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Ciência e Tecnologia no Brasil ESPECIAL DUPLA HÉLICE 50 ANOS

Edição Especial - Abril 2003

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Dupla Hélice 50 anos

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Page 1: Edição Especial - Abril 2003

Ciência e Tecnologia no Brasil

ESPECIAL

DUPLAHÉLICE50ANOS

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4 ■ PESQUISA FAPESP ESPECIAL

Ciência e Tecnologia no Brasil

ARTIGOS REPORTAGENS

www.revistapesquisa.fapesp.br

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OS GÊNIOS E O GENEROGÉRIO MENEGHINI

Por que a descoberta do modelo do DNA há 50 anos, por Watson e Crick, ainda desperta tanto entusiasmo . . . . 6

QUEBRA-CABEÇAS DA COMPLEXIDADEEMMANUEL DIAS NETO

Conhecimento da seqüência de um genoma não basta para entender nossa carga genética . . . . . . . . . . . . 15

GENOMA: UM BALANÇO PRELIMINARJOSÉ FERNANDO PEREZ

Cientistas brasileiros são atores importantes na ciência e na biotecnologia de Watson e Crick . . . . . . . . . . 20

O GENOMA HUMANO 50 ANOS APÓS A DESCOBERTA DA DUPLA HÉLICE DO DNAMAYANA ZATZ

As celebrações dos 50 anossão um bom momento pararefletir os limites éticos e as possibilidades reais . . . . . . . 26

CIÊNCIA GENÉTICA E AÇÃO DIGITALJOÃO CARLOS SETUBAL

Gerações futuras descobrirão que há pouca distância entre a invenção do computador e a descoberta do DNA . . . . . . 37

A CULTURA AMEAÇADA PELA NATUREZA RENATO JANINE RIBEIRO

Genoma Humano pode mostrar que problemas em nosso comportamento têm base genética . . . . . . . . . . 38

OS CHAPELEIROS MALUCOS As descobertas de Watson e Crick desafiam os analistas a tentar adivinharfuturas conquistas . . . . . . . . . . 12

INTERLÚDIO DA BIOLOGIA MOLECULARDepois do seqüenciamento,será a vez de se criar a patologia e a farmacologia genômicas . . . . . . . . . . . . . . . 24

APOSTA CONTRA O CÂNCERAndrew Simpson diz que o Brasil deveria investir no desenvolvimento de fármacos contra tumores . . . . . 29

COLABORAÇÃO DO BRASIL AO MUNDOAção integrada do setor público e empresas impulsiona pesquisa em biotecnologia . . . . . . . . . . 30

A REVOLUÇÃO DA BIOINFORMÁTICANos próximos anos,haverá mudanças em todas as ciências em torno da biologia molecular . . . . . . . 34

DNA: A REVANCHE O escritor e médico Moacyr Scliar escreveu para Pesquisa FAPESPum conto sobre o DNA . . . . . . 41

FICÇÃO

Capa: Hélio de AlmeidaFotos: Fabio Colombini, Miguel Boyayan,Sirio J. B. Cançado, Rudi Turner/Universidade de Indiana, Eduardo Cesar,Delfim Martins/Pulsar, Sanger Centre,Vanderlei Rodrigues/USP, Walter Colli/IQ-USP, Eduardo Alves/Esalq/USP

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PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 5

ivros, jornais, revistas científicase de divulgação científica do mun-do inteiro vêm dedicando desde

o começo do ano páginas abundantes àcomemoração dos 50 anos da desco-berta da estrutura molecular do DNApelos pesquisadores Francis Crick, bri-tânico, e James Watson, norte-america-no. Nada mais justo. Materializada nomodelo da dupla hélice que eles mes-mos construíram e puderam admirarem 7 de março de 1953, e explicada à co-munidade científica internacional emapenas 939 palavras num artigo publi-cado pela Nature, em 25 de abril domesmo ano, a descoberta é consideradauma espécie de pedra fundamental dabiologia molecular. É, portanto, pontode partida de uma área científica queavança a passos largos e se desdobrahoje em excitantes zonas de fronteira doconhecimento, que alteram anteriorespercepções sobre a vida e traz para ohomem possibilidades até há pouco ini-magináveis de manipulação dos orga-nismos vivos.

Pesquisa FAPESP, com esta ediçãoespecial, junta-se às dezenas, talvez cen-tenas de títulos que neste momento ex-ploram os significados da descoberta deCrick e Watson, e o faz, entretanto, res-peitando seu propósito editorial central,que é o de mostrar resultados impor-tantes da pesquisa científica e tecnológicano Brasil. Assim, articula ao desvenda-mento original da estrutura moleculardo DNA, a sistemática e consistente pes-quisa genômica hoje em curso no país,dentro da qual há que se assinalar, obri-gatoriamente, o pioneirismo e o papelorganizador da FAPESP.

Observemos aqui que três décadasse passariam entre a construção do mo-delo da dupla hélice e o desenvolvimen-to da tecnologia que iria permitir o aces-so ao interior da estrutura molecular doDNA e às regiões até então insondáveisdos genes. Só na segunda metade dosanos 80 começariam nos países mais de-senvolvidos a pesquisa de genes respon-sáveis por doenças humanas, os pri-meiros projetos de seqüenciamentogenético de micro e macrorganismos, os

primeiros desenvolvimentos de alimen-tos transgênicos. Considerado isso, oBrasil não se atrasou tanto para pôr oseu time organizadamente em campo.Porque foi em meados da década de 90que alguns pesquisadores e formulado-res da política científica e tecnológicaderam-se conta de que algo precisavaser feito para reverter uma situação quemostrava a pesquisa científica, como umtodo, avançando no país a taxas mais ele-vadas que as das médias mundiais, en-quanto a pesquisa em molecular cres-cia não só abaixo das taxas nacionais emgeral, como era inferior aos índicesinternacionais da área. Foi aí que a FA-PESP decidiu montar um projeto de se-qüenciamento genético de um micror-ganismo importante do ponto de vistacientífico, econômico e, ao mesmo tem-po, capaz de elevar rapidamente a com-petência local em biologia molecular. Oprimeiro capítulo dessa história cha-ma-se Xylella fastidiosa.

E para falar simultaneamente da jálonga aventura internacional que a du-pla hélice inaugurou e de seus capítulosbrasileiros, nesta edição alinham-se pes-quisadores como Rogério Meneghini,que escreve um belo review da genéticamolecular; Emmanuel Dias Neto, queaborda o estado da arte e as fronteiras aexplorar nesse vasto campo; Renato Ja-nine Ribeiro, que trata das questões quea mudança de paradigmas ora propos-ta pela biologia levanta para as ciênciashumanas; Mayana Zatz, com um peque-no resumo das conseqüências da pes-quisa em genômica para a saúde huma-na e João Setubal, que também resumeo que esperar da bioinformática, área depesquisa cujo nascimento resulta prati-camente de exigências da biologia mo-lecular. O diretor científico da FAPESP,José Fernando Perez, abre com um ba-lanço preliminar sobre a genômica noBrasil as páginas destinadas à pesquisano país. E, para fechar, com um brin-de aos leitores, um delicioso conto deMoacyr Scliar – tudo isso entremeadopelo humor agudo de Claudius.

Meio século de uma revolução

CARTA DO EDITOR

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

FAPESP

CARLOS VOGTPRESIDENTE

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADOVICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIORADILSON AVANSI DE ABREU, ALAIN FLORENT STEMPFER,

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT,FERNANDO VASCO LEÇA DO NASCIMENTO,

HERMANN WEVER, JOSÉ JOBSON DE ANDRADE ARRUDA,MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR,

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO,RICARDO RENZO BRENTANI, VAHAN AGOPYAN

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVOFRANCISCO ROMEU LANDI

DIRETOR PRESIDENTE

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

JOSÉ FERNANDO PEREZDIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIALANTONIO CECHELLI DE MATOS PAIVA, EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO,FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO

ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUÍS NUNES DE OLIVEIRA, LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS,

PAULA MONTERO, ROGÉRIO MENEGHINI

DIRETORA DE REDAÇÃOMARILUCE MOURA

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIORMARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTEHÉLIO DE ALMEIDA

EDITOR DO ESPECIALCARLOS HAAG

CHEFE DE ARTETÂNIA MARIA DOS SANTOS

DIAGRAMAÇÃOJOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHINI

FOTÓGRAFOSEDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORESCARLOS FIORAVANTI (EDITOR DE CIÊNCIA),

CLAUDIUS, EDUARDO GERAQUE,EMMANUEL DIAS NETO,JOÃO CARLOS SETUBAL,

JORGE COTRIN (REVISOR),MARCOS PIVETTA (REPÓRTER ESPECIAL),

MAYANA ZATZ, MOACYR SCLIAR,REINALDO JOSÉ LOPES,

RENATO JANINE RIBEIRO RICARDO ZORZETTO (EDITOR-ASSISTENTE),

ROGÉRIO MENEGHINI,SIRIO J. B. CANÇADO

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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

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MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAÇÃO

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Os gênios e o gene

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Por que a descoberta do modelo do DNA há 50 anos,por Watson e Crick,ainda desperta tanto entusiasmo

ROGÉRIO MENEGHINI*

DUPLA HÉLICE 50 ANOS

James Watson (à esq.) eFrancis Crick em 1953,

diante do modelo do DNA

* ROGÉRIO MENEGHINI é professor titular aposentado do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP e coordenador da SMolBNet – Rede de Biologia Molecular Estrutural

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turas) deve recorrer aolivro The Eigh Day ofCreation, de Judson. Tra-ta-se de uma soberba eextensa obra (650 pági-nas) de jornalismo cien-tífico. Judson levou seteanos entrevistando ospersonagens envolvidosno desenrolar dos acon-tecimentos, freqüente-mente contrastando de-poimentos e analisando documentos,trabalhos científicos e cadernos de la-boratório. Atingiu o clímax de sua ati-vidade profissional quando, além derelatar e interpretar as várias facetasdas informações colhidas, chega oponto de explicar, com seus própriostermos e compreensão, a parte técnicaque cercava a descoberta.

Por que mais um artigo? Creio quePesquisa FAPESP não pode deixar delembrar esse acontecimento, assimcomo tantas outras revistas de ciência.Quanto a eu aceitar o convite para es-crever algo sobre este assunto, foi por-que tive um forte entusiasmo ao to-mar conhecimento dessa descobertaem 1963 e acompanhei muito o que seescreveu posteriormente sobre ela.Afinal, a partir de 1965, trabalhei emum dos poucos laboratórios que fa-ziam biologia molecular no Brasil na-quela época, o do professor FranciscoJ. S. Lara.

Por que essa descoberta desper-tou tão efusivos entusiasmo e encan-tamento, ao longo dos anos que seseguiram?

Watson diz em seu Dupla Héliceque foi a maior descoberta da biologiadesde a teoria da evolução, de Darwin.Por outro lado, Crick, no dia da con-cepção da estrutura, entrou num pub,

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á 50 anos a revista Na-ture publicava, no nú-mero de 25 de abril de1953, o artigo de JamesWatson e Francis Crick

no qual a estrutura tridimensional dosal do ácido desoxirribonucléico (DNA)era apresentada. Eram duas páginas emque a primeira sentença começava:“Nósgostaríamos de sugerir uma estruturapara o sal do ácido desoxirribonu-cléico. Esta estrutura tem característi-cas inéditas que são de considerávelinteresse biológico”. Terminava com:“Não nos escapou que o pareamentoespecífico (de bases) que nós postula-mos sugere imediatamente um possí-vel mecanismo de cópia para o mate-rial genético”. Esta última sentença temsido considerada como sendo uma dasmais falsamente modestas da literatu-ra científica.

Muito já se escreveu sobre a histó-ria dessa descoberta em livros e arti-gos. Eles incluem desde o “best-seller”de 1968 de Watson, A Dupla Hélice,até livros mais recentes, entre eles doisde autores brasileiros, História da Bio-logia Molecular, de Rudolf Hausmann(agora na Universidade de Freiburg,Alemanha), e Watson e Crick, a Histó-ria da Descoberta do DNA, por Ricar-do Ferreira (Universidade Federal dePernambuco).

Provavelmente os mais famosossão A Dupla Hélice e The Eight Day ofCreation, por Horace F. Judson (Si-mon and Schuster, New York, 1979). Oprimeiro é uma versão do próprioWatson da história da descoberta,onde, talvez por desejar que se tornas-se um livro “best-seller”, ou pela suaprópria personalidade, imprimiu umroteiro que destacava os episódiosmais novelescos dos acontecimentos.Conta como conseguiu obter de ma-

Hneira escusa informações de dadoscristalográficos de concorrentes (Ro-salind Franklin, química e cristalógra-fa do King’s College de Londres), es-carnece de outro concorrente (ErwinChargaff, bioquímico da Universidadede Colúmbia em Nova York), que cri-ticava mordazmente a ignorância deCrick e Watson a respeito da estruturaquímica das bases do DNA, Adenina(A) Timina (T), Guanina (G) e Citosina(C). Chargaff tinha descoberto, no fi-nal da década de 40, que em todas asamostras de DNA analisadas o con-teúdo de A igualava ao de T, enquantoo conteúdo de G igualava ao de C etentava desmoralizar Linus Pauling(químico ícone do século 20, na épocaprofessor do Califórnia Institute ofTechnology, que publicou em 1952uma sugestão da estrutura do DNA,onde três hélices se entrelaçavam eonde o fosfato aparecia protonado esem carga; no pH fisiológico, cerca desete, o fosfato deveria ter uma carganegativa, como aprendem os alunosde curso básico de química).

Watson tinha 23 anos quando serevelou a dupla hélice. Desde entãosua personalidade cáustica tendeu afazer com que lhe atribuíssem o papelde vilão da descoberta. Divertido, masnão confiável em termos históricos, olivro A Dupla Hélice foi escrito numaépoca em que Watson já desistia dacarreira de cientista para tornar-se umadministrador de ciências (certamen-te os atributos demonstrados em seulivro o qualificavam para isso). No fi-nal da década de 1980, Watson liderouo início do projeto de seqüenciamentodo genoma humano.

Sem dúvida, quem quiser formar asua própria história da descoberta (emuitas podem ser criadas, como os lei-tores podem ter notado de outras lei-

JamesWatsontinha só 23 anosem 1953

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no campus da Universidade de Cam-bridge, gritando: “O descobrimos o se-gredo da vida!”.

À parte desses testemunhos dos au-tores, o fato é que muitos outros cien-tistas vieram a compartilhar dessas afir-mações ao longo dos anos.

O que levou à unicidade dessa des-coberta? Provavelmente foi um amál-gama de fatores, com uma probabili-dade muito pequena de novamenteocorrer e que misturou ciência com

aventura e arte.Em primeiro lugar a

estrutura tem uma bele-za intrínseca, perceptívelmesmo para os leigos.

Em segundo lugar,há uma lógica químicano arranjo estruturalque imediatamente per-mite uma interpretaçãobiológica para a molé-cula do DNA. Embora otermo biologia molecu-lar tenha sido cunhado

em 1935 por Warren Weaver, da Fun-dação Rockefeller, para descrever co-mo os fenômenos biológicos podemser compreendidos fundamentalmen-te pelo conhecimento das estruturasdas moléculas e das interações e alte-rações destas, apenas em 1953 é que sepercebeu de forma dramática esta cor-relação estrutura-função, com a des-coberta da dupla hélice. Essa desco-berta é, portanto, um marco frente aopassado e ao futuro, no que diz respei-to a essa biologia molecular, hoje maisconhecida como biologia molecularestrutural.

Em terceiro lugar foi uma luta dedois jovens Davis contra um Goliaspoderoso. De fato, Linus Pauling já ti-nha descoberto a estrutura helicoidalde proteínas (α-hélice) juntamentecom Robert Corey, e tinha informa-ções que a estrutura do DNA tambémpoderia ser helicoidal. Pauling erauma eminência da físico-química, jácom mais de 50 anos, e iria ganhar oPrêmio Nobel em 1954 pelos seus tra-balhos com estrutura de proteínas. Wat-son e Crick sabiam das intenções dePauling e obviamente temiam ser su-perados na corrida.

A figura da estrutura de DNA étão ubíqua que não cabe apresentá-laaqui. Sumariamente, a estrutura pos-

sui duas hélices que se entrelaçam, for-mando uma dupla hélice. Imaginandoum eixo que corre no centro da duplahélice, o arcabouço de cada hélice éformado pela seqüência de um açúcar(desoxirribose) ligado a um fosfato, essaunidade se ligando a outra idênticainúmeras vezes, de forma paralela aoeixo da dupla hélice. O resultado seriaaçúcar-fosfato-açúcar-fosfato e assimpor diante.

Uma hélice simples tem uma pola-ridade, isto é, percorrendo-a num sen-tido é diferente de percorrê-la no sen-tido oposto. Um dado fundamental éque as duas hélices do DNA se entrela-çam com polaridades opostas (chama-das de hélices antiparalelas).

A dupla hélice se enrola no sentidohorário. Procure enrolar em espiraluma fita de papel ao redor de um lá-pis. Será possível fazê-lo de duas for-mas, no sentido horário ou anti-horá-rio. As duas hélices assim obtidas sãoassimétricas e distintas, uma sendo aimagem de espelho da outra. É o mes-mo que uma mão se refletindo numespelho. A mão direita é a imagem daesquerda e vice-versa.

s bases A, T, C, G correspon-dem ao terceiro compo-nente do DNA. Elas têmestruturas planares e es-tão também ligadas ao

açúcar. Porém os seus planos se dis-põem ortogonalmente ao eixo da héli-ce. Elas têm um pareamento específiconum mesmo plano: A numa hélice secontrapõe a T na outra ou G numa hé-lice a C na outra. As hélices são porisso ditas complementares. Nota-se que,por causa desse pareamento específi-co, num certo DNA a quantidade debases G é igual a C e a quantidade deG é igual a T, como tinha descobertoChargaff.

A ligação química que une as basesé chamada de ponte de hidrogênio. Es-sas forças são importantes elementosde estabilização da dupla hélice. EntreA e T há duas pontes de hidrogênio,enquanto entre G e C há três. Se olhar-mos esses pares de bases de cima, vere-mos que eles têm dimensões e formaquase idênticas, de modo a permitirque o diâmetro da dupla hélice per-maneça constante ao longo do eixo. Seolharmos a dupla hélice de perfil, ve-remos que os pares de bases estão em-

pilhados, de forma ortogonal ao eixo,e com um recobrimento parcial porcausa da volta da hélice. Seria como setomássemos pedras de dominó (re-presentando os pares e base) e as em-pilhássemos, fazendo com que a decima forme um ângulo de 36 graus degiro com a de baixo. Se empilhásse-mos dez pedras, completaríamos 360graus, isto é, uma volta da dupla héli-ce corresponde a dez pares de bases. Adistância entre os pares de bases é de3,4 angströns (um angström equivalea 10-10 metros), de maneira que o pas-so da dupla hélice (distância ao longodo eixo correspondente a uma voltacompleta) é de 34 angströns.

Certamente os elementos funda-mentais dessa estrutura forneciam ex-plicação completa das duas proprie-dades mais importantes do gene: acodificação de proteínas, dada pelaseqüência de bases, e a duplicação dogene: as fitas complementares A e B seseparariam e seriam copiadas, A dan-do uma nova fita B e B, uma nova A.Duas novas dupla hélices AB e BA,idênticas a dupla hélice mãe AB, se-riam formadas.

O encontro de Watson e Crick é oque se pode chamar de fortuita com-plementaridade moldada para a des-coberta que viriam a fazer. Ambos ti-nham lido o livro do famoso físicoErwin Schrodinger O que É a Vida?publicado em 1944. Muitos biólogos,físicos e químicos ficaram magnetiza-dos pelas especulações de Schrodingera respeito da natureza química dogene, até então desconhecida. Schro-dinger chamava o material genético desólido aperiódico. Aperiódico porquenão poderia ser repetitivo como umcristal de cloreto de sódio, senão, comopoderia codificar tantas característi-cas distintas de um organismo? Sólidoporque o gene não poderia ter as pro-priedades de substância orgânica co-mum, isto é, de sofrer mudanças quí-micas numa taxa relativamente alta àtemperatura ambiente, incompatívelcom a estabilidade do gene. Schrodin-ger argumentava essa estabilidade como exemplo dos membros da dinastiaHabsburg da Áustria, cujos retratos,que retroagiam dois séculos, mostra-vam freqüentemente uma má-forma-ção labial. Sem dúvida a estabilidadedo material genético é hoje explicada

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Belezaintrínsecaera visível

até paraleigos

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dedução, com o emprego apenas demodelos de átomos introduzidos porPauling para definir estruturas de pro-teína. Olhando por outro ângulo, quemais poderiam fazer? Não sabiamcomo preparar amostras de DNA, ja-mais tinham trabalhado com um ge-rador de raios X para obter fotos dedifração de raios X, e tinham conheci-mentos parcos da química do materialgenético. Crick tinha uma vantagem,que era a de saber interpretar dados dedifração de raios X. Osconhecimentos de gené-tica de vírus e bactériasde Watson, trazidos dolaboratório de Luria, depouco adiantavam nessecenário. Como foi pos-sível que em um ano emeio estivessem publi-cando o trabalho na re-vista Nature com a defi-nição da estrutura duplahélice?

Há vários episódiosrelevantes: em novembro de 1951, Wat-son compareceu a um seminário deRosalind Franklin no King’s College,que comentava sobre suas fotos dedifração de raios X em fibras de DNA.Vários dados importantes foram apre-sentados: a unidade cristalina (a uni-dade que se repete e que fornece o pa-drão de difração) indicava uma grandehélice contendo duas, três ou quatrocadeias, várias moléculas de água(cerca de oito) e nas quais os fosfatosestavam na interface da hélice e dosolvente aquoso (isto é, ao lado ex-terno da hélice, ao contrário do que aestrutura proposta por Pauling mos-trava). Vários relatos indicam que Wat-son conseguiu captar muito pouco doque Rosalind discutiu e, pior, não to-mou nota de nada. Quando questio-nado por Crick, forneceu, de memó-ria, dados errados; principalmentefalhou quanto aos números do altoconteúdo de água por unidade crista-lina. Um primeiro modelo foi cons-truído, baseado nessas premissas errô-neas, e logo desqualificado por várioscolegas do Cavendish e do King’s Col-lege. Crick argumentou mais tardeque esse fracasso não teria sido só cul-pa de Watson, por ter fornecido dadoserrados, mas também dele própriopor não saber química suficiente paraperceber que as cargas dos fosfatos

pelo processo de reparo do DNA e cer-tamente Schrodinger usava o termosólido como metáfora. Ademais o ma-terial genético deveria ter proprieda-des que permitissem a sua reprodu-ção.

m 1946, Oswald Avery e seuscolaboradores demonstra-ram que DNA constituía omaterial genético. Não ésurpreendente, portanto,

que vários cientistas estivessem inte-ressados em DNA no início da décadade 50: virologistas, físicos, químicos ebiologistas estruturais. Não é surpre-endente, tampouco, que Watson, en-contrando-se num congresso em Ná-poles com Maurice Wilkins, tenhaficado excitado ao saber do interessede cientistas do King’s College, ao qualWilkins pertencia, e do Cavendish La-boratory em Cambridge por estudosestruturais de DNA. Conseguiu sair deCopenhague, onde realizava um pós-doutoramento, e com a ajuda de Sal-vador Luria, renomado geneticista en-tão na Universidade de Illinois eorientador do doutorado de Watson,

mudar-se eventualmente para Cam-bridge, no Laboratório Cavendish. Láconheceu Crick em outubro de 1951,que com 35 anos trabalhava com a es-trutura de hemoglobina como mate-rial de tese de doutoramento (na suajuventude trabalhou durante a guerracomo físico de radares, daí esse atraso).

Começou assim, a grande aventura.Ambos tinham os mesmos interesses.Eram jovens e desconhecidos. Sabiamquase nada sobre a estrutura química doDNA. Alguns resultados de difraçãode raios X do King’s college, obtidospor Maurice Wilkins e separadamentepor Rosalind Franklin, sugeriam umaestrutura helicoidal. Falavam comgrande entusiasmo, e eram brilhantes.Contagiaram Max Perutz – que iriaposteriormente elucidar a estruturatridimensional da hemoglobina –, que,por sua vez, convenceu Sir LawrenceBragg (diretor do Cavendish) a deixá-los trabalhar com DNA.

Crick insistia que eles não tinhamque se preocupar muito com os fatos esim com a estrutura em si, baseando-se em dados de difração de raios X eutilizando uma mistura de intuição e

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Crick não queriaperdertempo emfatos

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implicariam alto conteúdo de água,não levado em conta no modelo. Porinterferência de John Randall (King’sCollege) com Bragg, Watson e Crick ti-veram de desistir de trabalhar com DNA,deixando isso para o pessoal do King’sCollege. Crick voltou para sua tesecom a hemoglobina e Watson induziuo crescimento de cristais de proteínapara Randall. Que mais poderiam fa-zer, sem emprego e numa situaçãotransitória, de passagem por onde es-tavam?

No entanto, 15 meses depois, Wat-son e Crick publicavam a estruturacorreta do DNA.

O ponto de virada deu-se com apublicação de uma possível estruturado DNA por Pauling, também quimi-

camente sem consistên-cia. A simples publica-ção, no entanto, acirrouos ânimos do Caven-dish. Não se conforma-vam por terem perdidoa corrida para Paulingna descoberta das estru-turas α-hélice e folhaβ-pregueada de proteí-nas e não poderiamperder novamente como DNA. Bragg reativouWatson e sCrick.

Nesse intervalo, tanto Watsoncomo Crick tinham se preocupado emestabelecer bases teóricas mais sólidaspara suas pretensões. Crick, juntamen-te com William Cochran e VladimirVand, publicou um artigo teórico so-bre interpretação de difração de raiosX em estruturas helicoidais. Por sua vez,Watson tentou entender melhor as es-truturas das bases do DNA.

O grande pulo do gato deu-se quan-do o relatório da equipe do King’sCollege para o Medical Research Coun-cil (que dava suporte financeiro parao grupo de cristalografia) passou pe-las mãos de Perutz, que o entregou aCrick. Os dados recentes de RosalindFranklin sobre medidas de difração deraios X de DNA estavam ali meticulo-samente descritos. Dados reveladoresaos olhos de observadores argutoscomo Crick tinham passado desperce-bidos por Rosalind Franklin. Anos de-pois, André Lwoff (Institut Pasteur) e,separadamente, Erwin Chargaff publi-caram artigos questionando se Perutz

tinha sido ético em disponibilizar o re-latório do King’s College a Crick.

Horace Judson, no livro The EightDay of Creation, conta que examinouminuciosamente os cadernos de labo-ratório de R. Franklin. Segundo ele,Franklin não tinha se dado conta daimportância de seus dados. Tinha des-coberto que em condições mais úmi-das o DNA passava de uma forma Apara B, a qual claramente mostrava-sehelicoidal. No entanto, voltou suascostas para a estrutura B e se preocu-pou mais com a estrutura A, questio-nando se esta correspondia a uma es-trutura helicoidal. A estrutura B, alémde mais reveladora em termos de defi-nição por difração de raios X, deveriaser mais próxima da estrutura fisioló-gica, num meio aquoso.

rick percebeu claramen-te os parâmetros geomé-tricos da unidade crista-lina a partir dos dadosde Franklin (afinal ele es-

tava desenvolvendo uma tese de dou-torado na qual a estrutura de proteí-nas prescindia inequivocamente dessesparâmetros) que permitiram concluirque havia duas hélices, correndo emsentido antiparalelo, e que as bases es-tavam inquestionavelmente no interi-or da dupla hélice.

No entanto, faltava entender comoas bases de uma e outra cadeia intera-giam mantendo uma estrutura maisrígida. Crick não aceitava as pontes dehidrogênio, tão popular naquele mo-mento devido às descobertas de Pau-ling da importância delas na estruturade proteínas. A partir de dados de li-vros, textos, Crick admitia que as basestinham uma estrutura enólica e nãoceto (uma cadeia carbônica, com umgrupo OH ligado a um carbono, oqual se une a outro carbono por umadupla ligação, pode estar em equilí-brio tautomérico com uma estruturaem que este mesmo carbono está liga-do por dupla ao oxigênio).

Aqui entra outro personagem, JerryDonohue, vindo do grupo de Pauling,e que entendia de química mais doque qualquer investigador do Caven-dish, e que naquela época estava nes-sa instituição. Ele percebeu imediata-mente que Crick estava sendo dirigidopor argumentações errôneas, pois asestruturas estáveis das bases deviam

estar na forma ceto, que permitia aformação de pontes de hidrogênio. Aestrutura do DNA tornou-se entãopraticamente montada nas cabeças deCrick e Watson.

O último lance parecia, no entan-to, estar cabendo a Watson. Não con-seguindo esperar pela fabricação demodelos atômicos pela oficina do Ca-vendish, que seriam utilizados paraconstruir a estrutura do DNA compa-tível com todas essas informações,pôs-se a trabalhar com modelos de pa-pelão que ele mesmo construiu. Équase inacreditável que a Watson te-nha cabido a última palavra. Não ten-do contribuído nem antes nem depoispara maiores revelações científicas epor ter se apegado a conjecturas pou-co esclarecedoras no episódio da des-coberta (como, por exemplo, que pon-tes entre íons de magnésio e de fosfatoestabilizariam a estrutura do DNA),teve uma revelação que o conduziu aoponto final da descoberta.

Com seus modelos toscos, pôde per-ceber que o pareamento de guanina ecitosina e o de timina e adenina ti-nham contornos geométricos compa-ráveis e que duas pontes de hidrogênionesses pares seriam, conforme os ensi-namentos de Donohue, responsáveispela estabilidade da dupla hélice. Des-sa forma o diâmetro da dupla hélicepermaneceria constante ao longo doeixo. Nenhum outro tipo de par per-mitia isso. Ademais, e igualmente im-portante, esses dois pareamentos fa-riam justiça aos dados de Chargaff,que, a bem da verdade, eram levadosmais a sério por Watson do que poroutros personagens envolvidos.

É curioso que tanto Watson comoCrick sabiam da regra de Chargaff etinham inferido que ela era impor-tante na replicação complementar. Po-rém, como notou Crick: “O paradoxoda coisa toda foi que, quando nós tí-nhamos todos os elos da estruturaprontos, não tínhamos usado a regrade Chargaff. Nós fomos empurradospara ela”. A estrutura do DNA com osmodelos da oficina de Cavendish foifinalizada poucos dias depois. Porém,no dia seguinte ao vislumbre de Wat-son, 28 de fevereiro de 1953, este eCrick sabiam, embora só na cabeça,toda a estrutura: ela tinha emergidoda sombra de bilhões de anos, absolu-ta e simples, e foi vista e entendida

10 ■ PESQUISA FAPESP ESPECIAL

De início osmodelos

eram muitotoscos

C

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pela primeira vez, de acordo com o re-lato de Judson.

fascinação da descoberta épercebida por mais alguns

fatos: Watson e Crick, em-bora jovens e sem posi-

ção acadêmica, conse-guiram pelo próprio brilho ser ocentro da atenção de uma comunida-de de cientistas de primeira grandeza.Vários deles receberam Prêmio Nobel,posteriormente à descoberta da duplahélice. Diretamente envolvidos com aepopéia da dupla hélice estiveram La-werence Bragg (Nobel de Física em1915), Linus Pauling (Nobel de Quí-mica em 1954), Alexander Todd (No-bel de Química, 1957), Maurice Wil-kins (Nobel de Medicina ou Fisiologiaem 1962), Max Perutz e John Kendrew(Nobel de Química em 1962). Como“mensageiros” estiveram André Lwoffe Jacques Monod (Nobel de Medicinaou Fisiologia em 1965) e Max Del-bruck, Alfred Hershey e Salvador Lu-ria (Nobel de Medicina ou Fisiologia

em 1969). Crick e Watson receberam oPrêmio Nobel de Medicina ou Fisiolo-gia de 1962, nove anos após o anúncioda estrutura da dupla hélice.

Quão complexa é a estrutura doDNA? Eis aqui a observação de Perutz,que acompanhou todos os episódiosda descoberta: “Uma proteína é milvezes mais difícil do que DNA. DNAfoi comparativamente simples e pôdeser elucidado pelo método de tentati-va. Há pouca informação a partir deuma fotografia de difração de raios X;o que Crick e Watson tinham era real-mente três medidas limitadas: a lar-gura, a altura entre bases paralelas em-pilhadas e a altura de uma voltacompleta da hélice. Desses dados elessabiam que o mesmo padrão recorriaperiodicamente ao longo do eixo da fi-bra. Obedecendo esses três parâme-tros, eles conseguiram resolver a estru-tura com modelos de construção. Nãoé possível resolver a estrutura de pro-teína por esse método, pois não há pa-drões de repetição. Para determinartais estruturas é preciso determinar

vários milhares de parâmetros a partirdas fotografias de raios X”.

Uma assertiva de Jacques Monod,um outro teórico da biologia molecu-lar, parece colocar Crick no seu devidocontexto: “Francis (Crick) de fato es-tudava mais do que nós. Ninguémdescobriu ou criou a biologia molecu-lar. No entanto, um homem dominouintelectualmente essa área, porque elesabia mais do que nós e entendia maisdo que nós: Francis Crick!”.

O que aconteceria se os nomes deWatson e Crick fossem apagados dahistória da ciência, num exercício in-telectual? Gunther Stent, famoso bio-logista molecular, argumentou: “SeWatson e Crick não tivessem desco-berto a estrutura do DNA, ao invés deela ser revelada com todo o seu gla-mour, seria apresentada com um go-tejamento lento, de forma que seuimpacto teria sido muito menor”.Com esse argumento, Stent sentenciaque uma descoberta científica é maisum trabalho de arte do que em geralse admite.

PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 11

AC

LA

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IUS

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Os chapeleiros malucos

les já foram descritos comodois “chapeleiros malucosconversando durante ochá” e, efetivamente, essadupla, tão célebre como o

modelo de hélice que revelaram, levoua biologia ao país das maravilhas. “Sepercebemos, na época, o significado denossa descoberta? Bem, Jim Watsonlembra que anunciei no The Eagle, opub local, que havíamos descoberto osegredo da vida”, afirma Francis Crickem um texto cedido com exclusividadepara a revista Pesquisa FAPESP. “Namanhã de sábado, 28 de fevereiro de1953, Jim estava preguiçosamente ma-nuseando os modelos de metal que fi-zeramos do DNA e notou que um parAT tinha formato parecido com o de umpar CG. Na hora, vimos que os pares debases obedeciam a essas regras”, diz.

“Os modelos tinham a simetriacorreta, ligdas por um eixo duplo per-pendicular ao eixo da hélice”, lembra.Curiosamente, Watson não gostou daidéia. “Ele tentou, sem sucesso, construiruma espinha dorsal como se as duascadeias fossem paralelas. Mas isso exi-gia uma rotação de 18 graus entre umnucleotídeo e outro, estreita demais,ao passo que as cadeias antiparalelaspediam 36 graus e a rotação era maisfácil”, fala. Estava revelada a pedra deroseta da configuração genética.

“A dupla hélice iniciou uma cadeiaexplosiva de descobertas sobre como avida funciona e as novas revelaçõesvieram muito rapidamente”, observaVictor McElheny, ex-diretor do ColdSpring Harbor Laboratory, professorvisitante do programa de Ciência eTecnologia do MIT e autor do recém-lançado Watson and DNA: Making aScientific Revolution. Com inusitada mo-déstia, Crick faz uma ressalva da im-portância de seu trabalho.

12 ■ PESQUISA FAPESP ESPECIAL

As descobertas de Watson e Crickdesafiam os analistas a tentaradivinhar futuras conquistas

CARLOS HAAG

E“Sem dúvida, ele foi fundamental.

Mas nós não previmos o seqüencia-mento do genoma humano. Enxer-gamos, no máximo, o código genético,embora tenhamos pensado erronea-mente que o RNA ribossômico fosse oRNA mensageiro”, diz Crick. “Pensa-vamos que seqüenciar o DNA seriaalgo muito difícil e que tomaria muitotempo. Tampouco pudemos prever oDNA recombinante”, fala. “Mas isso éparte da ciência. Raras vezes pode-seantever algo corretamente mais doque dez ou 15 anos adiante. Descober-tas inesperadas podem, com freqüên-cia, alterar o quadro completamente”,avalia o pesquisador.

McElheny reconhece que o futuro,atual, deve em muito ao empenho deWatson. “Ele forçou tudo para a frente.Jim sabia que era preciso fazer as pes-soas entenderem que aquilo era e é umarevolução baseada em grandes proble-mas. E fez com que muitos jovens detalento fossem a campo para trabalharsobre a descoberta da dupla. Watsonensinou gerações de cientistas comopensar a biologia”, observa o pesquisa-dor. “Ele queria que toda seqüência deAs, Ts, Gs e Cs do DNA humano, maisde 3 bilhões, viessem à luz no cin-qüentenário da descoberta do modelo,quando ele completa 75 anos”, revela oautor da biografia do cientista.

“Pena que boa parte das celebraçõesdeste ano se concentrem na descober-ta em si, no estado presente da ciênciado DNA e nas esperanças e nos temo-res do uso do conhecimento biológico”,avisa. “Dá-se pouca atenção à cascatade descobertas, muitas surpresas, aolongo desses 50 anos e que levaram aosaber atual genético. Mas não duvidoque o desejo de Jim Watson seja cum-prido e ele ganhe esse belo presente deaniversário.”

“O futuro? Notem que, ao menosem termos de procariotes, a determina-ção da seqüência, do DNA para o RNAe para a proteína (o que Jim chama,incorretamente, de o Dogma Central),é, em termos de informação, um pro-cesso que apenas se auto-alimenta”,nota Crick. “Em verdade, para o futu-ro, somos confrontados não com umtal processo, mas com sistemas dinâ-micos não-lineares, cuja teoria é frag-mentária, complexa e confusa. Isso eas interações de grupos de proteínas emgrandes compostos são os problemasque nos esperam à frente”, avalia o ci-entista. “Parece não haver limites paraas questões que nos aguardam, masnão viverei para ver suas soluções. Masmuitos de vocês vão conseguir assistirao nascimento de técnicas radicalmen-te novas e chegar a novas descober-tas. Boa sorte”, diz Crick.

Brincadeira - O jornalista Kevin Davi-es, editor da revista Bio-IT World e au-tor de Decifrando o Genoma, faz eco àsdeclarações de Francis Crick. “Se pen-sarmos a genética como um campo defutebol, com certeza estamos no pri-meiro tempo. A genética do século 20iniciou-se com a redescoberta das leisde Mendel e terminou com a seqüênciado genoma. Mas nós temos outroscem anos para realmente entender co-mo essa informação pode ser codifi-cada em saúde e doença”, analisa. Se hámuitas promessas para o futuro, o querealmente podemos esperar nas novasfronteiras da pesquisa? “O enfoque ain-da está nos genes, em especial comoeles se modificam, por exemplo, nos cân-ceres. Mas muitos já se voltam para oestudo da proteômica. Os cientistas, noentanto, avisam que os genes são brin-cadeira perto das proteínas”, acreditaKevin Davies.

DUPLA HÉLICE 50 ANOS

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estudo Our Posthuman Future: Conse-quences of Biotechnology Revolution(que deve chegar ao Brasil, traduzido,pela Rocco, neste ano). “Somos presasfáceis dos cientistas desde os tempos deFrancis Bacon, acreditando, como elesacreditam, que todo o progresso daciência é para o nosso bem. Até agora,o que mantém em pé o fundamento daigualdade entre raças, sexos e pessoasé a nossa crença de que não há dife-renças entre eles. No momento emque os mapas dissecarem essas di-versidades, estaremos diante de umdilema moral que pode ‘dar razão’ apreconceitos já vencidos”, avalia opesquisador.

James Watson é conhecido pelosseus detratores comoum cientista inflexívelque denuncia qualquertentativa de se fecharuma questão de pesqui-sa biológica por causa deriscos e dilemas éticos.“Como os biólogos dostempos de Mendel eDarwin, ele rejeita total-mente a idéia de que avida é e sempre será, dealguma maneira, algo ase deixar desconhecido.Além disso ele detesta a hipótese de quedesmembrar problemas em pequenaspeças que podem ser solucionadas eresolver o todo viole algum princípioholístico”, defende McElheny. “Tentarregulamentar procedimentos futuros éum risco absurdo. As pessoas achamque têm uma escolha quando o assun-to é a manipulação genética e isso nemestá mais posto. A pesquisa genética éinevitável”, concorda Gregory Stock,diretor do programa de Medicina,Tecnologia da Universidade da Cali-fórnia (UCLA). “Estou absolutamentecerto de que, em menos de uma déca-da, teremos feitos amplos estudos po-pulacionais associando certos padrõesgenéticos com atributos relacionados àsaúde e longevidade”, diz o pesquisadoramericano. O próprio James Watsonnão teria dito melhor.

Ou teria: “Entender a natureza hu-mana é, acredito eu, um dos grandesobjetivos para este século: em que me-dida somos realmente controlados porgenes. Essa é a grande pergunta”, avaliaWatson. “Você tem apenas que conver-sar com a mãe de Francis Crick para

PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 13

cer ou outra coisa”, reforça Davies. “Aciência do DNA, no campo da medici-na, vai, certamente, ajudar a estender avida humana e fazê-la menos doloro-sa. Esa ciência foi crucial para identifi-car o vírus que causa Aids e para obteralgumas drogas que ajudam a comba-ter essa doença. O trabalho do DNAencobre os aspectos genéticos das do-enças humanas: os genes que intera-gem com nosso ambiente para causarcâncer ou outras moléstias”, continuaMcElheny.

ambiente é outra pala-vra-chave na visão fu-tura do DNA. “Já temosum dilema moral porcausa do mapeamento

dos genes. Ao decifrarmos esse mapa eestabelecermos a ligação entre genese comportamento, podemos depararcom verdades indesejáveis”, acreditao sociólogo Francis Fukuyama, que,preocupado com que o chama de “des-caso de alguns cientistas com questõeséticas sobre o futuro da manipulaçãogenética”, lançou, no ano passado, o

Destinoestaria nosgenes enão emestrela

“Hoje, a vasta ciência do DNA en-frenta muitas novas questões. Agora quea seqüência humana do DNA está qua-se completa, há a necessidade de fazerum dicionário completo de todas as pro-teínas que são “especificadas” pelo DNAe também precisaremos criar uma gra-mática da forma em que essas proteínasinteragem umas com as outras. Os bió-logos lutam para dar algum sentido dadescoberta recente de um enxame depequenas moléculas de RNA que têmmuitas funções no controle dos proces-sos da vida”, avisa McElheny. Não semrazão, as palavras poéticas de Watson:“Nós crescemos pensando que o nossodestino estava nas estrelas. Agora, sabe-mos que, em boa parte, nosso destinoestá nos genes”.

“Preste bem a atenção no “em boaparte”: mesmo Watson concorda que osgenes não determinam completamen-te nosso comportamento e personali-dade. Mas, ao determinar as variações-chave em nossa seqüência única deDNA, poderemos dizer para você, emum estágio muito inicial, se você estádestinado a sofrer de Alzheimer, cân-

O

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saber que ele não é um produto de suacriação. Ela era ótima, mas eles não ti-nham nada em comum. A singula-ridade de Francis vem de qualidadesque eu achei muito amáveis. Quantodisso vem dos genes? Não sei, masmeu palpite é de que não poderia ser

muito”, brinca.Tudo ainda se com-

plica quando somos in-formados, como fomos,de que há semelhançasgenéticas notáveis entrenós e nossos parentesprimatas mais próxi-mos, sem falar da nossaproximidade genéticacom outras espécies. “Oque nos faz únicos? Éuma grande questão eexplica a razão de os ci-

entistas estarem loucos para seqüen-ciar o genoma dos chimpanzés, poisnós dividimos 98,5% de nosso DNA.Mas as diferenças de 1,5% é que po-dem revelar as pistas para a chave dasdiferenças genéticas que nos separamdos primos primatas”, avalia KevinDavies. “Procurar por lugares no DNA

em que há diferenças pequenas e espe-cíficas de uma pessoa para a outra aju-da os objetivos de uma medicina que émais ‘individualizada’ que a de hoje”,diz McElheny. “Somos pouco diferen-tes. E daí? Basta olhar para percebercomo, em verdade, somos diferentes”,acredita Watson.

Os dilemas éticos, porém, tambémincluem a exploração da manipulaçãodo DNA para fins materiais. “Os pro-blemas éticos decorrentes das novas ha-bilidades de alterar sementes ou de di-agnosticar doenças genéticas não sãomuito diversos dos antigos dilemaséticos da medicina. Todos se referem acomo se define ‘boa vida’ e se conseguefazer com que todas as pessoas tenhamacesso à comida farta e a cuidados mé-dicos modernos. É ético impedir fa-zendeiros de usar sementes genetica-mente modificadas que são resistentesa pragas? É ético deixar nascer um fetoque traz genes capazes de gerar um de-feito físico catastrófico?”, perguntaMcElheny.

“A ciência sempre pode ser usadapara fazer o mal. A questão é: nós me-lhoramos a nossa vida nos últimos cem

anos? Nem preciso pensar muito paradizer que sim e acredito com certezaque nos próximos cem anos vamosconseguir com que ela seja ainda me-lhor. Creio piamente que um desastrecrucial é imaginar o retorno ao nossomeio de alguma doença infecciosa. Ima-gine se algo assim matasse metade dapopulação mundial: estariamos numarecessão por décadas. Creio que o co-nhecimento é uma coisa boa e que aspessoas, ao menos boa parte delas e porboa parte do tempo, tentam usar esseconhecimento de forma construtiva.Mas, ainda assim, com certeza, o futu-ro nos reserva mais Hitlers, Stalins eIdi Amins”, explica Watson.

Devemos, então, esperar um futuroglorioso e genético, como nos bons li-vros de ficção, ou temer a “sociedadepós-humana” de Francis Fukuyama? “Abiologia é sempre incomodada por fan-tasias ficcionais sobre seres humanoscriados para ser escravos. Nós já temosescravidão em larga escala, sem nenhu-ma manipulação dos nossos genes. Osreais problemas humanos são maioresdo que as fantasias e estão conosco des-de o início”, fala McElheny.

“O DNA é um ícone celebrado, masé importante termos em mente que elenão controla tudo no comportamentohumano ou temer qualquer manipula-ção de sua estrutura. O ambiente é cru-cial e, apesar de todas as promessas dagenética, não há dúvida de que umafração de todo o dinheiro gasto no pro-jeto genoma poderia salvar muitas vi-das se fosse gasto com doenças queafetam o Terceiro Mundo, como malá-ria”, diz Kevin Davies. A dupla, héliceou os cientistas, então, não nos devemcausar medo. Afinal, como resistir àcandura com que Watson definiu adescoberta do segredo da vida, anun-ciada no pub The Eagle, há 50 anos:“Francis e eu somos famosos apenasporque o DNA é tão bonito!”. Ninguémduvida disso, com certeza.

CL

AU

DIU

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Ciênciapode ser

usada para fazer algo mau

Leia mais

50 Years of DNA, de Julie Clayton e CarinaDavis. Nature Palgrave, R$ 116,14DNA: The Secret of Life,de James Watson. Knopf, R$ 167,55

Os dois livros sairão ainda neste semestre nosEUA e Inglaterra. Encomendas antecipadasna Livraria Cultura, fone (11) 3170-4033

14 ■ PESQUISA FAPESP ESPECIAL

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PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 15

Quebra-cabeças da complexidade

estudo da biologia talvezseja tão antigo quanto osurgimento das estrutu-ras cerebrais que permi-tiram o estabelecimento

da linguagem e o desenvolvimento dopensamento consciente. Esse processoelaborativo fez com que a humanida-de se ocupasse, há milhares de anos,com a compreensão de suas origens etambém com os processos relaciona-dos à vida, doença e morte. Nos últi-mos 50 anos, foi possível acompanhardescobertas fantásticas em diversasáreas do conhecimento. Na biologia,tivemos um salto tremendo, que cul-minou com o seqüenciamento com-pleto do genoma humano alcançadorecentemente. A habilidade de acumu-lar uma vasta quantidade de informa-ção genética nos permitiu conhecer abase estrutural de diversos genomas,desde as bactérias mais primitivas (cha-madas de arqueobactérias) até o ho-mem, passando por fungos, parasitas,vermes, plantas e modelos como a mos-ca-das-frutas e o camundongo.

Esse conhecimento acumulado,permite reconstruir a relação evolutivade uma boa parcela dos seres vivos, re-contando a história da vida em nossoplaneta. A capacidade de ler genomasalterou de maneira fundamental o es-tudo da biologia, da medicina e de di-versos campos associados, influenciandoum variado grupo de indústrias, queincluem a química fina, a farmacologia,a agroindústria e outras.A grande quan-tidade de informação produzida repre-senta uma rica fonte de informaçãoque deve ser cuidadosamente estudada,de modo a permitir o avanço mais pro-

Conhecimento da seqüência de um genoma não basta paraentender nossa carga genética

EMMANUEL DIAS NETO*

* EMMANUEL DIAS NETO é pesquisador do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e um dos criadores do método ORESTES.

Oveitoso de nosso conhecimento. O mai-or impacto desses achados ainda estápor vir, e certamente virá, quando real-mente tivermos conseguido decifrar,compreender e associar as informaçõescontidas em nosso genoma.

Para isso devemos, antes de tudo, terconsciência de que o conhecimento daseqüência completa de um genoma,apesar de ser uma peça importante,está longe de permitir, apenas por si, amontagem do intrincado quebra-cabe-ça de nossa complexidade. Para enten-der o que nos permite ter essa maravi-lhosa complexidade – nosso enormerepertório comportamental, a habili-dade de ter ações conscientes, nossacapacidade criativa, musical e científica,a capacidade de aprender, a nossa me-mória, entre outras – não poderemoscontar apenas com nossa carga genéti-ca de 3,2 bilhões de nucleotídeos eum número de genes não muito supe-rior ao de uma mosca.

Devemos ter a consciência de queo domínio de um genoma significa aposse de um mapa. No caso do geno-ma humano, um mapa complexo, ain-da não totalmente conhecido, que au-xiliará enormemente na busca pelasorigens das doenças, com base nas va-riações genéticas, na diversidade, com-plexidade e no comportamento das pro-teínas no interior das células. Estudosde neuropsiquiatria mostram que, emgêmeos monozigóticos separados aonascimento e criados em ambientes dis-tintos, a concordância para o desen-volvimento de doenças neuropsiquiá-tricas é de cerca de 50%.

Isso mostra que em certas circuns-tâncias existe um balanço entre a im-

portância dos genes e do ambiente nadeterminação de determinadas condi-ções. Se por um lado a genética temgrande peso no desenvolvimento dedoenças, os fatores ambientais tambémtêm importância considerável. A genéti-ca não é absoluta. Ainda temos muito oque aprender no estudo das interaçõesdo genoma com o ambiente, além deconhecer e desvendar as sutilezas denosso genoma.

Já sabemos muito, mas é pouco

É curioso observar que, mesmoapós o entusiasmo gerado pela finali-zação dos rascunhos do seqüencia-mento do genoma humano, um tre-mendo esforço ainda precisa ser feitopara que possamos conhecer o signifi-cado da imensa maioria das seqüênciasobtidas. Uma das primeiras questõesque surgem é: como identificar as re-giões importantes do genoma? Comodeterminar sua função no organismo?As regiões do genoma com função maisóbvia são os genes, que se acham com-prometidos com a produção de proteí-nas. No entanto, essas regiões estãorestritas a cerca de 3% do nosso geno-ma. O número de genes preditos nosbadalados trabalhos que descreveramo genoma humano ficou, segundo asestimativas mais baixas, na faixa de 30mil – alguns estudos indicam haver até120 mil genes. Mesmo com esse peque-no número, apenas para a metade delesencontramos algum tipo de domínioque permita a predição de atividade fi-siológica.

Enquanto se acredita que as esti-mativas do número de genes devam

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crescer, com o desenvolvimento de me-lhores programas computacionais depredição gênica e com o acúmulo demais dados experimentais, está muitoclaro que o número de genes é apenasum dos mecanismos que criam a di-versidade bioquímica necessária parafazer as proteínas. Em nosso genoma,os genes são formados por blocos deinformação intercambiáveis, chama-dos exons, que são separados por blo-cos sem informação protéica, conheci-dos por introns. Os exons podem serrecombinados como se combinam sí-labas para formar uma palavra, for-mando mensagens distintas. Dessemodo, a seqüência de um único genepode começar e terminar em regiões

diferentes e sua porçãointerna pode ser monta-da alternando diferentesblocos, gerando proteí-nas com característicasfuncionais distintas. Es-sas combinações (co-nhecidas como splicingalternativo) representamum eficiente mecanis-mo de geração de diver-sidade sem a necessidadede manter um imensonúmero de diferentes

genes funcionais. Além dos eventos desplicing alternativo, diversos mecanis-mos conhecidos como epigenéticos,tais como metilação do DNA ou mo-dificação de histonas, podem modulara expressão de um gene. Esses eventosde regulação epigenética regulam aatividade de genes silenciando sua ati-vidade ou remodelando a estruturados cromossomos, expondo ou escon-dendo determinados genes de acordocom a necessidade de sua expressão.Dessa maneira, um complexo sistemade regulação intracelular é disparado,ligando ou desligando genes em deter-minados tecidos ou em fases específi-cas do desenvolvimento.

DNA lixo?

Os genes são distribuídos de mododesigual nos nossos cromossomos. Da-dos de seqüenciamento mostram quealguns cromossomos, como o 17, o 19e o 22, são ricos em genes, quandocomparados com os cromossomos 4,8, 13, 18 e o cromossomo Y. O empa-cotamento do material genético no

núcleo de nossas células é um proces-so complexo, pois o DNA de uma úni-ca célula humana tem cerca de 2 me-tros de comprimento. Há alguns anos,descobriu-se que a distribuição doscromossomos dentro das células, noprocesso de empacotamento, é extre-mamente organizada. Na periferia donúcleo celular ficam os cromossomoscom menor densidade gênica, enquan-to os cromossomos mais ricos se situ-am na porção mais interna do núcleo.

Foi demonstrado que essa distri-buição cromossomal é regulada hápelo menos 30 milhões de anos, pois éconservada nos primatas. Essa conser-vação indica um papel funcional im-portante. Alguns pesquisadores suge-rem que os cromossomos que possuemmais genes se encontrem na porçãomais central dos núcleos, e os demais,ao seu redor, protegendo-os de agentesmutagênicos externos. Além disso, di-versos trabalhos demonstram queocorre um freqüente movimento doscromossomos nos núcleos celulares.Essa dança dos cromossomos mostraque a estrutura do DNA e do seu em-pacotamento nas células não é nadarígida. Os cromossomos parecem semovimentar, possibilitando a troca dematerial genético entre si e a exposi-ção de genes que devem ser ativadosem determinadas circunstâncias. O es-tudo da distribuição cromossomal teminclusive sido sugerido como um pos-sível critério de diagnóstico para o cân-cer. Se apenas 3% do genoma codificaproteínas, será que o restante de nossoDNA é um resquício evolutivo que ser-ve somente para proteção?

Uma das maneiras de analisar nos-so genoma é compará-lo com o de ou-tros organismos. É a chamada genômi-ca comparativa. Esses estudos partemda premissa de que um bloco de DNAconservado por milhões de anos deveter alguma função importante, que po-deria ser comprometida se a seqüênciafosse muito alterada. É a chamada con-servação fisiológica. Estudos de genô-mica comparativa demonstraram queaproximadamente 95% de nosso geno-ma é muito parecido (possuindo, defato, cerca de 99% de identidade) como de um chimpanzé. No entanto, nossotempo de divergência (o período detempo que nos separamos de um an-cestral comum) com os chimpanzés é deapenas 5 milhões de anos. Talvez esse

período não tenha sido longo o sufici-ente para que regiões não funcionais ti-vessem se diferenciado, e teríamos umaconservação passiva. Quando aprofun-damos as comparações e investigamosas semelhanças que possuímos com ogenoma do camundongo, cujo últimoancestral comum com o homem exis-tiu há 145 milhões de anos, vemos queuma significativa parcela desse DNAlixo ainda é conservada.

e os chimpanzés são genetica-mente muito próximos e nãoé possível distinguir conser-vação passiva de conservaçãofuncional, o camundongo é

muito distante, o que impede detectarmudanças no DNA adquiridas mais re-centemente. Enquanto a comparaçãocom o genoma de um organismo dis-tante, como o do camundongo, ofereceum painel importante de regiões ge-nômicas com potencial funcional, alonga divergência entre as duas espéciesnão permite identificar algumas suti-lezas. As regiões do genoma que se mo-dificaram entre essas espécies e nos per-mitiram evoluir como primatas – eposteriormente como Homo sapiens –não estão no genoma de camundongoe deveriam ser encontradas de outramaneira.

Em um artigo publicado na revistaScience no final de fevereiro (Boffelli etal., 2003), um grupo de pesquisadorescomparou regiões não-codificadorasdo genoma humano com áreas seme-lhantes do genoma de outros primatasnão-humanos. Os cientistas encontra-ram diversas regiões conservadas, mes-mo quando foram usadas as espéciesde primatas tropicais, muito distantesde nossa espécie. Conseguiram identi-ficar elementos conservados e provarque têm atividade funcional: atuam naregulação da expressão gênica entre asdiferentes espécies. Para isso, foramutilizadas diversas espécies de prima-tas, incluindo-se aí o DNA de váriosprimatas brasileiros. Fica clara a im-portância da biodiversidade para deci-frar nosso genoma.

No entanto, cada genoma possuicaracterísticas únicas, que por seus re-flexos funcionais permitem diferenciaras espécies. Como investigar as re-giões funcionais (com atividade fisio-lógica) únicas do genoma humano? Sa-bemos que elas não estão restritas aos

Blocos que são

comosílabas de

palavras

S

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PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 17

genes ou às regiões conservadas emoutros primatas. São característicasúnicas da nossa espécie. Um trabalhomuito interessante nesse sentido foifeito por pesquisadores de uma em-presa norte-americana, em conjuntocom um pesquisador do Instituto Na-cional do Câncer, nos Estados Unidos(Kapranov et al., 2002).

Usando a seqüência dos cromosso-mos 21 e 22 humanos, os cientistas de-senharam pequenos fragmentos deDNA artificial, cobrindo toda a se-qüência desses cromossomos em cur-tos intervalos de 35 nucleotídeos, osblocos constituintes do DNA. Os mi-lhões de fragmentos produzidos fo-ram usados para investigar se linhagenscelulares humanas estariam produzin-do RNA complementar a esses frag-mentos. A estratégia comprovou a ati-vidade funcional de novas regiões epermitiu uma análise transcricionalem larga escala desses dois cromosso-mos humanos. Para surpresa de todos,um altíssimo percentual desses frag-mentos mostrou estar associado a RNAsmaduros das linhagens celulares. Os

autores demonstraram que as regiõesativamente transcritas de nosso geno-ma são, pelo menos, dez vezes mais ex-tensas do que poderíamos imaginar.Talvez essas regiões contenham genesmuito raros, ainda não demonstradospor nenhuma técnica, ou moléculasregulatórias ainda não conhecidas,mas de importância central para o co-nhecimento da fisiologia de nosso ge-noma. Dessa maneira, se antes imagi-návamos que 3% do genoma continhagenes, esse trabalho sugere que talvezesse percentual seja muito maior.

Genes e novas drogas

Dentre a fração de genes conheci-dos atualmente, algumas centenas co-dificam proteínas potencialmente po-derosas para o tratamento de doenças.Diversas dessas proteínas, assim comodrogas baseadas em anticorpos mono-clonais, estão em fase final de experi-mentação e algumas já são testadas emhumanos. Sendo assim, buscam-sehoje mecanismos mais eficientes e demenor custo de produção de medica-

mentos. Uma das promessas é a mani-pulação genética de alimentos. Produ-zir um feijão mais nutritivo, milho comhormônio do crescimento humano oucenouras com vacinas são sonhos querondam as cabeças dos pesquisadoreshá anos.

Esses sonhos estão cada dia maispróximos, e um passo importante nes-se sentido foi anunciado há algumtempo por uma empresa norte-ameri-cana após associação com o renoma-do Instituto Escocês Roslin (o mesmoque assombrou o mundo com a clona-gem da ovelha Dolly), para dessa vezproduzir drogas dentro de ovos de ga-linhas. Enquanto animais, como ca-bras, vacas, ovelhas e coelhos vêm sen-do usados para produzirmedicamentos em seuleite, a tecnologia de tra-balho com aves surgecom a promessa de sermais rápida, barata epraticamente ilimitadagraças à capacidade deprodução de ovos. Oprimeiro produto deve-rá ser um anticorpomonoclonal dirigido aocombate do melanoma,um dos mais agressivose comuns tumores que ocorrem noBrasil. O domínio dessa tecnologia,aliado à descoberta da totalidade dosgenes humanos e à determinação desua função biológica, permite imaginarum futuro promissor para essa novaforma de produção de medicamentos.

Polimorfismos de DNA

Cada um dos bilhões de seres hu-manos de nosso planeta – com exce-ção dos gêmeos monozigóticos – possuiseu próprio e único genoma. Apesarde serem únicos, os genomas de doisseres humanos não aparentados têmuma identidade média de 99,9%. Di-ante de um genoma de cerca de 3,2 bi-lhões de bases, a sutil diferença de 0,1%representa uma coleção de alguns mi-lhões de nucleotídeos, responsáveis pelanossa fabulosa diversidade. A maioriadessas diferenças tem a forma de subs-tituições ou polimorfismos de nu-cleotídeos únicos (conhecidos em in-glês como SNPs, ou Single NucleotidePolymorphisms). Os SNPs constituemum elemento-chave para compreen-

Sonhosestão cadavez maispróximosdo real

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dermos a variabilidade genética huma-na e sua associação com diversas do-enças. Recentemente houve um au-mento explosivo no número de SNPsdepositados nos bancos de dados pú-blicos. Há cerca de um ano, apenas obanco dbSNP, ligado ao Instituto Na-cional de Saúde dos Estados Unidos,tinha cerca de 4 milhões de SNPs de-positados. Hoje esse número cresceuem cerca de 50%, ultrapassando os 6milhões de SNPs. No entanto, apenas0,3% dos polimorfismos já foi estuda-do de maneira mais aprofundada enumerosos polimorfismos ainda res-tam por serem descobertos.

A literatura científica demonstrapreocupação de que ha-veria um número imen-so de polimorfismos ain-da não revelados, masde grande relevância,que não seriam encon-trados apenas pelo usode estratégias computa-cionais. Essa preocupa-ção se deve ao fato deque a porção central dosgenes estaria pouco re-presentada (nos dadosdas chamadas ESTs ou

etiquetas de seqüências expressas), en-quanto os dados do Projeto GenomaHumano são baseados em um núme-ro muito limitado de indivíduos, le-vando a uma redução da população depolimorfismos. Nesse sentido, a inici-ativa brasileira de geração de ESTs dotipo ORESTES foi extremamente po-sitiva. No contexto do Human CancerGenome Project (HCGP, financiadopelo Instituto Ludwig de Pesquisa doCâncer e pela FAPESP), o grupo brasi-leiro produziu 1,2 milhão de ESTs, de-rivadas da porção interna dos genes,um dos maiores conjuntos de dadosmundiais. Além de serem derivadas dediversos tipos de tumores humanos,essas amostras são de grande valor,por derivarem de uma população comalto índice de mistura étnica, contri-buindo com variações dificilmente en-contradas em populações mais homo-gêneas. Os dados nacionais serãoessenciais para atingirmos uma abran-gente análise de polimorfismos clini-camente relevantes, buscando associa-ções entre polimorfismos de DNA edoenças e avaliando os níveis de poli-morfismos de nosso genoma.

sses polimorfismos devemser a chave para a predis-posição ou proteção ao de-senvolvimento de nume-rosas doenças, além de

estar diretamente associados à maneiracomo diferentes pessoas respondem adrogas. Já sabemos, por exemplo, quea diferença de uma única base na se-qüência do gene APOE confere maiorsuscetibilidade ao desenvolvimento domal de Alzheimer e a doenças cardio-vasculares. O conhecimento do efeitodessas alterações na nossa resposta adrogas abre um tremendo espaço paraa farmacogenética. Sabemos que o cus-to para o desenvolvimento de umanova droga está na faixa de US$ 600milhões. Por vezes, drogas extrema-mente eficazes para a imensa maioriada população devem ser retiradas domercado, pois provocam efeitos gravesem algumas pessoas. Esses estudossobre polimorfismos alteram a evolu-ção da medicina.

Nas terapias medicamentosas po-demos imaginar o fim da abordagemde tentativa e erro. Na área clínica, po-demos prever que a prevenção seráprivilegiada em relação ao tratamento,podendo vir reduzir o custo do trata-mento das doenças. Para isso, a inte-ração entre a pesquisa científica e ainiciativa privada é fundamental, de-vendo permitir a tradução e incorpo-ração dos achados científicos no dia-a-dia das pessoas comuns. Apesar de ogenoma ainda oferecer uma série dedescobertas pela frente, o caminho jápercorrido pela pesquisa científicapermite uma série de possibilidadespráticas atuais, prontas para seremimplementadas na rotina de nossasociedade.

Os estudos de polimorfismos tam-bém nos permitiram calcular a diversi-dade de DNA existente entre indivídu-os das diferentes etnias humanas. Aocompararmos o DNA de dois indivídu-os de uma mesma etnia, vemos que onúmero de diferenças encontradas étão freqüente quanto as diferenças ob-servadas entre indivíduos de etniasdiferentes. Desse modo a ciência de-monstrou que o conceito de raça, vistoa partir das diferenças de DNA, não fazo menor sentido. Diversidade e indivi-dualidade são características das maisfundamentais de cada ser humano. Osdados do genoma humano permitem

que essas características sejam visuali-zadas de maneira muito clara e nosmostram que, por mais que sejamos se-res únicos no Universo, temos muitoem comum com o resto da humanida-de. Nosso genoma pode ser visto comoum patrimônio da nossa espécie. Dei-xando de lado uma postura antropo-cêntrica, o DNA mostra que todas asformas de vida conhecidas são codifi-cadas pela mesma matéria-prima bási-ca, os nucleotídeos que formam os ge-nomas. Isso nos permite uma visãoconceitual de que o evento do surgi-mento da vida no planeta deve ter sidoúnico. A visão filosófica e até mesmopoética nos diz que somos todos mem-bros de uma grande família, compostapelas mais diversas formas de vida doplaneta. Todos tivemos um ancestralcomum, e isso nos deve levar a refletirsobre a nossa postura diante de aspec-tos como poluição, degradação doambiente e preservação da vida noplaneta.

O futuro

Apesar de sempre podermos sersurpreendidos em nossas previsões, oestágio atual das pesquisas permitevislumbrar como será o cenário emum intervalo de 15-20 anos. Dentreamplas possibilidades, algumas pou-cas coisas parecem certas:

■ Teremos uma lista abrangente deprodutos gênicos humanos provendoum enorme potencial de drogas de re-posição (de modo semelhante à insuli-na ou ao hormônio do crescimentorecombinante hoje disponíveis), comum dramático efeito preventivo e cu-rativo em diversas doenças.

■ O prontuário médico em breve iráconter uma lista com o status de diversospolimorfismos ligados à farmacogené-tica, assim como a propensão ao desen-volvimento de uma série de doenças.

■ A obtenção da seqüência genômicacompleta de um indivíduo deverá serpossível em poucos anos e devemosestar prontos para lidar com a manu-tenção dessa confidencialidade de ma-neira responsável.

■ A terapia gênica deve tornar-se reali-dade para doenças causadas por alte-rações em um único gene. Genes de-

18 ■ PESQUISA FAPESP ESPECIAL

E

No futuro,se poderá

prevenirem vez de

só curar

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feituosos poderão ser repostos porversões funcionais.

■ A compreensão da base genética dasdoenças complexas permitirá o designde drogas racionais, dirigidas a viasmetabólicas de funcionamento inade-quado, eventualmente possibilitando amodelagem de estratégias preventivas.

■ O conhecimento de alterações ge-néticas específicas de certos tumorespermitirá o diagnóstico precoce damaioria dos tumores humanos.

■ A indústria da farmacogenômica seestabelecerá de modo crescente, ge-rando uma medicina personalizada naqual drogas serão elaboradas de acor-do com as feições genéticas de diferen-tes grupos de indivíduos.

Acredita-se que, por volta de 2010,marcadores genéticos efetivos estejamdisponíveis para uma grande série dedoenças e condições humanas. Esti-ma-se que o custo para um teste diag-nóstico, incluindo uma grande lista demarcadores, custe por volta de US$ 100.À medida que testes que permitamavaliar a predisposição genética a cer-

tas doenças se tornem possíveis, a so-ciedade enfrentará questões que en-volvem a disponibilidade dessas infor-mações a empregadores ou a seguros-saúde. As leis devem proteger os cida-dãos do uso inadequado dessas in-formações, e devemos questionar a va-lidade de uso dessas informações nomomento de decisões de contrataçãode pessoal.

Nos próximos anos, o público terámais e mais oportunidades de fazer testesgenéticos e especular sobre seu desti-no genético. É urgente que a legislaçãoacompanhe os avanços científicos, incor-porando e usufruindo as descobertas eimpondo limites nas áreas mais deli-cadas. Sem debate público e controlesapropriados, as pessoas poderiam serdiscriminadas por causa de suas carac-terísticas genéticas. É preciso discutir oque a genética pode e não pode realizar,e que tipo de sociedade queremos.

A dupla hélice, com sua beleza esimplicidade, uniu de modo definitivoa bioquímica, a fisiologia e a genética.Sua estrutura oferece uma explicaçãoimediata para os processos de cópia doDNA, mecanismos de herança genéti-

ca, mutação e diversidade. No entanto,a dupla hélice não esclareceu ainda osdetalhes da interação entre a genéticae o meio ambiente. A individualidadehumana revelada pelo DNA faz comque diversos conceitos venham a serrevistos e a medicina passe novamentea focar o indivíduo. Predições em nívelpopulacional não têm o mesmo poderpreditivo em nível individual. Depoisde termos caminhado tanto no conhe-cimento do “livro da vida”, talvez esteseja o momento de re-avaliarmos nossasexpectativas e o próprio conceito denossa existência. Se por um lado te-mos nossa individualidade genética,nós também somos todos muito seme-lhantes e semelhantes às outras formasde vida do planeta.

Termino este texto com um re-pente com o qual tive contato duranteuma viagem à cidade do Recife. A sa-bedoria popular nos surpreende, eacredito que o número de genes pro-posto nos versos deva estar muitomais próximo da realidade do que os30 mil sugeridos nos trabalhos da Na-ture e da Science.

“O mundo se encontra bastante avançado,A ciência alcança progresso sem soma,Na grande pesquisa feita no genoma,Todo o corpo humano já foi mapeado,E lá neste mapa já foi tudo contado,Oitenta mil genes se pode contar,

A ciência faz chover e molhar,Faz clone de ovelha,Faz cópia completa,Mas duvido a ciência fazer um poeta,Cantando galope na beira do mar...”

REPENTISTA GERALDO AMÂNCIO,PERNAMBUCO, BRASIL.

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CL

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DIU

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Referências

Boffelli, D, McAuliffe, J, Ovcharenko, D, Lewis,KD, Ovcharenko, I, Pachter, L, & Rubin, EM. 2003.Phylogenetic Shadowing of Primate Sequences toFind Functional Regions of the Human Genome.Science 299: 1391-1394.

Kapranov P, Cawley SE, Drenkow J, Bekiranov S,Strausberg RL, Fodor SPA, Gingeras TR. 2002.Large-scale Transcriptional Activity in Chromoso-mes 21 and 22. Science 296: 916-919.

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Genoma:um balanço preliminar

o anunciar, em 1997, o iníciodo Projeto Genoma da Xy-

lella fastidiosa, a FAPESPexplicitou os objetivos da

iniciativa. Pretendia-se,ao mesmo tempo em que se financia-va a realização de projeto de pesquisana fronteira do conhecimento, com oestudo de problemas de relevânciasocioeconômica, propiciar a formaçãode recursos humanos altamente quali-ficados na área de genética molecular.A competência gerada deveria contri-buir tanto para o avanço da pesquisabásica em biologia e em medicina co-mo para atrair investimentos para acriação de uma indústria de biotecno-logia molecular no país. Decorridos cin-co anos do início do programa, con-sideramos necessário, mais uma vez,cotejar metas estabelecidas, resulta-dos obtidos e investimentos realizados.Nesse contexto torna-se relevante res-ponder à pergunta: como esses inves-timentos teriam afetado a capacidadeda FAPESP de financiar projetos emoutras áreas de conhecimento tambémrelevantes para o desenvolvimento ci-entífico e tecnológico do país?

Quanto à relevância e qualidadecientífica, é importante registrar quetodos os projetos financiados pela FA-PESP são sempre previamente avalia-dos por reconhecidos especialistas.No caso, foi utilizada uma assessoriacientífica internacional que, enfática eunanimemente, recomendou o apoioà iniciativa. Ainda mais relevante foi,porém, a avaliação que se seguiu pe-las diversas publicações nas mais pres-tigiosas revistas científicas, tais comoNature e os Anais da Academia de Ciên-cias dos Estados Unidos (PNAS)1. Os

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Cientistas brasileiros são atores importantes na ciência e na biotecnologia de Watson e Crick

JOSÉ FERNANDO PEREZ*

* JOSÉ FERNANDO PEREZ é Diretor Científico da FAPESP e professor do Instituto de Física da USP

A

DUPLA HÉLICE 50 ANOS

artigos foram publicados e, mais doque isso, mereceram destaques edito-riais nessas revistas. Esse é o critério deexcelência científica universalmenteaceito e ao qual todas as agências de fo-mento conceituadas aderem.

Quanto à importância socioeconô-mica dos projetos, ela se evidencia pelapauta de problemas a que remetem:doenças de citricultura (amarelinho ecancro), doenças humanas (esquistosso-mose e leptospirose) e culturas de gran-de importância (cana e eucalipto). Foino último mês, aliás, que registramos aimportante conclusão do Genoma Lep-tospira. As parcerias com empresascomo Copersucar, Ripasa, Votorantim,Duratex, Suzano, além do Fundecitrus,atestam o interesse de vários setores daeconomia na iniciativa. Destaque-se tam-bém a parceria com o Instituto Ludwigde Pesquisas sobre o Câncer, que inves-tiu US$ 10 milhões na competência dospesquisadores da rede Onsa em tumo-res de maior incidência no Brasil.

Como conseqüência do programa,mais de 65 laboratórios no Estado deSão Paulo utilizam, atualmente, de for-ma rotineira em seus projetos de pes-quisa, as técnicas de seqüenciamentogenético. Mais de 450 pesquisadoresforam treinados nessa metodologia,essencial para a pesquisa biológicamoderna. Talvez o mais expressivo in-dicador de sucesso tenha sido a recen-te criação de três empresas, Alellyx,Scylla e Canaviallis, cujos sócios são li-deranças que emergiram no progra-ma, e que deverão empregar dezenasde pesquisadores da área de genéticamolecular e bioinformática. Trata-sede fato sem precedentes na históriaeconômica do país. Na palavra dos

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PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 21

últimos anos ter criado uma série deprogramas buscando articular compe-tências e suprir deficiências do sistema deciência e tecnologia. Assim, os progra-mas de Inovação Tecnológica (apoiandomais de 240 pequenas empresas em pro-jetos voltados para a inovação tecnoló-gica); Políticas Públicas; Ensino Público;Biota (envolvendo mais de 500 pesqui-sadores que inventariam e estudam todaa biodiversidade do Estado, iniciati-va que recebeu o Prêmio Henry Fordcomo Iniciativa Ambiental de 1999) eJovens Pesquisadores (financiando maisde 450 projetos e visando dar oportuni-dade aos excelentes cientistas formadospelo sistema de pós-graduação de nos-sas universidades) receberam expressi-vos investimentos nesse período, tendosido possível atender a toda demandaqualificada.

Nada mais auspicioso para come-morar os 50 anos da identificação daestrutura da molécula do DNA do quever os cientistas brasileiros como atoresimportantes na ciência e na biotecno-logia que nasceu com James Watson eFrancis Crick.

Pesquisasreceberamdestaque nomundo

próprios investidores, esses desdobra-mentos são conseqüência direta do Pro-grama Genoma da FAPESP.

Esses fatos receberam grande desta-que na imprensa internacional – NewYork Times, Washington Post, Le Figaro,The Economist, para citar apenas alguns–, que valorizou a estratégia inovadorada rede criada. Não menos importantefoi o reconhecimento de competênciapela parceria proposta pelo Ministé-rio da Agricultura dos Estados Unidospara estudar a variante da Xylella queataca os vinhedos da Califórnia2.

Finalmente, chegamos ao item in-vestimentos. Inicialmente deve ser re-gistrado que nos quatro anos de pro-grama nunca mais do que 5% do seuorçamento de fomento foi dirigido àgenômica. Essa informação deve sur-preender a muitos, face ao reconheci-mento e ao espaço que a imprensa de-dicou ao sucesso. Ainda mais relevanteé o fato de que nenhum projeto de pes-quisa, cujos méritos tenham sido reco-nhecidos pela assessoria especializada,deixou de ser financiado nesse mesmoperíodo. E isso apesar de a FAPESP nos

1 Xylella fastidiosa, Nature, 13 de julho de2000; Xanthomonas campestris, Nature, 23 demaio de 2002; Onsa, the São Paulo VirtualGenomics Institute, Nature Biotechnology,setembro de 1998; Genoma do Câncer – tec-nologia ORESTES, PNAS, Proceeding of TheNational Academy of Sciences of The UnitedStates of America, março de 2000; Cromosso-mo 22, PNAS, novembro de 2000; Genomado Câncer, PNAS, outubro de 2001.

2 Xylella da Uva, Journal of Bacteriology, feve-reiro de 2003.

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O Brasil por dentro dos genesIniciada em 1997,com o projetoda Xylella fastidiosa,a pesquisa genômicano país avança rapidamente

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Interlúdio da biologia molecular

omece com a dupla hélicee termine com o genomahumano”, costumava di-zer James Watson en-quanto esteve à frente do

gigantesco esforço para seqüenciar asletras químicas que compõem a infor-mação genética das células humanas.Para o co-descobridor da estrutura doDNA e então líder do Projeto GenomaHumano (PGH), uma coisa era a con-seqüência lógica da outra. Se Watson eFrancis Crick haviam desvendado osegredo da vida com seu modelo ele-gante da dupla hélice, a chave para acompreensão de como esse segredo semanifestava no organismo do homemsó podia estar ali, na própria seqüên-cia do DNA. Obtê-la significaria des-cobrir o que é ser humano e inaugura-ria uma nova era para a medicina.

Após mais de dez anos e 3 bilhõesde pares de nucleotídeos (as unidadesque formam o DNA), o panorama estálonge de ser tão simples quanto o ima-ginado por Watson, em especial quan-do se trata de aplicar a massa de infor-mações obtida com o genoma paramelhorar a saúde humana no curtoprazo. “Havia muitos cientistas, talvezpor inocência, talvez por miopia, queacreditavam que o PGH resolveriaquestões como ‘saber o que significaser humano’”, pondera Sérgio DaniloPena, geneticista da Universidade Fe-deral de Minas Gerais (UFMG).

“São hawks (falcões, em inglês), osDonald Rumsfelds da ciência”, diz Pe-na, comparando esse tipo de pesquisa-dor ao secretário da Defesa linha-durado governo George W. Bush. “Houvecumplicidade da imprensa e do própriopúblico nesse exagero. Mas o erro foiapenas de ordem temporal: no médio eno longo prazo, os frutos do PGH se-rão indubitavelmente extraordinários.”

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Depois do seqüenciamento,será a vez de se criar a patologiae a farmacologia genômicas

REINALDO JOSÉ LOPES

CMesmo assim, até o presente e o futu-ro próximo estão fervilhando de pos-sibilidades, sugerem cientistas. Se ascuras genéticas mirabolantes devemser descartadas como um sonho dis-tante ou até irreal, é na compreensão ena prevenção de inúmeras doençasque os dados genômicos podem fazera diferença, denunciando de formamuito mais evidente o que há de erra-do no organismo e sugerindo formasde contornar o problema.

Salto brasileiro - Atualmente, é até di-fícil imaginar o Brasil fora da potenci-al revolução científica que os estudosgenômicos prometem proporcionar.Contudo, era exatamente essa a situa-ção do país até 1997. Na época, os in-dicadores da produção brasileira depesquisa deixavam claro que algumacoisa precisava ser corrigida na áreagenômica. Basta dizer que, embora oaumento dessa produção, que se refle-te no número de artigos publicados emperiódicos científicos indexados pelabase de dados do Instituto para a In-formação Científica (ISI), tenha prati-camente dobrado entre 1981 e 1995, ocrescimento na área de biologia mole-cular se multiplicou por um fator de1,69 – menos que a média mundial nomesmo período, que foi de 1,89. Erapreciso agir para tirar o atraso.

Foi com essa visão estratégica quesurgiu o projeto Genoma-FAPES. Masnão dava para imaginar no seu lança-mento que o sucesso viria tão rapida-mente. Vontade não faltava. Prova dis-so foi o valor inicial destinado aoseqüenciamento do genoma da bacté-ria Xylella fastidiosa, causadora do te-mido amarelinho nos laranjais paulis-tas: US$ 12 milhões, nada menos queo maior valor concedido até então aum projeto científico no Brasil.

A intenção desse projeto pioneiro,anunciado oficialmente em outubrode 1997, ia além de seqüenciar pelaprimeira vez um microrganismo cau-sador de doenças em plantas (fitopa-tógeno), uma bactéria importantepara a agricultura brasileira. A idéiaera qualificar pessoas e instituições depesquisa para lidar com a novidade, aomenos para os brasileiros, do trabalhogenômico em larga escala. Isso só foipossível com a integração de quase200 pesquisadores de 30 instituiçõesna rede Onsa (sigla em inglês de Orga-nização para Seqüenciamento e Análi-se de Nucleotídeos) – uma espécie deinstituto virtual, cuja organização eraalgo tão inédito no país quanto seusobjetivos.

Outros projetos, como o Genomada Cana e o Genoma Humano doCâncer, logo se juntaram ao da Xylellae progrediram num ritmo bem maisrápido que o esperado. Iniciado em1999, com uma parceria entre a FA-PESP e o Instituto Ludwig de Pesquisado Câncer, o Genoma Humano doCâncer se destacou por usar uma me-todologia inovadora para identificaros genes. O bioquímico Andrew Simp-son e biólogo Emmanuel Dias Neto,ambos pesquisadores do Ludwig naépoca, desenvolveram um novo siste-ma de seqüenciamento que, em vez deanalisar o gene inteiro, centrava esfor-ços na decodificação da parte do generealmente ativa, sua porção central,responsável pela produção de proteí-nas – trata-se do Orestes, abreviaçãoem inglês para Open Reading FrameExpressed Sequence Tags.

O retorno da técnica em termos deconhecimento sobre as formas de cân-cer mais comuns no Brasil – como osde mama e os de cabeça e pescoço –ainda deve demorar muito para ser to-

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como se eu chegasse a um bairro sobreo qual eu não tinha nenhuma infor-mação e tentasse achar uma casa espe-cífica”, compara Mayana Zatz, do Cen-tro de Estudos do Genoma Humanoda Universidade de São Paulo (USP).“Com a seqüência, posso investigar aregião que me interessa e encontrar oscandidatos mais prováveis – e não sóachar a casa, mas o tijolo que faltanela”, explica Mayana, que estuda do-enças neuromusculares de origem ge-nética. “A identificação de genes liga-dos a várias doenças genéticas seráabreviada, pois os genes já estão fisica-mente mapeados”, diz Fabrício Santos,da UFMG.“Só falta descobrirmos suasfunções.”

“Já se comparou aanálise genômica com atentativa de abrir umaporta testando milharesde chaves, uma poruma”, diz Sérgio Ver-jovski-Almeida, do Ins-tituto de Química daUSP. “Antes do seqüen-ciamento do genomahumano, nem tínhamosidéia de onde estava afechadura.”

Por outro lado, o es-tudo do genoma está revelando com-plexidades insuspeitas no funciona-mento do material genético, algumasdelas com impacto direto sobre a saú-de humana. “Estamos elucidando me-canismos misteriosos”, diz Mayana.Um desses processos é observado comos chamados genes dinâmicos, queaumentam de tamanho de uma gera-ção para outra. Esse mecanismo estáassociado a mais de 12 doenças, comoa distrofia miotônica – uma moléstianeuromuscular que, em geral, leva àperda de força nas mãos.

“Essa doença parecia piorar a cadageração dentro da mesma família,com formas que iam do aparecimentoprecoce de catarata e calvície a umafraqueza muscular generalizada, quechega a ser incapacitante”, explicaMayana. “O que se descobriu é queo aumento do número de uma trincade nucleotídeos (as unidades for-madoras do DNA) estava envolvido”,diz a geneticista. Enquanto as pessoassaudáveis têm de 5 a 37 dessas trincasno gene, as portadoras da enfermi-dade apresentam de 50 a milhares de

PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 25

tado: para a revista, o Brasil agora erafamoso por três motivos: samba, fute-bol... e genômica.

Não era para menos: com essesprogramas, agora engrossados por ini-ciativas como o Projeto GenomaBrasileiro, financiado pelo ConselhoNacional de Desenvolvimento Cientí-fico e Tecnológico (CNPq), o país setornou o segundo maior depositadorde seqüências de DNA no GeneBank,o banco de dados público usado porpesquisadores de projetos de seqüen-ciamento do mundo todo. Mesmosem ser convidado, como costumavabrincar Andrew Simpson, o Brasil ha-via entrado para a festa do genomahumano. Começava o desafio de des-cobrir como aplicar esses dados.

Potencial - Uma das vantagens ime-diatas de se ter um mapa completo domaterial genético humano é multipli-car as chances de encontrar um geneenvolvido em uma moléstia. “Diga-mos que eu esteja tentando identificarum gene numa determinada região deum cromossomo. Sem a seqüência, era

É comoabrir umaporta commilharesde chaves

talmente avaliado: foram gerados maisde um 1 milhão de seqüências de ge-nes ativos em tumores humanos, al-guns dos quais já estão sendo identifi-cados como importantes indicadoresda gravidade ou do aparecimento pre-coce do câncer.

consagração desses esforçosocorreu com a conclusãodo seqüenciamento dogenoma da Xylella qua-tro meses antes do pre-

visto, em janeiro de 2000. Homena-gens do governo do Estado de SãoPaulo e do então presidente FernandoHenrique Cardoso marcaram a con-clusão do projeto. Mas o maior reco-nhecimento veio da própria comuni-dade científica internacional. Pelaprimeira vez em 131 anos, uma pes-quisa brasileira foi capa da prestigiosarevista científica britânica Nature, quepublicou o artigo sobre o genoma dabactéria na edição de 13 de julho de2000. Outro semanário britânico, arevista The Economist, não teve dúvi-das quanto ao significado desse resul-

A

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repetições dessa pequena seqüência. Oproblema é que, quando há mais de 50trincas, o gene se torna instável e a re-petição tende a aumentar, de geraçãopara geração, agravando a doença.

Por outro lado, alterações em ge-nes diferentes podem causar um mes-mo problema clínico. “Isso acontece,por exemplo, na distrofia musculardas cinturas, à qual já foram associa-dos 15 genes que codificam proteínasdiferentes”, conta Mayana. “Algumasdessas proteínas atuam juntas, for-mando um complexo. Se houver um

defeito em uma delas, ofuncionamento do com-plexo todo fica preju-dicado”, explica a pes-quisadora.

Apesar de o fun-cionamento dos genesapresentar complexida-de cada vez mais evi-dente, a abundância dedados sobre o genomapode denunciar de ma-neira precoce e precisaas doenças mais com-

plicadas do ponto de vista genético,provocadas por diversos fatores, comoas inúmeras formas de câncer. “Comessas informações, é possível estudarmilhares de genes que atuam simul-taneamente”, diz Verjovski-Almeida,que investiga os fatores que deter-minam a gravidade do câncer depróstata. “Hoje conhecemos 170 ge-nes relacionados à malignidade docâncer de próstata”, afirma o pesqui-sador da USP. “Sessenta por cento de-les são genes novos, identificados peloseqüenciamento em larga escala dematerial genético extraído de tecidoafetado pelo câncer.”

A análise simultânea de centenasdessas seqüências, feita por meio demicrochips de DNA (pequenas lâmi-nas de vidro que mostram a atividadedos genes), já permite criar um perfilmolecular de um indivíduo e indicar aprobabilidade de ele apresentar for-mas mais severas ou brandas da doen-ça. “Um microchip para o câncer demama, criado por Laura van’t Veer, doInstituto do Câncer da Holanda, já foitransformado pela empresa RosettaInpharmatics em um método de diag-nóstico nos Estados Unidos”, conta opesquisador. O próprio padrão genéti-co de um tumor pemite antever sua

gravidade e a chance de que se espalhepara outros órgãos.

O diagnóstico molecular de doen-ças genéticas mais simples, causadaspor um só gene, tem vantagens óbvias.“Em termos práticos”, diz MayanaZatz, “a identificação dessas enfermi-dades por meio de um teste de DNAevita procedimentos dolorosos e com-plicados, como uma biópsia ou umaeletromiografia.”

Apesar de haver um emaranhadode relações por trás das moléstias mul-tifatoriais, conhecer a propensão gené-tica a desenvolver uma doença tam-bém pode ser útil. “Eu não gostaria desaber se tenho risco aumentado de de-senvolver o mal de Alzheimer, para oqual não há tratamento eficaz atual-mente”, exemplifica Mayana.“Mas cer-tamente gostaria de saber que tenhotendência ao diabetes (uma enfermi-dade multifatorial), porque eu poderiame cuidar e reduzir a influência dosfatores ambientais”, diz a geneticista.“Com um diagnóstico mais confiável epreciso, aumentam as chances desucesso no tratamento”, resume Fabrí-cio Santos.

Outro ponto importante, de acor-do com os pesquisadores, é que o di-agnóstico molecular pode libertar osmédicos de métodos relativamentegrosseiros de detecção de doenças.“No caso do câncer de próstata, aindahoje você depende da alteração damorfologia do tecido. Não há nenhummarcador molecular realmente espe-cífico para ele”, diz Verjovski-Almei-da. “Falamos do câncer de mamacomo uma única enfermidade. Entre-tanto, mais recentemente, aprende-mos em decorrência do conhecimen-to genômico que o câncer de mamanão é uma, mas várias doenças”, afir-ma Sérgio Pena.

Remédios sob medida - Sempre pro-vocador, o cientista-empresário CraigVenter, responsável pelo seqüencia-mento paralelo do genoma humanofeito pela empresa Celera Genomics,diz que no futuro uma pessoa pode-rá obter o seqüenciamento de seu pró-prio genoma por US$ 2.000. Assim,poderia conhecer de antemão os pro-blemas que poderiam acometê-la du-rante a vida e traçar estratégias paracombatê-los. “Talvez essa meta sejainatingível, mas seria interessante en-

O Genoma Humano50 anos após a descoberta da dupla hélice do DNA

MAYANA ZATZ*

pesar de a estrutura da duplahélice ter sido descoberta há50 anos, foi somente na dé-

cada de 80 que a tecnologia quepermite analisar o DNA começou atornar-se acessível. Em 1990 ini-ciou-se o Projeto Genoma Huma-no com o objetivo de seqüenciar,até 2005, os 50 a 100 mil genes es-timados como responsáveis pelascaracterísticas humanas. Em 2001anunciou-se que o seqüenciamen-to do nosso genoma estava quasecompleto. A mídia não se cansoude repetir que os conhecimentosgerados irão revolucionar a medi-cina. Será que iríamos finalmenteentender: por que ficamos doen-tes? Por que envelhecemos? Porque morremos? Por que reagimosdiferentemente à mesma medica-ção? Quanto da nossa personalida-de e de nosso comportamento écondicionado por nossos genes?Entretanto, enquanto especula-sesobre o futuro, fala-se muito pou-co a respeito das aplicações ime-diatas desse grande feito científico.Como o Projeto Genoma Huma-no pode influenciar nossas vidas?Como a medicina tem se benefi-ciado do estudo dos genes? O quejá existe de prático? Quais são asimplicações éticas?

O objetivo principal do ProjetoGenoma Humano é o de entendercomo nossos genes funcionamquando normais e por que cau-sam doenças quando alterados.Uma maneira de abordar essaquestão é a partir do estudo de do-enças genéticas, que é o foco depesquisas do Centro de Estudos do

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Há 170genes que

se ligam aocâncer depróstata

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PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 27

Genoma Humano. Compreender ofuncionamento gênico é o primeiropasso para futuros tratamentos.Além disso, a identificação de mu-tações patogênicas tem uma apli-cação imediata na prevenção denovos casos a partir do aconselha-mento genético, que inclui: diag-nóstico de afetados, determinaçãode riscos genéticos, identificação decasais “em risco” de virem a ter pro-le afetada e diagnóstico pré-natal.

O estudo molecular das doençasneuromusculares (cuja incidência éde um em cada mil indivíduos),que tem sido o nosso objeto de pes-quisas, tem contribuído muito paraa compreensão do comportamentode nossos genes. Isto é, como doen-ças diferentes podem ser causadaspor mutações em um mesmo geneou, ao contrário, como mutaçõesem genes distintos podem causar amesma patologia. Descobriram-seos genes dinâmicos, isto é, genesque causam doenças porque exis-tem seqüências de DNA neles quepodem se expandir (“crescer”) eque, quanto maior a expansão, maisgrave é o quadro clínico. Entenderque algumas doenças são causadaspelo excesso de um produto e ou-tras pela falta de um produto seráfundamental para futuros trata-mentos. Mas o mais interessante foidescobrir que, para algumas doen-ças, pessoas portadoras da mesmamutação podem ter um quadro clí-nico discordante, variando desdeuma forma grave até ausência desintomas. Isso demonstra que mui-tas mutações ditas “patogênicas”podem não ser “determinantes” porsi só de uma patologia e que outrosfatores (genes modificadores, RNAde interferência, etc.) modulam aexpressão dos genes. A identificaçãodesses fatores que “protegem” algu-mas pessoas dos efeitos deletériosde um gene abre um leque enormepara futuros tratamentos.

Além do diagnóstico em pacien-tes afetados, a identificação de mu-tações patogênicas em indivíduosassintomáticos contribui para pre-venir o nascimento de novos casos,o que é fundamental para doençasgraves ainda incuráveis. Mas en-quanto atuamos na prevenção ebuscamos a cura, temos também umcompromisso ético muito impor-tante em relação ao uso de testes ge-néticos, principalmente em pessoasclinicamente normais.

Questões éticas, que surgem emsituações reais, são: quando ofere-cer testes? Até onde vai nosso direi-to de interferir? Como agir se aanálise de DNA revelar dados ines-perados, como, por exemplo, umafalsa paternidade? O princípio daconfidencialidade, que é uma dasregras do aconselhamento genéti-co, protege quem?

Devemos sempre lembrar queos resultados de um teste genéticonão mudam com o tempo, e seuimpacto pode influenciar o futurode uma pessoa ou de toda uma fa-mília. Antes de um exame, a pessoadeve ser informada: para o que estásendo testada? O que significa umresultado positivo? O que significaum resultado negativo? Qual é avantagem em ser testada? O que po-de ser feito a respeito?

Por outro lado, a possibilidadede analisar o DNA em uma ponta decigarro descartada demonstrou queas informações contidas no nossoDNA são muito mais acessíveis doque julgávamos, o que levanta ou-tras questões: é ético fazer um testegenético em tal material sigilosa-mente ou contra a vontade de umadeterminada pessoa? E o direito de“não saber”? E a nossa privacidade?Empregadores e companhias de se-guro-saúde teriam acesso a essas in-formações? São assuntos que dizemrespeito a todos nós e que devem serdiscutidos com toda a sociedade.

contrar um caminho intermediário”,avalia Verjovski-Almeida.

É que a variação genética entre aspessoas pode ser a chave para medica-mentos mais eficazes. “Se o seqüencia-mento do genoma ajudou a mostrarque somos todos iguais, ou todosigualmente diferentes, ele também re-velou diferenças que podem ser im-portantes para tratar doenças”, dizMayana Zatz. Por descenderem todosde uma pequena população africanaque viveu há cerca de 100 mil anos(um mero piscar de olhos evolutivo),os seres humanos de qualquer regiãodo planeta são muito parecidos. Mas aadaptação de curto prazo aos mais di-versos ambientes criou perfis variadosde resistência ou suscetibilidade a do-enças. É essa variação que a farmaco-genômica, a ciência que relaciona operfil genético com a resposta a remé-dios, promete explorar em favor dasaúde humana. “Sabemos que as dosesde medicamentos recomendadas nasbulas são apenas sugestões grosseiras,feitas com base em médias populacio-nais”, diz Sérgio Pena.

Filosofia genômica - “Diferenças étni-cas podem influenciar a maneiracomo as pessoas respondem a um me-dicamento”, afirma Mayana. A pesqui-sadora conta que, num estudo feitopor ela e seus colegas da USP, verifi-cou-se que um gene ligado ao trans-porte de um neurotransmissor, a sero-tonina, tem duas formas distintas napopulação brasileira. Um deles, o cha-mado alelo longo, que quebra rapida-mente a serotonina, aparece em 80%das pessoas, enquanto o outro, o alelocurto, só aparece em 20% delas. “Masnas pessoas de origem japonesa, a pro-porção se inverte”, diz Mayana. Issopoderia ser extremamente importantepara projetar um medicamento capazde interferir nesse processo. Existemalguns genes em que variantes dessetipo já são conhecidas e poderiam sertestadas para evitar reações adversas.

Ao mesmo tempo, o mapa quemostra as predisposições genéticas deuma pessoa adquirir doenças nãopode se tornar de domínio público,alerta a pesquisadora. “Companhiasde seguro, empregadores, todo mundovai querer saber minha chance de teralguma doença”, diz ela. Mecanismosde privacidade genética terão de ser

MAYANA ZATZ é professora titular de Genética Humana e Médica Coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Departamento de Biologia – Instituto de Biociências/USP. Este artigo é um resumo da palestra da autora sobre a mesa-redonda “50 Anos da Dupla Hélice do DNA”,na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, no dia 10 de abril.

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criados para evitar que a discrimina-ção feita com base no genoma chegueao mercado de trabalho.

O otimismo dos pesquisadores es-barra num muro quando se trata deusar os dados do seqüenciamento doDNA para terapias que tenham comoalvo o próprio genoma. “Sou céticoquanto à viabilidade da geneterapia”,reconhece Verjovski-Almeida. CarlosMenck, do Instituto de Ciências Bio-médicas da USP, conhece de perto adificuldade de aplicar a técnica, mes-mo nos testes mais preliminares.“Conseguimos tratar a Xeroderma pig-mentosum, uma doença de pele quecausa lesões terríveis e até câncer por-que o paciente não consegue repararseu DNA”, conta Menck. “Mas acaba-mos enfrentando limitações do pró-prio adenovírus que serve como vetorpara o gene corrigido. Depois de umtempo, o sistema imune do pacientecria resistência e o tratamento nãofunciona mais.” Pode ser que issomude e seja possível atuar na preven-ção, criando alguma forma de paliati-vo para o paciente. “Mas não é nenhu-ma panacéia”, ressalta Menck.

esmo quando a coi-sa parece funcionarbem, como no casodos meninos da bo-lha nos Estados Uni-

dos e na França, que sofriam de umaforma severa de deficiência imunológi-ca, o genoma é um sistema tão com-plexo que até alterações supostamentebenéficas têm um efeito imprevisível:alguns desses garotos, curados da do-ença, contraíram leucemia em razãoda geneterapia. “Nosso conhecimentoa respeito da regulação celular e suainteração com o genoma ainda é míni-mo”, afirma Fabrício Santos. “Qual-quer terapia gênica, como a dos meni-nos da bolha, será por tentativa e erro,pois não temos controle suficiente dasvariáveis com que estamos lidando.”

Sérgio Pena também reconheceque ainda há grande imprevisibilidadena manipulação genômica e reforça aidéia de que devemos, “talvez parasempre, nos abster de tentar fazer mo-dificações na linhagem germinativa hu-mana”. Modificações na linhagem ger-minativa, ou seja, nos óvulos eespermatozóides, que transmitem o

material genético à geração seguinte,tornariam a alteração genética trans-missível, com efeitos potencialmenteainda mais perigosos.

Por enquanto, a genômica deve serestringir a fornecer subsídios para acriação de drogas mais específicas, queatuem diretamente sobre a proteínacodificada por um gene envolvidonuma doença. Outra esperança, a sercorroborada, é a técnica conhecidacomo RNAi, interferência de RNA,outro tipo de material genético. Po-tente e específica, ela atua sobre umtipo de RNA, chamado mensageiro,que conduz as informações contidasno DNA e inicia a produção de proteí-nas. Testes em plantas, no verme C.elegans e em linhagens de células suge-rem que a RNAi seria capaz de desati-var quase totalmente o gene desejado,sem afetá-lo diretamente e sem influ-enciar outros genes. “É talvez uma dasmais importantes descobertas da bio-logia moderna”, diz Pena.

Uma coisa parece certa: mesmosem novos seqüenciamentos, os dadosjá obtidos com o genoma humano e ode outros organismos importantesmal começaram a ser interpretados deforma adequada. “Os grandes seqüen-ciamentos devem continuar por algumtempo, mas teremos de usar hipótesesmais refinadas para justificá-los”, ava-lia Menck. “Particularmente, sou fã dagenômica comparativa, que colocalado a lado organismos diferentes pa-ra ver quais regiões do genoma estãoconservadas e, portanto, são impor-tantes para eles”, afirma. Dessa forma,deve se tornar mais fácil vencer o desa-fio de identificar todos os genes hu-manos, cujo número permanece in-certo. Para Menck, é preciso tambémum esforço para fortalecer e diversi-ficar os estudos de bioinformáticano Brasil, para que essas análises com-putacionais do genoma acelerem atarefa de identificar e entender os di-ferentes genes.

“Vejo o esforço genômico comoum interlúdio na história da biologiamolecular”, filosofa Pena. “A parte deseqüenciamento do PGH está prati-camente terminada e nos deu a ana-tomia do genoma humano. Agora,vamos passar o próximo século desen-volvendo a fisiologia genômica, a pa-tologia genômica e a farmacologiagenômica.”

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de um fármaco não é ga-sta de uma só vez, mas,sim, ao longo de dez ou15 anos.” Pelos seus cál-culos, seriam necessáriosao menos US$ 5 milhõespor ano para se tocarum projeto que buscas-se uma droga contra ocâncer.

Mas de onde viria odinheiro para financiaresse tipo de iniciativa? Simpson achaque todas as fontes de recursos pode-riam contribuir numa empreitadadesse porte, desde as agências públicasde financiamento de C&T, em nível fe-deral ou no âmbito estadual, até a ini-ciativa privada. “As universidades têmde estabelecer parcerias com os labo-ratórios nacionais já existentes ou comnovas empresas de biotecnologia’, dizo bioquímico. Na área agrícola, isso jáacontece. Simpson cita o exemplo daAllelyx, empresa de biotecnologia doGrupo Votorantim, que abriga pesqui-sadores oriundos de projetos genômi-cos que seqüenciaram patógenos degrande impacto econômico para omeio rural, como a Xylella fastidiosa,agente causador do amarelinho, gravedoença que afeta os laranjais paulistas.

Para o bioquímico, o país deve tam-bém buscar fontes de financiamentono exterior na pesquisa contra o cân-cer. Mais uma vez, cita um exemplo daárea agrícola para embasar sua tese:“Se os norte-americanos pediram paraos brasileiros seqüenciarem a cepa daXylella fastidiosa que causa a doença dePierce na videira, por que o InstitutoNacional do Câncer (dos Estados Uni-dos), que tem um orçamento anualsuperior a US$ 3,5 bilhões, não pode-ria financiar também aqui a pesquisade drogas contra tumores?”.

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Aposta contra o câncer

eis meses atrás, o bioquími-co Andrew Simpson – uminglês que há mais de 12anos fixara residência noBrasil e, nos últimos tem-

pos, esteve à frente de projetos de pesoda ciência nacional, como o seqüencia-mento do genoma da bactéria Xylellafastidiosa e o Genoma Humano doCâncer – mudou de emprego. Trocoua filial paulista pela de Nova York doInstituto Ludwig de Pesquisa sobre oCâncer. Apesar do breve período noexterior, Simpson formulou uma re-flexão interessante a partir do contatomais estreito com as grandes compa-nhias farmacêuticas, donas de gordosorçamentos para o desenvolvimentode fármacos, e do convívio diário comcientistas norte-americanos que se de-dicam à tarefa de pesquisar drogascontra os tumores.

Na visão de Simpson, desde a des-coberta da estrutura molecular doDNA, nos anos 50, o tratamento con-tra o câncer não mudou radicalmente,sobretudo no que diz respeito à des-coberta de remédios contra a doença.Nem mesmo os estudos genéticos dosúltimos anos conseguiram impulsio-nar a pesquisa de medicamentos con-tra esse mal. “Houve avanços, é claro,principalmente na questão do diag-nóstico precoce dos tumores, mas, emtermos de terapias, continuamos re-correndo às cirurgias, quimioterapia eradioterapia”, afirma Simpson. Segun-do o pesquisador, ao contrário do quemuita gente pensa, a busca por novosremédios contra o câncer não figuraentre as maiores prioridades dos labo-ratórios. “Não podemos esperar que asgrandes empresas resolvam esse pro-blema para nós”, afirma. No ano pas-sado, houve 340 mil novos casos decâncer no país e 120 mil mortes.

Andrew Simpson diz que o Brasildeveria investir no desenvolvimentode fármacos contra tumores

S A doença não é prioridade para as empresas

O bioquímico acredita que, doponto de vista das multinacionais far-macêuticas, o mercado potencial paranovas drogas contra o câncer é fracio-nado, dividido em vários nichos. Des-sa particularidade decorreria a supos-ta falta de vontade das empresasprivadas em investir pesado na pes-quisa de drogas contra a doença. Poresse raciocínio, cada tipo de câncer – dopulmão, do fígado, de mama, de pele,etc. – seria visto pelos laboratórios co-mo se fosse uma outra doença, comparticularidades que a diferenciam dasdemais formas de tumores. “Cada tipode câncer representa um mercado pe-queno para os laboratórios, que prefe-rem investir em doenças com maiorchance de gerar blockbusters (remédiosreceitados para uma grande parcela dapopulação)”, diz Simpson.

Pesquisa cara - E isso não é tudo. Com-parados com os portadores de doençascrônicas, como os hipertensos, que,por décadas a fio, tornam-se usuáriosquase perenes de remédios, os doentesde câncer não representam, potencial-mente, o consumidor dos sonhos doslaboratórios. Isso porque os portado-res de tumores fazem uso de medica-mentos por um período relativamentecurto. Segundo Simpson, a doença étão grave que, uma vez tratado, o pa-ciente com câncer rapidamente deixade usar seus remédios. “Ou ele se curaou morre”, comenta o bioquímico.

Simpson acha que o Brasil tem deir à luta e montar projetos para desen-volver fármacos contra o câncer, aindaque os valores necessários para essaempreitada pareçam elevadíssimos.“O país pode ter essa ambição”, afirmaSimpson, que está se naturalizandobrasileiro. “E não se pode esquecer quea verba investida no desenvolvimento

DUPLA HÉLICE 50 ANOS

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Colaboração do Brasil ao mundo

dia 1º de maio de 1997inaugurou a pesquisaem genômica no Brasil.Em uma reunião numsítio em Piracaia, interior

de São Paulo, o bioquímico FernandoReinach, hoje diretor-executivo da Alel-lyx, empresa brasileira de biotecnolo-gia criada há um ano, e o diretor cien-tífico da FAPESP, José Fernando Perez,concordaram que era o momento deseqüenciar, no Brasil, o genoma de umabactéria. A proposta, lançada por Rei-nach, que também é do Instituto deQuímica da Universidade de São Paulo(USP), iria apenas começar a florescer.

Em outra reunião na sede da FA-PESP, algum tempo depois, o pesquisa-dor da USP refinou a idéia: achava in-teressante estudar o genoma de algumabactéria envolvida com o setor agríco-la. “O pessoal do Fundecitrus (Fundode Defesa da Citricultura) estava naépoca reclamando da CVC (Clorose Va-riegada do Citros). Olhei para o tama-nho do genoma e achei que dava (paraseqüenciar)”, relembra Reinach. O fatode a escolha ter recaído sobre uma bac-téria não teve nenhum motivo especial.“Uma bactéria é suficientemente gran-de para envolver muita gente e sufi-cientemente pequena para dar parafazer”, diz.“Na época, o genoma da bac-téria era o maior que já havia sidoseqüenciado.” Hoje, depois de seqüen-ciado o genoma humano, não seriamais um trabalho atraente.

O seqüenciamento do genoma daXylella fastidiosa, bactéria que causa oCVC ou amarelinho, uma das piorespragas dos laranjais no Brasil, tornou-se o maior projeto científico já reali-zado no país. A FAPESP investiu US$ 12milhões e conseguiu mobilizar 30 la-boratórios do Estado de São Paulo, co-ordenados por dois laboratórios cen-

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Ação integrada do setorpúblico e empresas impulsionapesquisa em biotecnologia

EDUARDO GERAQUE

O trais. O interesse em participar desseprojeto surpreendeu: havia 30 vagas,apareceram 70 laboratórios.

Não apenas a abordagem científicaera considerada uma novidade paraépoca. O surgimento da rede virtual delaboratórios também abriu um novocapítulo na colaboração científica noEstado de São Paulo. Sem um esforçosimultâneo de um conjunto de gruposde pesquisa, não teria sido possível an-tecipar o final do projeto Xylella, comoacabou ocorrendo. Em 6 de janeiro de2000, todo o genoma estava completo.Antes disso, às 17h46 do dia 9 de no-vembro de 1999, os pesquisadores játinham certeza que as partes mais com-plexas do genoma da bactéria já esta-vam seqüenciadas. A Xylella foi a déci-ma quarta bactéria a ser decifrada nomundo. Mas o Brasil entrou para ahistória como o país que seqüenciou oprimeiro fitopatógico – uma bactériacausadora de uma praga em umaplanta de importância econômica.

Na esteira da Xylella, surgiram no-vos projetos. O segundo, iniciado noano seguinte, 1998, foi o seqüencia-mento do genoma da cana-de-açúcar,outra cultura de relevância no Estado.Desta vez, o objetivo não era identi-ficar todos os genes, como foi feito coma Xylella, mas apenas 50 mil deles. Ameta dos pesquisadores era descobriros genes envolvidos especialmentecom o crescimento, desenvolvimento,produção e teor de açúcar da planta.No final de 1999, as pesquisas sobre acana haviam atraído cerca de US$ 30milhões, contando com a participação,novamente, da Fundecitrus, com US$ 1milhão, e um parceiro novo, a Coper-sucar, com mais US$ 500 mil.

Para mostrar que o foco inicial dagenômica em São Paulo era mesmo ocampo, surgiu, em 2000, um terceiro

projeto: o seqüenciamento de outrabactéria, a Xanthomonas citri, causa-dora do cancro cítrico, viabilizado pormeio de um investimento de cerca deUS$ 5 milhões. A ciência brasileira in-tegrava-se definitivamente em umaárea de ponta do conhecimento cientí-fico mundial.

Rápida expansão - Restritas no pri-meiro momento a instituições de pes-quisa do Estado de São Paulo, os pro-jetos de seqüenciamento de genomasrapidamente se espalharam pelo Brasil.Atualmente, existem grupos de pesqui-sas em todas as regiões (Norte, Nor-deste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste) ap-tos a montar as bibliotecas de DNA eDNA complementar (ou cDNA), naetapa preliminar do seqüenciamento,e a analisar as seqüências dos organis-mos que resolveram estudar. É o casoda Embrapa Recursos Genéticos e Bio-tecnológicos, localizada em Brasília, noDistrito Federal. A despeito da polê-mica envolvendo os animais transgê-nicos em todo o mundo, no ano passa-do a Embrapa conseguiu literalmenteuma vitória: o nascimento da bezerraVitória, o primeiro clone brasileiro portransferência nuclear.

Vitória é um dos marcos mais re-centes das pesquisas em biotecnologiada reprodução animal brasileira. “A be-zerra está saudável, sem nenhum pro-blema de saúde”, explica Luiz AntônioBarreto de Castro, chefe da EmbrapaRecursos Genéticos e Biotecnologia. Adiferença essencial entre o animal bra-sileiro e a famosa ovelha Dolly, o pri-meiro mamífero a ser clonado, em 1996,é que o clone europeu nasceu das célu-las adultas, ao passo que os pesquisa-dores brasileiros valeram-se de célulasembrionárias introduzidas em célulasanucleadas.

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rito que a biotecnologia tem para a ins-tituição. “Estamos estudando algumasplantas e os vermes que as atacam osvegetais”, comenta Castro. O objetivodesse projeto que ainda não analisauma planta de importância econômi-ca é identificar, também do ponto devista gênico, como funcionam os me-canismos de defesa dos vegetais quandoeles são atacados por determinadospatógenos. À medida que colherem osresultados, os pesquisadores da Em-brapa imaginam que serápossível transferir essesmecanismos de defesaencontrado em umaplanta para outra espécieque já tenha uma impor-tância econômica. Porcausa de ações científicascomo essa é que a Em-brapa, nos últimos anos,obteve uma conquistaapreciável para a agri-cultura brasileira. “Pelomenos metade das técni-cas genéticas usadas atualmente com asoja saiu de nossos laboratórios”, in-forma Castro.

Nova fase - Anunciado em novembrode 2001 e iniciado efetivamente em2000, o projeto de seqüenciamento dogenoma do eucalipto, chamado ofi-cialmente de FORESTS, sigla de Euca-lyptus Genome Sequence Projects Con-sortium, marcou uma nova fase napesquisa em genômica no Brasil. Comele, depois da iniciativa de um peque-no grupo de pesquisadores no finaldos anos 90, da intenção clara de for-mar pessoas capacitadas para traba-lhar com genomas e da perspectivade que esses dados pudessem ser usa-dos na prática, por meio da biotecno-logia, uma nova forma de pesquisarestá se concretizando.

A FAPESP entrou com um investi-mento inicial de US$ 500 mil no pro-jeto genoma do eucalipto, mas nãoestá sozinha. O consórcio formadopela Votoratim Celulose e Papel, Ripa-sa Celulose e Papel, Suzano de Papele Celulose e pela Duratex vai inves-tir outros R$ 500 mil nesse trabalho.Como as empresas são muito interes-sadas no genoma do eucalipto, maté-ria-prima fundamental para a produ-ção de papel, elas próprias, em umasegunda etapa dessa empreitada, de-

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no ano passado o estudo do genomade outra planta economicamenteimportante para o Brasil, o café, anal-isado por um consórcio formado pelaFAPESP e pela Embrapa. A expectati-va é que, a um custo de R$ 1,92 mi-lhão, sejam geradas 200 seqüências degenes, com as quais seja possível criarlinhagens de plantas mais produtivasou resistentes a pragas.

anto a Embrapa, que ace-lerou nos últimos anossuas pesquisas genômicas,como o Grupo Votoran-tim, que no ano passado

investiu US$ 300 milhões na criação daempresa Alellyx, estão de olho em ummercado que movimenta milhões dedólares todos os anos. A importânciaeconômica das pesquisas nessa área,que podem levar a plantas ou animaismais produtivos, pode ser medida porum número: US$ 50 bilhões. É quantoo mercado de biotecnologia, fortaleci-do pelas inovações da genômica, devemovimentar em todo o mundo. Ape-nas para o mercado do setor agrícola,a Embrapa Recursos Genéticos e Bio-tecnologia trabalha com a estimativade US$ 30 bilhões.

Os pesquisadores da Embrapa sevalem da genômica para identificar,isolar e caracterizar genes que estãoenvolvidos em processos biológicosque controlam a produtividade de ca-racterísticas de importância econômi-ca, em plantas, animais e microrga-nismos. Além das bibliotecas de DNAe DNA, os esforços dos grupos que tra-balham em Brasília estão direciona-dos para a obtenção de fragmentos degenes, as chamadas etiquetas de se-qüências expressas ou ESTs. “É impor-tante que todo esse esforço em genô-mica tenha um foco”, ressalta Castro.

Para ele, depois do respeitáveltrabalho de seqüenciamento realizadonos últimos anos, “é fundamental queos grupos de pesquisa do Brasil tam-bém tenham capacidade para digeriras informações encontradas até ago-ra”. Sem essa interpretação, os dadospodem se perder. “Não seria surpresase os países mais desenvolvidos passa-rem a usar nosso trabalho de genômi-ca”, diz o chefe da Embrapa RecursosGenéticos.

Uma das linhas de pesquisa emandamento da Embrapa retrata o espí-

T Teia de aranhamais forte do que aço

Segundo Castro, não se pretendeclonar animais única e exclusivamentecom um objetivo genético. A intençãodo Brasil, que ainda não detém a téc-nica utilizada na Dolly, é avançar napesquisa das chamadas biofábricas –plantas ou animais capazes de pro-duzir medicamentos de uso humano.“Pretendemos chegara um animal ge-neticamente modificado que tenha aexpressão de genes que nos interes-sem”, diz ele. Após uma história demais de 20 anos em melhoramentogenético de plantas, a Embrapa almejaincorporar os novos métodos tambémno setor pecuário. “O exemplo doscanadense é emblemático”, observaCastro. “Eles criaram uma aranha quetece uma teia com uma fibra mais re-sistente que o aço.”

Historicamente, a genômica come-çou em 2000 a se ramificar por todasas regiões brasileiras, com a criação doProjeto Genoma Brasileiro (BRGene)pelo Ministério da Ciência e Tecnologia(MCT). O primeiro trabalho mobili-zador da rede de cooperação científicaque se formou foi o mapeamento dogenoma da Chromobacterium viola-ceum, uma bactéria encontrada em re-giões tropicais que produz compostoscomo a violaceína e outros que, emprincípio, acreditam os cientistas, po-deriam ser empregados no tratamen-to de algumas doenças. Esse primeiroprojeto nacional absorveu investimen-tos da ordem de R$ 26 milhões, me-tade proveniente do próprio MCT e aoutra metade dividida entre as insti-tuições envolvidas. Participaram desseseqüenciamento 160 pesquisadores e25 laboratórios.

Em janeiro do ano passado, oConselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (CNPq) inves-tiu mais R$ 3 milhões para aperfeiçoar arede criada com o projeto de seqüen-ciamento da Chromobacterium viola-ceum, integrada por 240 pesquisado-res de 480 instituições brasileiras. Comesse reforço, foi possível iniciar, no anopassado, o estudo do vírus Mycoplas-ma synoviae, que ataca bovinos. Avan-çaram também os projetos regionais, aexemplo do genoma do guaraná (Pau-llinia cupana), com equipes da RegiãoNorte, entre elas a Embrapa e o Insti-tuto Nacional de Pesquisas Amazô-nicas (INPA), que deve estar concluídoaté o final de 2004. Começou também

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vem investir mais R$ 1,2 milhão. É umexemplo claro do que deve começar aocorrer em um futuro próximo comas pesquisas na área genômica. As em-presas vão começar a investir juntocom os demais agentes interessados notema, para que resultados científicosde qualidade sejam gerados.

Nenhum desses projetos que estãoem andamento, quer nas instituiçõespúblicas de pesquisa, quer nas indús-trias, poderiam ocorrer se não fossemas ferramentas e os procedimentosinstalados com a revolução genômicaque começou em São Paulo e se rami-ficou pelo país a partir do final da dé-cada passada.

Com base em toda essa platafor-ma existente é que aAlellyx trabalha com apossibilidade de lançar,em breve, um teste deDNA capaz de fazer odiagnóstico precoce damais recente ameaçados laranjais paulistas emineiros, a chamada amorte súbita dos ci-tros. A Alellyx assumiucomo um de seus pri-meiros desafios práti-cos ajudar a combater

essa doença.Como o problema é diagnosticado

tardiamente nos laranjais, o prejuízotem sido enorme. Quando a plantacomeça a dar sinais de que está comessa doença, provavelmente causadapor um vírus, ela pode morrer emquestão de semanas. Com muita sorte,o produtor consegue colher apenasmais uma safra. Se a criação da Alellyxfoi considerada o início do fim doproblema – porque o objetivo do pro-jeto genoma era exatamente criar re-cursos humanos qualificados para ala-vancar a indústria de biotecnologiamolecular no país –, uma vitória emtermos práticos deverá significar maisque dividendos para seus acionistas:poderá servir de exemplo para que no-vos investidores apostem nos resulta-dos futuros da biotecnologia. Alémdisso, deverá mostrar que fazer ciênciana fronteira do conhecimento, com oobjetivo de encaminhar as soluções deproblemas de relevância econômica, éuma meta a ser perseguida por novosprojetos científicos do país. “Sem dú-vida, o investimento na Alellyx teve

como objetivo colher os resultadosfuturos que as pesquisas genômicaspoderão gerar”, diz João Setubal, bi-oinformata do Instituto de Compu-tação da Universidade Estadual deCampinas (Unicamp).

Um dos pioneiros dos estudos debioinformática no país, Setubal estevepresente na fundação da Alellyx, masdepois de nove meses na empresa re-solveu sair e voltar a se dedicar exclusi-vamente ao mundo acadêmico.“Conti-nuo acreditando que a iniciativaprivada é um dos caminhos viáveis paraas pesquisas em biotecnologia. Foiapenas uma decisão pessoal. Decidique não queria me desligar da univer-sidade. A demanda provocada pelaAlellyx impediu que ficasse nos doislugares”, explica o pesquisador da Uni-camp, que ao lado do também bioin-formata João Meidanis teve um papeldeterminante no sucesso obtido peloprojeto da Xylella fastidiosa.

Plantas transgênicas - “O investi-mento maciço em pesquisas na áreade biotecnologia na agropecuária e acriação recente de empresas em fun-ção das perspectivas otimistas dos úl-timos 20 anos mostram o potencialdessa área no Brasil”, comenta Marciode Castro Silva Filho, pesquisador daEscola Superior de Agricultura Luizde Queiroz (Esalq) da USP, que traba-lha com projetos de cana-de-açúcartransgênica. “Esse processo de investi-mento em larga escala é irreversível”,diz Silva Filho, que este ano está emum período sabático em Melbourne,Austrália.

Além dos 50 anos de dupla hélice,o ano de 2003 também tem outra datahistórica para a biotecnologia. Em1983 ocorreu a publicação do primei-ro trabalho científico sobre a produ-ção em laboratório de uma plantatransgênica. A pesquisa, realizada nosEstados Unidos, conseguiu criar umaespécie de tabaco resistente a drogasusadas na época. Era apenas mais umdos capítulos da melhoria vegetal sen-do escrito. Apesar de o debate sobre ostransgênicos ainda ocorrer no século 21,tanto tempo depois de Gregor Mendelter lançado, em 1865, as bases dagenética moderna, o ser humano tentaproduzir espécies melhores do pontode vista econômico. Mais produtivas eresistentes.

“A contribuição da genômica e daera pós-genômica está ainda na faseinicial, de modo que vale a pena usar-mos a imagem de um iceberg”, diz Sil-va Filho. “O que se vê hoje não refleteo que está por baixo.” Na primeira fasedesta era genômica, o seqüenciamen-to de organismos inteiros proporcio-na atualmente uma quantidade ex-cepcional de informações. Todo dia,os pesquisadores do mundo inteiroenviam cerca de 50 milhões de se-üências genéticas ou mesmo genes aosbancos de dados internacionais comoo Genebank, nos quais as descobertasficam depositadas. Por mês, há, por-tanto, 1,5 bilhão de seqüências novasde animais e plantas. Com base nessesnúmeros, pode-se ter uma idéia dequantos genes de interesse econômi-co estão sendo objetos de estudo parauma possível aplicação direta, na for-ma de plantas transgênicas, por meioda incorporação de novas característi-cas, ou mesmo para o projeto denovos medicamentos de uso humano,que começam a ser elaborados emfunção das seqüências de DNA jáidentificadas. Para Silva Filho, o Brasilpode ser considerado um modelonão apenas para os países em de-senvolvimento. “É um exemplo mes-mo para nações do Hemisfério Nor-te”, diz.

o estudo do genoma dacana, ao qual a equipedo laboratório de SilvaFilho se dedica, já po-dem ser percebidas al-

gumas aplicações potenciais. “Já iden-tificamos promotores de genes que sãoativados quando a planta é atacadapor insetos”, diz o pesquisador. “Essespromotores serão utilizados para diri-gir a expressão de genes com proprie-dades inseticidas.”

A utilização de microssatélites nosprogramas de melhoramento genéti-co de plantas é outra aplicação deri-vada dos estudos com a cana-de-açú-car transgênica. Conceitualmente,microssatélites são pequenas seqüên-cias de DNA repetidas ao longo dogenoma de um organismo. São impor-tantes porque, quando corretamenteidentificados, podem auxiliar nos pro-gramas de melhoramento genético. Porestarem localizados geralmente pró-ximos a genes que controlam caracte-

Revoluçãogenômica

foi iniciadaem São

Paulo

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PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 33

rísticas de interesse dos pesquisado-res, os microssatélites ajudam os pes-quisadores a selecionar os materiais deestudo. Nos cruzamentos de plantas,essas seqüências seguem junto com ascaracterísticas de interesse que ospesquisadores estão estudando.

Não se pode negar os avanços eas iminentes aplicações da genômica,embora também sejam claros os obs-táculos à frente da biotecnologia emesmo das pesquisas básicas do se-tor agropecuário. Por causa do deba-te sobre os transgênicos, as pesquisasnesse setor estão com os seus ritmoscomprometidos. Além disso, aindanão está resolvida a polêmica sobreo direito de acesso aos dados daspesquisas, obtidos tanto pelas insti-tuições públicas quanto pelas empre-sas privadas.

As pesquisas em genômica nomundo inteiro sofreram, porém, comum erro originado do discurso dasempresas de agribussines voltadas àspesquisas de biotecnologia.“No início,muita publicidade foi veiculada deforma distorcida ou mal-intenciona-

da”, diz Silva Filho. “Prometia-se resol-ver todos os problemas com as novastecnologias.”

As conseqüências do erro - Na visãodo pesquisador da Esalq, as própriasempresas do segmento subestimarama percepção pública sobre o assunto,na medida em que acreditaram que aaceitação popular das plantas transgê-nicas seria incondicional, como resul-tado de seus propagados benefícios.“Esse foi um erro e até hoje as empre-sas estão pagando por ele. Criou-seum vácuo entre a nova tecnologia e aaprovação popular.” Mesmo assim,conforme um relatório recém-divul-gado pelo International Service for theAcquisition of Agri-Biotech Applica-tions (ISAAA), instituição sem fins lu-crativos localizada em Cornell, Esta-dos Unidos, os produtos provenientesdas plantas transgênicas estão se espa-lhando pelo mundo.

Independentemente do erro decálculo das empresas do setor biotec-nólogico e agropecuário, a genômica,por causa do esforço científico inicia-

do no Estado de São Paulo e depoisexpandido para o Brasil, já é uma rea-lidade. Mais do que isso: o conheci-mento gerado e a forma como ele foiobtido viraram referência internacio-nal. Vários trabalhos que vêm sendorealizados em diversos estados seencontram em estágio avançado.Nota-se uma tendência consolidadade pesquisa quer, por exemplo, naBahia, no estudo do genoma do fun-go Crinipellis perniciosa (causador davassoura-de-bruxa, doença que de-vasta os cacaueiros do sul daqueleEstado), quer, no Rio de Janeiro, coma bactéria Gluconacetobacter diazotro-phicus (microrganismo fixador de ni-trogênio em culturas como a cana e ocafé). O objetivo alme-jado pelos idealizadoresdo projeto genoma daXylella foi alcançado:novos grupos estão sen-do formados e a inicia-tiva privada tambémestá interessada nessaárea. Pode-se retomar aimagem do iceberg paralembrar que os pesqui-sadores do mundo todotêm agora uma idéia dequão grande prometeser o trabalho e como deve demorarpara ser concluído.

Foi justamente a noção de tempoque parece ter faltado para algumasempresas que resolveram apostar to-das as suas fichas na genômica. É ocaso da empresa norte-americana Ce-lera Genomics, que fez um seqüen-ciamento do genoma humano para-lelo ao conduzido por um consórciode instituições públicas. Desse modo,embarcou na idéia de que o bloco in-sinuado pelo iceberg seria logo co-nhecido e renderia lucros rapidamen-te. A realidade foi diferente. “Não seise a Celera errou”, observa João Mei-danis, bioinformata da Unicamp queatua também em sua empresa, aScylla. A Celera ainda não ganhou di-nheiro vendendo informações sobre ogenoma humano e hoje é uma empre-sa praticamente igual a qualquer ou-tra da indústria farmacêutica. Masuma coisa é certa, segundo Meidanis:se não fosse a pressão exercida pelaCelera, dificilmente o consórcio pú-blico já teria concluído o seqüencia-mento do genoma humano.

Iniciativaprivada seinteressaem investirna área

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s áreas biológicas, ao longoda história, assistiram vá-rias revoluções. Seja comas pesquisas de CharlesDarwin (1809-1882), no

século retrasado, ou com a descober-ta da dupla hélice há 50 anos, muitasdessas novidades revolucionárias fo-ram incorporadas na rotina dos la-boratórios que estudavam a vida. Nadécada passada, antes do século e domilênio terminarem, mais uma ondarevolucionária apareceu. As pesquisasgenômicas, que investigaram desde oDNA do homem até o das bactérias,transformaram para sempre algumasáreas da biologia. Nos próximos anos,essas transformações vão se irradiar eatingir toda a ciência que gravita aoredor da biologia molecular.

“Podemos fazer uma analogia des-te atual momento com o que ocorreuno final dos anos 70, início dos 80”,explica Sandro de Souza, coordenadorde Bioinformática do Instituto Lud-wig de São Paulo, entidade ligada aoHospital do Câncer. Para o bioinfor-mata, que trabalha com a análise deseqüências de DNA humano, assimcomo há mais de 20 anos a biologiamolecular passou a fazer parte da roti-na de quase todos os laboratórios debiologia no mundo, o mesmo vai ocor-rer com a bioinformática no futuropróximo. “Houve uma mudança cul-tural agora. Em breve, todo o labora-tório vai ter alguém fazendo algumapesquisa com bioinformática”, diz ocientista. Para ele, uma das grandes con-seqüências do início da era genômicaestá na mudança de visão dos biólogosem relação às áreas da estatística e dainformática. “Os biólogos não gostamnormalmente dessas abordagens maisquantitativas. Mas essa maneira depensar mudou totalmente com os

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Nos próximos anos,haverámudanças em todas as ciênciasem torno da biologia molecular

EDUARDO GERAQUE

Aprojetos genomas”, diz Souza.“O volu-me de dados gerados e as abordagenspossíveis de pesquisa no futuro sãoenormes. A bioinformática, pelo me-nos na área biomédica, é um caminhosem volta.”

Essa superavaliação da bioinfor-mática não está exagerada. As ferra-mentas metodológicas desenvolvidaspor essa área do conhecimento a par-tir de 1995 foram essenciais para que osucesso dos projetos genomas desen-volvidos no Brasil e no mundo dessemcerto. A conclusão do seqüenciamentodo genoma humano, por exemplo, teveo seu prazo reduzido em quase cincoanos. No Brasil, o grupo de bioinforma-tas montado para integrar a rede Onsa(Organization for Nucleotide Sequen-cing and Analysis) também teve umpapel decisivo para que o emblemáti-co seqüenciamento da bactéria Xylellafastidiosa (trabalho que mereceu capada revista Nature em 13 de julho de2000) fosse vitorioso.

No edital de convocação para oprojeto da Xylella existia uma vagapara um laboratório de bioinformáti-ca. A Unicamp acabou como a vence-dora. À frente do laboratório de bioin-formática da instituição estavam osjovens João Setubal e João Meidanis.Um outro João, o Kitajima, também fa-zia parte do time. Não se tratava ape-nas de receber os pedaços de DNA se-qüenciados, colocar no computador epronto. Além de afinar as técnicas me-todológicas, os apenas informatas da-quele tempo tiveram até que aproximaras rotinas de trabalho deles com as dosbiólogos moleculares.

Essa nova rotina em que se trans-formou a vida dos cientistas da infor-mática que participaram do ProjetoGenoma também só existiu porquehouve coragem científica. Se depen-

desse de um dos consultores inter-nacionais escolhidos pela FAPESPpara compor o comitê científico inter-nacional do projeto da Xylella, todosos trabalhos de bioinformática teriamsido feitos no exterior. Para AndréGoffeau, o cientista francês que coor-denou o seqüenciamento do genomada levedura encerrado em 1996, na-quela época, teria sido melhor contra-tar um especialista europeu para tocara bioinformática do seqüenciamentoda Xylella. Ele conhecia vários, afinal,o projeto da levedura havia reunido 100laboratórios europeus. Mais uma vez,os líderes brasileiros resolveram apos-tar na mão-de-obra nacional e não searrependeram. Até mesmo Goffeau re-conheceu o mérito do Brasil tambémnessa área quando o projeto foi termi-nado em 2000.

Toda essa revolução causada peloinício da era genômica, e que o Brasilteve um papel fundamental pelo me-nos no caso dos projetos da área agríco-la, está muito mais próxima do iníciodo que fim. É como se a oceanografiaconseguisse estudar até hoje apenasos 10 primeiros metros da coluna deágua do oceano. “Se nós fossemosimaginar uma pirâmide invertida, oseqüenciamento do DNA e das proteí-nas estão apenas na ponta inferiordessa figura”, diz João Setubal, do Ins-tituto de Computação da Unicamp.Apesar de dentro dessa mesma fase al-guns problemas metodológicos aindaexistirem por causa, muitas vezes, dacomplexidade do objeto estudado,como é o caso do genoma humano,uma nova fase dentro da bioinformá-tica também já está em andamento.“Ao caminharmos para o topo dessapirâmide invertida, um segundo está-gio é o estudo da interação entre asmoléculas de uma mesma célula”, diz

DUPLA HÉLICE 50 ANOS

A revolução da bioinformática

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mostra apenas que o caminho a serseguido, tanto pelos bioinformatas co-mo pelos biólogos moleculares, aindaé infinitamente longo. “Estamos agoraentrando na fase de estudar o funcio-namento das estruturas dentro deuma mesma célula”, explica Setúbal.A evolução natural das pesquisas ain-da vai chegar à análise das células deum tecido ou de um órgão, antes deter como objetivo de estudo um indi-víduo completo. E depois, continuaSetubal, haverá uma demanda paraque as populações e a biosfera comoum todo seja investigada pela genô-mica. Possivelmente, quando esse fu-turo distante chegar, haverá alguémque utilizará o termo biologia de siste-mas computacional pa-ra substituir o que hojese convencionou cha-mar de bioinformática.

Esse caminho apre-sentou, e continuarásendo assim, muitos obs-táculos. Apesar de o se-qüenciamento genéticoter virado uma rotinaem vários laboratóriosde São Paulo e do Brasil,depois das terríveis difi-culdades dos processosiniciais, algumas limitações metodoló-gicas ainda não foram transpostas,mesmo em nível mundial. “O seqüen-ciamento do genoma humano, porexemplo, está pronto. Mas ninguémsabe ao certo quanto genes ele tem. Foipossível apenas chegar a uma aproxi-mação de 30 mil”, diz Setubal. Mesmocom a falta dessa informação, os dadosgerados pelo seqüenciamento do DNAdo homem já podem ser usados paraque a pesquisa genômica avance. “Esteproblema do número de genes ocorreporque o genoma humano é bastantecomplexo. Não é algo simples, apesarde todas as técnicas eficientes que nóstemos hoje, encontrar esses genes”, ex-plica Sandro de Souza, cientista que temem seu currículo a participação nainvenção do método Orestes (OpenReading frames EST Sequences) deseqüenciamento genético. Por causaexatamente dessas outras formas deanálise dos trechos de DNA é que, mes-mo sem se saber o número corretode genes do ser humano, esse trabalhode seqüenciamento genético não ape-nas detonou a revolução genômica dos

PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 35

projetos de seqüenciamento genéticopara analisar o momento atual. “Nolaboratório de bioinformática da Uni-camp, durante os projetos genoma,nós metíamos a mão na massa de ver-dade com os colegas biológicos. Nemtodos os pesquisadores novos, que en-traram nessa área mais recentemente,fazem questão dessa relação mais es-treita. Os biólogos se ressentem.” A“outra face da moeda”, como diz Mei-danis, também existe. “Alguns dizemque nós ‘acostumamos mal’ os biólo-gos, pois demos tudo de graça paraeles. E agora se criou um clima de queisso é para ser dado de graça mesmo.”Apesar dessa falta de harmonia em al-guns casos, o próprio cientista daScylla reconhece que novas ferramen-tas de bioinformática estão sendo cria-das. “O Projeto Cage (Cooperation forAnalysis of Gene Expression), do Ins-tituto de Química da USP, já apresen-tou alguns resultados interessantes.”

Até chegar à base – que na verdadeseria o topo do processo – da pirâmi-de proposta por Setubal, mais cinconíveis terão que ser ultrapassados. Isso

Ciência busca estimulareconomia do Brasil

Setubal. As pesquisas conhecidas por“estudo do proteoma” estão inseridasnesse trecho da hipotética pirâmideinvertida da bioinformática. “Em hi-pótese alguma, as novas ferramentas eas novas técnicas da bioinformáticaexcluem as antigas. Essas novidadescaminham em paralelo. O novo nãoretira a importância do velho”, diz ocientista da Unicamp.

essa evolução constanteda bioinformática e dagenômica, a interaçãoentre biólogos e infor-matas, como bem mos-

trou os projetos desenvolvidos pelarede Onsa, parece ser um atalho paranovas descobertas. “Novas ferramen-tas dependem de um intenso e próxi-mo contato entre as áreas de computa-ção e biologia, envolvendo ao máximoos pesquisadores”, diz João Meidanis,da Unicamp. O cientista, que, além decontinuar na universidade, tambématua na sua própria empresa de bioin-formática, a Scylla, se utiliza mais umavez dos ensinamentos dos primeiros

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anos 90 como também mostrou teruma utilidade muito grande para opróprio homem.

Os sinais dentro do território nacio-nal de que essa revolução está consoli-dada são os centros de bioinformáticaque estão se formando em várias re-giões do país. Segundo Meidanis, alémdos já tradicionais pólos de pesquisapaulistas (Unicamp, USP, Unesp e Ins-tituto Ludwig), novos centros podem sercitados. “Estão sendo formadas pesso-as em vários pontos. Também foramcriados cursos de pós-graduação e, emalguns lugares, novos núcleos, como odo LNCC (Laboratório Nacional deComputação Científica de Petrópolis,RJ), da UFRGS, da UFPE e da UFMG.No mês de maio, a realização do Pri-meiro Congresso Brasileiro de Bioin-formática será uma oportunidade im-portante para os cientistas da áreaatualizarem os conhecimentos, e os re-sultados, desse segmento no país.

A grande demanda por profissio-nais da bioinformática é um indica-dor que sozinho mostra o aumentode projetos nessa área. Se o problemaem alguns lugares atualmente está na

falta de pessoas para ensinar essas no-vidades, no futuro próximo uma ou-tra questão diferente poderá ter queser resolvida. Acomodar todos essesbioinformatas poderá ser um dos de-safios em breve. Um dos caminhospara resolver esse problema já come-çou a ser trilhado, pelos mesmos ci-entistas que desenvolveram essa áreano Brasil. Enquanto Setubal ajudouna fundação da empresa de biotecno-logia Alellyx, mas hoje voltou a se de-dicar de forma exclusiva à universi-dade, Meidanis continua a quereralcançar os seus objetivos também nainiciativa privada. “Acreditamos quetoda a sociedade vai se beneficiar datransmissão do grande conhecimentogerado nos projetos genomas para asempresas. Mas a luta é árdua. Primei-ro porque é novidade e segundo por-que muitas empresas dessa área doBrasil são multinacionais e elas exe-cutam as pesquisas lá fora”, diz Mei-danis. Para ele, as poucas empresas queresolvem investir nesse campo devemser parceiras no processo em que aciência busca, indiretamente, impul-sionar a economia nacional.

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PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 37

Ciência genética e ação digital

a década de 1940 foi inventado omoderno computador digital.Ele se chama “digital”, porque suaoperação se baseia no alfabeto bi-nário, em que a informação é ar-

mazenada e manipulada usando-se apenas zerose uns. O computador é uma criação da mente hu-mana, uma encarnação da matemática, a maisabstrata das ciências. Algo, portanto, bastante dis-tante do mundo biológico. Qual não foi a surpre-sa então quando se descobriu na década de 1950que a informação genética também é basicamen-te digital! (Sendo que o “alfabeto biológico” temquatro símbolos, em vez de apenas dois.) Gera-ções futuras talvez achem extraordinária a pe-quena distância temporal que separa a invençãodo computador digital da descoberta da hélicedupla do DNA.

A informação genética nos permanecia ina-cessível. Sabíamos que estava lá, entendíamos suaestrutura, mas não tínhamos métodos eficientespara lê-la. Isso mudou nos anos 90, quando mo-dernas máquinas seqüenciadoras de DNA passa-ram a permitir a leitura de vastas quantidadesdesse tipo de informação. Durante esses 40 anosem que o seqüenciamento demorou a decolar, oscomputadores e a ciência da computação tam-bém tiveram seu progresso fenomenal, como ébem sabido. Como resultado, assim que as má-quinas seqüenciadoras passaram a despejar inu-meráveis cadeias de A’s, C’s, G’s e T’s, pudemoslançar mão de um poderoso arsenal de computa-dores e técnicas computacionais, matemáticas eestatísticas para montar, analisar e tentar enten-der a informação genética. Essa atividade se cha-ma bioinformática, e é um dos ramos mais novose promissores da ciência moderna. Tal como aproverbial cobra que come o próprio rabo, amente humana projetada no silício passou a de-vorar a substância primal de sua própria origem.

Gerações futuras descobrirão que hápouca distância entre a invenção docomputador e a descoberta do DNA

JOÃO CARLOS SETUBAL*

* JOÃO CARLOS SETUBAL foi coordenador de bioinformática do Projeto Genoma da Xylella fastidiosa,é professor associado do Instituto de Computação da Unicamp e coordenador do Laboratório de Bioinformática no mesmo instituto. Este artigo é um resumo da palestra do autor na mesa-sredonda “50 Anos da Dupla Hélice do DNA” (Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, no dia 10 de abril).

NO advento da bioinformática está

provocando uma “matematização/informatização” da biologia molecu-lar: esta cada vez mais se torna umaciência quantitativa/informática. Aanálise das cadeias de DNA é apenaso começo. O próximo passo, já emcurso, inclui uma compreensão es-sencialmente quantitativa/computa-cional dos processos que ocorremdentro de uma célula. Esta, apesar demicroscópica, é um sistema bastantecomplexo, e uma compreensão do que se passadentro dela de forma profunda e satisfatória vaiainda exigir muitas décadas. A bioinformática temum rico e longo futuro pela frente.

Se por um lado a matematização da biologiamolecular nos permite entender melhor esse fe-nômeno fundamental de nosso planeta que é avida, por outro reforça a dependência cada vezmaior que temos dos computadores e de seus ma-nipuladores, os informatas. Isso deve ser particu-larmente ressaltado no caso das aplicações clíni-cas da biologia molecular derivadas da revoluçãogenômica. Já chegou o dia em que certos resulta-dos de um “laboratório de análises clínicas” nãovêm (apenas) de um experimento de laboratório,com tubos de ensaio e reações químicas, mas vêm(também) da saída de um programa de computa-dor. Isso significa que estão vindo para essas áre-as aplicadas todos os aspectos “bons” (rapidez,capacidade de processamento de grandes quanti-dades de dados, etc.) e “ruins” (erros de diagnós-tico causados por software defeituoso, deprecia-ção do julgamento humano, etc.) do uso doscomputadores. Cabe à sociedade se organizarpara que os aspectos “ruins” estejam devidamen-te sob controle, de modo que o casamento da hé-lice dupla com o computador esteja a serviço dahumanidade, e não esta a serviço daquele.

DUPLA HÉLICE 50 ANOS

Dadosgenéticostambémsão dadosdigitais

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A cultura ameaçada pela natureza

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Genoma Humano pode mostrar que problemas em nosso comportamento têm base genética

RENATO JANINE RIBEIRO*

DUPLA HÉLICE 50 ANOS

* RENATO JANINE é professor titular de Ética e filosofia Política da Universidade de São Paulo e autor,entre outros livros, de A Sociedade contra o Social – o Alto Custo da Vida Pública no Brasil.

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PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 39

os últimos 200 anos, vi-vemos uma separaçãoentre natureza e culturaque, grosseiramente, de-finiu os limites das ci-

ências biológicas e “exatas” com as hu-manas. Essas fronteiras nunca forampacíficas, movendo-se ao sabor de es-caramuças intermináveis – mas, em li-nhas gerais, funcionaram1.

A emergência da idéia de Bildung¸ou formação, no século 18, foi decisi-va para gestar o que hoje chamamosciências humanas. Elas consideramque o homem não é um ser dado pornatureza, mas constituído – em larga eindefinida medida – pelo seu entornotambém humano. Daí nasceram idéiascomo educação e cultura. Até aquelaépoca, não tínhamos nada comparávelao que denominamos educação. Às vés-peras da Revolução Francesa, aparecemtrês idéias mestras, conjugadas, quevão mudar o mundo. Uma é a de edu-cação, ou seja, a de que o indivíduohumano é mutável, conforme foi cria-do ao longo de seus decisivos anos deformação. Quem melhor a formula éRousseau, no Emílio. Outra é a de his-tória como ciência – a idéia de que acoletividade humana muda segundo aépoca: o moderno é diferente do anti-go. Saint-Just pode assim dizer que “afelicidade é uma idéia nova na Euro-pa”, e conclamar os franceses a acabarcom a injustiça do regime monárqui-co. Uma terceira idéia é a de revolução:é possível mudar, deliberadamente,toda a organização da própria socie-dade. Até então, essa palavra indicavaos movimentos dos astros, cumprin-do sempre a mesma trajetória – por-tanto, tudo voltava ao mesmo lugar,nada mudava, somente se perturbavaum pouco a estabilidade. Mas, comas revoluções Americana e Francesa, otermo revolução passa a designar umamudança radical – e, para muitos,promissora.

Poderíamos acrescentar outrasidéias, todas tendo em comum que oser humano seja passível de modifica-ção – não seja dado de uma vez por to-das. Ele é visto como uma criação de sipróprio, mediante um trabalho espe-cífico, ligado à convivência social, à açãode uns sobre os outros (e reciproca-mente). É nesse quadro que os antro-pólogos, mas não só eles, se especiali-zaram na idéia de que a cultura é a

Ndimensão característica do ser huma-no. Como, enquanto isso, deslanchamas ciências da natureza, mais velhas,porque começam no século 17, enten-de-se que o homem se torne uma ex-ceção às ciências naturais.

É claro que o ser humano pode serobjeto da biologia – mas o que elaconsiderará, em nós, não é o mesmoque as ciências humanas. Porém, afronteira vai sempre ser problemática.Se adoeço, como vou me tratar? O ób-vio, se a moléstia afeta meu corpo, émedicar-me. Mas sabemos que há do-enças de base psicológica. Serei trata-do por um médico ou por um psicote-rapeuta? Essa questão, pela qual devemter passado em sua vida pessoal mui-tos dos leitores de Pesquisa FAPESP,encena na esfera micro a pergunta ma-cro sobre as fronteiras entre natureza ecultura. Quando um amigo meu, psi-canalista, cada vez que tenho um pro-blema físico, brinca, dizendo: “Sempreachei que a psicanálise sai mais barato”,ele toma posição em favor da cultura.Quando outro amigo, neurocientista,diz que: “Gostaria de ter conhecido océrebro das bailarinas russas famosasdo começo do século 20”, ele se colocado lado da natureza.

que tem isso a ver com oDNA? Nenhum avançocientífico recente tevetalvez tanto destaque namídia quanto um des-

dobramento da descoberta que oracompleta 50 anos. É a pesquisa sobre oGenoma Humano que por sinal levoua FAPESP a ter, como destaque em suaimagem pública, estudos brasileirossobre o genoma. O salto qualitativo queisso representa, nas ciências, não podeser ignorado. A decifração do genomapermitirá detectar e tratar doenças an-tes de eclodirem – já no feto, talvez.Poderemos, quem sabe, pôr fim à mio-pia. Isso não apenas substituirá todauma parte da medicina, que sairia dosoftware (remédios) para entrar nohardware (uma intervenção cirúrgicapreventiva que lembra a engenharia),como pode pôr em xeque todo umcampo das ciências humanas.

O grande exemplo disso é o que sediscute sobre o homossexualismo. Nosúltimos anos, seja como by-productdas pesquisas sobre o genoma, seja emdecorrência de outras, mas certamen-

te inspiradas pelo exemplo daquelas,alguns cientistas afirmaram ter encon-trado a base natural para a homosse-xualidade. O assunto é controverso.Psiquiatras relatam casos de gêmeosunivitelinos, dos quais um é homos-sexual e outro, não – o que contesta atese da fundamentação natural da ho-mossexualidade.

De todo modo, o Genoma Huma-no fez cintilar a expectativa de queuma gama de problemas que costu-mamos atribuir à cultu-ra ou à educação, isto é,à formação humana doser humano, poderia terbases genéticas – e assimas poderíamos identifi-car e quem sabe resol-ver. Por isso é que podemudar a linha divisóriaentre natureza e cultura.As escaramuças de fron-teiras continuariam, maso traçado delas seria ou-tro. Espanta-me que essanão seja a principal discussão hoje nasciências humanas. Se o conjunto de pro-pósitos reunido no Projeto GenomaHumano se confirmar, o papel das hu-manas diminuirá. As disciplinas maisafetadas serão provavelmente as maisligadas à idéia de cultura, a antropo-logia e a psicanálise. Por isso mesmo,elas deveriam conhecer e discutir me-lhor o DNA. Evidentemente, se as ex-pectativas do projeto derem certo, de-veremos ser os primeiros a aceitar seusresultados. Não se trata de combatê-losem nome de qualquer corporativismode área. Mas precisamos discutir o queisso significa.

E por isso devemos explicitar os ar-gumentos que fazem muitos de nóssermos algo céticos em relação às pro-messas do Genoma Humano. Em pri-meiro lugar, a publicação dos seus re-sultados em fevereiro de 2001 foi umanticlímax. Esperava-se que a decifra-ção do genoma resolvesse uma série demistérios sobre o ser humano; viu-seque falta ainda muita pesquisa. Por isso,embora a mídia de divulgação científi-ca não tenha propriamente feito a crí-tica daquelas expectativas, ela discre-tamente reduziu o alcance dado a elas.Três anos atrás, o Genoma Humanoaparecia como uma enorme promes-sa, um divisor de águas; hoje, um pou-co menos.

O

Mídia fazalarde derevelaçõesdoDNA

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Mas ele haverá de trazer resulta-dos, que espero permitam vencer mui-tas doenças e insuficiências humanas.Pessoalmente, sou entusiasta dessasperspectivas. Porém, devo expor qualo grande argumento para o ceticismodas humanas: há uma enorme tendên-cia do ser humano a querer conside-rar-se coisa, objeto. Aceitar que somos

indeterminados natural-mente, que seremos la-pidados pela educação ea cultura, que disso de-correm diferenças rele-vantes e irredutíveis aosgenes é muito difícil.Significa aceitarmos quehá algo muito precáriona condição humana.Parte pelo menos dessaprecariedade ou indeter-minação, alguns chama-rão de liberdade. Porém,

nem mesmo a liberdade é tão valori-zada quanto se imagina. Ela implicaresponsabilidades. E diante disso é co-mum desejar-se algo que resolva nos-sos problemas independentemente denós mesmos. São inúmeros os relatos

de psicoterapeutas, psiquiatras e psica-nalistas sobre pessoas que querem “cu-rar” seus problemas psíquicos com umremédio. São também incontáveis osdoentes que fazem exame após examesem encontrar etiologia física paraseus males, levando o próprio médicoa recomendar uma terapia.

Parece que se busca conforto nacondição de coisa. Se eu for um obje-to, isto é, se eu for natureza, meus ma-les independem de minha vontade.Aliás, o que está em discussão não étanto o que os causou, mas como re-solvê-los: se eu puder solucioná-loscom um remédio ou uma cirurgia,não preciso responsabilizar-me, a fun-do, por eles. Tratarei a mim mesmocomo objeto.

A postura das ciências humanas eda psicanálise é outra, porém. Muitoda experiência humana vem justa-mente de nos constituirmos como su-jeitos. Esse papel é pesado. Por isso,quando ele entra em crise – quandominha liberdade de escolher amorosaou política ou profissionalmente re-sulta em sofrimento –, posso aliviar-me, procurando uma solução que

substitua meu papel de sujeito pelo deobjeto. Um antidepressivo pode teressa singela função. Quando tomo umProzac ou um Lexotan, renuncio àposição de sujeito da minha vida psí-quica e converto-a em objeto de or-dem natural.

abemos todos, ainda maisnuma sociedade estressada ehistérica como a nossa, comoé difícil sustentar a responsa-bilidade e a liberdade pela vida

pessoal. Daí que se deseje a passivida-de, a renúncia à liberdade. Ora, essesassuntos foram amplamente discutidospelas ciências humanas. Ou seja, comtodo o respeito pelas verdades que oProjeto Genoma Humano traga à luz,temos nas ciências humanas elemen-tos para trabalhar o que é o mito portrás dele.

Que dizer, então? Precisamos, nósde humanas, nos preparar para a mu-dança de fronteiras. Mas também te-mos muito a dizer aos colegas que de-cifram o código genético. Podemosmostrar-lhes o quanto há de mito naimagem pública de seu projeto. Pode-mos discutir como esse mito atende aum público de pessoas que querem –paradoxalmente – livrar-se de sua li-berdade, a um mercado que por issomesmo vende bem, a empresas que lu-cram com isso, a poderes públicos quepreferem esse approach ao, muito maischeio de dúvidas, das ciências huma-nas. Penso que esse diálogo respeitosoentre as duas partes seria muito rico.E, se o Brasil apostar nisso, ele faráalgo que praticamente não se fez noresto do mundo.

Mito por

trás doGenomaHumano

CL

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DIU

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40 ■ PESQUISA FAPESP ESPECIAL

1 Algumas idéias deste artigo foram desen-volvidas por Adauto Novaes (org.), em O Ho-mem-Máquina, São Paulo, Companhia dasLetras, no prelo (previsto para junho).

S

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odo o mundo vibrou com a descoberta daestrutura do DNA, certo? Todo o mundoachou que foi uma grande descoberta cien-tífica, certo?

Errado.Há pelo menos uma pessoa que não pode ouvir falar

em DNA. Que estremece de raiva à simples menção des-sa sigla. E que, curiosamente, é um homem que, num ins-tante decisivo de sua vida, esteve ligado, ainda que demaneira indireta, às pesquisas que conduziram à desco-berta do DNA.

Este homem mora no Brasil. Eu o conheço: é o pai deminha vizinha Lúcia. Nascido em Beja, Portugal, seguiuo rumo de muitos de seus patrícios, emigrando, isto nocomeço dos anos 50. Foi para a Inglaterra e lá arranjouum emprego no laboratório de pesquisas de uma uni-versidade. Uma ocupação humilde, a dele: junto comoutros, fazia a limpeza. Varria o chão, lavava os tubos deensaio, recolhia o lixo. O salário não era grande coisa,mas pelo menos tinha o que comer, o que vestir e ondemorar. Além disso, estava, de alguma forma, ligado a umempreendimento que não entendia bem, mas que sabiatratar-se de algo importante. Os cientistas do laborató-rio desenvolviam um projeto sigiloso, do qual outros la-boratórios rivais nem podiam tomar conhecimento. E ohomem, claro, nada perguntava a respeito. Mas não po-dia deixar de ler certos bilhetes que, de vez em quando,apareciam na cesta de papéis. Um desses bilhetes deixou-o particularmente alvoroçado. Escrito pelo diretor dolaboratório, uma pessoa que raramente aparecia ali(estava sempre em visita a gabinetes e ministérios), eradirigido a um dos cientistas, justamente o coordena-dor da pesquisa. O bilhete estava escrito em inglês,mas, àquela altura, ele já conseguia entender razoavel-mente o idioma. Foi com o coração batendo forte queleu: “Invistam pesado no DNA. Seguramente nos daráum retorno compensador”.

Acontece que o nome do nosso amigo é DeoclecianoNatercino Almeida. Um nome de difícil pronúncia, so-bretudo para ingleses. De modo que, como é costumenessas situações, ele havia ganho um apelido. Uma sigla,na verdade, formada pelas primeiras letras de seu nome.

PESQUISA FAPESP ESPECIAL ■ 41

DNA:a revanche O escritor e médico escreveu para Pesquisa FAPESPum conto sobre o DNA

MOACYR SCLIAR*

T

* MOACYR SCLIAR é escritor, autor de, entre outros, A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura (Companhia das Letras). É médico, especialista em saúde pública.

DUPLA HÉLICE 50 ANOS

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Ele era o DNA. “DNA, traz o balde.” “DNA, limpa esta ja-nela.” “DNA, me alcança a vassoura.”

Naquela noite, DNA, ou seja, Deocleciano NatercinoAlmeida, não dormiu – de pura excitação. Considerava-seum empregado modelo, mas jamais pudera imaginar quefosse tamanha a sua importância. O laboratório investirianele! Isso significava que tinham planos para seu futuro –talvez quisessem lhe dar um cargo de responsabilidade.Ah, se os seus antepassados, humildes camponeses, pu-dessem ver aquele bilhete! (Bilhete que, decidiu, manda-ria emoldurar para ter sempre em seu quarto.)

A partir daí transformou-se. Parecia agora um dína-mo. Ninguém mostrava tanta disposição para o trabalho.Ninguém se dedicava tanto à lavagem dos tubos de en-saio, ou à limpeza do laboratório. Era o primeiro a chegar,o último a sair. Às vezes fazia, espontaneamente, plantõesno fim de semana. Os outros empregados estavam atôni-tos, e também irritados: achavam que aquilo era uma es-pécie de concorrência desleal. Mas os cientistas não lhepoupavam elogios. Um deles chegou a declarar que taldedicação era um exemplo para todos. E, fosse por in-fluência do DNA (Deocleciano Natercino Almeida) oupor qualquer outra razão, o certo é que todos passaram atrabalhar com muito afinco. E também com nervosismo:apesar de todo o sigilo, ficou claro que as pesquisas esta-vam entrando na reta final – e não apenas ali, tambémnos outros centros que disputavam a tão secreta quantotranscendente corrida. E então, em março de 1953, veio anotícia que sacudiu o mundo científico: em Cambridge,Francis Crick e James Watson haviam descoberto a estru-tura do DNA.

Nesse dia, Deocleciano Natercino Almeida descobriuque ele não era o DNA. Ou, pelo menos, que não era oúnico DNA. Havia outro. O outro estava nas manchetesdos jornais, no noticiário das rádios, até nas conversas debar. Ele continuava sendo o humilde e desconhecido em-pregado de um laboratório. Os colegas, evidentemente,não perderam a oportunidade de debochar dele. Eu, sefosse você, processava esses caras por plágio da marca, dis-se um servente.

Deocleciano Natercino Almeida não achou graça na-quela história. Pelo contrário, ficou profundamente de-primido. Rasgou e queimou o bilhete que tinha guardadocom tanto carinho. E tomou uma decisão: não trabalhariamais no laboratório. Aliás, nem ficaria mais na Inglaterra.A descoberta do DNA havia sido uma afronta pessoal e elenão permaneceria no país em que tal acontecera.

Foi assim que emigrou para o Brasil. Aqui, continuoutrabalhando duro. Abriu um restaurante, prosperou, ca-sou, teve filhos e filhas – a Lúcia é a caçula.

Mas a sigla continuou a persegui-lo. Lia todas as notí-cias a respeito, contratou um professor de biologia paradar-lhe aulas particulares sobre o tema.

Agora Lúcia está grávida. É uma menina. Segundo medisse, Deocleciano Natercino Almeida está muito feliz. Eaté propôs um nome para a neta, um nome que Lúcia porrazões óbvias não aceitou.

O nome proposto é Genoma. Tem a ver com DNA. Eé também uma espécie de revanche do Deocleciano Na-tercino Almeida.

42 ■ PESQUISA FAPESP ESPECIAL

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