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DANIELA F. DE FREITAS FERREIRA 2º CICLO DE ESTUDOS EM ARQUEOLOGIA MEMÓRIA COLETIVA E FORMAS REPRESENTATIVAS DO (ESPAÇO) RELIGIOSO. O contributo da epigrafia votiva para o entendimento das manifestações religiosas no contexto de ocupação romana da Beira Interior. 2012 Orientador: Professor Doutor Armando Coelho Ferreira da Silva Versão provisória.

Dissertacao Daniela de Freitas Ferreira

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  • DANIELA F. DE FREITAS FERREIRA

    2 CICLO DE ESTUDOS EM ARQUEOLOGIA

    MEMRIA COLETIVA E FORMAS

    REPRESENTATIVAS DO (ESPAO) RELIGIOSO.

    O contributo da epigrafia votiva para o entendimento das

    manifestaes religiosas no contexto de ocupao romana da

    Beira Interior.

    2012

    Orientador: Professor Doutor Armando Coelho Ferreira da Silva

    Verso provisria.

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    UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE LETRAS

    DANIELA FILIPA DE FREITAS FERREIRA

    2 CICLO DE ESTUDOS EM ARQUEOLOGIA

    MEMRIA COLETIVA E FORMAS

    REPRESENTATIVAS DO (ESPAO) RELIGIOSO.

    O contributo da epigrafia votiva para o entendimento das

    manifestaes religiosas no contexto de ocupao romana da

    Beira Interior.

    Dissertao apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto, para a obteno

    do grau de mestre em Arqueologia. Realizada sob a orientao cientfica do professor Doutor

    Armando Coelho Ferreira da Silva, presidente do Departamento de Cincias e Tcnicas do

    Patrimnio e diretor de curso de Doutoramento do 3 Ciclo em Museologia

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS E TCNICAS DO PATRIMNIO

    Porto

    2012

  • 3

    [] la religin est une chose minemment sociale. Les

    reprsentations religieuses sont des reprsentations

    collectives qui expriment des ralits collectives; les rites

    sont des manires dagir qui ne prennent naissance quau

    sein des groupes assembls et qui sont destins susciter,

    entretenir ou refaire certains tats mentaux de ces

    groupes. Mais alors, si les catgories sont dorigine

    religieuse, elles doivent participer de la nature commune

    tous les faits religieux: elles doivent tre, elles aussi, des

    choses sociales, des produits de la pense collective.

    (. Durkheim 1925)

    O sabor que nos fica de continuidade pacfica. Vieram

    colonos. Trouxeram deuses, trouxeram nomes, trouxeram

    arte, poesia vinha tambm na bagagem. Aqui estavam

    deuses, habitantes de santurios e penedias; as gentes

    usavam nomes antigos, estranhos mas foneticamente

    identificveis. E o casamento deu-se. As famlias

    cresceram. As villae tambm. Os deuses foram honrados.

    Os mausolus fizeram-se. Ritual de morte, ritual de vida.

    Indgenas e colonos lavraram perenemente na pedra o

    sinal duma coexistncia exemplar.

    (J. dEncarnao 1989: 319)

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    O meu sincero agradecimento constitui um preito de justia e de homenagem sentida a

    todos os que me acolheram, guiaram e apoiaram, permitindo a concretizao da presente

    dissertao e a minha realizao pessoal.

    Cumpre-me distinguir, em primeiro lugar, o contributo de todos os museus,

    organizaes locais e demais instituies culturais que possibilitaram a investigao e o estudo

    dos monumentos epigrficos revelando uma imediata disponibilidade e um notvel esprito de

    cooperao cientfica. A sua importncia assume, no caso presente, uma valia to significativa

    que, sem eles, teria sido impraticvel chegar a qualquer resultado digno de meno. Por

    conseguinte, destacamos a colaborao do Museu Regional da Guarda, na pessoa da Dra.

    Dulce Helena Pires Borges, o contributo do Museu Arqueolgico Municipal Jos Monteiro, do

    Museu Municipal de Penamacor, do Grupo de Estudos e Defesa do Patrimnio Cultural e

    Natural da Gardunha, e, por ltimo, do Museu Etnogrfico Egitaniense. As referidas

    instituies disponibilizaram o acesso s suas colees epigrficas assim como o registo

    fotogrfico dos monumentos mencionados no presente estudo. Sublinho igualmente a

    colaborao do Museu Tavares Proena Jnior na pessoa da Doutora Aida Rechena pela

    recetividade demonstrada na visita s reservas e estudos das suas epgrafes. Por ltimo,

    acentuo a colaborao do Museu Municipal do Sabugal, na pessoa da Dra. Carla Augusto,

    expressa na cedncia de informao relativa aos monumentos, na cedncia de fotografias dos

    mesmos e na colaborao prestada. A todas as instituies, ficam aqui expressos os meus

    sinceros agradecimentos pela colaborao e pela amabilidade de me receber.

    Sublinho igualmente a cooperao do Instituto de Arqueologia da Universidade de

    Coimbra e do Departamento de Cincias e Tcnicas do Patrimnio da Universidade do Porto

    pelo apoio que sempre me disponibilizaram. Ressalvo ainda a colaborao da Casa do Castelo

    do Sabugal, na pessoa da D. Natlia Bispo, pela recetividade demonstrada no acesso ao

    monumento epigrfico que se encontra sua guarda. Acrescente-se o contributo do Dr. Marcos

    Osrio expresso na cedncia de imagens dos monumentos a seu cargo, na orientao prestada e

    na profunda recetividade demonstrada.

    Por ltimo, desejo expressar o profundo reconhecimento pelo contributo do orientador

    cientfico da presente dissertao, Prof. Doutor Armando Coelho Ferreira da Silva, pelos

    fecundos ensinamentos e princpios de integridade cientfica que sempre me soube transmitir

    desde os primeiros momentos, e pela disponibilidade demonstrada na partilha da sua larga

    experincia como notvel investigador.

  • 5

    RESUMO

    O entendimento das manifestaes religiosas assume-se como uma

    das ticas de estudo mais relevantes na abordagem das dinmicas inerentes

    ao processo de aculturao verificado entre indgenas e romanos em

    territrio nacional. A fonte primordial para este entendimento cabe

    epigrafia votiva, compreendida como provedora de nomes divinos, de rituais

    de culto, de modelos de dedicantes e de frmulas organizativas de

    pensamento.

    A Beira Interior portuguesa, detentora de um avultado nmero de

    testemunhos epigrficos e depositria de uma notvel diversidade de

    tenimos de leitura segura e de meno exclusiva na regio, afigura-se como

    um espao mpar para o estudo das expresses religiosas indgenas e, por

    conseguinte, para o estudo das comunidades pr-romanas. Tomando em

    considerao esta singularidade, e partindo da anlise conjunta do somatrio

    de monumentos votivos consagrados a divindades indgenas; formulamos

    uma proposta de ordenao do panteo religioso pr-romano baseado no

    grau de exclusividade dos tenimos registados, relativamente regio em

    estudo. A finalidade ltima compreendeu a verificao de regionalismos

    religiosos e o entendimento das relaes que se estabelecem entre as

    diferentes divindades, organizando-se, por conseguinte, a aparente desordem

    subsequente de uma to marcada diversidade teonmica.

    O resultado desta interpretao expressou-se na individualizao de

    tenimos de meno exclusiva da Beira Interior portuguesa, na

    particularizao de tenimos regionais que atestam a possibilidade de um

    panteo votivo alargado s regies adjacentes, e na distino destas

    especificaes relativamente aos tenimos de mbito geogrfico alargado,

    i.e., em relao s designaes divinas amplamente representadas no

    restante territrio hispnico. A proposta organizativa apresentada permitiu

    percecionar mbitos geogrficos especficos de cada um destes grupos;

    contribuindo assim para a definio do campo de ao de cada uma das

    divindades evocadas e para a consequente definio dos seus atributos.

    ***

    Palavras-Chave: Religio; epigrafia; aculturao; indgena; panteo.

  • 6

    ABSTRACT

    The understanding of religious manifestations is assumed as one of

    the most relevant studies in the dynamics inherent to the process of

    acculturation occurred between indigenous and Romans in the Portuguese

    territory. The primary source for this view lies with the votive epigraphy,

    understood as a provider of divine names, rituals of worship, models of

    worshiping and forms of thought organization.

    The Portuguese Beira Interior, possessor a large number of epigraphic

    testimonies and repository of a remarkable diversity of theonyms and unique

    words in the region, appears as a singular area for the study of indigenous

    religious expressions and, consequently, for the study of pre-Roman

    communities. Taking into account this singularity, and based on the joint

    analysis of the sum of votive monuments dedicated to indigenous deities; we

    have formulated a proposal of organization of the pre-Roman religious

    pantheon based on the degree of exclusivity from the theonyms recorded in

    the region under study. The ultimate goal focused the understanding of

    regionalism and religious thought established between the different deities,

    and the organization, in consequence, of the apparent disorder subsequent to

    such a marked diversity of theonyms.

    The result of this interpretation has expressed in the individualization of

    theonyms only mentioning in Beira Interior, in the particularization of

    regional theonyms which confirm to the possibility of a votive pantheon

    extended to adjacent regions, and in the distinction of these specifications in

    relation to a wider geographical scope of theonyms, i.e., in relation to the

    designations of the divine, widely represented in the rest of Hispanic

    territory. The proposed organization allowed us to perceive specific

    geographical areas of each of these groups, thus contributing to the

    definition of the fields of action of each evoked deities and the consequent

    definition of their attributes.

    ***

    Keywords: Religion; epigraphy; acculturation; indigenous; pantheon.

  • 7

    NDICE

    NOTA INTRODUTRIA

    PARTE I. Enquadramento

    CAPTULO I. Definio e natureza dos conceitos utilizados.

    Problematizao dos conceitos e aplicabilidade ao contexto estudado.

    1.1. O conceito ocidental de religio como uma noo culturalmente

    determinada. Projeo da mentalidade religiosa moderna na

    interpretao da organizao religiosa indgena e romana.

    1.2. Conceito de Panteo aplicado s expresses religiosas pr-romanas.

    1.3. Esclarecimento e problematizao dos conceitos de romanizao;

    etnia e indgena.

    CAPTULO II. Resenha histrica dos estudos alusivos epigrafia votiva da

    Beira Interior portuguesa.

    CAPTULO III. Contextualizao. Delimitao e caracterizao

    geogrfica. Introduo sucinta ao processo de aculturao dos cultos

    indgenas.

    PARTE II. Interpretao e concluses.

    CAPTULO IV. Anlise epigrfica. Interpretao individual dos tenimos

    registados na Beira Interior portuguesa.

    1.1. Tenimos exclusivos da Beira Interior portuguesa (grupo I).

    1.1.1. Inscries consagradas a Aelua.

    1.1.2. Inscries consagradas a Aetio.

    1.1.3. Inscries consagradas a Aratibro.

    1.1.4. Inscries consagradas a Asdia.

    1.1.5. Inscries consagradas a Collovesei Caieloni Cosigo.

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  • 8

    1.1.6. Inscries consagradas a Corua.

    1.1.7. Inscries consagradas a Iccona Loimina.

    1.1.8. Inscries consagradas a Igaedo.

    1.1.9. Inscries consagradas a Laepo.

    1.1.10. Inscries consagradas a Oipaengia.

    1.1.11. Inscries consagradas a Trebopala.

    1.2. Tenimos regionais (grupo II).

    1.2.1. Inscries consagradas a Arentio.

    1.2.2. Inscries consagradas a Erbina.

    1.2.3. Inscries consagradas a Laneana.

    1.2.4. Inscries consagradas a Quangeio.

    1.2.5. Inscries consagradas a Trebaruna.

    1.3. Tenimos de mbito geral (grupo III).

    1.3.1. Inscries consagradas a Ama Aracelene.

    1.3.2. Inscries consagradas a Bandi.

    1.3.3. Inscries consagradas a Munidi.

    1.3.4. Inscries consagradas a Nabia.

    1.3.5. Inscries consagradas a Reve.

    1.4. Tenimos Indefinidos

    CAPTULO V. Concluses. Anlise global do panteo religioso da Beira

    Interior.

    PARTE III. Bibliografia

    1. ndice de siglas e smbolos

    2. Bibliografia geral

    PARTE III. Anexos

    1. ANEXO I. Inventrio dos monumentos epigrficos votivos da Beira

    Interior portuguesa.

    2. ANEXO II. Mapas de localizao e cartografia (suporte digital).

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  • 9

    MEMRIA COLETIVA E FORMAS REPRESENTATIVAS DO (ESPAO) RELIGIOSO)

    O contributo da epigrafia votiva para o entendimento das

    manifestaes religiosas no contexto de ocupao romana na

    regio da Beira Interior portuguesa.

    NOTA INTRODUTRIA

    s estudos epigrficos proporcionam indcios essenciais compreenso dos

    processos de aculturao verificados entre indgenas e romanos no territrio

    correspondente Beira Interior portuguesa, revelando-nos o resultado do

    confronto dos diferentes universos culturais e o efeito que a influncia de um e outro

    representaram no cmputo geral do entendimento dos fenmenos religiosos e da conceo e

    organizao do seu panteo votivo. Considerando a importncia deste processo de adaptao

    mtua e as carncias no conhecimento da realidade que lhe era prvia (relativamente s

    manifestaes religiosas indgenas), procuramos, atravs do presente estudo, reunir os

    conhecimentos essenciais sobre epigrafia votiva procedente da Beira Interior e, atravs deles,

    traar o panorama religioso da proto-histria e aculturao da regio. Neste sentido,

    procuramos compilar o conhecimento total dos abundantes testemunhos epigrficos atribudos

    rea em apreo e o cotejo dos dados arqueolgicos disponveis relativos aos contextos de

    provenincia dos monumentos votivos, nele incluindo, sempre que possvel, avaliaes crticas

    dos dados com vista ao lanamento de novas hipteses que possam dinamizar a investigao1.

    A finalidade ltima passa pela adoo de uma perspetiva interpretativa dos fundamentos da

    religiosidade pr-romana considerando, para tal, a relevncia da anlise das repercusses da

    religio na organizao das sociedades, i.e., aquilo que Max Weber designa de efeitos

    prticos das religies2.

    Efetivamente, as determinaes religiosas exercem um importante papel enquanto

    reguladores da vida e da conduta quotidiana dos indivduos. Este aspeto particularmente

    pertinente se nos referirmos ao mbito sociocultural do mundo clssico, com o qual a regio

    em estudo toma contato pelo processo tradicionalmente designado de romanizao, e se

    atendermos ao papel do sagrado enquanto sistema de regulamentao da vida neste particular

    1Este objetivo pressupe o entendimento do monumento epigrfico como produto de uma escolha consciente

    e intencional de ideias, expressas nas palavras gravadas; e de formas estticas concebidas para serem

    transmitidas. Tomando em considerao esta premissa, atravs da anlise da grafia, da componente

    gramatical e lexical dos vocbulos, do formulrio votivo e da antroponmia, -nos possvel, sob algumas

    limitaes, e considerando a especificidade de cada monumento, estabelecer cronologias aproximadas,

    inquirir sobre nveis de aculturao, e determinar correspondncias etimolgicas que permitem, por sua vez,

    determinar possveis significados e contedos. 2 Weber 2006.

    O

  • 10

    contexto3. De fato, as determinaes ou servides religiosas apresentam-se como um dos mais

    relevantes e interessantes fomentadores da ao dos indivduos e a forma como estas incitam

    ou desmotivam determinados comportamentos , pois, um elemento fundamental para abordar

    a religio a partir do seu interior (e no apenas nos seus contextos polticos, econmicos, etc.)

    assim como para a compreenso da sua funo cultural.4

    Para tal, recorremos elaborao de um inventrio epigrfico dos testemunhos votivos

    da regio, atravs da recolha e compilao dos estudos atribudos aos diferentes autores que se

    dedicaram anlise de cada um dos monumentos, procedendo sua organizao rigorosa, a

    retificaes de leitura e incluso de informaes que consideramos pertinentes para a

    compreenso das epgrafes5. Excluram-se do inventrio todos os monumentos para os quais

    no se atribuem leituras fiveis, elemento fundamental para lanar hipteses interpretativas

    com bases slidas 6 . As retificaes levadas a cabo resultaram da visualizao direta (e

    3 [O panteo religioso] () no seria a mera soma dos deuses, mas uma totalidade organizada que, para os indgenas, explicava o mundo e a sociedade, ao mesmo tempo que pretendia reg-los. Alarco 2009. 4 O interesse do estudo de componentes da religio indgena ou romana no exclusivamente histrico ou

    arqueolgico! Os conhecimentos obtidos atravs do estudo da epigrafia votiva, e, em consequncia, os

    conhecimentos obtidos sobre determinados parmetros da histria, morfologia ou ainda da fenomenologia da

    religio romana, no nos falam apenas de um passado morto h muito, como tambm desenvolvem

    problemticas existenciais fundamentais e diretamente relevantes para o Homem contemporneo. Diz-nos

    Mircea Eliade (1969: 11-17): do esforo hermenutico de decifrar o sentido dos mitos, smbolos e outras estruturas religiosas tradicionais [s quais acrescento a epigrafia votiva] resulta um considervel

    enriquecimento da conscincia: em certo sentido pode falar-se at da transformao interior do

    investigador. Sobre esta temtica refere ainda o autor() atravs de uma compreenso de tais situaes exticas [entenda-se: atravs do estudo das manifestaes religiosas concebidas como espelhos de realidades sociais] () que o provincianismo cultural transcendido. Mas h mais implicaes do que um alargamento do horizonte, um aumento esttico, quantitativo, do nosso conhecimento do homem. o

    encontro com os outros - com seres humanos pertencentes a vrios tipos de sociedades arcaicas e exticas

    que culturalmente estimulante e frtil. Promovendo assim a experincia criativa atravs do contato com aquilo que no nos familiar. Efetivamente, numa poca em que se discute o interesse da arqueologia

    enquanto atividade profissional, como forma de conhecimento vivel num mundo cada vez mais pautado por

    interesses economicistas imediatos, o esclarecimento dos propsitos e do contributo dos estudos

    arqueolgicos deve ser, desde logo, considerado e explanado. Simultaneamente, nenhuma dissertao deve

    ser elaborada sem que se estabelea, de antemo, o seu objetivo geral, o seu contributo para o conhecimento,

    nem os princpios pelos quais se rege. As sucintas consideraes tecidas permitem anunciar esse contributo e,

    nesse sentido, demonstrar a necessidade de uma reflexo sobre a forma como se encara o estudo da epigrafia

    votiva, e, de uma maneira geral, sobre a forma como se encara o estudo de aspetos que dizem respeito aos contextos religiosos. De fato, [os] estudiosos limitam-se a analisar dados religiosos e esquecem-se, por vezes, de estudar o seu significado. Ora, esses dados representam a expresso de vrias experincias

    religiosas, em ltima anlise, representam posies e situaes assumidas pelos homens no decurso da

    histria. Quer queiramos quer no, o estudioso no terminou o seu trabalho aps ter reconstitudo a histria

    de uma forma religiosa ou apresentado os seus contextos sociolgicos, econmicos ou polticos. Alm disso,

    tem de compreender o seu sentido-isto , identificar e elucidar as situaes e posies que originaram ou

    tornaram possvel o seu aparecimento ou o seu triunfo num momento histrico particular. Ibid.: 16-17. 5 Vide anexo I. A explanao da metodologia sob a qual se baseou a elaborao do inventrio, assim como

    aspectos da sua organizao e contedos sero apresentados no incio do referido anexo. 6 Os monumentos excludos, apesar de no constarem do inventrio (anexo I), sero referidos ao longo do

    corpo textual do presente estudo sempre que se justifique a sua meno, apresentando-se a sua leitura e informaes que consideramos pertinentes.

  • 11

    decalque sempre que possvel) dos monumentos votivos7, compondo-se o referido inventrio

    de informaes relativas provenincia e paradeiro das epgrafes, da anlise e caracterizao

    do suporte onde se inscreve o voto e da meno pormenorizada do local de achado e respetivo

    contexto arqueolgico 8 . Acrescente-se igualmente a incluso de informaes de mbito

    paleogrfico, da transcrio, leitura e traduo da inscrio, da meno dos principais autores

    consultados que fazem aluso a cada uma das epgrafes referidas, e, por ltimo, da

    interpretao pessoal do monumento e inscrio, e da compilao das consideraes mais

    relevantes dos principais estudos que recaem sobre cada uma das peas votivas9.

    Simultaneamente, procedeu-se criao de uma base cartogrfica informatizada

    referente aos locais de provenincia dos monumentos analisados no inventrio epigrfico,

    possibilitando, de forma facilitada, o estabelecimento de possveis relaes geogrficas entre as

    diferentes inscries atravs da visualizao, de forma isolada ou em conjunto, dos diferentes

    tenimos e eptetos atestados epigraficamente. Sublinhe-se, no entanto, as limitaes

    resultantes do desconhecimento dos locais exatos de provenincia e, considere-se igualmente,

    que os locais referidos no traduzem, na generalidade dos casos, um contexto arqueolgico

    original, mas antes contextos de reutilizao. Em consequncia, a informao que resulta da

    anlise da distribuio geogrfica das epgrafes deve ser entendida sob grandes reservas,

    utilizando-se somente, no presente estudo, como elemento auxiliar de confirmao do mbito

    geogrfico de um dado tenimo10. A meno da provenincia, sempre que a mesma no seja

    exata, ser remetida para o lugar, freguesia ou concelho conhecido de procedncia do

    monumento.

    7 Sublinhe-se, no entanto, a impossibilidade de acesso e estudo direto dos monumentos: EB.AL1; EB.C1;

    EB.CR1; EB.I1; EB.O2; EB.AS1; EB:AS2; RA.A5; RA.E1; RA.E2; RA.Q1; RA.L1; AG.AM1; AG.B1;

    AG.B4; AG.B9; AG.B12; AG.B14; AG.B15; AG.B16; AG.B17; AG.N2; AG.M1 e AG.R7. 8 [] apenas num adequado conhecimento do contexto arqueolgico [], poder oferecer-nos as chaves mnimas para termos acesso s caractersticas funcionais dos deuses da antiga Lusitnia[]. Trata-se de uma via de trabalho interdisciplinar necessria para superar ou corrigir o simples recurso comparao,

    sobre as movedias bases da etimologia () Marco Simn 2002: 17-19. 9 Note-se que os tenimos conhecidos atravs dos monumentos votivos se apresentam, regra geral, em dativo.

    Contudo, ao longo do trabalho, e com destaque particular para o inventrio epigrfico, procuraremos

    reconstitui-los em nominativo, excetuando os casos em que os tenimos suscitem demasiadas dvidas,

    preferindo-se, nessas circunstncias, apresentar as vrias formas adotadas pelos diversos investigadores que a

    eles se referem, ou, a forma do nome tal como ele se apresenta na inscrio. As excees sero devidamente

    explanadas ao longo do presente estudo. 10 Relembre-se que, quando nos referimos interpretao da realidade indgena, o estudo parte de

    monumentos votivos realizados durante o perodo de ocupao romana, o que poder representar mbitos de

    culto distintos das suas reas originais. Relembre-se igualmente o entendimento da religio como um

    fenmeno mutvel. A identificao dos lugares de culto (atravs da anlise do contexto de achado) poder,

    no entanto, e ainda que de forma indireta, conceber-se como um importante elemento para o esclarecimento dos atributos das deidades cultuadas.

  • 12

    Partindo destes dois elementos (inventrio e cartografia), e da recolha e anlise dos

    principais estudos que, ao longo do tempo, tm sido levados a cabo sobre cada um dos

    tenimos, eptetos, e antropnimos, procedeu-se ao exame das designaes de deidades

    registadas na rea de anlise em apreo, elaborando-se, para cada monumento, uma sntese dos

    estudos que sobre eles recaem e uma anlise da sua expresso na regio especfica da Beira

    Interior portuguesa11. Entendeu-se igualmente a necessidade de incluir no presente estudo uma

    contextualizao geogrfica e histrica fundamental compreenso da anlise que ser

    desenvolvida, assim como um esclarecimento e uma reflexo inicial de alguns dos conceitos e

    problemticas mais relevantes no estudo de temticas to complexas como o so as expresses

    religiosas.

    Por ltimo, procederemos interpretao conjunta dos tenimos, sublinhando a sua

    relao com o mbito territorial, e sempre que possvel, com os grupos culturais conhecidos,

    concedendo, deste modo, uma paisagem ou um contexto social aos vislumbres possibilitados

    pela componente religiosa, i.e., concedendo uma viso cultural de conjunto das comunidades

    da Beira Interior durante o perodo de ocupao romana. No captulo final, procuramos

    igualmente estabelecer um perfil regional de culto de cada uma das divindades recorrendo,

    para tal, incluso de dados extra-hispnicos que permitem a sua caracterizao12 e destacando

    a sua representao especfica na Beira Interior portuguesa. A finalidade ltima traduz-se na

    procura de um esquema organizativo e interpretativo de todos os tenimos no seu conjunto,

    passvel de fornecer um esboo do panteo religioso da rea em estudo durante o perodo de

    ocupao romana, salientando-se exclusivamente, a componente religiosa indgena subsistente.

    Refira-se igualmente, como apontamento final da presente nota introdutria, que a

    seleo da Beira Interior portuguesa como objeto de estudo e a delimitao geogrfica proposta

    baseia-se na suposio da existncia de um conjunto de tenimos representados na regio que

    11 O que se pretende no passa pelo estudo exaustivo de cada um dos tenimos considerando que a grande extenso de tal anlise no permitiria desenvolver uma perspetiva aprofundada de todas as expresses de

    culto indgena da regio da Beira Interior. Pretende-se, ao invs, a focalizao na especificidade de cada um

    dos tenimos registados, e o estudo da sua organizao e estruturao conjunta. Excluiu-se igualmente do

    presente estudo, os testemunhos votivos consagrados a tenimos que testemunham formas de culto clssico e

    os testemunhos de assimilao das divindades indgenas nos cultos romanos (i.e., as divindades clssicas com

    eptetos indgenas). Apesar de sublinharmos a importncia de um estudo conjunto do panteo religioso da

    regio enquanto reflexo das influncias simultaneamente indgenas e romanas, consideramos que a

    profundidade necessria ao estudo exclusivo das divindades pr-romanas impossibilitaria tal abordagem,

    focando-nos, exclusivamente, no presente estudo, na singularidade das expresses de culto indgena durante

    o perodo de romanizao da Beira Interior. Sobre esta temtica destaque-se a abordagem integral sobre as

    deidades clssicas e indgenas da regio em estudo levada a cabo, em 2001, por Fernanda Cristina Repas. 12 Atravs da meno das diferentes interpretaes etimolgicas apresentadas.

  • 13

    no encontram expresso no restante territrio peninsular13, apresentando-se esta regio como

    um exemplo, e um panteo nico e distinto das regies que a delimitam.

    13 Aos quais atribumos a designao de exclusivos.

  • 14

    Definio e natureza do conceito utilizados.

    Introduo contextualizao histrica.

    A arbitrariedade da extenso do termo est na pretenso declarada ou tcita,

    de individualizar em outras realidades culturais os mesmos elementos distintivos

    que pertencem ao mundo ocidental cristo no qual a noo se formou.

    (A. Di Nola 1987: 107)

    1.1. O conceito ocidental de religio como uma noo culturalmente determinada. Projeo da mentalidade religiosa moderna na interpretao da organizao

    religiosa indgena e romana.

    O estudo da religio romana exerceu um profundo fascnio no mundo que se seguiu ao

    fim do imprio clssico e, em consequncia, variadssimas consideraes, perspetivas e

    reflexes sobre este tema foram levadas a cabo, elaborando-se uma vasta gama de obras que

    incidem sobre estas temticas. No que diz respeito particularidade dos estudos epigrficos

    afetos religio, os avanos feitos nesta rea focam-se na interpretao da significncia das

    inscries votivas e na identificao de tenimos e dinmicas ligadas aos atributos e funes

    das divindades consagradas, deixando de parte, na maioria dos casos, consideraes mais

    abrangentes sobre o entendimento da vertente religiosa do mundo indgena. A complexidade

    deste tema torna os esforos de reconstituio religiosa, ou at mesmo de reconstituio social

    e poltica, insuficientes. Por conseguinte, torna-se necessrio abordar esta componente sob

    variados pontos de vista e, sobretudo, refletir sobre a forma como at ento se tem olhado para

    estas questes. Torna-se necessrio levar em conta o contexto do investigador! Efetivamente,

    partindo da contemporaneidade que se debatem estes temas, e portanto, partindo de uma

    plataforma temporal distante do mundo e das concees do territrio nacional durante o

    perodo de ocupao romana. Paralelamente, esta contemporaneidade apresenta-se marcada

    por um contexto prprio e por preocupaes, objetivos e pensamentos diferentes dos perodos

    histricos que a antecederam. As diferentes concees e formas de ver o mundo impem

    distintos entendimentos de um mesmo conceito, assim sendo, naturalmente, a forma como a

    sociedade contempornea e a sociedade romana peninsular entendem o significado de religio

    difere (pois esto inseridas em distintos contextos). Apesar desta condio fundamental ao

    entendimento destas problemticas, os estudos que ao longo do tempo foram elaborados sobre

    a componente religiosa romana peninsular nem sempre tornaram clara esta premissa14.

    14A conscincia destes pressupostos e a necessidade de esclarecimento retm, atualmente, toda a minha ateno e sobre eles que me debruo no presente captulo que ter como objetivo no s a reflexo sobre a

    Captulo I

  • 15

    Efetivamente, todo o investigador encontra-se integrado num contexto prprio que lhe

    intrnseco. Esse contexto (constitudo pela sua cultura, mentalidade e concees) apresenta-se

    traumatizado pela evoluo natural dos tempos 15 , impossibilita-o de compreender, na sua

    totalidade, realidades que vo para alm da sua, uma vez que no lhe possvel desapossar-se

    por completo do seu contexto, e, simultaneamente, inteirar-se de uma realidade que lhe

    alheia. Por conseguinte, as suas concees conferem interpretao que o investigador leva a

    cabo, umas lentes previamente desfocadas pela cultura e mentalidade prpria da sua realidade.

    Quando falamos de religio estas questes destacam-se particularmente devido ao relevo que a

    mesma assumiu no cmputo geral da sociedade desde o perodo medieval ao mundo

    contemporneo. Torna-se ento particularmente difcil ao investigador abstrair-se do conceito

    moderno, ocidental e cristo de religio no estudo de outras realidades histricas e,

    efetivamente, uma abstraco total ser impraticvel, caso contrrio o investigador estaria

    despojado das concees que lhe permitem operar na sua prpria realidade. Importa ento reter

    duas questes fundamentais: se por um lado no se pode olhar a realidade do outro

    (pertencendo o outro ao passado histrico) e aplicar sobre ela as concees do nosso contexto,

    comparando e colocando no mesmo patamar sociedades diferentes16, sob pena de criar uma

    influncia da viso moderna, crist e ocidental sobre outras realidades religiosas, como tambm a procura de

    uma elucidao pessoal que contribua para a elaborao de uma dissertao de mestrado mais consciente e

    atenta s grandes problemticas que dizem respeito ao papel do historiador e arquelogo no estudo de temas

    to complexos como a religio. Para o desenvolvimento destas problemticas apresentou-se como fundamental o estudo de autores como Mircea Eliade, que, atravs das suas obras Origens (1969) e Aspectos do Mito (1963) me permitiu tomar contato com o percurso da histria das religies na sua constituio como cincia e, simultaneamente, me permitiu adquirir conscincia da relevncia cultural dos

    estudos sobre este tema. Destaca-se igualmente o estudo de autores como mile Durkheim (1925) que,

    baseando-se em exemplos da etnografia, estabelece a classificao dos ritos que preenchem a organizao

    social e aborda a relao entre sagrado e profano (aspecto fundamental para a compreenso da significncia e

    implicao destes trs termos: rito, sagrado e profano); e Alfonso Maria di Nola, que serve de ponto de

    partida para a problematizao do conceito de religio, mostrando que se trata de um termo historicamente

    datado. Destaco ainda a importncia da obra Sociologia das Religies e Consideraes Intermedirias de Max Weber (2006) que coloca o papel central do estudo das religies no indivduo em substituio da

    personalidade colectiva, servindo assim de contraponto a Durkheim, e possibilitando um estudo assente em diferentes perspetivas. Por ltimo nesta breve sntese de explanao das principais bases deste estudo, refiro R. A. Rappaport (2001) com a sua obra Ritual y Religion en la formatin de la humanidad e o seu contributo para a construo (ou desconstruo) da definio de religio; assim como Filomena Silvano

    (2010) e Maurice Halbwachs (1968) como bases fundamentais para as novas propostas de entendimento das

    dinmicas religiosas, privilegiando a ligao das concepes religiosas ao espao fsico e geogrfico. 15 O advento do cristianismo e a nova mentalidade que em consequncia se desenvolve, apresenta-se como

    um dos elementos mais importantes quando nos referimos a apreciaes sobre o conceito de religio. Do

    mesmo modo, o processo de industrializao que, via da regra, marca a Europa moderna, e as concees

    desenvolvidas com o capitalismo emergente, contribuem para a construo da sociedade contempornea e da

    forma como esta v a (sua) realidade e as que lhe antecederam, impondo pr-conceitos e pressupostos

    prprios s leituras que fazemos. 16 Julian Thomas, na sua obra Archaeology and Modernity desenvolve aprofundadamente esta temtica: () I have been making a case that modernity is a unique condition, which in some stands apart from other forms

  • 16

    reconstruo desse mesmo passado absolutamente ilusria. Por outro lado, devemos ter em

    mente, focando-nos na particularidade do conceito de religio e na sua transposio para

    outras culturas, que este termo possui uma histria longa se bem que culturalmente

    limitada17. Com efeito, o termo religio invoca um conjunto de preconceitos que pertencem

    ao mundo cultural europeu, ocidental e cristo na medida em que implica, partida, e de forma

    subentendida, a ntida separao entre fatos religiosos/ sagrados dos fatos laicos/ profanos (ao

    determinar a reverncia ao que sagrado); implicando igualmente uma estrutura ideolgica

    mtica e ritual organizada e regida por leis autnomas18, i.e., um conjunto de leis prprias,

    uma obedincia a determinados preconceitos religiosos, um conjunto de normas morais e uma

    ordem; aspectos que no se adequam ou aplicam realidade das sociedades peninsulares

    romanizadas. Verifica-se assim o uso indevido de um termo que se encontra, partida,

    corrompido por um quadro cultural muito prprio no se adequando s restantes realidades19.

    Como foi referido, o termo religio apresenta uma origem etimolgica e semntica

    marcadamente ocidental e moderna, mas, efetivamente, em que medida o conceito religio

    inapropriado para caracterizar o contexto romano ou, inclusivamente, indgena? Para explicar

    esta problemtica baseio-me em duas premissas fundamentais: falo concretamente da aparente

    inexistncia do termo religio, ou de outro seu anlogo, entre o vocabulrio clssico latino 20e,

    por outro lado, da inadequao do significado de religio realidade romana. Relativamente

    ao segundo aspecto evocado, importa, antes de mais, definir um dos aspectos principais e

    basilares do conceito moderno de religio: o facto de ele designar a experincia do sagrado21.

    of human existence, it would be quite wrong to imagine that all pr-modern and non-modern communities

    are broadly comparable with each other ()Thomas 2004: 239. 17 Eliade 1969: 9. 18 Nola 1987: 107. 19Segundo afirma Alfonso di Nola (1987: 107): A arbitrariedade da extenso do termo est na pretenso, declarada ou tcita, de individualizar em outras realidades culturais os mesmos elementos distintivos que

    pertencem ao mundo ocidental no qual a noo se formou. 20 No que diz respeito primeira premissa, torna-se necessrio referir as desenvolvidas consideraes de

    Dumzil (1966: 128) relativamente ao termo latino religio, presumivelmente o mais similar do actual conceito de religio. Afirma o autor que este termo no corresponde, na sua totalidade, ao conceito de

    religio moderno, antes parece, pelo contrrio, designar um aspecto diferente deste campo da vida romana: ao

    contrrio de religio que define, partida, a existncia de uma estrutura de aco implcita portanto o rito ou ritual -, religio no implica qualquer ato, designando somente a ligao que se estabelece entre o Homem e o sobre-humano. Sobre este assunto, Pierre Grimal, apresenta uma explicao mais detalhada: A prpria palavra religio obscura. Inicialmente no designa o culto prestado s divindades, mas um

    sentimento bastante vago, de ordem instintiva, de ter de se abster de determinado acto, uma impresso

    confusa de se estar perante um perigo de ordem sobrenatural. Grimal 1984: 73. 21Atendendo significncia moderna deste termo: sagrado designa () [uma] pluralidade de deuses ou () uma grandeza numinosa impessoal (Lexicoteca 1987: 46) , portanto, engloba aquilo que est para alm do que natural ao Homem e ao seu quotidiano, estabelecendo assim duas dimenses distintas: aquilo que uma grandeza impessoal, o sagrado, e, uma segunda dimenso que abarca a diminuda pessoal (por

  • 17

    Esta vinculao com o sagrado implica, necessariamente, a conceo de uma dicotomia

    entre o sagrado e o no-sagrado, i.e., profano. Contudo, esta mesma oposio no parece

    aplicar-se ao entendimento religioso romano, que no separa o que do foro sagrado da sua

    vida quotidiana22, como acontece, alis, em outras sociedades modernas23. Efetivamente, a

    separao entre sagrado e profano surge imposta pela modernidade e pelas suas concees

    prprias, apresentando-se esta dicotomia como prejudicial para o entendimento da realidade

    religiosa romana que no obedece a esta condio, uma vez que pressupe a separao entre o

    que religio (e o que inclui a componente do sagrado) e a laicidade, separando assim o

    mundo do divino do mundo do quotidiano24. Esta conceo no se verifica no mundo romano,

    que incorpora sagrado e profano de tal modo que deixa de fazer sentido o recurso a estas duas

    designaes: o sagrado encontra-se presente em todas as facetas do Homem: ()viver como

    um ser humano , em si, um acto religioso, pois a alimentao, vida sexual e trabalho possuem

    um valor sacramental. Por outras palavras, ser ou antes, tornar-se um homem significa ser

    religioso25. Sob este ponto de vista, se tudo sagrado deixa de fazer sentido falar de

    sagrado pois este apresenta-se integrado e impercetvel () quase como se o homem vivesse

    numa permanente imerso do sagrado26. Logo, se o sagrado se apresenta como componente

    basilar do conceito religio: se tudo sagrado, tudo religio. Em consequncia deixa

    igualmente de fazer sentido falar de religio pois esta no independente da restante realidade.

    Apesar de considerarmos que no contexto religioso romano no se justifique

    individualizar o foro sagrado e o foro religioso da restante realidade, isso no significa

    que no existam diversos momentos no quotidiano dessas mesmas sociedades em que no se

    destaque aes com um cariz particularmente vocacionado para o sagrado, seno vejamos: a

    construo de um templo romano no mais do que a consagrao da vertente religiosa num

    mundo emerso no sagrado. Assim, a vertente sagrada est particularmente destacada no

    interior do templo (ou quando se olha para o edifcio; para um altar; para uma epigrafe votiva,

    oposio), ou seja, tudo o que sai fora do foro divino (estando assim diminudo em relao ao divino) e, portanto, pertence a um mundo profano, des-consagrado, quotidiano (pessoal). 22 () a religio est longe de se encontrar ausente da vida moral Grimal 1984: 72. 23

    () many other societies do not distinguish ritual from secular action Brck 1999: 313. 24 Sobre este assunto ngel Aguirre reafirma a necessidade de atender aos perigos do uso indevido do termo

    religio: () los perigros que implicaba emplear categorias como sagrado/ profano que, adems de resultar muchas veces inasibles tanto fuera como dentro de nuestra propia cultura, resultaba obvio que

    estaban directamente extradas del repertrio ideolgico de las teologias cristianas Aguirre 1988: 593. Sobre este tema Alfonso Di Nola tece desenvolvidas consideraes que do nfase ao cariz econmico na

    anlise desta dicotomia, mostrando uma tendncia para associao daquilo que pertence ao mundo religioso e

    sagrado a elementos no funcionais e, em contrapartida, apresenta o mundo profano (no religioso) como

    economicamente til. Nola 1987: 108. 25 Eliade 1969: 10. 26 Nola 1987: 108-110.

  • 18

    para uma esttua divina, etc.) mas est tambm presente fora do templo (nas actividades do

    quotidiano: nos rituais de construo de um edifcio, na interpretao de sinais nos objectos

    que pertencem ao mundo do natural, etc.). Por outro lado, uma permanente emerso no

    sagrado no significa que no se possam individualizar aes que no possuem qualquer

    componente ou pretenso divina ou sagrada. Como nos refere Alfonso Di Nola:

    No acontece porm que em tais sociedades no se sinta a diversidade entre o momento

    do laico-profano e o momento do sacro. Pelo contrrio, muito frequente que o grupo

    individualize a dicotomia entre as duas dimenses, () Mas, mesmo estando as duas

    dimenses separadas, continua a haver entre elas a pulso de uma dialctica uniforme

    que se manifesta como histrica do grupo e do homem.27

    Isto significa que existem, efetivamente, momentos particularmente religiosos e

    momentos exclusivamente laicos, tal como j foi referido. Contudo, esta perceo no permite

    distinguir um mundo sagrado de um mundo laico, na medida em que estas sociedades no

    individualizam aquilo que sagrado daquilo que o no . Desta forma, o foro do sagrado no

    independente ou diferente do foro do profano, nem to pouco pode ser considerado como

    secundrio (comparativamente quilo que laico/ profano/ quotidiano) uma vez que passvel

    de estar presente em todos os momentos e regulam a sociedade28.

    Considerando as limitaes inerentes utilizao do conceito de religio isso significa

    ento que no faz sentido o desenvolvimento de estudos sobre estas temticas ou o uso do

    termo religio? No. Certamente que a eliminao do termo religio como referncia para o

    mundo romano (objeto de estudo neste caso particular) no condio nica ou definitiva:

    efetivamente, o termo religio, quando aplicado ao mundo romano refere-se a prticas,

    estruturas sociais e conceitos que no cabem no mundo actual e para os quais no esto

    estabelecidas designaes. Por conseguinte, trata-se, em grande parte, de um problema de

    linguagem, na medida que no existe um termo que abarque mais fielmente a realidade

    religiosa romana do que o termo religio apesar das suas limitaes e de como j vimos, ser

    um termo corrompido por uma cultura que no a romana, impondo por conseguinte,

    subentendidos, pr-ideias do seu significado e das suas implicaes. Sobre este assunto, Mircea

    27 Nola 1987: 109-110. 28 Relembre-se novamente Os deuses romanos nunca promulgaram declogos, nem a sociedade aproveitou este subterfgio para estabelecer os seus imperativos. No entanto a religio est longe de se encontrar

    ausente da vida moral: intervm como um alargamento da disciplina, como um prolongamento da

    hierarquia Grimal 1984: 72. Neste mesmo sentido, diz-nos Max Weber: Atravs da religio, toda a vida quotidiana romana do Romano e cada acto do seu comportamento estavam rodeados por uma casustica jurdico-sagrada () Weber 2006: 52.

  • 19

    Eliade considera ser demasiado tarde para procurar outra palavra e que religio pode ser

    um termo til desde que o mesmo no implique, partida, a crena em Deus, deuses ou

    fantasmas29, i.e., desde que o investigador tenha conscincia das suas implicaes30.

    1.2. Conceito de Panteo aplicado s expresses religiosas pr-romanas.

    semelhana do que se verifica com a conceo de religio, a ideia que construmos

    da significao e interpretao deste conceito apresenta-se amplamente corrompida (neste caso

    no pela atualidade mas sim) pela imagem rgida e ordenada, tradicionalmente atribuda ao

    mundo clssico. Pensar em panteo implica pensarmos em Zeus; Atena, Hera, Apolo, e

    simultaneamente, em Jpiter, Marte, Diana, etc., nos seus atributos, nas suas interligaes e na

    sua hierarquia, i.e., no conjunto organizado de deuses de uma dada mitologia. Tomando

    conscincia deste pressuposto, importa sublinhar que as dinmicas religiosas estruturadas e

    organizadas so a exceo numa realidade religiosa caracterizada por uma desordenada

    confuso de formas de culto e por uma mutvel desordem que se exprime sob as mais variadas

    formas e expresses religiosas. Efetivamente, em muitas sociedades o panteo no formado

    por entidades (ou divindades) concretas, determinadas e gerais a toda a sociedade: diz-nos Max

    Weber Mas to-pouco os deuses ou os demnios so ainda algo pessoal ou permanente,

    e nem sequer tm sempre uma denominao particular31. Os pantees que se formam a cada

    passo e em cada sociedade, para alm de absolutamente mutveis, traduzem uma criao de

    acaso imposta por um determinado contexto, que, quando muda, muda consigo o seu panteo,

    i.e., a sua ordem religiosa. A tendncia desta aparente desordem ser, certamente, o

    29 Eliade 1969: 9. 30 Efetivamente, a tentativa de compor uma definio de religio universal, independente da realidade a que se aplique, apresenta-se como uma tarefa impraticvel dada a variabilidade de entendimentos que a

    mesma engloba. Em consequncia, o resultado de tal tarefa seria uma descrio generalista do termo -

    demasiado abrangente para que seja aplicada a qualquer realidade. Isto no significa contudo, que no se

    possa compor uma definio relevante e til (apesar de generalista) para a compreenso deste complexo

    conceito, no sendo, no entanto esse o objectivo do presente estudo. 31Weber 2006: 45. A primeira considerao de Weber baseia-se na conceo das figuras sobre-humanas

    como figuras mutveis, isto significa, por exemplo, que, um contexto diferente pode levar uma mesma

    sociedade a conferir uma maior importncia a uma divindade (at ento menor) e, da mesma forma, diminuir a importncia de uma figura central do panteo. De forma similar, um indivduo, consoante a sua

    condio de vida a cada momento, pode dar maior ou menor nfase a determinadas figuras religiosas. A

    segunda considerao de Weber, amplamente relacionada com a primeira, baseia-se no fato de que cada

    sociedade possui o seu prprio panteo (com as suas prprias hierarquias) de acordo com as suas

    necessidades ou caractersticas. O autor sublinha inclusivamente, relativamente s concepes religiosas pr-

    romanas: Ora aparecem deuses sem quaisquer nomes prprios, designados apenas em funo do fenmeno sobre o qual tm poder, e cuja designao s paulatinamente quando em termos lingusticos, j deixou de ser entendida vai adquirindo o carcter de nome prprio; ora, pelo contrrio, h nomes prprios de chefes poderosos ou de profetas que passaram a ser designados de foras divinas Ibid.: 45.

  • 20

    progressivo ordenamento e estabilizao que, contudo, pode ser abalada a cada momento32. O

    estudo destas dinmicas e das suas causas apresenta-se, acima de tudo, como um dos

    indicadores mais importantes para compreender o Homem, as suas motivaes, as suas

    necessidades, preocupaes, anseios, atividades, etc., apresentando-se portanto, o estudo destes

    temas como crucial, desde que seja consciente da diversidade de expresses religiosas e da

    diversidade de formas que estas assumem. Sublinhe-se: o que est para l da organizao

    estruturada e ordenada das divindades revela dinmicas sociais importantes.

    1.3 Esclarecimento e problematizao dos conceitos de romanizao; etnia e indgena.

    Frequentemente, nos diversos estudos desenvolvidos sobre a temtica referente

    ocupao romana da Pennsula Ibrica, se recorre ao termo romanizao como referncia ao

    processo de aculturao sofrido pelas populaes indgenas 33 . Alguns investigadores

    discordam do recurso a este conceito, baseando-se em duas premissas fundamentais: por um

    lado o fato do termo se remeter a concees que se formam em consequncia do impacto

    cultural da colonizao europeia verificada ao longo do sculo XIX; por outro lado, aludem

    especificidade do processo de assimilao da cultura romana, baseado na aceitao e

    conivncia com as formas de cultura indgenas. Atendendo a estas premissas, prope-se a

    utilizao de conceitos como aculturao ou assimilao34 como substitutos mais fidedignos

    ao termos romanizao, traduzindo o processo de adaptao resultante de dois universos

    culturais distintos.

    No que diz respeito ao conceito de Etnia, esta expressa-se numa comunidade humana

    definida por afinidades culturais e lingusticas. Enquanto entidades culturais, as etnias so

    instveis, readaptando-se no tempo 35 . Este aspecto torna-se particularmente relevante se

    32 Desconhecemos at que ponto a romanizao destruturou o panteo indgena. Supe-se que a romanizao dos cultos tradicionais teria implicado uma hierarquizao pelo menos diferentes dos deuses na linha da maior concretizao e especificao que encontramos no panteo greco-romano. O

    problema reside no facto dos deuses se distinguirem sobretudo pela funo que desempenham no contexto do

    grupo cultural especfico que lhes presta culto Marco Simn 2002. 33 Sublinhe-se a importncia do artigo de Blzquez Martnez, Romanizacin o asimilacin in Symbolae Ludovico Mitxelena Septuagenario Oblatae (1985) para a compreenso desta problemtica. Sublinhe-se

    igualmente a proposta alternativa de manifestaes culturais como substituto recomendado a

    romanizao, proposta por Julin de Francisco Martn no seu artigo Conquista y Romanizacin de Lusitania, datado de 1996. 34 Sugerido desde logo por Blzquez Martnez (1985). 35 A questo das etnias impe-se sobretudo quando analisamos a obra de Jorge de Alarco (1990, id. 2001;

    id. 2009) onde o referido autor estabelece uma relao entre divindades e os populi atribudos Beira Interior

    portuguesa. Diz-nos Alarco: legtimo interrogarmo-nos sobre se tais etnias ou gentes so, ou no, criaes dos Romanos, sem qualquer correspondncia com as identidades que as populaes pr-romanas

    assumiriam [...] diremos que nos parece excessiva qualquer generalizao sobre as etnias ou povos da

    Hispnia pr-romana sustentando que tais foram criaes dos Romanos. Pretend-lo no demonstrar o erro da tese contrria isto , da tese de que algumas etnias correspondem (ou podem corresponder) a

  • 21

    tivermos em considerao o trauma tnico que representou a aculturao romana e o processo

    de mudana desencadeado (permanecendo, no entanto, indefinido, o grau de mudana e

    considerando a inviabilidade de uma completa reformulao tnica). As expresses religiosas

    expressam-se como importantes factores identitrios, contribuindo para o estabelecimento de

    vnculos e diferenas e, em consequncia, para a distino tnica. A religio, no pode,

    contudo, ser o nico elemento a considerar quando falamos de etnias.

    No que se refere ao conceito de indgena realamos unicamente36 o trabalho de Mara

    de Lourdes Albertos Firmat sobre organizaes suprafamiliares, onde a autora aperfeioa

    esta designao, contribuindo para o progressivo abandono da definio genrica de indgena e

    lanando bases para designaes mais especficas como divindades e/ ou religio asturianas,

    clticas, ibricas, lusitanas, etc..

    Por ltimo, esclarecemos, de forma sucinta, o conceito de tenimo e epteto, amplamente

    utilizado no presente estudo. Entendemos tenimo como toda a componente onomstica pela

    qual se designa uma divindade, independentemente do nmero e natureza dos seus componentes37

    podendo o termo tenimo, por conseguinte, integrar diversas designaes e adjetivos

    (denominados de eptetos). O termo epteto adquire assim uma natureza adjetival, comportando,

    regra geral, a segunda (ou demais) designao atribudas a uma divindade. A distino entre

    tenimo e epiteto implica, contudo, alguma complexidade. Se em alguns casos os investigadores

    so consensuais na diferenciao, outros casos suscitam grandes dvidas. Considerando a

    especificidade da epigrafia votiva da Beira Interior, pela generalizao dos exemplos, assume-se o

    nome inicial da divindade exclusivamente como tenimo e os nomes secundrios (um ou mais)

    como eptetos38

    .

    populaes com identidades prprias; apenas contrapor a hiptese de que elas existiam, uma outra

    hiptese no confirmada: a de que as etnias mencionadas pelos autores antigos foram criaes dos

    Romanos Alarco 2009: 91-92. 36 Atendendo s desenvolvidas consideraes levadas a cabo por Jos dEncarnao, impulsor, em territrio nacional, do conceito de indgena na temtica da religio pr-romana. 37 Guerra 2002: 63-66. 38 As excees so devidamente apresentadas ao longo da anlise individual de cada designao divina.

  • 22

    Resenha histrica dos estudos alusivos epigrafia votiva

    da Beira Interior portuguesa.

    Para o estudo das dinmicas religiosas dos cultos indgenas e dos processos de

    assimilao por parte das comunidades autctones da conceo religiosa romana, os dados que

    dispomos apresentam-se, simultaneamente, escassos e confusos. Contrariamente ao que se

    verifica em diversos territrios integrantes do antigo Imprio Romano, onde que se regista uma

    manifesta correspondncia entre as divindades clssicas, de caratersticas amplamente

    conhecidas, e as divindades indgenas (permitindo assim um entendimento mais facilitado

    destas ltimas); em oposio, na Hispnia, esse vnculo menos evidente e intenso, e, por

    conseguinte, a informao que possumos e o conhecimento desta realidade religiosa

    apresenta-se claramente incipiente. Por outro lado, as fontes que dispomos para o estudo das

    dinmicas religiosas peninsulares, quer iconogrficas, quer literrias, revelam-se diminutas

    restando, por conseguinte, as fontes epigrficas como nico recurso possvel para a

    compreenso de uma temtica de to grande complexidade. Saliente-se igualmente, o fato dos

    testemunhos epigrficos atribudos ao territrio nacional, apesar de abundantes, se encontram

    frequentemente deteriorados (impossibilitando a sua leitura); mal interpretados ou, no raras

    vezes, desaparecidos. Em consequncia desta escassez de informao, o estudo das

    caratersticas e mbitos das divindades indgenas da Hispnia e da organizao do panteo

    religioso pr-romano e romanizado em territrio nacional, releva-se assente em estudos que se

    baseiam ora em anlises lingusticas e etimolgicas de tenimos e eptetos, ora na explorao

    do contexto geogrfico, cultural, social e econmico do perodo em causa com o intuito de,

    atravs dele, estabelecer o campo de movimentao religioso, i.e., compreender as motivaes,

    preocupaes e solicitudes das populaes que executavam e consagravam monumentos

    votivos.

    ***

    A antiguidade dos estudos sobre esta temtica clara, revelando que, desde cedo,

    religio e epigrafia se aliaram suscitando um profundo fascnio entre investigadores39. Andr

    de Resende, telogo e um profundo adepto dos estudos referentes Grcia e Roma Antiga,

    publica em 1593 um ensaio sobre a Antiguidade da Lusitnia noticiando diversos achados

    epigrficos. Escassos anos depois, Bernardo de Brito anuncia os primeiros volumes da sua

    monumental obra referente histria de Portugal onde constam transcries epigrficas

    39 Sobre este assunto veja-se o importante artigo de Helena Gimeno Pascual (2002). No qual a autora enceta

    uma breve sntese da histria dos estudos sobre a religio indgena peninsular desde a Idade Mdia at s novas linhas metodolgicas impostas por Leite Vasconcelos, em finais do sculo XIX, incio do sculo XX.

    Captulo II

  • 23

    alusivas s formas de culto testemunhadas em territrio nacional durante a poca de ocupao

    romana. Tratam-se, efetivamente, de estudos genricos, abrangentes e amplamente

    influenciados pelo contexto em que foram produzidos revelando as suas teses, de grande

    insipincia, lances das preocupaes da poca e influncias do cristianismo emergente.

    Sculos passados, e o panorama dos estudos de religio romana no se altera. De facto,

    apesar da solidez das observaes de Jernimo Contador de Argote, autor da histria

    eclesistica de Portugal, de Jos Diogo Mascarenhos Neto e Frei. Manuel do Cenculo,

    responsveis pela inventariao de um grande manancial de inscries; e de investigadores

    como J.M. Huerta, dedicada epigrafia da Galiza; J. Prez Bayer e J. Cornide, conhecedores

    da particularidade do fenmeno religioso indgena na regio da Estremadura portuguesa; os

    progressos eram lentos e ignoravam os conceitos e a metodologia que, j no sculo XX, vai

    pautar a Histria das Religies enquanto cincia. A importncia deste percurso de

    investigao e dos ensaios iniciais produzidos por intelectuais e eruditos no deve, no entanto,

    ser desconsiderado. De fato, as compilaes de testemunhos epigrficos ensaiadas constituram

    a base fundamental e a matria-prima necessria para que, aquando o despoletar da

    problemtica ligada ao indo-europeu, se adotasse uma nova metodologia de investigao

    baseada nos estudos de lingustica comparada, abrindo assim um novo caminho e novos

    campos de possibilidades para a informao passvel de ser veiculada atravs dos estudos

    epigrficos. Este novo estmulo para o conhecimento foi naturalmente acompanhado de um

    ressurgimento da poltica nacionalista baseada na procura das origens da nacionalidade, e

    resulta igualmente do impulso dado pelo desenvolvimento de novas reas de conhecimento

    como a antropologia e etnografia. S assim, considerando todo este conjunto de fatores, se

    explica o profundo impacto que desencadeou na forma como se passa a abordar as

    problemticas ligadas religio pr-romana peninsular.

    A repercusso desta nova janela de oportunidades para a epigrafia e o grande passo nos

    estudos da religio romana em territrio nacional ocorre, no incio do sculo XX, pela mo de

    Jos Leite Vasconcelos que, partindo do inventrio epigrfico de Emlio Hbner, Corpus

    Inscriptionum Latinarum40; dos estudos de Francisco Martins Sarmento e Gabriel Pereira, e

    40 E. Hbner, por iniciativa da Academia de Cincias de Berlim, visita a Pennsula Ibrica por um perodo de

    vinte meses que decorre entre 1860 e 1861, compilando informaes epigrficas recolhidas em museus,

    arquivos e junto de eruditos e investigadores nacional um pouco por todo o territrio correspondente

    Lusitnia, Hispania e Baetica, dando assim origem publicao em 1891 e 1892 aos dois volumes do CIL

    (incluindo o volume de Suplementos e ndices) referente Pennsula Ibrica. Sobre a ao de E. Hbner,

    sublinhe-se igualmente o artigo da autoria de Jos de Encarnao, A Escola Alem e os estudos de epigrafia romana em Portugal, datado de 2011, onde se elabora uma sntese do impato da interveno da Escola alem no conhecimento da epigrafia votiva em territrio nacional.

  • 24

    fazendo eco das influncias de Adolfo Coelho e Tlio Espanca; empreende os primeiros

    estudos sistemticos e metdicos sobre a religio indgena e romanizao na Pennsula41. Os

    seus primeiros artigos, datados dos finais do sculo XIX 42 , concorrem como ensaios

    preparatrios da sua obra fundamental Religies da Lusitnia 43 , que permitiu conferir o

    impulso necessrio nos estudos e no entendimento da religio indgena na Hispania Antiga

    atravs da aplicao de novos mtodos arqueolgicos, lingusticos, e simultaneamente

    antropolgicos e etnogrficos, permitindo, simultaneamente, a libertao dos estudos relativos

    a estas problemticas dos conceitos e instituies modernas, abordando o tema da religio

    indgena estritamente como um fenmeno histrico.

    Merecedor de um lugar privilegiado no panorama geral da histria antiga, e atestado

    pelo grande nmero de investigadores que sobre ele incidem os seus estudos, o tema da

    religio indgena renova-se com o contributo de diversos autores que prosseguem as pesquisas

    de Leite Vasconcelos, reconhecendo as limitaes da sua obra; retomando a sua perspetiva de

    anlise ou sugerindo novas e alternativas vias de investigao. Assim, os desenvolvimentos

    referentes religiosidade romana peninsular so, no incio da segunda metade do sculo XX,

    marcados por investigadores como D. Fernando de Almeida, protagonista da divulgao,

    leitura, descrio e bibliografia de um grande nmero de epgrafes; Joaquim M. de Navasqus

    e Antnio Tovar, Fidel Fita; Maria de Lourdes Albertos, Firmin Bouza-Brey e Antnio Garcia

    y Bellido. Sublinhe-se igualmente Francisco Tavares Proena Jnior, Francisco Manuel Alves,

    abade de Baal44, Flix Alves Pereira45, Albano Bellino46, J. Toutain47 e Jos Maria Blzquez

    41 Realce-se igualmente, como antecessores de Jos Leite Vasconcelos, A. Freire de Carvalho; J. S. Pereira

    Caldas; e Joaqun Costa. Os referidos autores desenvolveram relevantes obras sobre a religiosidade indgena

    peninsular, abordando, no entanto a referida temtica, de forma parcial. 42 Dos quais se destaca O deus lusitano Endovellico publicado em 1890 no Jornal O dia; Novas Inscries de Endovellico de 1890; e Sur les Religions de la Lusitanie datado de 1892. So diversos os artigos publicados sobre a importncia de Leite Vasconcelos e da sua obra nos estudos das formas de cultos

    indgenas peninsulares, sublinhe-se o relevante artigo sobre esta temtica da autoria de Carlos Fabio, Leite

    de Vasconcelos e a gnese de Religies da Lusitnia Fabio 2002: 341-346. 43 Elaborada em trs volumes datados de 1897 (data da concluso de Religies da Lusitnia I) e finalizada a 1913. Leite Vasconcelos foi o primeiro investigador que desenvolveu o estudo da religio indgena na Hispania de um modo amplo e aprofundado, contudo, no proporcionou uma ordenao sistemtica dos seus

    dados em resultado das grandes dvidas que esses mesmos dados ofereciam na poca em que levou a cabo os

    seus estudos iniciais. Com Vasconcelos, pela primeira vez de forma metdica, as caratersticas das

    divindades que pontualmente surgiam registadas em fontes epigrficas, e a sua funo no cmputo religioso

    geral, i.e., o seu enquadramento no panteo, passam a estar (em grande medida) dependentes da interpretao

    do prprio nome da divindade, conjuntamente, em alguns casos excecionais, com a interpretao do local

    onde a divindade aparece epigraficamente referida. Esta opo pela etimologia reflete em grande medida as

    lacunas do conhecimento relativo aos contextos em que as inscries so encontradas. 44 Dando este autor especial realce aos testemunhos epigrficos da regio de Trs-os-Montes, com relevo

    para Bragana. Destacam-se a sua obra Memrias Archaeologico-Historicas do Distrito de Bragana,

    editada no Porto, com particular ateno para o volume I de 1909 e para o volume IX de 1934, onde se refere os tenimos Aernus, Bandua, Laesus, Viboris, Genium Civitatis Baniensium e Laroucus.

  • 25

    Martnez. Os ensaios deste ltimo investigador marcam a difuso da nova corrente de estudos

    sobre esta temtica em Espanha, concretizando-se na sua obra fundamental Religiones

    Primitivas de Hispnia I Fuentes Literrias y Epigrficas datada de 1962, onde apresenta

    uma perspetiva Ibrica sobre a religiosidade romana, associando as formas de culto da

    Pennsula Ibrica a um profundo politesmo e animismo em consequncia de registarem um

    grande nmero de divindades diferentes entre si e associadas a elementos fsicos do territrio

    onde aparecem mencionadas48, semelhana do que j fora anunciado com Leite Vasconcelos.

    A conscincia das limitaes da organizao metodolgica aplicada imperativamente

    aos estudos sobre a religio indgena peninsular na dcada de 60, e que tiveram a sua mxima

    expresso com Leite Vasconcelos e Blzquez Martnez, rapidamente deram lugar conscincia

    da necessidade de alternativas que se contrapusessem com o estudo etimolgico adotado

    preferencialmente por estes dois autores. De fato, apesar de grande parte dos investigadores

    seguirem as concees etimolgicas (como acontece com Antnio Tovar que se dedica ao

    estuda da lingustica pr-romana e da aculturao onomstica, ou ainda Lourdes Albertos,

    discpula de Tovar e igualmente seguidora da anlise etimolgica dos dedicantes e dos

    tenimos), entre esta nova gerao de autores que se constata, pela primeira vez, as

    limitaes dos estudos de Leite Vasconcelos, sobretudo no que diz respeito ao critrio

    etimolgico utilizado como base da constituio de tipologias de divindades, cultos e crenas.

    De fato, o escasso conhecimento que, poca de Vasconcelos, se possua sobre o panteo

    religioso Hispnico no permitia sustentar tipologias to rgidas como as que este autor havia

    45 Autor de um estudo bem fundamentado, datado de 1932 sobre a divindade Arentio. 46 Autor de importantes estudos e recolhas epigrficas de Bracara Augusta. 47 Toutain adopta um mtodo de classificao das divindades semelhante perspetiva j anteriormente

    referida por Leite Vasconcelos, agrupando-as e associando-as a elementos orogrficos, hidrogrficos, a

    mbitos indeterminados e a cultos individuais, domsticos e municipais. O autor reconheceu as limitaes

    desta classificao justificando-a como preferencial simples enumerao dos tenimos, uma vez que

    possibilita a organizao e simplificao da multiplicidade de divindades registadas (contabilizando o autor

    aproximadamente 130 divindades indgenas atribudas Hispania). 48 Blzquez Martinez, atravs da sua tese de doutoramento, Religiones de Hispania (editada em Roma, em

    1962), desenvolve a segunda tentativa de reunir numa nica obra todos os elementos que, poca, se dispunha para o estudo da religiosidade pr-romana, agrupando as divindades indgenas conhecidas de

    acordo com os seus atributos. Em 1983 publica Religiones Prerromanas, uma obra dividida em cinco captulos que conta com o contributo de M. L. Albertos. semelhana do que j se havia verificado com

    Leite Vasconcelos e com a sua obra anterior, Blzquez Martinez estabelece tipologias de culto, crenas e

    divindades de acordo com a natureza e mbitos dos tenimos conhecidos. A sua grande inovao consistiu,

    mais do que na classificao das divindades, no estudo concreto de cada uma das epgrafes conhecidas at ao

    momento e na enumerao das hipteses que delas retirou. Os escassos e confusos dados que serviram de

    base a estes trs autores (Leite Vasconcelos, Toutain e Blzquez Martnez), assim como erradas

    interpretaes epigrficas a partir das quais lanaram os seus estudos, criaram a noo de um panteo

    religioso constitudo por centenas de divindades. Esta noo foi, mais recentemente, revista, corrigindo-se

    leituras erradas e estabelecendo-se a distino entre tenimos de divindades e os seus eptetos. Em consequncia, o nmero de divindades registadas foi amplamente reduzido.

  • 26

    sugerido, pelo que esta classificao restringia a forma como se entendia a religio pr-romana

    e romana peninsular, no permitindo uma viso realista dos dados e conduzindo, por

    conseguinte, a leituras erradas. Torna-se pois imperativo que as concluses dos estudos

    etimolgicos sejam comprovadas por fatores independentes ao prprio significado do nome e

    que os estudos epigrficos se baseiem na necessidade de leituras e interpretaes rigorosas das

    inscries, para, a partir delas, estabelecer o carter e mbito das divindades. Este processo de

    implantao de um novo planeamento metodolgico foi inaugurado pelos trabalhos de Lpez

    Cuevillas que, em 1989, rompeu com o mtodo etimolgico, defendendo que o nome das

    divindades poderia conceber-se apenas como um nome, no possuindo qualquer aluso

    funo ou caraterstica da mesma49. Este autor, apesar de defender a substituio do critrio

    etimolgico por um outro amplamente limitado, marcou uma nova forma de pensar e abriu

    caminho a diferentes e variados critrios de interpretao das dinmicas religiosas

    peninsulares. A mudana ocorreu igualmente pela mo de J. C. Rivas, propondo o autor, em

    1973, nova classificao segundo critrios primrios como a forma e composio como uma

    divindade aparecia retratada na epgrafe50; e, igualmente, por Untermann que, j em 1980,

    criou uma nova classificao baseada na forma como as divindades eram invocadas nos

    monumentos51. Por ltimo, Tranoy, sobre as divindades da Gallaecia, separou as divindades de

    49 Percebeu igualmente a importncia de ordenar a grande confuso de divindades, e conhecia,

    simultaneamente, os problemas que as classificaes de Toutain e Vasconcelos levantavam. O sistema de

    classificao de Cuevillas pretendia ser muito mais detalhado que o dos seus antecessores, baseando-se na perceo de que para a determinao dos atributos das divindades necessrio conhecer previamente o

    carter das mesmas. 50 Em 1973 Rivas conduz um novo tipo de classificao cujo critrio metodolgico se baseava na forma e

    composio da invocao da divindade tal como a mesma aparecia representada nas inscries. O resultado

    desta metodologia conduziu diviso das invocaes em trs tipos: categorias religiosas, tenimos e eptetos

    alusivos divindade. Anos mais tarde Rivas reconhece as limitaes da sua proposta de ordenao,

    verificando que esta organizao no se realizou tendo em conta objetivos claros pelo que algumas das suas

    divises ou subdivises podiam ser de muito escassa utilidade dependendo de qual fosse a sua aplicao

    prtica. Apesar das limitaes desta tese, e de Rivas no pretender chegar a concluses mais profundas, a sua

    sistematizao teve alguns elementos inovadores e de grande importncia. De fato, pela primeira vez se

    evitava classificar os testemunhos utilizando como critrio a natureza da divindade em questo tendo em

    considerao as fragilidades que essa classificao implicava. Uma segunda notvel inovao passou pela separao, pela primeira vez, de tenimos e eptetos, abrindo caminho a trabalhos de outros investigadores

    que visem a simplificao e o aperfeioamento metodolgico. 51 Untermann iniciou os seus estudos sobre a temtica da religio pr-romana em 1980 publicando as suas

    primeiras concluses em 1985. O referido investigador, depois de efetuar uma crtica muito rigorosa na

    seleo dos dados, criou cinco categorias de classificao: invocaes bimembres, invocaes bimembres

    e trimembres, cujas primeiras constituintes ocorram mais de trs vezes; tenimos sem eptetos indgenas;

    eptetos sem tenimos; e invocaes compostas de um apelativo ou nome latino e um tenimo ou epteto

    indgena. A vantagem deste mtodo assenta na simplificao da classificao (eliminando grupos

    desnecessrios que colocavam algumas incoerncias ao sistema) e na fixao de critrios para tipificar as

    invocaes como tenimos e eptetos. A metodologia sugerida, no est, no entanto livre de limitaes. A

    indefinio dos testemunhos includos no ltimo grupo mencionado, onde se associavam tenimos e eptetos que so precedidos por um apelativo ou por um nome latino, disso exemplo.

  • 27

    nomes indgenas das divindades clssicas com apelativos indgenas como forma de as

    organizar e interpretar. Tranoy vai alm da mera classificao dos tenimos, apresentando

    revises crticas de antigas leituras epigrficas e destacando o papel do contexto arqueolgico

    para a interpretao das divindades. semelhana de Leite Vasconcelos, a relao que se

    estabelece entre divindades e elementos do territrio (ou o prprio territrio) evidente,

    distanciando-se de Vasconcelos, fundamentalmente, pela rejeio da classificao do panteo

    religioso baseada na funo das divindades - presumvel atravs da interpretao da

    significncia do tenimo52. Esta , desde logo, a grande inovao da sua obra.

    Paralelamente a estas perspetivas, desenvolve-se com Georges Dumzil, o segundo

    grande caminho no estudo da religiosidade peninsular baseado na mitologia comparada e na

    afirmao da estrutura tripartida dos pantees indo-europeus. As opinies sobre este caminho

    para o entendimento da organizao das divindades apresentam-se, desde logo, controversas.

    Destacamos somente a proposta interpretativa de Bernejo Barrera53, que considera que no

    existe um conhecimento suficiente aprofundado sobre a religiosidade galaico-romana que

    permita estabelecer essa comparao; e a perspetiva contrria encabeada, entre muitos outros,

    por Ferreira da Silva54 que enquadra as manifestaes religiosas do Noroeste peninsular no

    esquema dumziliano.

    Em territrio nacional, Jos dEncarnao apresenta, em 1969, uma tese de licenciatura

    referente s divindades indgenas sob o domnio Romano em Portugal, onde recolheu esses

    novos contributos internacionais, adicionando-os aos que j eram conhecidos pelas obras de

    Vasconcelos, e propondo uma organizao teonmica segundo um critrio dicionarista 55 .

    Muitos outros autores poderiam ser aqui citados assim como muito mtodos diferentes aos

    quais se recorreu no sentido de compreender como se organizava o panteo religioso romano

    peninsular, no se atingindo, no entanto um consenso quanto a esta temtica.

    Os avanos decorridos do achamento de novas epgrafes votivas e o aumento

    exponencial de conhecimento que da resulta, desencadearam a reviso dos critrios que, ao

    longo do tempo, foram usados para o entendimento da religio romana em territrio nacional.

    52 Refira-se igualmente Javier de Hoz que recorre a um critrio baseado na extenso maior e menor do culto

    das divindades. A percepo da extenso de culto baseia-se fundamentalmente no nmero de vezes que os

    tenimos so mencionados e na rea geogrfica onde estes se verificam. 53 Bermejo Barrera 1986. 54 Silva 1986: 286-302; Id. 2007. 55 J. dEncarnao, rejeitando o critrio de Vasconcelos, e aceitando o escasso conhecimento sobre a organizao do panteo religioso, ordenou as divindades peninsulares segundo um critrio alfabtico.

    Simultaneamente, o autor assumiu a leitura correta e crtica das epgrafes votivas como o alicerce

    fundamental de qualquer estudo que recaia sobre epigrafia votiva. O resultado desta metodologia foi a

    atribuio de um carter local religio indgena e a noo de que pequenos grupos de populao teriam os seus prprios e exclusivos deuses que poderiam ser diferentes do das comunidades vizinhas.

  • 28

    Em consequncia, a ligao entre religio e sacralizao do territrio, to sugerida pelos

    primeiros autores que se dedicaram a este tema, nasce com uma nova fora e uma nova forma

    de encarar este assunto56. Destaque-se as perspetivas e os trabalhos que so levados a cabo por

    autores como Blanca Garca Fernndez-Albalat, Francisco Villar, Blanca Prsper, Carlos

    Alberto Ferreira de Almeida, Jos Manuel Garcia, Domingos de Pinho Brando, Jos Coelho,

    Octvio da Veiga Ferreira, Joo de Castro Nunes, Manuel de Paiva Pessoa, Adriano Vasco

    Rodrigues, Moreira de Figueiredo, Augusto Vieira da Silva, e Jorge de Alarco. Este ltimo

    autor explorou o mbito geogrfico de determinadas divindades procurando, atravs dos

    resultados obtidos com a interpretao da maior ou menor amplitude geogrfica das mesmas,

    estabelecer hierarquias de importncia e conceber, por conseguinte, um prottipo de

    organizao do panteo religioso 57 . Mais recentemente, destaca-se Juan Carlos Olivares

    Pedreo, que, atravs da sua obra, Los dioses de la Hispania cltica, elabora uma sntese das

    dinmicas religiosas peninsulares considerando a distribuio territorial dos mesmos,

    compondo grupos religiosos associados a grandes regies territoriais (Beira Baixa; Regio

    Estremenha; Beira Litoral; Gallaecia [ocidental, central e oriental] e reas centrais e orientais

    da Meseta norte)58. Em territrio nacional, e considerando o mbito mais restrito dos avanos

    nas consideraes sobre a religiosidade indgena para a regio da Beira Interior portuguesa

    acrescente-se aos autores j mencionados, Marcos Osrio, Fernando Patrcio Curado, Manuel

    Leito, Pedro Salvado, Slvia Moreira, e Maria Lopes Tom como figuras principais na recolha

    e interpretao dos monumentos votivos provenientes da referida regio. Destacamos

    igualmente Fernanda Cristina Repas com a sua obra de sntese sobre a religio na Beira

    56 O modelo de Vasconcelos e de Blzquez no deve, no entanto, ser retomado: a generalizao feita por

    estes investigadores e as tentativas de encontrar para todas as divindades uma correspondncia funcional

    (rejeitando os seus pontos de diferena) condicionaram a aceitao de diferentes critrios e diferentes formas

    de conceber a dinmica religiosa. 57 Jorge Alarco, na terceira edio da sua obra Portugal Romano publicada em 1983, apresenta uma

    relevante sntese dos dados conhecidos poca sobre as divindades pr-romanas em territrio nacional.

    Paralelamente, este autor dedica particular ateno regio da Beira Baixa portuguesa, publicando, em 1988,

    a sua primeira tentativa de relacionar os elementos conhecidos do panteo indgena com os populi ou etnias

    atribudos regio da Beira Interior portuguesa (Alarco 1990). Este primeiro artigo vai constituir o ensaio preparatrio do seu trabalho de 2001 sobre as divindades dos Lusitani, onde procura estabelecer os limites

    dos diferentes populi partindo da anlise do mapa de distribuio dos tenimos testemunhados no territrio

    que, tradicionalmente, se atribui aos Lusitani. Esta sua proposta apresenta, no entanto, algumas limitaes

    importantes. Destacamos, desde logo, o fato de se basear em testemunhos epigrficos realizados e

    consagrados durante o perodo de ocupao romana, e, portanto reflexo de uma adaptao dos cultos

    indgenas dos sculos I e II a.C. Acrescente-se a isto, o fato dos testemunhos epigrficos raras vezes estarem

    associados aos seus contextos originais e a falsa conceo de que a religio se apresenta como um fator

    identitrio capaz de, s por si, estabelecer e reflectir etnias. 58 O autor estabelece uma clara distino entre a Beira Baixa; a Beira Litoral e Beira Alta e o sul da

    Lusitnia, sublinhando, no entanto, as semelhanas existentes entre o panteo religioso da Beira Baixa e da

    regio Estremenha. O seu estudo baseia-se fundamentalmente nas investigaes iniciadas por autores como Rivas, Untermann e Tranoy, apresentando, no entanto, perspetivas alternativas a algumas das suas teses.

  • 29

    Interior ao tempo dos romanos. Realce-se igualmente o importante papel dos peridicos e

    revistas Ficheiro Epigrfico e Conmbriga na divulgao dos achados votivos.

    Muitos outros autores poderiam ser referidos na presente sntese de estudos,

    destacando-se somente as principais bases de apoio realizao do presente trabalho.

  • 30

    Contextualizao. Delimitao e caraterizao

    geogrfica. Introduo sucinta ao processo de

    aculturao dos cultos indgenas.

    A relao com o espao assim, poderamos dizer, universalmente garante

    da particularidade das identidades [].

    Franoise Paul-Lvy & Marion Segaud59

    Durante a Idade do Bronze, em vrias fases, tero chegado Pennsula Ibrica grupos

    populacionais procedentes de diferentes espaos europeus caraterizados por modelos culturais

    e expresses religiosas prprias. Durante o processo de aculturao das populaes pr-

    existentes, e como consequncia da verificao de condies favorveis a uma progressiva e

    pacfica introduo da componente cultural 60 , tero ocorrido fenmenos de sincretismo,

    continuados durante o perodo de ocupao romana61. Relembre-se, no entanto, que a realidade

    sociopoltica, cultural e econmica da Pennsula Ibrica no correspondia a um modelo nico e

    homogneo, no se verificando, no nosso territrio, uma unidade tnica, lingustica ou cultural.

    Efetivamente, e considerando exclusivamente uma componente religiosa, verificamos,

    numa primeira anlise e de forma bastante clara, uma compartimentao do territrio

    hispnico, destacando-se a franja lusitano-galaica caraterizada por um grupo teonmico

    especifico, de abundante representao epigrfica, e, nitidamente, distinto dos testemunhos

    teonmicos da regio central e oriental da Meseta Norte 62 . Quando considerado

    especificamente, este marco territorial congrega em si mesmo uma manifesta heterogeneidade

    na distribuio teonmica, podendo, com relativa segurana constatar-se a presena de grupos

    de divindades caratersticos de zonas concretas da rea lusitano-galaica, apresentando-se a

    Beira Interior portuguesa como um dos vrios conjuntos a considerar.

    Efectivamente, o territrio atualmente correspondente Beira Interior, delimitado a

    norte pelo rio Douro, e sul, pelo vale do Tejo, e interiormente apartado da regio litoral pelas

    59 Paul-Lvy & Segaud 1983: 30, apud Silvano 2010: 71. 60 Roma nunca pugnou abertamente pelo desaparecimento, na populao submetida, das crenas e dos cultos s divindades pr-romanas; esses cultos locais foram, em regra, respeitados nas suas caractersticas

    de cultos privados Encarnao 1988: 262. 61 () os Romanos se deram conta de que tambm aqui existia um politesmo qui semelhante ao seu, porque brotara do mesmo fundo mitolgico dos Indo-europeus. To arreigadamente eram, alias, as crenas

    que os invasores acabaram por, paulatinamente, a elas aderirem, levados pelo natural desejo de agradar

    aos deuses, quaisquer que eles fossem, seduzidos pela novidade de uma crena insuspeitada. Alarco 1990a:

    442. 62 Contrapondo-se assim tenimos dos quais Cosus, Nabia, Reve, Arentio/ Arentia, Quangeio, Trebaruna,

    Munidi e Ataecina so exemplos, com deidades como Epona ou Matres, amplamente registadas na Meseta setentrional e na restante Europa Ocidental mas sem registos no territrio lusitano-galaico.

    Captulo III

  • 31

    cadeias montanhosas das quais se destaca a serra da Estrela e a serra da Gata; constitui um caso

    de estudo singular no processo de aculturao e uma das reas chave para compreender a

    religio indgena da Hispnia, constituindo, pela sua particularidade, o objeto de estudo e a

    base das consideraes que sero tecidas sobre as expresses religiosas pr-romanas. De fato, a

    regio parece testemunhar ndices de aculturao menos notrios comparativamente com a

    generalidade do restante territrio nacional (em consequncia do prprio posicionamento

    perifrico da Pennsula Ibrica, localizada na fronteira do imprio), refletidos, por exemplo,

    nas aluses antroponmias dos diferentes monumentos epigrficos procedentes deste

    territrio63 . Em consequncia, a anlise das expresses materiais das dinmicas religiosas

    permite, sob uma abordagem inicial e exclusivamente terica, uma melhor leitura do panorama

    religioso pr-romano. Simultaneamente, a Beira Interior regista testemunhos epigrficos

    abundantes, com um conjunto de tenimos caratersticos e bem conhecidos, inscritos, via da

    regra, em vrios monumentos, permitindo assim uma leitura e interpretao mais corretas. Em

    consequncia -nos possvel estabelecer uma melhor definio dos territrios de influncia de

    cada um dos tenimos e, simultaneamente, elaborar interpretaes mais seguras da natureza

    das divindades. E que divindades? Vejamos.

    Nesta regio esto representados um nmero muito considervel de tenimos: fala-nos

    Jorge de Alarco de mais de cinquenta divindades indgenas registadas entre o Douro e o

    Tejo 64 , apresentando-se uma abundante frao dos tenimos, exclusivos do territrio

    correspondente Beira Interior portuguesa. Assim, e considerando o mbito especfico desta

    regio, encontramos aqui referncia aos tenimos Bandi, Reve, Munidi e Nabia, atestados em

    abundantes testemunhos provenientes de mbitos mais alargados e de regies externas ao

    territrio e ao panteo exclusivo da Beira Interior; tenimos como Arentio, Quangeio,

    Trebaruna, Erbina e Laneana registados simultaneamente na Beira Interior, Estremadura

    Espanhola e, em raras excees, nas margens sul do vale do Tejo; e, por ltimo, tenimos

    exclusivos da regio estudada como Igaedo, Aratibro, Aetio, Laepo, Oipaegia, Aelua, Asdia,

    Trebopala e Iccona Loimina (atestados em um ou mais monumentos).

    Reafirmando a singularidade da regio em anlise, e estabelecendo uma comparao e

    analogia entre a Beira Interior e Beira Litoral, territrio que lhe contguo, verifica-se a

    ausncia, nesta ltima regio, de tenimos como Arentio, Quangeio, Trebaruna, Munidi e

    Reve. A regio da Estremadura portuguesa, Ribatejo e Alentejo, regista, por sua vez,