelo seu caráteranalítico, propondo-se, por exemplo, arevisão constitucional como panacéia paraos males da sociedade brasileira, é atribuirinadequadamente à Constituição a respon-

    sabilidade exclusiva pelos rumos do País,bem como sujeitar o Estado brasileiro amodismos e ideologias passageiros quearriscam o próprio Estado Democrático deDireito.31

    Sobre esse assunto, Hesse adverte que“Igualmente perigosa para força normativada Constituição afigura-se a tendência paraa freqüente revisão constitucional sob aalegação de suposta e inarredável necessi-

    dade política. Cada reforma constitucionalexpressa a idéia de que, efetiva ou aparen-temente, atribuiu-se maior valor às exigên-cias de índole fática do que à ordemnormativa vigente. Os precedentes aquisão, por isso, particularmente preocupan-tes. A freqüência das reformas constitucio-nais abala a confiança na sua inquebran-tabilidade, debilitando sua força normativa.A estabilidade constitui condição funda-

    mental da eficácia da Constituição”.32O uso abusivo das medidas provisórias

    e a Emenda Constitucional 32 que alterouseu regime jurídico são exemplos emble-máticos que corroboram o acima exposto.Em síntese, trata-se de distorcida manifes-tação do Poder Constituinte Derivado, vi-sando coibir os abusos do Poder Executivo,uma vez que sua finalidade precípua écompatibilizar o texto da Carta com os

    avanços das sociedades complexas e não

    patrulhar os desmandos do chefe da nação.Desnecessário seria, pois, se fosse devida-mente cumprido o texto original da CartaMagna.

    Diante destes fatos que protagonizam arealidade político-social brasileira é misterdestacar, ainda que por exaustão, a neces-sidade de conscientização jurídica de todosaqueles que operam pela Constituição,como forma de adequadamente concretizaro telos constitucional.

    8. Comparações finais

    De tudo o que se viu pelo presentetrabalho pode-se concluir que a Constitui-ção de Weimar, apesar de reconhecidamen-te emblemática pelo seu vanguardismo noâmbito dos direitos fundamentais, inaugu-rando o novo curso para o constituciona-lismo mundial, não foi capaz de reverter oquadro social dramático do Pós-Guerra dosanos 20 e 30, bem como conter a ascensão

    do nazismo.A Constituição brasileira, apesar de serproduto de um processo de democratiza-ção, marcadamente generosa e consagradapelo respeito aos direitos fundamentais detodas as gerações, bem como pelo projetoteórico de constituição de um Estado justoe igualitário, é acusada de inviabilizar oPaís ou, dito de outra maneira, é acusadade não conseguir viabilizar o País, dado o

    seu caráter analítico e fragmentado.Apesar de seus contextos históricos

    absolutamente diversos, ambas asseme-lham-se pelo descolamento em face de suasrespectivas realidades sociais, sensíveis aosinfluxos de pressões internacionais diantedas difíceis condições financeiras de suasrespectivas economias, assim como sofremreflexos do embate entre as forças políticase sujeitam-se às ideologias políticas daque-

    les que exercem o poder. Com efeito, trata-

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    se de efetiva corrupção de sistemas, con-forme ensina Luhmann. Ressalte-se que apresente análise é de natureza empírica.Com efeito, não é assim que deveria ser,mas, de fato, assim o é.

    Conforme exaustivamente tratado ante-riormente, a força normativa da Constitui-ção encontra limites, basicamente vincula-dos à relação entre a Constituição e con-texto social sobre o qual ela incide e asujeição ao animus dos seus operadores eguardiães, cabendo a eles, bem como àclasse média formadora de opinião, a sua

    efetiva concretização.Como forma de solucionar os fracassos

    normativos alemão e brasileiro, cite-se, nocaso alemão, o desenvolvimento da doutri-na voltada aos princípios gerais do Direito,de forma a remediar as situações de cor-rupção e desvio do espírito constitucio-nal.33  No Brasil, mencione-se a necessida-de de uma Emenda Constitucional (n. 32)com o propósito de coibir as práticas

    atentatórias à Carta Magna brasileira pormeio do uso indiscriminado de medidasprovisórias.

    Em ambos os casos específicos buscou-se a via perfunctória, ignorando-se o cami-nho lento, porém sólido, da maturidade econscientização jurídica. Importante regis-trar, em tempo, que no caso alemão atendência reversa tem se mostrado muito

    mais efetiva do que no Brasil.

    9. Conclusões

    A Constituição Federal não deve apenasbuscar excelência acadêmica, mas refletira realidade social com a pretensão trans-formadora e educativa de uma sociedadeem desenvolvimento, ciente, todavia, dassuas limitações. A experiência de Weimar

    comprova isto. Um caminho viável se dá

    pela via da interpretação pautada por umaconscientização jurídica.

    Apesar de analítica e fragmentada, a

    Constituição Federal brasileira não deixade ser um espelho da sociedade brasileira(na mesma linha de Lassale). E isso éextremamente valioso. (Em parte, todavia,o mesmo se dizia da Constituição deWeimar.) Não obstante, é preciso extrair deseu bojo a sua racionalidade, compatívelcom seu contexto histórico, político, jurí-dico e social.

    Nesse sentido, a consecução de suces-sivas emendas constitucionais, bem comopropostas de revisão constitucional, seapresentam como uma manifestação daimaturidade jurídica das nossas institui-ções que não conseguem mediante a in-terpretação “concretizar” o telos  constitu-cional.

    Não é apenas a Constituição que serviráde instrumento para a transformação do

    status quo. O discurso simplesmente vol-tado ao seu cumprimento até certo pontose mostra ingênuo e fragilizado, pois,mesmo que se defenda o papel transforma-dor da Constituição, seus dispositivos ain-da não se coadunam com a nossa realidadehistórico-social. Outrossim, ainda é inci-piente a consciência jurídica dos operado-res dos Direito e dos agentes públicos.

    A implementação de um Estado Demo-crático justo e igualitário não se operasomente pela utópica proposta de cumpri-mento das leis. A Constituição exige umaconsciência que ainda não temos e preci-samos aprender a construir. Não é somentepor meio da Constituição,  per se, que seinterfere na realidade social. Ela contribui,mas não é tudo.

    Não se pode esquecer dos limites da

    Constituição.

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    (Monografias) Revista Brasileira de Direito Constitucional , N. 3, jan./jun. – 2004

    NOTAS

    1. Veja, 11 mar. 1987, Caderno Arte, p. 141.2. Na companhia da Constituição mexicana

    de 1917.3. Veja, 11 mar. 1987, Art Section, p. 141.4. Alongside the Mexican constitution of 

    1917.5. Receituário político-econômico elaborado

    pelas nações desenvolvidas com o fito deindicar às nações em desenvolvimento posturaseconômicas visando a obtenção de empréstimosinternacionais de instituições financeiras multi-nacionais.

    6. Angela Mendes de Almeida. A Repúblicade Weimar e a ascensão do nazismo. 2. ed. SãoPaulo: Brasiliense, 1991. p. 9-10.

    7. Génesis y fundamentos de la Constituciónde Weimar, El Estado Alemán (1870-1992).CARRERA ARES, Juan Jose & Reinhard Rurup.Madrid: Marcial Pons, 1992. p. 125.

    8. Angela Mendes de Almeida. Op. cit., p.36.

    9. Idem, ibidem, p. 46.10. Jorge Miranda. Manual de direito cons-

    titucional. 4. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, p. 206.

    11. CARRERA ARES, Juan Jose & Rei-nhard Rurup. Op. cit., p. 151.

    12. Jorge Miranda. Op. cit., p. 208.13. CARRERA ARES, Juan Jose & Rei-

    nhard Rurup. Op. cit., p. 155.14. Nitidamente aqui se percebe a necessi-

    dade de uma consciência jurídica, que se ma-nifeste em todas as instituições sociais e queopere por todos os meios e agentes políticos emcondições de interferir na realidade social de umEstado como forma de concretizar o telos

    constitucional. O Prof. Celso Antônio Bandeirade Mello em brilhante palestra ministrada naCâmara Municipal da cidade de São Pauloregistrou seu pensamento a esse respeito, a sermelhor apresentado a seguir.

    15. Juan Jose Carreras Ares. Op. cit., p. 127.16. Jorge Miranda. Op. cit., p. 208.17. Dalmo de Abreu Dallari.  Elementos de

    teoria geral do Estado. 17. ed. São Paulo:Saraiva, 1993. p. 101.

    18.  A essência da Constituição.  4. ed. Rio

    de Janeiro: Lumen Juris, 1998. p. 10.

    19. Idem, ibidem.20. Willis Santiago Guerra Filho. Metodo-

    logia jurídica e interpretação constitucional. RePro  62/134-135, 1991.

    21. Karl Loewenstein. Teoría de la Cons-titución.  Barcelona: Ariel, p. 62.

    22. Celso Ribeiro Bastos. Curso de direitoconstitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva,1999. p. 44. nota 4.

    23. Konrad Hesse.  A força normativa daConstituição. Porto Alegre: Fabris, 2001. p. 24-25.

    24. Idem, ibidem, p. 26-27.25. Konrad Hesse. Op. cit., p. 32.26. Celso Antônio Bandeira de Mello.  Re-

    vista de Direito Constitucional, p. 66-104,1985.

    27. Sobre esse assunto cabe a referência aoscomentários à Constituição de 1988 da lavra doProf. Celso Ribeiro Bastos, em seu Curso dedireito constitucional,  cit., p. 147-150.

    28. O Brasil é o terceiro país do mundo emconcentração de renda, segundo dados da Uni-cef, de 2002.

    29. Konrad Hesse.  Escritos de derechoconstitucional. Centro de Estudos Constitucio-

    nales, p. 21.30. Citem-se as colocações de Michel Fou-

    cault no livro Microfísica do poder, 14. ed., Riode Janeiro: Graal.

    31. A título de comentário, o insigne Prof.Miguel Reale propôs em reunião do Conselhode Estudos Jurídicos da FCESP, em 17.06.1998,conforme publicado na  Revista Problemas Brasileiros, set.-out. 1998, uma emenda cons-titucional, conforme dispõe o art. 60, § 2.º, daCF, para alterar o texto da Constituição por

    deliberações da maioria absoluta do Congresso,por meio de uma revisão constitucional (nostermos daquela ocorrida em 1993, por força dedisposição constitucional expressa – art. 3.º doADCT), como forma de recuperar a situaçãosociopolítica atual “humilhante para a cidadaniabrasileira”.

    Em que pese o respeito ao ilustre jurista,quem garante que as eventuais mudanças advin-das de uma revisão constitucional não padece-rão dos mesmos problemas ora suscitados eserão questionados 10 anos mais tarde. AConstituição Federal brasileira de 1988 é a

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    legítima manifestação do povo por meio doPoder Constituinte Originário e tal fato nãopode ser ignorado sob pena do enfraquecimentodo regime democrático brasileiro. Ademais,

    lembre-se que várias emendas constitucionaisforam editadas a partir de 1995 e isso nãosignifica que a cidadania brasileira tenha dadosinais efetivos de melhora.

    32. Konrad Hesse. Op. cit., p. 22.33. Nesse sentido, importante destacar os

    comentários de Paulo Bonavides em artigopublicado na  RTDP  v. 7, 1994, p. 63, comen-tando a obra de Otto Bachof ,  Normas consti-tucionais inconstitucionais? Destaque-se inclu-sive a seguinte passagem:

    “A Teoria do Direito Constitucional extra-positivo gerou-se nas desilusões, na desonra eno desespero da crise de um país arruinado pelaguerra. Bachof mesmo o confessa tacitamenteno Prefácio à edição portuguesa de sua mono-grafia, datada de 1977, onde ele dá a impressãocautelosa de querer justificar-se dos abusos eexcessos a que, de necessidade, aquela doutrinapoderá conduzir, em virtude de conter o germeda dissolução dos fundamentos do DireitoConstitucional e da ordem jurídica positiva,embora sua inspiração jusnaturalista, depois do

    desastre de Weimar e da tragédia do nacional-socialismo seja a mais nobre possível”.

    Referências

    ALMEIDA, Angela Mendes de. A República deWeimar e a ascensão do nazismo. 2. ed. SãoPaulo: Brasiliense, 1991.BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Poderconstituinte. Revista de Direito Constitucional,

    p. 61-104, Forense, 1985.BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direitoconstitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva,1999.BONAVIDES, Paulo. Inconstitucionalidade depreceito constitucional. Poder constituinte ori-

    ginário e derivado – Cláusula pétrea – Preceitoimodificável por emenda. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, v. 7,1994, p. 63.

    CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucio-nal.  5. ed. Coimbra: Almedina, 1991.

    CARRERA ARES, Juan Jose & Reinhard Rurup.Génesis y fundamentos de la Constitución deWeimar, El Estado Aleman (1870-1992). Ma-drid: Marcial Pons, 1992.

    DALLARI, Dalmo de Abreu.  Elementos deteoria geral do Estado. 17. ed. São Paulo:Saraiva, 1993.

    FOUCAULT, Michel.  Microfísica do poder .14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.