115
1 Esta monografia investiga uma questão que vem ocupando um espaço cada vez maior nas discussões da área de patrimônio histórico e cultural e da arquitetura: a importância da preservação das características históricas das cidades, através da conservação e recuperação dos seus prédios antigos, em meio as constantes transformações que esses prédios vem sofrendo no decorrer do tempo. Na atualidade, preservar a memória tem sido uma busca constante. Muito além dos meios acadêmicos ou técnicos, preservar o passado e seus traços deixou de ser tarefa restrita de historiadores, arqueólogos, arquitetos ou urbanistas; a memória não mais se restringe a objeto de estudo de antropólogos, etnólogos, cientistas sociais ou ainda psicólogos. Cada indivíduo faz-se historiador de si mesmo e do grupo em que está inserido e os discursos relativos à preservação do patrimônio – seja arquitetônico e urbanístico, ambiental ou cultural, material ou imaterial – ganham a mídia e aparecem cada vez mais intensos entre os mais distintos grupos. Com isto, foi possível abordar um estudo a respeito dos conceitos e critérios a serem utilizados na definição e elaboração de um projeto arquitetônico em prédios históricos, usando como modelo de estudo, um projeto de intervenção arquitetônica, realizado no prédio do Grande Hotel. O interesse por prédios antigos e sua preservação foi um fator determinante para a escolha do tema a ser desenvolvido, pois é importante destacar que a preservação das características históricas das cidades e a busca de uma conscientização de que a preservação do seu patrimônio arquitetônico, histórico e cultural, não só retrata a história de uma época, como também contribui de forma muito expressiva para sua qualidade visual.

Cristiane Firpo Muller

Embed Size (px)

Citation preview

  • 1

    Esta monografia investiga uma questo que vem ocupando um espao

    cada vez maior nas discusses da rea de patrimnio histrico e cultural e da

    arquitetura: a importncia da preservao das caractersticas histricas das

    cidades, atravs da conservao e recuperao dos seus prdios antigos, em

    meio as constantes transformaes que esses prdios vem sofrendo no

    decorrer do tempo.

    Na atualidade, preservar a memria tem sido uma busca constante.

    Muito alm dos meios acadmicos ou tcnicos, preservar o passado e seus

    traos deixou de ser tarefa restrita de historiadores, arquelogos, arquitetos ou

    urbanistas; a memria no mais se restringe a objeto de estudo de

    antroplogos, etnlogos, cientistas sociais ou ainda psiclogos. Cada indivduo

    faz-se historiador de si mesmo e do grupo em que est inserido e os discursos

    relativos preservao do patrimnio seja arquitetnico e urbanstico,

    ambiental ou cultural, material ou imaterial ganham a mdia e aparecem cada

    vez mais intensos entre os mais distintos grupos.

    Com isto, foi possvel abordar um estudo a respeito dos conceitos e

    critrios a serem utilizados na definio e elaborao de um projeto

    arquitetnico em prdios histricos, usando como modelo de estudo, um

    projeto de interveno arquitetnica, realizado no prdio do Grande Hotel.

    O interesse por prdios antigos e sua preservao foi um fator

    determinante para a escolha do tema a ser desenvolvido, pois importante

    destacar que a preservao das caractersticas histricas das cidades e a

    busca de uma conscientizao de que a preservao do seu patrimnio

    arquitetnico, histrico e cultural, no s retrata a histria de uma poca, como

    tambm contribui de forma muito expressiva para sua qualidade visual.

  • 2As caractersticas ambientais de uma cidade garantem ao indivduo

    uma boa qualidade de vida, principalmente aqueles referentes importncia da

    presena de elementos do passado na cidade de hoje e a compatibilizao

    entre o novo e o antigo.

    Nesse sentido, a problematizao das questes relativas s motivaes

    para a conservao e usos atribudos ao patrimnio na sociedade

    contempornea, tendo em vista o exponencial crescimento do que se considera

    patrimnio cultural, sua extenso territorial e o aumento de seu pblico em

    grande escala, torna-se imprescindvel fazer uma reflexo sobre as diferentes

    formas de preservao da memria e ainda sobre o aparato terico-conceitual,

    bem como sobre as prticas de restaurao empreendidas em favor da

    manuteno dos suportes materiais dessas memrias.

    Buscando a formao de uma base terica slida para a compreenso e

    desenvolvimento do tema deste estudo, viu-se como necessrio, utilizar como

    base as normas e recomendaes legais existentes e linhas de interveno,

    baseado nos tericos que abordam esse assunto.

    Hoje em dia, temos um vasto material disponvel, que aborda a questo

    do patrimnio histrico e cultural das cidades, porm existe uma certa

    dificuldade em encontrar critrios e conceitos que aliem a temtica terica de

    conservao e preservao com a escolha de formas de interveno aplicveis

    a tais bens.

    Portanto, na busca desses conceitos e critrios, surgiu a idia de

    elaborar uma pesquisa baseada na interligao desses dois elementos

    formadores das diretrizes para a elaborao de um projeto coerente de

    interveno em um patrimnio edificado.

    Pois, a elaborao de um projeto desta natureza, implica numa srie de

    posicionamentos e definies por parte do responsvel pelo desenvolvimento

    do projeto em relao aos fundamentos tericos (sempre baseados na

    legislao vigente e linha de interveno a ser seguida), para a formao de

    uma base de projeto slida.

    O estudo buscou identificar a importncia de disponibilizar um trabalho,

    que destaque a preocupao com o patrimnio histrico e cultural,

    descrevendo e abordando o acervo terico relativo ao tema e criando tambm

  • 3uma espcie de roteiro metodolgico para o desenvolvimento de um projeto

    de interveno de um bem patrimonial, baseado em mtodos especficos para

    tal bem.

    A definio das informaes, documentao e procedimentos que so

    necessrios para a elaborao de um projeto de preservao e recuperao de

    um bem imvel de valor histrico, cultural e arquitetnico, serviram para reunir

    todo material disponvel a respeito do assunto, e abstrair o que realmente

    possa interessar para a interligao do embasamento terico e o uso de

    solues e intervenes aplicveis ao projeto, objetivando especificamente a

    relao entre o aspecto legal referente ao tema escolhido, com as correntes

    tericas que abrangem a questo do patrimnio histrico e cultural, alm de

    buscar a identificao das caractersticas referentes ao prdio em estudo,

    englobando uma pesquisa histrica, arquivstica e bibliogrfica do bem.

    Alm disso, procurou-se abordar anlises tipolgicas, formais, tcnicas e

    estruturais do prdio que contriburam para a elaborao de um estudo que

    oferea a melhor compreenso de conceitos, critrios e terminologias

    referentes preservao de um prdio com valor cultural.

    A metodologia adotada baseou-se em uma pesquisa terica

    fundamentada na leitura de linhas de interveno existentes e na legislao

    que aborda o tema patrimonial, a fim de elaborar atravs desses dados

    tericos, os conceitos utilizados no projeto.

    Desta forma, procurou-se selecionar alguns referenciais tericos para a

    elaborao da bibliografia a ser adotada, tais como, Cesare Brandi, Alois Riegl,

    Viollet-le-Duc, John Ruskin, entre outros. Alm disso, foram utilizadas as cartas

    patrimoniais, que so documentos internacionais que abordam questes

    relativas ao patrimnio cultural.

    Depois de concluda a ltima etapa da metodologia, foi possvel elaborar

    a interligao do contexto terico com os critrios de interveno, para o caso

    de interveno no prdio do Grande Hotel.

    A idia de investigar os conceitos e critrios que norteiam um projeto de

    interveno surgiu depois do desenvolvimento do Projeto de Reciclagem e

    Interveno Arquitetnica, desenvolvido durante a graduao do curso de

    Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Catlica de Pelotas.

  • 4Neste projeto, foi dado um novo uso ao prdio, implantando uma

    Escola de Hotelaria.

    Quando se quer mudar o uso original do edifcio, havendo adaptaes

    s condies atuais, sem alterar a volumetria, a tipologia e a linguagem formal

    do prdio, trata-se de um projeto de reciclagem.

    A reciclagem de prdios envolve mtodos e tcnicas de intervir,

    como tambm discute a funo adequada ao prdio. Trata-se ento no

    somente de recuper-lo, de traz-lo vivo aos nossos dias, mas de torn-lo

    til, atravs de uma forma adequada e necessria. H muitos problemas

    que ocorrem nesse impasse, de ordem econmica, que muitas vezes,

    modificam suas caractersticas originais chegando at a destru-lo, e de

    ordem social, que so colocados por um entorno diferente daquele que o

    produziu.1

    Foram classificados diferentes graus de interveno, segundo o estado

    de conservao e as caractersticas do imvel em questo.

    A interveno aplicada ao prdio do Grande hotel foi classificada como

    Reabilitao Profunda, onde se enquadraram os aspectos relativos s

    melhorias no que diz respeito pintura e renovao de elementos

    arquitetnicos (inclusive na fachada) e modificaes e/ou adaptaes nas

    instalaes eltricas, hidro-sanitrias, e infra-estrutura do prdio, alm de

    reparos e/ou modificaes nas alvenarias, coberturas e vigamentos.

    Alm das obras precedentes, dentro desta classificao, ainda pde-se

    efetuar uma redistribuio dos compartimentos no interior do prdio.

    Estes aspectos nortearam a elaborao do projeto de Interveno e

    reciclagem, mas pde-se observar a ausncia de toda fundamentao terica,

    aliada a legislao vigente, na elaborao de critrios de interveno.

    Com o intuito de complementar e elucidar esta falha, este projeto de

    pesquisa busca com o entrelaamento destes conceitos e critrios, avaliando o

    a interveno realizada no prdio do Grande Hotel.

    Na busca de respostas problemtica exposta anteriormente, o estudo

    assume como guia terico, metas que so o foco deste estudo, identificar uma 1 Jantzen e Oliveira. Renovao Urbana e Reciclagem, orientao para prtica de atelier Pelotas: Editora e Grfica Livraria Mundial, 1996, p 85.

  • 5forma de disponibilizar um trabalho de pesquisa que possa fornecer dados

    importantes relacionados Pelotas, destacando tambm a preocupao com a

    preservao do patrimnio cultural da cidade, entendendo de que forma o

    contexto histrico da cidade de Pelotas e as modificaes que ocorreram na

    cidade se refletiram na arquitetura pelotense, reunir o material disponvel

    relativo preservao do patrimnio cultural.

    A partir da compreenso destas metas e dada a caracterizao do

    problema de pesquisa, este projeto tem como objetivo geral um estudo

    comparativo entre os referenciais tericos, a legislao vigente e um projeto de

    interveno, para a formao de conceitos e critrios aplicveis a bens

    patrimoniais que se enquadrem nos mesmos critrios do prdio do Grande

    Hotel e a disponibilizao de um acervo documental atravs de textos (dados

    histricos), fotografias, plantas arquitetnicas, etc. Alm de visar contribuir para

    os estudos que enfocam a questo da preservao de prdios histricos e que

    preocupam-se com a identidade e a legibilidade do patrimnio cultural.

    Mais do que esgotar a temtica abordada, dada sua complexidade e

    abrangncia, os contedos discutidos nesta monografia pretendem constituir

    uma contribuio para um estudo em contnuo desenvolvimento: o papel do

    entrelaamento dos fundamentos tericos com a elaborao de um projeto de

    interveno, que garanta a integridade do patrimnio edificado.

    Um fato a ser considerado, a dificuldade encontrada em acessar e

    reunir todo o acervo histrico no que tange a questo patrimonial, visto que

    este tema abrange diversas reas.

    possvel encontrar nos mais diversos meios, os mais variados

    materiais que abordam o tema patrimonial, mas encontrou-se uma certa

    dificuldade em reunir todo esse acervo afim de aplic-lo em um caso

    especfico.

    O entrelaamento destes aspectos visam a formao de conceitos e

    critrios que embasam um projeto de interveno em um bem edificado.

  • 6

    Buscou-se teorias capazes de balizar este estudo, destacando que todo

    tipo de fonte deve passar por uma crtica com a finalidade de que o

    emaranhado de ideologias que as permeiam, seja desvelado.

    A restaurao no uma disciplina que tenha sido criada em nossos

    dias. Pelo contrrio, ela tem uma origem remota, embora possa ser

    considerada uma disciplina ainda em fase de estruturao.

    Como em outras cincias, na restaurao, a prtica precedeu

    fundamentao terica. Apesar de se ter notcia de diversas intervenes

    restaurativas no passado, somente a partir do sculo XVIII comeam a

    aparecer tentativas de organizar critrios e normas que orientem essas

    atividades e somente em nossos dias se firma a preocupao de consolidar as

    teorias da restaurao de forma universal.

    A preocupao conceitual ou necessidade de estabelecer teorias

    aparece no Renascimento com a conscincia da histria, ou seja, a

    conscincia de que h um passado diferente da situao presente e que cabe

    a ns tomar uma atitude perante essas diferentes realidades, seja para assumi-

    las e retom-las ou para rejeit-las.

    Os descobrimentos arqueolgicos do final do sculo XVIII e os avanos

    desta cincia no incio do sculo XIX propiciaram o interesse pela histria e o

    seu esclarecimento.

    No que se refere arquitetura, os progressos tcnicos e cientficos

    decorrentes da Revoluo Industrial e a necessidade de dotar de novos usos a

    edificaes monumentais incentivaram a polmica sobre restaurao de

    monumentos.

    O arquiteto francs Vollet-le-Duc pode ser considerado a primeira

    grande personalidade na teoria da Restaurao. Autor de inmeros projetos e

  • 7obras, ele fundamenta a interveno no conhecimento do passado, no para

    conservar o monumento como em pocas anteriores, mas para, entendendo o

    projeto e as intenes do seu autor, recompor o edifcio no que seria sua forma

    ideal.

    John Ruskin, escritor ingls contemporneo de Viollet-le-Duc, se

    contrape a ele, negando a possibilidade de qualquer interveno no edifcio

    que no seja a simples conservao.

    Com base em alguns destes conceitos, um congresso internacional de

    especialistas formula em 1931, a Carta de Atenas, com a introduo da idia

    de que o entorno tambm deve ser pensado, ou seja, a preservao da

    arquitetura e seu ambiente.

    As mesmas idias foram abordadas na Carta de Veneza, de 1964, que

    insiste na conservao do ambiente total, ou seja, os edifcios excepcionais e

    os outros que compe o fundo onde se encontram integrados.

    Estas e outras inmeras Cartas que foram publicadas, demonstram uma

    profunda preocupao em evitar erros relacionados ao patrimnio em geral.

    Sendo assim, o primeiro terico a ser estudado, trata-se de Viollet-le-

    Duc, arquiteto que atuou em poca na qual a restaurao estava se firmando

    como cincia.

    Segundo Beatriz Khl 1, Viollet-le-Duc (1814-1870) foi um dos primeiros

    estudiosos que, ao pensar no conceito moderno de restaurao, tentou

    estabelecer princpios de interveno em monumentos histricos. Suas teorias

    e projetos sempre foram muito questionados, aceitos por muitos e combatidos

    por outros tantos. Apesar de sua racionalidade, lgica e coeso de idias, sua

    forma dogmtica e abusiva de atuar acabou por conden-lo ao ostracismo nas

    dcadas seguintes. Nascido em uma famlia burguesa que cultivava as artes e

    a cultura, iniciou seus estudos em 1830, poca dos grandes debates sobre as

    artes e arquitetura, da sistematizao da formao do arquiteto e da

    multiplicao de revistas especializadas. Viajou pela Frana e Normandia

    (1831/1833), desenvolvendo grande interesse pela arquitetura medieval, e pela

    Itlia (1836) onde aprofundou seus conhecimentos sobre arquitetura clssica.

    1 Restaurao, de Eugne Emmanuel Viollet-le-Duc. Apresentao e traduo de Beatriz Mugayar Khl, So Paulo, Ateli Editorial, Coleo Artes & Ofcios, 2000, 70 p. ISBN 85-7480-027-9.

  • 8Em 1837 surgiu a Comisso dos Monumentos Histricos, rgo de

    suporte para a Inspetoria Geral, que designou muitos arquitetos para a direo

    das obras de restauro. Em 1840 Le-Duc foi indicado pelo Ministro do Interior,

    por recomendao de Mrime (secretrio do Conselho de Construo Civil da

    Comisso de Monumentos) para restaurar a Igreja de Vzelay, o que foi uma

    surpresa geral, j que Le-Duc no possua experincia nesse campo e era uma

    obra bastante complexa. Sua atuao bem sucedida neste projeto alavancou

    sua carreira aparecendo diversos trabalhos no ramo da restaurao.

    Ao mesmo tempo em que seu reconhecimento crescia por sua atuao

    no campo da restaurao, sua obra terica tambm tomava corpo, discorrendo

    sobre o papel do arquiteto e suas condies de trabalho e elaborando

    documentos tcnicos que ensinavam desde tcnicas medievais de entalhe de

    pedra e rejunte, at formas de levantamento, verificao e anlise de

    patologias e indicao de tcnicas de restauro. Nesses escritos demonstrava

    grande conhecimento sobre arquitetura e construo, especialmente da

    arquitetura medieval, e uma forte preocupao com a adequao de formas,

    materiais, funes e estruturas que, na concepo de um projeto de restauro,

    deveriam formar um sistema lgico, perfeito, e fechado em si, de forma a

    estabelecer o modelo ideal e retornar o edifcio um estado completo que

    pode no ter existido nunca em um dado momento. Para isso, fazia uma

    anlise profunda de como teria sido feito o projeto original se detivesse todo o

    conhecimento e experincia da poca da concepo, concebia o modelo ideal

    e impunha sobre a obra esse esquema j montado. Por isso em sua obra

    muitas vezes percebe-se a falta de respeito pela matria e pelas modificaes

    sofridas pelo edifcio ao longo do tempo, pois acertava os defeitos buscando a

    pureza de estilo atravs da retomada do projeto original ou, como aconteceu

    em diversas obras, reconstitua edifcios inteiros a partir desse modelo ideal

    resultando em um edifcio completamente diferente do original.

    De toda sua obra escrita, o Dictionnaire Raisonn de lArchitecture

    Franaise teve a maior repercusso e difuso, tanto na Frana quanto no

    exterior. Atravs do verbete Restaurao, pode explicar a origem e o conceito

    do termo que at ento no existia como concebido atualmente. Como ele

    prprio dizia a palavra e o assunto so modernos e foi somente a partir do

  • 9segundo perodo do sculo XIX, principalmente atravs da sua colaborao,

    que se definiu o conceito aceito atualmente. At ento, nenhum edifcio havia

    sido restaurado conforme o fazemos hoje. Na sia, deixavam o edifcio

    abandonado e construam outro edifcio adjacente ao primeiro. Os romanos

    reconstituam de acordo com o modo admitido na poca da reconstruo

    atravs da substituio de peas quebradas e os gregos davam o cunho do

    momento, no reproduzindo as formas anteriores do edifcio onde ocorria

    interveno. O gosto pelas restauraes como renovao se manifestou

    sempre ao final dos perodos das civilizaes nas antigas sociedades, como no

    final do Imprio Romano na Grcia ou s vsperas da Reforma de Martinho

    Lutero.

    No comeo do sculo XIX a Inglaterra e a Alemanha j ensaiavam

    tcnicas de restauro sobre seus edifcios e esses princpios rapidamente se

    propagaram pela Frana. A Comisso dos Monumentos Histricos passou a

    utilizar o programa j adotado nesses dois pases, na Itlia e Espanha, cuja

    metodologia de trabalho dava indicaes de como intervir, assinalando que

    cada edifcio, ou parte dele, fosse restaurado no estilo a que pertencia (em

    aparncia e estrutura), devendo-se constatar a idade e o carter de cada parte

    para compor um relatrio respaldado por documentos seguros (notas escritas e

    levantamento grfico). Para isso era necessrio ter conhecimento das escolas,

    seus princpios e meios prticos, assim como dos tipos de cada perodo de arte

    e dos estilos de cada poca.

    No Dictionnaire, Le-Duc apontou o grande preconceito que havia em

    relao restaurao, vista como uma fantasia, uma moda, um estado de

    desconforto moral, pela maioria das pessoas que, na sua opinio, na verdade

    tinham medo de sair da zona de conforto, como se a descoberta do novo fosse

    uma perda da tradio. Esse preconceito se devia em grande parte retomada

    e revalorizao das obras da Idade Mdia, vista pelos estudiosos como o

    caminho para a identidade nacional e pelo povo como a volta quele perodo

    marcado pela intransigncia e castigo aos que saam do caminho correto.

    No verbete, Le-Duc descreve exemplos de algumas situaes que

    poderiam se apresentar diante do restaurador e procedimentos passveis de

    serem aplicados a elas, enfatizando que ao intervir, estando o restaurador

  • 10diante de duas opes distintas de interveno, a adoo absoluta de um

    dos dois partidos pode oferecer perigos, e que necessrio, ao contrrio, no

    se admitindo nenhum dos dois princpios de uma maneira absoluta, agir em

    razo das circunstncias particulares. Ele afirmava categoricamente o perigo

    tanto de se reproduzir exatamente o original como de substitu-lo por formas

    posteriores, e deixa claro que nada deve ser encarado como um dogma, mas

    como algo relativo e especfico de cada obra. Na prtica, percebe-se que Le-

    Duc ao utilizar-se da constituio do tipo e do modelo ideal no conseguia

    atuar com imparcialidade e sem dogmatismo, pois intervinha com base em um

    modelo que ele considerava perfeito e adequado, e propunha solues que no

    respeitavam o edifcio, suas marcas, sua histria e suas peculiaridades, mas

    que satisfaziam apenas a pureza de estilo que ele prprio determinava.

    Em meio aos exemplos, Le-Duc levantou diversas questes quanto a

    obras mutiladas, substituio de materiais e recuperaes estruturais,

    propondo o refazimento em estado novo, no estilo prprio e escala do

    monumento (sem alterar as propores), de pores das quais no restasse

    trao algum, a substituio de toda a parte retirada por materiais melhores e

    mais durveis e meios mais eficazes, aperfeioamento no sistema estrutural

    para suprimir deficincias. Pregava o indispensvel conhecimento do que ele

    chamava de temperamento do edifcio, que nada mais era que a combinao

    da natureza dos materiais, qualidade das argamassas e do solo, sistema

    estrutural (pontos de apoio vertical e unies horizontais), peso, concreo das

    abbadas e elasticidade das alvenarias. Para esse completo entendimento, o

    restaurador deveria ser um construtor hbil e experiente, que conhecesse

    todos os procedimentos de construo admitidos nas diferentes pocas da arte

    e escolas.

    Quase ao final do verbete, Le-Duc levanta outras questes pertinentes

    ao trabalho de restaurao como a utilizao do edifcio como a melhor forma

    de conserv-lo, a importncia da fotografia nos estudos cientficos, como forma

    de fornecer documentos que pudessem ser sempre consultados e meios para

    justificar as aes, e a importncia e presteza dos operrios nos canteiros de

    restaurao. Mais uma vez aponta a importncia da investigao cientfica e do

    perigo das hipteses quando diz que necessrio, antes de comear, tudo

  • 11buscar, tudo examinar, reunir os menores fragmentos tendo o cuidado de

    constatar o ponto onde foram descobertos, e somente iniciar a obra quando

    todos os remanescentes tiverem encontrado logicamente sua destinao e seu

    lugar. Um julgamento sem a certeza total pode levar a uma seqncia de

    dedues que afastam a restaurao da realidade.

    O que importante lembrar e atentar na obra de Viollet-le-Duc a

    atualidade de muitas das suas formulaes e sua aplicabilidade nas

    intervenes de restauro atuais: a restaurao tanto da funo portante do

    edifcio como de sua aparncia, o estudo do projeto original como fonte de

    conhecimento para resoluo de problemas estruturais, a importncia dos

    levantamentos detalhados da condio existente, a reutilizao do edifcio para

    sua sobrevivncia e, principalmente e a atuao baseada em circunstncias e

    especificidades de cada projeto.

    A segunda corrente terica a ser discutida, diz respeito a outra

    concepo de restaurao, tratada por John Ruskin (1819-1900), arquiteto,

    escritor e crtico britnico. A postura de Jonh Ruskin bem clara, pois o seu

    pensamento vincula-se ao Romantismo, movimento literrio e doutrinrio (final

    do sculo XVIII at meados do sculo XIX), e que d nfase sensibilidade

    subjetiva e emotiva em contraponto a razo. Esteticamente, Ruskin apresenta-

    se como reao ao Classicismo. Na sua definio de restaurao dos

    patrimnios histricos, ele considerava a real destruio daquilo que no se

    pode salvar, nem a mnima parte, uma destruio acompanhada de uma falsa

    descrio. No h dvida que em grande parte da sua obra dedica maior

    ateno ao patrimnio arquitetnico e cultural do seu pas.

    Segundo Khl, a preocupao de Ruskin com a preservao do

    patrimnio fica sobre tudo destacado em duas das suas obras: The Seven

    Lamps of Architecture (1849) e The Stones of Venice (1851-1853, trs

    volumes). Onde Ruskin insurge-se com veemncia contra o que considera um

    atentado criminoso ao patrimnio arquitetnico: a restaurao de edifcios

    antigos sem qualquer respeito pelo traado original. Para Ruskin a soluo

    reside em prevenir a destruio de qualquer tipo de monumento / edifcio antes

    que este esteja reduzido a runas. S assim ser possvel, em sua opinio,

    evitar que geraes vindouras percam para sempre o contato com o legado

  • 12que lhe deixaram os seus antepassados. Numa poca que considera rendido

    aos encantos dos caminhos de ferro e ao ambiente fervilhante das cidades,

    Ruskin encara a arquitetura antiga como fora vivificadora semelhante ao

    poder revigorante da natureza.

    A leitura do texto de Camillo Boito, Os restauradores, apresentado na

    Conferncia feita na Exposio de Turim, em 1884, mostra claramente o

    quanto teoria da Restaurao evoluiu a partir de duas teorias

    fundamentalmente antagnicas: a de Viollet-le-Duc e a de John Ruskin.

    Em Os restauradores, Boito chama a ateno para o fato de que

    restaurao e conservao no so a mesma coisa, sendo, com muita

    freqncia, antnimas. Os conservadores so tidos como homens necessrios

    e benemritos ao passo que os restauradores so quase sempre suprfluos e

    perigosos. Dessa forma, dirige seu discurso sobretudo aos ltimos, pregando

    a precedncia da conservao sobre a restaurao e a limitao desta ao

    mnimo necessrio. A abordagem em relao a formas de restaurao de

    diversas artes: escultura, pintura e arquitetura, cada uma tendo suas

    particularidades e complexidades. A regra geral para a escultura era a de que

    no houvesse completamentos, excetuando-se quando fossem devidamente

    documentados, pois os mesmos poderiam desfigurar a obra, levando-a por um

    caminho totalmente diferente do que aquele previsto por seu autor.

    Todas as adies (restauraes sucessivas) deveriam ser descartadas.

    Em relao pintura, preconizava que se deveria saber o momento de parar e

    ser a interveno menor possvel. Sobre a arquitetura recaa, em sua opinio, a

    maior complexidade: distanciava-se de Ruskin e de le-Duc: do primeiro,

    medida que no aceitava a morte certa dos monumentos e, do segundo, no

    aceitando lev-los a um estado que poderia nunca ter existido antes. Alertava

    para o perigo da forma de agir de le-Duc em funo da arbitrariedade que a

    mesma continha e ao que poderia ser sua inevitvel conseqncia: o triunfo do

    engano. Ao afastar-se das duas teorias, cria, ao mesmo tempo, uma teoria

    intermediria entre ambas. Cita e concorda com Mrime ao dizer sobre as

    restauraes: nem acrscimos, nem supresses, ficando evidente o respeito

    que os acrscimos ao longo da histria deveriam ter e orientando, ao mesmo

    tempo, a mnima interveno. Boito admitia contradies em suas prprias

  • 13teorias, uma vez que o assunto era contemporneo e as mesmas estavam,

    ainda, em formao.

    Em outros aspectos, muitas vezes as idias apresentadas aproximavam-

    se das de Ruskin, principalmente ao apontar para a pouca interveno que

    deveria existir no monumento. Na verdade, esta aproximao refere-se ao

    mesmo princpio fundamental, no alterao substancial do monumento,

    medida que Boito acreditava na necessidade de certas restauraes. Outra

    caracterstica presente em Ruskin que se desenvolve nessa teoria a

    valorizao das runas como tal e por isso deve-se entender o reconhecimento

    de sua beleza, de seu aspecto pictrico, na qualidade mesma de runa. No h,

    por parte da teoria aqui analisada, vontade de que as mesmas voltassem ao

    aspecto original do edifcio e sim a de que permanecessem, de fato, como

    runas. Afasta-se aqui um possvel completamento com elementos novos,

    princpio com certeza adotado por Viollet-le-Duc. Tambm o medo em relao

    restaurao como o grande perigo distancia o pensamento de Boito dos

    escritos de le-Duc, aproximando-o, mais uma vez, a Ruskin.

    Dessa forma, ao no aceitar a morte inevitvel dos monumentos,

    propunha, em casos necessrios, restauraes que, por serem mnimas,

    acabavam eliminando a arbitrariedade de certas aes. A aceitao de todas

    as fases histricas presentes numa obra tambm espraiava os juzos de

    valores, na maioria das vezes subjetivos, em relao ao que permaneceria ou

    no. No se desejava mais levar o edifcio a um estado inicial e,

    fundamentalmente, a um que jamais houvesse existido antes.

    Seu discurso representa uma evoluo da teoria da restaurao a partir

    da mesma origem e para o mesmo caminho posteriormente traado pela Carta

    de Atenas de 1931: a reviso e adaptao dos escritos de Ruskin e de Viollet-

    le-Duc. A importncia dada ao contexto das obras artsticas percebida

    sobretudo quando fala da escultura e, no final do texto, da sada de obras do

    local de origem. Questes como o embasamento pela documentao e o

    respeito s fases de uma obra permeiam todas as intervenes

    contemporneas, tendo, portanto, grande importncia em sua prxis.

  • 14Cesare Brandi (1906-1988) foi personagem de notvel importncia no

    campo das artes no sculo XX. Segundo Giovanni Carbonara 2, Cesare

    dedicou-se Histria da Arte, Esttica e Restaurao, tendo papel

    primordial na fundao do Instituto Centrale del Restauro (ICR), em Roma , do

    qual foi diretor por duas dcadas, desde sua fundao, em 1939, at 1960,

    coordenou a restaurao de inmeras obras de arte destrudas nos

    bombardeios e, paralelamente, desenvolveu sua Teoria da Restaurao, em

    que delimitou preceitos tericos que serviram de embasamento prtica do

    restaurador, aliando suas pesquisas tericas nos campos da esttica e filosofia

    da arte com as prticas e experincias desenvolvidas no mbito do ICR.

    Publicado pela primeira vez em 1963, Brandi apresenta em seu texto o

    conceito de restauro como o momento metodolgico do reconhecimento da

    obra de arte, na sua consistncia fsica e na sua dplice polaridade esttica e

    histrica, com vistas sua transmisso para o futuro, isto , condiciona o ato

    de restaurao compreenso / experimentao da obra de arte enquanto tal,

    o que resulta na prevalncia do esttico sobre o histrico, na medida em que

    exatamente a condio de artstica o que diferencia a obra de arte de outros

    produtos da ao humana. Tal colocao refuta as teorias precedentes que

    preconizavam a manuteno dos monumentos apenas como documentos

    histricos, relegando a um segundo plano sua imagem figurativa, embora no

    exclua a importncia do valor histrico, intrnseco a todo monumento.

    De seu conceito de restauro, Brandi extrai dois conceitos:

    - Restaura-se somente a matria da obra de arte, que se refere aos

    limites da interveno restauradora, levando em conta que a obra de arte, em

    sua acepo, um ato mental que se manifesta em imagem atravs da matria

    e sobre esta matria que se degrada - que se intervm e no sobre esse

    processo mental, no qual impossvel agir. Da decorrem as crticas s

    restauraes baseadas em suposies sobre o estado original da obra,

    condenadas a serem meras recriaes fantasiosas, que deturpam a fruio da

    verdadeira obra de arte.

    2 Giovanni Carbonara professor-titular da Faculdade de Arquitetura da Universit degli Studi Di Roma La Sapienza. Traduo de Beatriz Mugayar Khl (FAU-USP).

  • 15- A restaurao deve visar ao restabelecimento da unidade potencial

    da obra de arte, desde que isso seja possvel sem cometer um falso artstico ou

    um falso histrico, e sem cancelar nenhum trao da passagem da obra de arte

    no tempo. Ainda que se busque com a restaurao a unidade potencial da

    obra (conceito de todo distinto de unidade estilstica), no se deve com isso

    sacrificar a veracidade do monumento, seja atravs de uma falsificao

    artstica, seja de uma falsificao histrica.

    Assim, o estado de conservao da obra de arte no momento da

    restaurao que ir condicionar e limitar a ao restauradora, a qual dever,

    sob o ponto de vista da instncia histrica, limitar-se a desenvolver as

    sugestes implcitas nos prprios fragmentos ou encontrveis em testemunhos

    autnticos do estado originrio. E em relao instncia esttica, os limites da

    ao do restaurador esto postos em funo da matria original da obra e de

    sua definio mesmo como obra de arte, pois a unidade figurativa da obra de

    arte se d concomitantemente com a intuio da imagem como obra de arte.

    O que deve guiar a interveno , portanto, um juzo crtico de valor,

    idia presente j no pensamento do historiador da arte vienense Alois Riegl (Le

    culte moderne des monuments. Son essence et sa gense. Paris, Seuil, 1984)

    e que aparece tambm na Carta de Veneza (1964), complementada pela

    seguinte ressalva: O julgamento do valor dos elementos em causa e a deciso

    quanto ao que pode ser eliminado no podem depender somente do autor do

    projeto. Da a afirmao da restaurao como processo coletivo, que no pode

    depender do gosto ou do arbtrio de um nico indivduo, antes deve ser

    sustentado por profundos conhecimentos, seja do ponto de vista da tcnica a

    ser empregada, seja do ponto de vista humanstico, relacionado com o domnio

    da histria, esttica e filosofia, sem os quais no se pode assegurar a

    legitimidade das escolhas efetuadas nos procedimentos de restauro.

    Com esses pontos, mantm-se, como j havia sido posto desde o

    sculo XIX por Boito ou Giovannoni 3, a regra da reversibilidade e

    distingibilidade das intervenes contemporneas nos monumentos do

    passado, datando a restaurao como fato histrico indissocivel do presente

    histrico que o produziu. Tambm nos textos de Brandi, como nas 3 Giovanoni, Gustavo (1873 1948), arquiteto.

  • 16recomendaes da Carta de Veneza, fica clara a extenso dos

    procedimentos de restauro para o ambiente ou entorno da obra como forma de

    garantir sua adequada conservao fsica e tambm sua leitura como obra de

    arte.

    O rigor de princpios a marca da reflexo de Cesare Brandi em sua

    Teoria, na qual fica claro que a restaurao um ato crtico-cultural do

    presente e, portanto, condicionado pelos valores do presente; valores esses

    que no podem menosprezar ou se eximir responsabilidade que o ato de

    restauro traz em si, tanto para sua prpria gerao quanto para as seguintes.

    Entre os tericos estudados, foi possvel reunir alguns conceitos, que

    so relevantes para a elaborao de um projeto de interveno coerente,

    dentre eles, pode-se destacar alguns dos conceitos utilizados por Violet-le-Duc,

    onde trata da importncia do papel e da responsabilidade do arquiteto na

    elaborao de documentos tcnicos, levantamento arquitetnico, verificao e

    diagnstico das patologias e a indicao de tcnicas de restauro, bem como a

    significncia de um levantamento detalhado da condio atual do bem. Sendo

    o estudo do projeto original, uma fonte de conhecimento para a resoluo de

    problemas estruturais. Viollet-le-Duc consolida a noo de que existem

    princpios verdadeiros de adequao da forma funo, da estrutura forma e

    da ornamentao ao conjunto.

    Aborda a reutilizao do bem como uma forma de salvaguardar sua

    sobrevivncia, destacando a importncia relativa ao uso da fotografia nos

    estudos cientficos, como forma de fornecer documentos que possam ser

    sempre consultados como meios para justificar as aes.

    Destaca-se ainda a importncia da investigao cientfica, da busca de

    todos os fragmentos, o cuidado de constatar o ponto onde foram descobertos,

    e somente iniciar a obra quando todos os remanescentes tiverem encontrado

    logicamente sua destinao e seu lugar. Um julgamento sem a certeza total

    pode levar a uma seqncia de dedues que afastam a restaurao da

    realidade.

    Em relao escolha e contratao de profissionais (operrios) nos

    canteiros de restaurao, ressalta que a atuao do profissional deve ser

  • 17baseada em circunstncias e especificidades de cada projeto, onde se torna

    indispensvel o conhecimento do temperamento do edifcio.

    Sobre John Ruskin pode-se destacar suas palavras sobre o ato de

    interveno: Que interveno se poder executar de superfcies que esto

    consumadas de meia polegada? Todo o inteiro requinte do acabamento da

    superfcie da obra estava exatamente naquela meia polegada que se foi. Se

    tentares restaurares este acabamento, no podeis faz-lo no

    arbitrariamente. Se copiares aquilo que permaneceu, assegurando o

    mximo possvel de realidade, como pode a nova ser melhor que a velha?

    E, no entanto naquela velha havia um qu de vitalidade, um qu de

    misterioso e sugestivo daquilo que se foi, e daquilo que se perdeu... que

    no pode ser encontrada na brutal dureza do entalhe novo4.

    A conservao do monumento pode ser determinada pela conscincia

    do seu valor enquanto testemunho da ao humana que atravessa sculos, e

    para sua salvaguarda necessrio conserv-lo respeitando a condio

    temporal que lhe submetido, destacando que a importncia da valorizao do

    bem, pode ser obtida atravs da valorizao das marcas deixadas pelo tempo.

    Sobre Camilo Boito pode-se destacar a importncia da documentao e

    o respeito s fases de uma obra para o embasamento de possveis

    intervenes.

    Mas o terico de maior significncia para o estudo em questo, trata-se

    de Cesare Brandi, devido a uma identificao pessoal e ao significado de

    alguns de seus conceitos, que puderam ser totalmente aplicveis ao caso de

    interveno no prdio do Grande Hotel.

    Dentre eles, podemos destacar os seguintes importncia do

    reconhecimento do monumento enquanto obra de arte, quanto a seu juzo de

    valor, lhe constituindo o primeiro passo para a interveno.

    A anlise do bem sobre dois aspectos de fundamental importncia: o

    histrico e o esttico, onde a primeira representa o significado do produto

    humano realizado em um certo tempo e lugar e a segunda, representa a

    qualidade artstica, pela qual a obra dada como obra de arte: 4 Ruskin, John. A lmpada da memria. Apresentao, traduo e notas Odete Dourado. P. 25. Salvador: Publicaes Pretextos. Srie B, n 2, 1996.

  • 18

    A restaurao constitui o momento metodolgico do

    reconhecimento da obra de arte, em sua conscincia fsica, e em dupla

    polaridade esttica e histrica, em ordem a sua transmisso ao futuro. 5

    Brandi aborda a importncia do uso da restaurao preventiva e a

    valorizao da integrao entre o existente e o proposto, onde deve ser sempre

    e facilmente reconhecvel; mas sem que por isto se venha a infringir a prpria

    unidade que se visa a reconstruir, sendo que qualquer interveno de restauro

    no torne impossvel, mas antes, facilite as eventuais intervenes futuras.

    A falsificao um objeto, significa desvaloriz-lo em relao ao contexto

    no qual est inserido, pois um erro na reconstituio histrica deste objeto

    resulta em uma ofensa esttica irreparvel:

    Se um determinado objeto est fragmentado fisicamente, este

    dever continuar subsistindo potencialmente como um todo em cada um de

    seus fragmentos, e esta potencialidade ser exigvel numa proporo

    diretamente vinculada com o vestgio formal que h sobrevivido

    degradao da matria de cada um de seus fragmentos. 6

    No restabelecimento do monumento arquitetnico, devem ter preferncia

    os problemas estruturais correspondente matria fsica, lugar onde se

    manifesta a imagem, podendo ser alterado, tudo aquilo que compe a imagem,

    sempre que necessrio, e principalmente, ao contemplarmos o objeto

    restaurado, devemos reconhecer a interveno realizada, sempre que possvel.

    So estes os principais conceitos sobre interveno que vigoraram a

    partir do sculo XIX, constituindo a base para a conservao do patrimnio

    histrico.

    Sem dvida, esses conceitos, sobre patrimnio cultural procuraram

    resolver o problema da conservao e reconstituio do monumento, dando

    origem tambm s outras correntes, que possibilitaram muitas formas de

    atuao e determinaram a atitude do arquiteto frente ao bem a ser intervido. 5 Brandi, Cesare. Teoria da Restauracin. Roma: Alianza Forma: 1995, p. 56. 6 Brandi, Cesare. Teoria da Restauracin. Roma: Alianza Forma: 1995, p. 72.

  • 19

    A constituio de patrimnios histricos e artsticos nacionais foi uma

    prtica caracterstica dos Estados modernos, instituda atravs de agentes

    recrutados entre intelectuais e fundamentada em instrumentos jurdicos

    especficos. Estes agentes encarregavam-se de selecionar bens mveis ou

    imveis, atribuindo-lhes valores enquanto manifestaes culturais e enquanto

    smbolos da nao, que passaram a ser merecedores de proteo permanente

    e de carter irrevogvel, ou seja, uma vez tombado o bem adquire status de

    monumento integrante do acervo histrico e artstico nacional, cuja

    conservao passou a ser de interesse pblico.

    A trajetria institucional da preservao do patrimnio cultural no Brasil

    teve incio no final da dcada de 1930, com a oficializao do Servio do

    Patrimnio Histrico e Artstico Nacional atual IPHAN, e a promulgao do

    Decreto-lei n 25/37 a lei de tombamento nacional. Associado construo

    de uma identidade nacional conduzida pelo Estado Novo, o imaginrio

    relacionado preservao impregnou-se, a partir da, de representaes

    relacionadas aos bens patrimoniais com caractersticas monumentais e

    excepcionais.

    O Decreto-lei n 25/37 serviu de base para as legislaes estaduais e

    municipais sobre o assunto. Muitas capitais brasileiras promulgaram leis de

    tombamento tendo como base a legislao federal. Outras utilizaram normas

    de planejamento urbano para promover a preservao do patrimnio edificado

    e algumas valeram-se dos dois tipos de instrumentos visando a uma ao mais

    eficaz.1

    1 Polticas Pblicas, texto elaborado a partir da dissertao O passado no futuro da cidade polticas pblicas e participao dos cidados na preservao do patrimnio cultural de Porto Alegre nas dcadas de 70 a 90, Meira, Ana Lcia.

  • 20Para qualquer tipo de interveno a ser realizada em prdio de valor

    histrico, necessrio reunir em primeira instncia, quais as orientaes feitas

    pela legislao vigente.

    Sendo o prdio do Grande Hotel, situado na II ZPPC (Zonas de

    Patrimnio Cultural de Pelotas), do stio do segundo loteamento, onde a lei n

    4568, aprovada, sancionada e promulgada pelo prefeito de Pelotas, determina:

    I- O uso do solo original dever ser mantido, mesmo que na ausncia

    das estruturas fsicas e ambientais que lhe deram origem.

    II- Parcelamento do solo original dever ser preservado, no sendo

    permitidos loteamentos, desmembramentos, remembramentos e quaisquer

    outra forma de parcelamento.

    III- A rea construda e a volumetria originais devem ser mantidas, no

    sendo permitido, nem aumentos, nem diminuies.

    Figura 1 - Planta da rea Central de Pelotas, delimitao das Zonas. Desenho: Cristiane Mller.

    Pode-se destacar ainda a Portaria Federal 009, onde trata que as

    intervenes devero ter por objetivo recuperar e preservar a ambincia dos

    monumentos, mantendo os atuais ndices de ocupao, gabaritos, volumetria

    existente; sendo vetados desmembramentos de lotes, devendo-se evitar

    sobretudo, as intervenes que venham a descaracterizar as aberturas ou

    outros elementos arquitetnicos da fachada e cobertura.

    Alm da legislao, se fez uso das Cartas Patrimoniais, documentos

    firmados internacionalmente, que servem como referncia sobre a preservao

    de bens culturais. Estes documentos representam a busca de alternativas e

  • 21procedimentos que visam o estabelecimento de normas e conceitos que

    podem ser aplicados aos bens culturais, de uma forma global e/ou local.

    Foram selecionados critrios e parmetros utilizados em algumas cartas,

    que possuem uma relao direta com o caso da interveno no prdio do

    Grande Hotel.

    Segundo os preceitos utilizados na Carta de Atenas (Outubro de 1931),

    pode-se destacar:

    A conferncia assistiu exposio dos princpios gerais e das doutrinas

    concernentes proteo dos monumentos. Qualquer que seja a diversidade

    dos casos especficos - e cada caso pode comportar uma soluo prpria - a conferncia constatou que nos diversos Estados representados

    predomina uma tendncia geral a abandonar as reconstituies integrais,

    evitando assim seus riscos, pela adoo de uma manuteno regular e

    permanente, apropriada para assegurar a conservao dos edifcios. Nos

    casos em que uma restaurao parea indispensvel devido deteriorao

    ou destruio, a conferncia recomenda que se respeite a obra histrica e

    artstica do passado, sem prejudicar o estilo de nenhuma poca. A

    conferncia recomenda que se mantenha uma utilizao dos monumentos,

    que assegure a continuidade de sua vida, destinando-os sempre a

    finalidades que o seu carter histrico ou artstico. 2

    importante destacar o tratamento dado a casos especficos, o que

    pode ser confirmado pelo terico Viollet-le-Duc, que diz que a atuao do

    profissional deve ser calcada em circunstncias particulares a cada projeto, o

    que justifica a escolha de um estudo de caso para esta investigao.

    Os especialistas recomendam algumas diretrizes relativas ao emprego

    de materiais modernos para a consolidao de edifcios antigos, que so elas:

    - Recomendam a utilizao de materiais e recursos da tcnica moderna,

    especialmente o uso do concreto armado.

    - Especificam, porm, que esses meios de reforo devem ser

    dissimulados, salvo impossibilidade, a fim de no alterar o aspecto e o carter

    do edifcio a ser restaurado.

    2 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Brasil). Cartas Patrimoniais, 2ed. ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. Carta de Atenas, p 13.

  • 22- Recomendam os tcnicos esses procedimentos especialmente nos

    casos em que permitam evitar os riscos de desagregao dos elementos a

    serem conservados.

    Nas tcnicas de interveno estrutural, para o caso do Grande Hotel, se

    tornou indispensvel utilizao de tcnicas de reforo e reparo estrutural,

    utilizando o uso do concreto armado e estrutura metlica, a fim de garantir a

    integridade do bem. Tais intervenes podem ser melhor observadas no

    captulo que descreve as intervenes.

    Quanto aos outros monumentos, os tcnicos unanimemente

    aconselharam, antes de toda consolidao ou restaurao parcial, anlise

    escrupulosa das molstias que os afetam, reconhecendo, de fato, que cada

    caso contribui um caso especial.

    Para tanto, se faz necessrio diagnosticar detalhadamente as patologias

    existentes no bem, a fim de lanar propostas de recuperao destes danos. No

    caso em estudo, foi realizado um levantamento de todas as patologias

    encontradas no prdio, sendo encontrados dois comprometimentos srios de

    elementos significativos para o bem: a clarabia e a cpula que abriga a caixa

    dgua.

    Foram diagnosticados o comprometimento das estruturas e materiais

    (ferrugem, cupim, etc.), que podem ser observados no diagnstico das

    patologias, juntamente com outros comprometimentos existentes no prdio.

    de suma importncia destacar a importncia de existir uma

    interdisciplinaridade no que diz respeito colaborao de profissionais de

    diferentes reas na elaborao dos mtodos de recuperao, a fim de que

    sejam feitas intervenes criteriosas e especficas para cada caso.

    A conferncia, profundamente convencida de que a melhor garantia

    de conservao de monumentos e obras de arte vem do respeito e do

    interesse dos prprios povos, considerando que esses sentimentos podem

    ser grandemente favorecidos por uma ao apropriada dos poderes

    pblicos, emite o voto de que os educadores habituem a infncia e a

    juventude a se absterem de danificar os monumentos, quaisquer que eles

  • 23sejam, e lhes faam aumentar o interesse, de uma maneira geral, pela proteo dos testemunhos de toda a civilizao3.

    Na Carta de Veneza (Maio de 1964), encontramos algumas definies

    importantes relativas noo de monumento e restaurao.

    A noo de monumento histrico compreende a criao

    arquitetnica isolada, bem como o stio urbano ou rural que d testemunho

    de uma civilizao particular, de uma evoluo significativa ou de um

    acontecimento histrico. Estende-se no s s grandes criaes, mas

    tambm s obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma

    significao cultural. 4

    - A conservao e a restaurao dos monumentos tem por finalidade

    salvaguardar tanto a obra de arte quanto o testemunho histrico.

    Tal conceito, pode ser reafirmado pelo terico Cesare Brandi, onde diz

    que a anlise do bem pode ser realizada sobre dois aspectos de fundamental

    importncia: o histrico e o esttico, onde a primeira representa o significado

    do produto humano realizado em um certo tempo e lugar e a segunda,

    representa a qualidade artstica, pela qual a obra dada como obra de arte.

    Outro conceito citado na Carta de Veneza, que confirmado por Brandi,

    relativo a conservao do bem atravs da manuteno permanente, o que

    caracteriza uma restaurao preventiva.

    Tal fator poder ser aplicado dando ao prdio uma nova funo, como no

    caso do Grande Hotel, facilitando assim a sua manuteno atravs da

    destinao de uma funo til sociedade, neste caso uma escola de

    hotelaria.

    O que pode ser observado tambm em um texto escrito por Viollet-le-

    Duc, que diz que o uso da reutilizao de um bem pode ser usado como forma

    de salvaguardar sua sobrevivncia.

    3 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Brasil). Cartas Patrimoniais, 2ed. ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. Carta de Atenas, p 17. 4 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Brasil). Cartas Patrimoniais, 2ed. ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. Carta de Veneza, p 92.

  • 24A conservao dos monumentos sempre favorecida por sua

    destinao a uma funo til sociedade (...) implica a preservao de uma

    ambincia em sua escala. Enquanto sua ambincia subsistir, ser

    conservada, e toda construo nova, toda destruio e toda modificao

    que possam alterar as relaes de volumes e de cores so proibidas.5

    incontestvel a proibio relativa s possveis modificaes do volume

    do bem cultural, visto que tal alterao poder comprometer de forma

    significativa leitura do bem como um todo, tanto que a legislao vigente em

    Pelotas (Lei 4569) determina que a rea construda e a volumetria originais

    devam ser mantidas, no sendo permitido, nem aumentos, nem diminuies.

    Mas em relao proibio de possveis alteraes da cor, viu-se a

    necessidade de fazer um questionamento sobre sua validade, e portanto uma

    maior reflexo sobre o assunto. Visto que no projeto de interveno do Grande

    Hotel, foram feitas diversas intervenes com o uso da cor. Principalmente em

    relao ao uso da cor nas fachadas.

    Aps ter realizado um Curso de Atualizao e Aperfeioamento no

    Estudo da Cor em Arquitetura, a Policromia da Cidade: Aspectos Culturais,

    Simblicos e Estruturais, Teoria e Prtica, na Universidade Federal de Pelotas,

    ministrado pela Prof. Natlia Naoumova, pde-se constatar a importncia do

    uso da cor nas fachadas dos edifcios de valor histrico.

    Esta importncia se deve ao fato destes prdios estarem muitas vezes

    com a pintura da fachada desgastadas pela ao do tempo e das intempries,

    dando um aspecto de velho a estes prdios frente s cidades e muitas vezes

    desvalorizando suas caractersticas, que lhe conferem o valor cultural.

    A umidade e o acmulo de sujeira tambm contribuem para que estes

    prdios passem a falsa idia de que o antigo se configura como velho.

    Podendo se fazer uma analogia ao conceito utilizado por Brandi em

    relao a uma superfcie pictria de uma obra, onde a perda do desenho, da

    cor e as falhas ocasionadas pelo envelhecimento do tecido se sobressaiam na

    visualizao da obra, onde seu aspecto esttico de compromete. Isto porque

    5 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Brasil). Cartas Patrimoniais, 2ed. ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. Carta de Veneza, p 92 e 93.

  • 25numa relao figura fundo, estes problemas chamaro mais ateno do que

    a prpria representao pictrica.

    Em arquitetura, estas falhas podem se comportar da mesma forma, pois

    como resultante da organizao em vrias peas de um mosaico, o

    monumento no pode ser analisado ou reconhecido se algumas de suas partes

    complementares no estiveram integradas ou em bom estado de conservao.

    Alm disso, com o passar do tempo, proprietrios ou responsveis por

    prdios de valor histrico, se encarregam de dar uma nova pintura aos

    mesmos, sem se preocupar com certos critrios para a utilizao da cor, que

    dizem respeito a:

    - Escolha do tipo de tinta adequado para o reboco existente;

    - Escolha do tom da tinta que vise valorizao e destaque do bem;

    mantendo ou no a relao existente entre o prdio e seu entorno;

    - Pesquisa detalhada, atravs de raspagens da superfcie da fachada, a

    fim de chegar o mais prximo possvel dos tons originais.

    O que se pode observar tambm o uso indiscriminado da cor a fim de

    destacar o prdio com fins comerciais, no levando em considerao a poca,

    histria, entorno e tipologia do prdio.

    Partindo destas questes, possvel propor um estudo da cor para o

    prdio, seguindo alguns critrios de percepo, tais como: cores claras podem

    ser usadas nos detalhes a fim de melhor destac-los na fachada. Cores mais

    escuras geralmente tendem a amenizar possveis imperfeies da fachada,

    alm de outras estratgias que podem ser usadas a fim de valorizar a

    arquitetura destes prdios.

    De acordo com a Carta de Veneza, que institui a operacionalizao do

    restauro, os objetivos da interveno sobre o patrimnio cultural centram-se na

    manuteno, transmisso ao futuro e facilitao da leitura do monumento, bem

    como aproximar uma interpretao crtica obra original e no ato crtico

    interpretar e reintegrar a obra em exame, restituindo idealmente imagem, as

    diferentes fases e transformaes histricas.

    No entanto, este conceito que determina as formas de atuao sobre o

    patrimnio cultural constitui em uma abordagem referente ao mundo moderno,

    pois nem sempre as formas de interveno sobre o monumento foram

  • 26passadas desta maneira. Diferentes linhas de pensamento constituram, ao

    longo da histria, diferentes teorias sobre o tema restaurao.

    Em civilizaes antigas, mesmo antes da Antigidade Clssica, restaurar

    um monumento degradado pela ao do tempo ou pelo prprio homem

    significava reconstitu-lo de acordo com os materiais, estilos e gosto da poca

    prevalecente:Os romanos, por exemplo, reconstruam, mas no restauravam,

    a prova que no latim no existe a palavra correspondente ao nosso termo

    restauro, com o significado que lhe atribudo hoje. Instaure, retificare,

    renovare no significavam restaurar, mas reconstruir, fazer de novo. O lugar e

    o motivo pelo qual o monumento havia sido construdo, bem como sua idia

    original, eram mais importantes. Assim no ato da reconstruo do objeto,

    poderiam ser obtidos como resultados finais novas concepes sobre o

    mesmo, pois a restaurao estava ligada ao ato de inovar de acordo com o

    gosto e a concepo esttica da poca.

    Por muitos sculos o ato de restaurar foi pensado e executado de

    diferentes formas, at que na metade do sculo XIX, com as correntes que

    originaram o Modernismo, representadas pela nascente industrializao e a

    vinda do homem do campo para as cidades, surgiram o estilo arquitetnico

    Neoclssico, cuja premissa baseava-se na exaltao e reviso de estilos

    arquitetnicos da Antigidade Clssica, entre outros, possibilitando um

    aprofundamento do significado de imitao.

    Por esse motivo, estes estilos arquitetnicos do passado foram

    reinterpretados de acordo com o gosto da poca, segundo as possibilidades

    dos novos materiais e tcnicas construtivas.

    Segundo a Carta do Restauro (de 6 de abril de 1972), publicada na Itlia, pode-se destacar alguns conceitos, que podem ser utilizados, assim

    como os outros documentos citados anteriormente, como referncia para o

    processo de interveno em patrimnio edificado.

    O primeiro conceito a ser destacado, discute as proibies relativas s

    propostas de remoes ou demolies que venham a apagar a trajetria que o

    bem construiu ao longo dos anos, ou a remoo, reconstruo ou traslado para

    locais diferentes dos originais, a menos que isso seja determinado por razes

    superiores de conservao.

  • 27Segundo John Ruskin, para a conservao e salvaguarda de um

    monumento necessrio conserv-lo respeitando a condio temporal a que

    est submetido, procurando destacar que a importncia da valorizao do bem

    pode ser obtida atravs da valorizao das marcas deixadas pelo tempo.

    Aborda tambm proibies relativas as intervenes que venham a

    descaracterizar as condies de acesso ou ambientais em que o bem chegou

    at os dias atuais, o conjunto monumental ou ambiental, o conjunto decorativo,

    o jardim, o parque, etc.

    Sendo permitidos aditamentos de partes acessrias de funo

    sustentante e reintegraes de pequenas partes verificadas historicamente,

    executadas, se for o caso, com clara determinao do contorno das

    reintegraes, ou com adoo de material diferenciado, embora harmnico,

    facilmente distinguvel ao olhar, particularmente nos pontos de enlace com as

    partes antigas e, alm disso, com marcas e datas onde for possvel. 6

    Podendo ser realizadas modificaes ou inseres de carter estrutural,

    a fim de garantir a integridade do bem.

    Cesare Brandi, aborda a questo estrutural como prioridade no

    restabelecimento do monumento arquitetnico. Enfocando a prioridade em

    resolver os problemas estruturais correspondentes matria fsica do bem,

    podendo ser realizadas alteraes no sentido de assegur-lo, destacando

    tambm que devemos reconhecer a interveno realizada, sempre que

    possvel.

    Alm disso, a Carta sugere que qualquer interveno deve ser

    previamente estudada e justificada por escrito e dever ser organizado um

    dirio de seu desenvolvimento, a que se anexar a documentao fotogrfica

    de antes, durante e depois da interveno.

    Brandi reafirma em suas teorias a importncia do uso da restaurao

    preventiva e a valorizao da integrao entre o existente e o proposto, onde

    devem ser sempre e facilmente reconhecveis, destacando que qualquer

    interveno de restauro no torne impossvel eventuais intervenes futuras.

    6 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Brasil). Cartas Patrimoniais, 2ed. ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. Carta do Restauro, p 149.

  • 28Qualquer interveno na obra ou em seu entorno, deve ser

    realizada de tal modo e com tais tcnicas e materiais que fique assegurado

    que, no futuro, no ficar inviabilizada outra eventual interveno para

    salvaguarda ou restaurao. No caso das limpezas, se possvel em lugar

    prximo zona interventora, dever ser deixado um testemunho do estado

    anterior operao, enquanto que no caso das adies, as partes

    eliminadas devero, sempre que possvel, ser conservadas ou

    documentadas em um arquivo-depsito especial das superintendncias

    competentes. 7

    Alm das regras gerais contidas nos artigos da Carta do Restauro,

    aborda tambm a questo da reutilizao do bem, fator de suma importncia

    para o estudo em questo, visto que a proposta de interveno no Grande

    Hotel, trata-se de um projeto de reciclagem.

    Sempre com o objetivo de assegurar a sobrevivncia dos

    monumentos, vem-se considerando detidamente a possibilidade de novas

    utilizaes para os edifcios monumentais antigos, quando no resultarem

    incompatveis com os interesses histrico-artsticos. As obras de adaptao

    devero ser limitadas ao mnimo, conservando escrupulosamente as formas

    externas e evitando alteraes sensveis das caractersticas tipolgicas, da

    organizao estrutural e da seqncia dos espaos internos. 8

    Discute tambm a importncia de se salvaguardar a autenticidade dos

    elementos construtivos, este princpio serve como guia e condicionante na

    escolha das operaes a serem realizadas. No caso de paredes em desaprumo, por exemplo, mesmo quando

    sugiram a necessidade peremptria de demolio e reconstruo, h que se

    examinar primeiro a possibilidade de corrigi-los sem substituir a construo

    original. 9

    7 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Brasil). Cartas Patrimoniais, 2ed. ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. Carta do Restauro, p 150. 8 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Brasil). Cartas Patrimoniais, 2ed. ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. Carta do Restauro, p 157. 9 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Brasil). Cartas Patrimoniais, 2ed. ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. Carta do Restauro, p 158.

  • 29Recomenda para a realizao de um do projeto para a restaurao de

    uma obra arquitetnica, um estudo detalhado do monumento, elaborado de

    diversos pontos de vista (que estabeleam a anlise de sua posio no

    contexto territorial ou no tecido urbano, dos aspectos tipolgicos, das

    elevaes e qualidades formais, dos sistemas e caracteres construtivos, etc),

    relativos obra original, assim como aos eventuais acrscimos ou

    modificaes.

    Neste estudo, devero estar presentes pesquisas bibliogrficas,

    iconogrficas e arquivsticas, a fim de que se possa obter todos os dados

    histricos possveis em relao ao bem e ao meio na qual est inserido. O

    projeto de interveno dever conter uma representao grfica e fotogrfica

    completa, interpretada tambm sob o aspecto metrolgico, dos traados

    reguladores e dos sistemas proporcionais. Com o objetivo de certificar-se de todos os valores urbansticos,

    arquitetnicos, ambientais, tipolgicos, construtivos, etc., qualquer

    interveno de restaurao ter que ser precedida de uma atenta leitura

    histrico-crtica, cujos resultados no se dirigiro tanto a determinar uma

    diferenciao operativa - posto que em todo o conjunto definido como centro

    histrico dever-se- operar com critrios homogneos - quanto,

    principalmente, individualizao dos diferentes graus de interveno a

    nvel urbanstico e a nvel edlico, para determinar o tratamento necessrio

    de saneamento de conservao. 10

    10 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Brasil). Cartas Patrimoniais, 2ed. ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. Carta do Restauro, p 157.

  • 30

    Em razo da grande importncia que os prdios histricos exercem em

    Pelotas e as potencialidades da cidade em relao ao turismo, surgiu a idia de

    fazer um projeto de Reciclagem e Interveno arquitetnica no prdio do

    Grande Hotel, com a implantao de uma Escola de Hotelaria.

    Partindo deste princpio, tornou-se necessrio fazer uma identificao

    esquemtica do imvel, a fim de contextualizar o leitor em relao ao prdio em

    questo.

    O prdio do Grande Hotel est localizado na Rua Pe. Anchieta, n 51, na

    cidade de Pelotas, local onde funcionava o antigo Cinema Politeama. Comeou

    a ser construdo no ano de 1924 e foi inaugurado em 1928, sendo projetado

    pelo arquiteto Thefilo de Barros, com uma tipologia de arquitetura civil, com

    funo privada (hotel). Possui proteo legal como prdio inventariado, sendo

    os ltimos proprietrios a famlia Zabaletta, sendo hoje de posse da Prefeitura

    Municipal de Pelotas, passando para o uso pblico.

    Em relao ao sistema construtivo, caracteriza-se como portante

    (paredes externas), com vigamento de concreto armado entre pisos e laje.

    Ficando marcado, portanto, a existncia de um sistema portante, constitudo

    por uma malha estrutural. Esta malha estabelece um campo de espao fixo

    neutro, no qual os espaos internos so livremente formados e distribudos, j

    que a delimitao e a disposio dos espaos internos no so determinados

    ou restringidos pelo padro de paredes de sustentao.

    Em 1926, Le Corbusier exps aquilo que acreditava constituir os

    Cinco Pontos da Nova Arquitetura. Suas observaes foram em grande

    parte resultado do desenvolvimento da construo em concreto armado

    iniciada no final do sculo XIX. Este tipo de construo, em particular o uso

  • 31de colunas de concreto armado para apoiar as lajes de piso e cobertura,

    conferiu novas possibilidades definio e delimitao de espaos dentro

    do edifcio. 1

    Figura 2 - Perspectiva Esquemtica do Prdio. Desenho: Cristiane Mller.

    Em relao cobertura, possui trs tipos: a cobertura geral do prdio, de

    estrutura de madeira e cobertura de telha de barro, a clarabia, com estrutura

    metlica e vidro e a cpula, com estrutura de madeira e telha de bronze.

    Figura 3 - Vista Superior da Quadra do Grande Hotel. Fonte: Prefeitura Municipal de Pelotas.

    A fim de avaliar a integridade do conjunto do prdio em questo e de

    suas partes, viu-se como necessrio fazer uma anlise tipolgica, descrevendo

    no s as caractersticas arquitetnicas da edificao, mas tambm o partido 1 Ching, Francis. Arquitetura, forma, espao e ordem So Paulo: Martins Fontes, 1998, p 128.

  • 32de sua composio e propores volumtricas, alm de outros elementos

    que merecem ser destacados, para que se possa fazer o entrelaamento da

    composio original do prdio com os conceitos elaborados para a interveno

    proposta.

    Os elementos de arquitetura so como corpos, limites

    (envolventes) espaciais que fazem existir os elementos de composio; so

    coisas concretas, tem natureza definida (portas, janelas, pilares, artefatos,

    etc); so partes da construo. J os elementos de composio so

    espaos, abstraes. So conceitos, como por exemplo, a proporo de

    determinados ambientes. No tem uso por si mesmos; so rtulos que se

    aplicam aos espaos segundo uma determinada situao. Os elementos de

    arquitetura so as partes mais visveis de um edifcio e expressam a

    definio do todo edificado e, assim, pilares, paredes, coberturas, vedaes,

    etc. so partes de uma habitao que podem ser vistas por todos os

    moradores de uma cidade. 2

    A anlise tipolgica do prdio foi realizada atravs das diretrizes de

    anlise do livro de Francis Ching, onde aborda a forma e o espao de

    arquitetura, aliado a princpios que norteiam a organizao espacial e

    compositiva em um edifcio.

    possvel estabelecer uma analogia com a maneira como

    precisamos conhecer o alfabeto antes que possamos formar palavras e

    desenvolver um vocabulrio, como precisamos compreender as regras de

    gramtica e sintaxe antes que possamos construir sentenas; precisamos

    entender os princpios de composio antes que possamos escrever

    ensaios, romances e coisas do gnero. Uma vez que esses elementos

    forem compreendidos, poderemos escrever com pujana ou com fora,

    rogar pela paz ou incitar revolta, comentar sobre o trivial ou falar com

    profundidade e relevncia. De maneira semelhante, talvez seja apropriado

    sermos capazes de reconhecer os elementos bsicos da forma e do espao

    e entendermos como podem ser manipulados e organizados no

    desenvolvimento de um conceito de projeto, antes de nos voltarmos para a

    questo mais vital do sentido na arquitetura. 3

    2 Martinez, Alfonso Corona. Ensayo sobre el proyecto. Buenos Aires: CP 67, 1998, p. 149. 3 Ching, Francis. Arquitetura, forma, espao e ordem So Paulo: Martins Fontes, 1998, p XI.

  • 33

    Partindo desta premissa, sero descritas as anlises a partir da planta

    baixa do primeiro pavimento do Grande Hotel.

    O primeiro ponto analisado a composio geral da planta, onde se

    observa a retirada de um volume destacado, caracterizando um volume

    subdivido.

    Figura 4 - Planta Baixa 1 Pavimento. Desenho: Cristiane Mller.

    O que classifica a planta como uma composio geral subtrativa.

    Segundo Ching, quando as formas regulares tem fragmentos que lhes

    faltam de seus volumes, conservam suas identidades formais se as

    percebemos como todo incompletos, referimo-nos a essas formas mutiladas

    como formas subtrativas.

    Foi constatado no edifcio, dois tipo de configurao, uma mais

    perceptiva, se observada a partir da fachada, caracterizada como configurao

    em L, que destaca uma aresta de seu terreno (esquina), onde articula-se como

    um elemento independente que rene duas formas lineares.

    O arredondamento desta aresta, enfatiza a continuidade das superfcies

    constituintes de uma forma, a compacidade de seu volume e a suavidade do

    seu contorno.

  • 34

    Figura 5 - Esquema da Configurao em L. Desenho: Cristiane Mller.

    A outra configurao, observada na planta baixa, caracterizada como

    configurao um U, onde pode-se focalizar um elemento significativo dentro de

    seus campos (espao da clarabia).

    Figura 6 - Esquema da Configurao em U. Desenho: Cristiane Mller.

  • 35

    A organizao espacial se configura de forma aglomerada, com a

    diferenciao dos espaos pelo tamanho e pela forma dos compartimentos,

    fazendo uso do movimento de formas simples, tais como o quadrado, o

    retngulo e o crculo.

    A forma aglomerada caracteriza-se por um conjunto de formas

    agrupadas pela proximidade fsica ou pelo fato de possurem uma

    caracterstica visual comum.

    No caso do grande Hotel os espaos so interligados atravs da

    proximidade fsica, onde a significncia dos espaos dada atravs do

    tamanho e da forma, sendo ligados por um espao comum, o espao da

    clarabia.

    Figura 7 - Diferenciao por Tamanho e Forma. Desenho: Cristiane Mller.

    Enquanto uma organizao centralizada tem uma forte base

    geomtrica para a organizao de suas formas, uma organizao

    aglomerada agrupa suas formas de acordo com exigncias funcionais de

    tamanho, formato ou proximidade. Embora no tenha a regularidade

    geomtrica e a natureza introvertida das formas centralizadas, uma

    organizao aglomerada flexvel o suficiente para incorporar formas de

    vrios tamanhos, formatos e orientao em sua estrutura. 4

    4 Ching, Francis. Arquitetura, forma, espao e ordem So Paulo: Martins Fontes, 1998, p 66.

  • 36Sendo, portanto, o espao da clarabia destacado pela sua

    localizao no centro da planta, seu tamanho e por interligar os outros

    compartimentos.

    Os ambientes caracterizam-se como compartimentados, onde sua

    forma est relacionada forma dos espaos que a constituem, sendo

    determinados por seus usos especficos, dividido por funes, caractersticas

    estas, por tratar-se de um hotel.

    No que diz respeito composio planimtrica, as plantas

    configuram-se de forma assimtrica, possudo um eixo de simetria no corpo

    cilndrico que marca o acesso principal do prdio.

    O acesso ao interior do prdio configura-se de forma oblqua, no

    existindo frontalidade no edifcio, sendo as duas fachadas valorizadas. Sendo a

    frontalidade uma caracterstica dos prdios clssicos, como o caso do prdio

    da Prefeitura Municipal de Pelotas, onde se observa claramente uma fachada

    principal e assim, uma frontalidade.

    Figura 8 Pref. Municipal de Pelotas, acesso frontal. Figura 9 Grande Hotel, acesso oblquo.

    Figura 10 - Eixo de Simetria. Desenho: Cristiane Mller.

  • 37

    O piso alargado na parte inferior da escada de acesso ao prdio e o

    patamar visvel, convidam subida, sendo permitido o movimento vertical entre

    o nvel do espao externo e o edifcio.

    Figura 11 - Escada de Acesso ao Prdio. Foto: Cristiane Mller.

    A circulao feita atravs da maneira que os espaos so ligados,

    sendo caracterizada nos ambientes maiores, aberta em ambos os lados.

    No que diz respeito escala visual, possui ambientes com grandes e

    pequenas dimenses, dando a sensao de ter sido usado dois tipos de escala

    na concepo do projeto, isto pode ser melhor observado na planta do segundo

    pavimento.

    Figura 12 - Escala Visual. Desenho: Cristiane Mller.

    De uma forma geral, o prdio do Grande Hotel, pde ser analisado,

    seguindo as diretrizes utilizadas por Francis Ching, descrevendo assim suas

    caractersticas originais bsicas, a fim de criar um suporte para a abordagem

    dos conceitos utilizados na elaborao do projeto de interveno arquitetnica.

  • 38

    Neste captulo, so abordadas as consideraes acerca dos conceitos

    utilizados na elaborao da proposta de interveno, preconizando a

    necessidade de tornar o ato de intervir em um ato cientfico, que siga princpios

    e mtodos cientificamente determinados, respeitando o monumento enquanto

    documento histrico.

    Partido das anlises tipolgicas realizadas, sero abordadas as

    consideraes acerca dos conceitos utilizados na elaborao nesta proposta

    de interveno, usando como conceito bsico conservao mxima do prdio

    existente, procurando adapt-lo ao novo uso, retirando apenas os elementos

    que no venham a descaracterizar aquelas caractersticas que lhe conferem

    valor patrimonial, usando como base a Teoria do Restauro, elaborada pelo

    terico Cesare Brandi.

    O primeiro conceito a ser abordado, o conceito de reciclagem, que

    prope a mudana do uso original do edifcio, com propostas que se adaptem

    s condies atuais, sem alteraes na volumetria, na tipologia e na linguagem

    formal do prdio.

    O significado de nossa memria arquitetnica, a forma de preserv-

    la, o que preservar, envolve um complexo de atos, desde a conservao

    integral do prdio, passando por revitalizaes que, por sua vez, possuem

    vrios graus de intervenes at a reciclagem que, alm de revitalizar,

    muda a funo original do prdio. 1

    1 Jantzen e Oliveira. Renovao Urbana e Reciclagem, orientao para prtica de atelier Pelotas: Editora e Grfica Livraria Mundial, 1996, p 85.

  • 39Um projeto de reciclagem que altera a funo original do prdio, deve

    ater-se a uma adaptao que se compatibilize com o seu desenho primitivo,

    demonstrando a preocupao em respeitar o projeto original do prdio.

    Ao se propor os acrscimos e renovaes que, quando necessrios,

    devem ter carter diverso do original, mas no devem destoar do conjunto a

    que foi inserido, passando a inteno de ruptura entre passado e presente.

    Sendo imprescindvel que os complementos de partes deterioradas ou

    faltantes devam, mesmo que sigam a forma primitiva, ser de material diverso

    ou ter incisa a data de sua restaurao, para que fique explcito onde foi

    realizada a interveno.

    necessrio que estes complementos, se indispensveis, e as

    adies, se no podem ser evitadas, demonstrem no ser obras antigas, mas

    obras da atualidade.

    Sendo importante ressaltar a importncia de se registrar estas

    intervenes, apontando-se a utilidade da fotografia para documentar a fase

    antes, durante e depois da interveno, devendo o material ser acompanhado

    de descries e justificativas, e quando possvel, deixar algumas reas

    mostrando o estado do bem antes da interveno.

    Um conceito que merece destaque, refere-se idia de reversibilidade,

    propondo uma interveno de uma forma que possa ser revertida, sem causar

    danos ao bem a ser reciclado, no impossibilitando eventuais intervenes

    futuras.

    As caractersticas histricas e estticas devem fixar o limite do que pode

    ser restabelecido, sem que se cometa um falso histrico ou se cometa

    equvocos estticos, sendo importante ser realizada uma anlise do bem sobre

    dois aspectos de fundamental importncia: o histrico, que representa o

    significado do produto humano realizado em um certo tempo e o esttico, que

    representa a qualidade artstica.

    A restaurao deve objetivar restabelecer a unidade potencial do bem,

    at onde for possvel, sem produzir uma falsificao histrica ou artstica e sem

    apagar todo trao da passagem deixada pelo tempo.

    O interesse por aspectos de preveno, propondo meios de restabelecer

    o bem atravs de uma restaurao preventiva, onde a reintegrao deve ser

  • 40facilmente reconhecvel, sem romper com a unidade que se pretende

    reconstruir.

    A busca do conhecimento das condies ambientais que respeitam e

    permitam a conservao dos materiais construtivos.

    A importncia da documentao, e do uso da fotografia, como forma de

    fornecer documentos que possam ser sempre consultados como meios para

    justificar as aes e o uso de uma metodologia cientfica, respeitando as fases,

    do monumento, sendo a remoo de determinados elementos somente

    admitida se tiverem qualidade artstica nitidamente insignificantes em relao

    ao edifcio.

  • 41

    A metodologia utilizada retoma a discusso sobre o problema e os

    objetivos da presente monografia e formula os critrios de interveno, que

    foram utilizados a partir do estudo de caso.

    A metodologia que foi adotada foi dividida em duas etapas, a primeira a

    ser abordada foi reviso da literatura e a segunda, a caracterizao do

    objeto.

    A realizao da reviso da literatura a respeito do tema, foi realizada

    com o objetivo de discutir as evolues e variveis investigadas no estudo e o

    modelo terico a ser adotado para essa investigao. Foram elaborados os

    atributos a serem considerados para avaliao do papel do arquiteto ao intervir

    em um prdio de valor histrico, da importncia da coleta de informaes junto

    a diferentes perodos histricos e da relao existentes entre essas

    abordagens.

    Formando assim o embasamento terico para este projeto, que pode ser

    encontrado em bibliografias relacionadas preservao do patrimnio

    histrico.

    Alm disso, buscou-se elaborar uma fundamentao terica, com uma

    discusso relativa as correntes e teorias que abordam o tema do patrimnio,

    buscando identificar qual delas melhor se aplica ao caso em estudo.

    Sendo assim foi realizada uma pesquisa relacionada legislao

    vigente, com uma abordagem das leis relativas ao tema e uma discusso a

    cerca das cartas patrimoniais.

    Num segundo momento, foram levantados os aspectos caracterizadores

    do prdio do Grande Hotel e outras questes, obtidos atravs de pesquisas

    relativas ao histrico da cidade, histrico do prdio, anlises tipolgicas e

    formais, alm da anlise do seu entorno. Sendo realizado o levantamento

  • 42arquitetnico e fotogrfico do prdio, com indicao de normas tcnicas para

    a elaborao de um projeto de interveno, tais como escala, indicaes em

    plantas, alm do diagnstico das patologias existentes.

    Depois de desenvolvidos os itens acima citados e concluda a

    metodologia adotada, foi possvel elaborar conceitos e critrios que se aplicam

    ao projeto de interveno proposto.

  • 43

    A cidade de Pelotas situa-se na regio sul do estado e possui

    aproximadamente 300.000 habitantes1, constituindo-se num centro comercial e

    de servios.

    Fundada em 1812, originou-se da diviso de antigas estncias de

    criao de gado e produo de charque. As primeiras ocupaes surgiram em

    funo da localizao da capela do povoado, hoje Catedral So Francisco de

    Paula. A regularizao destas ocupaes deu origem ao primeiro loteamento

    da cidade. Elaborado em 1815, o traado utilizado na ordenao das

    edificaes existentes e delimitao de novos lotes tem grande importncia

    para a conformao espacial da cidade, pois se torna o ncleo orientador das

    futuras expanses da vila.

    Figura 13 - Planta do primeiro Loteamento da cidade de Pelotas. Fonte: Biblioteca Pblica

    Pelotense.

    1 Dado obtido no site: http://www.riogrande.com.br/ - RS Virtual em dez 1999.

  • 44

    A planta oficial da vila foi executada em 1835, adicionando ao primeiro

    loteamento, a rea do segundo loteamento, que se estendia na direo sul ao

    cais do porto. Nesta primeira expanso mantm-se a tipologia de reticulado do

    traado anterior. As expanses projetadas posteriormente mantm a trama

    reticulada com alteraes somente nas dimenses dos quarteires,

    particularmente no trecho projetado a partir da atual Avenida Bento Gonalves,

    na direo Norte, caracterizado como terceiro loteamento (PORTELLA et. al,

    1999).

    Figura 14 Adaptao da Planta Oficial de 1835. Fonte: Prefeitura Municipal de Pelotas.

    O ncleo original da cidade conforme a planta projetada em 1815, no

    sentido norte e sul, situava-se entre as atuais avenida Bento Gonalves e rua

    General Neto; no sentido oeste-leste, entre as ruas Marclio Dias e Barroso,

    formando uma espcie de quadro, em quase perfeito xadrez. Em 1933, o

    ncleo central da Praa da Matriz, hoje Jos Bonifcio, deslocou-se para a

    Praa da Regenerao, hoje Coronel Pedro Osrio. (MAGALHES, 1999).

  • 45Ainda hoje sua rea central permanece fortemente ligada ao eixo

    Praa Jos Bonifcio (1 loteamento) Praa Coronel Pedro Osrio (2

    loteamento) e denominada pelo II Plano Diretor de Pelotas como Zona de

    Comrcio Central, tendo seu permetro definido na Lei n 3576, pelas ruas Dr.

    Amarante, Almirante Barroso, Trs de Maio e Marclio Dias. A ZCC

    compreende em seu permetro os stios do 1, 2 e 3 loteamentos que deram

    origem cidade.

    Espacialmente a rea central caracterizada por um traado ortogonal,

    ruas estreitas, prdios no alinhamento e sem recuos laterais, formando em

    cada face de quarteiro, uma massa contnua de edificaes. Muito pouca a

    vegetao nos passeios, concentrando-se, a existente, nas praas e em alguns

    calades na rea.

    Pelotas atingiu o auge de seu desenvolvimento econmico na segunda

    metade do Sculo XIX e incio do sculo XX, acompanhado de grande

    produo de edifcios (PORTELLA et. al, 1999), os quais compem um cenrio

    heterogneo, onde encontram-se prdios que representam os perodos

    colonial, ecltico, moderno e contemporneo.

    Foi necessrio fazer este breve histrico, com o intuito de contextualizar

    Pelotas e seu histrico, a fim de elaborar um traado para o histrico do

    Grande Hotel, visto que est inserido no cenrio descrito.

    Segundo Zeli Solange, no livro escrito sobre a histria do Grande Hotel,

    em 1922 o intendente municipal Pedro Luis Osrio lanou a idia da

    construo de um hotel em propores grandiosas para a cidade.

    Formou-se ento a Companhia Grande Hotel de Pelotas e foram

    incorporados o Cel. Pedro Luis da Rocha Osrio, Dr. Antnio Assumpo,

    Edmundo Berchom ds Essarts, Joo Py Crespo, Fernando Luis Osrio, Bruno

    Gonalves Chaves, Rosauro Zambrano, Leopoldo Souza Soares, Baldomiro

    Trpega, Plotino Duarte e outros.

    O hotel foi construdo em um terreno, sito a rua Vitorino (Hoje Pe.

    Anchieta), esquina com a Praa da Repblica (Hoje Cel. Pedro Osrio), doado

    pelo Dr. Fernando Luis Osrio, local em que funcionava o cinema Politeama.

  • 46Foram ali levantados os alicerces do Grande Hotel, que se necessrio

    poderia ter mais dois pavimentos.

    Em 1922 foi lanado o concurso pblico para a escolha do projeto a ser

    edificado, concorrendo pelo menos trs propostas: a do arquiteto Thephilo

    Borges de Barros, a da construtoras Azevedo Moura & Gertum e Cia.

    Construtora dos Santos. O vencedor foi Tephilo Barros (titular de obras

    pblicas do estado positivista).

    Figura 15 - Mapa da rea Central de Pelotas. Fonte: Jornal Dirio Popular.

    A pedra fundamental foi lanada no dia 14 de julho de 1925, data

    comemorativa da Queda da Bastilha, segundo os positivistas pelotenses,

    assinalava a universal transformao do ocidente, em que foram institudos os

    elementos e a poesia na soluo do problema humano. (Discurso de Fernando

    Luis Osrio, publicado no Dirio Popular de 16 de julho de 1925).

    Em 1926, problemas financeiros obrigaram a Cia. Incorporadora

    Grande Hotel a solicitar emprstimos junto ao Banco Pelotense e ao banco

    da Provncia, afianados por seus diretores: Cel. Pedro Osrio, Sr. Manuel

    Luis Osrio (presidente do Conselho Municipal), Dr. Joaquim Luis Osrio (

    ex intendente e diretor do banco Pelotense) e Pompeu Mascaranhas de

    Sousa (vice-intendente). Porm, as dificuldades de dar continuidade s

    obras e saldar os emprstimos obtidos, foraram a deciso da diretoria de

    vender ou municipalizar a edificao. Em 1927 o prdio foi adquirido pela

    Intendncia Municipal, sendo inaugurado em 1928 (Carlos Alberto vila

  • 47Santos. Espelhos, Mscaras, Vitrines Estudo Iconolgico de Fachadas

    arquitetnicas, Pelotas, 1870-1930. Pg. 140).

    Figura 16 - Grande Hotel em construo. Fonte: Foto tirada pela autora de um quadro no Grande

    Hotel.

    Em 18 de abril de 1928, foi inaugurado o Grande Hotel com todas as

    pompas. festa de inaugurao compareceu toda a sociedade pelotense e

    forasteiros.

    A partir desse dia o hotel vivia em festa. Todos os domingos aconteciam

    chs danantes, com desfiles de moda no seu chiqurrimo halll que era famoso

    em toda Amrica do Sul e foi cognominado de Salo de Festas da Cidade.

    Banquetes homenageando grandes vultos nacionais, bailes de carnaval,

    jantares no restaurante do Grande Hotel era o que havia de mais granfino

    (Nelson Nobre, Pelotas Memria, fascculo VIII, pg. 16, 1991).

    Muitos personagens ilustres nele se hosp