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 Introdução a Fenomenologia do Espírito Primeira Aula “Vivemos aliás numa época em que a universalidade do espírito está fortemente consolidada, e a singularidade, como convém, tornou-se tanto mais insignificante; época em que a universalidade se aferra a toda a sua extensão e riqueza acumulada e as reivindica para si. parte que ca!e " atividade do indivíduo na o!ra total do espírito s# pode ser mínima. ssim, ele deve esquecer-se, como $á o implica a naturez a da ci%ncia. &a verdade , o indiví duo deve vir-a-ser , e tam!é m deve fazer o que l'e for possível; mas não se deve exigir muito dele, $á que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo( ) . fim de introduzir algumas quest*es e métodos que nos guiarão neste curso, convém partirmos destas afirma+*es. onvém partirmos destas afirma+*es porque elas  parecem sintetizar tudo aquilo que várias lin'as 'eg emnicas do pensamento filos#fico do século imputaram a /egel. 0il#sofo da totalidade do 1a!er !soluto, incapaz de dar conta da irredut i!ilidade da diferen+a e das aspira+*es de recon'e ciment o do individual "s est rat égi as de síntese do conc eit o. 2e#rico de uma mod erni dade que se realizaria no totalitarismo de um 3stado 4niversal que se $ulga a encarna+ão da “o!ra total do espírito(. 3xpressão mais !em aca!ada da cren+a filos#fica de que s# seria possível pensar através da articula+ão de sistemas fortemente 'ierárquicos e teleol#gicos, com o conseq5ente desprezo  pela dignidade ontol#gica do contingente, deste contingente que “tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo(. 6oderíamos ainda desdo!rar uma lista aparentemente infindável de acusa+*es que o  pensamento do século levantou contra /egel7 tentativa de ressuscitar uma metafísica  pré-crítica de forte matiz teol#gico, 'ip#stase da filosofia da consci%ncia, cren+a em uma 'i st #ria onde o pre sen te apresen taria uma “universalidade do esp ír it o for teme nt e consolidada(, 'ist#ria teleol#gica esvaziada da capacidade em apreender um tempo no qual acontecimentos ainda fossem possíveis. este respeito, /a!ermas, por exemplo, falará7 “de um espírito que arrasta para dentro do sorvo da sua a!soluta auto-refer%ncia as diversas contradi+*es atuais apenas para faz%-las perder o seu caráter de realidade, para transformá- las no modus da transpar%nci a fantasm ag#rica de um passado recordad o 8 e para l'es tirar toda a seriedade( 9 . :esmo as tradi+*es filos#ficas que se reclamam do 'egelianismo nunca aceitaram o que poderíam os c'amar de “um 'egelianis mo sem reservas(. 1e a tradi+ão marxis ta, por exemplo, encontrou em /egel uma antropologia filos#fica capaz de expor o processo 'ist#rico de forma+ão da consci%ncia em suas expectativas cognitivo-instrumental, prático- moral e estético-expressiva, ela logo procurou claramente tomar distncia do que seria 'olismo estático da metafísica especulativa resultante do sistema. 6or sua vez, o c'amado 'egelianismo de dire it a faz, de uma ce rt a forma, a opera+ão invers a e insiste na su!s tan cia lid ade de la+os comunit ári os “me taf isicamente fundame nta dos( cont ra a centralidade da temporalidade 'ist#rica no pensamento dialético. omo se, mesmo entre os )  /3<3=, Fenomenologia I,  p. >9 9  /?3@:1, O discurso filosófico da modernidade,  p. >A

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Curso sobre la Fenomenología del espíritu de Hegel, en portugués

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Introduo a Fenomenologia do Esprito

Introduo a Fenomenologia do Esprito

Primeira Aula

Vivemos alis numa poca em que a universalidade do esprito est fortemente consolidada, e a singularidade, como convm, tornou-se tanto mais insignificante; poca em que a universalidade se aferra a toda a sua extenso e riqueza acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe atividade do indivduo na obra total do esprito s pode ser mnima. Assim, ele deve esquecer-se, como j o implica a natureza da cincia. Na verdade, o indivduo deve vir-a-ser, e tambm deve fazer o que lhe for possvel; mas no se deve exigir muito dele, j que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo.

A fim de introduzir algumas questes e mtodos que nos guiaro neste curso, convm partirmos destas afirmaes. Convm partirmos destas afirmaes porque elas parecem sintetizar tudo aquilo que vrias linhas hegemnicas do pensamento filosfico do sculo XX imputaram a Hegel. Filsofo da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar conta da irredutibilidade da diferena e das aspiraes de reconhecimento do individual s estratgias de sntese do conceito. Terico de uma modernidade que se realizaria no totalitarismo de um Estado Universal que se julga a encarnao da obra total do esprito. Expresso mais bem acabada da crena filosfica de que s seria possvel pensar atravs da articulao de sistemas fortemente hierrquicos e teleolgicos, com o conseqente desprezo pela dignidade ontolgica do contingente, deste contingente que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo.

Poderamos ainda desdobrar uma lista aparentemente infindvel de acusaes que o pensamento do sculo XX levantou contra Hegel: tentativa de ressuscitar uma metafsica pr-crtica de forte matiz teolgico, hipstase da filosofia da conscincia, crena em uma histria onde o presente apresentaria uma universalidade do esprito fortemente consolidada, histria teleolgica esvaziada da capacidade em apreender um tempo no qual acontecimentos ainda fossem possveis. A este respeito, Habermas, por exemplo, falar: de um esprito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta auto-referncia as diversas contradies atuais apenas para faz-las perder o seu carter de realidade, para transform-las no modus da transparncia fantasmagrica de um passado recordado e para lhes tirar toda a seriedade.

Mesmo as tradies filosficas que se reclamam do hegelianismo nunca aceitaram o que poderamos chamar de um hegelianismo sem reservas. Se a tradio marxista, por exemplo, encontrou em Hegel uma antropologia filosfica capaz de expor o processo histrico de formao da conscincia em suas expectativas cognitivo-instrumental, prtico-moral e esttico-expressiva, ela logo procurou claramente tomar distncia do que seria holismo esttico da metafsica especulativa resultante do sistema. Por sua vez, o chamado hegelianismo de direita faz, de uma certa forma, a operao inversa e insiste na substancialidade de laos comunitrios metafisicamente fundamentados contra a centralidade da temporalidade histrica no pensamento dialtico. Como se, mesmo entre os neo-hegelianos, a imagem de Hegel fosse a de um pensamento impossvel de chegar perto demais.

Tudo isto nos leva a colocar uma questo central para a orientao deste curso: O que significa ler Hegel hoje?. Devemos aqui nos restringir economia interna dos textos e ignorar como a auto-compreenso filosfica da contemporaneidade afirmou-se insistentemente como anti-hegeliana? Como se nosso tempo fosse marcado pela impossibilidade em se reconhecer nos esquemas interpretativos fornecidos por Hegel. Ou seja, possvel ler Hegel hoje sem levar em conta como nosso momento filosfico organizou-se, entre outras estratgias, atravs dos mltiplos regimes de contraposio filosofia hegeliana? No estaramos assim perdendo a oportunidade de entender como a auto-compreenso de um tempo depende, em larga escala, da maneira com que se decide o destino de textos filosficos de geraes anteriores? Compreender como um tempo se define, entre outras operaes, atravs da maneira com que os filsofos lem os filsofos: prova maior de que a histria da filosofia , em larga medida, figura da reflexo filosfica sobre o presente?

Sim, ler Hegel sem levar em conta o peso que o presente impe seria perder muita coisa. E aqui no poderamos deixar de fazer ressoar a constatao de Foucault:

Toda nossa poca, que seja pela lgica ou pela epistemologia, que seja atravs de Marx ou atravs de Nietzsche, tenta escapar de Hegel (...) Mas realmente escapar de Hegel supe apreciar de maneira exata quanto custa se desvincular dele; isto supe saber at onde Hegel, talvez de maneira insidiosa, aproximou-se de ns; supe saber o que ainda hegeliano naquilo que nos permite de pensar contra Hegel e de medir em que nosso recuso contra ele ainda uma astcia que ele mesmo nos ope e ao final da qual ele mesmo nos espera, imvel.

Neste curso, no faremos outra coisa que levar estas palavras a srio.

Geografia do anti-hegelianismo contemporneo

Chamar nossa poca de anti-hegeliana no me parece uma simples concesso retrica para dramatizar um pouco o incio de um curso sobre um texto reconhecidamente rduo. Neste sentido, no sem valor lembrar como as trs grandes tradies da filosofia ocidentais contempornea (francesa, alem, anglo-sax) tm em comum a distncia, s vezes ambgua, s vezes taxativa, em relao a Hegel.

Se quisermos oferecer uma certa geografia do anti-hegelianismo, o melhor pas a comear , sem dvida, a Frana. Pois a histria da recepo de Hegel na Frana a histria espetacular de duas reviravoltas. Em seu Relatrio sobre o estado dos estudos hegelianos na Frana, de 1930, Alexandre Koyr comea em tom desolador: Temo um pouco que aps os relatrios, to ricos em fatos e em nomes, dos meus colegas alemes, ingleses e italianos, meu prprio relatrio sobre o estado dos estudos hegelianos na Frana lhes parea relativamente muito magro e muito pobre. A magreza e pobreza do hegelianismo francs se contrapunha a robustez de uma filosofia universitria marcadamente neo-kantiana. No entanto, ao reimprimir seu texto na dcada de sessenta, Koyr foi obrigado a acrescentar um post-scriptum que comeava da seguinte maneira: Desde a publicao deste relatrio (1930), a situao de Hegel no mundo da filosofia europia, e particularmente francesa, mudou completamente: a filosofia hegeliana conheceu um verdadeiro renascimento, ou melhor, ressurreio, e s perde para o existencialismo ao qual, alis, ela s vezes procura se unir.

De fato, a partir de meados dos anos trinta e at o incio dos anos sessenta, a Frana foi hegeliana. Um hegelianismo absolutamente particular pois baseado na Fenomenologia do Esprito, livro que at ento era visto como texto menor da bibliografia hegeliana pois desprovido do esforo sistemtico presente na Cincia da lgica e, principalmente, na Enciclopdia. Ao insistir na centralidade da Fenomenologia, em especial em figuras da conscincia-de-si como o Senhor e o Escravo e a Conscincia Infeliz, o pensamento francs podia transformar Hegel no terico da intersubjetividade e da crtica ao solipsismo. Intersubjetividade de um desejo e de um trabalho que so manifestaes da negatividade de sujeitos no mais determinados por atributos substanciais. A negatividade do sujeito em suas operaes de desejo e trabalho, assim como a constituio de estruturas sociais universais capazes de suportar o reconhecimento intersubjetivo deste desejo e deste trabalho, apareciam como a grande contribuio de Hegel compreenso das estruturas sociais da modernidade, de seus processos de constituio e de suas promessas de reconciliao.

Foi Alexandre Kojve com seu curso sobre a Fenomenologia do Esprito que marcou o pensamento francs com esta temtica em grande parte derivada de uma improvvel leitura heideggero-marxista de Hegel. Para termos uma idia do tamanho desta influncia, basta lembrarmos de alguns freqentadores destes seminrios: Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan, Georges Bataille, Pierre Klossowski, Raymond Aron, Eric Weil, Raymond Queneau, Jean Hyppolite, Andr Breton e, de uma maneira espordica, Jean-Paul Sartre. Todos eles tero seus projetos intelectuais marcados de maneira profunda por este contato com a fenomenologia hegeliana. Raramente, um comentrio de texto foi to decisivo na estruturao da experincia intelectual de uma gerao.

No entanto, a partir do comeo dos anos sessenta, a configurao do pensamento filosfico francs ir novamente modificar-se de maneira radical e o ponto de viragem ser novamente Hegel. O advento do estruturalismo j colocava em questo a herana hegeliano-fenomenolgica ao relativizar a centralidade dos sujeitos agentes e desejantes na vida social. Althusser, por exemplo, colocara em circulao um marxismo desprovido de toda e qualquer raiz hegeliana ao insistir que Marx trouxera, nO capital, a noo de sistemas que funcionam revelia dos sujeitos mostrando assim como sujeito, com suas crenas de autonomia da ao, era a categoria ideolgica por excelncia.

Mas a hegemonia do que posteriormente foi chamado de ps-estruturalismo selou definitivamente o segundo ostracismo de Hegel em solo francs. Para Deleuze, Lyotard, Derrida e Foucault (em menor grau), Hegel e a dialtica eram, em larga medida, as figuras maiores do imprio do Universal, das totalizaes e do pensamento da identidade. Hegel como o construtor do sonho de uma meta-narrativa absoluta animada pela crena inabalvel na unidade da razo. Para os ps-estruturalistas, a negatividade do sujeito hegeliano era apenas a ltima estratgia para submeter as singularidades ao imprio do Universal, da mesma forma como a ltima palavra da dialtica seria sempre a sntese que reconciliaria contradies. Pois esta negatividade estava fadada a ser recuperada pelas estruturas sociais da modernidade com suas aspiraes universalizantes. Contra isto, o ps-estruturalismo no cansou de contrapor o pensamento da diferena pura (Derrida), do sensvel (Lyotard), dos fluxos no-estruturados de intensidade (Deleuze) e da imbricao aparentemente irredutvel entre razo e poder (Foucault). Se levarmos em conta a importncia crucial que o ps-estruturalismo ainda tem na auto-compreenso do nosso tempo, podemos imaginar o peso destas confrontaes na determinao do destino contemporneo da influncia de Hegel.

verdade, nunca devemos esquecer de um julgamento tardio de Foucault ao reconhecer que Hegel estaria na raiz de um outro modo de interrogao crtica que nasce com a modernidade e que poderia ser resumido atravs das questes: o que nossa atualidade? Qual o campo atual de experincias possveis?. Algo distinto da analtica da verdade de inspirao kantiana. Uma ontologia do presente, projeto no interior do qual, finalmente, o prprio Foucault se ver. Mas tal reconhecimento no implicou em retorno a Hegel e a sua compreenso da modernidade e seus desafios.

Por outro lado, se voltarmos os olhos tradio alem, o cenrio de recusa a Hegel no deixar de se fazer sentir. Heidegger, responsvel em larga medida pela recuperao da importncia da Fenomenologia do Esprito, livro ao qual ele dedicou um curso no ano letivo de 1930-1931, ver Hegel como o pice da metafsica do sujeito e do esquecimento do ser. Neste sentido, a sada do quadro epocal da metafsica ocidental deveria ser feita em um movimento, em larga medida contra Hegel e sua noo de sujeito.

A Escola de Frankfurt, por sua vez, no deixar de ter uma postura ambgua e dilacerada em relao herana do hegelianismo. Neste sentido, o exemplo mais forte Adorno. O mesmo Adorno que tentar salvar a dialtica de seus dispositivos de sntese totalizante, insistindo na irredutibilidade das negaes e que nunca deixar de ter palavras duras em relao a Hegel. Pois, tal como na tradio ps-estruturalista (mas por outras vias), Adorno compreende Hegel como aquele que, de uma certa forma, trair seu prprio mtodo a fim de retornar a um pensamento da identidade. Basta lembrarmos aqui desta afirmao escrita pensando no trecho que abriu nossa aula:

Se Hegel tivesse levado a doutrina da identidade entre o universal e o particular at uma dialtica no interior do prprio particular, o particular teria recebido tantos direitos quanto o universal. Que este direito tal como um pai repreendendo seu filho: Voc se cr um ser particular -, ele o abaixe ao nvel de simples paixo e psicologize (psychologistisch) o direito da humanidade como se fosse narcisismo, isto no apenas um pecado original individual do filsofo.

Isto no um pecado individual do filsofo porque um pecado de todo seu sistema. Se os ps-estruturalista contrapuseram Hegel a um pensamento das singularidades puras, nico pensamento que seria capaz de dar conta das aspiraes de um tempo que procura ir para alm do projeto da modernidade, Adorno contrape Hegel a um pensamento da no-identidade com suas exigncias de irredutibilidade do singular.

Se o diagnstico adorniano de Hegel parece, pelo menos a primeira vista, alinhar-se com aquele sugerido pelos ps-estruturalistas, o diagnstico de Habermas e seus seguidores (como Axel Honneth e Michael Theunissen), procuravam (sem nunca ter realmente problematizado esta articulao) desqualificar a leitura proposta pela primeira gerao dos hegelianos franceses. Pois, contrariamente a Hyppolite e Kojve, Habermas no cansar de ver Hegel como uma espcie de Moiss que na sua juventude vira a terra prometida da intersubjetividade comunicacional capaz de fundamentar as aspiraes universalistas da modernidade mas que, a partir, da Fenomenologia, teria retornado a uma filosofia centrada no sujeito e a um conceito mentalista do Si-mesmo e de auto-reflexo que restringe a compreenso da razo em suas aspiraes cognitivo-instrumentais dimenso das confrontaes entre sujeito-objeto. Ou seja, mesmo entre os defensores da modernidade, a via hegeliana no parecia mais capaz de fornecer estruturas seguras de orientao.

Se voltarmos, por fim, os olhos tradio anglo-sax o cenrio era, at bem pouco tempo, praticamente desolador. No entanto, antes da I Guerra Mundial, Hegel foi um filsofo central em Oxford e Cambridge (Bradley, McTaggart, Green) por fornecer uma alternativa ao empirismo e ao individualismo. Por sua vez, o pragmatismo norte-americano tambm foi receptivo a Hegel e John Dewey encontrou no conceito hegeliano de eticidade a idia, central para o desenvolvimento de seu pensamento, de que as prticas substancialmente arraigadas na comunidade (e no exatamente no Estado) expressam as normas determinantes para a formao da identidade dos indivduos.

Estas leituras de Hegel foram soterradas pela guinada analtica da filosofia anglo-sax. Para uma tradio que, em larga medida, compreendia os problemas filosficos como problemas gramaticais, Hegel parecia simplesmente indicar um retorno pr-crtico metafsica com fortes matizes teolgicas, isto quando a dialtica no era simplesmente vista como um equvoco lgico (Russell). E mesmo autores como Wittgenstein iro imputar a Hegel um pensamento da identidade e do Mesmo, imputao idntica quela que parece animar as crticas de setores relevantes do pensamento francs e alemo contemporneos. Lembremos, por exemplo, da seguinte afirmao de Wittgenstein: No, no acredito que tenha algo a ver com Hegel. Para mim, Hegel parece sempre dizer que coisas que parecem diferentes so, na realidade, idnticas. Meu interesse est em mostra que coisas que parecem idnticas so diferentes. O autor da noo de jogos de linguagem v, na estratgia hegeliana que conservao das aspiraes universalizantes da razo, apenas uma figura totalitria da unidade. No que diz respeito a Hegel, autores to distantes ente si e to centrais para a constituio dos esquemas de auto-compreenso da contemporaneidade quanto Wittgenstein, os frankfurtianos e os ps-estruturalistas parecem estar de acordo.

Ler

Depois desta longa digresso, podemos voltar a nossa questo inicial a fim de tentar responde-la: o que significa e como ler Hegel em uma poca profundamente anti-hegeliana? Pois, se certo que no somos contemporneos de Hegel, impossvel deixar de levar em conta esta estratgia de determinar as aspiraes do presente atravs de sua recusa em submeter-se quilo que foi trazido atravs da experincia intelectual hegeliana em sua integralidade.

Esta questo nos levar, necessariamente, a um problema de mtodo que toca a prpria compreenso do que uma leitura de textos da tradio filosfica, ainda mais textos que procuram fundar uma ontologia do presente, tal como o caso da Fenomenologia do Esprito.

Creio que esta uma questo de suma importncia porque vocs esto no interior de um processo de aprendizagem de leitura. Vocs aprendero tcnicas fundamentais para todo e qualquer processo filosfico de leitura de textos da tradio : saber identificar o tempo lgico que nos ensina a reconstituir a ordem das razes internas a um sistema filosfico, pensar duas vezes antes de separar as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender como o mtodo se encontra em ato no prprio movimento estrutural do pensamento filosfico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental para a constituio daquilo que chamamos de rigor interpretativo que respeita a autonomia do texto filosfico enquanto sistema de proposies e no se apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato de compreender est sempre subordinado ao exerccio de explicar. Mas ele no define o campo geral dos modos filosficos de leitura. Ele define, isto sim, procedimentos constitutivos da formao de todo e qualquer pesquisador em filosofia. Ele o incio irredutvel de todo fazer filosfico mas, por mais que isto possa parecer bvio, o fazer filosfico vai alm do seu incio.

Lembremos, por exemplo, do que diz Kant a respeito de seu modo de leitura dos textos filosficos : No raro acontece, tanto na conversa corrente como em escritos, compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre seu objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque no determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes, falou ou at pensou contra sua prpria inteno. Este comentrio aparentemente inocente a exposio de todo um programa de leitura que, aparentemente, no est totalmente de acordo com as regras do rigor interpretativo. Afinal, Kant reconhece que sua leitura , digamos, sintomal. Ele ir procurar aqueles pontos da superfcie do texto nos quais a letra no condiz com o esprito, nos quais o autor estranhamente pensou contra sua prpria inteno. Mas o que significa admitir um pensamento que se descola de sua prpria inteno e que deixa traos deste descolamento nos textos que produz? Podemos dizer que significa, principalmente, estar atento s regies textuais nas quais o projeto do sistema filosfico trado pelo encadeamento implacvel do conceito que insiste em abrir novas direes. Ao menos neste ponto, difcil estar de acordo com Goldsmith, para quem : as asseres de um sistema no podem ter por causas, tanto prximas quanto imaginrias, seno conhecidas do filsofo e alegadas por ele. A histria da filosofia, ao contrrio, mostra que sim possvel pensar a partir daquilo que o autor produz sem o saber, ou sem o reconhecer. Pensar deslocando conscientemente a ordem das razes de um filsofo para que a radicalidade de certas conquistas possa aparecer com mais fora.

Mas um filsofo pode estar atento quilo que outro filsofo produziu sem o saber porque, para alm do tempo lgico, ele admite uma espcie de tempo transversal atravs do qual o presente pode colocar questes e rever as respostas do passado. A transversalidade fundamental do tempo filosfico indica que o presente pode, sem deixar de reconhecer a tenso inerente a tal operao, aproximar os textos da tradio e procurar traos de construes potenciais que foram deixadas pelo caminho. Ou seja, podemos ler um texto da tradio filosfica tendo em vista seu destino. Encontraremos nele, em um movimento retrospectivo, as marcas de debates posteriores. Mapearemos a maneira com que o texto em sua vida autnoma foi inserindo-se em debates que lhe pareceriam, a primeira vista, estranhos. Isto implica em compreender como programas filosficos que lhe sucederam foram construdos atravs de um embate sobre o sentido da letra deste texto que teima em no querer pertencer ao passado. Compreender que a histria da recepo de um texto filosfico no externa constituio do sentido deste texto. Pois os textos filosficos tm uma peculiaridade maior: seus processos de negociao no se do apenas com os atores que compem a cena da sua escrita; eles se do tambm com atores que s se constituiro no futuro. Est segunda orientao metodolgica fornecer as balizas para o nosso curso.

Seguir tal orientao metodolgica significa, na verdade, levar a srio a afirmao de Adorno a respeito da arte de ler Hegel:

A arte de ler Hegel deveria estar atenta ao momento no qual intervm o novo, o substancial e distingui-lo do momento no qual continua a funcionar uma mquina que no se v como uma e que no deveria continuar funcionando. necessrio a todo momento tomar em considerao duas mximas aparentemente incompatveis : a imerso minuciosa e a distncia livre.

Nada mais difcil em filosofia do que compatibilizar o esforo minucioso e disciplinado de leitura com a certeza daqueles que sabem que s se enxerga uma obra distncia. Mas, como veremos neste curso, assim, nesta coreografia fundada em sequncias de distncia e proximidade, que os filsofos lem os filsofos.

Por outro lado, esta perspectiva que pode impor tanto uma imerso minuciosa capaz de seguir, se for o caso, o trajeto da escrita em todos os seus meandros quanto uma distncia livre que procura estabelecer, no texto, pontos destacveis nos quais se ancorar, perspectiva que escava, no interior do texto, o novo e o separa do maqunico s pode vir de uma recusa da atemporalidade da escrita filosfica pensada como sistema de proposies. Volto a insistir, o tempo da filosofia transversal e permite que o presente reordene as respostas do passado. s a partir desta transversalidade do tempo que possvel ao leitor ocupar o papel de dois atores: aqueles que fazem parte da cena da escrita e aqueles que se constituem apenas a posteriori.

No que diz respeito leitura da Fenomenologia do Esprito, tal abordagem metodolgica implicar em anlises que obedecero a um movimento duplo. Algumas figuras sero privilegiadas e, nestes pontos, o comentrio de texto ser articulado horizontalmente e verticalmente. Horizontalmente, no sentido de re-construir o campo de questes que Hegel tinha em mente ao sintetizar tais figuras. Verticalmente, no sentido de transcender o contexto local tendo em vista a reconstituio de alguns momentos maiores na histria da recepo de tais figuras e da constelao de problemas que elas foram capazes de encarnar.

No entanto, este trabalho de dupla articulao dos dispositivos de leitura exigir, por sua vez, que a costura que sustenta a Fenomenologia do Esprito seja apreendida em movimentos amplos de identificao de eixos gerais. Neste sentido, trata-se apenas de servir-se de um movimento de distenso e de contrao presente na economia interna da prpria Fenomenologia. Economia marcada pela sucesso entre distenses de figuras abordadas em riquezas de detalhes e contraes que procuram dar conta da rememorao da trajetria da conscincia.

Estrutura do curso

A fim de levar a cabo tais objetivos, este curso ser dividido em dois semestre. Neste primeiro semestre, daremos conta do trecho que vai at o final da seo Conscincia-de-si. Para tanto, teremos um semestre composto por 4 mdulos. Cada mdulo foi organizado a partir de uma questo central, uma ou mais figuras privilegiadas e um conjunto de textos de introduo e de desdobramento dos debates propostos. Este curso no prev a realizao de seminrios e o sistema de avaliao resume-se monografia de final de curso.

No primeiro mdulo trabalharemos algumas questes apresentadas no Prefcio e na Introduo relativas a auto-compreenso hegeliana da peculiaridade de seu projeto filosfico. Levaremos a srio a afirmao de Gerard Lebrun, para quem a filosofia hegeliana e seu mtodo dialtico propunha, fundamentalmente, uma certa mudana de gramtica filosfica capaz de dissolver as dicotomias do entendimento e do pensar representativo: Tal a nica surpresa que a passagem ao especulativo reserva: esta lenta alterao que parece metamorfosear as palavras que usvamos inicialmente, sem que, no entanto, devamos renunciar a elas ou inventar outras. Isto nos levar a eleger como questo central deste mdulo: O que significa mudar de gramtica filosfica?. Veremos como tal mudana est organicamente articulada a uma reformulao maior dos conceitos de sujeito e de experincia. Trs textos serviro de apoio a nossa discusso, sendo que eles esto dispostos em ordem de complexidade. So eles: Notas a respeito da lngua e da terminologia hegeliana, de Alexandre Koyr; Skoteinos ou como ler, de Adorno e, principalmente, Hegel e seu conceito de experincia, de Heidegger.

No segundo mdulo, trabalharemos a figura da conscincia sensvel. Meu objetivo demonstrar que devemos levar em conta como o trajeto fenomenolgico da conscincia em direo ao saber absoluto comea atravs da experincia do descompasso irredutvel entre designao e significao nos atos de fala. Isto demonstra a centralidade do problema da linguagem no interior da reflexo hegeliana e na prprio constituio de seu conceito de dialtica. Est ser nossa questo central. Veremos qual a teoria da linguagem que sustenta a maneira como Hegel pensa a confrontao cognitiva entre conscincia e objeto para alm de todo e qualquer inferencialismo, assim como a importncia de tal descompasso entre designao e significao enquanto motor do processo dialtico na Fenomenologia. Veremos duas leituras distintas da desta teoria hegeliana da linguagem: uma, que podemos encontrar em textos como Dialtica, index, referncia, de Jean-Franois Lyotard, O poo e a pirmide, de Jacques Derrida, e A linguagem e a morte, de Giorgio Agamben, insiste que temos, na teoria hegeliana, nada mais do que uma certa metafsica da negatividade; outra, presente, por exemplo, em Holismo e idealismo na Fenomenologia de Hegel, de Robert Brandom, procura fornecer uma importante leitura pragmtica da filosofia hegeliana.

No terceiro mdulo, leremos os captulos Percepo e Fora e entendimento. O objetivo principal aqui ser analisar a maneira com que Hegel encaminha sua crtica ao entendimento e s suas diocotomias. Veremos como, neste momento, Hegel nos fornece coordenadas precisas a respeito da crtica dialtica quilo que poderamos chamar de gramtica da finitude prpria filosofia kantiana, isto ao menos aos olhos de Hegel. neste momento que veremos Hegel apelar a uma rearticulao da noo de negao atravs, principalmente, de articulaes fundamentais entre as noes hegelianas de infinitude e contradio. Como textos de encaminhamento de nosso debate, teremos: Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa, de Kant e um captulo do Sistema do idealismo transcendental, de Schelling, intitulado Teoria da intuio produtora.

No quarto mdulo, trabalharemos a seo Conscincia-de-si privilegiando uma anlise detalhada da figura da Dialtica do Senhor e do Escravo. Trata-se de um momento privilegiado da Fenomenologia por tematizar o incio da submisso das capacidades cognitivas da conscincia a uma gnese emprica mediada por exigncias conflituais de reconhecimento. Conflito articulado a partir das categorias do trabalho e do desejo. Nossa questo central ir girar em torno do problema de reconhecimento do trabalho e do desejo na Fenomenologia. Veremos como a lgica do reconhecimento do trabalho e do desejo obedece, por sua vez, a estrutura lgica posta nas reflexes hegelianas sobre a linguagem. Seguiremos duas tendncias de leitura. Uma, impulsionada por Alexandre Kojve, submete o problema do reconhecimento em Hegel a uma dialtica conflitual do desejo (ver, a este respeito A guisa de introduo, de Alexandre Kojve, Hegel, a morte e o sacrifcio, de Georges Bataille e Relao de objeto e relao intersubjetiva, uma sesso do Seminrio I, de Jacques Lacan). A outra visa insistir sobretudo nos impasses advindo da estratgia hegeliana de descrio do processo de cosntituio das capacidades cognitivas da conscincia. Ela se encontra sumarizada, principalmente, em Caminhos da destranscendentalizao, de Habermas. Um texto que servir como guia de leitura ser Os primeiros combates do reconhecimento, de Pierre-Jean Labarrire e Gwendoline Jarczyk: texto que se prope a fazer um comentrio linha a linha do trecho que estudaremos.

Alm das questes vinculadas Dialtica do Senhor e do Escravo com suas inmeras leituras, estaremos atentos constituio do conceito hegeliano de trabalho, sobretudo atravs dos desdobramentos da nossa seo pelas vias das figuras do estoicismo e da conscincia infeliz. Veremos como Hegel constri um conceito no-expressivista de trabalho e quais suas diferenas fundamentais, neste ponto, em relao Marx.

A Fenomenologia do Esprito e seu estilo

Mas gostaria ainda de aproveitar esta primeira aula para explicar a razo pela qual a introduo ao pensamento de Hegel deve ser feita preferencialmente atravs da Fenomenologia do Esprito. Pois esta escolha no por si s evidente. Durante todo o sculo XIX, boa parte dos leitores de Hegel portavam sua ateno principalmente aos textos de maturidade, como A cincia da Lgica, a Enciclopdia e os Princpios sobre a filosofia do direito. A Fenomenologia era vista como um texto onde questes centrais da filosofia hegeliana, como o papel do Estado enquanto realizao do Esprito Objetivo, no eram suficientemente abordadas. Escrito em 1806 em condies extremamente precrias, o texto no fornecia de maneira clara o sistema holista da cincia em sua quietude hierarquizada, como vemos, por exemplo, na Enciclopdia.

Por outro lado, o prprio plano da Fenomenologia ser parcialmente absorvido por obras posteriores de Hegel, em especial a ltima verso da Enciclopdia. L, ela aparecer claramente como uma parte do sistema, entre a antropologia e a psicologia. Seu desenvolvimento ser desmembrado. As sees Esprito, Religio e Saber absoluto no sero mais tratadas como momentos da fenomenologia que, por seu lado, ser apenas um momento do Esprito Subjetivo. A grande articulao histrica do processo de formao da estrutura de orientao do julgamento (Esprito) dar lugar a uma descrio sistmica da estrutura do direito, das reivindicaes morais da subjetividade e do Estado. Religio e Saber Absoluto tero tratamento parte enquanto manifestaes do Esprito Absoluto.

No entanto, a Fenomenologia deve ser vista como a melhor introduo ao pensamento hegeliano no apenas porque ela foi realmente escrita como uma introduo ao sistema que, aos poucos, foi ganhando autonomia. Introduo que deveria descrever o trajeto de formao da conscincia em direo a um saber onde lgica e ontologia se encontram. A Fenomenologia a melhor introduo ao pensamento hegeliano porque, por um lado: A Fenomenologia era para Hegel consciente ou inconscientemente, o meio de oferecer ao pblico; no um sistema j pronto, mas a histria de seu prprio desenvolvimento.

Mas por outro lado, e esta me parece a razo mais forte, a Fenomenologia oferece um modo de pensar e articular problemas filosficos que ser a marca da experincia intelectual hegeliana. Modo que pode ser inicialmente abordado atravs de algumas consideraes sobre o estilo da escrita filosfica da Fenomenologia em particular e de Hegel em geral.

Na verdade, gostaria de terminar a aula de hoje com algumas consideraes a respeito do estilo de Hegel. Pois uma leitura filosfica deve estar atenta no s a ordem das razes, mas tambm aos estilos da escrita. As exigncias do estilo no so consideraes externas aos objetos com os quais um pensamento se defronta. Isto talvez nos esclarea porque o estilo de Hegel desconhece um certo regime de clareza na escrita conceitual.

No se trata aqui de fazer uma apologia da obscuridade, mas valeria a pena lembrar a relevncia da questo a respeito da adequao entre clareza e objeto. Todos os objetos da experincia podem ser expostos atravs de uma linguagem de mxima visibilidade ? Eu lembraria que, em vrios momentos, a resposta da filosofia foi negativa. Por exemplo, ns conhecemos claramente a recusa de Hegel em descrever os objetos da experincia atravs da clareza de uma linguagem de inspirao matemtica, geometria retrica fundamentada atravs de analogias com os dispositivos da geometria euclidiana. A apreenso conceitual dos objetos da experincia exige uma compreenso especulativa da estrutura proposicional que nada tem a ver com exigncias abstratas de clareza. Ao contrrio, a clareza de inspirao matemtica que guia o uso ordinrio da linguagem do senso comum mistificadora, pois clarifica o que no objetivamente claro, procura utilizar categorizaes estanques para apreender aquilo que s pode aparecer de maneira negativa ou atravs de significaes fluidas. Assim, o estabelecimento de uma gramtica filosfica adequada acaba por se confundir com um movimento amplo de crtica da linguagem clara do entendimento. Da porque:

no difcil de perceber que a maneira de expor um princpio, de defend-lo com argumentos, de refutar tambm com argumentos o princpio oposto, no a forma na qual a verdade pode se manifestar. A verdade o movimento dela mesma nela mesma, enquanto que este mtodo o conhecimento exterior matria. por isto que ele particular matemtica e devemos deix-lo matemtica.

Adorno foi talvez aquele que melhor compreendeu a necessidade da articulao entre estilo e objeto do pensamento em Hegel. Hegel sem dvida o nico dentre os grandes filsofos que, em alguns momentos, no sabemos e no podemos decidir sobre o que ele fala exatamente, o nico a respeito de quem a prpria possibilidade de tal deciso no assegurada. Proposio aparentemente paradoxal por insistir na existncia de uma opacidade constitutiva do estilo hegeliano, existncia de regies de silncio legveis da textura do texto. Para Adorno, estamos diante de uma opacidade cuja estrutura deve ser deduzida do prprio contedo da filosofia hegeliana: J que cada proposio singular da filosofia hegeliana reconhece sua prpria inadequao a esta unidade [da totalidade], a forma exprime esta inadequao (Unangemessenheit) na medida em que ela no pode apreender nenhum contedo de maneira adequada.

Mas este bloqueio na apreenso do contedo um fato inscrito na linguagem especulativa. A sensao de evanescimento da referncia que todo leitor de Hegel conhece bem, esta impresso de que o estilo da escrita parece destruir a determinao dos objetos a respeito dos quais falvamos com relativa segurana at h pouco, , de uma certa forma, a experincia-motor da dialtica hegeliana. A clareza e a distino tm por modelo uma conscincia reificada (dinghaftes Bewutsein) do objeto, dir Adorno a respeito de Hegel. Como se houvesse certos objetos que s podem ser apreendidos atravs de uma toro da lngua, atravs de uma experincia de fracasso reiterado de posio de determinaes conceituais. Em Hegel, o conceito traz as cicatrizes do fracasso reiterado em apreender aquilo que se d como contedo da experincia. E se as feridas do esprito se curam sem deixar cicatrizes porque o conceito aprende que, em certos momentos, fracassar a apreenso do contedo a nica maneira de manifestar aquilo que da ordem da essncia dos objetos. H um fracasso que a nica forma de termos uma experincia do objeto. isto o que leva Adorno a dizer: Se um dia fosse possvel definir a filosofia, ela seria o esforo para dizer aquilo sobre o qual no se pode falar, esforo para levar o no-idntico expresso, mesmo quando a expresso procura identific-lo. isto o que Hegel tenta fazer. Alguns vero nesta estratgia do conceito em integrar aquilo que o nega uma forma astuta de totalizao. Mas ns poderemos perguntar: se nossa poca profundamente anti-hegeliana, no seria por temer identidades construdas com as marcas deste trabalho do negativo que parece nunca ter fim e nos exilar de nossa prpria gramtica?

Em um certo momento, Adorno compara o estilo de Hegel ao uso que um imigrante faz de uma lngua estrangeira. Por impacincia e necessidade, ele l deixando para trs palavras indeterminadas que s sero relativamente compreendidas atravs da reconstituio lenta e demorada de contextos. Muitas palavras ficaro para sempre opacas e apenas seu uso conjugado ser apreensvel. Outras ganharo uma sobredeterminao que o falante nativo no tinha mais a distncia necessria para desvelar. Este estranhamento diante dos objetos do pensamento que a posio hegeliana de imigrante na sua prpria lngua pressupe talvez nos diga muito a respeito das estratgias discursivas que compe a experincia intelectual de Hegel. Terminemos hoje com esta famosa descrio fornecida por Hotho a respeito de seu professor, Hegel. Ela talvez nos diga muito a respeito deste fazer filosfico que ser nosso objeto de estudos durante um semestre: A cabea abaixada como se estivesse dobrada sobre si mesma, o ar cansado; ele estava l de p e, enquanto falava, procurava continuamente nos seus grandes cadernos percorrendo-os sem parar em todos os sentidos, uma tosse incessante interrompia o desenvolvimento do discurso; a frase estava l, isolada, ela vinha com dificuldade, como se fosse arrancada. Cada palavra, cada slaba s de soltava a contragolpes, pronunciada por uma voz metlica, para em seguida receber no amplo dialtico subio uma ressonncia surpreendentemente presente, como se, a cada vez, o essencial estivesse l. O primeiro passo para ler Hegel compreender a necessidade destas palavras que teimam em no se submeter superfcie.

Curso Hegel

Segunda aula

Que tipo de livro a Fenomenologia do Esprito? Esta pergunta menos evidente do que pode inicialmente parecer. Vimos j na aula passada como a exegese hegeliana no cansou de mostrar a relao intrincada entre a Fenomenologia e o sistema hegeliano. Ao mesmo tempo introduo ao sistema e parte do sistema, esta aparente ambigidade, como no poderia deixar de ser, deixou marcas na prpria compreenso do sentido da experincia fenomenolgica hegeliana.

O fato que tal ambigidade guarda relaes com o intrincado processo de escrita da Fenomenologia. Ao comear a escrever o livro a partir da Introduo (e no a partir do Prefcio, a ltima parte por ele escrita), Hegel tem uma idia relativamente clara. Trata-se de constituir uma cincia da experincia da conscincia em sua direo adequao entre saber e objeto. Ou seja, a descrio da diviso entre absoluto e conscincia, da lenta tematizao de tal diviso por uma conscincia que procura reconstruir seus processos de apreenso de objetos e de sua superao. Esta seria a nica introduo possvel ao saber, isto ao menos para algum, como Hegel, que no cansou de desqualificar todo esforo de introduo. Pois se trata de uma introduo que j constituio do saber, at porque, como veremos, o saber no aparece como descrio cada vez mais exaustiva de um estado de coisas independente, mas como processo performativo de constituio de seus objetos. Um processo que s pode ser apreendido de maneira correta atravs da tematizao da trajetria fenomenolgica da conscincia em direo sua auto-compreenso como Esprito.

No entanto, certo que Hegel s foi paulatinamente compreendendo isto no interior do prprio movimento de redao de seu livro. Ao assinar o contrato de edio, Hegel prometeu entregar uma Lgica precedida por uma introduo intitulada cincia da experincia e, em contrapartida, receberia seus honorrios a partir da entrega da primeira parte. No entanto, a primeira parte comea a crescer de maneira exponencial. Na edio original, o primeiro captulo tem 16 pginas, o segundo, 21, o terceiro, 42, o quarto, 61 e o quinto, 214. A medida em que vai entregando os captulos, o plano da obra modifica-se, juntamente com seu centro de gravidade que se desloca da seo Conscincia-de-si seo Esprito. A partir de ento, o ttulo dever mudar, assim como o projeto original. Da porque muitos comentadores insistiram que a Fenomenologia do Esprito seria na verdade um palimpsesto: um livro no qual encontramos dois livros distintos, ou melhor, o abandono progressivo de um livro e a constituio de um outro. Pois um dos resultados ser que a Introduo introduo a um projeto que, de uma certa maneira, fracassar, enquanto o Prefcio dir respeito a um outro livro que acabou se impondo.

Tais consideraes sobre o processo de escrita no so extemporneas. Que o pensador sistemtico por excelncia tenha escrito a introduo ao sistema de uma maneira to tensa e assistemtica, que ele tenha continuamente revisto o lugar e o sentido do que deveria ser o objeto da Fenomenologia: eis algo que no deve ser negligenciado. Pois: pensamentos que no podem ser conduzidos at o fim de maneira perfeitamente clara e conseqente, que foram objetos do esforo da vida inteira de um pensador no so necessariamente os piores. tendo isto em mente que devemos iniciar a leitura da Fenomenologia do Esprito.

Na aula de hoje, ser questo de um comentrio de questes centrais que aparecem na primeira parte do Prefcio, ou seja, neste trecho que vai dos pargrafos 1 at o 17. Na prxima aula, comentaremos o trecho que vai do pargrafo 27 at o pargrafo 38.

Este trecho importante para ns por trs razes. Primeiro, Hegel fornece um primeiro quadro de eixos centrais do debate filosfico da poca. Vemos como, no interior do debate a respeito dos desdobramentos do ps-kantismo, Hegel oferece largas reflexes a respeito da peculiaridade de sua posio em contraposio a Schelling e a um certo intuicionismo que se legitimava atravs de seu nome. Operao ainda mais central se lembrarmos que, at ento, Hegel era visto apenas como um seguidor privilegiado de Schelling, a quem estava ligado por laos de amizade desde a poca em que os dois, juntamente com Hlderlin, eram seminaristas em Tbigen.

Por outro lado, esta reflexo a respeito do debate filosfico da poca vai aos poucos sendo enquadrada em uma reflexo mais ampla sobre as expectativas daquilo que ento se colocava como o nosso tempo, ou seja, a modernidade. Esta uma articulao central, j que Hegel , de uma certa forma, o primeiro filsofo a transformar o pensamento a respeito das aspiraes da modernidade em problema filosfico central. O que orienta o debate filosfico com sua procura em orientar o julgamento nas dimenses cognitivo-instrumental, prtico-moral e esttico-expressiva , na verdade, a procura da modernidade em fornecer os critrios de certificao de si mesma sem, para isto, depender do recurso constante a esquemas herdados da tradio e de situaes que no do voz s exigncias portadas pelos tempos modernos. Ou seja, o diagnstico sobre o que constitui nossa poca transforma-se, em Hegel, necessariamente em setor de compreenso do sentido do debate filosfico.

Por fim, atravs desta articulao cruzada entre diagnstico de poca e configurao das linhas mestras do debate filosfico, Hegel comea a fornecer algumas caractersticas maiores sobre seu mtodo filosfico e sobre aquilo que ele compreende como sendo tarefa principal para um programa filosfico de seu tempo. A insistncia hegeliana no carter aparentemente inadequado de se escrever um prefcio em filosofia aparece como oportunidade para discusses a respeito da maneira de apreender e refletir sobre objetos da experincia. Logo no incio, vemos Hegel s voltas com as tentativas de escapar de dois erros complementares: o formalismo de inspirao kantiana e o intuicionismo de inspirao schellinguiana.

Vamos pois analisar cada um destes trs aspectos.

Escrever um prefcio

Numa obra filosfica, em razo da natureza da Coisa (Sache), parece no s suprfluo, mas at inadequado e contraproducente um prefcio : esse esclarecimento preliminar do autor sobre o fim que se prope, as circunstncias de sua obra, as relaes que julga encontrar com as anteriores e atuais sobre o mesmo tema. Com efeito, no se pode considerar vlido, em relao ao modo como deve ser exposta a verdade filosfica, o que num prefcio seria conveniente dizer sobre a filosofia; por exemplo, fazer um esboo geral da tendncia e do ponto de vista, do contedo geral e resultado da obra, um agregado de afirmaes esparsas e asseres sobre a verdade. Alm do que, por residir a filosofia essencialmente no elemento da universalidade que em si inclui o particular, isso suscita nela, mais que em outras cincias, a aparncia de que no fim e nos resultados ltimos que se expressa a Coisa mesma (Sache selbst) em sua essncia perfeita. Frente a qual o desenvolvimento da exposio seria, propriamente falando, o inessencial (Unwesentliche).

Em um movimento sintomtico, Hegel comea a escrever a Fenomenologia problematizando seu prprio ato de escrever, ou seja reconhecendo que no se sente vontade naquilo que poderia se compreender como a forma geral da escrita filosfica. Hegel no pode deixar de comear aquele que o livro que marca enfim sua entrada em cena no debate filosfico de sua poca com uma constatao de que ele tem a dizer algo que parece exigir uma profunda reconfigurao na forma do dizer. Reconfigurao paradoxal pois leva a forma a mostrar aquilo que ela mostra sem o saber.

Tem-se habitualmente a aparncia de que a filosofia expressa seu objeto, a Coisa mesma, no fim e nos resultados ltimos que apresenta. Seu desenvolvimento seria o inessencial. Passemos diretamente do prefcio concluso. Ou, se for necessrio expor o desenvolvimento, o essencial poderia ser objeto de esboos gerais capazes de fornecer grandes quadros de orientao. Mas nada disto adequado para a apresentao do objeto da experincia intelectual de Hegel.

Desta forma, haver um prefcio, mas um prefcio que procura no ser exatamente um. Hegel no ir tentar resumir o trajeto da conscincia em direo cincia, objeto central da Fenomenologia. E mesmo que certos resultados sejam expostos, tais resultados sero, na verdade, a exposio da inadequao de pensar proposies filosficas como resultados que possam ser comparados para que uma verdade aparea a partir da confrontao de sistemas antagnicos de proposies. Tudo isto seria exterior filosofia e sua escrita.

Tal maneira de pensar o objeto da experincia filosfica implica necessariamente em outra relao com o que pode aparecer como histria da filosofia.

Do mesmo modo, a determinao das relaes que uma obra filosfica julga ter com outras sobre o mesmo objeto introduz um interesse estranho e obscurece o que importa ao conhecimento da verdade. Com a mesma rigidez com que a opinio comum (Meinung) se prende oposio entre o verdadeiro e o falso, costuma tambm cobrar, ante um sistema filosfico dado, uma atitude de aprovao ou rejeio (Widerspruch). Acha que qualquer esclarecimento a respeito do sistema s pode ser uma ou outra. No concebe a diversidade dos sistemas filosficos como desenvolvimento progressivo da verdade, mas s v diversidade e contradio [mas s v contradio nesta diversidade].

Hegel ser o primeiro filsofo a ver a reflexo a respeito da histria da filosofia como movimento central no interior do prprio fazer filosfico. Para Hegel, sistemas filosficos no so passveis de simples refutao, mas colocam para si uma integralidade fixa de problemas: Cada filosofia em si completa e tem, como uma autntica obra de arte, a totalidade em si. Hegel ser ainda mais claro em sua proposio da sistematicidade e comensuralibilidade dos sistemas filosficos: Mas se o absoluto, tal como a sua manifestao, a razo, eternamente um e o mesmo, como de fato , ento, cada razo que se dirige e se conhece a si mesma produziu uma verdadeira filosofia e resolveu para si a tarefa que, tal como a sua soluo, a mesma para todas as pocas. Isto implicar em um fazer filosfico que ver a histria da filosofia como histria do movimento da razo em direo sua auto-determinao enquanto cincia (Wissenschaft). A rememorao de cada momento necessria na compreenso do que se coloca a um tempo como tarefa filosfica. Este o sentido que podemos dar metfora usada por Hegel a fim de descrever o que est em jogo na passagem histrica de um sistema filosfico a outro:

O boto desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-a (Dasein) da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor; essas formas no s se distinguem, mas tambm se repelem (verdrngen mas cada uma recalca a outra) como incompatveis entre si. Porm, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgnica, na qual, longe de se contradizerem (widerstreiten- longe de entrarem em conflito), todos so igualmente necessrios.

Esta metfora do desenvolvimento orgnico que demonstra a necessidade de cada momento na constituio de uma situao que se coloca no presente fundamental para compreendermos a noo hegeliana de histria da filosofia. No entanto, este desenvolvimento progressivo da verdade, do qual fala Hegel, no reconstituio linear da seqncia histrica dos sistemas filosficos. O desenvolvimento da razo no idntico aos desenvolvimentos contingentes da histria. Ao contrrio, o esforo da filosofia na compreenso dos modos de realizao da verdade consiste em reconstituir seus momentos a partir do ponto de vista da razo. Claro est que fica como questo saber como fundamentar esta perspectiva meta-histria que permite a constituio de uma histria da razo em sua tentativa de reconciliar-se com a experincia.

Neste estgio, podemos insistir em um ponto central. A perspectiva de constituio de uma certa histria da razo no se dar, para Hegel, de maneira transcendente; como se ela obedecesse a um conjunto de proposies a-histricas capaz de orientar a prpria narrao da histria. Digamos, neste estgio, que Hegel tenta implementar uma perspectiva imanente de compreenso do desenvolvimento das figuras da razo em sua histria, ou ainda, simplesmente da razo na histria. Ou seja, trata-se de compreender o impulso que ordena as passagens de uma figura da razo outra atravs de tenses internas. Ao tentar se efetivar seu conceito, uma figura da razo produz experincias que no se deixam apreender completamente pelo conceito que a anima. Trata-se ento de comparar a figura consigo mesma, insistir na contradio entre o conceito e aquilo que se coloca como campo de experincia para a conscincia de um certo momento. Trata-se pois de mostrar como uma determinada figura da razo no foi capaz de realizar seu prprio conceito. Esta , de uma certa forma, o cerne de uma perspectiva imanente na compreenso do desenvolvimento da razo em sua histria.

Tal compreenso da racionalidade interna da histria da filosofia e do pensar, levar Hegel a procurar definir a reflexo filosfica como a tentativa de apreender, fundamentalmente, o processo de formao de seus objetos, ou seja, os objetos tais como eles aparecem no tempo. Da a afirmao central:

A Coisa no se esgota em seu fim, mas em sua atualizao (Ausfrhrung); nem o resultado o todo efetivo, mas sim o resultado junto com seu vir-a-ser (Werden - devir). O fim para si [ou seja, apenas subjetivamente pressuposto] o universal sem vida [j que lhe falta a objetividade], como a tendncia [enquanto indeterminado] o mero impulso (Treiben) ainda carente da sua efetividade; o resultado nu o cadver que a tendncia deixou atrs de si [porque a tendncia no se coloca mais no resultado]. Igualmente, a diversidade [de determinaes que no podem ser unificadas a partir de um universal] , antes, o limite da Coisa; est ali onde a coisa deixar de ser; ou o que a mesma no (...) Nada mais fcil que julgar (beurteilen) o que tem contedo e solidez; apreend-lo (fassen) mais difcil; e o que h de mais difcil produzir sua exposio (Darstellung - apresentao), que unifica ambos.

Se Hegel exige uma histria da filosofia que no seja mera narrativa da sucesso de sistemas tendo em vista a descrio de um pretenso aprimoramento contnuo, mas a exposio de um processo de formao no qual todos os momentos so necessrios, porque o prprio objeto da reflexo filosfica aquilo que no se esgota em seu fim, mas em sua atualizao, objeto que s pode ser apresentado de maneira adequada atravs da unificao entre o resultado e o devir. Pois emitir julgamentos a respeito do que se deixa colocar na solidez de determinaes fixas no a tarefa fundamental do pensar.

De fato, o primeiro esforo do pensamento consiste em ordenar previamente o campo possvel de determinaes atravs de princpios gerais e universais postos de maneira transcendental. Esta ordenao permite termos a experincia de uma Coisa em geral, da mesma maneira com que a estruturao de categorias a determinao de predicados possveis para um objeto geral. Mas o verdadeiro incio da experincia de formao (Bildung) no se d como resultado de uma experincia de objetos em geral. Hegel no cansar de insistir que a filosofia tem a exigncia de pensar o particular, de adentrar na experincia da Coisa mesma (Sache selbst). O que implica em pensar aquilo que no se deixa pr como experincia de objetos em geral.

Neste sentido, se Hegel afirma que: A verdadeira figura em que a verdade existe s pode ser o seu sistema cientfico, devemos j estar atento para a peculiaridade hegeliana a respeito da noo de sistema. No se trata de pensar a constituio de um sistema de proposies que d conta, de maneira coerente, das articulaes internas do saber. O verdadeiro sistema da cincia aquele capaz de portar, em si mesmo, o que parece negar a articulao do saber em sistema, ou seja, a compreenso do objeto como devir que no se esgota em sua determinao como caso de uma noo geral de objeto. O verdadeiro sistema deve dar conta daquilo que o nega, deve ser capaz de dar a forma do conceito quilo que parece apresentar-se como no-conceitual.

No entanto, para que a filosofia como sistema cientfico possa vir luz, no basta a necessidade interna das motivaes individuais. Ele deve responder necessidade externa do seu prprio tempo. Ou seja, Hegel deve mostrar que o tempo presente pode elevar a filosofia condio de cincia, desta cincia que ser apresentada, na Fenomenologia do Esprito, em sua realizao enquanto Saber Absoluto. Neste sentido, a reflexo hegeliana deve aparecer como reflexo sobre as exigncias de um tempo presente cuja melhor denominao modernidade. A reflexo filosfica deve se colocar como reflexo sobre a modernidade em suas aspiraes e em seus impasses.

Chegou o tempo de elevar a filosofia condio de cincia

O primeiro filsofo a desenvolver um conceito preciso de modernidade foi Hegel. De fato, esta afirmao de Habermas precisa por lembrar como, em Hegel, a definio de seu programa filosfico s possvel atravs da apreenso daquilo que se coloca como situao da modernidade. Vemos claramente tal operao entre os pargrafos 6 e 13 da Fenomenologia. Tomemos, por exemplo, este diagnstico de poca que aparece no pargrafo 7:

Tomando a manifestao dessa exigncia [do Absoluto] em seu contexto mais geral e no nvel em que presentemente se encontra o esprito consciente-de-si [ou seja, trata-se de compreender o que o presente coloca como exigncia do esprito], vemos que esse foi alm da vida substancial que antes levava no elemento do pensamento; alm desta imediatez de sua f, alm da satisfao e segurana da certeza que a conscincia possua devido sua reconciliao com a essncia e a presena universal dela interior e exterior. O esprito no s foi alm passando ao outro extremo da reflexo, carente-de-substncia, de si sobre si mesmo mas ultrapassou tambm isso. No somente est perdida para ele sua vida essencial; est tambm consciente dessa perda e da finitude que seu contedo. [Como o filho prdigo], rejeitando os restos da comida, confessando sua abjeo e maldizendo-a, o esprito agora exige da filosofia no tanto o saber do que ele , quanto resgatar por meio dela, aquela substancialidade e densidade do ser [que tinha perdido].

Como vemos, Hegel compreende a modernidade como um momento de ciso. O esprito perdeu a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as vrias esferas de valores sociais. Ao contrrio, a modernidade pode ser compreendida como este momento que est necessariamente s voltas com o problema da sua auto-certificao. Ela no pode mais procurar em outras pocas os critrios para a racionalizao e para a produo do sentido de suas esferas de valores. Ela deve criar e fundamentar suas normas a partir de si mesma. Isto significa que a substancialidade que outrora enraizava os sujeitos em contextos sociais aparentemente no-problemticos est fundamentalmente perdida. Como dir, cem anos depois, Max Weber: O destino de nossos tempos caracterizado pela racionalizao e intelectualizao e, acima de tudo, pelo desencantamento do mundo. Precisamente, os valores ltimos e mais sublimes retiraram-se da vida pblica, seja para o reino transcendental da vida mstica, seja para a fraternidade das relaes humanas e pessoais. Ou seja, aquilo que fornecia o enraizamento dos sujeitos atravs da fundamentao das prticas e critrios da vida social no mais substancialmente assegurado.

Em uma anlise hoje clssica, Hegel indica trs acontecimentos que foram paulatinamente moldando a modernidade em suas exigncias: a reforma protestante [com sua confrontao direta entre o crente e Deus atravs da subjetividade da f], a revoluo francesa [que colocava o problema do Estado Justo enquanto aquele capaz de conciliar aspiraes de universalidade da Lei e exigncias dos indivduos] e o Iluminismo [que, segundo Hegel, ter em Kant sua realizao mais bem acabada]. Em todos estes acontecimentos, o que parece impulsiona-los o aparecimento do que poderamos chamar de subjetividade.

De fato, para Hegel, a subjetividade aparece como o princpio dos tempos modernos. No por outra razo que Hegel falar, a propsito de Descartes com seu cogito: Aqui j podemos sentir em casa e gritar, como o navegante depois de uma larga e penosa travessia por mares turbulentos: - Terra!. Com Descartes comea a cultura dos tempos modernos, o pensamento da filosofia moderna, depois de ter andando por muito tempo em outros caminhos.

A metfora aqui no poderia ser mais adequada. De fato, o princpio de subjetividade com seu primado de que a verdade submeta-se reflexo, de que o ser submeta-se ao pensamento, a terra firme, o fundamento a partir do qual a filosofia poder reconstruir seus alicerces. Faz-se necessrio que o fundamento da nova liberdade seja o que assegurado por uma certeza [subjetiva] que satisfaa s exigncias da essncia da verdade. Este fundamento no estar em operao apenas como sujeito do conhecimento, mas guiar tambm a redefinio das mltiplas esferas de valores da vida social. Afirmar que o princpio de subjetividade o fundamento significa assim dizer que nada pode aspirar validade se no for transparente reflexo subjetiva. O que nos coloca com um problema inicial sobre o prprio conceito de reflexo e suas conseqncias.

Muito ainda haver a se dizer a respeito desta questo. Mas podemos introduzi-la atravs de algumas consideraes feitas por Heidegger a respeito deste mesmo problema, j que, em larga medida, elas no so estranhas quilo que Hegel tem em mente ao lembrar que o esprito est consciente da perda de sua vida essencial e da finitude de seu contedo.

Em uma passagem clebre, Heidegger insiste que a estrutura da reflexo que nasce com o princpio moderno de subjetividade fundamentalmente posicional. Refletir por diante de si no interior da representao, como se colocssemos algo diante de um olho da mente.

Seguindo os rastros de texto cartesiano, ele nos lembra que, em vrias passagens, Descartes usa cogitare e percipere como termos correlatos. Um uso necessariamente prenhe de consequncias. De fato, Heidegger deve pensar aqui, primeiro, na maneira peculiar com que Descartes utiliza o termo latim percipere. Ele raramente utilizado para designar processos sensoriais, como viso e audio (nestes casos, Descartes prefere utilizar o termo sentire). Percipere designa, normalmente, a apreenso puramente mental do intelecto, j que, em Descartes, a inspeo intelectual que apreende os objetos, e no as sensaes. Assim, por exemplo, na meditao terceira, ao falar daquilo que aparece ao pensamento de maneira clara e distinta, Descartes afirma: todas as vezes que volto para as coisas que penso conceber mui claramente sou de tal modo persuadido delas .... Mas, de fato, penso conceber a traduo no muito fiel de percipere. Da mesma forma, Descartes, mais a frente falar de : tudo aquilo que concebo clara e distintamente pelo pensamento. Mas, novamente, o termo conceber uma traduo aproximada de percipere, j que o texto latim diz: illa omnia quae clare percipio. De onde se v como percipere serve, nestes casos, para descrever o prprio ato mental do pensamento.

Heidegger sensvel a este uso peculiar de percipere por Descartes pois a reconstruo etimolgica do termo nos mostra que ele significa: tomar posse de algo, apoderar-se (bemchtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zu-stellen) [lembremos que Sicherstellen confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen). Desta forma, a compreenso de cogitare por Vor-stellen (re-presentar/por diante de si) estaria mais prxima do verdadeiro sentido deste fundamento que Descarte traz como terra firma da filosofia moderna.

Tais aproximaes permitem a Heidegger interpretar o cogitare cartesiano como uma representao que compreende o ente como aquilo que essencialmente representvel, como aquilo que pode ser essencialmente disposto no espao da representao. assim que devemos compreender a frase-chave: O cogitare um dispor-para-si do representvel. Assim, cogitare no seria apenas um processo geral de representao, mas seria um ato de determinao da essncia do todo ente como aquilo que acede a representao. Isto indicaria como todo ato de pensar um ato de dominar atravs da submisso da coisa representao. O diagnstico de Heidegger seria claro: algo s para o homem na medida em que estabelecido e assegurado como aquilo que ele pode por si mesmo, na ambincia (Umkreis) de seu dispor, a todo instante e sem equvoco ou dvida, reinar como mestre. Pois a compreenso do pensamento como capacidade de articular representaes, como competncia representacional impe um modo especfico de manifestao dos entes ao pensamento. O ente ser, a partir de agora, aquilo que aparece, para um sujeito cognoscente, como objeto adequado de uma representao categorizada em coordenadas espao-temporais extremamente precisas. Neste sentido: o homem se coloca si mesmo como a cena (Szene) sobre a qual o ente deve a partir de agora se apresentar (vor-stellen, prsetieren). Da porque Heidegger pode afirmar que o cogito traz uma nova maneira da essncia da verdade.

Nada disto estranho a Hegel quando este compreende os tempos modernos como este tempo no qual o esprito perdeu sua vida essencial e est consciente desta perda e da finitude de seu contedo. Pois, para Hegel, a reflexo, enquanto disposio posicional dos entes diante de um sujeito, no pode deixar de operar dicotomias e divises no interior do que se oferece como objeto da experincia entre aquilo que para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se d atravs da receptividade da intuio e aquilo que ordenado pela espontaneidade do entendimento com suas estruturas reflexivas de representao, entre o que da ordem do esprito e o que da ordem da natureza, entre o que acessvel reflexo e o que Absoluto.

Para a gerao de Hegel, a filosofia moderna deve ultrapassar um sistema de dicotomias que encontrou sua figura mais bem acabada na filosofia kantiana. Hegel partilha o diagnstico de ps-kantianos como Fichte e Schelling de que, na filosofia kantiana, o primado da reflexo e da subjetividade, produziu cises irreparveis. Da porque o nico interesse da razo o de suspender antteses rgidas. Alm disto, Hegel tem a peculiaridade de compreende tais cises como a formalizao filosfica de dicotomias nas quais a modernidade havia se enredado. Isto nos explica porque: Hegel v na filosofia kantiana a essncia do mundo moderno concentrada como num foco. Veremos este ponto de maneira mais sistemtica quando comentarmos os primeiros pargrafos da Introduo da Fenomenologia.

Contra Schelling

No entanto, Hegel no est disposto a abandonar o solo de uma filosofia da reflexo. Ele no acredita que podemos nos curar das feridas da elevao do princpio moderno de subjetividade condio de fundamento da cincia simplesmente pregando alguma forma de retorno a uma origem pr-reflexiva e pr-conceitual. Por isto, Hegel ser to duro com a idia segunda a qual:

Com efeito, se o verdadeiro s existe no que (ou melhor, como o que) se chama quer intuio, quer saber imediato do absoluto, religio, ser (...) ento o que se exige para a exposio da filosofia , antes, o contrrio da forma do conceito. O absoluto no deve ser conceitualizado, mas somente sentido e intudo, no o seu conceito, mas seu sentimento e intuio que devem falar em seu nome e ter expresso. (...) Para atender a essa necessidade (...) deve, sobretudo, misturar as distines do pensamento, reprimir o conceito que diferencia, restaurar o sentimento da essncia, garantir mo tanto a perspiccia quanto a edificao. O belo, o sagrado, a religio, o amor so a isca requerida para despertar o prazer de mordiscar. No o conceito, mas o xtase, no a necessidade fria e metdica da Coisa que deve constituir a fora que sustm e transmite a riqueza da substncia, mas sim o entusiasmo abrasador.

Nesta longa diatribe, que ser retomada em vrios momentos do prefcio, Hegel est, na verdade, acertando contas com seu passado. Esta idia de que, ao invs da reflexo prpria ao conceito, a filosofia deve procurar tematizar a auto-intuio do absoluto atravs um certo regime de retorno a um plano de imanncia que no pode ser objeto de diferenciao , na verdade, a ressonncia do programa crtico schellinguiano.

De fato, Hegel foi primeiramente visto como um schellinguiano e a Fenomenologia do Esprito, em particular seu prefcio, aparece como o locus da ruptura entre os dois. Em carta a Schelling, Hegel insistir que se tratava de fornecer uma mquina de guerra contra aqueles que deturpariam o pensamento de Schelling ao transform-lo em arauto de uma filosofia do imediato. No entanto, Schelling no deixar de dizer: Na medida em que voc prprio menciona a parte polmica deste [seu livro], eu devia fazer muito pouco caso de mim mesmo para aplicar esta polmica minha pessoa.

No entanto, a polmica era, de fato, endereada a Schelling. De maneira esquemtica, podemos dizer que, pelo menos aos olhos de Hegel, Schelling procura ultrapassar as dicotomias da reflexo atravs do recurso a um plano de imanncia a partir do qual o subjetivo e o objetivo se extraem. O sujeito emergiu de um mundo indiferente que agora ele confronta e conhece atravs da reflexo. Da segue, por exemplo, a definio schellinguiana do Absoluto que aparece como indiferena absoluta entre sujeito e objeto. a natureza que marca este ponto de indiferena entre sujeito e objeto no qual se encontra o Absoluto. Ou seja, contra o esvaziamento da dignidade ontolgica da natureza produzida por Kant, Schelling prope o resgate da filosofia da natureza como momento da auto-intuio do Absoluto. A atividade da natureza como momento de auto-intuio do Absoluto.

O conceito central aqui intuio. Schelling insiste que h uma intuio intelectual que no reflexo, que no posicional, mas que modo de posio da unidade sem mediao entre sujeito e objeto. Este recurso intuio nos leva a questo a respeito do modo de objetividade daquilo que s poderia aparecer intuio desprovida de conceito. Schelling insistir ento no papel central da arte como espao no qual se realiza a objetividade da intuio intelectual. A arte, como objetividade da razo, pe a existncia sensvel como expresso da espiritualidade em uma intuio que no conhecimento-de-si, mas manifestao do Absoluto.

De fato, Hegel no pode aceitar tanto o conceito schellinguiano de Absoluto, quanto a maneira com que o recurso a intuio se d s espessas do trabalho do conceito, como se o recurso intuio fosse modo de recuperao daquilo que o conceito perde ao operar. Para Hegel, no se trata de abandonar a dimenso conceitual, mas de distinguir conceito e representao, fazendo assim com que a prpria noo de reflexo subjetiva seja revista e, com ela, a noo moderna de sujeito.

Neste sentido, um aspecto central de sua crtica a Schelling no est no reconhecimento de que o objeto da filosofia e o Absoluto enquanto ponto de identidade entre o sujeito e o objeto, mas est no fato de Schelling o pressupe de modo imanente e previamente acessvel. Para Hegel, haver de fato uma imanncia com o Absoluto (pois o pensamento no pode pensar sem construir totalidades), mas ela ser conquistada como resultado da experincia, ele ser marcado pelo trajeto desta experincia, e no aparecer como resultado previamente posto. Quando filosofamos, pretendemos provar que a coisa assim. Mas, se a arrancamos da intuio intelectual, isto no passar de um orculo (...) A prova verdadeira de que esta identidade do subjetivo e do objetivo a verdade s pode ser trazida investigando cada coisa por si mesma, em suas determinaes lgicas, essenciais; ento veramos necessariamente que o subjetivo consiste em converter-se no objetivo, e que o objetivo no permanece sempre como tal, mas que tende a converter-se no subjetivo.

Esta identidade entre o sujeito e objeto, para alm da submisso do objeto uma reflexo que aparece como dispor-diante-de-si s poder ser alcanado por um sistema filosfico capaz de pensar a identidade se instaurando no interior de um processo histrico-racional, o que no tem nada a ver com um recurso origem pr-reflexiva. Novamente, encontramos a compreenso do objeto da filosofia como um devir que se constri e que s pode ser apreendido no interior de um trajeto. isto o que Hegel tem em vista ao afirmar que:

O comeo do novo esprito tem o produto de uma ampla transformao de mltiplas formas de cultura, o prmio de um itinerrio muito complexo, e tambm de um esforo e de uma fadiga multiformes. Esse comeo o todo [ou o Absoluto], que retornou a si mesmo de sua sucesso [no tempo] e de sua extenso [no espao]; o conceito que veio-a-ser (gewordne) conceito simples do todo.

Muito ainda haver a se dizer a respeito desta instaurao da unidade do todo em um conceito simples. No entanto, lembremos ainda de um ponto central. Eu havia dito que a modernidade aparece para Hegel como momento histrico no qual o princpio de subjetividade pode se pr como fundamento. No entanto, este sujeito no apenas a condio transcendental de toda representao (ou seja, no um sujeito psicolgico, um indivduo, mas a possibilidade de que, ao representar objetos, eu apreenda tambm as regras de organizao da experincia de representao). Na verdade, Hegel lembrar que o sujeito aquilo que faz com que o esprito nunca esteja em repouso porque so suas exigncias que instauram um processo no qual o esprito rompe com o mundo do seu ser-a e do seu representar.

Tais exigncias podem ser melhor compreendida se lembrarmos como o sujeito moderno no era simplesmente fundamento certo do saber, mas tambm entidade que marcado pela indeterminao substancial. Ele aquilo que nasce atravs da transcendncia em relao a toda e qualquer naturalidade com atributos fsicos, psicolgicos ou substanciais. Como dir vrias vezes Hegel, o sujeito aquilo que aparece como negatividade que cinde o campo da experincia e faz com que nenhuma determinao subsista. Na Filosofia do Esprito, de 1805, ele no deixar de encontrar metforas para falar deste sujeito que aparece como o que desprovido de substancialidade e de determinao fixa: O homem esta noite, este nada vazio que contm tudo na simplicidade desta noite, uma riqueza de representaes, de imagens infinitamente mltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao esprito, ou que no existem como efetivamente presentes (...) esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se torna terrvel, a noite do mundo que se avana diante de ns.

Depois de Hegel, a modernidade ser cada vez mais identificada com o efmero, com o tempo que faz com que tudo o que slido se desmanche no ar. O mpeto desta destruio, a modernidade o tira do sujeito enquanto entidade no substancial que lembra, positividade do mundo, a fora de uma noite que avana. Pensar altura da modernidade ser, para Hegel, pensar uma realidade animada por aquilo que no se deixa apreender como substncia (o que nos coloca diante da proposio chave de Hegel apreender a substncia como sujeito o conceito que advm conceito simples do todo). Mas tal como a coruja de Minerva que s voa noite, ser apenas quando a noite do mundo chegar que a filosofia poder realizar sua verdadeira tarefa.

Hegel

Curso Hegel

Terceira aula

Na aula passada, comeamos a leitura da Fenomenologia do esprito atravs de um trecho de seu prefcio que vai do primeiro pargrafo at o pargrafo 17. Nele, vimos Hegel definir, como objeto privilegiado da reflexo filosfica, as expectativas da modernidade e de seus modos de racionalizao das dimenses cognitivo-instrumental, prtico-moral e esttico-expressiva. Uma reflexo que deveria apreender tais expectativas a partir de uma perspectiva capaz de revel-los como resultados de processos de formao legveis no interior de uma compreenso racional da histria.

No entanto, vimos como Hegel definia a modernidade como um momento de ciso. O esprito perdeu a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as vrias esferas de valores sociais. Ao contrrio, para Hegel, a modernidade deve ser compreendida como este momento que est necessariamente s voltas com o problema da sua auto-certificao. Ela no pode mais procurar em outras pocas os critrios para a racionalizao e para a produo do sentido de suas esferas de valores. Ela deve criar e fundamentar suas normas a partir de si mesma. Isto significa que a substancialidade que outrora enraizava os sujeitos em contextos sociais aparentemente no-problemticos est fundamentalmente perdida.

Em uma anlise hoje clssica, Hegel indica trs acontecimentos que foram paulatinamente moldando a modernidade em suas exigncias: a reforma protestante [com sua confrontao direta entre o crente e Deus atravs da subjetividade da f], a revoluo francesa [que colocava o problema do Estado Justo enquanto aquele capaz de conciliar aspiraes de universalidade da Lei e exigncias dos indivduos] e o Iluminismo [que, segundo Hegel, ter em Kant sua realizao mais bem acabada]. Em todos estes acontecimentos, o que parece impulsiona-los o aparecimento do que poderamos chamar de subjetividade.

De fato, para Hegel, a subjetividade aparece como o princpio dos tempos modernos. No por outra razo que Hegel falar, a propsito de Descartes com seu cogito: Aqui j podemos sentir em casa e gritar, como o navegante depois de uma larga e penosa travessia por mares turbulentos: - Terra!. Com Descartes comea a cultura dos tempos modernos, o pensamento da filosofia moderna, depois de ter andando por muito tempo em outros caminhos.

Analisamos alguns elementos da estrutura reflexiva do princpio de subjetividade a luz de certas consideraes de Heidegger a respeito da reflexo como representao com sua conseqente compreenso do ser como objeto para um sujeito cognoscente. Insisti com vocs que o diagnstico heideggeriano era simtrico aquele que animava Hegel. Todos os dois viam, no advento do princpio de subjetividade enquanto fundamento da modernidade e de seus processos de racionalizao reflexiva, o cerne das cises nas quais a modernidade havia se enredado. Pois, para Hegel, a reflexo, enquanto disposio posicional dos entes diante de um sujeito, no pode deixar de operar dicotomias e divises no interior do que se oferece como objeto da experincia entre aquilo que para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se d atravs da receptividade da intuio e aquilo que ordenado pela espontaneidade do entendimento com suas estruturas reflexivas de representao, entre o que da ordem do esprito e o que da ordem da natureza, entre o que acessvel reflexo e o que Absoluto. Desta forma, lembrei para vocs que Hegel partilhava o diagnstico de ps-kantianos como Fichte e Schelling, para quem o primado da reflexo e da subjetividade, produziu cises irreparveis. Da porque o nico interesse da razo o de suspender antteses rgidas.

No entanto, Hegel no estava disposto a abandonar o solo de uma filosofia da reflexo. Ele no acreditava que podemos nos curar das feridas da elevao do princpio moderno de subjetividade condio de fundamento da cincia simplesmente pregando alguma forma de retorno a uma origem pr-reflexiva e pr-conceitual. Neste sentido, Hegel deve iniciar sua Fenomenologia do Esprito, livro que marca enfim sua entrada em cena no debate filosfico alemo, com uma ruptura clara em relao a Schelling, a quem Hegel foi to intelectualmente ligado at ento.

Eu havia lembrado de que, ao menos aos olhos de Hegel, Schelling procurava ultrapassar as dicotomias da reflexo atravs do recurso a um plano de imanncia a partir do qual o subjetivo e o objetivo se extraem. O sujeito emergiu de um mundo indiferente que agora ele confronta e conhece atravs da reflexo. Da segue, por exemplo, a definio schellinguiana do Absoluto que aparece como indiferena absoluta entre sujeito e objeto. a natureza que marcaria este ponto de indiferena entre sujeito e objeto no qual se encontra o Absoluto. Ou seja, contra o esvaziamento da dignidade ontolgica da natureza produzida por Kant, Schelling prope o resgate da filosofia da natureza como momento da auto-intuio do Absoluto. O conceito central aqui intuio. Schelling insiste que h uma intuio intelectual que no reflexo, que no posicional, mas que modo de posio da unidade sem mediao entre sujeito e objeto.

De fato, Hegel no pode aceitar tanto o conceito schellinguiano de Absoluto, quanto a maneira com que o recurso a intuio se d s espessas do trabalho do conceito, como se o recurso intuio fosse modo de recuperao daquilo que o conceito perde ao operar. Para Hegel, no se trata de abandonar a dimenso conceitual, mas de distinguir conceito e representao, fazendo assim com que a prpria noo de reflexo subjetiva seja revista e, com ela, a noo moderna de sujeito.A reconciliao das cises da modernidade no ser feita atravs do abandono do solo do pensamento conceitual, mas atravs da reconstituio da noo de pensamento conceitual. Isto implicar em uma reorientao a respeito deste princpio que aparece como fundamento para o advento da modernidade, ou seja, o princpio de modernidade. Podemos dizer que a contribuio central de Hegel encontra-se na tentativa de recompor a noo de subjetividade e tirar da conseqncias maiores para o prprio funcionamento da razo.

Neste sentido, terminei a aula lembrando para vocs um ponto que ser retomado de maneira mais elaborada na aula de hoje. Eu havia dito que a modernidade aparece para Hegel como momento histrico no qual o princpio de subjetividade pode se pr como fundamento. No entanto, este sujeito no era apenas a condio transcendental de toda representao. Na verdade, Hegel lembrar que o sujeito aquilo que faz com que o esprito nunca esteja em repouso porque so suas exigncias que instauram um processo no qual o esprito rompe com o mundo do seu ser-a e do seu representar.

Tais exigncias podem ser melhor compreendidas se lembrarmos como o sujeito moderno no era simplesmente fundamento certo do saber, mas tambm entidade que marcado pela indeterminao substancial. Ele aquilo que nasce atravs da transcendncia em relao a toda e qualquer naturalidade com atributos fsicos, psicolgicos ou substanciais. Como dir vrias vezes Hegel, o sujeito aquilo que aparece como negatividade que cinde o campo da experincia e faz com que nenhuma determinao subsista. Na Filosofia do Esprito, de 1805, ele no deixar de encontrar metforas para falar deste sujeito que aparece como o que desprovido de substancialidade e de determinao fixa: O homem esta noite, este nada vazio que contm tudo na simplicidade desta noite, uma riqueza de representaes, de imagens infinitamente mltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao esprito, ou que no existem como efetivamente presentes (...) esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se torna terrvel, a noite do mundo que se avana diante de ns.

Depois de Hegel, a modernidade ser cada vez mais identificada com o efmero, com o tempo que faz com que tudo o que slido se desmanche no ar. O mpeto desta destruio, a modernidade o tira do sujeito enquanto entidade no substancial que lembra, positividade do mundo, a fora de uma noite que avana. Pensar altura da modernidade ser, para Hegel, pensar uma realidade animada por aquilo que no se deixa apreender como substncia.

Cincia da experincia da conscincia

tendo tais problemas em mente que gostaria de retornar ao texto da Fenomenologia para comentar este trecho que vai do pargrafo 27 at o pargrafo 38. Trecho fundamental por nos expor alguns traos maiores das noes hegelianas de fenomenologia e de experincia. Dois conceitos que nos auxiliaro na definio do modo com que Hegel espera curar a modernidade de suas cises, alm de aprofundar nossa compreenso do modo com que tais divises seriam engendradas. Partamos pois o incio do pargrafo 27:

O que esta Fenomenologia do Esprito apresenta o devir da cincia em geral ou do saber [ou seja, o processo de formao da conscincia em direo a este ponto no qual pensar e ser podem reconciliar-se]. O saber como inicialmente ou o esprito imediato - algo desprovido de esprito (geistlose), a conscincia sensvel [o primeiro estgio das figuras da conscincia]. Para tornar-se saber autntico, ou para produzir o elemento da cincia, que para a cincia o seu conceito puro, o saber tem de percorrer um longo e rduo caminho. Esse devir, como ser apresentado em seu contedo e nas figuras (Gestalten) que nele se mostram, no ser o que obviamente se espera de uma introduo da conscincia no-cientfica cincia, e tambm ser algo diverso do estabelecimento dos fundamentos da cincia. Alm disso, no ter nada a ver com o entusiasmo que irrompe imediatamente com o saber absoluto como num tiro de pistola e descarta os outros pontos de vistas, declarando que no quer saber nada deles.

A Fenomenologia aparece aqui como o movimento de apresentao da cincia, ou seja, da reconciliao entre pensar e ser, em seu devir. Esta apresentao no simples introduo cincia para uma conscincia que ainda nada sabe, nem apresentao prvia do que seriam os fundamentos de todo e qualquer pensamento cientfico. Como vimos na aula passada, ela menos ainda a tematizao da imanncia de um saber do Absoluto que se d atravs de intuies intelectuais. A apresentao do devir em direo cincia a rememorao deste longo e rduo caminho que vai da conscincia em seu estado mais imediato at o esprito realizado. Cada uma das etapas deste caminho fornece um contedo de experincia e pode ser exposto atravs de uma figurao, ou seja, cada uma destas etapas fornece uma figura da conscincia.

Veremos de maneira mais detalhada o que so tais figuras na aula que vem atravs do comentrio de certas passagens da Introduo. Por enquanto vale a pena insistir em dois pontos. Primeiro, a fenomenologia implica inicialmente na aceitao da perspectiva de um certo primado da conscincia. Trata-se fundamentalmente de descrever o que aparece (Erscheinung termo que pode ser traduzido tanto por fenmeno quanto por o que aparece) conscincia a partir das posies que ela adota diante da efetividade, posies que trazem em seu interior contedos determinados de experincia enquanto contedos de modos de vida em suas dimenses morais, cognitivas, estticas, etc. Assim, se a fenomenologia poder ser definida por Hegel como cincia da experincia da conscincia (este era, por sinal, o ttulo originrio do livro que aparece na primeira edio de 1807), porque ela a exposio das configuraes dos campos de experincia da conscincia a partir do eixo da formao da conscincia para o saber, ou ainda, para a filosofia.

Notemos ainda que o campo do que aparece conscincia modifica-se ao ritmo dos fracassos da prpria conscincia em apreender o que se coloca a partir do seu conceito de experincia. Digamos que ela encontra sempre algo a mais do que seu conceito de experincia parecia pressupor. Enquanto ela acreditar encontrar o que nega, o que no se submete ao seu conceito abstrato de experincia, isto ao invs de produzir tal negao, a conscincia continuar nos descaminhos do no-saber e no compreender como novos objetos podem aparecer ao seu campo de experincia. isto o que Hegel tem em mente ao dizer, na Enciclopdia: estando dado que o Eu, para si mesmo, apenas identidade formal; o movimento dialtico do conceito a determinao progressiva da conscincia no para ele sua atividade, mas em-si e, para ele, modificao do objeto.

No entanto, h ainda um ponto que deve ser ressaltado. Embora adote a perspectiva da descrio do que aparece conscincia no interior de seu campo de experincias, Hegel no se v escrevendo uma Fenomenologia da conscincia, mas uma Fenomenologia do Esprito. Esta distino implica, entre outras coisas, que haver um nvel de experincias que s poder ser corretamente tematizada a partir do momento em que a conscincia abandonar seu primado a fim de dar lugar ao que Hegel chama de Esprito (Geist). Ou seja, o acesso ao saber pressupe o abandono da centralidade da noo de conscincia, de seus modos de percepo e reflexo, em prol do advento do Esprito (que no espcie alguma de conscincia absolutizada). [aqui h uma possibilidade de distinguir fenomenologia hegeliana das noes de fenomenologia prprias ao sculo XX/ Lebrun e a noo de que, para a fenomenologia moderna, a noo hegeliana de Saber Absoluto terrorismo]

Esta passagem, assim como a prpria compreenso do que Hegel quer dizer por Esprito, podem ser melhor compreendidos se levarmos em conta o que Hegel procura desenvolver no pargrafo 28:

A tarefa de conduzir o indivduo, deste seu estado inculto (ungebildeten no formado) at o saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de considerar o indivduo universal, o esprito consciente-de-si (Weltgeist - o esprito do mundo) na sua formao cultural. No que toca relao entre os dois indivduos, cada momento do indivduo universal se mostra conforme o modo como [o esprito do mundo] obtm sua forma (Form) concreta e sua figurao (Gestaltung) prpria. O indivduo particular o esprito incompleto, uma figura (Gestalt) concreta: uma s determinidade predomina em todo seu ser-a, enquanto outras determinidades ali s ocorrem como traos rasurados. (...) O indivduo cuja substncia o esprito situado no mais alto, percorre esse passado da mesma maneira como quem se apresta a adquirir uma cincia superior, percorre os conhecimentos preparatrios que h muito tem dentro de si, para fazer seu contedo presente; evoca de novo sua rememorao (Erinnerung), sem no entanto ter a seu interesse ou demorar-se neles. O singular deve tambm percorrer os degraus de formao cultural do esprito universal, conforme seu contedo; porm, como figuras j depositadas pelo esprito, como plataformas de um caminho j preparado e aplainado. (...) Esse ser-a passado propriedade j adquirida do esprito universal (...) Conforme esse ponto de vista, a formao cultural considerada a partir do indivduo consiste em adquirir o que lhe apresentado, consumindo em si mesmo sua natureza inorgnica e apropriando-se dela.

Como no devemos compreender este trecho? Primeiro, fato que Hegel pressupe um certo paralelismo ente ontognese e filognese. Pois a substncia dos indivduos concretos um esprito do mundo que, a primeira vista, parece absorver um processo racional de formao que j se desenvolveu na histria. De fato, a conscincia deve compreender que o presente no o nico modo de presena e que se trata, fundamentalmente, de compreender uma noo de presena no mais dependente da visibilidade do que se d como imagem no presente.

Uma leitura tradicional diria ento que caberia ao indivduo apenas rememorar este processo, estas plataformas de um caminho j aplainado apropriando-se de um esprito que age no indivduo, mas sua revelia. A verdadeira experincia seria, no fundo, uma rememorao de formas j trabalhas pelo desenvolvimento histrico do esprito. Neste momento, o indivduo deixaria de orientar seu agir e seu julgamento como conscincia individual para orientar-se como encarnao de um esprito do mundo que v sua ao como posio de uma histria universal que funciona como elemento privilegiado de mediao. O indivduo singular transformar-se em conscincia do esprito de seu tempo. O que s poderia significar uma absolutizao do sujeito que deixa de ser apenas eu individual para ser aquele capaz de narrar a histria universal e ocupar sua perspectiva privilegiada de avaliao. E a que chegaramos se levssemos ao p da letra afirmaes de comentadores como Jean Hyppolite, para quem: A histria do mundo se realizou; preciso somente que o indivduo singular a reencontre em si mesmo (...) A Fenomenologia o desenvolvimento concreto e explcito da cultura do indivduo, a elevao de seu eu finito ao eu absoluto, mas essa elevao no possvel seno ao utilizar os momento da histria do mundo que so imanentes a essa conscincia individual. Enfim, tudo se passaria como se a experincia da conscincia fosse rememorao e esta, por sua vez, fosse historicizao capaz de nos levar a compreender como o passado determina nosso agir e nossos padres atuais de racionalidade. Como se a palavra que traz o Saber Absoluto fosse: No fundo, eu sempre soube.

No entanto, gostaria de insistir que esta leitura fundamentalmente equivocada e no validada pelo desdobramento do texto da Fenomenol