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Universidade Federal do Rio de Janeiro DOS SINOS QUE DOBRAM PELOS DO MAKULUSU Isabel Bellezia dos Santos Mallet 2017

DOS SINOS QUE DOBRAM PELOS DO MAKULUSU - Programa de … · fazer desta uma contribuição de bases sólidas aos estudos das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, foi eleito

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

DOS SINOS QUE DOBRAM PELOS DO MAKULUSU

Isabel Bellezia dos Santos Mallet

2017

DOS SINOS QUE DOBRAM PELOS DO MAKULUSU

Isabel Bellezia dos Santos Mallet

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Ps-Graduao em Letras Vernculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obteno do ttulo de Doutor em

Letras Vernculas (Literaturas Portuguesa e

Africanas).

Orientadora: Professora Doutora Maria Teresa

Salgado Guimares da Silva

Rio de Janeiro

Junho de 2017

DOS SINOS QUE DOBRAM PELOS DO MAKULUSU

Isabel Bellezia dos Santos Mallet

Orientadora: Professora Doutora Maria Teresa Salgado

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras

Vernculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a

obteno do ttulo de Doutor em Letras Vernculas (Literaturas Portuguesa

e Africanas).

Examinada por:

_________________________________________________

Dra. Maria Teresa Salgado Guimares da Silva - UFRJ

_________________________________________________

Dra. Gumercinda Gonda - UFRJ

_______________________________________________

Dr. Slvio Renato Jorge UFF

_____________________________________________

Dr. Mrio Csar Lugarinho - USP

______________________________________________

Dra. Claudia Fabiana Cardoso - UNIABEU

_________________________________________________

Dr. Jorge Fernandes da Silveira - UFRJ

_________________________________________________

Dra. Claudia Amorim - UERJ - Suplente

Rio de Janeiro

Junho de 2017

minha filha, Maria Luiza, e ao meu afilhado, Gabriel, que fizeram nascer, como num ato de

generosidade com o mundo, a maciez, a doura e a boniteza que, at ento, a palavra amor

desconhecia.

Ao meu marido, Joo Paulo, pelo amor sem conta, que cabe, todo ele, num abrao de manter a

gente protegido e certo de que a felicidade mora ali.

A coragem isto: meter o pssaro do medo na capanga...

(Jos Luandino Vieira, In: Ns, os do Makulusu)

AGRADECIMENTOS

queles que, em delicado pouso, tm soprado, aos meus ouvidos, vozes de

coragem, matria-prima necessria tessitura de novas manhs.

minha me, Rita de Cssia Bellezia Mallet, pela vida.

Aos meus pais, Roberto e Jacenir, por ensinarem-me o amor e a honestidade.

minha av, Dila (in memoriam), por ter sido, tantas vezes, a minha calma.

Aos meus irmos, Luiza, Ana e Roberto, sempre a fazerem de sua companhia o

refgio para as minhas angstias.

minha irm Luiza, pela reviso atenta e cuidadosa.

Aos meus queridos sogros, Aldo e Fernanda, pelo amor e pela generosidade, sem

os quais esse trabalho no teria sido possvel.

CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior -,

pelo fomento que possibilitou minha dedicao ao doutorado.

Aos meus alunos, cujo olhar delicado e a fome inconteste de novas visagens

ajudam-me a extrair, da juventude, a crena irrestrita no futuro.

amiga Maria Teresa Salgado, pela orientao, mas, sobretudo, pela amizade, a

fazer desta escrita um percurso menos solitrio.

SINOPSE

A angstia em Ns, os do Makulusu, de Jos Luandino Vieira: a

centralizao da angstia ligada vivncia do autor na cadeia. A

angstia da busca identitria do escritor angolano. A escrita

como forma de resistncia ao quadro de distopia, vigente em

Angola quela altura. Panorama filosfico heideggeriano e

sartreano, em dilogo com as abordagens psicanalticas de

Freud. Centralizao da angstia no ps-guerra e no contexto

colonial. O campo imagtico da obra em consonncia com a

natureza ambgua das personagens.

RESUMO

DOS SINOS QUE DOBRAM PELOS DO MAKULUSU

Isabel Bellezia dos Santos Mallet

Orientadora: Professora Doutora Maria Teresa Salgado

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Letras

Vernculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ,

como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutora em Letras

Vernculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

A inteno condutora deste trabalho caminha em favor da maturao de um processo

reflexivo acerca das particularidades e especificidades que envolvem a sociedade

angolana no momento em que acontecem as lutas pela libertao de Angola, tempo que,

revestido de caos e angstias vrias, apresenta-se como palco propcio ao nascimento de

uma produo ficcional no menos dilacerante e visceral. Com objetivo, portanto, de

fazer desta uma contribuio de bases slidas aos estudos das Literaturas Africanas de

Lngua Portuguesa, foi eleito como objeto de nossa apreciao o romance angolano, Ns

os do Makulusu (1967), de Jos Luandino Vieira. O livro, escrito em apenas uma

semana, enquanto seu autor encontrava-se preso no Tarrafal, revela a presena da

angstia como chave mestra para a escolha de recursos estticos sofisticados, guiados,

sobretudo, pelo narrador-personagem, cujo descentramento evidente marca uma esttica

da angstia, que se pretende investigar ao longo desta pesquisa. Tal investigao busca,

antes, enfatizar que a densidade temtica e esttica do texto em anlise corrobora, pois,

o dilogo com a memria, a histria e a barbrie, em cuja crueldade repousa o impasse

da representao: como fazer a morte e a destruio significarem?

Palavras-chave: angstia / memria / identidade

Rio de Janeiro

Junho de 2017

ABSTRACT

DOS SINOS QUE DOBRAM PELOS DO MAKULUSU

Isabel Bellezia dos Santos Mallet

Orientadora: Professora Doutora Maria Teresa Salgado

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Letras

Vernculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ,

como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutora em Letras

Vernculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

The driving intention of this work is the maturation of a reflective process about the

particularities and specificities of the Angolan society at the time of struggles for the

liberation of Angola, a moment that was coated with chaos and multiple anxieties,

which is presented as a scenario that is appropriate to the birth of a fictional production

no less harrowing and visceral. In order, therefore, to make this work a contribution of

solid foundations to studies of African Literatures of Portuguese Language, the Angolan

novel Ns, os do Makulusu (1967), by Jos Luandino Vieira was selected as the subject

of our analysis. This book was written in just one week, while the author was arrested at

Tarrafal. It reveals the presence of anxiety as the master key to the choice of

sophisticated aesthetic resources, driven mainly by the narrator, who is also a character,

whose express descentralization marks an aesthetic anguish, which aims to be

investigated during this research. Such research seeks to emphasize that the thematic

and aesthetic density of the text supports, therefore, the dialogue with memory, history

and barbarism in which cruelty lies the impasse of representation: "how to make death

and destruction have any meaning? ".

Keywords: anxiety / memory / identity

Rio de Janeiro

Junho de 2017

SUMRIO:

I-PRIMEIRAS PALAVRAS: DO NASCIMENTO DO PROJETO ........................... 12

II- A DOLOROSA APRENDIZAGEM DA AGONIA .............................................. 29

2.1. Da angstia por Heidegger e Sartre ................................................... 30

2.2. Da angstia por Freud ........................................................................ 43

2.3. Da dolorosa aprendizagem da agonia ................................................ 51

III- DA VIA CRCIS DA MEMRIA ..................................................................... 54

3.1. Ontem, Hoje, Amanh: apontamentos ............................................... 55

3.2. Da autobiografia ao testemunho: das confluncias entre memria

individual e coletiva .................................................................................. 62

3.3. Luanda, nossa senhora de amor, amar, a morte ................................. 70

3.4. Nossa outra vida de aqum-tmulo ................................................... 85

IV- POR QUEM OS SINOS DO MAKULUSU DOBRAM? ..................................... 90

4.1. O retorno do pico ............................................................................. 91

4.2. Ser preciso acabar com os heris? ................................................. 101

4.3. O imprio da viso em Ns, os do Makulusu .................................. 110

V- NS, OS DO MAKULUSU? ............................................................................... 122

VI- REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................ 128

Nenhum homem uma ilha, completa em si mesma. Todo homem um pedao do

continente, uma parte da terra firme. (...) A morte de qualquer homem me diminui

porque fao parte da humanidade. Por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos

dobram. Eles dobram por ti.

(John Donne. In: Meditaes)

.I.

PRIMEIRAS PALAVRAS: DO NASCIMENTO DO PROJETO

(...) apesar de tudo, ela, a lngua, permaneceu a salvo. Mas depois de atravessar

o seu prprio vazio de respostas, o terrvel emudecimento, mil trevas de um discurso

letal".

(Paul Celan. In: A arte potica: o meridiano e outros textos)

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A inteno condutora deste trabalho caminha em favor da maturao de um

processo reflexivo acerca das particularidades e especificidades que envolvem a

sociedade angolana no momento em que acontecem as lutas pela libertao nacional,

tempo que, revestido de caos e angstias vrias, apresenta-se como palco propcio ao

nascimento de uma produo ficcional no menos dilacerante e visceral. Com objetivo,

portanto, de fazer desta uma contribuio de bases slidas aos estudos das Literaturas

Africanas de Lngua Portuguesa, foi eleito como objeto de nossa apreciao o romance,

concebido em 1967, mas s publicado em 1975, Ns, os do Makulusu, de Jos Luandino

Vieira. O livro, escrito em apenas uma semana, enquanto seu autor encontrava-se preso

no Tarrafal (o tristemente famoso campo de concentrao do regime colonial

portugus), revela a presena da angstia como chave mestra para a escolha de recursos

estticos sofisticados, analisados mais especificamente no terceiro captulo desta

pesquisa, recursos guiados, sobretudo, pelo narrador-personagem, cujo descentramento

evidente marca uma esttica da angstia, que se pretende investigar ao longo desta

pesquisa. Tal investigao busca, antes, enfatizar que a densidade temtica e esttica do

texto em anlise corrobora, pois, o dilogo com a memria, a histria e a barbrie, em

cuja crueldade repousa o impasse da representao: como fazer a morte e a destruio

significarem? Entende-se, portanto, que passados quase 50 anos de sua criao, a obra

nos oferece, ainda nos dias de hoje, possibilidades de leitura que parecem se renovar e,

ainda assim, refletir algumas das principais questes nacionais, que os ideais

revolucionrios de outrora no foram capazes de solucionar.

Ler esse romance, portanto, deslocado de seu perodo de produo, , ainda

assim, pensar que as discusses, por ele suscitadas, so atuais, na medida em que

testemunhamos uma modernidade que, tal qual Ki-Zerbo afirma, tem se apresentado

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como palco da perpetuao do pacto colonial, imposto ao continente africano. Tal

perpetuao evidencia, ainda segundo o historiador, que o processo deglobalizao a que a

contemporaneidade assiste, faz acirrar a relao entre globalizados e globalizadores, em

substituio a j conhecida relao colonizado x colonizador, o que promove a

erupo de um neocolonialismo, do qual o Brasil no se v muito afastado, tendo

em vista as semelhanas histricas que o une aos pases africanos de lngua

portuguesa. A leitura de Ns, os do Makulusu nos pe, assim, em contato com as

dores e as angstias de sabermos que o relato no passado e, sim, presente.

A seo que, agora, se inicia, pretende, dessa forma, para fins meramente

didticos e organizacionais, pensar, no apenas como se chegou ao acervo terico, aqui

utilizado, mas sobretudo, mobilizar esforos no sentido de entrar em contato com

estudos recentes do ps-colonialismo, estudos que nos sugerem a reviso de uma prtica

de leitura de textos africanos, aps a dcada de 70, antes acolhidos pela academia sob

uma perspectiva eurocntrica, em certa medida, quase obrigatria, uma vez que assim

queria que fosse o colonialismo e a pretensa soberania de uns, em detrimento de outros,

de quem arrancaram a voz e o direito de falarem de si prprios. O que desejamos,

portanto, no , em absoluto, refutar, aleatria e indiscriminadamente, o valor de

pensamentos que, mesmo nascidos em espaos europeus, trazem consigo contribuies

s literaturas de mais diversas nacionalidades. Em razo disso, no se pde fugir, no

captulo que se segue, das abordagens psicanalticas freudianas do termo "angstia",

abordagens sedimentadas e veiculadas num longo perodo de tempo que compreendeu

os momentos em que se delineavam as duas grandes guerras mundiais1. No se busca,

no entanto, aplicar, ao romance em anlise, nenhum mtodo psicanaltico, mas fazer da

1 Aqui, pensamos com Peter Gay, historiador e autor de Freud: uma vida para o nosso tempo. Nesta obra

biogrfica, o historiador faz um apanhado do pensamento de Freud e sugere algumas razes histricas

para o afeto da angstia, relembrando que a necessidade de sua abordagem pelo psicanalista se faz to

mais frequente quanto mais avassaladores se mostram os impactos da Primeira Guerra Mundial na vida de

Freud.

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psicanlise um reduto, onde os sentimentos e emoes que nos comovem, em Ns, os

do Makulusu, encontram tambm lugar, pondo-nos diante de conflitos e traumas que

regem, ainda hoje, o tecido social angolano, no qual estiveram centralizadas, por muito

tempo, a fome e a escassez de recursos vrios.

Nossas reflexes iniciais apontam, portanto, para importantes discusses que

enfatizam o ps-colonialismo, bem como toda a literatura que preconiza prticas

discursivas que, para alm de problematizarem e destacarem alguns dos principais

efeitos culturais da colonizao, pretendem questionar e, por fim, romper com

estratgias discursivas, concebidas segundo moldes europeus de produo. Para tanto,

evidente que a pesquisa em curso deixa de considerar o termo ps-colonial em sentido

estritamente cronolgico, como assumiu aps a Segunda Guerra Mundial, para entender

o termo, conforme a crtica a partir dos anos setenta o concebe: englobam-se, nele, no

apenas os escritos provenientes das ex-colnias da Europa, como tambm todo um

universo de recursos discursivos e performativos reveladores de sentidos crticos sobre

o colonialismo. Dessa forma, , nesse momento, que se evita tratar, mais

veementemente, as novas literaturas como extenso da literatura europeia, avaliando sua

originalidade e buscando considerar questes, por vezes, complexas, tais como sentido,

valor, cnone, universalidade, diferena, hibridismo, etnicidade, identidade, dispora,

"nacionalismo, zona de contato, ps-modernismo, feminismo, educao, histria, lugar,

edio, ensino etc., abarcando aquilo que se pode designar como uma potica da cultura

e criando uma instabilidade no domnio dos estudos tradicionais" (LEITE, 2012, p.132).

Os estudos ps-coloniais, iniciados a partir da dcada de 1970, como sinalizado

anteriormente, refletem, antes, questes especficas do colonialismo britnico, o que

revela a necessidade de adequao nossa rea, uma vez que as condies e o

desenvolvimento do colonialismo portugus foram outras, a citar as guerras coloniais

16

que atrasaram em, aproximadamente, quinze anos as independncias polticas, se

comparadas aos espaos africanos anglfonos, e os subsequentes regimes de feio

socialista que se instalaram naquelas, j ento, ex-colnias. As especificidades da

colonizao em territrios africanos lusfonos so, ainda, pensadas por Boaventura

Sousa Santos no que diz respeito ambivalncia, hibridez e miscigenao, cenrio

que antecipa a oscilao entre categorias que a histria sedimentou como estanques:

colonizador e colonizado. O que se pretende com tal afirmao no , em absoluto,

amenizar os efeitos do colonialismo portugus em frica e, sim, ressaltar, ainda

segundo abordagem de Boaventura Santos, que a penetrao territorial, seguida da

sexual e da interpenetrao racial, parece conferir, aos portugueses e aos africanos,

significantes flutuantes: "nem identidade emancipadora, nem identidade emancipada,

oscilou entre Prspero e Caliban como que em busca da terceira margem do rio de que

fala Guimares Rosa" (SANTOS, 2002, p.43). Tal ambivalncia , notadamente,

importante marca na trajetria de Luandino Vieira, cuja condio de portugus, de

nascena, e de homem branco une-se outra de habitante de musseque, que se deseja

fundir ptria escolhida, assumindo-a como sua. dessas ambivalncias, igualmente,

que o livro trata, como se pode ver no trecho a seguir, em que o narrador-personagem,

em dilogo de feies monolgicas com a me, articula noes de alteridade e das

condies igualmente de submisso que um colono, por vezes, assume em territrio

colonizado.

Sabes, me: s uma colona; ocupas um lugar que outrem no pode ocupar; tudo isso a

pura verdade - mas no ser esta lei s de fsica? - mas desconfio, mezinha, que s como

tens sido sempre desde que vais comear apanhar azeitona dentro de invernos frios e

descalos da tua infncia, um bode expiatrio. Mas se no existisses e contigo outros e

outras e outros e eu, como ia ser ento que uns tivessem lugar que outro alheio no vai

poder ocupar? (VIEIRA, 1991, p.44).

As leis da fsica, categorizantes e setorizantes, como se supe no trecho acima,

esto longe de conseguirem dar conta da histrica hibridez entre colonizador e

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colonizado, hibridez que, se sabe bem, invade o corpo lingustico dos textos literrios

produzidos por escritores africanos lusfonos, responsveis por promoverem um

apossamento da lngua, que se d atravs de "vrios modos de supresso da norma do

portugus metropolitano, de que resultaram vrias combinatrias, exemplares de

hibridismo lingustico" (LEITE, 2012, p.133). Desse apossamento, representativo,

ainda no tempo colonial, Jos Luandino Vieira que, fazendo coexistir a oralidade e a

escrita, d-nos a ver uma recriao sinttica e lexical, que se mostra, por vezes, invadida

por outras lnguas nacionais.

Por esse motivo, as especificidades no processo da colonizao portuguesa em

frica asseguram-nos a legitimidade de uma fecunda discusso sobre a formulao de

novos lugares tericos que abarquem esse diversificado corpo das literaturas ps-

europeias, especialmente daquelas que apresentam laos estreitos com a oratura, que

objetivam, em ltima anlise, a afirmao de uma diferena social e cultural e que, em

certa medida, anunciam o nascimento de escritos, em que a hibridez dos gneros torna-

se, pois, evidente. Essa "indeterminao genrica" (Ibidem, p.101) reflete, assim, a

partilha de vrios gneros, como a autobiografia, a narrativa-mtica, conduzidos por

recursos, procedimentos e formas orais: "A cenografia ps-colonial revela, em

concluso, que h uma tentativa de partilha e de conciliao de universos simblicos

diferentes, em que a polifonia e a hibridao so reveladores de uma rica e dramtica

interao cultural" (Ibidem, p.102).

Evidentemente que a discusso, citada anteriormente, demandaria um espao

fsico e uma dedicao, de que no dispomos nesse momento por no ser esse o objetivo

de nossa pesquisa. No entanto, pontuar alguns aspectos da necessidade de renovao

terica, que se tem a partir dos estudos ps-coloniais, significa no deixar perder de

vistas o empenho em fazer dessa uma leitura que objete a hegemonia eurocntrica, que

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se fez passar, tantas vezes, por universalismo. Essa postura demanda um

questionamento do cnone, questionamento que caminha em direo ao confronto com

"um sistema de valores institudos por grupos detentores de poder cultural, que

legitimaram um repertrio, com um discurso, por vezes, classificado de globalizante"

(LEITE, 2012, p.143). Nesse sentido, importante entender que o ensino colonial

produziu uma gerao voltada para a literatura dos colonizadores, literatura que

transmitia uma perspectiva imperialista de organizao mundial e que reproduzia a

hegemonia cultural do Ocidente. Por esse motivo, pensar a literatura de Luandino Vieira

requer que recusemos, a um s tempo, uma hegemonia crtica eurocntrica que se faa

passar por universalismo e uma leitura meramente antropolgica do texto, como se esse

fosse um dado sociolgico e no merecesse nem exigisse uma interpretao literria.

Para tanto, entendemos que a seleo do acervo terico parte no daquilo que se

considera mais adequado, mas daquilo que se entende como um "modo produtivo de

interpretao" (APPIAH, 1997,p.106), tendo em vista o texto como "evento lingustico,

histrico, comercial e poltico; e, embora cada um desses modos de conceber o

mesmssimo objeto fornea oportunidades pedaggicas, cada qual oferece

oportunidades diferentes: oportunidades entre as quais temos que escolher" (Ibidem).

Importa-nos, dessa forma, assumir o texto do autor angolano como um produto do

encontro colonial e no apenas como uma mera continuao nativa nem como simples

intromisso da metrpole, o que nos impele crena de que parte dos materiais crticos,

aqui utilizados, poderiam s-lo nos dois lados do Atlntico, fazendo ganhar notoriedade

os traos formais que brotam, a um s tempo, da proximidade que Luandino mantm

com as tradies vivas das narrativas orais e com o Neorrealismo Portugus, por

exemplo. Essas questes inserem "o escritor, o leitor e a obra num contexto cultural - e,

portanto, histrico, poltico e social" (APPIAH, 1997, 109), contexto que nos obriga a

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entender a frica como um lugar de interseo e ambivalncias que requerem um olhar

atento para Europa sob pena de, se no o fizermos, eliminar conflitos que moldaram as

identidades autctones. Dito isso, fundamental que se destaque que essas

interdependncias mtuas que a histria tratou de lanar sobre europeus e africanos

parecem ter, de alguma forma, propiciado o nascimento de projetos literrios

contemporneos diferentes nesses dois continentes, projetos esses que Appiah definiu,

"a ttulo de slogan, como a diferena entre a busca do eu e a busca de uma cultura"

(APPIAH, 1997, p.113) e que pe em evidncia um eu coletivo e, no, individual, que

se dispe, como veremos, em momento oportuno, a recompor ou, se quisermos,

compor, muitas vezes, atravs de um componente imaginrio, a identidade de um grupo.

Para a frica, essa autenticidade basicamente uma curiosidade: apesar de formados na

Europa ou em escolas e universidades dominadas pela cultura europeia, os escritores

africanos no tm seu interesse voltado para a descoberta de um eu que seja objeto de

uma viagem interior de descobrimento. Seu problema - embora no seu tema, claro -

consiste em descobrir um papel pblico, no um eu particular. (...) Assim, embora o

europeu possa sentir que o problema de quem ele ou ela constitui um problema

particular, o africano sempre pergunta, no "quem sou eu?", mas "quem somos ns?".

"Meu" problema no apenas meu, mas "nosso"." (APPIAH, 1997, p115-116).

Assim, cientes dos estudos ps-coloniais e cuidadosos para que os avanos,

obtidos na abordagem terica dos textos literrios africanos, sejam assegurados,

julgamos relevante, ao propormos o detalhamento de uma esttica que reconhea, na

angstia, seu impulso motor, dialogar com importantes tericos da angstia do incio do

sculo XX, palco de importantes eventos blicos, a saber a Primeira e a Segunda

Guerras Mundiais. Lembra-se que o contexto de guerra interessa-nos especialmente,

tendo em vista que o romance d corpo a uma narrativa que se passa em situao

semelhante, evidenciando a relao desse momento histrico com o afeto estudado,

afeto que brota, no mais das vezes, da conscincia que o sujeito toma de sua finitude,

bem como de seus limites fsicos e psquicos. Em razo, portanto, das reflexes feitas,

traaremos, a partir de agora, o caminho terico percorrido para que tivssemos real

20

clareza dos contornos conceituais assumidos pela esttica da angstia, num contexto de

produo to especfico, como o de guerra, em que o eu coletivo, muitas vezes, se

sobrepe ao eu individual.

Para que demos continuidade ao que se anunciou anteriormente, interessa-nos

recuperar o contexto em que nasce o projeto. O primeiro contato com o romance, a um

s tempo, despretensioso e entusiasmado, se fez durante o mestrado (2009-2011).

Paralelamente leitura da obra, dava-se, igualmente, a aproximao com professores de

reas diversas, dentre os quais se destaca ngela Beatriz Faria, responsvel por dar a

conhecer, nesta instituio, no mbito da Literatura Portuguesa Contempornea, estudos

sobre as estticas da crueldade, tematizadas e referidas, inmeras vezes, no seminrio

de mesmo nome, realizado em 2003 no Instituto de Letras da Universidade Federal

Fluminense (UFF). Os trabalhos, apresentados durante o evento, ganharam unidade no

livro Estticas da crueldade, organizado por ngela Maria Dias e Paula Glenadel.

Segundo a primeira estudiosa, em artigo que inaugura o livro, a crueldade, referida, por

ela, no que concerne cultura brasileira recente, parece assumir dois sentidos

primordiais. O primeiro estaria vinculado ao retrato de uma sociedade de consumo, cujo

capitalismo produz "equivalncias e vnculos entre homens e coisas", naturalizando a

vontade de domnio como desejo mais forte e disseminando "a espoliao, em todas as

verses mais sutis e sedutoras, como "modus operandi" da socializao" (DIAS, 2004,

p.17). Dessa forma, ngela Maria Dias conclui que o primeiro sentido, que o princpio

de crueldade, como diretriz de organizao formal, assume, refere-se violncia

"embutida nas imagens perversas do consumo e da cobia" (Ibidem, p.18).

quela altura, inevitavelmente, parte desses pressupostos tericos passaram a

balizar algumas das visitaes que vinha fazendo a textos africanos, ditos ps-coloniais,

no centro dos quais esto inmeras formas de crueldade, todas elas vinculadas s

21

consequncias do capitalismo mercantil que, acirrado, liderou os empreendimentos

coloniais em frica, espao em que se v, mais fortemente, "o corte, o abismo das

distncias sem resgate, o mtuo estranhamento entre seres e mundos forados a um

confronto" (DIAS, 2004, p.21). Revelam-se, assim, a crueldade que irrompe de um

capitalismo feroz que esteve, impiedoso, frente da colonizao, sobretudo, de Angola,

foco de nosso interesse; a da violncia fsica e, por vezes, sdica que marcou a

colonizao e a luta pela libertao dos espaos africanos de lngua portuguesa; aquela

que emerge da relao conflituosa de indivduos representantes de culturas e interesses

diversos; a que nasce em meio desigualdade social que marcou, e tem marcado ainda,

a sociedade angolana. Parece que so dessas crueldades que Jos Luandino Vieira cuida

de narrar em Ns, os do Makulusu e foi assim que Jos Martins Garcia as definiu:

Neste mundo - tanto dos adultos como das crianas, tanto de pretos como de brancos e

mestios, tanto de exploradores como de explorados - neste mundo tecido de Histria e de

sangue, violaes, adultrios, atropelos, supersties, religiosidades conjugadas, almas-

penadas, feitios, chicotadas e priso, terrorismo e fome, neste mundo arquitectado por

Luandino Vieira a partir daquilo que foi e sua ptria, reconhece-se a milenria injustia

da existncia do senhor e do escravo. Mas, igualmente, a conscincia do lao

imprescindvel que, unindo-os, os revela mutuamente como seres face da Terra"

(GARCIA, 1974, p.49).

Nesse sentido, convm lembrar que a crueldade explcita (e mesmo a implcita)

pelos contornos poltico-sociais, que a implantao e a sedimentao coloniais

delinearam, parte, antes, do conflito e do choque das etnias e de suas respectivas

culturas que culminou, inicialmente, num fenmeno, atravs do qual se tentou suprimir

uma delas, aquela dita inferior, e em seguida, na inevitvel interpenetrao de vrios

sistemas simblicos e no dilogo irremediavelmente violento entre Europa e frica.

Essa violncia atesta, em certa medida, que a voracidade do olhar de estrangeiro sobre o

indivduo colonizado revela-se radicalmente inscrita na forma como os nativos se

relacionam com sua prpria imagem e sua maneira de estar no mundo, uma vez que,

segundo Frantz Fanon afirma em Pele negra mscaras brancas, a alma negra fruto da

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criao do homem branco. O cenrio descrito leva-nos, assim, a investigar o segundo

sentido, ainda pautado nos escritos de ngela Maria Dias, de crueldade, inscrita numa

esfera contempornea de produo literria, cinematogrfica, bem como de outras

formas miditicas. Chegamos ao sentido de crueldade, tal qual Clment Rosset a

concebe: "a crueldade do real".

Esta residiria no carter nico, trgico e, consequentemente, irremedivel e

inapelvel desta realidade, o que geraria, nos homens, um sentimento de que o real

insuficiente, uma vez que ainda no se criaram mecanismos de "decifrao" capazes de

darem conta de uma realidade, paradoxalmente, inesgotvel e escassa. Por esse motivo,

ngela Maria Dias afirma que tal "insuficincia do real" gera, nos homens, ainda, o

sentimento de que sua decifrao s se daria com o apoio de instncias exteriores ao

texto. Tal pensamento caracterizaria o que Clment Rosset chama de "princpio de

realidade insuficiente" e que se traduz na seguinte pergunta: "At que ponto vai a

linguagem, diante da tenso do que no pode ser dito, do horror que no pode ser visto,

do trauma que ficou na antessala do simblico?" (DIAS, 2004, p.18). A importncia

dessa indagao se faz to mais clara quanto mais claro se torna o contexto de produo

dessa literatura que lida, no mais das vezes, com a crueldade da existncia num mundo

marcado pela violncia da colonizao e das lutas de libertao dos espaos, antes

submetidos a sistemas polticos de represso.

Lembra-se que a narrativa, em anlise, , pois, inaugurada com um tiro que

representa, ele mesmo, o impondervel, a violncia, a morte e a destruio, que no se

d conta de representar e que materializam, paradoxalmente, "a decomposio de um

universo, cuja inviabilidade j se anunciava" (CHAVES. In: VIEIRA, 1991, p.4):

"Simples, simples como assim um tiro: era alferes, levou um balzio, andava na guerra e

deitou a vida no cho, o sangue bebeu" (VIEIRA, 1991, p.11). O tiro que mata

23

Maninho, irmo caula do narrador-personagem, vem atestar, em definitivo, que a obra

no pretende abdicar de um vnculo estreito com o real, o que se concretiza a cada

referncia a um presente amargo, redimensionado em dor pela morte anunciada, e que

serve como "ponte para um mergulho noutro universo, o mundo recordado da infncia,

configurado num Makulusu um tanto mgico, aceso ainda que nas cores longnquas de

um tempo em que o grande risco era enfrentar "maquixes" e "quinzares" no interior das

cavernas" (Ibidem, p.5). Trata-se dos estilhaos, como veremos no terceiro captulo

deste trabalho, de uma memria que, em fragmentos, faz coexistir passado e presente,

antecipando contornos de uma autobiografia em que o eu, distanciado da

individualidade subjetiva, vai penetrando a subjetividade coletiva de um grupo. "Mais

do que propriamente uma autobiografia, Luandino constri, como afirmou Antonio

Candido, a respeito de Carlos Drummond de Andrade, uma heterobiografia, pois que

temos ali a histria de todo um complexo social" (Ibidem, p.5).

(...) Ns, os do Makulusu (...) o livro onde consegui abarcar uma zona maior da

realidade angolana colonial. E que se situa num perodo tambm onde as contradies

eram mais visveis e mais violentas, j depois do incio da luta armada de libertao.

aquele onde h um pouco de reflexo mais profunda sobre alguns problemas j

desligados do seu contexto circunstancial - questes como a morte, o amor, a violncia.

E gosto dele porque um livro que termina por uma interrogao. um livro que fica

em aberto. E se termina assim porque penso de qualquer modo continuar com

interrogaes naquele sentido ou ver se j h alguma resposta para o problema que o

livro, quando termina, parece levantar. Alm disso, gosto dele porque tambm pus

muito de mim mesmo neste livro. um livro, de certo modo, autobiogrfico (VIEIRA,

1980).

As reflexes tericas expostas, at o momento, podem causar, em parte,

estranhamento, uma vez que se estava a discutir, h poucos instantes, aspectos

relevantes das estticas da crueldade, o que difere da proposta inicial de nosso projeto,

cujo objetivo primeiro mapear, em Ns, os do Makulusu, tendncias de uma esttica

da angstia, que se pretende construir, conceitualmente, ao longo do presente trabalho.

Portanto, convm, antes, esclarecer que o que se acredita comum entre as duas estticas

so, por fim, os ndices de violncia e crueldade que se veem registrados na

24

manifestao artstica sobre a qual nos debruamos; em comum tambm est a origem

desta crueldade: sistemas polticos, econmicos e sociais que insistem em igualar

homens e coisas, num matar e morrer cclico que parece ser, ele mesmo, parte de uma

engrenagem poltica, em que vigora o extermnio de pessoas e de seus ideais.

Tambm sei, Coco, tambm sei e por isso mesmo que eu te estou a falar assim: era a

poca, era a mentalidade, era matar e morrer, era uma lei que nem sabiam que obedeciam,

sei-o como tu; mas tudo saber e tudo compreender no tudo aceitar; no venhas me

pedir para, daqui, do ano de 1962, aceitar, na nossa terra de Luanda, aceitar, no venhas

me pedir para compreender. Era a mentalidade da poca, mas a poca j l vai e a

mentalidade ficou e isso que no pode ser, meu amigo Coco que ris documentos. No

pode ser! (...) A carta de doao somos ns que vamos fazer, mas no aproveitar, isso,

ando h um ano na guerra, tenho sangue em todo o lado e isso autoriza de te dizer: vamos

selar a carta de doao, ns, que combatemos e nos olhamos e matamos uns aos outros. O

resto pertence histria: se a poca foi, a mentalidade tem de ir, nem que seja bomba,

granada - e ns, meu amigo, somos mentalidade e s pertencemos histria j, hoje, aqui

neste largo, em baixo destas rvores e este luar da nossa terra de Luanda" (VIEIRA, 1991,

p.49-50).

Diante, portanto, da violncia fsica e ideolgica, h pouco narrada, resta-nos a

pergunta: afinal, o que distinguiria conceitualmente as estticas referidas anteriormente?

Acredita-se que aquilo que, mais fortemente, diferenciaria esses dois modos de

organizao formal, como se tem visto, at o momento, uma disposio absolutamente

refratria, nas estticas da crueldade, a tudo o que se assemelha esperana ou a

resqucios utpicos, dos quais se acredita que a angstia luandina no se afasta. O

trabalho formal, em Ns, os do Makulusu, conclama, ele mesmo, por uma liberdade,

sinalizadora de esperana, da qual a sociedade angolana se via distante naquele

momento.

Ns, os do Makulusu (...) comprova o que sobre ele afirmou outro escritor, o portugus Augusto

Abelaira, para quem, em funo do contexto histrico e graas qualidade de sua obra, o

nome de Jos Luandino Vieira se inscreve "no apenas na histria da lngua portuguesa

(ele no precisava disso), mas na histria da liberdade" (CHAVES. In: VIEIRA, 1991,

p.7).

A esperana, de que falamos acima, vem, j h algum tempo, frente de

alguns de nossos projetos acadmicos, que culminaram, em 2011, na dissertao De

como cresce em segredo a esperana, em que se contemplou a obra Bom dia camaradas

25

(2000), de Ondjaki. Naquela ocasio, quis-se observar e, em certa medida, elencar os

recursos formais que contribuiriam para que a abordagem temtica, privilegiada pelo

romance, se apresentasse, na cena literria angolana, como uma alternativa ao desnimo

que se via instalado em algumas das principais esferas nacionais, sobretudo, no perodo

que sucedeu a independncia e durante a devastao da guerra civil. Para tanto, optou-

se, naquele momento, por contemplar a delicadeza, segundo Calvino, como sinalizadora

de um desejo de reconstruo de um trajeto de esperana, do qual Angola havia se

afastado. Dessa forma, o estudo de estratgias, prprias do riso, ora em desacordo, ora

em consonncia com escritos bergsonianos, deu-nos a ver o humor como estratgia

capaz de sinalizar a existncia de uma dinmica dialtica entre alegria e esperana, que

se acreditava predominantes no romance, e o sofrimento e o desnimo que, talvez,

antecedessem a busca pela felicidade, aquela no-idealizada, aquela que pressupe, ela

mesma, a presena de seu par dissonante.

Passados alguns anos, essa mesma esperana que nos interessa e que

impulsiona o nascimento de novos estudos que antecipam um desejo de

aprofundamento, no apenas terico, mas sobretudo, esttico-literrio do par dissonante

da esperana e da felicidade, que se citou outrora (com Ondjaki), com o sentimento

bsico do mal-estar e da angstia, trazidos desde o primeiro momento pela fico

luandina, para a cena da afirmao literria angolana. Entende-se, assim, que a angstia,

a ser analisada a partir deste momento, no se pretende, como j se procurou dizer,

absoluta ou desvinculada de sinalizadores de alegria e, tampouco, desarticulada do texto

literrio. ele mesmo que nos apresenta o tema como relevante e pertinente, no apenas

aos contornos distpicos que delineiam a modernidade angolana, como tambm

condio humana.

26

Para tanto, quer-se, mais uma vez, esclarecer que as inmeras formas de

crueldade, no romance angolano, embora no sejam foco direto de nosso interesse,

sero consideradas, como seria inevitvel, uma vez que falar de uma obra que tematiza,

entre outros aspectos, as implicaes sociais da colonizao em Angola, significa entrar

em contato com demasiadas situaes de violncia. No entanto, o foco de nossa

investigao amplia-se, na medida em que se quer observar, temtica e esteticamente,

de que forma a crueldade citada resulta em angstia para o narrador-personagem, mas

no s para ele; trata-se de todo um complexo social. Dessa forma, a angstia, "como

uma reao sobre um modelo especfico a situaes de perigo" (FREUD, 1996, p.83),

aponta, de um lado, para a crueldade que a precede e, de outro, para a esperana, que

no seu oposto e, sim, um de seus pares, com o qual Luandino inaugura o romance:

...mukonda ku tuatundu ki,

k tutena kumona-ku dingi kima.

O kima, tu-ki sanga,

kiala ku tuala mu ia

...de onde viemos,

nada h para ver.

O que importa est l,

para onde vamos2 (VIEIRA, 1991, p.9).

As evidncias de importante presena da angstia ao longo da narrativa

sinalizavam, quela altura, que, para alm das concepes filosficas e psicanalticas

que ela assumiu no ltimo sculo, nossos esforos, no prximo captulo, deveriam

caminhar em direo investigao da presena, na narrativa, de mltiplas angstias,

sugeridas por elementos que emergem ora do texto ora de recursos extratextuais, a citar:

uma angstia existencial, que antecede qualquer forma posterior de angstia; a angstia 2 Epgrafe extrada de um conto popular angolano, "O passado e o futuro", do qual se extraiu a seguinte

passagem: "Dois homens caminhavam por uma estrada quando encontraram um vendedor de vinho de

palma. Os viajantes pediram-lhe vinho e o homem prometeu satisfaz-los diante de uma condio: - Tem

de me dizer os vossos nomes. Um deles falou: - Chamo-me De Onde Venho. E o outro: - Para Onde Vou.

O homem aplaudiu o primeiro nome e reprovou o segundo, negando a Para Onde Vou o vinho de palma.

Comeou uma discusso, e dali saram procura de um juiz. Este ditou logo a sentena: - O vendedor de

vinho de palma perdeu. Para Onde Vou que tem razo, porque De Onde Venho j nada se pode obter e,

pelo contrrio, o que se puder encontrar est Para Onde Vou" (MOUTINHO, Viale, 2000).

27

ps- Primeira e Segunda Guerras Mundiais, que parecem ter instaurado novas formas de

se fazer literatura; a angstia do autor africano frente a uma busca identitria, no cerne

da qual est o desejo de "construir uma nova sociedade [africana] cuja identidade no

seja conferida de fora" (ZOUNGRANA, In: APPIAH, 1997, p.77); a angstia associada

restrio fsica e poltica, pela qual o autor passou entre as dcadas de 1960 e 1970,

angstia que resulta, tambm, do embate entre a liberdade do texto e a represso

extratextual; a angstia diante da liberdade, que a independncia trouxe, mas que se

assemelhava a um engodo, destinado a produzir ainda mais escravizao e horror. Sobre as

inmeras formas de angstia, presentes no livro, Rita Chaves escreve:

A opacidade das relaes, nesse tempo em que a abstrao a norma, solicita do artista a

vontade concreta de penetrar a nebulosidade e a literatura, que se quer lmina fina, no

pode ceder tentao de aderir ao real, imitando uma transparncia que a vida j baniu. A

dor e o sacrifcio que, no reino do lucro, caracterizam o trabalho, faz tempo, j

contaminaram a arte que, para falar da vida, no pode renunciar ao corte, s fraturas, ao

estilhao. Cabe-lhe, pois, tambm a tarefa de recolher os fragmentos e reorganizar o

universo para sempre abalado (CHAVES, IN: VIEIRA, 1991, p.6).

Ns, os do Makulusu representa, ele mesmo, o jogo, seno de opostos, de foras

dissonantes de que vnhamos falando, tendo em vista que, apesar da violncia, da

barbrie, das condies subumanas e degradantes vividas, sobretudo pelos habitantes de

musseques, sobressaam, na narrativa, no cenrio, nas personagens, algumas cores

luminosas da esperana de que dias mais felizes viriam. Tal dinmica dialtica caminha,

pois, ao encontro daquilo que Ernst Bloch j nos sinalizava em 1918, quando da

publicao de O esprito da utopia, cujos esboos culminaram, mais tarde, na

publicao dos trs volumes de Princpio Esperana (1938-1947). Segundo o estudioso,

a sociedade, sobretudo aquela que se delineou aps a Primeira Guerra Mundial (1914-

1918), vive o "entrelaamento de sentimentos impulsivos contraditrios: angstia e

desejo coincidem no inconsciente" (BLOCH, 2005, p. 87).

essa realizao tortuosa, no exatamente livre de suspeitas, que impede ou ao menos

dificulta, mesmo em regies mais elevadas, que tudo seja cor-de-rosa. Uma poro de

pretume adicionada, aprofunda as cores, cria uma dissonncia na felicidade demasiado

28

previsvel, portanto inspida, assinala a altura do desejo como igualmente profunda

(BLOCH, 2005, p.87).

Entre a angstia e a esperana, o projeto parece ter, finalmente, assumido uma

forma, segundo a qual nos importava, verdadeiramente, refutar a hiptese, bastante

comum, de que a angstia um afeto que circula por um universo lingustico, filosfico,

psicanaltico e literrio, em que sobressaem exclusivamente ndices negativos e

pessimistas. A partir do captulo, que se segue, caminharemos em direo tentativa de

vincular a angstia a um afeto experimentado em meio dor e a uma situao de

sofrimento intenso, mas que denota, igualmente, uma experincia de coragem de um

sujeito que se assume num mundo cruel, para o qual so necessrios novos projetos,

novos desejos, novos homens. Para tanto, optamos por comear a tratar conceitualmente

da angstia pelo vis filosfico existencialista, antes mesmo do psicanalista, embora

nem sempre essa organizao siga uma ordem cronolgica. Dedicar-nos, antes,

angstia existencialista significa apenas suspeitar de que, por ser inerente condio

humana, ela precede a qualquer organizao social e poltica que se apresente.

.II.

A DOLOROSA APRENDIZAGEM DA AGONIA

Quanto mais repressiva a lei, mais explosivo o esprito, tal como numa

mquina a vapor.

(Balzac. In: Iluses Perdidas)

30

2.1- Da angstia por Heidegger e Sartre

Tendo em vista o que se procurou expor at o momento, propomos, inicialmente,

revisitar algumas abordagens filosficas do conceito de angstia, vinculando-as, por

fim, ao contexto scio-poltico que vigorava no momento em que a obra em anlise foi

concebida. Assim, quer-se pensar de que forma a centralizao da angstia no ps-

Primeira e Segunda Guerras Mundiais nos permite, igualmente, pensar nos perigos

inerentes ao colonialismo e ao adoecimento social por ele provocado. As abordagens

filosficas pr-existencialistas de Kierkegaard, no final do sculo XIX, e existencialistas

de Heidegger e Sartre, cujos textos foram j concebidos em meio renncia dos

utopistas diante das atrocidades testemunhadas nas experincias blicas j citadas,

sero, em momento oportuno, contempladas luz da centralizao da angstia que

parece, desde sempre, ter estado no cerne da busca identitria dos escritores angolanos.

No caso de Jos Luandino Vieira, plausvel acreditarmos, ainda, que a experincia do

encarceramento, por mais de uma dcada, possa ter colaborado para o agravamento do

sentimento de angstia. Nesse sentido, faz-se relevante observar de que forma a

abordagem de aspectos econmicos, polticos e sociais daquele momento confirma o

mal-estar generalizado e constante que tomava conta da nao angolana durante a

dcada de 1960.

O cenrio de guerra, com que o livro nos pe com contato, nos remete a um

momento histrico em que se j havia assistido s atrocidades de uma guerra brbara e

em que se estava prestes a viver outra de propores igualmente cruis: a Primeira e a

Segunda Guerras Mundiais. O contexto scio-poltico que se apresentava altura da

Primeira Guerra nos antecipa uma nova forma de narrar ou, segundo Walter Benjamin

supunha na dcada de 1930, evidncias de que a arte de narrar estaria em vias de

extino, uma vez que estaramos privados da "faculdade de intercambiar experincias"

31

(BENJAMIN, 1986, p.198). A Primeira Guerra Mundial anunciaria, enfim, o

nascimento de sujeitos lanados saga da incomunicabilidade, tendo em vista que

"nunca houve experincias mais radicalmente desmoralizantes que a experincia

estratgica pela guerra de trincheiras, a experincia econmica pela inflao, a

experincia do corpo pela guerra de material e a experincia tica pelos governantes"

(Ibidem). , assim, que o escritor ou, essencialmente, o narrador, se percebe submerso

na angstia de fazer literatura ps-Primeira Guerra Mundial, cujos efeitos se viram

agravados impiedosamente pelo cenrio subsequente em que uma nova guerra se

delineava: a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Foi, portanto, em meio s incertezas e s angustiantes experincias blicas, das

quais se falou anteriormente, que Heidegger esforou-se por encontrar novas diretrizes

filosficas que amparassem o homem contemporneo num mundo que se despedia,

gradativamente, de valores como a religio e a metafsica para anunciar uma

preocupao ontolgica que pusesse em dilogo importantes pensadores alemes

anteriores e contemporneos a ele, tais como Kant, Hegel e Nietzsche. Apesar de

dialgicos, os estudos heideggerianos evidenciavam que a acelerada corroso das

instituies, que davam sustentao ao regime poltico instaurado e revoluo que se

seguiu em seu pas, poria, igualmente, fim s certezas que pareciam ter sido incutidas na

sociedade alem daquela altura por sistemas filosficos de Kant e Hegel.

Antes, quer-se esclarecer que revisitar os estudos, desenvolvidos por Heidegger,

no que tange s particularidades referentes ao afeto da angstia, quela altura j

influenciado pelos estudos de Kierkegaard, significa lanar mo de estratgias que nos

garantam recompor o trajeto filosfico, que o conceito em anlise percorreu, nos dois

ltimos sculos, sem, no entanto, perder de vistas o inquestionvel apoio deste filsofo

a Hitler e ao nazismo. impossvel no lembrar que ambos, Hitler e Heidegger,

32

parecem rejeitar, de forma bastante insistente, a modernidade filosfica, o iluminismo, o

individualismo, o humanismo e o universalismo, o que se v, claramente, j em 1927,

em Ser e tempo, cujas ideias principais insinuam, de forma antecipatria, um

estreitamento e um alinhamento impressionantes com grande parte da ideologia nazista.

Portanto, pensar os aspectos filosficos da angstia, luz das elucubraes

heideggerianas, mostra-se relevante, na medida em que se entende o conceito tambm

como uma construo histrica, que requer aprofundamento diacrnico, sob pena de, se

no o fizermos, incorrermos em abordagens reducionistas do conceito de angstia,

lamentando que, nesse momento, ele parea estar vinculado pior das ideologias

totalitrias j vistas3.

Aps breve explanao sobre os motivos que nos movem a visitar os escritos

heideggerianos e sem pretenso, aqui, de invalid-los, lembramos que o filsofo traz,

para o centro de suas discusses filosficas e como forma de questionar a completude

humana, a ideia de que o homem e o mundo esto intricados, no sentido de que o

homem no reside inerte no mundo da necessidade. Ao contrrio, medida que

compreende o ser, o homem se coloca no campo da possibilidade, da transcendncia e

elabora as possibilidades de sua existncia. Dessa forma, em Que metafsica? (1929),

o filsofo nos apresenta o conceito de existncia, num momento em que se j havia

testemunhado as atrocidades da Primeira Guerra Mundial e num ano em que se

anunciava a Grande Depresso ou, se quisermos, a Crise de 1929, perodo de intensa

recesso econmica que persistiu ao longo da dcada de 1930. Inserido, portanto, num

contexto de vivncia no mundo, o homem no se lana num espao apenas delimitado

3 As breves reflexes, suscitadas neste pargrafo acerca da estreita relao do filsofo alemo com a

ideologia nazista, foram possveis, a partir da veiculao recente de documentos inditos ou no-

traduzidos, que fazem essa associao de forma explcita, associao endossada por Emmanuel Faye, em

Heidegger: a introduo do nazismo na filosofia.

33

fsica e naturalmente. Para alm disso, o homem assume uma condio de

inseparabilidade do mundo, habitando-o e detendo-se nele como forma de existir.

Somente o homem existe. O rochedo , mas no existe. A frase: "o homem existe" de

nenhum modo significa apenas que o homem um ente real, e que todos os entes

restantes so irreais e apenas uma aparncia ou a representao do homem. A frase "o

homem existe" significa: o homem aquele ente cujo ser assinalado pela in-sistncia

ex-sistente no desvelamento do ser, a partir do ser e no ser (HEIDEGGER, 1989, p.59).

Contudo, as discusses heideggerianas sobre o conceito de existncia no se

encerram exclusivamente na definio anterior, uma vez que o estudioso alemo nos

alerta para o problema da existncia inautntica. Segundo ele, o homem do cotidiano

vive uma situao de encobrimento de seu ser, tendo em vista que a vida em sociedade

regida por uma noo de convivncia que aniquila os sujeitos, em sua essncia,

instaurando o imprio do impessoal, onde o "eu" e o "ns" no se distinguem. H, por

assim dizer, a perda do ser: "O 'quem' o neutro, o impessoal (...). O impessoal que no

nada determinado, mas que todos so, embora no como soma, que prescreve o modo

de ser da cotidianidade" (HEIDEGGER, 1986, p.179). Novamente, atentamos para o

fato de o filsofo articular seu pensamento com as concepes nazistas, na medida em

que procura exaltar a autenticidade do indivduo que se sacrifica em prol do destino

particular da comunidade e do Estado.

Assim, a questo que, insistentemente, Heidegger nos coloca : haveria,

portanto, uma possibilidade de o ser sair de sua inautenticidade? Parece-nos, pois, que

esta pergunta encontra, no conceito de angstia, o seu ponto de chegada ou, se

quisermos, de partida, assumindo uma condio ontolgica, pois que remete totalidade

da existncia, em que o homem se reconhece como parte ativa e integrante do mundo.

Dessa forma, tal como em Kierkegaard, a angstia manifesta, nos escritos de Heidegger,

um trao existencial essencialmente humano, uma vez que, assim como s o homem

existe, s o homem, igualmente, se angustia. Contudo, ao contrrio de Kierkegaard, a

34

concepo filosfica heideggeriana abandona uma perspectiva teolgica que coloca a

finitude humana diante da infinitude de Deus. A angstia, segundo ele, manifestar-se-ia

como fenmeno existencial da finitude humana, emergindo, dessa forma, como alegoria

da contemporaneidade.

A angstia se angustia pelo prprio ser-no-mundo (...). O mundo no capaz de oferecer

alguma coisa nem sequer a co-presena dos outros. A angstia retira, pois, do ser-a, a

possibilidade de, na decadncia, compreender a si mesmo a partir do mundo e na

interpretao pblica (HEIDEGGER, 1986, p.187).

Mais tarde, em 1938, Jean Paul-Sartre, leitor e estudioso dedicado de Heidegger,

publica a novela A nusea, em que passa a divulgar princpios do existencialismo,

corrente filosfica que apresenta, em muitos momentos, pontos de contato com as

abordagens ontolgicas do filsofo alemo. Estar no mundo passa, assim, a ser uma

preocupao sartreana num cenrio de degradao tica e econmica que j se

descreveu. Para tanto, a princpio, sem um enfoque demasiadamente poltico-social,

Sartre publica O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenolgica (1943), em que

pretende esboar uma verso pessoal da filosofia de Heidegger. Nele, o francs parece

preocupar-se em problematizar o homem, ser dotado de conscincia, localizado ante a

possibilidade de escolher. A possibilidade de escolha passa, assim, segundo Sartre, a

figurar, precisamente, como manifestao da liberdade humana. Escolhendo, portanto, o

homem escolhe a si mesmo, mas no escolhe sua existncia, que j lhe vem concedida e

requisito de sua escolha. nesse contexto que o homem est fadado liberdade da

escolha, que faz com que o ser figure constantemente como um combate existencial da

realidade humana contra o mundo. A condenao liberdade leva o homem, portanto,

angstia: " na angstia que o homem toma conscincia de sua liberdade, ou, se prefere,

a angstia o modo de ser da liberdade como conscincia de ser; na angstia que a

liberdade est em seu ser colocando-se a si mesmo em questo" (SARTRE, 1998, p.72).

35

, pois, a partir de abordagens mais amplas sobre a existncia humana que

Sartre, em 1945, inaugura, juntamente com Simone de Beauvoir, a revista Le temps

modernes, em que manifesta claramente tendncias de pensamentos, ditos de esquerda

ou, se desejarmos, de cunho socialista, pensamentos esses fortalecidos, gradativamente,

em seu discurso ps-segunda Guerra Mundial. A partir da, algumas abordagens, j

veiculadas em 1943 em O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenolgica, ganham

maior notoriedade e passam a ser reconhecidas publicamente como interpretaes que

se aproximavam de uma concepo poltica e tica de estar-no-mundo: "(...) o que se

poderia chamar de moralidade cotidiana exclui a angstia tica. H angstia tica

quando me considero em minha relao original com os valores. Estes, com efeito, so

exigncias que reclamam um fundamento" (SARTRE, 1998, p.82). Acredita-se, dessa

forma, que o homem que reconhece a si mesmo como parte integrante de uma

engrenagem poltica, ao se defrontar com valores pouco humanos e mais tecnocrticos,

padece da angstia tica, de que nos fala Sartre.

Esta espcie de angstia, que a que descreve o existencialismo, veremos que se explica,

alm do mais, por uma responsabilidade direta frente aos outros homens que ela envolve.

No ela uma cortina que nos separa da ao, mas faz parte da prpria ao (SARTRE,

1973, p.14).

, pois, nesse vis, que Sartre chega ao ano de 1961 empenhado e fortemente

envolvido com os movimentos anticoloniais que comeavam a se delinear, naquele

momento, em espaos dominados e subjugados por pases, tais como Frana e Portugal.

Para tanto, o filsofo francs protagoniza e toma para si a autoria do prefcio de Os

condenados da terra, de Frantz Fanon. Nesse livro, o psiquiatra martinicano dedica-se a

fazer uma avaliao do colonialismo na Arglia e em outros espaos ainda colonizados.

A partir de tal avaliao, Fanon convoca seus "irmos" a irem luta pela independncia.

Dessa forma, importantes questes so suscitadas, como o adoecimento provocado pelo

colonialismo e pela barbrie que se mostra intrnseca a ele e s guerras pela libertao

36

que se seguiriam. Parece-nos, portanto, que o prefcio citado vem corroborar a

ilustrao do conceito de angstia tica, quando Sartre reconhece que o humanismo, que

brotou no seio da Revoluo Francesa (1789), no foi capaz de garantir, e tampouco era

o que se desejava, de fato, igualdade, fraternidade e liberdade a todos. Em nome,

portanto, da hipocrisia liberal, a liberdade, de que nos falava Sartre, foi arrancada

abruptamente dos colonizados, uma vez que foi-lhes arrancado, igualmente, seu direito

de escolha. Retomado esse direito, os colonos escolheram lutar contra a violncia a que

se viram submetidos desde cedo, violncia denunciada por Frantz Fanon, que defende,

igualmente, ao longo de seu texto, a politizao das massas como necessidade histrica

e a luta armada como instrumento, atravs do qual no apenas se tenta combater a fome

e a degradao da sociedade colonizada, como a condio de animal, que os

colonizadores quiseram impingir aos africanos:

Quando refletimos nos esforos empregados para provocar a alienao cultural to

caracterstica da poca colonial, compreendemos que nada foi feito ao acaso e que o

resultado global pretendido pelo domnio colonial era convencer os indgenas de que o

colonialismo devia arranc-los das trevas. O resultado, conscientemente procurado pelo

colonialismo, era meter na cabea dos indgenas que a partida do colono significaria para

eles o retorno barbrie, ao aviltamento, animalizao. No plano do inconsciente, o

colonialismo no pretendia ser visto pelo indgena como uma me doce e bondosa que

protege o filho contra um ambiente hostil, mas sob a forma de uma me que a todo

momento impede um filho fundamentalmente perverso de se suicidar, de dar livre curso a

seus instintos malficos. A me colonial defende o filho contra ele mesmo, contra seu

ego, contra sua fisiologia, sua biologia, sua infelicidade ontolgica (FANON, 1968,

p.175).

A violncia narrada no excerto anterior, paralelamente quela que se seguiria nas

guerras de descolonizao, soma-se aos efeitos, j descritos e irrompidos pela Primeira e

Segunda Guerras Mundiais, do agravamento da Revoluo Tecnolgica e do

fortalecimento do sistema capitalista em grande parte do mundo. Este perodo, segundo

Stuart Hall, o momento em que se podem ser observadas mudanas na

conceptualizao de sujeito e identidade, instncias que, ao adentrarem o espao

ficcional contemporneo, so conduzidas a um processo de descentramento. A

37

literatura, a essa altura, passou, assim, a privilegiar uma forma nova e decisiva de

individualismo, forma que o Humanismo Renascentista (XVI) e o Iluminismo (XVII)

auxiliaram a moldar, tendo em vista a possibilidade de desconstruo da ideia de que os

indivduos eram divinamente estabelecidos e, por isso, unificados. Portanto, assume-se,

em definitivo, que o indivduo nasce no meio da dvida, uma vez que, de acordo com

certo ceticismo metafsico, caracterstico desse perodo, o sujeito teve, enfim, revelada

sua natureza inconclusa.

No sculo XX, comea, pois, a emergir um quadro perturbador e angustiado do

sujeito e da identidade, a partir de movimentos estticos e intelectuais europeus que

haviam, mais tarde, de influenciar o restante do mundo. O sujeito, ainda segundo Stuart

Hall, no sofre apenas desagregao, mas deslocamento, a partir, principalmente, das

tradies do pensamento marxista e da descoberta do inconsciente por Freud, a ser

estudado na prxima seo. De acordo com o pensamento freudiano, a subjetividade o

produto de processos psquicos e, por isso, a identidade estaria sempre em formao.

Tal cenrio de desajuste e de degradao anuncia uma virada ideolgica e ontolgica na

construo potica do homem e da realidade, construo que se d a partir de uma nova

interpretao e realizao da natureza, do tempo, da linguagem, da memria e da

histria.

Mas sem dvida se exprime na arte moderna uma nova viso do homem e da realidade ou,

melhor, a tentativa de redefinir a situao do homem e do indivduo, tentativa que se

revela no prprio esforo de assimilar, na estrutura da obra de arte (e no apenas na

temtica), a precariedade da posio do indivduo no mundo moderno. A f renascentista

na posio privilegiada do indivduo desapareceu (ROSENFELD, 1996).

Dessa forma, a construo do real, outrora entendida como exerccio mimtico,

reconhece, na contemporaneidade, a fragilidade do signo que, longe de apreender a

realidade tal qual ela , permanece enquanto signo de. Ele significa a realidade, nele a

realidade se faz signo. Vale ainda esclarecer que o real, ao ser construdo pelo homem

38

sofre um recorte crtico e, portanto, subjetivo, o que o faz ser entendido, na prtica

literria contempornea, como simulacro, onde o real e a cpia no se distinguem

(VILLAA, 1996, p.105). Tem-se a a angstia da e pela representao em que est

latente a tenso entre a aparncia e o ser. Cumpre ressaltar que a prpria literatura, ao se

debruar sobre si mesma, tem problematizado intensamente o lugar mais ntimo onde a

palavra, enquanto signo, no consegue chegar.

Da em diante o embate com os signos determinou uma verdadeira proliferao de

movimentos, uma acelerao de mudanas dos projetos estticos, indiciando a crise do

poder de as palavras dizerem o mundo e, simultaneamente, constituindo uma busca

utpica da linguagem. Sucedem-se posturas artesanais, revolucionrias, textos

transpassados de oralidade ou construdos de silncios. Nasce o trgico da escritura no

embate com os signos, em esforos de retirar-lhes o peso de uma histria e imprimir-lhes

a fora de um novo tempo (VILLAA, 1996, p.60).

Dessa forma, a literatura ps- Primeira e Segunda Guerras Mundiais dedica-se

tentativa de dizer o indizvel, numa era em que a centralizao da angstia parece

conferir realidade uma natureza lquida (para referir-se obra de Zygmunt Bauman,

Modernidade lquida), revelando seu dinamismo inato que aniquila tudo aquilo que

cria ambientes fsicos, instituies sociais, ideias metafsicas, vises artsticas, valores

morais a fim de criar mais, de continuar infindavelmente criando o mundo de outra

forma (BERMAN, 1987). Assim, o mal-estar de que nos fala Freud, chamado, por

Heidegger, de a morte de Deus e, por Weber, de o desencantamento do mundo, no

deixa de vislumbrar a angstia que as caracteriza como verdadeiras expresses de um

perodo que, alm de evidenciar a tragicidade inerente condio humana, revela a

tragicidade de um tempo de profunda crueldade. Assim, a contemporaneidade parece

instaurar um momento essencialmente solitrio das personagens, imersas na memria,

na conscincia de descentramento e na consequente reconfigurao da identidade,

buscada ou negada, de forma obsessiva.

39

As questes anteriores parecem, dessa forma, caminhar em direo concepo

de que as manifestaes literrias, para alm da exclusividade que Adorno, um dia,

atribuiu lrica, mantm estreita relao com a sociedade da qual emergem, uma vez

que a literatura traz, ela mesma, a esperana de extrair, da mais irrestrita individuao,

o universal (ADORNO, 2003, p.66). Eis o motivo pelo qual Marx acreditava que a

arte historicamente condicionada por um estgio social guarda em si um momento de

humanidade, capaz de sobrepor ao momento histrico um fascnio permanente.

Certamente, as questes anteriores esto, antes, no cerne da literatura angolana, no

apenas contempornea, mas aquela que se instalou em Angola num momento em que,

na dcada de 1950, surge a necessidade de se criar uma literatura nova, voltada para

cultura autctone.

Com a chamada gerao de 50, a produo literria nacional atravessa os

caminhos delineados pelo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, caminhos que

evidenciam o desejo de conscientizao do povo, comeando pela alfabetizao. Mais

tarde, fracassados os projetos culturais daquele movimento, chega a hora de a revista

Mensagem abrir diretrizes, inditas quele momento, para a literatura libertar-se da

tutela dos modelos europeus e aderir ao engajamento social, preparando os novos

caminhos que levariam modernidade literria angolana (SALGADO, 2008), atravs

da divulgao de ideias, ensaios e textos literrios. Tendo publicado nomes como

Antonio Jacinto, Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Maurcio de Almeida Gomes,

Mensagem assinala, enfim, a possibilidade de uma semntica e uma sintaxe,

essencialmente angolanas, a partir da reinsero do quimbundo no panorama literrio

daquele pas, trabalho iniciado, no sculo XIX, por Cordeiro da Matta. O processo de

reafricanizao da linguagem passa, mais tarde, na dcada de 1960, a compor uma

40

potica cantalutista e guerrilheira acalentadora da utopia nacional (SECCO, 2008,

p.298).

O sonho, parte integrante de uma literatura, sobretudo, revolucionria e difusora

do desejo coletivo de independncia, to marcante nas dcadas de 60 e 70, ser

substitudo, posteriormente, pelo desencanto que viria depois, quando os angolanos,

aps a euforia do 11 de novembro de 1975, perceberam que as palavras revolucionrias

no haviam sido cumpridas (SECCO, 2008, p.300). , ento, que, em 1975, Angola

passa a palco de um dos conflitos fratricidas mais violentos e duradouros j vistos em

solo africano. Liderado por Agostinho Neto e apoiado por Cuba e pela j extinta URSS,

num contexto de Guerra Fria, o partido marxista MPLA (Movimento pela Libertao de

Angola) ingressa em intenso confronto militar com a UNITA (Unio Nacional para a

Independncia Total de Angola), liderada, por sua vez, por Jonas Savimbi, apoiado pelo

regime segregacionista (apartheid), vigente, naquela ocasio, em territrio sul-africano.

A renncia dos utopistas de outrora e o trajeto literrio e mesmo scio-poltico,

descritos anteriormente, parecem demonstrar, em grande medida, que o papel assumido

pelo escritor angolano, em tempos de represso, de luta e combate, caminha e sempre

caminhou em direo busca identitria e a questes voltadas para o territrio nacional.

Dessa forma, acredita-se que estamos, pois, a tratar de uma angstia que, de modo

algum, rompe com a dimenso existencial e ontolgica, contempladas por Heidegger e

Sartre, mas que assume contornos efetivamente sociais e ticos. A busca identitria,

pela qual atravessaram e ainda atravessam a sociedade angolana e outras, cujo passado

foi marcado decisivamente pela colonizao, representa, ela mesma, a angstia de

procurar um lugar no mundo, de assumi-lo e, enfim, afirmar-se enquanto participante

ativo e construtor de sua prpria histria. No sem razo, em 1981, Jos Luandino

41

Vieira assume, em entrevista concedida na semana em que Angola completaria 20 anos

do incio da guerra de libertao:

(...) a principal tarefa de quem escreve continua a ser a de ir ao fundo da temtica

nacional. Ou nacionalista, como queira... Isto : entendo que o escritor deve buscar nas

fontes da literatura oral, e tambm na cultura popular, novas formas de expresso

literria. Entendamo-nos uma coisa: at data e, salvo rarssimas excepes, o escritor

angolano tem-se ficado pelos centros urbanos. Mas o pas muito grande, e h uma outra

realidade, h o interior e toda uma intimidade que ainda no foi abordada (...). Todo um

povo, at para o bem da unidade nacional, tem de aparecer nas pginas desses livros. Isso

ser a revelao inteira de nossa identidade, e tambm o mtuo esclarecimento de ns

todos (...) (VIEIRA, 1981).

, dessa forma, que o sofrimento e o desconforto de se assumir escritor num

momento em que se presenciou a degradao humana, em episdios como as Guerras

Mundiais, o colonialismo, as guerras pela libertao dessas colnias, a busca identitria

em espaos expostos ao aprendizado da humilhao, da dor e da fome, unem-se na

palavra angstia, inerente prpria condio humana e que, segundo Freud, uma

reao especfica a uma situao de perigo. exatamente consciente de todos esses

perigos que Jos Luandino Vieira os v e os sente, ainda mais agravados pela

hostilidade de uma priso onde escreve Ns, os do Makulusu, sem deixar de confrontar

e de evidenciar as implicaes poltico-sociais, explicitando, quer de maneira cida,

quer de maneira lrica, o conflito, o choque entre as etnias e de suas culturas, a

interpenetrao de sistemas simblicos de Europa e frica. Em meio, lembremos

tambm, angstia inerente ao crcere, Luandino assume suas escolhas estticas e

temticas, passeando pela ambivalncia de personagens, como o protagonista do

romance em anlise cuja vivncia na sociedade crioula representava, ela mesma, a

convivncia com valores contraditrios, tendo em vista sua condio de homem branco,

de habitante de musseque e de ativista na luta pela libertao de Angola.

Ns, os do Makulusu, dessa forma, parece dar-nos uma pista de que a angstia,

a ser contemplada por seus leitores, no se encerra nos conceitos filosficos e

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psicanalticos, a serem aprofundados ao longo da tese. Sua presena parte tambm de

um percurso etimolgico que demonstra que, de origem latina (angustum), a palavra

angstia tem suas primeiras ocorrncias registradas no sculo XIV. Sua definio

original aponta para angstia como desfiladeiro, garganta, ou todo espao estreito,

apertado e pontiagudo. Em momento posterior, no entanto, o elemento lexical em

anlise passa a referir-se ansiedade ou aflio intensa, mesmo sentido que assume a

palavra agonia que, de origem grega (agona), tem sua primeira ocorrncia registrada no

sculo XV. Mais tarde, no sculo XIX, com o advento da psicanlise, ambas passam a

ser alvo de uma linguagem cientfica internacional. A dor e o sofrimento que as palavras

denotam perpassam, dessa forma, todo o perodo moderno, bem como as manifestaes

artsticas que dele emergem.

Cumpre, entretanto, indicar que, apesar de fazer parte de um campo semntico,

essencialmente, decadente, a palavra agonia encontra, em sua base, o verbo latino ago,

que veio, mais tarde, dar origem, em portugus, ao verbo agir. Entende-se, portanto, que

ao contrrio de paralisar, o sofrimento, que o vocbulo sugere, pode ser propulsor de

uma atividade em exerccio contnuo, essencialmente durativo, capaz de expandir-se e

desdobrar-se em aes que sinalizem a necessidade de uma nova ordem, que se oponha

quela vigente. Extrai-se, assim, de uma sociedade patolgica a fecundidade insistente

para uma prtica revolucionria que subverta o estado de insatisfao, desejo ltimo da

arte contempornea. Assim, como na epgrafe escolhida para esta primeira seo,

"quanto mais repressiva a lei, mais explosivo o esprito, tal como numa mquina a

vapor" (BALZAC, 2011, p.313), Luandino faz, dessa forma, irromper o esprito

revolucionrio, fazendo escolhas que, sabidamente, brotam de um momento de angstia,

mas no de inrcia.

43

2.2- Da angstia por Freud

Para dar continuidade, dessa forma, s reflexes sobre as concepes assumidas

pelo conceito de angstia no ltimo sculo, entendemos que as abordagens

psicanalticas freudianas podem nos ajudar a perceber de que forma este afeto pode, e

acredita-se que est, a frente, para alm do projeto esttico de Ns, os do Makulusu, do

projeto tico desta obra, considerando que sua realizao poltica (poltica, porm no

panfletria) se d em meio dor, mas no abdica da ao e da esperana, que, conforme

pressupomos, so marcas de importantes obras de Luandino. Para tanto, nosso

interesse revisitar alguns dos principais artigos de Freud, pensados, produzidos e

veiculados em momento de guerra, cuja violncia e consequente escassez de recursos

para os vienenses relacionam-se ora diretamente com a angstia, ora com outros afetos4,

que, decididamente, mantm uma identificao estreita com ela, como acontece com o

luto e com a melancolia, todos afetos que se originam a partir da perda ou da morte,

ainda que simblica, de um ser amado, a quem Freud chama de objeto libidinal. No

vo lembrar que a morte de Maninho parece ser, ela mesma, personagem desta trama,

na qual o morto se presentifica insistentemente e obsessivamente pela ausncia sbita

nas vidas da me, do narrador-personagem, do grupo de amigos, da amada Rute, das

ruas de Luanda, real e imaginria a um s tempo, da ideologia que parece ter morrido

simbolicamente consigo.

, pois, a partir dessas divagaes que se optou por fazer essa exposio, ainda

terica, de maneira cronolgica, tendo em vista que nos interessa, especialmente,

perceber as alteraes que o conceito de angstia sofreu desde a veiculao do primeiro

4 Ao longo de sua produo bibliogrfica, Freud define o afeto como sendo uma reao natural do ego a

determinadas situaes que causem perturbao do aparelho psquico, distinguindo-o da patologia que,

por sua vez, uma reao a situaes semelhantes, associada a um conjunto de sintomas. Nesse caso, a

patologia correspondente ao afeto do luto a melancolia. No entanto, verificar-se-, ao longo da tese, que

a palavra "afeto" ser usada, em inmeras ocasies, em sentido mais amplo, referindo-se quilo que afeta

o indivduo, de forma a ressaltar suas emoes.

44

artigo em que ela figura como tema, em 1894. Neste primeiro momento, Freud, desde o

ttulo do ensaio ("Rascunho E: Como se origina a angstia"), reconhece que a definio

do referido conceito estaria em construo, conferindo s suas reflexes uma feio de

rascunho. Nele, o psicanalista entende que sua acepo estaria restrita a um mal-estar

fsico quando da represso e, por fim, da acumulao da tenso sexual, isto , o termo

angstia, nesse momento, estaria vinculado a uma tenso fsica por abstinncia sexual

ou pelo coito interrompido, por quaisquer que fossem os motivos. Talvez, nos parea,

hoje, estranho que assim Freud o tenha feito, tendo em vista a difuso do termo

angstia, na contemporaneidade, como sinnimo de desprazer, no fsico apenas, mas

sobretudo psquico. Lembra-se, no entanto, que o termo parece ganhar maior

notoriedade, no que concerne formao ontolgica do indivduo, justamente com a

psicanlise e interessante notar como as alteraes conceituais, pelas quais o termo

passa, parecem acompanhar, igualmente, o aprofundamento dos estudos voltados para o

aparelho psquico e suas perturbaes, decorrentes, muitas vezes, de implicaes sociais

especficas, a citar situaes limtrofes que o cenrio de guerra, por exemplo, nos

impe, cenrio em que a morte se mostra impiedosamente evidente. Mais tarde, em

1895, Freud escreve o "Rascunho G", em que se detm a traar aspectos importantes da

melancolia, patologia que nos interessa particularmente, no por se confundir com a

angstia, mas por ser ela resultado, como j se destacou anteriormente, da perda de um

objeto libidinal. Nesse artigo, Freud sucinto em sua descrio, e no se dedica a traar

distines entre a melancolia, que ele considera uma patologia, e o luto, uma reao

natural a uma perda, que implica, muitas vezes, no desejo de recuperar algo que foi

perdido. Tais distines (entre luto e melancolia) sero, enfim, esclarecidas em ensaio,

intitulado "Luto e melancolia", s escrito em 1915 e publicado em 1917.

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Acredita-se que, no por coincidncia, o perodo, compreendido entre os anos

1915 e 1917, Freud volta-se para uma produo em que foca, mais fortemente, na morte

como fonte de perturbaes do aparelho psquico. A Primeira Guerra Mundial, iniciada

em 1914, estende-se at 1918 e , sabidamente, um momento de profundas devastaes,

cujas propores extrapolaram os espaos envolvidos no conflito blico citado, fazendo

o mundo questionar-se sobre os componentes de desumanidade, testemunhados naquele

momento. importante notar que os primeiros apontamentos, feitos por Freud aps o

incio da guerra, em artigo intitulado "Luto e Melancolia", embora escritos sob sua

vigncia e tematizem questes relativas morte, parecem no se propor a fazer uma

abordagem scio-histrica. Assim, em "Luto e Melancolia" (1915), o psicanalista volta

a tratar, mais detalhadamente, desse par, em que o primeiro afeto, o luto, considerado

uma reao natural, e at esperada, perda de uma pessoa amada ou de uma abstrao

que ocupa seu lugar, como a ptria, a liberdade, um ideal. Uma vez que o objeto amado

deixa de existir, necessria uma enorme aplicao de tempo e de energia para que toda

a libido seja retirada desse objeto, existncia que ainda se prolonga na psique. Por esse

motivo, perfeitamente compreensvel que esse desprendimento envolva dor e

sofrimento.

A melancolia, por sua vez, no entendida, pelo psicanalista, como uma reao

natural, sendo, portanto, considerada uma patologia que tambm se refere perda de um

objeto amado, perda essa que no se refere a uma morte real, mas a uma morte

simblica e que, por esse motivo, corresponde a uma perda subtrada conscincia,

diferentemente do luto, em que nada inconsciente. Como componente bastante

importante da melancolia, est a diminuio da autoestima, expressa em recriminaes e

ofensas prpria pessoa, que pode resultar numa tentativa de punio. Por esse motivo

Freud supe que, na melancolia, a escolha objetal tenha ocorrido sobre base narcsica,

46

isto , o investimento objetal pode regredir ao narcisismo, uma vez constada a perda do

objeto libidinal. Assim, "a identificao narcsica com o objeto se torna substituta do

investimento amoroso, do que resulta que a relao amorosa no precisa ser

abandonada, apesar do conflito com a pessoa amada" (FREUD, 1996, p.181). Quando

se tem que renunciar ao objeto, refugia-se na identificao narcsica e o dio atua em

relao a esse objeto substitutivo, insultando-o e obtendo, nesse insulto, uma satisfao

sdica, que explicaria uma inclinao do melanclico ao suicdio e baixa autoestima.

Portanto, "diferentemente do luto, na melancolia, travam-se inmeras batalhas em torno

do objeto, nas quais o amor e o dio lutam entre si, um para desligar a libido do objeto,

o outro para manter essa posio da libido contra o ataque" (Ibidem, p191).

Mais tarde, ainda no ano de 1915, Freud, vendo a ustria, seu pas, como

participante ativo da Primeira Guerra Mundial, se dedica, em "Consideraes atuais

sobre a guerra e a morte", constatao, da qual no se podia fugir quela altura, de que

as guerras entre os povos seriam inevitveis enquanto as condies de vida entre eles

fossem to desiguais. Assim, entre a decepo com a pouca moralidade demonstrada

pelos pases envolvidos na guerra e a brutalidade fsica assistida, Freud nos pe diante

de uma abordagem em que se v mais claramente uma discusso em torno da morte e

da violncia como resultados sociais de um embate entre foras instintuais ou

primitivas, que desconhecem o bem e o mal, atuando apenas como fontes de prazer, e

foras culturais, cujo objetivo inibir as primeiras, no sentido de garantir, aos membros

de uma sociedade, seu bom funcionamento. Portanto, o psicanalista ressalta que a

decepo, trazida pela guerra, no se justifica, uma vez que a paz , na realidade, uma

iluso que nos poupa sensaes de desprazer, pois que o embate, h pouco descrito,

anuncia a constante eminncia de um conflito social, j que, para cada impulso

primitivo, h um fator externo de coao, que, ao se tornar interna, faz do indivduo um

47

ser altrusta e pouco egosta. Caso permanea externa, a coao inibe momentaneamente

algum trao egosta do indivduo, sob pena de que este seja castigado com restries e

leis sociais.

Contudo, ainda que a coao externa tenha se tornado interna e, por fim, figure

como um estgio de desenvolvimento do indivduo, importante lembrar que "todo

estgio de desenvolvimento anterior permanece conservado junto quele posterior, que

se fez a partir dele" (FREUD, 1996, p.225), podendo os impulsos primitivos romperem,

por exemplo, numa situao de guerra, "como se todas as conquistas morais do

indivduo se apagassem quando se junta um bom nmero ou mesmo milhes de

pessoas, e restassem apenas as atitudes mais primitivas, mais antigas e cruas" (Ibidem,

229). No mesmo artigo, diante da crueza e da violncia que se apresentavam quela

altura, o mdico austraco dedica-se, ainda, a investigar a diferente atitude perante a

morte, qual esta guerra, como todas as outras, obrigou aqueles que, dela, participavam

ou que, dela, eram espectadores. Para tanto, o estudioso conclui que a morte, apesar de

incontestvel, natural e inevitvel, subjaz, no inconsciente, como algo que se deseja

ignorar, uma vez que a ideia de aniquilamento da vida do outro e de sua prpria causa,

no sujeito, desnorteio e paralisia, pois que o remete histria primitiva da humanidade,

plena de assassinatos, em que uma srie de matanas de povos coloca o indivduo frente

a um sentimento de culpa e a uma dvida de sangue em que o homem primevo incorreu.

Este ltimo foi, pois, dominado por foras civilizatrias, cujas aspiraes ticas so uma

conquista da histria humana, mas em medida muito instvel, capaz de fazer irromper

guerras que colocam o homem de hoje em contato com a pr-histria que subsiste

dentro de si. Em meio guerra, o homem j no consegue manter a morte distncia,

mas custa a admiti-la por no poder imaginar-se morto. Assim, o autor entende que o

nosso inconsciente regido por uma trade que insiste, a um s tempo, em negar a ideia

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da prpria morte, na avidez por matar estranhos e na diviso de sentimentos gentis e

hostis em relao s pessoas amadas que, como na pr-histria, so igualmente inimigas

e estranhas. E, dessa forma, Freud conclui:

Ela [a guerra] nos despe das camadas de cultura posteriormente acrescidas e faz de novo

aparecer o homem primitivo em ns. Ela nos fora novamente a ser heris, que no

conseguem crer na prpria morte; ela nos assinala os estranhos como inimigos cuja morte

se deve causar ou desejar; ela nos recomenda no considerar a morte de pessoas amadas.

Mas a guerra no pode ser eliminada; enquanto as condies de existncia dos povos

forem to diferentes, e to fortes as averses entre eles, h de haver guerra (FREUD,

1996, p.246).

Quase dez anos aps a publicao de "Consideraes atuais sobre a guerra e a

morte", Freud publica um trabalho que, aqui, nos interessa especialmente, pois que,

nele, o psicanalista desiste da teoria que havia inaugurado seus estudos sobre a angstia,

teoria segundo a qual esse seria um afeto gerado a partir da libido transformada. Em

"Inibies, sintomas e angstia", o autor passa a investigar um novo caminho para o que

entendemos ser a angstia que oferecer, juntamente com os conceitos de luto e dor,

suporte necessrio s intenes com que iniciamos este trabalho. Neste artigo, ora

esclarecedor, ora de ideias ainda turvas, Freud nos pe em contato com a estreita relao

que parece haver entre angstia, dor e luto, pontuando os aspectos comuns e divergentes

entre esses trs afetos. De incio, faz-se necessrio esclarecer que, para fins meramente

didticos, seguiremos esta exposio, ressaltando o que parece unir os sentimentos que,

anteriormente, citamos como norteadores da esttica que pretendemos, aqui,

desenvolver. Parece-nos que, como os demais afetos mencionados, a angstia sustenta

um carter muito acentuado de desprazer. Parece-nos, igualmente, persistente, nos trs,

o desprazer, vinculado perda de um objeto valioso. No entanto, entende-se que, o luto,

por exemplo, uma reao psquica perda real de um objeto e necessidade de retirar

do objeto os laos que ligam o indivduo a ele. A dor, por sua vez, nos parece uma

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reao real, de ordem fsica, perda do objeto, dor que pode, de fato, ocorrer em

associao aos dois afetos restantes.

A angstia, por fim, parece-nos ser uma reao ao perigo da perda do objeto.

Esse objeto