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Dar à luz na Florença do século XV: práticas, objetos e espaços de gênero Maria verónica Perez Fallabrino Resumo: O presente artigo se propõe analisar o momento do parto na Florença do século XV sob a perspectiva de uma experiência que reforçava os papeis de gênero na sociedade. A atenção brindada à mãe durante o momento do parto e logo após que ela tinha dado à luz podem ser compreendidos como uma forma não só de celebrar a maternidade, mas de estimular o imaginário feminino para essa função. Desse modo, analisaremos as práticas, objetos e espaços que acompanhavam a mulher no momento do parto entendendo que a maternidade é um fato constituído por discursos que são fonte e efeito do gênero. Ao longo do trabalho, teremos como documentação: tratados produzidos sobre a família, Ricordi (diários familiares) escritos pelos mercadores florentinos e cartas intercambiadas por homens e mulheres daquele tempo. Palavras-chave: Maternidade; parto; gênero; Florença renascentista. Introdução O destino da maioria das mulheres florentinas do Quattrocento era se tornarem mães. Essa era a função social que se esperava delas, que definia suas vidas e que as ocupava desde muito cedo na vida. Visto que as mulheres casavam ainda na mocidade, por volta dos 17 ou 18 anos de idade 1 , elas davam à luz a vários filhos ao longo da sua existência, experimentando ciclos contínuos de gravidez e parto. O registro do mercador Goro Dati em seus Ricordi nos permite observar a frequência com que ocorriam os nascimentos dos filhos, dele e da sua esposa nasceram: Bandeccha em 1394; Stagio em 1396; Veronicha em 1397; Bernardo em 1398; Mari Piero em 1399; Filippa em 1400; Stagio Benedetto em 1401; e Antonio em 1402 (2006, p. 107-108). A esposa de Dati, Isabetta Villanuzi, deu à luz um filho por ano, falecendo logo após o nascimento do último filho, por complicações vinculadas ao parto um acontecimento Doutoranda em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), bolsista CAPES. 1 A idade média de casamento na Florença do Quattrocento era de 17 ou 18 anos para as mulheres e de 30 para os homens (HERLIHY; KLAPISCH-ZUBER, 1985, p. 210, tabela 7.1).

Dar à luz na Florença do século XV: práticas, objetos e ... · atenção brindada à mãe durante o momento do parto e logo após que ela tinha dado à luz podem ser compreendidos

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Dar à luz na Florença do século XV: práticas, objetos e espaços de gênero

Maria verónica Perez Fallabrino

Resumo: O presente artigo se propõe analisar o momento do parto na Florença do século XV

sob a perspectiva de uma experiência que reforçava os papeis de gênero na sociedade. A

atenção brindada à mãe durante o momento do parto e logo após que ela tinha dado à luz

podem ser compreendidos como uma forma não só de celebrar a maternidade, mas de

estimular o imaginário feminino para essa função. Desse modo, analisaremos as práticas,

objetos e espaços que acompanhavam a mulher no momento do parto entendendo que a

maternidade é um fato constituído por discursos que são fonte e efeito do gênero. Ao longo do

trabalho, teremos como documentação: tratados produzidos sobre a família, Ricordi (diários

familiares) escritos pelos mercadores florentinos e cartas intercambiadas por homens e

mulheres daquele tempo.

Palavras-chave: Maternidade; parto; gênero; Florença renascentista.

Introdução

O destino da maioria das mulheres florentinas do Quattrocento era se tornarem

mães. Essa era a função social que se esperava delas, que definia suas vidas e que as

ocupava desde muito cedo na vida. Visto que as mulheres casavam ainda na

mocidade, por volta dos 17 ou 18 anos de idade1, elas davam à luz a vários filhos ao

longo da sua existência, experimentando ciclos contínuos de gravidez e parto. O

registro do mercador Goro Dati em seus Ricordi nos permite observar a frequência com

que ocorriam os nascimentos dos filhos, dele e da sua esposa nasceram: Bandeccha

em 1394; Stagio em 1396; Veronicha em 1397; Bernardo em 1398; Mari Piero em 1399;

Filippa em 1400; Stagio Benedetto em 1401; e Antonio em 1402 (2006, p. 107-108). A

esposa de Dati, Isabetta Villanuzi, deu à luz um filho por ano, falecendo logo após o

nascimento do último filho, por complicações vinculadas ao parto – um acontecimento

Doutoranda em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), bolsista CAPES. 1 A idade média de casamento na Florença do Quattrocento era de 17 ou 18 anos para as mulheres e de 30 para os homens (HERLIHY; KLAPISCH-ZUBER, 1985, p. 210, tabela 7.1).

bastante comum na época; de acordo com David Herlihy e Christiane Klapisch-Zuber

(1985), 5% das mulheres morriam na região da Toscana durante ou após terem dado à

luz.

Vale ressaltar que algumas mulheres tiveram muitos mais filhos do que Isabetta,

outras, talvez por problemas na concepção ou durante a gravidez, tiveram um número

menor de filhos e com intervalos maiores entre os nascimentos e houve também as que

não conseguiram realizar a sua maternidade. Mas a despeito das diferenças que

podiam existir de uma mulher para outra, em linhas gerais, das esposas exigia-se a

fertilidade.

Essa exigência tinha por trás a grande mortalidade causada pela peste de 1348

e as recorrentes epidemias que se estenderam periodicamente por todo o século XV,

fragilizando a perpetuação das famílias e da cidade. Independentemente da peste,

estava também a mortalidade infantil – seja por diarreias, inanição, febres, infecções,

catarros, etc. – que era muito alta naquele tempo (KING, 1991). Muitas crianças

morriam logo após o parto e nem todas as que sobreviviam aos primeiros meses de

vida conseguiam superar os primeiros anos da infância, como aconteceu com dois dos

oito filhos de Goro Dati e Isabetta, que morreram ainda crianças, Stagio com cinco anos

e Mari Piero com 4 anos, por mencionar apenas um caso (2006, p. 108). A união

desses dois fatores provocou um grande problema social: famílias com poucos filhos

corriam o risco de desparecerem.

Assim, atendendo a seus interesses sociais, a Florença da época exaltou a

maternidade. Ideias ressaltando a importância cívica e familiar de se terem filhos

circulavam na sociedade, eram lidas, apreendidas e internalizadas por homens e

mulheres. O humanista Matteo Palmieri dizia: “útil é ter gerado filhos, aumentado o povo

e dado cidadãos à pátria” (1982, p. 161)2. Seu contemporâneo Leon Battista Alberti

escrevia: “a quem tenha se esforçado por conquistar riqueza, poder, principados, muito

2 “Utile cosa è avere generato figliuoli,, cresciuto il popolo et dato cittadini alla patria”.

haverá de lhe pesar não haver tido herdeiros verdadeiros e conservadores do seu nome

e da sua memória” (1972, p. 128)3.

Nesse contexto, dedicou-se grande atenção a cuidar do momento do

nascimento, pois o mesmo podia significar a vida da mãe ou da criança, ou de ambas.

Essa atenção centrou-se nos cuidados com a mulher, com o recém-nascido e com a

criança pequena no ambiente doméstico. Neste artigo abordaremos especificamente o

trato que se brindava à figura materna na hora do parto, um momento decisivo e muito

aguardado pelas famílias florentinas.

O parto

Além de um acontecimento biológico, o parto é também um acontecimento

histórico, isto é, um acontecimento inscrito numa dinâmica cultural. Dessa forma, variam

os instrumentos e as técnicas que o acompanham, as pessoas que se fazem presente

na cena (parteiras, médicos, enfermeiras, amas-de-leite, etc.), a percepção e a vivência

das mulheres que dão à luz, e a forma como os homens, ou seja, os futuros pais, vivem

a experiência (NICCOLI, 2006).

No que diz respeito ao caso da Florença do século XV, temos a narração do

ourives e escultor Benvenuto Cellini do momento do seu nascimento – fundamentado

nos relatos que tinha ouvido de sua família no passado:

O nascimento foi uma noite de todos os santos, finalizado o dia de todos os santos, às quatro e meia do ano mil e quinhentos4. Aquela parteira, que sabia que todos esperavam uma menina, assim que limpou o neném e o envolveu em belíssimos panos brancos, aproximou-se muito, muito suavemente, a Giovanni, meu pai, e disse: eu lhe trago um belo presente, um que vocês não esperavam. Meu pai, que era um verdadeiro filósofo, estava andando pela sala e disse: aquilo que Deus

3 “A chi sé arà affannato per acquistare ricchezze, potenze, principati, troppo a costui pesarà non avere doppo sé vero erede e conservadore del nome e memoria sua”. 4 No chamado tempo italiano, a primeira hora do dia era marcada pelo pôr do sol e pelo som do sino do Angelus. Assim, sendo o nascimento de Cellini no mês de novembro (outono no hemisfério norte), estimamos que o pôr do sol seria por volta das 18 horas segundo a nossa concepção de tempo, o que faria das quatro horas e meia do seu nascimento as nossas 22 horas e trinta minutos.

me dá sempre é querido, e, descoberto o pano, viu com seus olhos o inesperado filho homem. Juntou as velhas mãos e com elas assim alçou os olhos a Deus e disse: Senhor, te agradeço com todo o meu coração, isto é muito querido, seja bem-vindo (benvenuto). Todas as pessoas que estavam lá, gentilmente lhe perguntavam, que nome ele lhe poria, Giovanni não respondeu a eles, só dizia e seja ele bem-vindo, e resultado, esse nome (Benvenuto) me deram no Santo Batismo, e assim vou vivendo com a graça de Deus (CELLINI, 1901, p. 9-10, grifo nosso)5.

Segundo ele escreve na sua autobiografia, seus pais e parentes acreditavam na

chegada de uma nova menina, pois a mãe de Benvenuto tinha tido os mesmos desejos

que na gravidez anterior, quando nascera a primeira filha do casal, chamada Cosa – “e

por aqueles vícios que têm as mulheres grávidas [...], que se haviam manifestado como

aqueles do parto anterior [...] haviam determinado que devia ser uma menina como a

primeira” (CELLINI, 1901, p. 9)6; porém, foram surpreendidos com o que a parteira

chamou “um belo presente”, isto é, o esperado filho homem.

A preferência das famílias pelo filho homem fundamentava-se na perpetuação do

nome familiar e dos negócios da família. Por outra parte, as filhas mulheres podiam

significar um peso econômico na vida dos pais, que deviam se preocupar com poder

lhes brindar um dote quando chegassem à idade de casar. Além disso, uma vez

casadas, as filhas deixavam a casa paterna e assim a família, para produzir filhos para

a família do esposo (MUSACCHIO,1999).

Entretanto, o relato de Cellini sugere ainda outro detalhe importante sobre os

nascimentos da época, nos mostra que o parto se constituía uma divisão espacial de

gênero. Por um lado, a mãe e sua comitiva feminina no quarto; por outro, o pai,

5 “Avvenne che la partorì una notte di tutti e’santi, finito il dì d’ognisanti, a quattro ore e mezzo innel mille cinquecento aponto. Quella allevatrice, che sapeva che loro l’aspettavano femmina, pulito che l’ebbe la chreatura, involta in bellissimi panni bianchi, giunse cheta cheta a Giovanni mio padre, e disse: io vi porto un bel presente, qual voi non aspettavi. Mio padre, che era vero filosapho, stava passeggiando, e disse: quello que iDio mi dà, sempre m’è caro; e scoperto i panni, coll’occhio vidde lo inaspettato figliuolo mastio. Aggiunto insieme le vechie palme, con esse alzò gli ochi a Dio, e disse: Signore, io ti ringratio con tutto ’l quor mio; questo m’è molto caro, et sia il Benvenuto. Tutte quelle persone che erano quivi, lietamente lo domandavano, come e’ si gli aveva a por nome: Giovanni mai rispose loro altro, se nome e’ sia il Benvenuto; e risoltisi, tal nome mi diede il santo Battesimo, e così mi vo vivendo con la gratia di Dio”. 6 “et perché quei vitii che hanno le donne gravide [...], gli erano appunto come quegli del parto dinanzi [...], erano resoluti che la dovessi fare una femmina come la prima”.

expectante, acompanhado de parentes, amigos ou vizinhos, na sala da casa. Mas, isso

não acontecia unicamente em Florença, um camponês bolonhês dizia: “Eu ouvi dizer às

amas de leite e às mulheres que as crianças assim que saem do corpo da mãe gritam,

choram e se lhes sente a voz, e quando nossas mulheres têm parido em casa, nós

(pais), estando no pórtico, sentimos as crianças gritar e chorar” (1573, apud NICCOLI,

2006, p.467, grifo nosso)7.

Entre as famílias mais abastadas, essa separação do espaço feminino e

masculino mantinha-se por vários dias ou semanas após a mulher ter dado à luz. Isso,

porque as casas dessas famílias podiam contar com a infraestrutura que fazia possível

os espaços de gênero. Em seu tratado sobre arquitetura, Leon Battista Alberti sugeria

que os esposos tivessem quartos separados dentro da casa, para garantir maior

tranquilidade e sossego ao homem durante a gestação e o parto: “Que o marido e a

mulher tenham os quartos para dormir separados, não só para que a mulher no parto

ou quando está doente não seja molesta ao marido, mas para que no verão possam

dormir melhor” (1546, p. 113)8.

Embora as palavras de Alberti nos levem a pensar em esposos indiferentes, que

pouco se preocupavam pelas suas esposas, devemos considerar que, nas famílias de

mercadores, o quarto era o espaço mais ricamente decorado da casa, e por oferecer

certa privacidade com respeito aos outros cômodos, muitas vezes funcionava como o

lugar onde os homens tratavam assuntos políticos ou de negócios e onde guardavam

os documentos e o dinheiro da família. O quarto da esposa era o privado feminino,

onde elas podiam se retirar a rezar, a ler ou a cuidar de si próprias, e, durante a

gestação, o parto ou alguma doença, era o espaço do “grupo doméstico das mulheres:

preparação de bons pratos, de banhos quentes para reconfortar a parturiente, canções

para alegrá-la, etc.” (RONCIÈRE, 2004, p. 223).

7 “Io ho intiso dire alle balie et alli donne che le creature subito che escono dal corpo della madre gridano et piangono et si senti la voce, et quando la donne nostre hanno partorito in casa, noi stando sotto il portico havemo sentito le creature gridare e piangere”. 8“Habbia il marito e la moglie le stanze per il dormire divisi, non solo acciò che la moglie nel parto, o

altramente sconcia, nò sia al marito molesta, ma acciò che meglio neI’ està posino dormire”.

Contudo, a despeito dessa divisão espacial de gênero, o homem vivia de perto o

parto da esposa. Vemos que tanto no nascimento de Bellini, como no relato do

camponês de Bolonha, os pais aguardavam do outro lado da porta o nascimento dos

filhos, esperando as novidades que as mulheres que acompanhavam o parto podiam

lhes trazer. Segundo contaram ao próprio Bellini, o pai esperava na sala, andando de

um lado para o outro, o que sugere que era um momento vivido com ansiedade e

preocupação pelos homens. Ainda, como explica Louis Haas:

Ele não era apenas um expectador inativo; ele estava desempenhando uma função. Ele procurava ajuda divina para o nascimento: para os florentinos pré-modernos a oração em tempos de perigo era essencial e útil. Também, sentado do lado de fora ele podia representar à família frente aos visitantes, parentes e amigos (1998, p. 41)9.

Se os pais não podiam estar presentes, por motivos de negócios ou políticos,

eles recebiam notícias por parte da família. Quando a esposa de Filippo Strozzi,

Fiammetta, deu à luz ao segundo filho, em 1469, foi a mãe de Filippo, dona Alessandra

Strozzi, quem contou as novidades ao filho:

Dizes que não me pedes para cuidar da Fiammetta porque sabes que não é necessário; e é verdade, pois faço por ela mais do que farei pelas minhas filhas. E assim cuidamos do Alfonso, quanto é possível: é um menino perigoso. [...] A Fiammetta teve uma menina, e deu à luz bem; e até hoje está sadia; está melhor do que esteve com Alfonso. [...] e ela é uma bela menina, parece com a Fiammetta; é branca como ela e tem as feições do rosto como ela: e é mais gorda do que foi o Alfonso” (1877, p. 590-591)10.

9 “He was not just an idle bystander; he was also performing a function. He sought divine aid for the birth: for premodern Florentines prayer in times of peril was essential and helpful. Also by sitting outside he could represent the family to other visitors, both kin and friends”. 10 “Di’ che non mi raccomandi la Fiammetta, perchè sai non bisogna: e cosÌ è il vero; chè fo inverso di lei più che non farei a uma delle mie figliuole. E cosÌ si fa guardia d’Alfonso, quant’è possibile: è un pericoloso fanciullo. [...] La Fiammetta fece la fanciulla, e partorì bene; ed è per ensino a questo dì sana; e sta meglio che non fe in Alfonso. [...] è una bella fanciulla, e somiglia la Fiammeta; bianca come lei, e così di fattezze è tutta lei: ed è più grossa che non fu Alfonso”.

Ainda, os esposos acompanhavam de perto o crescimento da criança no ventre

materno. O mercador Giovanni Morelli lembra em seus Ricordi como viveu a gravidez

de um de seus filhos: “Logo, teus movimentos no ventre da mãe, que diligentemente

pude sentir com a minha mão, esperando com grande desejo o teu nascimento” (1718,

p. 350)11. O relato de Morelli deixa perceber a cumplicidade entre os esposos, que

dividem a alegria dos primeiros sinais de vida do filho no ventre materno. Sentir o filho

se mexendo dentro da mãe e a alegria com que ele lembra esse momento, nos faz

pensar em um casal que dividia os momentos da gravidez e esperava com ansiedade a

chegada da criança.

Essa sensibilidade que vemos em Morelli com a esposa era exaltada também

por religiosos e humanistas. O monge dominicano Bernardino de Siena dizia aos

florentinos: “se ela está grávida ou dando à luz, ajuda-la naquilo que tu puderes, porque

aquele é o teu filho” (1884, p. 117)12. O próprio Alberti recomendava:

A mulher, então, assim que sentir que está grávida, faça vida especial, agradável e casta, alimentação leve e bem nutritiva; não realize tarefas pesadas, não adormeça; não caia no ócio e na solidão, dê à luz na casa do marido e não em outro lugar; produzido o parto, não se exponha ao frio nem ao vento antes que a firmeza de todos seus membros esteja bem recuperada (1972, p. 142)13.

Nesse particular, podemos dizer que os homens ajudavam cuidando do conforto

das suas esposas durante a gravidez, no momento do parto e logo após o nascimento

da criança. Na Florença da época, como já vimos, o momento do parto era um assunto

de mulheres, mas o homem contribuía tomando os cuidados necessários para que a

esposa fosse bem atendida nessa hora.

11 “Appresso i movimenti tuoi nel ventre della madre, da me diligentemente sotto la mano considerato, aspettando con sommo deliderio la tua natività”. 12 “Se ella è gravida o in parto, aiutala in quello que tu puoi, perocchè quello è tuo figliulo”. 13 “La donna adunque, quale sentirà sé gravida, usi vita scelta, lieta e casta, vivande leggieri e di buon nutrimento; non duri superchie fatiche, non s’adormenti, non impigrischi in ozio e solitudine, partorisca in casa del marito e non altrove; produtto el parto, non esca a’ freddi, né a’ venti, se prima in lei ogni fermezza di tutti i membri suo’ non sono bene rassettati”.

Um aspecto importante para as famílias era a preparação do parto. Nas

despesas registradas pelos esposos vemos a compra de objetos especiais para as

mulheres: lençóis, almofadas e roupas de dormir. Pensando no conforto delas no

período de recuperação pós-parto – que, dependendo da dificuldade do mesmo, podia

durar dias ou semanas – eles encomendavam almofadas de tafetá para deixa-las

confortáveis na cama e lençóis bordados e camisolas de seda, chamadas guardacuora,

para que se sentissem não só agasalhadas pela sua maternidade, mas belas quando

recebessem as visitas de parentas e amigas. Nesse último sentido, o investimento era

pensado também como uma forma de ostentação da riqueza familiar (MUSACCHIO,

1999).

Mas, além das roupas, os inventários de patrimônio de alguns mercadores, como

o de Francesco Inghirammi (apud MUSACCHIO, 1999), mostram a existência de outros

objetos específicos de gênero: a cadeira do parto (seggiola da parto), que indica que

algumas mulheres davam à luz sentadas, um fato que algumas imagens em cerâmicas

do século XVI confirmam; o desco da parto, uma espécie de bandeja de madeira

redonda utilizada para servir os alimentos à nova mãe – presente especial do esposo,

decorado com imagens relativas à maternidade ou com os escudos de armas das

famílias; e os amuletos do parto, objetos de coral ou imã, que, segundo o tratado de

medicina para mulheres de Giovanni Marinelli, tinham a “virtude de aliviar o parto”

(1574, p. 269)14.

Um aspecto fundamental para as futuras mães era contar com profissionais

experientes na tarefa de trazer crianças ao mundo. Nesse sentido, a mulher tinha o

apoio de mulheres contratadas especialmente para confortá-la e ajuda-la no processo

de dar à luz; além, é claro, das mulheres da família. Em 1473, o notário florentino Ser

Girolamo da Colle registrou em seus Ricordi o parto da sua esposa Caterina:

Lembro que no dia 19, por volta das 23 horas, pela graça de Deus e da Beata Virgem Maria [...] nasce, da minha mulher Caterina, um filho homem, com todos os seus membros e bem proporcionado, Deus seja

14 “virtù di alleggerire il parto”.

louvado. E a Caterina e o menino estão bem. Foi trazido ao mundo por Monna Matthea, que mora na casa do tanoeiro de Sancto Lorenzo [...] e Monna Lena, a minha sogra. [...] pelo seu esforço, porque esteve até as 22 horas, por durar muito o seu trabalho, um florim largo, isto é, 5 liras e 10 soldi [...] (apud MUSACCHIO, 1999, p. 36)15.

Assim como Ser Girolamo, Carlo di Messer Palla Strozzi também pagou a uma

Monna Antonia por ajudar a sua esposa Lucrezia no parto (MUSACCHIO, 1999, p. 184,

n. 10). Essas mulheres eram chamadas de levatrice, parteiras, e, além de ajudar às

mulheres na tarefa de dar à luz, elas se encarregavam de brindar os primeiros cuidados

ao recém-nascido, como sugere o relato de Bellini citado anteriormente: “Aquela

parteira, que sabia que todos esperavam uma menina, assim que limpou o neném e o

envolveu em belíssimos panos brancos, aproximou-se muito, muito suavemente, a

Giovanni, meu pai, e disse: eu lhe trago um belo presente” (1901, p 9).

Outra figura importante contratada pelo esposo era a guardadonna, cuja função,

segundo sugerem os registros nos Ricordi dos esposos, era cuidar a esposa durante o

parto e nos dias que se seguiam ao nascimento. Para o nascimento do segundo filho,

Ser Girolamo chamou novamente a Monna Mathea para realizar o parto e pagou a

Monna Theodora por 18 dias de cuidados com sua esposa Caterina (MUSACCHIO,

1999). Ao igual que ele, Giovanni Morelli registrou em seus Ricordi: “monna Gemma

cuidava (guardava) da Caterina no parto” (1718, p.308)16. O papel da guardadonna era,

provavelmente, ajudar a mãe durante o parto, com a sua respiração, secando o suor da

sua testa, lhe dando apoio na hora de puxar, confortando-a enquanto sofria as dores do

parto e acalmando-a nos momentos difíceis; um papel relevante sobretudo em

trabalhos de parto extensos, naqueles que havia complicações – posição do feto,

sofrimento fetal, falta de dilatação, nascimento de gêmeos, hemorragias, etc. – e em

15 “Ricordo come a dÌ 19, a hore venti et tre quinti in circa,pr lo Iddio gratia e della Beata Vergine Maria [...] nacque della Caterina mia donna uno fanciullo maschio con tucte sue menbra et bene proportionato, Iddio Lodato. Et decta Caterina e el fantino stanno bene. Allevollo una Monna Mathea, sta a chasa dal bottaio di Sancto Lorenzo [...]et Monna Lena mia suocera. [...] per sua faticha perchè ci stette circa a hore 22 in circa per durarci molte sua faticha fiorino uno largho, cioè lire 5 soldi 10 [...]”. 16 “monna Gemma guardava la Caterina in parto”.

situações em que as mães tinham medo de perder o filho ou de morrer. Após o parto,

dependendo das circunstâncias, atendendo as necessidades e a saúde da mãe.

O medo do parto estava muito presente entre as mulheres florentinas. Em 1478,

Agnolo Poliziano, que cuidava da família de Lorenzo de Medici em Pistoia, lhe

informava por carta as novidades da sua esposa, Clarice Orsini, que estava apreensiva

com a gravidez, temerosa de sofrer complicações como havia sofrido a sua parenta

Francesca Tornabuoni, que morreu durante o parto: “Dona Clarice se sente um pouco

abatida desde ontem. Ela escreveu a dona Lucrezia que espera não abortar, ou não ter

o mal que teve a mulher de Giovanni Tornabuoni” (1867, p. 62)17.

Quando olhamos para as pinturas renascentistas que representam o nascimento

da Virgem Maria ou de São João Batista, vemos a figura da mãe, que geralmente

aparece deitada na cama, se repondo do trabalho do parto, rodeada de várias figuras

femininas que cuidam dela e da criança, como na pintura abaixo, de Domenico

Ghirlandaio.

17 “Madonna Clarice s’è sentita da iersera in qua un poco chioccia. Scrive lei a madonna Lucrezia, che dubita di non si sconciare, o di non avere il male che ebbe la donna di Giovanni Tornabuoni”.

GHIRLANDAIO, Domenico. O nascimento de São João Batista, 1486-1490. Afresco.

Cappella Tornabuoni, Igreja Santa Maria Novella, Florença.

Além da parteira e da guardadonna que já mencionamos, Caterina, a esposa de

Ser Girolamo, teve o apoio da sua mãe, que seguramente a confortou, não só com o

seu carinho, mas com a sua própria experiência do momento do parto. Além da mãe,

uma vez que as esposas florentinas costumavam morar na casa da família do esposo,

as sogras, cunhadas, parentas ou serviçais também podiam ajudar quando fossem

necessárias.

Nas pinturas, aparece também representada a ama-de-leite. O serviço destas

mulheres era muito popular; as razões dessa popularidade diziam respeito a questões

de saúde e fertilidade da mulher. Primeiramente, buscava-se preservar a saúde da

mãe, que, muitas vezes, após um parto difícil, ficava debilitada ou doente por vários

dias ou semanas. Muitos florentinos eram a favor do aleitamento materno, mas, sempre

que não prejudicasse o estado físico da mãe. O mercador Giovanni Rucellai dizia: “que

a própria mãe o amamente quando não houver perigo ou agressão ao corpo da mãe; e

se não der, escolha um ama-de-leite jovem, sadia e alegre” (1960, p. 13)18. Porém,

mesmo sendo a favor, os casos de amamentação materna entre as famílias mais

abastadas eram poucos. Outro motivo importante era a fertilidade. Leon Battista Alberti

escrevia se referindo à mãe: “esses doutores afirmam que dar o leite a debilita e a

torna, às vezes, estéril” (1972, p. 44)19. Segundo se acreditava, o aleitamento materno,

pelos seus efeitos contraceptivos, mesmo que limitados, prejudicava o desejo de uma

prole abundante das famílias da alta sociedade.

Finalizando o nosso tema das práticas, objetos e espaços de gênero nos partos

florentinos do Quattrocento, temos ainda que nos referir às visitas que a nova mãe

recebia, mulheres da comunidade, parentas, vizinhas ou amigas, que chegavam para

lhe fazer companhia, conhecer a criança e traze-lhe presentes para comemorar a sua

maternidade. Giovanni Rucellai (1960) registrou em seus Ricordi que, a sua nora,

Nannina de Medici, recebeu após o nascimento do filho Cosimo, em 1468, várias peças

de tecidos finos e taças de prata cheias de morselletti e pinnocchiati, doces típicos de

amêndoas.

Essas visitas e esses presentes, assim como todo o cenário criado para o

momento do parto, com seus objetos e personagens, reforçavam os papéis de gênero

na sociedade, eram momentos de sociabilidade feminina que definiam e reproduziam o

lugar e o papel da mulher; “a maternidade, assumida coletivamente, era o fundamento

da identidade feminina, tanto no plano social como no individual” (KNIBIEHLER, 2000,

p. 37).

Fontes

ALBERTI, Leon Battista. I dieci libri de l´architettura. Veneza: Apresso Vincenzo

Vaugris, 1546.

18 “che la própria madre l’allatti quando fusse senza pericolo et sanza offensione della persona della madre; et se non è, togliete balia giovane, sana e lieta”. 19 “questi medici appongano che dare el latte le indebolisce e falle tallora sterile”.

___. I libri della Famiglia. Torino: Einaudi, 1972.

CELLINI, Benvenuto. Vita di Benvenuto Cellini. Florença: Sansoni, 1901.

DATI, Goro. I libri di famiglia e il libro segreto di Goro Dati. (Org. Leonida Pandimiglio).

Alessandria: Edizione dell´orso, 2006.

MARINELLI, Giovanni. Le medicine pertinenti alle infermità delle donne. Veneza:

Valgrisi, 1574.

MORELLI, Giovanni. Cronica. In: MALESPINA, Ricordano. Istoria Fiorentina. Florença:

S.A.R., 1718.

PALMIERI, Matteo. Vita Civile. Florença: Sansoni, 1982.

POLIZIANO, Agnolo. Prose volgari inedite. Florença: Barbera, 1867.

RUCELLAI, Giovanni. Giovanni Rucellai ed il suo Zibaldone: “il Zibaldone quaresimale”.

Londres: Warburg Institute, 1960.

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Piazza del Campo l’anno MCCCCXXVII. Siena: Bianchi, 1884.

STROZZI, Alessandra Macinghi. Lettere di una gentildonna fiorentina del secolo XV ai

figliuoli esuli. (Ed. C. Guasti). Florença: Sansoni, 1877.

Bibliografia

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