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Epicur 11 Telmo

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SUMÁRIO(

78Era uma vez uma obra do regime salazarista, quando na década de 40 do século XX se decidiu alargar o espaço da Universidade de Coimbra sobre os escombros de parte da alta de Coimbra. Houve o cuidado de realojar os moradores, construiu-se um bairro, antes do Calhabé, hoje com o nome de Norton de Matos. Ainda tem vida, gente caldeada pela vida, ciosa do comércio e da organização locais.

20O sabor das coisas simples é o segredo de muitas complicações. O gosto italiano, por exemplo, herança do Mare Nostrum gastronómico, lá onde se formou o anel de bom senso e apuramento que conquista mundo. Michael Guerrieri, um napolitano fixado em Lisboa, daqui irradia para o City Sandwich nova-iorquino e para o Shaker da Foz do Porto. Alho, azeite, cebola, tomate, beringela, azeitona é a base, bem mediterrânica…

104Nikias Skapinakis não será um nome popular. O seu percurso nas artes plásticas consolidou-se ao longo de 60 anos de pintor, do recorte abstracto à poética das formas. Uma vida cheia, grande parte com raízes no século XX. A obra está representada até 24 de Junho, no Museu Berardo, com 260 peças. «O fazer esta antológica foi uma vontade dele próprio…», explica a curadora, Raquel Henriques da Silva.

24José Gouveia começou no vinho mas hoje é um reconhecido grande especialista em matéria de azeite. O seu labor está hoje preso às avaliações de centenas de azeites, no Laboratório de Estudos Técnicos do Instituto Superior de Agronomia. Conclusão: há mais protecção às oliveiras, a actividade atraiu gente nova com formação agrícola, os lagares foram modernizados. Mas «a maioria dos consumidores não distingue a qualidade…», assegura.

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EditorialFama e Proveito - Jeremy IronsMário Zambujal - Pelo sim, pelo nãoTão boas as comidas mediterrânicasRui Cardoso Martins e os saboresUm rol do restaurante RoloMezzaluna, o alho e a cebolaNuno Diniz disserta sobre o pãoO azeite e o prof. GouveiaDegostando de memória, um bacalhauUma académica à volta dos tachosMaria Proença e o chocolateSandra mima os amigosCopo e prato em harmoniaMidori mudou de cara e de cartaMiranda sobre o DouroEmenta de fogo inquisitorialRavena vista pelas piadinaOs catalães e sus cavasProva na Real Companhia VelhaVinhomaniaCutty Sark e a lendaO actor e o palco do fumoNovo gosto nos purosEis o Montecristo Nº 2Cigarro, um antigo amigoA Peugeot faz-se à ChinaRelojoeiro de despertador para cimaA Coimbra de quem lá vivePatrimónio a quatro mãosO último dos garimpeirosNa rota dos frescos do AlentejoAçores a passo e passoPortugal de 1960 revisitadoEunice, 70 anos de palcoSkapinakis em retrospectivaPara lá das fachadasCircuito do estuque no PortoMiguel Bombarda culturalUm adeus a Fernando LopesA paixão de Margarida GilA tradição musical evoluiA nossa músicaPuro&Duro

Director Rui Dias José, [email protected] | Editor Rogério Vidigal, [email protected] | Redactor-principal Eduardo Miragaia, [email protected] | Redactores Carvalho Santos, Margarida Maria | Colaboradores Ana Clara, António Pimenta de Castro, Fernando-António Almeida, João Afonso, Jorge Andrade, Maria Helena Neves, Martim Santiago, Miguel de Almeida, Luís Garcia, Sara Pelicano | Cronistas Mário Zambujal, Nuno Diniz, Nuno Ferreira | Fotogra�a Antunes Amor, Hernâni Pereira, Pedro Teixeira Neves | Projecto Grá�co e Edição de Arte Marcos Bruno | Publicidade Paulo Falcão Magalhães [email protected], Pedro Santos [email protected] | Produção Frederico Valarinho [email protected] | Secretariado Anabela Pereira [email protected] Assinaturas JM TOSCANO LDA, Rua Rodrigues Sampaio, 5 – 2795-175 LINDA-A-VELHA, NIB – 0045 4060 4010 2972 07319 [email protected] Telefone 21 414 29 09 Fax 21 414 29 51 | Edição Vertimag – A Vertigem das Imagens e dos Sons e das Palavras, Unipessoal Lda. NIPC – 507 808 606. Nº de Registo na Entidade Reguladora da Comunicação Social – 12275 Depósito Legal – 128565/98 | ISSN – 1647-9874 | Marca Comunitária Nº 9013707 | Administração, Redacção e Publicidade Rua Poeta Bocage, Loja Nº 2 C 1600-233 Lisboa Telefone 21 727 1564 | Fax 21 716 2597 | Periodicidade Bimestral | Impressão Textype | Distribuição VASP

44Os produtores de espumantes catalães não perdem a esperança de entrar nos

mercados portugueses. E os da casa Juvé trataram de mostrar aos jornalistas o

que de melhor por lá fazem em matéria de cavas, como lhes chamam.

74Temos relojoeiros, sim, senhores. Um deles segue o seu labor na Marinha Grande, cumprindo os rituais de qualidade que garantem o trabalho de recuperação e reconstrução de máquinas, mas também na relojoaria de salão e convencional.

58O repórter ficou espantado (encantado?) com a popularidade de José Raposo, actor que na altura da conversa estava nas últimas representações de Diderot no Teatro da Trindade, em Lisboa - «O libertino – A arte de Ser Feliz». É um fumador selecto, selectivo, torce pelos cubanos hechos a la mano. «O importante é gostar. E note que nunca fumei um cigarro dos normais», sublinha.

96A arquitectura popular portuguesa teve um sobressalto nos anos 60 do século passado. Orlando Ribeiro, geógrafo, consolidou uma visão do Portugal de então ao concretizar um inquérito em dois volumes que concluía pela não unicidade da casa típica portuguesa. Cinquenta anos depois, o fotógrafo Duarte Belo foi à procura e comparou fotos de ontem com o que resta hoje. Portugal está assim…

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Jargão bárbaro que tudo resume (encerra?) na palavra vender, objectivo e síntese final da existência. Os prazeres e as seduções são – afinal – meros e instrumentais produtos. E tudo o mais… recursos: do rio em que me quedo ao pôr-do-sol até às mãos que confec-cionaram o meu jantar.

Se por acaso convido um grupo de compa-nheiros de informação para uma aventura de calcorrear caminhos e vidas até às Terras de Miranda, é uma press-trip ou uma educacio-nal. Já não se conversa nem discute… fazem--se meetings com coffee break e tudo.

O trabalho que dá explicar que antepasto não vem do italiano mas é apenas modo de anteceder uma celebração alimentar. Que ganharia especial prazer e sentido se sabo-reada (agora usa-se degustada, é mais fino!) numa casa de pasto. Perdida que anda a me-mória dos vinhos de pasto…

Nestas coisas dos passeios e das fruições de paisagens e rostos, os vendedores de viagens, pronto-a-vestir ou por medida, formatam desejos e apetites. E conseguem o miracu-loso de resumir vontades e ânsias de partir a umas quantas linhas, em bem coloridos ca-tálogos com preços e conselhos à partida e pulseirinhas de tudo incluído à chegada, ace-nando com paraísos desenhados à medida das ambições que transbordam das imagens de uma série de televisão ou de umas cenas de cinema.

E agora descobriram uma palavra nova: ex-periências. Que dá para tudo, de um salto de pára-quedas a uma subida de balão, de uma canoa nos rápidos à amesendação no mais incrível dos restaurantes. Se a moda pega, lá se vai a arte do piropo ou emoção de cortejar. Passa a ser tudo uma experiência… E a seguir? O ritual da prova de um vinho convertido em sinal de experimentação? E…? Podia aqui multiplicar exemplos e receios.

Por mim, dispenso que venham com essa de me proporcionar experiências. Prefiro pro-var de forma pausada e distendida ou mer-gulhar de um trago sem atentar em limites ou consequências. A vida não se fez para ex-perimentar: ou se vive ou se não vive, ou se é

ou se não é. Esses meios-tons de experiên-cias perfiladas em prateleira de loja não me convencem.

Seria difícil abandonarem a tecnocracia fria daquilo a que chamam destinos e acre-ditarem em afectos? E darem-nos ao menos a dúvida do apaixonamento, do enamora-mento, por uma qualquer terra? Às vezes apenas fundado num nome mítico e numa realidade que o sonho antecipa, até ao mo-mento de sentir e querer sorver antes que desvaneça.

E se falo de afectos é porque não acre-dito que se possa resumir tudo a uma série

de sensações com programa marcado, hora definida e actores apalavrados. Seria muito triste e redutor… E a emoção da descoberta? A embriaguez de travar conhecimento? A se-dução da surpresa? A vertigem de conhecer o outro e de o poder contemplar de forma natural e descomprometida? Por que carga de água havemos de comprar simulações de vida se podemos (ao menos, tentar) fazer a nossa? Poderá não ter tanta adrenalina, da que vendem pronta a consumir, mas não lhe faltará emoção e verdade.

Dos anos que levo, quando visito uma qualquer terra ou um estrangeiro vem até nós, fico (como eles ficarão) conquistado por afectos, acolhimento quente e simpatia – que não seja apenas esgar de sorriso derivado da obrigação da função. Porque a vida não se deixa aprisionar em manuais de procedi-mentos nem é estipulada por normas pré- determinadas (pré-existentes) de recepção.

Mas… será que alguém, num fórum de tu-rismo ou numa aula de escola especializada em técnicas de acolhimento, poderia assu-mir a ousadia de exaltar virtudes, força e efi-cácia dos afectos sem correr o risco de acabar mal interpretado e olhado de revés?

Por isso, escolho o lado dos sentimentos e do carinho. Que, com algumas saudades à mistura, são capazes de operar milagres de multiplicação dos desejos. Veja-se o cres-cimento exponencial daquela Página do Facebook que, à força de contar Portugal e de o gostar, já vai quase em meio milhão de membros. Sem que outros, com forte inves-timento e proporcional despesa, desvendem causas e motivos para a penetração, o en-raizamento e a multiplicação do alcance do “Descobrir PORTUGAL”.

E JÁ GANHAM AOS FRANCESES…Andávamos nós entretidos com as lojas dos trezentos chinesas, e a ASAE preocupada com os restaurantes clandestinos no Martim Moniz, e quase não demos por nada.

Depois da crise financeira mundial de 2008, multiplicaram-se os investimen-tos da China na Europa, fenómeno que

Editorial

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OS CHINESES ANDAM POR AÍ…

Eram Terras de Odiana, numa daquelas surtidas Alentejo adentro a que nem o Pulo do Lobo escapou - o do Portugal profundo (queira isso dizer seja o que for) de que falava o senhor Presidente…E entre peixinhos de rio, queijos de roupeiros de esmero e tintos de vender a alma - sem esquecer as migas – dei comigo a pensar no palavreado com que os experts do turismo vão crismando esses puros, e às vezes ingénuos, prazeres das viagens e dos passeios. Ele é cada termo…!

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empolou expressão com a crise económica da zona Euro. Da Alemanha à Suécia, da Grã-Bretanha a Portugal, com os chineses a manifestarem especial apetência pelas tec-nologias de ponta e pelos sectores automó-vel e energético. Sem enjeitar – imagine-se – a aquisição de vinhas em França…!.

Agora que tanto se diz da necessidade de ampliar a exportação de vinhos portugue-ses para as bandas do Oriente, esquece-se frequentemente que os chineses são um grande produtor de vinho. Recentemente surpreendiam com o desempenho no bri-tânico “Decanter World Wine”, através do seu Cabernet Dry Red 2009. Estupefactos e siderados ficaram os franceses quando lhes fugiu o prémio da mais alta faixa de preços, arrebatado por um vinho da província de Ningxia, no norte da China

Só quem não lhes suspeitava investimento crescente na área dos vinhos poderá ter fi-cado admirado. Alguns nem lembravam que, alguns séculos antes de os franceses so-

nharem o vinho, já os chineses se deleitavam com uma coisa de beber (quente e adoçada, que até servia para mezinhas) resultante da fermentação alcoólica das uvas.

Hoje a China apresenta vastas áreas dedi-cadas à produção vínica e não se queda ape-nas por imitações baratas. O vinho passou a desempenhar importante papel na moderna economia chinesa. Principalmente depois da chegada, em finais da década de 70, de investidores estrangeiros que passaram a deter interesses em gigantescas superfícies dedicadas ao cultivo da vinha, apostando em néctares de grande qualidade e tendo como alvo um mercado emergente em expansão explosiva.

Nos últimos anos têm-se multiplicado as empresas dedicadas à produção vínica. A Europa quase só conhece as detidas por estrangeiros. Marcas como a Dynasty, que significa apenas… 13 milhões de garrafas

anualmente colocadas no mercado! E se é verdade que para a produção de espu-mantes como o Imperial Court, as castas são oriundas dos franceses vinhedos de Champagne, os chineses têm feito acele-rado trabalho de adaptação e investigação de que surge como exemplo a uva olho de dragão, muito em voga por aqueles lados. No essencial, são vinhos destinados a satis-fazer o mercado interno.

Por estas e outras, será bom que os produ-tores portugueses que pretendem apostar no mercado chinês entendam que não exis-tirão, no futuro, grandes perspectivas para vinhos baratos e de fraco desempenho. A aposta terá de assentar em vinhos de quali-dade destinados a nichos de mercado espe-cíficos, e com elevado poder de compra, das elites chinesas.

Futuro auspicioso aguarda-se para os nossos Portos, em contraponto com as imi-tações chinesas de que há uns anos tanto se falou.

QUEM DÁ MAIS?Já por aqui foi escrito que não confundo tu-rismo com aquele segmento imobiliário apo-dado de imobiliária turística. Não mudei de ideias em relação a considerar que um dos princípios que distingue esta indústria é o da rotação de camas. E remeto sempre estes neologismos para a área da construção civil.

Com a crise que grassa, e no desespero de realizar capital, vale tudo! As casas de férias vão invadindo os locais de maior interesse paisagístico e turístico. E, perante a compla-cência dos responsáveis oficiais, em sítios onde até há pouco não seria licenciado um anexo ou um casinhoto, surgem projectos de urbanizações e aldeamentos a pretexto de um qualquer interesse turístico (?!).

Como por cá parece não existir nem inte-resse nem poder aquisitivo, vá de procurar clientes nos confins. Há dias tive conheci-mento de um vídeo promocional, gravado

nas margens de Alqueva, no cenário onde vai nascer mais uma urbanização. Operação imobiliária a pensar em compradores de… Macau! Terá sido gravado em cantonês ou em mandarim? Se calhar, ficaram-se pelo inglês.

Com os empecilhos a quem aposta no melhoramento e na preservação do que já está construído, com a burocracia que afoga iniciativas de actualização e refor-mulação de projectos turísticos já implan-tados mas de capacidade de expansão, não deixa de ser significativa a crescente aliena-ção de parcelas do território a investidores estrangeiros. Terá a ver com as dificulda-des da Balança de pagamentos? Não seria mais inteligente apostar no dinheiro que os turistas estrangeiros poderiam deixar entre nós? Financiando, com as suas despesas de estada, lugares de trabalho, actividades ho-teleiras e desenvolvimento local?

Houve até um senhor ministro que foi ao Brasil mendigar uns investimentos ace-nando com a possibilidade de, em troca, dar vistos especiais de residência aos investido-res interessados…Não quererão esclarecer, de uma vez por todas, quanto é que pode-rão custar esses tais vistos especiais? E, já que estão com a mão na massa, se surgisse alguém com muito interesse nisso… estabe-lecer para esses interlocutores privilegiados tabelas de aquisição da nacionalidade por-tuguesa, custos de acesso a passaportes eu-ropeus… etc, etc.. Como em qualquer outra parcela da África do norte ou subsaariana.

PORTO CERTO E SEGURO!Bem… é melhor regressar aos prazeres nos-sos e às seduções que nos traz a EPICUR. Só ela mesmo para se constituir em porto se-guro de vícios de deleite e orgulho…

Neste número, o grande destaque é o en-contro com Eunice Muñoz. Mas também não perdemos os amores de Jeremy Irons por Lisboa. Contamos músicas, bafora-mos charutos, desfolhamos vinhos e uís-ques. Andámos pelos Açores, pelo Alentejo, por Miranda do Douro, por Coimbra, pelo Porto… e outros lugares, daqui e da estranja.

Em busca de sabores, texturas e cores. De mesas de restaurantes fizemos gozo de con-versa e de palato. Provámos azeites, acha-mos que a dieta é boa… se for mediterrânica e nem nos aborrecemos por ficar a pão e água…!

Cumprido o nosso prazer, deixamos a re-vista nas vossas mãos. Abre-se agora outro ciclo da sua vida, que tem a ver com quem a lê e gosta. Ao seu ritmo, à sua maneira, à sua vontade.

Que saiba bem! Que saiba a pouco!Depois, se apetecer, digam qualquer coisa.

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Quando tinha estado entre nós para �lmar A Casa dos Espíritos, Jeremy Irons não teve tempo para descobrir aquilo que Portugal tem para oferecer. Nesta segunda visita, como protagonista de Comboio Nocturno para Lisboa, o actor britânico passeou, provou, desfrutou. Numa palavra, maravilhou-se!

descobriu o prazer em LisboaJeremy Irons

Não é a primeira vez que Jeremy Irons vem a Portugal. No já longínquo ano de 1993 andou por cá, em terras alente-janas, a filmar A Casa dos Espíritos. Quase duas décadas depois ei-lo de volta, com novo projecto, baseado num livro de Pascal Mercier, para desempenhar o papel de um professor de latim que vem conhecer a realidade de um país que, na década de 60, vivia a ditadura salazarista.

Ao contrário do que aconteceu quando filmou A Casa dos Espíritos, desta vez Irons mostrou-se mais disponí-vel para descobrir tudo quanto de bom o nosso país tem para oferecer. Afinal, as filmagens duraram quase dois meses e, por outro lado, nestes 20 anos que o separaram da sua primeira visita, Irons amadureceu, aprimorou-se. Tornou-se mais aberto à descoberta dos prazeres.

Falou da arquitectura. Tão apaixonado pelos castelos que até já comprou, em Inglaterra, um destes edifícios, que reabilitou por completo, Jeremy Irons não podia dei-xar de reparar nas inúmeras fortificações históricas que Portugal oferece. Em Lisboa, insurgiu-se contra o cho-que entre os monumentos históricos e os aglomerados de prédios modernos. «Têm de entender aquilo que de bom possuem na Lisboa antiga!», advertiu. E, continuando, «Lisboa é uma jóia que tem de ser preservada.»

Da evolução a que Portugal assistiu nas décadas mais recentes prefere não falar. Afinal, é o próprio actor a dizer que já nada recordava da sua estadia de 1993 e que, se não fossem as fotografias que entretanto vira, nem seria capaz de avaliar as mudanças por que, desde então, o país passou. Mas, depois da experiência de regressar a terras lusas, ouvimo-lo assegurar que não quer pas-sar mais 20 anos antes de voltar! «Portugal tem imensas possibilidades e um potencial enorme», assegurou. E estende a sua apreciação muito além de castelos e monumentos, falando de cultura e gastronomia.

Irons é directo e objectivo. Aos 64 anos e com uma longa carreira, costuma preferir a frontalidade ao «gra-xismo» óbvio. Daí que se devam considerar sentidos os elogios que faz a Portugal. Ele que, em entrevistas pas-sadas, garantia não ligar muito à comida, fala da cozinha lusitana com rara paixão. «O peixe que se come aqui é simplesmente fantástico! Viveria em Portugal só por causa do peixe», garantiu.

Sobre os seus outros interesses não gosta de falar e tende a manter o distanciamento para questões emocio-nais. Não fala da vida pessoal e, relativamente àquilo de que gosta – e não gosta – de fazer, as referências não são muitas. É um bebedor de chá (como bom britânico, con-tagiado pelo exemplo de Catarina de Bragança) e gosta de fumar. Aliás, apareceu com um cigarro na boca em vários dos seus filmes mais emblemáticos e ainda recentemente declarou, numa entrevista nos Estados Unidos, que «os fumadores devem merecer protecção da sociedade, tal como os deficientes e as crianças.»

Não o confessa, mas tudo indica que o epicurismo de Irons não se limita a chá e cigarros. Ainda no ano passado recusou o convite para a cerimónia de entrega dos Oscars por preferir, afirmou, «ficar em casa a fumar ci-garros e a beber álcool.» Não é, porém, um bebedor regular. «Fico com ressaca muito facil-mente», admitiu, numa entrevista. Em contra-partida, a música é um prazer que não dispensa. Não aprecia locais demasiado frequentados, mas gosta de dar o seu passo de dança em clubes onde a música é «suficientemente an-tiga para eu ainda gostar de a dançar…»

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FREDERICO VALARINHOFAMA E PROVEITO(

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VERSÁTIL E SOLIDÁRIOJeremy John Irons nasceu em Inglaterra no dia 19 de Se-tembro de 1948. Fez a sua formação artística na Bristol Old Vic Theatre School e estreou-se no palco em 1969. O seu primeiro grande papel no cinema aconteceu em 1981, no drama romântico A Amante do Tenente Fran-cês, pelo qual recebeu uma nomeação para o prémio BAFTA. Depois disso tornou-se senhor de uma muito abundante filmografia, percorrendo transversalmente os mais diversos estilos. No entanto, tem de ser salienta-da a sua participação em Irmãos Inseparáveis, de 1988, onde desempenha dois gémeos de características anta-gónicas, e Os Reveses da Fortuna, de 1990, pela qual re-cebeu o Oscar para o Melhor Actor. Casou com a actriz irlandesa Sinéad Cusack em 1978 e é pai de dois filhos – Samuel e Maximilian. É um lutador por causas nobres, sendo desde 2002 patrono do Thomley Activity Centre, associação não lucrativa para apoiar crianças deficien-tes, entre muitas outras obras de caridade.

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JASON O'DELL/GETTY IMAGES

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Se é leitora ou leitor habitual da EPICUR, talvez (termo situado entre o sim e o não) se recorde de uma croniqueta em que me de-brucei sobre o uso avassalador do advérbio ‘não’ - e não apenas na linguagem oral mas, sim, também na escrita mais ou menos lite-rária. Repensando no caso, concluí que usa-mos menos o ‘sim’. Em boa parte, ‘sim, sim, isto resultará da tendência portuguesa para contrariar o parceiro ou a parceira e mos-trar que sabe mais do que ele ou ela. Repare como muitas pessoas reagem ao que se lhe diz com um ‘não’ a iniciar a frase. Forma neutra, entre o ‘sim’ e o ‘não’, é um ‘sim, sim’, acompanhado por encolher de ombros. Esse ‘sim, sim’, reflecte desinteresse pela con-versa, ao contrário do ‘não, não’, bem mais positivo pela negativa.

Pois sim, mas há circunstâncias em que o ‘sim’ prevalece. É o caso dos casamentos - sim, ainda há casamentos - quando per-guntam aos noivos se querem mesmo. A resposta é ‘sim’, raramente terá saltado um ‘não’. Também é verdade que alguns futu-ros mostraram que o ‘sim’ foi um erro, mais--valia terem optado pelo ‘não’, ainda que só abanando as cabeças.

Outrossim - vocábulo em desuso, mas que continua a significar além disso - temos os sins como respostas garantidas a pergun-tas como esta: «Acha um abuso o preço dos combustíveis?» E se fizerem um inquérito sobre se os impostos já passam das marcas, um imenso coro gritará ‘sim’. Todavia, há um ‘sim’ dúbio, reticente e condicionado. Trata-se do conhecidíssimo ‘sim, mas’. Usa-se a toda a hora neste Portugal amistoso mas sem exageros. Alegramo-nos quando ouvimos ‘sim’ a qualquer pedido, proposta ou simples opinião que formulemos, mas a satisfação desfaz-se em menos de dois se-gundos. É o tempo de lhe colarem o ‘mas’. O ‘mas’ significa que o ‘sim’ tem limites, traz condições e ‘nãos’ de permeio: «Sim, apre-sento-te a Paulinha, mas tu tens de me dar o número do telefone da Didi». Ou: «Sim, Fulano é um bom actor, mas não queiras compará-lo com o Beltrano». Também se ouve: «Sim, isso é verdade mas esqueces-te do resto.»

Penso que sim, eu poderia escrever um pouco mais acerca dos ‘sins’ mas não dou por certo que manteriam a vossa amável pa-ciência. Pelo sim, pelo não, fico por aqui.

MÁRIO ZAMBUJAL

Cronicamente

Pelo sim,pelo não

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a dietaTão boa

A «recatada província de estirpe mediterrâ-nica» que era o Algarve no alvorecer do sé-culo XX é retratada por Sant’Anna Dionísio, numa introdução ao Guia de Portugal, II vo-lume, com a evocação de uma jornada feita por Raul Proença e três companheiros ín-timos, «um esfomeado pequeno grupo de forasteiros latagões», quando sentiram chegada a urgência de alimentar o «Irmão Corpo», em suplemento material da «deglu-tição do céu azul».

Viajavam os quatro, Proença mais Raul Brandão, Jaime Cortesão e Câmara Reys, «num dos típicos carroços abaulados»,

dirigido por «um mantenedor de rédea, em uma demorada digressão pelas cercanias da Alvor e Praia da Rocha», cruzando uma «amena sucessão de vinhas e hortejos, de la-ranjais e paredes floridas, de vivendas de boa e asseada gente campesina.»

Assim, à proposta de paragem respondeu «o homem que conduzia a traquitana: 'Aqui a dois passos há uma velha e asseada estala-gem que costuma ter bom marisco e peixe fresco'». Ao que o «imponente e dramatúr-gico Cortesão» exclamou: «Se é assim, con-duza-nos já a esse porto de abrigo.»

Lá estava, a dois passos, a anunciada

ROGÉRIO VIDIGAL

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a dietaA «recatada província de estirpe mediterrâ-nica» que era o Algarve no alvorecer do sé-culo XX é retratada por Sant’Anna Dionísio, numa introdução ao Guia de Portugal, II vo-lume, com a evocação de uma jornada feita por Raul Proença e três companheiros ín-timos, «um esfomeado pequeno grupo de forasteiros latagões», quando sentiram chegada a urgência de alimentar o «Irmão Corpo», em suplemento material da «deglu-tição do céu azul».

Viajavam os quatro, Proença mais Raul Brandão, Jaime Cortesão e Câmara Reys, «num dos típicos carroços abaulados»,

dirigido por «um mantenedor de rédea, em uma demorada digressão pelas cercanias da Alvor e Praia da Rocha», cruzando uma «amena sucessão de vinhas e hortejos, de la-ranjais e paredes floridas, de vivendas de boa e asseada gente campesina.»

Assim, à proposta de paragem respondeu «o homem que conduzia a traquitana: 'Aqui a dois passos há uma velha e asseada estala-gem que costuma ter bom marisco e peixe fresco'». Ao que o «imponente e dramatúr-gico Cortesão» exclamou: «Se é assim, con-duza-nos já a esse porto de abrigo.»

Lá estava, a dois passos, a anunciada

ROGÉRIO VIDIGAL

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estalagem «envolvida por um tufo de tre-padeiras e um viçoso loureiro, e logo que chegados foi Raul Brandão, primeiro a apear-se, a clamar imperativo e vibrante: «Oh, senhora Maria!, Oh, senhora Maria!» Estranharam todos e Proença expressou a dúvida: «Quando foi que V. aqui esteve e en-trou? Que Maria é essa que você reclama?». «Nunca estive, nem é preciso. Quem é que não vê que aqui tem de haver, por força, alguma Senhora Maria?», retorquiu o outro Raul.

A verdade é que lá assomou «o vulto sério e vistoso de uma mulher de meia-idade, muito asseada e de boa figura, de avental branco, interrogando: «Que é que os senhores de-sejam?» Para Proença foi simples: «Arranje-nos uma boa travessa de peixe fresco e um bom cangirão de vinho clarete! No fim, traga-nos um espaçoso prato de figos e uma boa dúzia de laranjas!»

Estava anunciada uma refeição sob o signo da dieta mediterrânica, tal qual ela foi e se aperfeiçoou ao longo dos tempos. E agora, juntando-se aos desígnios de outros países da orla deste mar que une a Europa do Sul e a África do Norte, pretende a consagração desse regime alimentar que mais parece cas-tigo quando lhe colam o apodo dietético.

ROTAS E CIVILIZAÇÕESO Algarve, emblema da influência medi-terrânica em Portugal, tem sido alvo de sucessivas descobertas e encontros com ou-tras civilizações, desde há muitos séculos, mesmo de antes de Cristo. Povos sucessivos demandaram a costa ocidental da Europa, cruzaram o Mare Nostrum, instalaram coló-nias e feitorias, beberam e comeram a nossa cultura e instilaram as suas sementes.

O fruto dessa fecundação, incluindo a dos bárbaros que varreram o sul da Europa, até

onde o braço lhes chegava, está patente no caldo cultural que é a orla do Mediterrâneo, cristianismo face a face com o islamismo, marcado por uma herança comum em mui-tos aspectos. E agora, nestas décadas mais recentes, o desembarque maciço de revoa-das de turistas que impõem novas tabuletas com indicações de direcções contraditórias.

A dieta é um desses pontos de contacto, o modo de abordar as necessidades ali-mentares, com base nos produtos dispo-níveis, clima, tipo de trabalho, actividade humana. A dieta que, na verdade, pouco tem a ver com o significado comum de re-gime alimentar restritivo, visando o emagre-cimento, quase sempre. «Predominância, na nutrição, de determinado tipo de alimento; tipo de alimentação ou preceitos alimentares característicos de certas regiões ou grupos étnicos, religiosos, etc.», consagra o dicionário Houaiss.

«Foram as circunstâncias de haver ou não alimentos que orientaram o homem e a sua maneira de cozinhar e quando o homem entendeu que aquilo que comia não só fazia viver mas que desse acto podia retirar um enorme prazer, nasceu a gastronomia», ex-plica Alfredo Saramago, o historiador e an-tropólogo das tradições gastronómicas portuguesas, já falecido, que foi director da EPICUR.

«Houve povos que, durante milénios, ape-nas viam na comida a quotidiana necessi-dade de se alimentarem, enquanto outros, mais precoces na gestão dos seus sentidos, depressa entenderam que comer era um acto que ultrapassava a necessidade impera-tiva de sobrevivência porque também podia ser uma forma superior de contentamento», escreveu em Cozinha Alentejana, em co-au-toria com Manuel Fialho.

BUSCAR A SATISFAÇÃOÉ nesse domínio do contentamento, abdicando da problemática da saúde, que queremos inscrever a questão da dieta me-diterrânica. É de coisa gostosa que se trata, para quem cresceu uma vida a repetir o pra-zer original, ou buscando-o, nesta vertente da herança mediterrânica – pois, resvalando para lá do Algarve e Alentejo, bordejando idênticas experiências romanas, italianas, fenícias, norte-africanas – e/ou noutras pa-ragens e modos, ainda que sem certificação médica de salubridade.

A dieta mediterrânica, este ritual alimen-tar feito de matérias-primas únicas, cres-cidas num clima próprio, ou submetidas a tratamentos culinários específicos, me-rece uma paragem para mastigar os conhe-cimentos históricos. Resumidamente, a

Raul.A verdade é que lá assomou «o vulto sério e

vistoso de uma mulher de meia-idade, muito asseada e de boa figura, de avental branco, interrogando: «Que é que os senhores de-sejam?» Para Proença foi simples: «Arranje-nos uma boa travessa de peixe fresco e um bom cangirão de vinho clarete! No fim, traga-nos um espaçoso prato de figos e uma boa dúzia de laranjas!»

Estava anunciada uma refeição sob o signo da dieta mediterrânica, tal qual ela foi e se aperfeiçoou ao longo dos tempos. E agora, juntando-se aos desígnios de outros países da orla deste mar que une a Europa do Sul e a África do Norte, pretende a consagração desse regime alimentar que mais parece cas-tigo quando lhe colam o apodo dietético.

ROTAS E CIVILIZAÇÕESO Algarve, emblema da influência medi-terrânica em Portugal, tem sido alvo de sucessivas descobertas e encontros com ou-tras civilizações, desde há muitos séculos, mesmo de antes de Cristo. Povos sucessivos demandaram a costa ocidental da Europa, cruzaram o Mare Nostrum, instalaram coló-nias e feitorias, beberam e comeram a nossa cultura e instilaram as suas sementes.

O fruto dessa fecundação, incluindo a dos bárbaros que varreram o sul da Europa, até

A DIETA MEDITERRÂNICA MERECE UMA PARAGEM PARA MASTIGAR OS CONHECIMENTOS HISTÓRICOS

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aventura dos povos mediterrânicos orien-tais, nomeadamente os fenícios, com fi-xação de feitorias e colónias, introduz nas costas do Norte de África e de Espanha e Portugal a metalurgia do ferro e da roda de oleiro para produção de cerâmica, um elemento determinante nas operações culinárias. Como recorda José Pedro de Lima-Reis, pela sua mão vêm também téc-nicas de mineração e de produção de vinho e azeite e novas formas de explorar os re-cursos marinhos, incluindo a salga.

Alfredo Saramago liga essa circulação pelo Alentejo de fenícios, gregos e púnicos ao conhecimento e uso de novos alimentos, ervas aromáticas como a segurelha e a sál-via. Mas é com a chegada dos romanos que os modos de produção dos três pilares da dieta mediterrânica – pão, azeite e vinho – dão um salto quantitativo.

«Quase seguramente, não foram os romanos a introduzir no nosso território o trigo, o vinho e o azeite, mas foram eles que tornaram o seu cultivo extensivo, não só para possibilitar a subsistência, mas tam-bém a sua exportação», escreve Lima-Reis. «Ensaiaram-se sementes melhoradas de trigo com possibilidades de aumentarem as

produções, assim como se começaram a uti-lizar alfaias mais desenvolvidas, novas técni-cas de moagem, também para o azeite».

Além do objectivo da exportação, os roma-nos defrontavam um outro desafio: as legi-ões que movimentavam, e se fixavam nos territórios ocupados. A questão alimentar, nomeadamente o abastecimento de trigo, orientado pelo estado, sem lucro, estava para eles resolvida à partida. O que obrigava a ga-rantir a produção indispensável à satisfação das necessidades de garantir o pão, verda-deiro alimento-símbolo da alimentação ro-mana, segundo Jean-Louis Flandrin.

Um soldado, segundo este autor, exigia em tempo de guerra uma ração quotidiana que oscilava entre os 800 gramas e o quilo de pão. Daí que o soldado ideal, à época, é «aquele que, tendo terminado o seu serviço em defesa da pátria, vai trabalhar numa propriedade 'cortada' de propósito para ele nas terras conquistadas».

UM CARDÁPIO DE COISAS BOASA roda da história não parou, porém, nos ro-manos, que, grandes comedores de carne, trouxeram ao Alentejo, como a outros locais de conquista, as galinhas e os galos, mais os respectivos ovos; ou o ganso, propiciador de «receitas de grande refinamento» «E uma delas, a do ganso lacado com mel, com a sua canja acompanhada com fatias de pão bar-rado com o fígado do próprio ganso, ainda se executa no Alentejo», como Saramago re-gista. E havia o porco alentejano, o melhor do mundo para os romanos, o leitão reche-ado com ervas, um dos mais conceituados pratos do Império.

E vieram os enchidos, com melhorias na preparação e mais diversidade. E o aprovei-tamento de tantas outras partes do reco, o fígado, a língua, a cabeça, o presunto.

Alfredo Saramago cita uma cena recta, jantar realizado em Évora comentado por Columelle, em que pelas mesas desfilam como entradas tordos fritos, espargos, gali-nha corada, papa-figos fritos, filetes de porco e pasta de aves gordas. Sopa, a de alho e ervas com pão, seguido de congro assado na área do peixe. E, como cena, lombo de porco, patos assados, lebres assadas e assados de aves. Para finale, creme de farinha e ovos e biscoitos.

Claro que os árabes trouxeram com eles novas direcções e algumas supressões. O porco, carne para eles interdita, mas que não foi alvo de proibição absoluta – era tolerado em consumo discreto. Mas introduziram novos processos agrícolas, novos concei-tos de criação de gado, e também ciência e artes, como a poesia, o canto e uma nova

UM SOLDADO EXIGIA, EM TEMPO DE GUERRA, UMA RAÇÃO QUOTIDIANA QUE OSCILAVA ENTRE OS 800 GRAMAS E O QUILO DE PÃO

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arquitectura. Mais, lembra Saramago, «uma nova forma mais sofisticada de estar à mesa e de comer».

Elemento maior desta renovação, diz o autor, traduziu-se na introdução das «ver-duras e frutas, e a sua produção criou o conceito de horta, com a sua específica agricultura. É longa a lista que trouxeram e fixaram como receitas: espinafres, alfa-ces, chicória, couves, rábanos, cenouras, nabos, etc.» Acrescente-se-lhe, nas fru-tas, a figueira, a amendoeira, o limoeiro, a nespereira, uma variedade de laranja azeda, pessegueiros, a par do grão, a melan-cia, o melão, a abóbora… Ah, e a carne de borrego! E o consumo de peixe, já arreigado pelos romanos, que eram «furiosos» nesta matéria-prima. Aqui, no Alentejo, como noutros pontos desta história regional da alimentação, o novo e o velho tanto se anu-lam como se somam.

Por fim, breves notas para o ciclo da Expansão, que abriu portas, entre o mais, ao tomate, ao pimentão e à batata. As especia-rias, contudo, «tiveram uma entrada muito discreta na cozinha alentejana», já dada à utilização de ervas aromáticas, que não tro-cou pela bizarria das «pimentas, gengibre e outros exotismos da moda». A menos que neste vórtice da globalização…

NO DOMÍNIO DO IMATERIALE foi assim que, muito resumidamente e de forma rápida, se estabeleceu esse modelo alimentar que o chamado Estudo dos Sete Países (realizado entre 1958 e 1970), de ini-ciativa de Ancel Keys, consagrou o conceito

avassalador: dieta mediterrânica. É só saúde, concluiu o especialista da Universidade de Saúde Pública do Minnesota, Estados Unidos.

Os sete países alvo de observação foram os Estados Unidos, o Japão, a Grécia, a Holanda, a Finlândia e a Jugoslávia. Conclusões? Várias, entre as quais a de que os finlandeses andavam mal, com taxas de ataque cardíaco superiores ao esperado em relação aos valores de mau colesterol

isolados. Pelo contrário, os gregos da Creta rural dos anos 50 estavam pouco sujeitos aos acidentes cardíacos, mercê do azeite, azeito-nas, peixe, fruta, vegetais e frutos secos que consumiam. A isso juntava-se quantidades moderadas de vinho e queijo e pequenas quantidades de carne, leite e ovos.

Estava em jogo o paradigma actual da dieta mediterrânica. Do prazer inerente à receita mágica é que pouco se fala, a coisa parece mesmo sacrificial, exceptuado o aproveita-mento comercial da consigna.

Nós, por cá, estamos atentos e Portugal já entregou na UNESCO a candidatura da dieta Mediterrânica a Património Imaterial da Humanidade. O trabalho da candidatura foi liderado pela autarquia de Tavira, em ar-ticulação com regiões do Chipre, Argélia, Croácia.

O Algarve, por esta via, põe à consideração um património de indesmentível tradição mediterrânica: «A História da Alimentação do Algarve é uma história que começou há muitos séculos, com vicissitudes que foram consequências das civilizações que aí se fi-xaram, por isso muito rica e com um acento mediterrânico que se iniciou há mais de três milénios», assinale-se, com palavras de Alfredo Saramago, em Cozinha Algarvia.

No caso de a candidatura ser aprovada, Portugal, Chipre, Argélia e Croácia juntam--se à Grécia, Espanha, Itália e Marrocos, qua-tro países que viram inscritas, em Novembro de 2010, as suas dietas mediterrânicas na lista do património imaterial da UNESCO.

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Rui Cardoso Martins é um escritor das novas gerações, iniciado nas lides do jornalismo, no jornal Público. «Eu não era escritor até ao dia em que me convenceram. Agradecido. Uma das razões porque escrevo é porque gosto de comer é porque as mulheres são bonitas e cheiram bem», confessa.

Alentejano, vive naturalmente com a dieta mediterrânica, a desig-nação, na medida em que «é preciso equilíbrio na alimentação, se não as pessoas adoecem» «Parece que está provado ter boas bases no que respeita à manutenção da saúde, enfim, recorre ao azeite,

aos cereais e aos legumes, mais a fruta em proporções certas», concorda.

A verdade, explica, é que, nado e criado nas terras de Portalegre, os hábitos alimentares norte-alentejanos moldaram-lhe a vida, ainda hoje que se propôs ser lisboeta, de residência. E, naturalmente, o tema transborda para as páginas que ficciona, lá onde a realidade tem que lançar raízes. A grande molécula é um desses abraços ao mundo dos vivos, na altura de evocar o passamento de um amigo. Fazer-lhe o luto, a ele, companheiro de tantas tainas.

E se eu gostasse muito de viver?

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A herança, sob a forma de memória é forte, como recorda, me-nino que foi de boas cozinheiras, a começar por uma tia que de-liciava as papilas de David Lopes Ramos com uma sopa que «era uma espécie de caldo de legumes com pescada fresca e coen-tros». Havia mais cozinheiras na família, com relevo para a mãe e a avó, esta mais ligada aos pratos tradicionais: «Refogados, essa escola…»

Pela Páscoa, a ementa estava antecipadamente escrita. O ca-brito era sacrificado atrás da casa, «vinha um homem, matava--os e esfolava-os». «Gosto muito de cabrito com ervilhas», diz com os olhos em alvo, vagarosamente, alentejanamente. Já pelo Natal, os comeres estão submetidos aos ditames da alhada de cação. «O peru era mais no dia 25.»

E havia, mais assiduamente, o feijão com couve, imagine-se… Uma sopa que o Alentejo apresenta em diversas zonas (em todo o lado?), mas que tinha um requisito especial: «Levava suã». E é com suã, as vértebras do porco, que Alfredo Saramago a regista no seu Cozinha Alentejana.

A SARDINHA JUNTO À FRONTEIRAOs tempos de mais novo, em casa paterna, remetem as memó-rias para essa «questão importante» que era a sardinha, com chegada marcada ao interior portalegrense duas vezes por se-mana, e que o pai assava num fogareiro na marquise. Outro registo, pelas artes da tia: «Fazia uma coisa à volta dos papos de anjo, as Línguas do Céu, a coisa mais simples: farinha, leite, limão, uma vagem de baunilha.» Os pequenos croquetes passa-vam pelo forno e tinham encontro marcado com o estômago, engolidos de uma só vez.

Vamos lá, não se esqueça as melhores empadas do mundo, «já as comi no Chile, as empanadas». Mas não é a mesma coisa, qual Chile?!... «No Alentejo todos os cafés têm empadas e ne-nhum se atreve a servi-las sendo de má qualidade. Porque sim-plesmente não se vendem. A empada tem de ser mesmo boa», remata. Estamos ali na Expo, num restaurante alentejano e não há empadas. «Lembro-me de comer uma empada em duas den-tadas, e a segunda dentada já estava a pedir outra.»

«Há em Portalegre um grande chefe que é o Júlio Vintém. Ele faz o carpaccio de toucinho, corta-o quase transparente, e num outro dia estive lá a comer miolos de borrego panados, quase crus por dentro. E em Portalegre temos a cacholeira, que o David Lopes Ramos considerava o paté de Portugal.»

«Em minha casa ainda hoje a sopa é essencial, com os meus filhos. Faz-me confusão que os portugueses não comam sopa. A obesidade das crianças começa aí. A sopa sacia, evita que se coma mais batatas fritas e esses cozinhados gordurosos», considera Rui Cardoso Martins.

«Uma das minhas experiências da juventude é um inter-rail e quando voltei a Portugal comi sete pratos de feijão com couve, com suã, e depois almocei. Mas para trás tinha ficado uma ex-periência na Provença, perto de Marselha, com sopa e mui-tos vegetais completados com pão e queijo. Lá está, a tal dieta, não?»

O RIO QUE DESAGUA NOS LIVROS«Tenho referências culinárias nos meus livros, no primeiro, E se eu gostasse muito de morrer, não esqueço o cabrito com ervilhas, mas também as empadas comidas em duas dentadas. Na dieta mediterrânica, o Deixem passar o homem invisível começa com o homem que vai pescar robalos e desaparece. É o prenúncio de uma grande tempestade em Lisboa. E tenho diálogos sobre os

grossos panelões de caracóis que perfumam a cidade e os pires de caracóis, com a dúvida sobre se ainda têm bichos lá dentro. E os percebes, que é um marisco de que gosto muito, com aquele ar de extraterrestre arte-deco e uma pele que parece um fatio de mergulhador», diz, sintetiza.

Um jeito de escrever que se prolonga. Meio fora do circuito comercial, em edição bilingue, anda por aí o conto de título Estômago animal, em que a pressão dos acontecimentos leva o narrador à consulta médica. Um relato que deixa o clínico va-rado, de tantas – seis – horas a comer.

«O almoço-ajantarado foi obra dum artista da comida, o chefe Vintém. O objectivo deste jovem e grande talento, que aliás pesa como dois homens sem ser gordo, é nobre e revolucioná-rio: reintegrar nos hábitos de consumo das pessoas, e fazer en-trar pela porta grande da alta cozinha mundial, as mais rudes, feias, gordurosas, nervosas, macilentas, cartilaginosas e, por assim dizer, não comestíveis partes dum animal», situa o autor.

Outro chefe, este Vítor, vem cozinhar na tal celebração da amizade do companheiro ausente. «Comemos um atum com o peso de uma pessoa, na varanda. Um atum fresco e grande, do teu tamanho. O Chefe Vítor desmanchou a barriga, o lombo, o sangacho, serviu-o cru, braseado, marinado, com escabeche de maracujá, sei lá que mais.»

Não haverá aqui montes de dieta mediterrânica? Temos, com certeza, uma enorme porta dos livros de Rui Cardoso Martins sobre a Serra de S. Mamede e esse percurso que a vida já lhe proporcionou. O prazer, o gozo, a satisfação, ou lá o que quise-rem chamar-lhe…

RV

«TENHO REFERÊNCIAS CULINÁRIAS NOS MEUS LIVROS»

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Os restaurantes alentejanos em Lisboa que se mantêm fiéis às ori-gens – quanto a matérias-primas e a confecção – são poucos. Há muitos que usurpam ou ambicionam a condição, mas percebe-se que a falta de profissionais de cozinha treinados – sobretudo no gosto, e também as matérias-primas – limita a consagração.

O restaurante Rolo aterrou na capital vindo de ensaios comerciais pelas terras de origem, Portalegre e Cabeço de Vide. Francisco Rolo, dono, que gere e dá o nome à casa, trouxe a fórmula que tinha apli-cado no último pouso, baseada em grande parte naquilo que o es-critor Rui Cardoso Martins classificou ironicamente como «aquele exército de terracota».

Trata-se de uma referência ao conjunto de oito mil figuras de guerreiros, feitos em barro, encontradas no mausoléu do impera-dor chinês Qin, perto de Xian. No caso, os olhos do cliente perdem--se numa frente de 45 fogareiros de barro, coroados por recipientes, mantidos quentes por força das lamparinas alojadas por baixo.

O que tem esse rechaud, para afrancesar a instalação? Qualquer coisa como 45 entradas, à data da visita, mas que podem chegar à meia centena em havendo abastecimento de variedades de maté-rias-primas para tanto. A aposta forte não fica restringida a este espectáculo, que pode valer por si. A lista espraia-se por entra-das, que vão além dos referidos quentes; sopas, três; mais os pei-xes (bacalhau, apenas, pareceu-nos, dessalgado «nas águas rijas da Portagem», ali a mirar Marvão…) e carnes.

E o que vai nas fileiras do tal exército? Petiscámos dos pezi-nhos guisados, mas há-os também de coentrada e em tomatada. Frequentámos a perdiz e uns passarinhos fritos (belíssimos), mas a ementa refere a lebre guisada, as açordas, as migas várias. Moelas, entrecosto frito, mais os enchidos transtaganos, e, e… De sopas, reza a lista, a alentejana, açorda de coentros, a não menos caracte-rística de cação, mais a sopa de legumes, que não tentámos.

As carnes, isso, sim, é um fartote. O abastecimento é garan-tido na origem, de Montemor (-o-Novo) para baixo, segundo o

dono-cozinheiro, o novilho e o porco preto como ex-libris. Lá estão eles sob as mais diversas designações, como o «naco de novilho à moda do dr. Berengas» e uma posta do dito «à moda do sr. Dr. Graça Moura», que o respeitinho é muito bonito (respeito ao tem-pero de cada um dos dois clientes). Não nos tocou nenhum deles. Mas, sim, uma grelhada do novilho e do porco preto, só de sal, e o fulgor das carnes de pasto e montado. E os doces, mais de uma dúzia, todos fiéis «às receitas originais», segundo a carta.

Preços são para o exaltado, com as entradas frias nos 12,5 euros, e os petiscos regionais («podendo repetir à vontade») sem carne gre-lhada, nos 27 euros por pessoa. Com a grelhada, vai aos 35 euros per capita. Só para dar o tom à bolsa.

Mas perante tais tassalhos, as contas poderão parecer mitigadas, dependendo da capacidade de cada um. Ao que dizem, as noites ali para as bandas da Expo levam ao Rolo muita gente contente por estar viva

Assim seja, que nos demos bem.

Alameda dos Oceanos, 4.443 Lj 6 (junto à rotunda da torre Vasco da Gama, Galerias Rio Plaza)1990-000 Lisboa

Um rol de carnes alentejanasTEXTO ROGÉRIO VIDIGAL FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

UM HOMEM QUE VEIO DE PORTALEGRE

UM «EXÉRCITO DE TERRACOTA» COMO LHE CHAMA O ESCRITOR

A SALA DO ROLO ENTRA NA ANIMAÇÃO DA EXPO

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Visível na porta de acesso ao Mezzaluna, Rua Artilharia 1, nº 16, uma citação da revista Outlook chama-nos a atenção. «Levar a matéria--prima tradicional portuguesa aos norte-americanos é uma forma de agradecer a este país que me tem tratado tão bem!»

Nascido para a vida e para a cozinha na Bella Napolli, Michael Guerrieri introduziu um novo conceito gourmet em Nova Iorque, lá se tornou, também, cidadão norte-americano. E por gostar de Portugal, quase caminha para a tripla nacionalidade…

Com estes amores, o chefe Guerrieri tem uma vida profissional agi-tada, gosta assim. Amistoso, por vezes quase frenético, faz cavalo de batalha da cozinha de autor que começou a aprender com a mãe, Anna. Aos 14 anos trabalhava numa pizaria em Long Island.

Na formação prática destaca a chefe uruguaia Maria Rotta, vibrante e versátil como ele. Mas Michael não é cozinheiro de ficar parado, de insistir em motes passados. Cedo percebeu que gostava de comu-nicar, de cheirar, de paladares, de tocar e de visionar, de variar e de viajar.

Mantendo o lugar no restaurante Dante’s, deambulou por quase todos os estados norte-americanos. Ia trabalhando, fosse na cozi-nha ou em salas de jantar. Abriu o espírito, adquiriu experiências de arte culinária. Até que monta uma empresa de catering, a Michael’s Elegant Affaires, a servir refeições criativas para celebridades.

De visita a Portugal em 1997, sentiu, como em nenhum lugar, que a cozinha e modo de vida mediterrânica atingiam, por cá, a expressão mais ao seu jeito. E abriu o Mezzaluna. Onde faz muitas combina-ções em cada prato, das cozinhas italiana e portuguesa; e no mesmo conceito vai conquistando a bela Foz do Porto, no Shaker, trendy, chic, casual atmosphere.

Aventureiro e amante de Nova Iorque, o chefe napolitano instala--se na 9ª Avenida, perto da Time Square. Na City Sandwich imperam produtos gourmet. Sopas, saladas e sandes, «são para saborear sem grandes pressas, com uma Sagres (Bohemia, Preta, Puro Malte) ou com um copo de vinho português».

A seguir ao alho, ao azeite, à cebola, tomate, beringela, à azeitona e à alheira, a última descoberta de Michael para Nova Iorque degustar é a morcela portuguesa. «Eles adoram a morcela e chegam a pedir-me grades de cerveja Sagres, que bebem como se fosse água!»

Um restaurante italiano é sempre um negócio seguro?É muito seguro. Não há limites para a escolha. A carne, o peixe os legumes… Numa mesa de 20 pessoas, 18 saem satisfeitas do Mezzaluna.Faz combinações à maneira portuguesa?À maneira italo-lusitana. O Mezzaluna foi o primeiro restaurante de

TEXTO CARVALHO SANTOS FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

Azeite e cebola no MezzalunaNão haverá muitos chefes de cozinha italianos a fazer mais pela gastronomia portuguesa do que o napolitano Michael Guerrieri. Em Lisboa, no Mezzaluna; em Nova Iorque, no City Sandwich; agora, na Foz do Porto onde lançou o Shaker. Sempre a inventar pratos italianos combinados com produtos portugueses.

O MEZZALUNA FOI O PRIMEIRO RESTAURANTE DE LISBOA A APROFUNDAR AS MINHAS RAÍZES

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Lisboa a aprofundar raízes, de acordo com a minha apetência. Sim, consegui a infusão dos produtos portugueses na comida italiana. Acredito no alho, na cebola, no azeite. Sem eles não somos latinos.Como reagem os estrangeiros à cozinha portuguesa?O estrangeiro gosta de tudo o que é original e saboroso.E, já agora, em relação aos nossos vinhos?Em Portugal não há muitas regiões. Muitas vezes, o pequeno é delicioso, há que saber tirar proveito da qualidade. O mal é que só agora começa a ser conhecida lá fora. Eu estou a fazer uma grande promoção em Nova Iorque, estou na introdução. Pouco a pouco, os norte-americanos hão-de encher as suas cozinhas com vinhos das nossas regiões vitivinícolas.O que falta aos portugueses no marketing têm os italianos no má-ximo grau…A Portugal falta eficiência. Para obter bons resultados é preciso estar em cima dos acontecimentos. Falo de pequenas coisas. Por exem-plo: Em Nova Iorque perguntam-me se há Sagres. Como é possível? Nunca foi ninguém lá mostrar? Mas estou certo de que esses proble-mas serão resolvidos.

Em Itália a realidade é diferente. É um dos poucos mercados em que o público tem à disposição o que quer. «Com qualidade, fashion e de-sign, são atributos que se ganham quase automaticamente.»

Os portugueses têm de acordar! Precisam de balizar objectivos para realçar a excelência dos seus produtos. As mãos portuguesas são fle-xíveis e de uma originalidade que muitas culturas já não possuem.O seu prato mais apetecido?O basmati. É muito fofinho, o que nunca comi no meu crescimento… Comparado com o arroz arbóreo, é uma deliciosa novidade.A descoberta da loja de sandes cavou fundo na clientela de Nova Iorque?É o meu novo bebé. Um conceito gourmet completamente novo, à base de produtos portugueses, da sardinha à morcela, e ao polvo… «É como tomar uma aspirina B», escreveu um rapazito no nosso livro.

Há novas tendências na gastronomia internacional?Há, imensas. Mas não me interessam. Sou mais pelas bases, pelo lado cultural dos produtos da terra.Qual o prato mais exótico que já fez?Isso do exotismo… Quero receber clientes exóticos, à procura das mi-nhas combinações simples. Quadros pintados pelo artista que sou eu…E o mais estranho que já lhe apareceu?Em Nova Iorque, amigos chineses ensinaram-me a preparar pés de galinha! Só aceitei por boa educação. Fiz cara de miúdo que não gosta de legumes… Mas de rãs, eu gosto.A cozinha francesa ainda manda?Não. Continua, isso sim, a ter importância no mundo gastronómico. Hoje por hoje, manda a originalidade, não a origem.Uma estrela Michelin ajudaria?Já fui citado e, claro, respeito. Mas a vida não é perfeita, eu não pro-curo a perfeição na comida, procuro a aventura.Em Nova Iorque, onde comer?Oh! É das poucas cidades onde acordas e tens mil sítios. A diversidade de escolha é quase infinita. De um extremo ao outro, não falta nada!Por trás de um grande chefe de cozinha está sempre uma boa cozinheira?É o seguinte: a cozinha está muito ligada ao local de nascimento, à aprendizagem e à arte. Há quem consiga harmonizar as cores e quem não saiba. A criatividade é muito importante. Dá semente às águas cristalinas e às mãos de fada.

Quase todos os dias surgem novos chefes de cozinha. Tem a ver com a proliferação de escolas, ou…Os chefes que deixam a escola devem lembrar-se que cozinhar é uma paixão, não um modo de atingir ce-lebridade. Antes da plenitude, temos de queimar as mãos, de vez em quando. E muitos deles pensam logo que já são profissionais.A melhor cozinha asiática…Para mim, vietnamita. É tão simples que se torna sofis-ticada. Faz-me lembrar os agentes básicos da comida italiana: o azeite e a cebola.Vinhos da sua predilecção…Portugal, Alentejo; Itália, Toscana; Estados Unidos, Califórnia.

Rua Artilharia 1, nº 16 - 1099-061 Lisboa Tel : (+351) 213 879 944

POUCO A POUCO, OS NORTE-AMERICANOS HÃO-DE ENCHER AS SUAS COZINHAS COM VINHOS PORTUGUESES

«NUMA MESA DE 20 PESSOAS, 18 SAEM SATISFEITAS DO MEZZALUNA»

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Passeie-se por qualquer grande cidade europeia ou americana e rapi-damente se constatará que a gastronomia em todas as suas vertentes tem hoje uma importância inigualável, dominando programas de te-levisão, originando miríades de publicações, justificando constantes festivais, artigos, entrevistas ou concursos.

Há cozinheiros armados em cronistas, críticos a fingir que são co-zinheiros, políticos que não resistem à dentadinha pública no pas-tel, médicos, jornalistas, socialites e arquitectos a escrever livros de cozinha, restaurantes de futebolistas e de empreiteiros, opinado-res intensivos a jurar algo e o seu contrário, maravilhas que origi-nam polémicas infindas, ufanismos locais e bairrismos imaginados, tudo, mas mesmo tudo serve para desta-car o prato, a receita e em casos mais ex-tremos, o segredo (sempre de polichinelo), demonstrando a importância do tema, tão evidente quando sentados à mesa, a comer do mais simples ao mais complexo, passamos metade do tempo a falar do que estamos a experimentar e a outra metade do que vamos experimentar a seguir.

Lugares comuns (normalmente sin-tomáticos de profunda ignorância), le-vam-nos a ufanas proclamações sobre a superioridade de uma cozinha sobre todas as outras (como o tantas vezes ouvido «em Portugal é que se come bem»), de um estilo que vai terminar com tudo o que até aí existia (mesmo quando não passa de uma derivação mais ou menos conse-guida sobre algo mais antigo), ou burrices acabadas e entricheiradas no mais profundo preconceito como afirmar que em Inglaterra a co-mida é péssima ou que os franceses só comem natas e manteiga.

Mas, mal ou bem, a verdade é que se fala, e sempre, a qualquer hora, em qualquer lugar, sem distinções partidárias nem diferenciações classistas.

É novo? Não. Mas é mais intenso, muitas vezes mais informado,

quase sempre mais apaixonado; fala-se de chefes, pratos, restaurantes, receitas tradicionais e inovadoras, viagens gastronómicas, reencontra-se a evidente conexão entre gastronomia e cultura, medita-se sobre a influência do que se come sobre o ecossistema, explodem discussões sobre o conceito do orgânico, do sustentável, da fast-food. Até há quem se preocupe (???) sobre o que as crianças comem nas escolas, quando na verdade se deveriam preocupar muito mais sobre a educação gastronómica que recebem em casa... mas isso ficará para outo dia...

Vivemos então uma época excitante no que diz respeito à gastro-nomia em geral, muita informação está disponível em todo o lado

e muitas vezes chega a ser boa, íntegra e consistente pelo que com pudor e algo re-ceoso, lamento informar quem me lê, que vou falar brevemente de algo tão singelo, discreto, tantes vezes vilipendiado mas também furiosamente defendido: o pão!

Água, sal, farinha. Chega. Não é preciso mais nada.

E o que se consegue a partir desta alqui-mia é infindável. Ajudado pelas variações possíveis e origens de calor, alterado pelas proporções, temperado pelas diferentes farinhas, personalizado pelo tipo de água,

é o pão, para mim, o alimento primordial que conforta, aconchega e suaviza todos os outros.

Gravemente prejudicado pelos disparates dietéticos, quase ferido de morte pelas inovações que permitiram tê-lo acabado de cozer du-rante todos os minutos do dia, alterado para pior pelo uso e abuso de misturas pré-preparadas carregadas de fermentos e outros aditivos menos conhecidos, conseguiu apesar de tudo, resistir a tanta indig-nidade e iniciar nos últimos anos um regresso quase triunfal às mesas de onde nunca devia ter saído.

Portugal tem muitos pães diferentes. Alguns são excepcionais.

SEJAMOS CIVILIZADOS E RESPEITADORES DA NOSSA TRADIÇÃO, NÃO PORQUE SEJA APENAS TRADIÇÃO (COMO CRITÉRIO É POBRE E CURTO), MAS QUANDO ESTEJA ASSOCIADA A SABORES E SABERES QUE É CRIMINOSO DEIXAR MORRER!

A pão e água

NUNO DINIZ

Emoções

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Com milho e com trigo. Com centeio e com cevada. Recentemente, com arroz, espelta, quinoa e kamut.

Colocamos na massa crua: chouriço, mas também sardinha, baca-lhau, frango e fumeiro diverso nas extraordinárias bolas de Trás-os –Montes.

Falamos do pão alentejano (cada vez há menos), tropeçamos no ex-traordinário pão algarvio (de Cacela ou de Odiáxere), admiramos o pão de centeio de Montalegre, com muita sorte redescobrimos um verdadeiro pão de Mafra, por engano no percurso provamos um sin-gelo pão da Ota e assim podemos criar um percurso turístico-gas-tronómico na redescoberta e tentativa, que se exige premente, de preservação dos nossos grandes pães regionais.

Temos receitas únicas que explodem na criação de uma combina-ção que percorre grande parte do país com variantes fascinantes e inesgotáveis de imaginação, mas sempre à base de pão, azeite e alho; as açordas e as migas.

Lembremos também algumas broas: de milho amarelo na maior parte do país, de milho branco em Poiares, com frutos cristalizados em Tentúgal, com milho e centeio em Avintes.

Por muito que nos seja chamada a atenção, na herança saloia dos tiques pseudo-cultos das autodenominadas «famílias bem», onde se ensina que não se deve molhar o pão no molho pois não é fino, a ver-dade é que um bom molho é sempre melhor se provado com pão. Pão na sopa é bom. Pão no leite também é bom, etc...

E para que esta genial herança cultural sobreviva à aceleração dos tempos actuais, há todo um enorme leque de atitudes que depen-dem da nossa vontade e do mínimo de atenção de quem nos governa. Premeie-se quem tenta recuperar a autenticidade, reconheça-se as especificidades que merecem ser apoiadas, estimule-se a qualidade mesmo que dê pouco lucro, valorize-se a simplicidade quando resulta num produto de excepção. Sejamos afinal civilizados e respeitadores da nossa tradição, não porque seja apenas tradição (como critério é

pobre e curto), mas quando esteja associada a sabores e saberes que é criminoso deixar morrer!

Por muitos países do mundo, onde não existia nenhuma tradição, tenho encon-trado grandes pães, casas de comer moder-nas exclusivamente dedicadas à degustação do pão em todas as suas imensas variantes, mercados (orgânicos) onde o pão foi elevado à condição de alimento primordial, saudá-vel e gastronomicamente reconhecido por todos, espero que também em Portugal se faça mais e melhor pela redescoberta deste produto de excepção.

Meus amigos, é evidente que eu tenho pouca paciência para a burrice, especial-mente quando ela se encontra profunda-mente cravejada naqueles que insistem em ditar regras comportamentais, exibindo ex-centricidades obtusas e passeando men-tiras lacrimejantes, prometendo ajudar o próximo, mas na verdade defendendo os interesses de todos, menos dos pobres otá-rios que neles acreditaram, e por isso, mais uma vez, volto a exigir a quem decide: inte-ligência, estudo, reflexão, falem com quem sabe (ainda que não seja da cor ou doutor), ajudem quem quer ajudar, oiçam quem tem coisas importantes para dizer, procurem perceber o que vos rodeia, respeitem as ca-racterísticas multifacetadas deste país que tem certamente uma das mais extraordiná-rias colecção de regionalismos quando com-parado com outros do mesmo tamanho.

E comam bom pão!

O PÃO DA «ESPECTACULAR» PADARIA/CAFÉ PRINCI, EM LONDRES

PORTUGAL TEM MUITOS PÃES DIFERENTES. ALGUNS SÃO EXCEPCIONAIS.

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«Hoje em dia há maior sensibilidade dos produtores portugueses de azeite para produzir mais e melhor». Quem o diz é José Gouveia, o professor do Instituto Superior de Agronomia (ISA) que desde há muito está envolvido na saga dos azeites. Embora já aposentado das suas funções de professor, Gouveia continua a dar uma perninha no Laboratório de Estudos Técnicos, instalado no ISA, onde são avalia-dos anualmente centenas de azeites, provenientes das várias regiões do país.

Para o nosso interlocutor, «um dos aspectos que têm contribuído para a melhoria da nossa produção tem a ver com a protecção inte-grada. Passou-se de não fazer nada, para proteger e tratar melhor as oliveiras». Conclui-se que da protecção integrada tudo se aproxima aos misteres da agricultora biológica.

A bem da organização dos nossos campos de oliveiras andam por aí ajudas em grande escala: diversas associações de acompanha-mento, muitas delas privadas, onde está empenhada gente muito nova, com formação agrícola. Numa palavra, fundamental, segundo José Gouveia.

Mas para o estado do azeite luso muito contribuiu ainda a mo-dernização dos lagares. Para o professor Gouveia, «essa melhoria dos lagares faz com que Portugal tenha hoje uma percentagem pequena de azeites fracos». E vem a retribuição estabelecida, por exemplo, através dos muitos e bons prémios atribuídos pelo credí-vel Conselho Olivícola Internacional. De referir que em 18 possí-veis, temos tido entre dez e oito.

Para o lado dos nossos consumidores empertigados, a verdade é

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA

No lagar com GouveiaJosé Gouveia começou no vinho, na sua qualidade de professor do Instituto Superior de Agronomia, depois abraçou o azeite, até hoje. Reconhecido como um dos maiores especialidades na matéria, ir à fala com ele é imperativo. E lá se confere que o azeite português está em alta!

A MODERNIZAÇÃO DOS LAGARES FEZ COM QUE PORTUGAL TENHA HOJE UMA PERCENTAGEM PEQUENA DE AZEITES FRACOS

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que se consome por cá do bom e do melhor, ou seja, 55 por cento das vendas a recaírem no azeite virgem extra. Para José Gouveia, porém, há alguns escolhos no caminho… Como a falta de informa-ção sobre a forma de tirar partido do azeite em relação à alimenta-ção. «Os meios de informação ligam pouco ao assunto», queixa-se Gouveia. Outra razão de lamentar segundo o mestre: «A maioria dos consumidores não distingue a qualidade, vão pelo preço». E dá--nos a receita: «As pessoas deviam ter diversos azeites em casa, para usar conforme os pratos. Associa-se muito o azeite ao bacalhau co-zido, mas o produto vai muito para lá disso.»

E toca de entrar numa questão desde sempre esgrimida… A da aci-dez: se este tem menos é bom, se não tem é mau… Gouveia escla-rece: «A acidez não tem influência no cheiro e no sabor. Nos azeites virgens, a acidez está sempre nos limites, sem que tal traga qualquer prejuízo para a saúde. E há um limite legal, correspondente a 0,8 por cento. A pessoa não tem de se preocupar com a acidez, como ninguém compra um vinho só pela acidez.»

Valha a verdade que nunca existiu tanta oferta de azeites nacionais. E é de abordagem simples: a venda a granel não traz lucros palpá-veis, 1,75 euros por litro, valor em bolsa por cotação que varia de dia para dia. «Para ganhar dinheiro é engarrafar», sublinha o nosso en-trevistado. Daí existirem cada vez mais embaladores engarrafadores, o ideal, a melhor solução. Debaixo deste signo, outra ordem de ideias está associada, como a da exportação, sobretudo para os chamados mercados apetecíveis e emergentes, ou seja, a pouco e pouco come-çaram a encontrar as graças do azeite. Veja-se o caso do Brasil (onde as vendas não cessam de disparar), e ainda a apetecível e significativa China, entre outros. «Muitos países começaram a consumir pelos be-nefícios para a saúde», exclama o nosso interlocutor.

Do consumo imparável até à tentação de exportar mundo fora… «Oliveiras só pode haver onde há clima mediterrânico», diz o pro-fessor e toda a gente sabe. Certo é que há países que se atrevem a plantar oliveiras, um dos mais recentes é a Austrália, pois é, e uma vez que foi achada, uma zona com características mediterrânicas. Se a coisa pega…

A verdade é que pelo nosso território passámos a ser auto-sufi-cientes, não estando, como outrora, dependentes das importações do ouro líquido. Em detalhe, nas décadas de 50/60, a nossa produ-ção era excendentária; já nos anos 70 registou-se um decréscimo da produção e do consumo; nos anos de 90, o consumo per capita era de 3,3 litros, atingindo-se actualmente a quota mais competitiva de oito litros por pessoa. Como conclui José Gouveia, «nos últimos anos, com a influência do Alqueva, atingiu-se a grande produção e já somos auto-suficientes, produzindo o que necessitamos. Mas em termos comerciais a balança não fica a zero, continua-se a importar, sobretudo azeites espanhóis, mas estamos a exportar muito».

Falando de regiões produtoras, o que é mais apetecível para os portugueses, impõe-se o quesito? Gouveia dixit: «Azeites bons há em todo o lado! Os alentejanos são extraídos em temperaturas ele-vadas, em Trás-os-Montes mais finos e complexos. Já nas Beiras pa-raram no tempo». Em relação ao Ribatejo, mas também ainda no caso do Alentejo, a Arbequina, uma variedade espanhola, permite um azeite suave, com pouco sabor, com notas de tomate fresco, pouco resistente à oxidação». Ao nível das vantagens desta espécie, são produções intensivas colhidas mecanicamente com custos muito baixos.

Para o ranking dos maiores produtores, a Itália lidera com franca vantagem… «Estão em todo o lado», exclama José Gouveia. Na peugada vêm os espanhóis, enorme gabarito, designadamente na evolução dos meios de comercialização. Nós por cá, está visto, vamos bem.

«AS PESSOAS NÃO TÊM DE SE PREOCUPAR COM A ACIDEZ, COMO NINGUÉM COMPRA UM VINHO SÓ PELA ACIDEZ»

FAÇA UM CURSO DE AZEITE!Cumpre dar uma espreitadela ao Laboratório de Estudos Técnicos do Instituto Superior de Agronomia. Por ali o trabalho intensivo (90 por cento) está essencialmente concentrado no azeite. O ano passado, fo-ram passadas a pente fino 3 500 amostras, este ano já escalam as 1.200, é obra asseada. A bem da causa olivícola, cerca de 85 por cento de pro-dutores aqui acorrem para obterem um certificado de qualidade, que emolduram, é sabido. Um certificado quase impositivo para quem se implica na sedução da exportação, muito dinheiro em caixa. O brinqui-nho de um laboratório enaltecido internacionalmente e reconhecido pelo Conselho Olivícola Internacional.Informação que vale a pena deixar é a possibilidade de qualquer pessoa fazer uma formação em azeite no laboratório. Os denominados cursos de provas realizam-se de cinco a seis vezes por ano, ministrados por José Gouveia. No primeiro patamar, toca de iniciação, já os níveis I e II fiam mais fino. O primeiro põe à mostra uma boa especialização, o se-gundo permite urdir as características entre azeite e gastronomia. Quem estiver interessado em inscrever-se terá de desembolsar 250 euros e dedicar-se às aulas durante três dias seguidos.

«AZEITES BONS HÁ EM TODO O LADO»

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Bacalhau e memória de mar como fundo

ROGÉRIO VIDIGAL

De gOstando

Aqui há uns tempos, num almoço, assisti a uma con-versa do convidante com um primo, evocação da fa-mília, comportamentos. Às tantas, recordou um deles que o pai, quando havia cozido, não dispensava as batatas fritas. Espantei-me, e ele não se espantou com a minha estranheza. «Toda a gente faz esse ar… Mas experimente um dia…»

Acho que não, não vou nessa. Sou adepto e praticante de uma certa fidelidade às receitas, ao preceituado nas recolhas fidedignas das tradições gastronómicas. Tradicionalismo, dir-se-á. Mas que, feita a declara-ção de interesses pela origem alentejana, me levaria a estar ainda hoje a comer açorda e sopa de feijão como manda a tradição.

Claro que esfaqueei a regra. As leis foram feitas a pen-sar que há quem as não cumpra e daí terem adstrito o código de penas correspondente aos desvios. Não teria, caso contrário, experimentado tanto que o mundo tem para nos surpreender.

Às vezes dá-me para resmungar que já tudo foi inven-tado em matéria de culinária e gastronomia. Nada das inovações, combinações e fusões (que mais sobra?) tra-ria, assim, grande acréscimo de valor às tentativas de-sesperadas de chefes e mais chefes para nos afrontarem com a surpresa.

Talvez seja verdade…Mas, durante a preparação de um trabalho para esta

revista, voltei a escritos de Alfredo Saramago que re-corda a cozinha como «uma arte de circunstâncias… e foram as circunstâncias de haver ou não alimentos que orientaram o homem e a sua maneira de cozinhar». Em tempo de abundância…

Seja como for, vamos somando conhecimento, expe-riência, registamos novos sabores, aromas e texturas. Acontece a todos, de repente, voar uns anos no tempo à procura de uma referência na memória (boa) para um eflúvio, no restaurante e até na rua.

Bem, indo ao acaso, ponho muitas vezes no topo das boas recordações situações absolutamente banais, da

infância, de viagens em trabalho, até de emergências como militar. De quando era criança, se ansiava o re-gresso dos produtos da época, o borrego a seu tempo, as laranjas, o figo do quintal, as pêras de S. João.

Uma sargalheta, sopa alentejana que a maioria cer-tamente desconhece – a simplicidade em todo o seu esplendor. Um frango à cafreal lá no meio da mata do Maiombe, quase na fronteira com o ex-Zaire, que pro-digalizou a cerveja de contrabando necessária à extin-ção daquele fogo posto pelo piripiri.

Às vezes, a gente não resiste. Há cerca de um ano, zarpei de excursão ao Porto. Fui pelas tripas, rojões, congro estufado, bacalhau. Sobretudo um que me le-vava à praia de Lavadores, há décadas, um restaurante que cresceu para complexo hoteleiro mas mantém o nome: Casa Branca.

Antes, interroguei conhecidos, vagueei pela Internet, nada de muito concreto sobre o longínquo bacalhau com presunto. Mas, quando cheguei, não havia por onde lastimar-me. Que sim, ainda há a especialidade, e até o pato com cerveja, vejam lá. E o bacalhau, mesmo que o mar de um dia manhoso, fez jus à memória.

Não podemos voltar aos sítios onde fomos felizes?

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Catarina Prista é, desde 2007, sócia fundadora da empresa CookingLab, Lda., onde desenvolve actividades de apoio teórico do trabalho experimental na área de gastronomia molecular. Doutorada em Engenharia Alimentar pelo Instituto Superior de Agronomia, é ainda investigadora auxiliar nesta escola. E quer transferir o conhe-cimento do laboratório para a cozinha, a fim de «recriar, transfor-mar, inovar». É ainda especialista em microbiologia de leveduras, e responsável, no Instituto, pelo 2º Ciclo em Ciências Gastronómicas e coordenadora da disciplina de Alimentos Fermentados, leccionada neste curso, o qual sendo pouco conhecido, tem importância inegá-vel no sector da alimentação, contemplando ainda um mestrado pio-neiro em Portugal. Aos 42 anos, Catarina tem ainda muito tempo de sobra para descobrir, descobrir sempre!Poucas pessoas têm conhecimento do curso de Ciências Gastronómicas.O Mestrado em Ciências Gastronómicas resulta de uma parceria entre o Instituto Superior de Agronomia e a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Pretende-se proporcio-nar uma formação científica e técnica aprofundada e especializada no domínio da ciência dos alimentos, capaz de dar satisfação às exi-gências crescentes de qualidade, criatividade e inovação nesta área. É o primeiro Mestrado desta natureza que existe em Portugal e é um curso pioneiro mesmo no que concerne ao resto do mundo.De acordo com as vossas experiências/investigação que conceitos são de extrair?O Mestrado em Ciências Gastronómicas é um curso muito

abrangente, com um leque muito vasto de conhecimentos e vai beber a diversas fontes. São abordados desde aspectos mais relacionados com a ciência dos alimentos na sua vertente mais tradicional, pas-sando pela gastronomia molecular, até aspectos culturais e técnicos de outras áreas, de forma a permitir uma abordagem mais alargada dos diversos assuntos e/ou criar uma ponte entre o mundo do conhe-cimento e o mundo real das diversas actividade económicas e cultu-rais no âmbito da gastronomia. A ideia é responder às necessidades resultantes de uma mudança profunda na relação dos consumidores com a alimentação e no processo de produção alimentar em pequena escala que ocorreu na última década. A evolução da gastronomia nas suas mais variadas formas, assim como a da restauração, requer uma evolução nos processos de trabalho e a nível de conhecimentos.Vamos recriar o receituário tradicional português ou mais que isso? Como encara a gastronomia entre nós? Tem de evoluir?Vamos fazer tudo isso! Recriar, transformar, inovar! Actualmente, assistimos em todo o mundo a uma mudança e paradigma em re-lação à gastronomia. Deixamos de encarar um prato apenas como algo que 'pomos à nossa frente e se come', tornámo-nos exigentes, o que se reflecte quer em termos da qualidade e segurança dos pro-dutos quer da forma como são confeccionados, somos atraídos pelo paladar (que continua a ser fundamental), e também pelo aspecto, textura, cheiro…E outras culturas…Estamos muito mais abertos à gastronomia de outras culturas, gos-tamos de experimentar novas coisas, queremos ser surpreendidos,

à descobertaCatarinaConhecemos Catarina Prista num jantar servido em pleno salão da velha biblioteca do Instituto Superior de Agronomia. Descon�ados, entrámos na liça da chamada cozinha técnico-emocial. Até saboreámos uma caterva enorme de pães, saídos da padaria do ISA. Uma das comandantes foi a Catarina. Contas feitas, foi uma refeição delícia.

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

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podemos ir a um restaurante com a postura de quem vai a um espec-táculo de música, ou a uma peça de teatro, com vontade de que os nossos sentidos sejam preenchidos por inteiro… Ao contrário do que se pode pensar, Portugal não é excepção. O consumidor português tornou-se esclarecido e exigente, curioso e conhecedor.E como se responde a isso?Para dar resposta é necessário inovar e evoluir. Mas é preciso tam-bém conhecer a gastronomia tradicional e compreender quais con-dições necessárias à manutenção de padrões elevados de qualidade e segurança alimentar em restauração. Para inovar, para transformar e actualizar, é preciso, claro, dominar novas técnicas, instrumentos e produtos, mas isso só não basta, tem de estar assente numa base só-lida de experiência e conhecimento. Cozinha molecular, de fusão, pode concitar adeptos e porquê?Não se pode falar propriamente em cozinha molecular, há cozinha de autor, de fusão, ou tecno-emocional, como já lhe chamaram e é como tudo na vida, há quem goste e quem não goste, há quem adore e quem odeie. Há pessoas que gostam da cozinha que determinados chefes fazem, uma cozinha de experimentação com uma base muito tecnológica. Normalmente, são pessoas que gostam de experimentar, gostam do que é inovador e estão muito abertas a novas sensações, procuram-nas e encontram-nas nesta nova cozinha. Mas também há quem odeie… é uma questão de preferência. E gostos não se discu-tem! Também há pessoas que gostam de música erudita moderna e música clássica, e outras apenas gostam de um tipo.Procura inspiração nas cozinhas do mundo? Quais?Estamos num mundo globalizado e muito mais aberto do que há uns anos. Todos os dias nos chegam ao conhecimento novas coisas. Ingredientes que eram usados apenas em certos locais do globo e que estão agora acessíveis no espaço de um clique ou mesmo na loja da esquina. Coisas que nos parecem, agora, tão banais como a rúcula… Há 15 anos ninguém a usava e hoje está em todas as saladas e sandes com vegetais. Ou ingredientes e maneiras de confeccionar que há uns anos ninguém conhecia… Quem tinha ouvido falar de gelatina ve-getal ou agar-agar ou de wok há 15 anos? Esta invasão entra também pela gastronomia dentro, e claro que somos inspirados e influencia-dos por tudo o que nos rodeia.

O fenómeno dos chefes entre nós veio para vencer?Acho que veio para ficar, pelo menos nos próximos tempos. Os che-

fes tornaram-se mediáticos, conhecidos, famosos, são estrelas da co-municação social, entram pela nossa casa dentro…

Porque é que há poucas mulheres no papel de chefe?E se olharmos para outros cargos de chefia, não há também pou-

cas mulheres?! Em Portugal, e não só, há um deficit de mulheres nos cargos de topo. Na cozinha passa-se o mesmo… ser chefe é o topo da carreira na restauração, é também um cargo de chefia, talvez por isso seja um pouco a mesma coisa. Penso que é uma questão cultural e so-cial… mas está a mudar, há uns anos era impensável ver uma mulher como chefe e hoje já temos alguns exemplos como a Júlia Vinagre, ou a Mimi.Já temos entre nós todos os produtos necessários a um desempe-nho que contribua para a evolução da nossa gastronomia?Sim, com certeza. Para já, é possível inovar sem ter de aplicar equi-pamento complexo ou aditivos. Muitas vezes, basta o domínio de um determinado conceito em cozinha para melhorar ou modificar a forma de confeccionar um prato. Quer explicar?Falando de inovação tecnológica e de matérias-primas, neste mo-mento existem disponíveis todas as ferramentas necessárias para pro-mover a inovação e a evolução da gastronomia em Portugal. Não só é possível adquirir o equipamento e os produtos, quer em lojas da espe-cialidade quer via internet (no site de vendas da CookingLab - http://

inspiringingredients.com - por exemplo), como existe formação na área. O mestrado em Ciências Gastronómicas é um exemplo. Outros exemplos são os dos cursos que há para profissionais e os workshops dados pela CookingLab, dirigidos ao público em geral, e não só, sobre as novas matérias-primas e aditivos em que ensinamos os truques e técnicas para usar os novos produtos que há no mercado ([email protected]),.Em que medida é decisivo combinar gastronomia com vinho?É muito decisivo! Da mesma maneira que é decisivo conjugar a mú-sica e as imagens num filme. Comida e vinho fazem parte de um todo, são indissociáveis e, como em tudo, tem de haver harmonia nas combinações. O vinho e a gastronomia têm de servir para se valori-zarem um ao outro sem se desvalorizarem a si mesmos. É um jogo de combinações que tem de ser apurado para que os dois saiam a ga-nhar. Comer e beber são dois prazeres tão grandes, que é importante combiná-los para desfrutar ao máximo de ambos.

NÃO SE PODE FALAR PROPRIAMENTE EM COZINHA MOLECULAR, HÁ COZINHA DE AUTOR, DE FUSÃO, OU TECNO-EMOCIONAL

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Maria Proença dedicou a sua vida ao urba-nismo. Até aos 50 anos, idade com que se reformou. Hoje, aos 72, depois de um per-curso em que passou por revistas e pro-gramas de televisão, lidera, desde 2001, a associação as Idades dos Sabores - para o estudo e promoção das artes culinárias.

No Mercado de Santa Clara, em Lisboa, próximo da feira da Ladra, e em parceria com a câmara municipal, conseguiu um espaço museológico em que os antigos ob-jectos de cozinha são os reis. Ali a associa-ção instalou uma colec ção liga da às artes culi ná rias, com cerca de quatro mil peças, preparando-se para, nos pró xi mos anos, ani mar a zona com aulas de cozi nha, mos-tras de pro du tos, con fe rên cias e outras actividades.

Há, assim, tempo para mostras, sejam elas de chocolate ou de queijos. Tudo para aprender, já que também os livros marcam presença, bem como especialistas em dife-rentes matérias, que ensinam a aproveitar tudo. Produtores e artesãos estão presentes e quase tudo é produto nacional.

Na mostra sobre os objectos utilizados na confecção dos chocolates, há verdadei-ras «vedetas» como uma forma de cerâ-mica alsaciana, do séc. XVIII, de onde saía um cordeiro. Era ainda Páscoa e a alusão ao cordeiro pascal era visível, tanto mais que também havia folares e amêndoas variadas. Mas também é possível apreciar um molde de madeira para bombons, do séc. XIX, em que se utiliza uma tecnologia própria para barrar com óleo, para que o chocolate não aglutine à madeira, e desenforme con-venientemente. E as formas de lata para chocolatinhos…

Na Primavera do Chocolate - Segredos

e Paladares, denominação dada à mostra, patente até 14 de Abril, houve tempo para showcooking e ver artesãos portugueses a meter a mão na massa. Contudo, além das peças de especialidade chocolateira, ali podem ser vistas sempre outras inte-ressantes em termos culturais, como uma chávena dos bigodes, do séc. XIX, e uma trembleuse fabricada em 1644. A primeira, como o nome indica, tem na borda um «su-porte» para que o bigode não entre em con-tacto com o líquido, enquanto a segunda poderia ser descrita como uma chávena dentro de outra, estando a exterior «co-lada» ao pires, o que impedia o balanço e o entornar do líquido.

Maria Proença tem orgulho no espólio, que é seu mas está cedido ao museu. E conta que as primeiras peças foram herdadas da sogra. Depois, na sequência dos trabalhos com a Comunicação Social, e como tinha de fazer a produção dos mesmos, começou a com-prar alguns objectos para contar a história da cozinha e desenvolver programas cultu-rais. «Era a sociologia do quotidiano para integrar a alimentação», comenta. Até que, um dia, descobriu que tinha a casa «cheia de tralha» e sentiu-se no dever de lhe dar um destino «socialmente útil».

«Nunca tive nada a ver com a cozinha. Mas sou de uma geração em que as mães ensina-vam às filhas as artes culinárias. Acabei por gostar, até porque se trata de um processo criativo», conta.

Tendo conhecido outros museus dedi-cados à cozinha, existentes em outros pa-íses, acabou por falar com a professora Raquel Henriques da Silva, directora do Instituto dos Museus, que ajudou ao «nasci-mento», tanto mais que a associação já tem

declaração de utilidade pública e protocolo com a autarquia.

Pelo meio do processo burocrático, a Idades dos Sabores participou em feiras de doçaria e mostras de objectos, nomeada-mente em Monsanto da Beira, produziu DVDs e fez variadas demonstrações. Aliás, finda a mostra chocolateira, segue-se uma de queijos e produtos lácteos, porque «há a necessidade de registar as realidades e dispor de documentos que sustentem e contribuam

As formas são de cerâmica ou de latão. De um tempo em que não havia plásticos nem silicones. Há moldes de madeira e muito mais. Tudo para ver como se faz hoje o chocolate e como se fazia noutros tempos. E há artesãos que mostram como comprar e aproveitar melhor, e livros que ensinam. Sempre a doce tentação.

TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

História com cobertura de chocolate

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para estudos mais aprofundados na histó-ria e cultura da alimentação em Portugal». Além disso, «é preciso conservar o nosso pa-trimónio culinário, defendendo a tradição pelo seu futuro, através do conhecimento mais aprofundado das raízes e dos porquês do passado».

Tudo para ver em horários de museu, todos os dias das 10 às 18 horas, excepto à se-gunda-feira, ali próximo, muito próximo da Feira da Ladra, ao Campo de Santa Clara.

MARIA PROENÇA, A LIDER DA ASSOCIAÇÃO IDADES DOS SABORES

A CHÁVENA DOS BIGODES, DO SÉCULO XIX

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Quando se encontrou no desemprego, Sandra apresentou um projecto ao Instituto do Emprego e Formação Profissional. Pediu o subsídio todo e apostou na empresa Mimos e Manias (www.mimosemanias.pt), para fazer serviços de catering. Há sete anos que sonhava com esse momento. Agora vive--o todos os dias. Foram surgindo as oportu-nidades e a sua grande novidade é cozinhar para pequenos grupos de pessoas que que-rem simplesmente juntar-se à volta de uma mesa e saborear o que de melhor a cozi-nha pode proporcionar, sem se preocupa-rem com a elaboração. Ou, como quando a fomos encontrar, em jantares-surpresa.

«Sempre estive na cozinha. Não a tempo inteiro, mas era uma área que me fascinava. O confronto com o desemprego, abriu-me possibilidade de me dedicar ao que mais amo fazer, cozinhar.» Casada e mãe de dois filhos, a Cláudia de 21 anos e o João com cinco, conta que a mais velha aprecia os seus pratos, enquanto o mais novo se senta num banco alto e a vê a cozinhar. «És muito rá-pida», comenta o garoto que também já quer seguir as pisadas da mãe.

O marido, alentejano de quatro costa-dos, adora comer, mas Sandra adoptou, já há algum tempo, as comidas menos pe-sadas. «Com os cursos que fiz aprendi a

Manias de amigos, mimos de SandraDesde sempre se sentiu bem na cozinha. E cozinhava para todos por gosto e prazer. Secretária da direcção de um atelier de arquitectura, viu-se no desemprego há um ano e entendeu que era também a sua hora de cumprir os sonhos. Sandra Carvalho, aos 43 anos, faz serviços de catering. Mas as «refeições para amigos» são, verdadeiramente, a sua «praia».

TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

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usar mais as natas de soja, molhos de coentros e azeite, e sempre os produtos fres-cos. Dificilmente utilizo congelados». Mas também cozinha para situações especiais, como refeições vegetarianas e sem glúten. Raramente lhe pedem vegan.

No dia aprazado para a reportagem, Sandra cozinhava um jantar para sete ho-mens, todos amigos. Um deles chegava de Moçambique e os outros promoviam um jantar-surpresa.

«Preparo tudo em casa. Vou a casa dos clientes e deixo as coisas prontas. Contudo, se um cliente pede um catering completo tenho de contratar empregados de mesa. Também se o serviço é grande, tenho um parceiro com quem partilho o serviço. Aliás, muitas vezes, é necessário levar todo o ma-terial necessário, tal como toalhas, mesas, cadeiras, loiças, e para isso tenho parcerias estabelecidas.»

Conta que já serviu para 80 e 180 pessoas. E ri ao falar de um casamento para 300 pes-soas de etnia cigana que, afinal, foram cerca de mil. «Era um casamento tradicional em que os noivos tinham 15 anos. Começamos às sete horas e acabámos à meia-noite. A sorte é que o cliente fornecia os ingre-dientes. Nunca cozinhei tanto borrego com batatas como nesse dia». E remata: «Eles chegavam, comiam, andavam e eu cozi-nhava mais e mais.»

Na sala os enfeites eram como manda a tradição: «Mesas repletas de cebolas, bata-tas, tomates, tudo em cru. Este tipo de de-coração significa que, além de tudo o que estava cozinhado, havia muito mais ainda para poder fazer, demonstrando nunca faltar alimento.» Apreciou que os familiares direc-tos do noivo, os homens, não consumissem bebidas alcoólicas, pois eles representavam a ordem no evento, proporcionando o sucesso e passividade da festa, para que não houvesse a desonra da festa e, por sua vez, do próprio nome dentro da comunidade cigana.

Já no jantar que preparava para os sete ami-gos, Sandra serviria Aveludado de Coentros, Rebentos do Mar em Cama de Cogumelos e salada, Tornedó de vitela com molho Mornay, Bailado de Castanhas e Cogumelos e Rolinhos Feijão Verde. «Sempre que posso, evito os farináceos, a batata e o arroz. Dou preferência às leguminosas.» E já tem nas suas ementas chamuças com algas ou legumes.

Quando são grupos pequenos, cozinha em casa e leva tudo pronto, dando os últimos

retoques no local do serviço. Quando é para muita gente utiliza um espaço grande, pró-prio para este tipo de eventos, que lhe foi disponibilizado.

Se lhe surge um cliente, conversa com ele para perceber as preferências e a maneira de ser e estar. Depois sugere pratos, sejam de carne, peixe, entradas e/ou sopas, bem como as sobremesas. Naquele dia, Sandra preparava duas entradas e um prato de carne. Para sobremesa seguia um buffet de doces e frutas que incluía tarte de amêndoa, brigadeiro de chocolate, ananás, morangos e manga.

Muito criativa, Sandra faz ainda os bolos e respectivos enfeites, sendo que os seus trabalhos de massapan já são por demais conhecidos. E desde um disco de vinil com uma mesa de mistura, passando por um alpinista a subir à montanha, já construiu de tudo em matéria de bolos temáticos, incluindo para festas infantis.

Um outra vertente são os salgados que faz para fora. «Há muitas empresas de ca-tering e eu prefiro focar-me mais nas coi-sas pequenas, sendo certo que as cozinho como se fosse para minha casa, com o sabor e a qualidade da cozinha caseira, que não

a industrial.» Só usa azeite nos seus cozi-nhados, ervas aromáticas e mesmo flor de sal. Para a soja tem segredos, mas nunca ninguém se queixou. «Pelo contrário, há quem não goste de soja e coma com grande agrado a que preparo», comenta.

No que concerne aos vinhos, deixa ao cri-tério do cliente, embora possa aconselhar. «Habitualmente, nas casas particulares, as pessoas já têm garrafeiras próprias.» Mas leva o café, até porque entende que «uma boa refeição se deve fechar com um café forte e encorpado».

Sandra Carvalho deixa uma receita de Aveludado de Coentros e Natas: Cozem-se batatas, courgette, cebola, alho (bastante) e um molho generoso de coentros. Deixa-se cozer. Quando estiver cozido e sem ir nova-mente ao lume, junta-se um pouco de co-entros crus. Reduz-se tudo a puré, muito bem batido, para que fique bem aveludado. Emprata-se e, no meio, colocam-se umas gotas de natas de soja e misturam-se com um garfo, suavemente, para que possa criar uma imagem de movimento. Como leva as natas, dispensamos o azeite, para evitar as gorduras em excesso. «Deixar tudo muito bonitinho pois, antes de o nosso palato fun-cionar, existe a nossa visão.»

O jantar estava pronto. Sandra confessa ainda ser uma leitora compulsiva, enquanto o marido é apreciador de jazz. E ri com os comentários dele à sua actividade: «Diz que quando começo a olhar para os tachos até os meus olhos riem…»

QUANDO SÃO GRUPOS PEQUENOS, COZINHA EM CASA E LEVA TUDO PRONTO

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Estava florido o Alentejo. Primeiro destino a Adega de Vila Santa, à entrada de Estremoz, onde é calorosa a recepção e o ambiente condizente. A postos para a prova cega, 23 jurados (entendidos e não entendidos na matéria) irão avaliar diferentes conjugações de 12 vinhos tranquilos e espumantes – do Douro, de Lisboa, de Setúbal e do Alentejo – com a refeição que lhes será destinada. João Portugal Ramos (jportugalramos.com) faz dois em um. Tem vinhos da sua lavra, da cozinha já saem, fumegantes, os pratos de lombo de porco com massa de pimentão e migas de brócolos. Antes, por excepção, um cou-vert, para molhar o pão alentejano em azeite da Casa Anadia com um toque de vinagre Oliveira Ramos DOP - Tejo.

Nada a dizer, senão que estava tudo muito bom, que vale a pena uma visita à Adega de João Portugal Ramos e, se o leitor puder, va-lerá a pena uma visita guiada às instalações e pelas cercanias. A adega é, em si mesma, uma das grandes atracções estremocenses. Por lá se fica quase a tarde inteira, em amena cava-queira. Uns com os outros, com a equipa de trabalho e familiares de João Portugal Ramos.

Quanto às classificações, houve surpresas, como de costume. No fim, verifica-se alguma convergência entre os apreciadores. Não é ta-refa fácil, distinguir as características e quali-dades de um vinho da apetência dele para se casar com este ou aquele prato. Está-se bem em Estremoz, cidade alentejana, na aparên-cia, ainda pouca macerada pelos tempos que correm.

SÃO ROSAS… SENHORJá Alexandra parte para outra visita, outra prova cega, agora ao jantar, vinhos das re- giões já citadas. Acompanhamo-la ao restau-rante São Rosas, quase paredes-meias com a Pousada de Estremoz. São em maior número os jurados, sente-se a presença de muitos profissionais do vinho e da restauração.

Se o espaço é diferente, menor, elegante e simples, mais se sente o calor das conversa-ções, favorece-as a proximidade dos convivas. Um dos que mais se salienta na boa dispo-sição generalizada é o produtor de vinhos Francisco Nunes Garcia. Aliás, é dele a oferta de 25 pombos bravos, ponto de partida para a confecção do arroz que foi a estrela da noite.

Reparta-se o mérito do ofertador com a equipa da cozinha comandada por Margarida Cabaço. «Estava caldoso, cozedura e tempe-ros no ponto certo», considera Alexandra Maciel e todas as vozes são concordantes. Numa só palavra: «Delicioso!». Recolhidas as notas de prova, o pudim de água é

TEXTO CARVALHO SANTOS

Continua de vento em popa a aventura de Alexandra Maciel ([email protected]), de conjugar vinhos e pratos tradicionais portugueses, no sentido de se encontrarem as melhores harmonias. Coube-nos uma jornada de Estremoz a Pavia, da Adega de Portugal Ramos às herdades de Joaquim Arnaud.

Estremoz e Pavia em harmonia

NO SÃO ROSAS IMPERA UM BOM GOSTO, MUITO FEMININO

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igualmente apreciado, ou não fosse espe-cialidade da casa. Entre os dez vinhos apre-sentados, um dos prémios ficou em casa, é produzido no Monte dos Cabaços.

Alexandra Maciel tinha chamado a bonita idade do conhecido São Rosas – 18 anos. «Porto seguro da gastronomia portuguesa, em profundo respeito pela nobreza dos pro-dutos regionais.»

«Somos uma equipa de nove pessoas, incluindo a senhora da limpeza, que é a nossa Zezinha, e a D. Margarida, que é nossa chefe.» A informação de Manuel Morgado, o chefe de sala, é espontânea. Mas ninguém chama chefe a ninguém. Margarida, aliás, deu formação à que é, vai para 15 anos, ope-radora na cozinha e deu-lhe sociedade. É a Fé. Fé para aqui, Fé para acolá… No mercado tradicional ela conhece os pequenos produ-tores, «cada um leva as coisas que tem: as

couves, as nabiças, os cogumelos, o tomate, os espargos bravos, as laranjas e os limões, quase todas as matérias-primas». E faz fé de que no restaurante «não entram enlatados». Enfim, exaltados os trunfos do Alentejo - boa carne, peixe de água doce, depois os poejos, os coentros, a hortelã da ribeira…

AS FLORES DA MARGARIDAMargarida Cabaço é a dona e a alma do São Rosas, desde o lançamento da primeira pedra. Impera um bom gosto muito femi-nino. Toda a decoração resulta num acon-chego, não há recanto sem flores, mesa sem velas ou adereços. «Este espaço remonta ao século XVI», para trás, Margarida não sabe muito, sabe que em tempos remotos era um conjunto de casinhas para as serviçais do castelo.

«E pronto, peguei nisto! Foi um caso

sério alargar e alongar espaços. Alindei-os, respeitando a traça e a arquitectura tradi-cional.» A tijoleira, desenhada à mão, pro-vém do barro do Redondo; trabalhados à maneira antiga, os mármores de Estremoz fazem um vistão; o próprio reboco das pare-des foi implantado à colher, «sem níveis nem esponjas».

A preocupação maior é, segundo a proprie-tária, ter um restaurante, «como se fosse a minha casa de jantar e receber clientes como se fossem amigos e muitos já o são». A deco-ração interior reflecte o que Margarida nos parece ser: pessoa simples, mas determinada, que gosta de comandar tudo, mas sabe dele-gar. «A elegância e pureza, no sentido da liga-ção à natureza», revela-as, tanto nos arranjos florais, como no cultivo de alabaças, beldroe-gas e cardinhos.

De casa, diz Margarida, trouxe móveis

NO RESTAURANTE DE MARGARIDA CABAÇO NÃO ENTRAM ENLATADOS

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antigos, bancos toscos alentejanos com acento de buinho, «planta que nasce à beira dos rios». No tecto, de madeira e tabique, lá está, verificamos, o tradicional alentejano… Dominante é o branquinho da região. «As pessoas, as suas conversas e roupagens é que dão cor ao espaço e aos próprios aromas», sustenta.

Margarida nasceu em Azeitão, há 50 anos, dos seis aos 17 viveu na Holanda. Quando os pais vieram tratar dos terrenos que possu-íam no Alentejo, apaixonou-se pelo campo, casou-se com um agricultor e ficou por cá…

Hoje, dividida entre os vinhos do Monte dos Cabaços e a restauração, com tempo para pintar e musicar, a estrela desta cons-telação passou os primeiros cinco anos na cozinha. Depois, encontrou a sua Fé e recompensou-a. sao.rosas.pmeevolution.com

OS ANIMAIS DE JOAQUIM ARNAUD Estamos em Pavia e é o dia do pintor. Nos coretos, nos jardins, nas ruas - paletas, telas e pincéis por todo o lado… Pequena povoação, já de si agradável, assim pintada mais bonita fica.

O mundo de Joaquim Rebello Arnaud é diferente do que estamos habituados a ver. E não o pudemos ver tanto quanto deseja-ríamos… Razão pela qual nos ficamos pela abordagem de impressões e sentimentos, dele e da sua discreta e eficiente mãe, D. Maria. Temos a intenção de, um dia, voltar e espraiar vistas por campos de pecuária, olivais, montado e de pomares; e de escal-pelizar o ideário biológico do qual só tive-mos uma pequena amostra. Mandavam, sobretudo a prova cega da Alexandra e a expectativa de um manjar também diferente.

Havíamos dormido num apartamento próximo da casa da família Rebello Arnaud. De manhã, quem nos abre a porta é o Joaquim. Tinham de preparar tudo para fazer as honras da casa. Mesmo assim, dão-nos uma ronda pelo casario e um dedo de conversa: «Só transformamos o que produzimos e, atenção, todos os produtos são biológicos.» Azeites, enchi-dos, presuntos, e bife raspado («de carne de porco preto alentejano») não dão des-canso a Arnaud.

Almoço, portanto, na adega, que é nova numa casa em remodelação. Lá fora, ateiam-se as chamas para grelhar as presas de porco preto alentejano a acompanhar com migas de espargos selvagens. Carne suculenta, mesmo mal passada sem perigo de transmissão de doenças. Já não assisti-mos ao lanche onde o apreciado presunto de cura a frio harmonizou com os vinhos a concurso, entre eles, os de Joaquim Arnaud.

«Não vivo em parte nenhuma, só me sento no carro e durmo três horas e meia por dia». É o viajante das grandes trans-formações. Nas suas ausências, D. Maria superintende nas herdades que, nos con-celhos de Mora e de Arraiolos, totalizam 800 hectares. «Vacas, ovelhas e porcos, de raça pura alentejana, circulam livremente, em modo de produção biológica.»

O jovem que se orgulha da sua ascen-dência centenária e nobre, tem amor pelos animais de criação, deixa o montado à larga. «Assim são mais felizes, por isso a carne é mais saborosa.» Ele não entra na casa da matança. «É o ciclo da vida», resigna-se.

À antiga maneira paternalista, a popula-ção de Pavia não será indiferente ao agri-cultor. «Tenho de olhar por esta gente…», diz-nos à despedida. [email protected]

OS ANIMAIS DE JOAQUIM ARNAUD ANDAM NO CAMPO, À VONTADE

PORTUGAL RAMOS RECEBEU-NOS COM GRANDE CORDIALIDADE

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Fez bem ao japonês Midori ter parado para obras. Não que fosse mau de decoração ou que fossem depreciados os pratos de uma cozinha que se mantém na moda, que dia-a-dia ganha adeptos. Retocou o rosto e ampliou espaços.

A primeira coisa que se nota é, obviamente, o ambiente interior, até exterior. Cá fora, uma esplanada coberta, onde se pode tomar uma bebida ou um café, ou jantar, em cadeiras confortáveis. João Moisés, chefe de sala, ajuda por palavras o que os olhos vêem. A cozinha é ae-rodinâmica, praticamente no meio da sala principal e os clientes são frequentemente chamados a participar. A zona dita lounge funciona também como serviço de bar. «Quem queira toma um aperitivo, um digestivo, passa um bom momento.»

De 70 passaram para 110 os lugares, que a procura já justifica. No geral, a decoração é quente, nos tons branco, preto e castanho, sendo que a madeira e a pedra, materiais nobres de construção, harmoni-zam a ambiência. O tecto, guarnecido com grossas cordas de ma-deira, confere ao restaurante um toque de originalidade. A vista é que não mudou, continua imponente, quase dentro da serra de Sintra.

Cláudio Cardoso está agora no seu elemento preferido, a confec-cionar sabores do Japão e a «desvendar segredos» dos rolos de arroz e algas. «Com uma equipa jovem, aberta à descoberta. Alguns vêm

do tempo do chefe João Pinto, outros vão aprendendo, mais hoje do que ontem…»

Todo o receituário vem do Japão. Mas o peixe é da costa portuguesa, preferencialmente dos Açores; os produtos da terra que mais entram nas receitas são portugueses.

Cláudio mete importantes colheradas nacionais no sushi, no sashimi, por aí… O toro fumado com Cohiba e vinho do Porto, o nigiri de wagyu com ovo a cavalo e os croquetes de leitão e caril japonês são novas especialidades a degustar no Midori.

O autor destas linhas comeu pela primeira vez peixe cru sem franzir a cara e, que remédio, foi obrigado a aderir aos dois pauzinhos… Foi difícil, não deixou de ser agradável.

Aqui ficam outras especialidades da casa: selecção de aperitivos (toro fumado, azeitonas, salmão marinado); sunomono de perdiz com laranja e frutos secos; selecção de sashimi dos Açores; gyosa de sésamo; tempura portuguesa; usuzukuri de toro, cebola assada, par-mesão e shisô; selecção makimono (enguias, manga, pina colada).

Estrada da Lagoa Azul, Sintra - Linhó 2714 - 511, PortugalTelefone: (351) 21 924 9011, Fax: (351) 21 924 9007

Arola imperialMidoriO Midori mudou. De cara e de carta. Já por lá passaram muitos chefes de cozinha, agora está lá o jovem Cláudio Cardoso. O mesmo que mudou coisas no Il Mercato. Mas a equipa do Penha Longa é extensa, sob a auréola do chefe Arola.

TEXTO CARVALHO SANTOS FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

A COZINHA É AERODINÂMICA, PRATICAMENTE NO MEIO DA SALA

CLÁUDIO CARDOSO NO SEU AMBIENTE PREFERIDO

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Partimos de Mogadouro no dia 22 de Abril, já pela nova IC5, rumo a terras de Miranda do Douro, para compor mais uma repor-tagem para a EPICUR. Os dias anteriores foram um pouco chuvosos, pelo que receá-vamos um tempo bastante cinzento, senão mesmo com aguaceiros. Ao longo do novo percurso pelo Planalto Mirandês, olhando para a nossa esquerda, avistávamos a Serra da Sanabria (já em Espanha), coroada com uma linda camada de neve. É sempre um espectáculo lindo de se ver. Fomos disfru-tando do belíssimo Planalto Mirandês, até chegarmos a Vale de Mira, onde nos foi pro-porcionada uma bela e pausada panorâmica da cidade mirandesa.

Chegados a Miranda do Douro, percorre-mos as estreitas e históricas ruas, onde pu-demos constatar que o património edificado está muito bem conservado. Além de ser o único concelho do país onde se fala a lín-gua mirandesa, esta cidade fronteiriça tem

um centro histórico perfeitamente conser-vado, não adulterado e, como se diz num folheto da Câmara Municipal local, «acima de tudo um centro histórico vivo, onde por trás de cada fachada se vive, há comércio, há gente, há pulsar, há progresso e há moder-nidade». Em Miranda do Douro preserva--se todo o património: desde o artesanato à gastronomia e mesmo à própria língua mi-randesa, como se refere no supracitado pan-fleto, o mirandês: «Não é Português nem Castelhano, e muito menos uma mistura das duas línguas. Em Miranda sempre se falou assim, e agora volta-se a escrever o Mirandês, que sobreviveu ao tempo e às mudanças da vida moderna.»

Dando um passeio pela cidade, desta-camos, entre outros, os seguintes locais a serem visitados (quase obrigatoriamente): as ruínas do velho castelo (a povoação me-dieval de Miranda do Douro cresceu, sobre-tudo ao longo do século XIII. D. Dinis teria

construído o castelo e também promoveu a construção das muralhas desta 'vila nova'. O castelo propriamente dito, terá explodido num dia de Maio de 1762, em que Miranda enfrentava as forças espanholas, daí só res-tarem ruínas); a Sé Catedral (onde está o célebre Menino Jesus da Cartolinha); as ruínas do paço Episcopal; o Museu da Terra de Miranda (localizado no centro histórico de Miranda do Douro, o Museu da Terra de Miranda integra um conjunto de diversos espaços de cultura e de património relevan-tes da cidade. (…) Além da exposição perma-nente o museu dispõe recorrentemente de exposição temporárias e de um serviço edu-cativo com forte interacção com as comu-nidades), como se diz num folheto; a rua da Costanilha com casas que datam desde o sé-culo XV; junto ao supracitado museu, a pai-sagem do rio Douro no excelente miradouro da Sé Catedral. Deste miradouro avista-se a célebre Pedra Amarela: «Espanhola por estar

TEXTO ANTÓNIO PIMENTA DE CASTRO FOTOS ANTERO NETO

Mirando o Douro

ANTÓNIO GRANJO, GERENTE E PROPRIETÁRIO DA ESTALAGEM

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na margem de lá, portuguesa por serem os portugueses os olhos que a vêem com maior proveito.» (Viagem a Portugal, de José Saramago) Nesta Pedra, há uma cor amarela, onde está bem impressa o algarismo 2, feito pela Natureza. Diz a tradição que quem não o vir (que se vê perfeitamente da Estalagem de Santa Catarina, ou do miradouro da Sé) e estiver solteiro, casa, mas for casado e não o vir, é porque está a ser… enganado.

Convidados a degustar a excelente gastro-nomia mirandesa, não escolhemos a posta, sobejamente conhecida, antes preferimos o bacalhau. Não só porque estava a decor-rer a tradicional Semana Gastronómica do Bacalhau, mas também por ser um prato de excelência, não só para os portugueses mas, sobretudo para os nossos irmãos do outro lado da fronteira. De facto, os espanhóis vêm, sobretudo ao sábado, comprar e degus-tar a nossa gastronomia. O local escolhido, não podia ser melhor: a Estalagem de Santa Catarina. Porquê? Como diz o folheto da própria Estalagem: «A Estalagem de Santa Catarina (com a denominação Pousada Santa Catarina, até 2002) encontra-se estra-tegicamente situada. Da entrada, observa--se a cidade histórica. O interior e varandas vivem intensamente a natureza. A paisagem é deslumbrante…o rio Douro, as arribas e seus penedos, a albufeira lá no fundo, o pla-nar do voo das águias e abutres ali mesmo, de frente. Situada em pleno Parque Natural do Douro Internacional, terra dos famo-sos Pauliteiros de Miranda e gaitas de foles, Miranda conserva uma língua própria e ofe-rece um conjunto de festividades populares, danças e costumes peculiares, tradições e costumes únicos no país.»

A equipa da EPICUR foi principesca-mente recebida pelos seus donos, António M.V. Granjo e a mulher, Jesuína Maria Neto Granjo.

A sala de jantar tem uma decoração só-bria, um ambiente requintado, música tra-dicional de bom gosto, que torna agradável

o ambiente com os móveis originais e uma vista verdadeiramente deslumbrante. A sala é decorada com lindos azulejos de Júlio Resende, datados de 1952.

A refeição foi assim servida, nas entradas: alheira e chouriça assadas, queijo da região, salpicão, paté de atum e presunto da região. Os vinhos escolhidos foram da região: o pri-meiro foi um tinto DOC de 2006 Reserva, denominado Ribeira do Corso, CVRTM (Comissão vitivinícola regional de Trás-os-Montes), produzido pela Cooperativa Ribadouro (de Sendim) e o segundo vinho degustado foi outro vinho tinto, curiosa-mente também de Sendim (Miranda do Douro), DOC, produzido e engarrafado por José Francisco Lopes Preto (VQPRD). Gostámos bastante dos dois vinhos prova-dos. Prato: escolhemos um bacalhau de ce-bolada delicioso a que o meu amigo Antero Neto chamou, com toda a propriedade, um

verdadeiro festival de sabores. Como já se referiu, os espa-nhóis todos os sábados visitam Miranda do Douro e comem ou a posta, ou o saboroso ba-calhau, como só os portugue-ses o sabem fazer. De destacar o serviço impecável e simpá-tico do empregado de mesa, Victor Porto. A receita para este prato foi-nos dada pelo chefe Armandino Pires, nas-cido em Duas Igrejas (conce-lho de Miranda do Douro e que, curiosamente, foi meu aluno quando fui docente de

História em Sendim). Eis a receita: a posta de bacalhau deve ser demolhada, e poste-riormente frita; fazer uma cebolada; colocar a cebola num recipiente de ir ao forno, so-brepor a posta de bacalhau e nova camada de cebola. A cobrir, leva um creme (uma espécie de maionese, feita pelo chefe); e finalmente, levar ao forno até gratinar. Empratar com batata cozida, fatiada às rodelas (que foram ao forno a altas temperaturas), decorar com coulis de pimentos e salsa. Uma verdadeira delícia. As sobremesas são variadas, com destaque para a Bola Doce, que é uma das sobremesas mais tradicionais de Miranda do Douro. Receita: massa de pão, adicio-nar ovos, margarina e azeite (de preferência transmontano). Essa massa tem que se divi-dir em sete partes (a primeira é a maior na medida em que vai forrar o tabuleiro). Entre cada camada, junta-se açúcar e canela (mis-turadas), por fim a última camada deve pol-vilhar-se só com açúcar. Levar ao forno (de preferência a lenha) com o tempo a gosto. Parabéns ao chefe Armandino Pires, estava tudo excelente. Comendo e mirando os azu-lejos de Júlio Resende, o Douro lá ao fundo e a Sé, foi um banquete abençoado pelos deuses. Os telefones da Estalagem de Santa Catarina são: 273 431 255 e 273 431 005. Para acabar o dia em beleza, aconselho-vos a dar um passeio no Cruzeiro Ambiental, onde podem observar a fauna e a paisagem deste Douro sem igual e no final degustar um bom vinho do Porto. Boa viagem e visitem Miranda do Douro, o Planalto Mirandês e, em suma, este lindo Trás-os-Montes. Cá fi-camos à vossa espera!

OS ESPANHÓIS VÊM SOBRETUDO AO SÁBADO, COMPRAR E DEGUSTAR A NOSSA GASTRONOMIA

ALBUFEIRA DA BARRAGEM DE MIRANDA DO DOURO, VISTA DA VARANDA DA ESTALAGEM DE SANTA CATARINA

PAÇO EPISCOPAL DE MIRANDA DO DOURO

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Mais do que ninguém, como nenhum outro, o leitor sabe como o comer – o prazer e o luxo de comer, a riqueza e o requinte da mesa – anda tão intimamente ligado à festa, aos dias de excepção que, de tanto em tanto, ressaltam na vida repetida e quantas vezes escassa que marca, ritma o nosso quotidiano, o dos homens comuns. Até (ou sobretudo) para aqueles que se situam, incomummente, fora dos seres modestos que somos. Para todos aqueles, desde logo, que, ao longo da História, poder e riqueza colocaram acima da mediania que, aos mais dos humanos, nos envolve.

E é justamente, pois, mergulhando na profundeza da História, que vamos agora, quase quatro séculos mais tarde, penetrar num dos decerto muitos momentos de poder e glória que viveram um e outro dos senhores inquisidores que vemos mencionados num auto de fé realizado em Lisboa, a 18 de novembro de 1646. Os três, os se-nhores Álvaro Soares de Castro, Manuel de Magalhães de Meneses e Mateus Homem Leitão. Todos três que, acolitados por demais membros do Santo Ofício (deputados, notários, promotores, soli-citadores, pregadores e demais padres, alcaide, meirinho, guardas e oficiais vários…), se haveriam de banquetear, instalados num alto palanque, vamos imaginar que erguido no Rossio ou no Terreiro do Paço de Lisboa. Ao mesmo tempo que, durante todo o santo dia, desde manhãzinha, iam desfilando perante si os penitentes – desta vez eram 115 – sentenciados pelos mais variados «crimes».

Antes de mais, as acusações e sentenças que lhes tinham imputado deviam-se à prática do judaísmo. E havia ainda condenados por feiti-çaria, por atentados vários à ortodoxia vigente, por sodomia, etc., etc.. Desfilavam também alguns réus apenas em retrato, em efígie (ou por ausentes em parte incerta, ou por desaparecidos…). A outros, entre-tanto falecidos, passeavam-lhes os ossos, para agora lhos queimarem. E havia os mais infelizes, os relaxados (eram 12) pelos senhores pa-dres ao braço civil, que, garrotados ou vivos, iriam ser queimados, in vivo, perante as autoridades religiosas e civis, família real incluída. O bom do povo miúdo, esse desfrutava do macabro espetáculo. Ululava

O bicho humano tem destas coisas: sofrimento e prazer viajam lado a lado, interpenetram-se, coexistem. Enquanto no terreiro des�lavam os penitentes e nas fogueiras se esturravam os réus relaxados, os senhores inquisidores e mai-la sua reverenda companhia estraçalhavam galinha e peru assado, debicavam alcorça e manjar branco.

FERNANDO-ANTÓNIO ALMEIDA

Passado gastronómico

doces de comerGente de queimar,

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e clamava contra os condenados: «Façam a barba a esses cães! Façam a barba a esses cães!» Barba feita, claro está, com folhas de labaredas, com navalhas de tições ardentes.

Enquanto isto, os reverendíssimos inquisidores e demais séquito, sem alçarem olho do terreiro, banqueteavam-se. E com que se com-prazia o palato dos senhores eclesiásticos, nesse santo domingo de 1646? Com quê? Pois vamos à ementa e ponhamos ordem – a nossa ordem – nos comeres ementados no documento que temos debaixo dos olhos. Se entradas houve ao repasto, se não as houve, não o sa-bemos. Por isso vamos diretamente aos peixes. Aí os temos desfi-lando: salmonetes, safios, abróteas, taganas (tainhas ou fataças), mugens e sardinhas (estas, por exemplo, feitas empadas – envoltas na massa de farinha, azeite e adubos ou temperos – mais para os guardas comerem).

Agora as carnes, começando pelas tão apreciadas aves: perus pron-tos a serem assados, com as demais aves, «no forno dos pastéis» (manipulado pelo cozinheiro do senhor D. Rodrigo – creio – de Melo, o senhor deputado), galinhas (para os senhores inquisidores, para os senhores notários e, decerto, para outros senhores reveren-dos); mais tenros, frangos e frangas; e mais quatro gansos, mas dos mansos. De outra carne, posta à parte a passarada de voo raso, apa-rece-nos agora o tímido coelho, logo seguido do prestigiado car-neiro, que também havia de fazer-se em tortas, e mais a marrã, o porquinho, talvez o leitãozinho assado. E, já mais ligados aos ingre-dientes, aos adubos, vinha o toucinho, a manteiga, os ovos, ingre-dientes para as tortas.

Mas o forte do jantar está para vir: faltam as gulosas doçarias. Aqui vêm elas, em ordem arbitrária de gulodice: abóbora coberta; mar-melada em talhadas, bocados e caixas; escorcioneira (planta de raiz comestível) ralada; perada (de pera), cidrada (de cidra) ralada; ma-çapães brancos e de ovos reais; ovos reais de alforge (?); caroucos (caroços?) de alcorça (massa de farinha e açúcar) recheados; man-jar branco (leva peito de galinha desfiado, leite, açúcar, farinha de arroz; mas há mais variedades, mesmo com lagosta…); manjar real (galinha, pão ralado, amêndoa e açúcar); confeitos vários...

Para desenjoar – desenjoar da doçaria, que não do tórrido espectá-culo – os reverendíssimos inquisidores, os irmãos jesuítas e, talvez

ainda, os manos dominicanos (os pioneiros da Santa e Sagrada Inquisição), servia-se a fruta. Vinham as peras de conde, as peras bergamotas e as peras marquesinhas; as maçãs de capela e as maçãs rainhas, estas já mais democraticamente repartidas pelos esbir-ros menores da prestigiada instituição. E chegava sempre a vez ao vinho. Ao fazer das contas foram 13 as canadas (à volta de dois litros cada) e mais um quartilho; mas isto, abone-se, para os 15 dias de preparo do auto, que, duas semanas antes da função, os oficiais su-avam já as estopinhas.

OS REVERENDÍSSIMOS INQUISIDORES, SEM ALÇAREM OLHO DO TERREIRO, BANQUETEAVAM-SE

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Os três primeiros meses do ano passaram, com muita chuva envolta na atmosfera cinzenta típica deste norte europeu. A Primavera surgiu e, em simuntâneo, a ânsia de começar um novo projecto ou realizar uma viajem previamente programada.

Usufruindo, mais uma vez, das viagens low-cost, fácil e popular meio de comunicação dos dias de hoje entre várias cidades europeias ou-trora isoladas, resolvi visitar Ravena, uma cidade italiana cuja história e arquitectura fez parte de muitas das minhas aulas de História de Arte enquanto estudante.

Situada no nordeste italiano junto à costa do Adriático, esta cidade já foi capital do Império Romano e mais tarde constituiu o centro do Império Bizantino em Itália. O seu legado é notável em muitas das

suas igrejas e outros monumentos religiosos, como por exemplo a Basílica de San Vitale, de forma octogonal, declarada Património da Humanidade, pela Unesco, e um dos mais antigos exemplos de arte e arquitectura bizantina do oeste da europa.

Grande parte do seu interior está decorado com milhares de colo-ridos mosaicos que, como se fossem gotas de tinta, vão formando, ponto a ponto, desenhos que fazem parte de composições comple-xas, alegóricas de episódios bíblicos. Por toda a cidade vão-se en-contrando, na arte e na arquitectura, testemunhos riquissimos da história.

Na Basílica de São Francisco encontra-se sepultado o grande poeta Dante, que nos deixou uma das maiores obras épicas de literatura

Em �nais de Primavera, Miguel de Almeida parte à descoberta de uma das cidades mais importantes da história do Império Romano. Da sua história e da sua gastronomia.

TEXTO E IMAGENS MIGUEL DE ALMEIDA

Ravena: a anciã capital italiana

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mundial, A Divina Comédia. Foi também nesta cidade que Lord Byron escreveu Don Juan.

Ravena está geograficamente situada na província italiana de Emilia Romagna, um dos mais importantes centros gastronómicos de Itália. Uma região que se caracteriza pela agricultura e abundante riqueza dos seus produtos e que, de alguma forma, me relembra o li-toral norte de Portugal, de onde eu sou proveniente. É desta região que é exportado o queijo parmesão (parmeggiano reggiano) e o doce vinagre balsâmico da cidade de Modena, aqui chamado simples-mente de Aceto Balsamico. Foi também aqui, nas cozinhas de famí-lia, que surgiu um dos mais conhecidos pratos italianos, o Spaghetti Bolognese, a famosa pasta de ovo servida sob um molho apurado de tomate e carne, e cuja receita original exige quatro horas de apura-mento ao lume.

Como entendo que qualquer viagem não fica completa sem experi-mentar as delícias culinárias locais, ao meio do dia, o almoço é a parte da viagem destinada a percorrer os caminhos de outros sentidos, o trilho do paladar, a vereda do gosto.

Como entrada experimento a local Piadina ou Piada. Um pão es-palmado, confeccionado originalmente na tradicional teggia, um prato redondo feito de terracota e que é servido juntamente com um leque variado de salami, queijos curados e compota de figo. Um prato substancial das gentes do campo de origem greco-romana. E

continuo «caminhando» pela gastronomia local. De primi, o tradi-cional prato de massa. A tagliettele al ragu, receita original hoje adap-tada a spaghetti al bolognese. Arabescos de massa amarela e al dente por onde um molho grosso de tomate e loureiro escorrega até ser tra-vado pela minha colher e o meu garfo. Tudo isto saboreado por entre copos de bom vinho Sangiovese di Romagna, «o sangue de Júpiter», cuja robustez representa perfeitamente a etimologia deste tipo de uva e que o casa perfeitamente com pratos fortes. Para finalizar este fes-tim, uma fatia de torta di mandorla, feita com o mais fofo dos queijos ricotta e com o licor italiano de amêndoa, o amaretto.

O ubíquo café finaliza o almoço e inicia mais uma tarde de des-coberta. Desta vez para o mar. Sim, porque embora situada a sen-sivelmente 15 minutos de distância da praia, Ravena é uma cidade costeira, que abraça o Adriático através de um canal navegável e que ao longo dos séculos conectou a cidade com as riquezas provenientes do Oriente. E junto à praia, embora ainda satisfeito com o recente al-moço, não resisto a mais um doce: um semifreddo, feito com gelado local. Por fim sento-me na areia fina da praia, pensando que por de-trás do horizonte se encontram os Balcãs e outros retalhos geográfi-cos sarapintados pela costa e que gradualmente nos aproximam do exotismo de leste e do médio-oriente. Mas já são temas para outras descobertas.

E não é este afinal o fadário português?

UMA VIAGEM NÃO FICA COMPLETA SEM EXPERIMENTAR AS DELÍCIAS CULINÁRIAS LOCAIS

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Ao largo de Barcelona, a cerca de 30 minutos da grande urbe, er-guem-se os campos vínicos da região de Penedés, dali até à fronteira francesa, em linha recta, são escassos 100 quilómetros. Estamos no coração de uma região de espumantes, alguns seculares, e por lá são incontáveis as cavas, referem-nos cerca de 200, é obra. Cava, antes de mais, é a designação de uma adega subterrânea onde pernoitam os espumantes, galerias infindáveis, como sabe ser a história Juvé y Camps, um total de três milhões de garrafas por ano.

Visitámos a Juvé, uma das mais engalanadas casas de espumante da Catalunha, história pujante de mais de um século de labuta, vai na terceira geração. Na roda das castas, nomes intrincados para o nosso

linguajar, Macabeu, Xarel-lo, Parellada, são as autóctones, para com-por ainda com o internacional Chardonay, as primeiras designadas dão corpo de substância aos produtos da casa. O resto, que é muito, nesta faina linda, é a selecção a preceito dos cachos, só os que apre-sentam melhores condições é que valem, a par de um controlo de qualidade sem máculas, nós espreitámos a valer. Aos copos, entramos com o esplendor da cava, um reserva da família Juvé, bolhas persis-tentes, acidez bem compensada, tanto que impossível era distinguir… fosse prova cega com os mais glamorosos champanhes franceses.

Ao nosso lado um cortejo de cicerones de respeito, o patrão Juvé, o director comercial Mariano (ver peça em destaque nestas páginas), o

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

Dizeres do espumante catalãoAo fundo a imponência da Sierra de Montserrat, por trás os alvores de França. Estamos em Penedés, Catalunha, onde se acoitam cerca de 200 cavas. A reportagem embrenha-se numa das mais emblemáticas, Juvé y Camps. Prepondera uma terceira geração de família. Nunca �zeram publicidade e foi no boca-a-boca que passou a notoriedade dos seus espumantes.

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enólogo Antoni e o viticultor Josep, mais tarde juntar-se-ia a jovem Meritxell Juvé, o futuro da mansão, nova geração assegurada. Num domínio que se concentra numa parábola expressa por Juvé, tiro cer-teiro, «um empresário não pode ser fanático de nada».

No senhor que se segue na degustação, aí está o Brut Rosé, para a ardósia 100 por cento Pinot Noir, outra casta a juntar às já citadas. É Antoni que entra: «É um reforçar da parte central da cava, jogar para ter produtos originais, designadamente vinhos fáceis, fazer coi-sas muito distintas, num mundo de imensas possibilidades.» Embora

ninguém enjeite uma questão importante: o espumante precisa de ser explicado. A ver, a questão dos açúcares… Se espumante é zero de açúcar, como são a maior parte dos Juvé, noutros a média incor-porada não passa de seis ou oito. Promessa de escuteiro do viticultor Josep, «estamos em relação a todas as cavas bastante abaixo dos açú-cares finais».

Sinal de um tempo diferenciado, a Juvé y Camps atingiu um plano de conhecimento invejável… Sem nunca se socorrerem da publici-dade, seja ela qual for, tudo assenta no lastro de serem reconhecidos a partir do velho método de passar de boca-em-boca. Mariano usa mesmo uma imagem em abono do impacto: «Suscitamos o carácter romântico dos espumantes, uma imagem de glamour, que tem ex-poente no cinema, como nos filmes do James Bond, por aí fora». De resto, pelo efeito boca-a-boca, a que por norma só o que é bom passa, facto é que 68 por cento do mercado espanhol é seu. E espumantes a preços médios de 12 euros. A Juvé comete ainda a façanha de om-brear com as vendas dos champanhes franceses em Espanha, 50 por cento para cada parte. De marosca em marosca, um semblante de estalo para triunfar também nas vendas… Com 100 vendedores a palmilharem toda a Espanha, uma ordem está estabelecida: todos eles têm subsídio de refeição para comerem numa mesa dos restau-rantes onde vendem os néctares. «São os nossos melhores relações--públicas», segundo o ditame do patrão Juvé.

A Juvé embandeira em arco na caterva de exportação em precisos 40 países, lá vão cerca de 500 mil garrafas. Ao alto estão os Estados Unidos, na peugada, Japão, China, Rússia, roda, roda. A juntar ao ramalhete, a Juvé ocupa-se ainda de uma outra empresa que repre-senta inúmeros vinhos estrangeiros, entre eles possuem o exclusivo de venda em Espanha do nosso Noval. Ou seja, timbre também as-sente naquilo que transpira qualidade. Toma lá, toma cá, há cerca de três anos que a Juvé passou a exportar os seus vinhos até nós, um dos poisos certos é no Corte Inglés, a generalidade da distribuição está a cargo da empresa Garcias.

Mas o espumante, embora seja o cofre-forte da empresa catalã, não esqueceu os vinhos ditos de mesa, brancos e tintos. Produções incomparavelmente mais pequenas, os brancos escalam as 50/60

«SUSCITAMOS O CARÁCTER ROMÂNTICO DOS ESPUMANTES»

ANTONI, O ENÓLOGO

MERITXELL E O PAI JUVÉ

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mil garrafas, os tintos equivalem a 200 mil. É uma parcela pequena e quando se refere o arcaboiço dos seus 450 hectares de plantio, onde o espumante é rei. Numa palavra, os brancos evidenciam notas de grande elegância, dominando pelo seu carácter gastronó-mico, nos tintos sobressaem boas estruturas, com final de boca a preceito.

Para a contenda com os champanhes, uma honraria a que não é alheia, a Juvé passa pelo seu Brut Nature reserva de família… Alvíssaras na condição de líderes mundiais do néctar em causa. «Os franceses estão a tentar fazê-lo», pirraça do patriarca. Se quiser che-gar ao Nature, é desembolsar 14 euros, e muito bem empregues.

Deixamos a ombreira da porta da Juvés e detemo-nos num es-crito… «A família Juvé y Camps funda as suas centenárias raízes no coração dos vinhedos de Penedés. Geração atrás de geração tem sabido extrair da terra jóias em bruto para as transformar em ex-traordinárias cavas, como se de pedras preciosas se tratassem. Um tesouro que se cultivou com esmero, até chegar a excelência. Assim o testemunha o equilibrado portefólio de cavas e vinhos que, com orgulho, pomos nas suas mãos.»

Vale bem a pena a visita, contudo está condicionada a grupos de dez pessoas e requerendo marcação prévia, só possível durante os dias úteis.

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À nossa frente posa Mariano Fuster, um indómito do espu- mante. Há 30 anos que é o embaixador das cavas Juvé y Camps (www.juveycamps.com) nas partidas do mundo. 70 por cento da sua vida a deambular pelo estrangeiro. É um espólio, uma vida de formiguinha incansável, que dei-xa um repositório de conhecimentos gastronómicos e ví-nicos de alto coturno. A conversa corre os seus termos. O conceito de vinho espumante está em alta?Sim, a variedade de vinhos espumosos no mundo é enor-me, e feitos praticamente em todas as zonas produtoras de vinha. São adegas que elaboram vinhos de esta cate-goria com mais ou menos fortuna e com distribuição por vezes muito local. Inclusive, desde há poucos anos, países como Inglaterra e o Estado do Texas, nos Estados Unidos da América, também os produzem. O que está muito cla-ro e definido é que, basicamente, todos os espumantes têm «nome próprio» devido às suas estritas regulações de produção e qualidade, que fazem deles líderes no mundo dentro da dita categoria. Estou a falar de cava e de cham-panhe. Com o mesmo sistema de elaboração e processos similares fazem de ambos os vinhos produtos únicos no mercado.Espumante ou champanhe, não há diferenças?Ultimamente, as comparações de ambos os produtos são constantes, tanto em termos de comunicação como nos locais de venda e em reuniões informais entre amigos. Ambos são excelentes vinhos e podem casar praticamen-te com tudo, representando um extra de alegria ou cele-bração, que é inerente às borbulhas, e é muito difícil de valorizar, que, ou qual tipo, é melhor, se quisermos ser re-almente objectivos.Sem entrar nessas valorizações, o que está absolutamen-te claro é que a cava tem um futuro muito brilhante no mundo, e não só pelos comentários que faz o guru dos vi-nhos, Robert Parker, que escreve incessantemente, desde há alguns anos, as características da cava em si: ligeiro, baixa acidez, completo e/ou fresco segundo o envelheci-mento em garrafa e que tem ainda o seu muito acessível preço final em lojas ou restaurantes. Em abono da gastronomia, boleia que se apanha, não é?Claro! Também influi muito positivamente a tendência mundial de uma gastronomia que, possivelmente, num primeiro momento, se pode denominar mediterrânea e que agora se conhece mais como fusão, em que intervêm influências de países asiáticos e sul-americanos, basica-mente quando as matérias-primas se trabalham de forma mais delicada e com mais participação de produtos do campo e do mar. Por experiência, viajando ao redor de 70 por cento do meu tempo por todo o mundo, podendo degustar e des-frutar de infinitas combinações de culturas gastronómi-cas, posso assegurar que, na maioria dos casos, um casa-mento com cava é único, especialmente se for com um Gran Reserva Brut Nature, no qual podemos apreciar to-das as características de um longo estágio criança e ao mesmo tempo a ausência de açúcares adicionados que mantêm o paladar muito mais vivo e receptivo para pra-tos que se vão degustando.Há bastantes anos, no Japão, país que em muitas coisas é pioneiro no mundo, começam a ver-se, em restaurantes de sushi dos mais correntes ou simplesmente de bairro, mulheres de uma idade já avançada consumirem vinho que partilham com chá verde, nos seus almoços, o que por um lado me surpreende e me fez investigar um pouco as razões. Estas eram muito claras, ou seja, os benefícios da dieta mediterrânica, vinho e azeite, já que nessa época houve uma muito forte campanha de consciencialização sobre o consumo de licores e as bondades do vinho nessa dieta.Já mais recentemente, esses vinhos, que então eram basi-camente tintos, passaram também a brancos e sobre to-dos eles os espumantes. Apesar de que em muitos países ou zonas produtoras de vinho o consumo prioritário é o

dos elaborados nessas regiões ou estados, a qualidade e categoria das cavas e champanhes mantêm uma partici-pação de mercado muito alta, o que reforça a ideia de que a implantação desses produtos no mundo se está a con-solidar de uma forma constante.Sobre o binómio vinho/gastronomia, o Mariano é fã do Peru, como diversos chefes portugueses são… Que ra-zões a juntar?Sou e tento explicar, para ganhar mais adeptos para a causa… Sobre a implantação de que falei antes e incre-mento de vendas e consumo, é vista de forma notável na-queles países em que a gastronomia se desenvolve mais rapidamente. Um exemplo claro e que leva uns anos, de-monstrando esse complemento de vinhos de qualidade e boa cozinha, é o Peru, provavelmente um dos países com uma das cozinhas mais criativas e completas da gastro-nomia mundial actual.E a China também tem o seu relevo?Segundo a minha opinião, e num futuro próximo, uma das cozinhas com mais possibilidades de desenvolvimento, e com um futuro brilhante para os vinhos, é a da China, com todas as suas variedades regionais ou locais, que são infi-nitas, e com um valor de qualidade que ainda, e agora, só se encontra neste país asiático, já que, lamentavelmente, no exterior, a sua cozinha é sinónimo de preços baixos, carta muito previsível e uma qualidade média. Na China, considerando os seus hábitos de consumo de licores, a sua forma de bebê-los, que não degustá-los, e a influência cada dia mais forte de consumos e hábitos ocidentais, for-maram um mercado de consumo não só de quantidades impensáveis, mas também de associação de excelente e criativa gastronomia com casamentos que podem ser muito interessantes. De novo ali as cavas têm um futuro brilhante, não só pela sua capacidade de casamento, mas também pela forma de desfrutar de uma verdadeira ter-túlia de epicuristas em todo o país, tudo na mesa dos co-mensais, normalmente muitos na mesma mesa, provando os distintos pratos expostos em toda a sua variedade de verduras, mariscos, peixes, carnes de distintos tipos, etc..

Muito mundo tem Mariano

NOMES INTRINCADOS PARA O NOSSO LINGUAJAR, MACABEU, XAREL-LO, PARELLADA MARIANO FUSTER

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As explicações sucederam-se nas instala-ções da produtora de vinhos do Porto e Douro, com 255 anos de actividade inin-terrupta, até para se perceber, por exem-plo, como um Outono mais seco de sempre provocou uma diferença nos fungos, ou como a temperatura e a água nas mesmas castas acabam por dar vinhos diferentes, dependendo da altitude a que são criadas. Ficou aqui o exemplo de Alijó e S. João da Pesqueira que, com situações geográficas parecidas em termos de solo, têm águas diferentes. A propósito, foi lançado: «Um

factor interessante é saber se o Douro tem personalidade própria ou se outras castas se sobrepõem à região?»

E registe-se, como curiosidade que o Fernão Pires, a casta mais plantada e difun-dida em todo o país, foi classificada como «fácil, precoce e produtiva, sensível às ge-adas, mas que não é difícil de trabalhar». Todavia, Pedro Silva Reis acentuou que as diferentes características dos solos permi-tem que no Douro atinja os 6/7 graus de acidez, enquanto no Sul andam à volta de quatro».

De salientar que a Real Companhia Velha está a desenvolver um programa de experi-mentação vitivinícola, que vai desde o cul-tivo da vinha à selecção de castas. Assim, a empresa que descende directamente da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, criada pelo Marquês de Pombal em 1756, quer prevenir um fu-turo em que as alterações climáticas pos-sam impor condições de cultivo muito mais gravosas.

Esta é uma prática que diversas casas durienses estão a seguir há vários anos,

Real Companhia Velha deu-se à provaFoi uma Prova Didáctica de Castas Brancas e Tintas. Para aprender tudo o que a Real Companhia Velha (RCV) está a fazer com 18 castas brancas e sete tintas. Os professores? O responsável de viticultura das Quintas dos Aciprestes e de Cidrô, Rui Soares, o director de enologia da empresa, Jorge Moreira, e o presidente da RCV, Pedro Silva Reis.

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promovendo experiências com varieda-des que frequentemente povoam outras latitudes.

O presidente da RCV defendeu ainda que se façam coabitar diferentes castas para fazer vinhos mais completos e que ficam bem. Mas, por outro lado, acentuou: «A de-signação Douro já é muito forte, mas seria mais fácil se conseguíssemos impor uma só casta.»

Das castas brancas estiveram em apre-ciação Alvarinho, Arinto, Boal, Códega, Encruzado, Viosinho, Fernão Pires, Cercial, Verdelho, Touriga Branca, Rabigato, Moscatel Otonel, Moscatel Roxo, Moscatel Galego, Viognier, Chardonnay, Sauvignon Blanc e Gewürztraminer; das tintas foram Malvasia Preta, Cornifesto, Rufete e Tinta

Francisca, Touriga Nacional, Alicante Bouschet e Sousão.

A iniciativa da RCV surgiu no âmbito da experimentação vinícola que está a ser le-vada a cabo, desde o cultivo da vinha à se-lecção de castas, efectuada por uma equipa de agrónomos e enólogos, com o objectivo dar a conhecer a variedade de castas traba-lhadas, tanto do ponto de vista da preser-vação e recuperação de castas autóctones, como na plantação de castas de outras re-giões, portuguesas ou internacionais, com capacidade para manifestarem as suas me-lhores características nos terroirs do Douro.

No seu todo, a RCV tem uma colecção ampelográfica com cerca de 40 varieda-des plantadas em vinha estreme, a que se somam as vinhas antigas.

A RCV DESENVOLVE UM PROGRAMA DE EXPERIMENTAÇÃO VITIVINÍCULA

PROVA DIDÁCTICA DE CASTAS BRANCAS - VILA NOVA DE GAIA, 17/02/2012ORDEM CASTA VINHA VINHO

1º Códega “Oficialmente designada Síria ou Roupeiro Branco (sinónimo); Casta utilizada em lotes onde se pretendam Vigor médio/elevado, generosa na produção (1,7 kg / cepa) vinhos suaves para consumo rápido mas irregular (aneira); Cacho grande, maturação tard ia”

2º Touriga Branca “Poucas semelhanças ampelográficas com Tourigas (Nacional, Franca, Casta aparentemente neutra com sensibilidade Fêmea); Pouco vigorosa, cacho pequeno e compacto; Reduzida expressão à oxidação e valor enológico ainda por descobrir a nível nacional (10 ha); Faz parte das castas em extinção que a RCV decidiu estudar (1 ha; plantação 2006)”

3º Rabigato “Cultivada essencialmente no Norte do país; Vigor e produção Casta austera e com excelente acidez, médios (1,5 kg / cepa), porte prostrado, cacho grande, época importante para o afinamento de lotes de maturação média; Sensível a míldio, oídio e podridão cinzenta”

4º Boal “Semillon (denominação oficial); Não confundir com Boal Excelente aptidão para Late Harvest, casta muito da Madeira (Malvasia Fina); Boa produção (1,8 kg / cepa), importante equilibrada combina boa estrutura com excelente acidez, no encepamento da RCV; Sensível ao stress hídrico; Cacho pequeno, especial afinidade para fermentação em madeira película fina, sensível à podridão cinzenta”

5º Viosinho “Elevada plasticidade, adapta-se bem a diferentes solos e regimes hídricos; Em termos enológicos é a casta mais completa (2 vinhos) Ampelograficamente (folha e cacho) semelhante com Sauvignon Blanc; do Douro sendo também muito regular Vigor médio, cacho pequeno, maturação precoce”

6º Fernão Pires “Sinónimo Maria Gomes; Grande expansão a nível nacional; Precoce Muito boa expressão aromática, funciona bem para no abrolhamento e na maturação; sensível ao stress hídrico. Cacho médio, dar intensidade e complexidade aromática aos lotes produção elevada (1,9 kg / cepa)”

7º Encruzado “Importante nas Beiras (Dão); Elevado vigor, cacho médio, generosa “Aromaticamente pouco expressiva mas com excelente na produção (1,8 kg / cepa); Desenvolve gavinhas nos entrenós; Sensível amplitude de boca; Muita identidade e potencial à cigarrinha verde” de evolução. Elevada afinidade para fermentação em madeira”

8º Cercial “Origem Bairrada; Morfologicamente diferente do Cerceal Branco Muito expressiva tanto a nível aromático como sabores. (Douro e Dão) e do Sercial (Esgana Cão) da Madeira e Bucelas; Vigor médio, Confere algum exotismo aos vinhos precoce no abrolhamento mas época de maturação média; Cacho médio-grande; Generosa e regular na produção”

9º Arinto “Pedernã (sinónimo); Abrolhamento tardio, elevado vigor, um pouco rebelde Muito definida e pura, elegante em termos culturais (vegetação desorganizada); Cacho grande, ciclo longo, e com extraordinária acidez maturação tardia”

10º Alvarinho “Casta temperamental, muito vigorosa e rebelde em termos de vegetação; Nobre, forte personalidade, dá origem a vinhos Cacho pequeno, baixa produção, sobretudo em poda curta (1 kg / cepa); de enorme complexidade e persistência Maturação precoce”

11º Verdelho “Verdejo (Rueda); Destingue-se do Verdelho (presente na Madeira e Açores) Vinhos aromáticos e muito atraentes e do Gouveio (Douro) em termos morfológicos (castas distintas); Boa produção, vigor médio, cacho médio-grande”

12º Sauvignon Blanc “Porte erecto, fácil conduzir a vegetação; Produção média (1,5 kg / cepa), “Enorme carácter; Na RCV o perfil é velho mundo fugindo precoce no ciclo vegetativo, sobretudo na maturação; Sensível ao oídio” das notas de maracujá e espargos dando origem a vinhos frescos e vibrantes (notas herbáceas)”

13º Viognier “Origem França; Vigor médio, ciclo vegetativo médio-longo; Casta de grande intensidade aromática, Cacho pequeno, produção mediana” mostrando finura e elegância

14º Chardonnay “Precoce no abrolhamento, sensível a geadas; Cacho pequeno, Casta conhecida internacionalmente com afinidade (2 vinhos) baixa produção, sobretudo em poda curta; Muito sensível ao oídio e traça” única à madeira, dá origem a vinhos encorpados, complexos, longos e com capacidade de evolução

15º Gewurzstraminer “Porte erecto, muitos cachos por videira mas muito pequenos, produção Casta com maior intensidade aromática a nível mundial, média (1,5 kg / cepa); Precoce na maturação, é das primeira a ser vindimadas” conhecida pelo seu aroma e sabor a rosas e lichia

16º Moscatel Ottonel “Origem Alsácia (França); Distingue-se do Moscatel Galego por ter “Na produção da RCV dá origem a moscatel com aromas vigor mais reduzido, porte mais erecto, produção inferior (mediana) mais finos e elegante com algumas notas de rosas como e ser mais precoce na maturação” o Gewurzstraminer; Em estudo”

17º Moscatel Galego “Sinónimo Muscat Petit Grains (França); Casta muito antiga, muito difundida Casta muito floral, aroma muito destintivo, importante (Branco) na RCV; Precoce no abrolhamento, sensível a geadas, muito sensível a oídio para vinhos de entrada de gama, dá origem e podridão; Vigor elevado, porte prostado, difícil de conduzir a vegetação, a vinhos fáceis e agradáveis sensível ao desavinho (aneira)”

18º Moscatel Roxo Variante rosada do Moscatel Galego Branco, ampelograficamente igual “Aromas semelhantes ao Moscatel Galego mas maior e condições de cultivo semelhantes a esta casta percepção de doçura, com aromas a lembrar uva passa; Cor curiosa (rosada), com potencial a explorar”

JORGE MOREIRA

PEDRO SILVA REIS À FRENTE DA RCV

RUI SOARES

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TEXTO EDUARDO MIRAGAIAVINHOMANIA(

Portal em cheioO produtor vinícola duriense Quinta do Portal recebeu, justamente, o prémio Best of Wine Tourism 2012, na categoria Arquitectura e Paisagem, que dis-tingue o armazém de envelhecimento de vinhos desenhado pelo arquitecto Siza Vieira. O júri entendeu ser uma estrutura «de perfil deslumbrante, com um toque de arquitectura contemporânea, estando muito bem integrado no maravilhoso cenário do vale do Douro». Salienta, ainda, «a vertente ecológica do edifício» e considera «que se trata de uma atracção turística a não perder para todos quantos visitam o Douro». É um edifício com 80 metros de largu-ra e 375 metros de comprimento, composto por quatro pisos, que integra zonas de armazenagem específicas para vinhos de mesa, moscatéis e vinhos do Porto, que permitem um estágio nas condições ideais. Contempla, ainda, uma sala de provas aberta ao público.

ALTER DÁ TRÊSA Companhia de Vinhos do Alto Alentejo Terras de Alter acaba de apresentar três vi-nhos: Colheita Branco (2011), Verdelho (2011) e Reserva (2010), tudo em prol do Verão, como clamam na casa alentejana. Ao leme o enólogo Peter Bright. Esmiuçando: castas Arinto, Roupeiro, e com breves apontamen-tos de Verdelho e Viognier, está o regional Terra D’Alter Colheita Branco 2011; já o Ter-ra D’Alter Verdelho 2011 oferece intensos sabores de fruta, característicos desta casta; a experimentar, finalmente, o Terra D’Alter Reserva 2010, obediente às castas Viognier (80por cento), Arinto (10) e Verdelho (10). Na via dos preços: Colheita Branco, 3,00€; Ver-delho, 6,50€ e Reserva, 8,00€.

CRASTO EM TODAS AS FRENTESA Quinta do Crasto enxameia-nos em grande, ora espreite: Crasto Branco 2011, um vinho que se distingue pela frescura e elegância, ideal para os dias quentinhos. Apresenta-se como um vinho muito versátil e leve, que se adapta a vários momentos e pratos diferen-tes, quebrando as tradicionais combinações com peixe ou refeições ligeiras. É elaborado a partir de castas brancas tradicionais do Douro. Crasto Branco 2011 a valer 9,90€. Mas novas silhuetas: Porto Finest Reserve e Azei-te Virgem Extra Selection. O Finest Reserve é o terceiro vinho do Porto da gama Crasto, onde se incluem já o Porto Vintage e LBV. Apresenta-se com um envelhecimento médio de três anos em tonéis de carvalho português. E o azeite: após o êxito da introdução do Azeite Premium, lança o Azeite Virgem Extra Selection, produzido com azeitonas do Dou-ro Superior. Com uma acidez de 0,3 por cen-to, é elaborado com azeitonas das variedades Cobrançosa e Madural.

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OS PRAZERES SÃO A REGRA!

Nº 10 | II SÉRIE | ANO XIV | 5€

Gaivosa não é pecado

Pedro e o Loboo restaurante!

Viva a viola CAMPANIÇA

O coração do Porto

Há charutos nos Açores

Peugeot sobe montanhas

Entrevistas com Fernando Alvim, João Salaviza e Koschina

M. TavaresGonçalo

NovaIorqueInédito e exclusivo

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PORTUGAL 25€ 48€

EUROPA 42€ 81€

RESTO DO MUNDO 59€ 119€

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VINHOMANIA(

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ALVARINHO SEMPRE!Depois do Quinta de Cidrô Sauvignon Blanc e do Evel branco é agora a vez da Real Com-panhia Velha – produtora de vinhos do Por-to e Douro fundada em 1756 e a mais antiga empresa portuguesa, com actividade inin-terrupta há 255 anos – apresentar a colheita de 2011 do seu monocasta de Alvarinho, Quinta de Cidrô Alvarinho 2011. É o único produtor no Douro a apostar num monova-rietal de Alvarinho. Refira-se que a RCV pos-suiu uma das maiores vinhas de Alvarinho em Portugal, com 19 hectares. «Uma aposta que se enquadra na política de viticultura da empresa, em que cerca de 90 por cento das castas plantadas são portuguesas», informa Pedro Silva Reis, presidente da vetusta em-presa. Preço recomendado de 7,00 euros. E um desafio de outro teor a cargo da RCV: Caminhada e Prova na Quinta das Carvalhas, a bela. Mais informações através de [email protected]. E mochila às costas!

VALLADO DE VERÃOE lá vem outra companhia vínica a celebrar o Verão… A Quinta do Vallado sugere Douro Branco 2011, Moscatel Galego Douro Branco 2011 e Touriga Nacional Douro Rosé 2011. O Douro Branco 2011 é composto pelas castas Códega, Rabigato, Gouveio (Verdelho), Vio-sinho e Arinto. Já o Vallado Moscatel Galego 2011 encontra a sua origem numa parcela de vinha velha com mais de 40 anos e em outras duas com cerca de 15. Por último, o Touriga Nacional Douro Rosé 2011 é um vinho que provém, maioritariamente, de uma vinha seleccionada de Touriga Nacional na cota mais alta da quinta, que lhe confere um bai-xo teor alcoólico e uma elevada acidez. Apre-senta os aromas típicos dos rosés, sendo que o que mais sobressai é o peculiar aroma de frutos silvestres. Abrir os cordões à bolsa: Branco 2011, 6,00€; Touriga Nacional Rosé 2011, 5,75€, e Moscatel Galego Branco 2011, 8,50€.

SERVA DÁ ROSÉMais rebimba o malho alentejano. Pelas mãos da Herdade das Servas – projecto da família Serrano Mira, uma das mais antigas na pro-dução de vinho alentejano, em Estremoz – chega ao mercado o Monte das Servas Esco-lha Rosé 2011. A equipa de enologia da casa, composta por Luís Mira e Tiago Garcia, volta a apostar na combinação das castas Touriga Nacional e Syrah, plantadas em solos vermelhos de xisto e argilo-xistoso, para pro-duzir um rosé. Após habitual poda em verde e monda de cachos, durante o período de desenvolvimento e de maturação das uvas, são vindimadas manualmente e transporta-das para a adega em pequenas caixas, onde são devidamente seleccionadas na mesa de escolha e, em seguida, desengaçadas. No que diz respeito à vinificação, após maceração de um dia é extraído o mosto lágrima para fer-mentação a baixas temperaturas. O estágio deu-se na garrafa ao longo de três meses. Na ardósia fica o preço de 4,50€.

Não desconfiarSe é possível beber, sem desconfianças, um vinho aconchegado em Bag in Box, é. E lá está a Roquevale a fazer a prova. Nome de «código» Alecrim Dourado. A empresa em causa foi uma das primeiras a acreditar no potencial deste conceito, com o lançamento em 2003 do Bag in Box Alecrim. Como afirma, «este Alecrim Dourado nasce da intenção da Roquevale em trazer ao mercado um vinho supe-rior num Bag in Box. Poderia inclusivamente chamar-se Alecrim Reserva, se fosse possível para vinhos sem origem geográfica usar esta designação. Não sen-do possível, foi escolhida a palavra Dourado para transmitir ao consumidor a qualidade superior deste vinho», afirma Eric Auriault. PVP Alecrim Dourado 3 litros: 7,99€.

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VINHOMANIA(

LOURINHÃ EM FESTAA Região Demarcada Aguardente DOC Lourinhã, uma das três zonas de aguarden-te no mundo, juntamente com Cognac e Armagnac, em França, acaba de conpletar 20 anos de existência. A Denominação de Origem Lourinhã impõe um rigoroso con-trolo da qualidade vínica. As aguardentes têm, obrigatoriamente, que ser obtidas a partir de vinhos produzidos com uvas co-lhidas na região demarcada e só podem ser comercializadas 24 meses depois do enve-lhecimento em barris de carvalho, de modo a garantir o travo aveludado e as notas de madeira.

Reguinga e Portela ao pódioOs vinhos brancos da Quinta do Quetzal foram ao pódio! Na edição deste ano de um dos mais prestigiados concursos internacionais de vinhos, a Vi-nalies Internationales de Paris, o Guadalupe Selection 2010 arrecadou uma Medalha de Prata. O Selection 2010, uma das novidades que a quinta fez chegar recentemente ao mercado, é um vinho proveniente da casta Antão Vaz. Como soletram, «a Quinta do Quetzal rejubila com esta distinção, que vem reconhecer o trabalho desenvolvido pela equipa de enologia constitu-ída por Rui Reguinga e José Portela, provando, uma vez mais, as condições únicas de solos e microclimas que a propriedade da região da Vidigueira possui para a produção de vinhos brancos de qualidade mundial». E prestes a chegar ao mercado outra tentação: um licoroso, Rich Red 2010, resultante das uvas do Talhão da Vinha das Pedras, que foram colhidas já com elevado estado de maturação.

CEPA ALEMÃO vinho da região de Lisboa Cepa Pura Fernão Pires 2009, produzido por Filipe Gomes Pereira Herdeiros, foi consi-derado o melhor branco europeu, pelo guia de vinhos ale-mão Berliner Weinführer 2012. Este Cepa Pura é um vinho com aroma a fruta madura e especiarias e ligeira madeira. Apresenta um sabor fresco e com excelente estrutura.

MOSCATEL HÁ 60 ANOSA Adega de Favaios lança-se para mais um voo, desta feita produzindo um es-pumante. Nos seus 60 anos de vida a trabalhar o Moscatel, refresca também com uma nova imagem para este pro-duto, nas versões bruto e meio seco. Este espumante foi elaborado de acordo com o método clássico, a partir da casta Mos-catel Galego do planalto de Favaios. Nas duas versões, o preço de seis euros.

AMÉRICA RENDIDAO Periquita tinto 2009 recebeu uma me-dalha de Ouro no 29º San Diego Interna-tional Wine Competition nos EUA. Actualmente, o Periquita está presente em todo o mundo, desde a Europa (com forte incidência na Suécia, Noruega e Dinamar-ca), ao Brasil, passando pelos mercados Norte-Americano e Asiático. Esta bela saga da José Maria da Fonseca leva-a ainda a números quase incalculáveis: quatro mi-lhões de garrafas produzidas anualmente nas versões, branco, tinto, rosé, reserva ou superior.

RUI REGUINGA

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O Douro está salvoAs alterações climáticas, em particular o aquecimento nos últimos 50 anos, le-varam a Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense (ADVID) a solicitar a colaboração de Gregory Jones, um dos maiores especialistas do mun-do em alterações climáticas na vinha. No seminário conduzido por Jones a con-clusão geral é positiva, a saber: a Região Demarcada do Douro vai superar com êxito as alterações climáticas previstas e o seu efeito no clima e no cultivo da vinha na região. Segundo o cientista americano, «a Região do Douro apresenta uma grande variedade geomorfológica e as suas videiras uma enorme capacida-de adaptativa».

LUÍS PATO CONTALuís Pato, saravá mestre, faz das suas no produtor duriense Quinta do Pôpa… A chegar o Contos da Terra, tinto 2010, por um preço convidativo de 3,90€. «Num mo-mento em que é óbvia a retracção ao con-sumo, é cada vez mais importante a aposta em segmentos de mercado que consigam combater essa tendência, oferecendo pro-dutos a preços mais acessíveis, mas onde a qualidade não seja descurada. É esse o com-promisso da nossa marca Contos da Terra que, embora seja de entrada de gama se apresenta com vinhos (branco e tinto) DOC Douro», revela Stéphane Ferreira, proprie-tário e CEO da Quinta do Pôpa. Este tinto é produzido com as castas Touriga Nacio-nal, Tinta Barroca, Tinta Roriz e Touriga Franca.

TUDO EM BELEZANão é vinho propriamente dito, mas a ideia nasce a partir dele. Há três anos consecutivos a promover o birdwatching no Alto Douro Vinhateiro, a Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo propõe uma surtida de três dias, de 22 a 24 de Junho, para observação de espé-cies raras de aves, em especial no Parque Natural do Douro Internacional. Refira-se que a região é um dos lugares com melhores condições para a prática do birdwatching em Por-tugal, graças à sua orografia montanhosa e à natureza mediterrânica do clima que favore-ce a diversidade biológica. As arribas do Douro Internacional, por exemplo, são o principal santuário nacional para diversas aves de rapina, algumas ameaçadas de extinção, como são os casos da Águia-de-Bonelli, Águia-Real, Abutre-do-Egipto, Cegonha Negra e do Grifo. À medida que o rio vai caminhando para a foz e a pressão humana é maior, predo-minam as águias de asa-redonda, também conhecidas por Búteos, os Milhafres e uma infindável variedade de pássaros, desde os coloridos Papa-figos e Pega-azul aos canoros Pintassilgos. A valer 250 euros por pessoa, com inscrições até dia 30 de Maio. E aproveitar ainda para saborear os vinhos da quinta, onde fica também a guarida. Tudo em beleza!

MISTURA FINAQuem já teve ensejo de vislumbrar a Quin-ta de Ervamoira e conhecer a categoria enológica de Nicolau de Almeida, só pode concluir que estamos diante de vinhos de enorme classe! E mais um que se anuncia: Duas Quintas Branco 2011. Ele é produto, para os canhenhos do vinho, da vindima que começou mais cedo no historial da Ramos Pinto, 2 de Agosto, na Quinta de Ervamoira, e 23 do mesmo mês na Quinta dos Bons Ares. As uvas brancas entraram com boa acidez e teor de açúcar não exces-sivamente alto. No domínio das castas, 50 por cento de Rabigato, 40 de Viosinho, 10 de Arinto. Mistura fina.

GREGORY JONES

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BOLSA DE WHISKY(

A Cutty Sark presta homenagem ao poeta escocês Robert Burn! Robert, assim se conta, inspirava-se nos scotch, sendo o seu poema Tam o'Shanter o mais celebrado.

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Tam o'Shanter é um nome difícil mas o seu significado está para os es-coceses como o de Álvaro de Campos (um dos famosos heterónimos de Fernando Pessoa), está para os portugueses.

A história começa com Robert Burns, o mais escocês de todos os poetas que viveu nos finais do séc. XVIII. Imortalizado pela célebre Burns’Supper, em 30 de Novembro, feriado nacional da Escócia, em que os escoceses acompanham o famoso Haggis com o scotch whisky. Agricultor e, posteriormente, cobrador de impostos nas destilarias,

foi ao scotch que Robert foi buscar inspiração para os seus poemas, sendo Tam o'Shanter um dos mais celebrados, redigido em 1790.

A história reza que Tam, um agricultor que após ter bebido demais numa taverna em Ayr, montou a sua égua e, no caminho de casa, numa noite escura e tempestuosa, deparou com uma festa bizarra perto da igreja de Alloway: bruxas dançando em volta de uma fo-gueira. Uma delas, belíssima, estava seminua, coberta com uma pe-quena (cutty) camisa (sark), aderente ao corpo. Tam, num misto de

TEXTO LUÍS GARCIA

Tam O’shanter

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entusiasmo e embriaguez, soltou um «Well done, cutty sark!» Eis que a fogueira se apaga e as bruxas voam na sua direcção. O horrorizado Tam, voa na sua montada em direcção ao ria-cho próximo, pois as bruxas tem medo da água, mas não con-seguiu impedir que a cutty sark acabasse puxando o rabo da sua égua à entrada da ponte...

Uma outra história, desta vez real, passa-se em 1869: John Willis, um armador escocês, encomendou um tea clipper para tentar bater o veleiro mais veloz de então, o Thermophylae, na corrida de Shanghai para Londres com o primeiro chá da estação. Até então, aquelas viagens demora-vam mais de um ano para se completarem e as novas tecno-logias de construção naval permitiram fazer clippers muito velozes. John foi buscar em Robert Burns a inspiração para o nome e o Cutty Sark encaixava na perfeição dado tratar--se da bruxa mais bela e mais veloz. Mas o Cutty Sark nunca conseguiu bater o seu rival neste trajecto, que passou a de-morar quatro meses.

Entretanto, a abertura do Canal do Suez, condenou a via-bilidade económica deste trajecto pois os paquetes a vapor conseguiam bater os velozes clippers com o novo percurso. Para sobreviver, estes passaram a wool clippers transpor-tando a lã da Austrália para Londres antes das vendas de Janeiro em apenas 67 dias! Neste trajecto, o Cutty Sark co-nheceu a glória batendo sempre o Thermophylae e mesmo o RMS Britannia, o mais veloz paquete de então. Retirado deste circuito em 1890, o famoso clipper foi vendido a um armador... português, que o rebaptizou como Ferreira, embora a sua tripulação o traduzisse para Pequena Camisola. Desmantelado no Cabo da Boa Esperança em 1916, foram-lhe amputados os mastros para servir como barcaça e redenominado... Maria do Amparo.

Longe estávamos dos tempos em que as façanhas dos portugueses naquelas paragens eram bem diferentes...imaginem-se as voltas que Bartolomeu Dias terá dado no túmulo! Mas, afortunadamente, acabou ad-quirido em 1922 pelo capitão Dowman que o restaurou à sua glória de clipper, passando a funcionar como navio-escola até 1954. Daí passou a uma doca seca em Greenwich, sendo o único tea clipper sobrevivente

e visitado por mais de 15 milhões de pessoas até 2007. Infelizmente, o destino conturbado do Cutty Sark fez com que sofresse naquele ano um incêndio devastador, e o que dele hoje resta foi aproveitado como um museu tecnológico aberto no corrente ano.

A terceira parte da história é a que (finalmente) tem a ver com o whisky. Os Berry Brothers Walter and Francis es-tavam sentados com um reputado artista escocês, James McBey, a 23 de Março de 1923, para que este lhes criasse uma marca para o seu scotch whisky, com o qual pretendiam conquistar a América quando terminasse a Prohibition. James, que era um apaixonado pela vela, começou logo ali a fazer um rascunho do famoso clipper que, no ano ante-rior, tinha sido salvo da desgraça. Não só pela popularidade do recente acontecimento, como pela ligação ao whisky do nome, mas também por aqueles clippers terem sido inicial-mente concebidos nos EUA. O caminho do sucesso estava traçado e o Cutty Sark cedo ascendeu a líder de mercado na América.

Com toda esta carga histórica, as expectativas criadas pela Berry Brothers em baptizar o mais recente Cutty Sark como Tam o'Shanter só podem ser as mais elevadas. Trata-se, pois, de um blend com 25 anos de casco, que de blended tem pouco, dado que mais de 95 por cento da sua composição são malt whiskies do grupo.

Com 46,5 por cento de álcool, este whisky não deixa os créditos por mãos alheias. Medalha de Ouro, em 2011, pela IWSC, apresenta-se escuro com aromas de bolo rico de frutas, casca de laranja, anis e espe-ciarias a denotar forte presença dos cascos de sherry que tão bem notabilizaram o seu Macallan. As leves notas fumadas indiciam uma presença do Highland Park, as especiarias, citrinos e o favo de mel quiçá, mão do Glenrothes. As notas a cera de vela e ma-deira exótica a sândalo e eucalipto, denotam matu-ração longa e cuidada. Um final longo e rico a pedir

um bom charuto. Claramente, não defrauda as expectativas que criou e por cerca de €200.00

pode adquiri-lo no SMC em www.whisky.com.pt. Verdadeiramente, uma bruxaria bem sexy, digno de se tirar a camisola!

, o mais veloz paquete de então. Retirado clipper foi vendido clipper foi vendido clipper

a um armador... português, que o rebaptizou como , embora a sua tripulação o traduzisse para

. Desmantelado no Cabo da Boa Esperança em 1916, foram-lhe amputados os mastros para servir como barcaça e redenominado... Maria do

Longe estávamos dos tempos em que as façanhas dos portugueses naquelas paragens eram bem diferentes...imaginem-se as voltas que Bartolomeu Dias terá dado no túmulo! Mas, afortunadamente, acabou ad-quirido em 1922 pelo capitão Dowman que o

, passando a funcionar como navio-escola até 1954. Daí passou a uma doca seca em Greenwich,

sobrevivente

Com 46,5 por cento de álcool, este whisky não deixa os créditos por mãos alheias. Medalha de Ouro, em 2011, pela IWSC, apresenta-se escuro com aromas de bolo rico de frutas, casca de laranja, anis e especiarias a denotar forte presença dos cascos de sherry que tão bem notabilizaram o seu Macallan. As leves notas fumadas indiciam uma presença do Highland Park, as especiarias, citrinos e o favo de mel quiçá, mão do Glenrothes. As notas a cera de vela e madeira exótica a sândalo e eucalipto, denotam maturação longa e cuidada. Um final longo e rico a pedir

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José raposoeu fumador me confesso(

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O leitor vai logo perceber que, por ele ser actor, a confissão deste fu-mador vai descambar para o teatro. «O meu pai não passou de ama-dor. Coitado, sempre trabalhou em contabilidade… Era fumador, eu assistia, gostava do cheirinho. Um dia dei-lhe de prenda de anos uma caixa de charutos, provei um e nunca mais parei.»

Nascido em Angola, a paixão de José Raposo pelo teatro vem--lhe do pai, transmitiu-a aos filhos. Miguel, 25 anos, tem entrado em peças, na cena e na televisão. Com colegas, formou o Teatro do Azeite, estiveram no Taborda e na Comuna. «Sou suspeito, mas é um grupo interessante e ele é um belíssimo actor. Ricardo, o mais novo, fez o curso no Chapitô, esteve em Londres, a estudar. Enfim, somos uma família de actores.»

O entrevistado que, recentemente, interpretou Denis Diderot na peça O Libertino – A Arte de Ser Feliz, no Teatro da Trindade, não fez curso nenhum. Foi a uma audição com Francisco Nicholson no Adoque e passou nos testes. «Vejam lá, até cantei e dancei!» Tal como no fumo, nunca mais parou.

Vamos então aos charutos, a um cheirinho gastronómico e, claro, ao palco. Por partes: troca de impressões e sensações na Brasileira do Chiado. No Teatro da Trindade, colhem-se imagens, corre--se todo o espaço, José Raposo chega a vestir-se com o manto de Diderot… Por fim, teatro às escuras, outro café, noutro café, quase à Porta dos Artistas. Ainda assim, ainda que corrida, a conversa avan-çou bem. (ver caixa)Quando se tornou apreciador de charutos?Já nem me recordo, sempre gostei do aroma. Não sou conhecedor, mas cheguei a fumar cinco por dia; acordava, e vai disto. Cheguei à conclusão de que era uma barbaridade.O ritual do fumador faz parte da degustação…Sim, faz. O importante é gostar. E note que nunca fumei um cigarro dos normais.Tem preferências?Seja de que marca, sempre cubanos. Gosto dos Robustos, Montecristo, Cohiba, Hoyo de Monterrey, Romeo y Julieta, Trinidad. Charutos hechos à la mano têm outro sabor.Fumador compulsivo? Ou moderar é preciso…Compulsivo, não sou. Admito que tenho de ser mais moderado.Ao luar, sabe-lhe bem um charuto?O luar tem mais a ver com o romance… Eu fumo em qualquer lugar. Apropriado, claro.

TEXTO CARVALHO SANTOS FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

RaposoDiderot na pele deJosé Raposo fuma, com alguma moderação, um charuto em vez de um cigarro normal. É adepto dos cubanos hechos a la mano. Cordial e de bem com a vida, sabe lidar com a popularidade que o palco e a televisão lhe dão. Não é homem de desmedidas ambições.

A QUANTO OBRIGAS, POPULARIDADE…Não nos passava pela cabeça que fosse tão grande a popularida-de de José Raposo.Por se situar perto do Teatro da Trindade, o local da entrevista fora marcado para a Brasileira. Menos azar do que sorte, como já adiante se explica. Expansivo, o actor encanta-se com o ambiente cosmopolita naquela tarde quente. Muita gente que passa o reco-nhece, sucedem-se os pedidos de fotografias para a posteriorida-de. Ele e o Pedro aceitam sempre.A entrevista, propriamente dita, nunca mais começava, só por isso se falou em «azar». Actor e repórteres gastam quase um dia inteiro, é certo, perguntas e respostas começam no teatro já ao fim da tarde, algo apressadas… Nós tínhamos o nosso trabalho, a ele não lhe sobra tempo. No entanto, aprecia convívios.Pois, sabe-se que o Chiado continua a ser um local de excelência. Raposo dá um dedo de conversa a Rogério Samora. Levanta-se, «eu já venho, vou só pôr moedas no parquímetro», mas demora-se. Encontrou este ou aquele… Foi só comprar cigarros, a mesma ou coisa parecida.O cúmulo acontece quando um grupo de jovens estudantes de Águas Santas (Porto) se aproxima do café, rodeia, literalmente, o actor. Mariana, Isabel, Carla, Cláudia, Nuno, Bernardo…, todos que-rem uma foto. Sílvia Teles (parece um rapazinho) frequenta a Escola de Teatro Carlos Avilez, em Cascais. Queda-se, a pedir conselhos, a dizer a Raposo que o acha «fixe». Este interessa-se, toma notas, promete ajudar no que puder.Por isto se vê, que a «sorte» foi muito mais forte, feita de senti-mento e de proveitos. Antes da entrevista, fomos conhecendo o homem que personalizou Diderot, que não se considera filósofo nem libertino.

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Concentra-se no acto de fumar?Posso responder que me descontrai. Mais: sinto-me bem de charuto na boca.Uma boa refeição, com amigos, convida ao sinal de fumo…Com amigos ou no convívio com a famí-lia. Com um bom vinho do Cartaxo, onde vivo. Gosto de vinho, se for do Douro ou do Alentejo, óptimo.Como convive com as restrições?Mal. Não ignorando os malefícios, há um grande exagero e hipocrisia na proibição. E o charuto faz menos mal do que o cigarro normal.Nunca fumou em cena ou nos bastidores?Sabe tão bem, quando o personagem o exige…Em Portugal, um actor ganha para com-prar charutos?De uma maneira geral, não; é um produto caro. Também por isso me refreio.(Viramos o rumo para o teatro, para o ci-nema, para o ramo da cultura)Viajar é preciso. O que mais lhe agrada quando muda de país?Sou um aventureiro. Aproveito as tournées o melhor que posso. Tanto visitar museus, como passear à descoberta, conhecer gen-tes diferentes…Teatro, bastidor, espectador… Assim, de repente, que sentimento lhe ocorre?Mais paixão do que obrigação.O que lhe traz mais popularidade? O teatro ou a televisão?No teatro a popularidade é a longo prazo. Sou actor, o teatro está acima de tudo!Para representar é essencial memorizar bem os textos…A memória educa-se. Eu até nem tenho lá grande memória…Assume, sem querer, atitudes, diria tiques, das personagens que representa?Não, que ideia! As personagens ficam no palco ou no plateau.Das que lhe couberam, que peça mais lhe agradou?Não tenho ideia, sinceramente. Já foram dezenas e dezenas e de todos os géneros. Revista, drama, comédia, farsa, musical, teatro alternativo…Quase nos 50, ainda sonha ir mais longe?Sinto-me realizado. O meu sonho é a vida. Bem vivida!

O cinema nunca o tentou?Gosto de cinema. Gosto, sobretudo de representar. Já entrei em al-guns filmes, nomeadamente, em Viúva Rica, Solteira Não Fica, de José Fonseca e Costa.Na comédia O Libertino trabalhou com José Fonseca e Costa e com o famoso iluminista Eduardo Serra…São dois monstros do cinema! Emprestaram o seu saber e arte ao teatro. O meu prazer foi ainda maior porque eu e o Zé partilhamos amizade e gosto pelo charuto.De algum modo se identifica com Denis Diderot?Diderot é um filósofo contraditório e todos temos as nossas contra-dições. Nesse sentido, revejo-me nele. Se me identificasse com a li-bertinagem seria um malandro. A verdade é que há malandros que, não sendo libertinos, são uns grandes malandros!O teatro explica o mundo ou o mundo explica o teatro?No teatro o espectador vê o mundo. E pode rever-se no mundo.

«JOSÉ FONSECA E COSTA E EDUARDO SERRA SÃO DOIS MONSTROS DO CINEMA»

O Leite de Colónia está de volta, para realçar a beleza feminina. Desde 1960 que a fórmula mágica, desenvolvida pelo médico brasileiro Dr. Arthur Studart, está bem guardada. O Leite de Colónia é um segredo partilhado durante gerações, que conquistou avós, mães e filhas.

Agora, a família cresceu. Para além do tónico facial clássico, vai encontrar também o novo sabonete aromático Leite de Colónia, o creme de mãos, o creme de pés, o bálsamo para lábios, o gel de banho, o tónico facial sem álcool, o champô, o leite de corpo, o leite desmaquilhante e a água de rosas. A melhor forma de manter o aroma inesquecível de Leite de Colónia, em todo o corpo.

Os resultados estão comprovados. Agora, chegou a sua vez de experimentar e realçar também a beleza que há em si.

«CONVIVO MAL COM AS RESTRIÇÕES AO TABACO»

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O Leite de Colónia está de volta, para realçar a beleza feminina. Desde 1960 que a fórmula mágica, desenvolvida pelo médico brasileiro Dr. Arthur Studart, está bem guardada. O Leite de Colónia é um segredo partilhado durante gerações, que conquistou avós, mães e filhas.

Agora, a família cresceu. Para além do tónico facial clássico, vai encontrar também o novo sabonete aromático Leite de Colónia, o creme de mãos, o creme de pés, o bálsamo para lábios, o gel de banho, o tónico facial sem álcool, o champô, o leite de corpo, o leite desmaquilhante e a água de rosas. A melhor forma de manter o aroma inesquecível de Leite de Colónia, em todo o corpo.

Os resultados estão comprovados. Agora, chegou a sua vez de experimentar e realçar também a beleza que há em si.

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Na avaliação de um charuto temos que considerar dois grupos de características: as físicas e as organolépticas. Em relação às primeiras, é possível alcançar um juízo ra-zoavelmente elevado, de objectividade. Ao invés, na análise das características orga-nolépticas, entra-se, de facto, num campo de grande subjectividade. Passemos então a analisar os vários pontos críticos que deve-mos percorrer na avaliação de um charuto.

Características Físicas

Aspecto da capaNão deverá ter os veios da folha demasiado salientes, não excessivamente acentua-dos ao toque. A capa deve ter uma super-fície acetinada (não esquecer que as folhas muito escuras sofreram vários processos de fermentação, e isso provoca certa aspe-reza); homogeneidade da cor ao longo de toda a superfície; certa oleosidade (a gor-dura que a capa liberta deriva da fermen-tação e uma parte do aroma depende desse óleo da capa). Uma capa que não evidencie esse brilho do óleo, implicará sempre uma certa desqualificação do charuto e poderá significar que a sua conservação não estará a ser perfeita.

Construção Devemos procurar diagnosticar o grau de consistência, em especial se a opera-ção do enchimento está perfeita, ou seja, se a tripa está bem construída, se as folhas

que a compõem estão bem distribuídas ao longo do charuto, não havendo excesso de gramagem de tabaco numa das partes. Quando isso acontece, o charuto fica dese-quilibrado, afectando a combustão, o tiro e mesmo o sabor.

Cabeça A cabeça do charuto, isto é, a ponta que ha-vemos de cortar e que levamos aos lábios, deve ser perfeita. Da forma como a perilla foi aplicada, e que faz o remate da capa com a ponta do charuto, resulta a perfeição da cabeça, e isso é um ponto de avaliação.

Características organolépticas

Este tipo de características são as proprie-dades que um charuto evidencia e que im-pressionam os órgãos dos sentidos, sendo apreciadas e avaliadas por estes. É sobre-tudo na avaliação destas características que surge uma carga de maior subjectividade. Cada fumador terá os seus sentidos, espe-cialmente o olfacto e o paladar, mais sensí-veis, mais adestrados, fruto da sua própria experiência. E isto, para já não referir que as nossas próprias avaliações estarão sempre condicionadas com o nosso estado de espí-rito, com o estado do nosso palato naquele momento, em particular com os alimentos e bebidas que acabamos de ingerir, e até com as companhias com quem estamos… Mas sobretudo com a nossa própria experi-ência na matéria, e como ocorre com tantas

outras facetas da nossa vida, no hay camino, se hace camino al andar, ou seja, procurando novas marcas, experimentando novas vi-tolas, degustando tranquilamente cada charuto, identificando sabores e aromas, registando-os na nossa memória, compa-rando-os, trocando opiniões, e no final, quanto mais sabemos, percebemos melhor toda a sua complexidade e sentimos ter que conhecer ainda mais. É este, em regra, o comportamento mais típico dos grandes conhecedores. Discretos.As características organolépticas que nos interessam são: o Tiro, a Combustibilidade, o Aroma, o Sabor e a Fortaleza.

O tiroO tiro, ou tiragem, significa a maior ou menor facilidade como o fumo se deixa as-pirar. Muitas vezes temos dificuldade em fumar um charuto, exigindo que façamos

TEXTO MARTIM SANTIAGO

A revolução do gostoÉ curioso registar uma tendência que está em processo, porventura por efeito do aparecimento dos muitos novos fumadores, que alguns referem como a «revolução do gosto»… Onde os novos charutos serão menos corsée, mais elegantes, de aromas mais complexos.

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um grande esforço de aspiração para con-seguir um certo volume de fumo; e apesar disso, resulta num escasso e frustrante vo-lume de fumo. Isto deve-se, normalmente, a uma deficiente construção da tripa. O puro ficou demasiado «cheio», as folhas da tripa ficaram apertadas em excesso, os ca-nais que deveriam existir entre as folhas, para o fumo fluir, ficaram muito esmaga-dos, daqui resultando um tiro insuficiente, tornando menos intensos quer o aroma quer o sabor. Ocorre com mais frequên-cia este tipo de defeito nos charutos feitos à máquina. Também podemos ter uma si-tuação oposta, isto é, confrontarmo-nos com um tiro excessivo, e as razões têm a origem também na tripa, mas agora são as folhas que deixaram canais muito abertos, facilitando, em excesso, o fluir do fumo. Este excesso de tiragem vai provocar uma combustão rápida de mais, originando um

sobreaquecimento do charuto o que provo-cará um fumo demasiado quente e áspero. A experiência ensina-nos a mensurar o tiro correcto, que se situará no ponto de equilí-brio entre aquelas duas posições extremas e desequilibradas.

A combustibilidadeO nível de combustão de um charuto é também um elemento importante para uma boa degustação. O charuto deve arder de forma permanente e uniforme, a todo o seu comprimento. Na composição da tripa, um dos tipos de tabaco que tem como prin-cipal missão garantir uma boa combustão, é o volado, dado as suas especiais carac-terísticas de combustibilidade. Uma má combustão deve-se sempre a uma má cons-trução. É o caso do charuto empalmado, em que as folhas da tripa são sobrepos-tas umas sobre as outras, em vez de serem

enroladas separadamente umas ao lado das outras. Ou o charuto, também mal cons-truído, chamado retorcido, em que as folhas da tripa estão torcidas em vez de formarem dobras paralelas que se abram e se fechem naturalmente, como um acordeão. Uma combustão fluente depende também da boa qualidade das folhas de tabaco usadas. A cinza produzida durante a combustão pode ser, também, um guia de orientação para avaliarmos a perfeição da constru-ção. E isso dá-se quando a cinza se mantém consistente com um comprimento de dois a três centímetros; além disso, bem como a exigência de uma cinza de cor branca, é pura especulação.

A brasa que arde no pé do charuto assume normalmente três formas: cónica, prato ou cratera. A primeira será a mais comum e talvez a mais perfeita e resulta dos diferen-tes graus de combustibilidade das três par-tes da estrutura do charuto: da tripa, que deve ser mais lenta, seguida do capote e, fi-nalmente, a de maior combustão, da capa. Se aquela sequência do nível de combus-tibilidade se inverte, o pé, enquanto arde, parecerá uma cratera. A forma de prato é também boa, e nesse caso as diferentes combustões das três componentes serão semelhantes.

O aromaMuitos fumadores consideram o princi-pal predicado de um charuto, o aroma. Só os charutos Premium, enrolados à mão, amadurecidos, conservados nas correc-tas condições de humidade, mantêm essa qualidade de exalar fragrâncias. Os charu-tos de máquina, secos, não provocam qual-quer reacção ao nosso sentido olfactivo. As diferentes folhas de tabaco que entram na

OS CHARUTOS DE MÁQUINA, SECOS, NÃO PROVOCAM QUALQUER REACÇÃO AO NOSSO SENTIDO OLFACTIVO

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composição de um charuto têm aromas e sabores diferentes. Por isso após a sua con-fecção é necessário deixar que o charuto amadureça para que esses diferentes aro-mas se fundam. A contribuição de cada tipo de folha não é igual, mas todas elas partici-pam nessa fusão. Uma parte importante do aroma é exalada do óleo das folhas, e desde logo do óleo da capa. Daí que um charuto mal conservado, sem a humidade correcta, veja o seu aroma afectado.

No aerossol do fumo, os elementos ol-factivos são sempre associados à nico-tina e a intensidade da sua presença dá ao fumo uma certa consistência. Uma espes-sura. Costuma designar-se como «corpo» essa qualidade da densidade do fumo (que pode ir desde um corpo inconsistente, fraco, até a uma densidade plena, farta). Por outro lado, um fumo muito intenso pode ter um aroma sem relevo, bastante monótono, pobre, modesto ou ao contrá-rio, ser bastante rico, generoso, complexo.

Costuma-se designar por «riqueza aromá-tica» a complexidade e a duração das sen-sações aromáticas. À medida que formos «educando o nosso nariz» vamos detec-tando as tendências olfactivas do fumo e vamos descobrindo os aromas, procurando identificá-los, já que a maioria deles são nossos conhecidos e estão também presen-tes na natureza que nos rodeia.

E que aromas se podem encontrar num charuto? São muitos e variados. Seguindo a proposta de G. Belaubre no seu Le nez du ci-gare, podemos identificar aqueles que serão porventura mais comuns e que fazem parte das grandes famílias dos aromas.

Aroma de couro, mel e almíscar (da famí-lia dos aromas de origem animal), de erva seca, feno cortado (de origem vegetal) de pimenta, baunilha, noz-moscada, canela (da família das especiarias) de noz de coco (dos frutados), de caramelo, pão torrado, café, cacau, chicória (da família dos aromas pirogénicos), de cedro, musgo de carvalho,

zimbro (dos aromas de madeiras, balsâmi-cos) e por último os aromas de terra hú-mida, húmus e trufa (da família dos aromas microbiológicos, micológicos).

Por isso os especialistas, incluindo aque-les que se dedicam a avaliar charutos para revistas e livros da especialidade, utilizam termos como «condimentado», «amadei-rado», «frutado», «terroso», para melhor exprimirem as suas impressões quanto aos aromas, após uma degustação. Há porém odores que alguns charutos exalam e que denunciam a sua má qualidade, tais como: papel queimado, chifre queimado, pó, po-eira, podre e odores farmacêuticos.

À medida que o puro vai ardendo os aro-mas vão sofrendo uma evolução, designada como «evolução aromática». É costume para melhor analisar a degustação de um charuto dividi-lo em três partes, sendo geralmente no decurso do segundo terço que a excelência aromática atinge o seu máximo.

O saborOs solos onde as plantas de tabaco se de-senvolvem marcam de forma definitiva os sabores que viremos a degustar mais tarde, quando essas mesmas folhas se transforma-rem num puro. Por isso também plantas de tabaco das mesmas sementes, cultivadas em diferentes solos, ainda que em climas quase semelhantes, dão origem a folhas de tabaco com características também diferen-tes, especialmente o seu sabor. Os sabores que somos capazes de identificar resultam do funcionamento das papilas gustati-vas que se encontram localizadas na mu-cosa da nossa língua. As papilas dividem-se em cinco grupos, sendo uma neutra, e as

À MEDIDA QUE O PURO VAI ARDENDO, OS AROMAS SOFREM UMA EVOLUÇÃO

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demais associadas a quatro, e apenas a qua-tro, espécies de gostos: salgado, doce, ácido e amargo. São estes quatro gostos que de-pois se desdobram em infinitas combi-nações, de acordo com a forma como são impressionados cada um dos grupos de papilas. O criador de uma liga de tabacos tem que ter a arte e a sabedoria de seleccio-nar as folhas certas que compõem um cha-ruto. Depois de aceso provocará um fumo que originará determinado tipo de sabor. Certo tipo de folhas poderá impressionar, em excesso, as papilas do gosto ácido ou amargo, salgado ou doce. Há que encon-trar a mistura certa, e é essa sabedoria que é transmitida de geração em geração e que está sempre associada a certo secretismo e mistério.

Os sabores de cada fumo têm uma certa textura que, mais do que nossa língua, é a nossa garganta que assinala, o que nos con-duz ao conceito de fortaleza, tema sempre muito polémico entre fumadores, fruto da subjectividade que cada opinião necessaria-mente tem.

A fortalezaOs termos usados para registar o nível da textura de um fumo costumam ser: forte, suave, médio, brando ou mesmo, subtil, ou áspero. A fortaleza não deve ser confun-dida com o aroma. Este afecta o olfacto e o

paladar. Quando um fumador diz que um certo fumo é demasiado forte para o seu gosto, é porque experimentou no fundo da sua garganta uma forte sensação de aspe-reza. Para um outro fumador tal sensação é-lhe agradável, diremos mesmo que a sua ausência leva-o a não apreciar um charuto suave.

A fortaleza, tal como o sabor, depende em grande medida dos tabacos que compõem a tripa. Por outro lado, a fortaleza de um charuto não depende do seu comprimento. Um formato Churchills não tem que ser obrigatoriamente mais forte que um Petit Corona, só porque as suas dimensões são maiores. Também se deve ter presente que apesar da grande homogeneidade que uma marca deve ter, e em geral tem, ocorre com frequência termos vitolas dentro da marca, com graus de fortaleza diferentes. O diâme-tro pode interferir no grau de fortaleza, já que um charuto de cepo grosso, como são os formatos Churchills ou Robusto, as suas folhas são menos apertadas, e sobretudo são mais equilibradas que as de um formato de cepo fino, por isso se defende que a for-taleza é inversamente proporcional ao seu diâmetro.

Além disso, a temperatura de combus-tão de um charuto grosso é menos elevada, destruindo em menor escala os aromas durante o desenrolar da queima. Mas a

influência mais crítica que caracteriza a fortaleza está indubitavelmente associada à liga de tabacos que compõem a tripa, e den-tro desta, a percentagem de tabaco do tipo ligero que essa tripa tem.

Cada fumador terá que procurar o que melhor se ajusta ao seu gosto, ou ao mo-mento, sendo, por isso, um juízo erróneo desqualificar as ligas criadas para satisfa-zer fumadores que preferem fumos mais suaves. A este propósito é curioso regis-tar uma tendência que supomos estar em processo, talvez por efeito do apareci-mento dos muitos novos fumadores que surgiram a partir dos anos 90, que alguns especialistas do sector referem como a «re-volução do gosto», onde os novos charu-tos serão menos corsée, mais elegantes, de aromas mais complexos. Será uma tendên-cia ainda com contornos pouco definidos, mas as últimas marcas criadas, de origem cubana, o Vegas Robaina, o Trinidad e o San Cristobal de la Havana, poderão ser bons exemplos. No fundo todos procuram dispo-nibilizar uma paleta de fumos com aromas e sabores tão completa quanto possível, para satisfazer todos os gostos. O facto da marca Partagás ter um sabor forte, não lhe confere, só por isso, uma melhor apreciação do que a marca H. Upman, que é reconheci-damente mais suave. Depende do gosto de cada fumador.

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«A uma esquina, vadios em farrapos fumavam, e na esquina defronte, na Havaneza, fumavam também outros vadios, de sobrecasaca, politi-cando...» Deste jeito escrevia Eça de Queiroz em Os Maias. Sobre a Casa Havaneza disser-taram muitos outros escritores. Agora, ho-diernamente, atacamos nós na passagem dos 148 anos do estabelecimento emblemático. A bem da festa, a empresa EMPOR, proprietária das Havanezas (Chiado, centro comercial das Amoreiras e Colombo), honrou a memória da vetusta casa celebrando o aniversário, no palco do Alcântara Café, onde mais de cem convivas puderam dar largas ao fumo, engalfinhando--se sobre os teoremas charuteiros e, ainda à maneira do Eça, politicando…

Para dar mais cor à peça e ao historicismo da loja, não resistimos a citar outra figura, Eduardo de Noronha, a prosar assim, no seu livro À Porta da Havaneza: «Não há uma só criatura portuguesa que contasse na sua exis-tência um momento de notoriedade, mau ou bom, que se não tenha ali encostado… esta-distas de renome, estroinas incorrigíveis, mu-lheres belas, virtuosas ou não, representantes de famílias aristocráticas, ídolos do povo, mi-litares cobertos de louros, criminosos da pior espécie, revolucionários de há cinquenta anos e de hoje.» Mais bem modernaço, o saudoso José Cardoso Pires (Lisboa, Livro de Bordo): «Chiado, um cenário, um ritual. De charuto a fumegar à porta da Havaneza, Ramalho Ortigão assistiu à passagem por aqui du tout Lisbonne do seu tempo.»

A bem de história abreviada, aristocracia es-teve presente nos alicerces da Casa Havaneza, abrindo portas nos idos de 1864 pela von-tade do Conde de Burnay. No essencial do comércio da casa, as delícias, ontem como

anos!148Eça de Queiroz, Eduardo de Noronha, Guerra Junqueiro e José Cardoso Pires, entre outros, cantaram loas à Casa Havaneza do Chiado… E ela continua de boa saúde, passados os seus 148 anos de existência! O efeito charuto não dá mostras de se extinguir. E para a ribalta delicodoce o Montecristo está na crista da onda, enquanto um Porto lhe faz inefável companhia.

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA

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hoje, eram especialmente orientadas para a venda de charutos cubanos. Mais curioso é que a Havaneza funcionava também como banco… Quer dizer, ali se podiam pedir em-préstimos. Se o dito fosse angariado, toca de comprar um puro de celebração… Segundo a crónica, «consta mesmo que, durante a crise financeira de 1876, num dia em que o pró-prio Banco de Portugal não tinha disponível ouro anunciou nos jornais que seria possível fazer a troca de notas por moedas de prata e ouro nos balcões da Casa Havaneza». Isto é deslindado por Luísa V. Paiva Boléo, au-tora de um livro/maravilha: Casa Havaneza, 140 Anos à Esquina do Chiado, edição Dom Quixote. A autora, muito para lá da histó-ria da tabacaria, faz-nos a descrição a eito do Chiado desses tempos.

MONTECRISTO APRESENTA-SEGalgando 148 anos, vero é que nenhuma lei anti-tabaco faz esmorecer o gosto por um bom puro. Assim, a EMPOR/Casa Havaneza vai adiante, por exemplo, com o lançamento, mês a mês, de um charuto, o último a che-gar-nos é o Montecristo Nº 2. Sobre este, a sua mistura é elaborada exclusivamente com folhas de tripa e capote provenientes de Vuelta Abajo, tão só a zona por excelência do melhor tabaco da ilha e do planeta. De sabor médio a forte, a sua medida é de 156 mm/52 e é apresentado em caixas de três, dez e 25 unidades. Refira-se ainda que a marca Montecristo é aquela que colhe os favores dos fumadores internacionais e em Portugal é também o distintivo mais adquirido. De resto, o negócio dos puros entre nós vai de

vento-em-popa: cifra do ano transacto, mais de um milhão de charutos vendidos.

Outra frente onde a velha casa faz o gos-tinho ao dedo está relacionada com o seu Clube Casa Havaneza (www.casahavaneza.com)… Na mira das sondagens, está no ar uma palpitação: que charuto prefere, ques-tionam, para votar no Montecristo Nº 4 ou no Partagás D Nº 4? Pelo andar da carrua-gem, até ao momento, o Montecristo co-nhece as graças do primeiro lugar (55 por cento), contra os 45 do D Nº 4. É votar, meus senhores.

CASÓRIO COM PORTOPara a escolta selecta de um puro, também aqui as aquisições valem. Estão em foco as bebidas eleitas, levando os nossos Portos a pedir meças à concorrência de outros lí-quidos… Dow’s Tawny 20 anos e Graham’s Vintage 1994 foram aos píncaros no recente XIV Festival Habano, a grande gala mun-dial que decorre todos os anos em Havana. Lá passou no crivo de um júri selecto de 300 provadores de diversas nacionalidades, entre outras bebidas, batendo toda a concorrên-cia! Qualquer deles, celebrados como a be-bida ideal para cruzar armas com um puro. O Graham´s foi degustado com o Belicoso da Romeo e Julieta, enquanto o Dow’s parti-lhou o Montecristo Edmundo.

Para remate que se pretende categórico, fica Guerra Junqueiro… «Vamo-nos encos-tar à porta da Havaneza/E veja-se passar, essa burguesa,/Que vai de risco ao meio e vai de fato preto/Ao sport de uma hora – à igreja do Loreto».

NENHUMA LEI ANTI-TABACO FAZ ESMORECER O GOSTO POR UM BOM PURO

CELEBRAR ANIVERSÁRIO

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É curioso ver a forma como, com o passar dos anos, evolui o olhar da sociedade sobre diversos produtos. A cocaína já foi um medi-camento usado para inúmeras maleitas. Hoje, é uma droga cuja produção e comercialização é perseguida em todo o mundo. O vinho passou de bebida inofensiva, consumida da infância à ve-lhice e importante factor de desenvolvimento económico, a pro-duto perigoso para a saúde e de consumo altamente controlado, antes de, finalmente, se estabelecer (ou não…) como favorável, em doses moderadas, para a profilaxia de vários problemas de saúde.

O caso do tabaco não é muito diferente. Quando surgiu na Europa, vindo das Américas, foi visto como tratamento de al-gumas doenças – além de ser um símbolo de sofisticação e de

posição social. Afinal, não eram muitas as pessoas com capaci-dade financeira para adquirir os raros e caríssimos charutos do século XVI. Fumar era, na Europa desses tempos, algo que só es-tava acessível às mais endinheiradas elites. Muito provavelmente, se o consumo do tabaco se tivesse mantido limitado aos charutos e aos cachimbos, toda a história do tabagismo teria sido diferente e hoje não o teríamos como um dos alvos prioritários dos ataques da sociedade.

No século XVII, porém, tudo se alterou. Em lugar de ser enro-lado em folhas da própria planta, originando o charuto, o tabaco passou a ser envolvido numa fina folha de papel de milho. A ideia foi dos espanhóis que, desta forma, criavam o cigarro (a que cha-maram papelate) e democratizavam o fumo. O conceito alargou--se a França cerca de século e meio volvido, onde recebeu o nome de cigarette, e daí para o resto do mundo. Em 150 anos, o tabaco deixava de ser exclusivo das classes mais altas e, pela «mão» do modesto cigarro, conquistava adeptos em países como a Rússia ou a Turquia. Na Guerra da Crimeia (década de 30 do século XIX), os soldados ingleses observavam, surpreendidos, como os seus alia-dos turcos e inimigos russos enrolavam tabaco em papel de jornal para criar cigarros rudimentares e não tardaram em experimentar. Este factor, aliado ao desenvolvimento de novos tipos de tabaco, mais suaves, para uso específico em cigarros, e à aposta do Egipto na plantação de tabaco, reduzindo drasticamente o seu custo na Europa, popularizou ainda mais os pequenos cigarros.

Esta popularização permitiu que muitos empresários se aperce-bessem do potencial comercial dos cigarros, no entanto, a produção estava limitada ao estilo artesanal. O passo em frente é dado por volta de 1880, quando surge a primeira máquina para enrolar cigar-ros. Uma fábrica de grande dimensão, cujos operários enrolavam, à mão, apenas 40 mil cigarros por dia, passava a ter uma capacidade de produção diária superior aos quatro milhões de unidades! Mais ou menos pela mesma altura, surge a impressão a cores por litogra-fia, que permite a criação de maços muito mais atraentes e, simulta-neamente, de novos e aliciantes anúncios publicitários.

À entrada do século XX, o cigarro era já um produto massificado, globalizado, transformado numa indústria bilionária. Toda a gente fuma, por todo o mundo. Os jornais e revistas da época incluem, inapelavelmente, publicidade às mais diversas marcas de cigarros.

Um novo e importante alento é dado com a II Guerra Mundial. Os soldados aliados (especialmente americanos) recebem gratuita-mente maços de cigarros, oferecidos pelas marcas. Em 1945, após a derrota da Alemanha e do Japão, regressam aos Estados Unidos e a Inglaterra milhões e milhões de antigos combatentes tornados de-pendentes da nicotina, que não resistem às agressivas campanhas publicitárias das tabaqueiras. Na ânsia de vender, os produtores não hesitam em fazer promessas, escondendo os malefícios do consumo

Cigarro: o inimigo públicoNos últimos anos, o tabaco – e, especialmente, o seu «intérprete» mais popular, o cigarro – passou a ser alvo de uma intensa perseguição por parte das autoridades. Das limitações de locais onde é permitido fumar à liminar proibição da publicidade, o cigarro �ca, cada dia que passa, mais fora da lei!

FREDERICO VALARINHO

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do tabaco. Nos anúncios (especialmente nos americanos) são usa-dos, sem quaisquer escrúpulos, médicos, dentistas, atletas de elei-ção (como o jogador de basebol Mickey Mantle) e, até, bebés!

Nos finais dos anos 50 do século XX começam a surgir estudos clínicos que ligam o tabaco ao aumento de incidência do cancro de pulmão. Os fabricantes apressam-se a lançar cigarros com filtro que, embora não oferecendo qualquer protecção relativamente aos seus congéneres vulgares, são imediatamente alvo de publi-cidade que garante serem mais pobres em nicotina e alcatrão. E quando, em 1964, nos Estados Unidos, mais de sete mil relatórios científicos ligam o consumo do tabaco ao aumento de casos de cancro, de enfisema pulmonar e outras doenças, e surgem as pri-meiras leis a limitar a publicidade aos cigarros, as tabaqueiras não hesitam e criam planos alternativos: nascem produtos que usam a mesma marca e o mesmo logótipo que os cigarros e que são pro-movidos à saciedade e surgem mascotes das marcas de cigarros

com muita procura junto dos mais pequenos – como é o caso de Joe Camel, que em 1991 era mais popular junto das crianças de cinco e seis anos do que… o Rato Mickey!

Estes (e outros) estratagemas tornaram-se completamente ile-gais na década de 90, altura em que os maços de cigarros passam a ter de incluir avisos quanto aos malefícios do tabaco e toda e qualquer publicidade aos produtos passa a ser proibida em vários países. Simultaneamente, sobem os impostos sobre o tabaco e é liminarmente proibida a venda a menores de idade. Por todo o mundo, cresce em número e em variedade a lista de locais onde fumar é proibido. O fumador é, cada vez mais, apresentado como um pária da sociedade.

A questão, porém, coloca-se: se fumar é permitido (e continua a ser tão lucrativo para os governos através dos impostos cobra-dos), haverá direito de marginalizar tão radical e brutalmente os fumadores?...

MÉDICOS, DENTISTAS, ATLETAS, TUDO ERA USADO NA PUBLICIDADE AO TABACO. ATÉ BEBÉS «ACONSELHARAM» AS MÃES A FUMAR!

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Já vive cá na Lusitânia! É o último arremedo da Peugeot – monsieur 208. É a ruptura mais conseguida em relação às séries 200, come-çando na sua silhueta, produto de design apu-rado. Para o estado-maior francês tratou-se mesmo de reinventar os códigos que estive-ram na base do êxito das gerações 205, 206 e 207.

Salto de leão são muitas as «calorias» alcan-çadas, logo de chofre, um popó leve, 110 kg em média do que o 207; compacto, menos de sete centímetros de comprimento, menos um de altura. Mas o prodígio de ter conseguido au-mentar a habitabilidade, designadamente nos lugares traseiro e mais cinco centímetros ao nível dos joelhos! E ainda: mais 15 dm3 de vo-lume para a bagageira.

Obsequiado em carroçarias de três e cinco portas, abracadabra, o seu painel de bordo é elevado dispondo também de um grande ecrã táctil. E a magia de um volante de dimensões reduzidas. Em abono do ambiente incorpora

25 por cento de materiais verdes; o pára- cho-ques traseiro e o grupo moto-ventilador são inteiramente realizados nesses materiais, no-vidade mundial. Este tipo de pára-choques permitirá economizar 1.600 toneladas anuais de petróleo.

«Amor à primeira vista», conferem os fran-ceses do emblema e nós também. Deste modo pretendem com o 208 posicionar-se como lí-deres do segmento B. E fica desde logo uma abrangência de propostas à grande e à fran-cesa. No alinhar pelo Diesel: 1.4 HDi de 68 cavalos, 1.4 e-HDi, 1.6 e-HDi 92 cv de cinco velocidades e 1.6 e-HDi com caixa pilotada de seis velocidades. Com mais cavalicoques é o 1.6 e-HDi, 6 velocidades para 115 cv. Um garbo feito à estrada, gostámos, fizemos amizade. Para o entorno de gasolina: 1.0 VTi (68 cv), 1.2 VTi (82 cv), 1.4 VTi (95 cv), 1.6 VTi (120 cv) e 1.6 THP, tomem lá a fragrância de 156 cavalos.

No confessionário da conferência de Imprensa, no decurso da apresentação

internacional feita em Portugal, o que é ra-ridade, registamos discursos directos dos al-mirantes franceses. «Com o 208, a Peugeot muda de época» (Vincent Rambaud, Director-Geral); «Penso que haverá um antes e um depois do 208. Esta viatura marca verdadeiramente uma nova etapa, determinante para a Peugeot» (Alain Tranzer, Director do Projecto A9); «O 208 é uma pedra mais no projecto de Marca. Peugeot 208: o espírito dos 205 e 206, a funcionalidade do 207, a modernidade do 208» (Xavier Peugeot, Director Produto Peugeot); «Com o 208, a Peugeot conseguiu os meios de recriar um ícone» (Laurent Blanchet, Director da Gama Produto Peugeot). Finalmente, o «suco da barbatana», Christophe Clochard, responsá-vel pela Síntese Veículo 208: «Por comparação com o 207, quisemos uma viatura que fosse mais pequena por fora e maior por dentro».

Está inventado

É sagaz a forma em crescendo como se inventam veículos. De modelo para modelo, de marca para marca, há sempre novos e bons palpites. Veja-se o novel Peugeot 208… Volante pequenino, mais propícia a condução, painel de bordo por cima do guiador, tudo à vista. E mais uns quantos abracadabras que muito nos facilitam a vida.

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA

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Pão de Forma Foi adoptado popularmente, correu e ainda corre mundo, é o simpático «Pão de Forma». Certo é que muitas destas carrinhas estão presas por cor-déis, a idade não perdoa. E é em boa hora que a Volkswagen se apresta a tratar-lhes da saúde, criando para tal um departamento exclusivo de res-tauro, em Hannover. Se o leitor é um feliz possuidor de uma «forma», é a hora de lhe dar nova alma. A unidade de reconstrução vai pô-la novinha em folha e até confere ao proprietário um certificado completo da restauração do popó. O departamento que vai ressuscitar os carros emprega 13 colabo-radores, desde a componente mecânica e até ao requinte de associar um historiador em tecnologia automóvel.

Cá te esperoA Nissan ganhou a aposta e já está em marcha acelerada para equipar Nova Iorque com novos táxis, o transporte que diariamente serve cerca de 600 mil pessoas na grande metrópole. Por agora, a marca exibiu o protótipo do carro que desde antemão foi aprovado pelas autoridades americanas da cidade, chamam-lhe o «táxi do futuro». E o futuro está em mira, ou seja, os novos táxis começam a circular a partir do final do próximo ano. Este quatro cilindros de dois litros está recheado de pormenores, alguns deles: portas deslizantes com degrau, painel do tejadilho transparente, ar condi-cionado traseiro controlado de forma independente, forro do tejadilho com carvão activado para ajudar a neutralizar os odores interiores e até a verve de uma buzina pouco incómoda, com luzes exteriores que indicam quando o veículo está a buzinar, ajudando a reduzir a utilização do «berro».

PORTUGUÊS LIDERA A PEUGEOTOs poderes da Peugeot Portugal passam ago-ra para as mãos de um português, Alfredo Ama-ral, com a responsabilidade de Director-Geral. Com 54 anos, e uma carreira de 30 no sector automóvel, Alfredo Amaral foi responsável, en-tre 1995 e 2000, pelo desenvolvimento da Rede de Concessionários da marca em Portugal. Em 2000 assumiu os destinos da Sucursal de Lisboa e, a partir de 2004, liderou a Direcção de Peças e Serviços da Filial. Em Julho de 2005 iniciou a sua carreira internacional na Automobiles Peu-geot como responsável pelas operações co-mercias da marca para a América do Sul. Em Outubro de 2008 regressou a Portugal para assumir a Direcção Comercial, função que exer-ceu até à sua nomeação como Director-Geral. Torna-se assim o primeiro português a exercer este cargo.

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É assim uma espécie de piscadela de olho aos chineses… E a Citroën a exibir com pompa no mercado chinês o seu concept Número 9, expressão da linha DS. Os franceses da marca a proclamarem: «Gama de escolha mais radical no universo de veículos Premium». O protótipo que quer antecipar o futuro da silhueta DS anuncia os códigos estilísticos dos três próxi-mos modelos desta linha: uma berlina Premium do segmento C, um SUV e uma berlina topo de gama do segmento D.

Com o comprimento avantajado de 4,93 metros e uma lar-gura de 1,94 m, para uma distância entre eixos de três metros, o Nº 9 aposta numa carroçaria negra, a cruzar com subtis

nuances de roxo, de nome whisper, para um casamento com os acabamentos cromados californien.

E o que o faz mover, para embasbacar… O concept com-bina um motor térmico (a gasolina ou diesel, dependendo dos mercados) com um eléctrico, implantado ao nível do eixo traseiro, desenvolvendo uma potência de 70 cavalos. O eléc-trico é alimentado por baterias de iões de lítio, recarregáveis em 3,30 horas numa tomada de corrente doméstica. Adopta, por outro lado, uma motorização a gasolina de 1.6 THP, com uma potência de 225 cavalos. Para chineses comprarem no futuro, ocidentais a ver…

Prioridade China

Modelo de charneiraIbiza é tão só o modelo de charneira da Seat, e eis que ele retorna mais competitivo! Esta nova versão disponibiliza veículos para toda a clientela reunida, a saber: compacto e desportivo SC, o prático e familiar ST de cinco portas, o E-Ecomotive e o super-desportivo FR de 150 cavalos. No ca-pítulo das soluções tecnológicas, aí estão os propulsores TDI, CR e TSI de última geração, as caixas de velocidades DSG e o sistema Start/Stop, que entrou de moda e bem. Para a gama ficam a inventariar: motores a gasolina, desde o 1.2 de 105 cv ao potente 1.4 TSI com dupla sobrealimentação, 150 cv e caixa DSG de sete velocidades. Noutro âmbito, avaliar os propulsores TDI, sendo expoente o 1.2 TDI CR E-Ecomotive, para tudo finalizar no aguerrido 2.0 TDI CR de 142 cavalos, a cavalgar uma velocidade máxima de 210 km/h. Falta obriga-toriamente… Ibiza Cupra, topo da gama, previsto para chegar no final deste ano.

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Cabe em folha A4Ford Focus EcoBoost Edition de 125 cava-los… Para os senhores da marca, «para quê um Diesel?»... Chegado até nós no princí-pio deste mês, de acordo com os «fordistas» responsáveis, «é o veículo da Ford a gasolina mais eficiente de sempre». Indo ao âmago, trata-se de um motor de 1.0 litros turbo-comprimido e com injecção directa para ex-trair níveis «impressionantes», segundo a marca, de potência e eficiência de combustí-vel a partir de um bloco propulsor de três ci-lindros, tão pequeno que pode caber na área de uma folha de papel A4. Predicado final: sistema regenerativo inteligente que ajuda a manter a carga da bateria da forma mais efi-ciente, reduzindo por sua vez a quantidade total de combustível utilizado.

Color e GoA Opel renova o seu mini-volume Ágila e tudo a bem da condução urbana. O rejuve-nescimento passa pela versão Color Edition, já a dispor da excepcional engenhoca Start/Stop, anunciando-se consumo do «arco--da-velha»: 4,6 l/100 km. E isto em relação a uma motorização de 1.0 com 68 cavalos. Dispondo de lugares para cinco passageiros, os preços estão a partir dos 11.900€. Outra excitação para o construtor é a hora do re-gresso a casa do popular Corsa, agora a jun-tar a palavra Go. O novo carro oferece dois motores a gasolina, 1.2 16v Twinport com 85 cavalos e um 1.4 com 100 cv; e ainda dois turbodiesel, 1.3 CDTI com 95 cv e o mais po-tente 1.7 CDTI de 130 cv. E Go!

Do Japão uma naveOs construtores japoneses não brincam em serviço. E por cá mora o Mazda6 2.2 MZR-CD Navi Series SW e em rigorosa edi-ção especial. A aposta exclusiva é na carroça-ria Station Wagon e no motor 2.2 MZR-CD turbodiesel common rail de 129 cavalos, as-sociando-lhe um acréscimo significativo de equipamento face à gama Comfort, actual-mente em comercialização, com particu-lar destaque para o Sistema de Navegação Mazda com tecnologia Tom Tom. Esta nova edição surge com um visual exterior especí-fico, incluindo uma grelha desportiva, um spoiler traseiro montado no tejadilho, vidros escurecidos, faróis de nevoeiro e jantes de 17 polegadas. Quanto ao preço, 40.025 euros.

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A matemática

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Ainda bem que o técnico de relojoeiro Paulo Anastácio nos falou de um colega que reconstrói relógios - peças grandes, antigas… Assim nos aventurámos até à Marinha Grande, a uma rua escon-dida, já guiados pelo Hermínio de Freitas Nunes que nos foi bus-car à bomba de gasolina. Esperávamos um normalíssimo relojoeiro, sai-nos na rifa um autoditacta… Fomos sabendo disso no passar de uma tarde longa, tentando perceber o seu trabalho na Tic Tac Temporis.

Não faz sentido dizer, só, que conserta sinos, lampadários, reló-gios de torre. O antigo serralheiro dá vida à arte mecânica, a peças moribundas, na aparência boas para o lixo. A perda de património é a sua tristeza. Faz o que pode, muito mais por amor, já que são pou-cos os ganhos com a relojoaria grossa…

Olhamos o emaranhado de ferros e bronzes. Tarde, identifica-remos dois tornos, uma forja, engenhos vários, esmoris, limas gi-gantes, bigornas, rodas e mais rodas, tambores, pesos e balanças, crucifixos… Algumas peças já reluzentes, pelo restauro.

O senhor Hermínio ia dizendo da sua arte, de como faz têmperas dos tempos antigos. Aprendeu serralharia mecânica na CP, talvez por isso, por mais do que por isso, alguém ironiza que ele «até era capaz de pôr um comboio avariado a andar». Mas, no que toca à mecânica dos relógios, aprendeu sozinho.

O único trabalhador da Tic Tac Temporis dedica-se em especial à chamada relojoaria férrea de torre. Só mexe em relógios «de des-pertador para cima». Faz também trabalhos em relojoaria de salão e relojoaria convencional, pendular.

O Pedro perde a cabeça, fotografa tudo, aquela baralhada (!), con-tudo, razoavelmente arrumada. Há por lá um relógio de quartzo do século XVIII. «Esteve há pouco tempo em exposição no Teatro Maria Matos.» Está assinado… «Não se sabe quem foi José Joaquim Lopes.» Quanto vale? «Não vale! Esteve quase a ir para ir para a su-cata, como quase tudo o que tenho.»

Ah, é verdade! Lá fora, estava um relógio que ninguém vai rou-bar. Só o cheiro dele! Precisava de apanhar ar… «Teve como fun-ção bater horas para a muda das águas de rega.» Mas Hermínio Nunes acha-o fascinante. «É vertical, tem 25 dentes, está em grados, vai até aos segundos. Este homem do século XVIII sabia

matemática…» Pelos cálculos que faz, em breve, aquando do cen-tenário de Montemor-o-Velho, dará mais alegria à festa.

Até onde vai a matemática do mestre fica-se sem se saber. A ver-dade é que nos mostra e volta a mostrar linhas de cálculo e gráficos que não nos atrevemos a desvendar… Contas, fá-las pacientemente. Se alguém quiser verificar, «um dia tem 86.400 segundos».

OS ANTIGOS SABIAM IMUNIZAR O FERROPor esta não esperávamos, veja o leitor como responde o relo- joeiro mecânico à nossa convicção de que tal ou tal peça iria en-ferrujar! «Não enferrujam. Os antigos ferreiros sabiam imunizar o ferro dos malefícios da oxidação.» Os de agora, se ainda há algum, já não sabem? «Eu sei, o óleo de linhaça não perdeu virtudes.»

Há um relógio que é verde, o único horizontal. «Veja os tam-bores, são de madeira; e as paletes, tão grosseiras que são!» Hermínio supõe que o exemplar do século XIX é um dos sete ou oito construídos pelo avô do mestre ferreiro, Lourenço Chaves de Almeida, autor do lampadário da sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha. «Já tem mostrador de serviço», indica, e elucida que terá sido adaptado de um relógio de salão. Para onde irá? «Logo se vê, a ideia é que fique em Portugal.»

Está lá, a funcionar bem, um vermelho, do século XX, «igualzinho ao do Arco da Rua Augusta». Foi fabricado por Francisco Manuel Cousinha. Desde a morte de José Pereira Cardina (1953), à excepção do que o mestre construiu para Évora, nunca mais nenhum foi fa-bricado em Portugal.

Um outro, pequenino, verde-claro, (pequenino é como quem diz…) É francês, é de quartzo, «bate os quartos de hora e tem a par-ticularidade de tocar também as horas canónicas». Em reconstru-ção ou para afinação, há muitos relógios na oficina. E um leigo, muito leigo, nem vê que são relógios… Para ler as horas do dia-a-dia Hermínio Freitas Nunes usa um Cauny. Relógio que é relógio, «tem que ter máquina», entende ele. Neste sentido, opina: «Existe uma grande polémica. Como é que um relógio de quartzo se enquadra na alta relojoaria? Pode ser de luxo, ter pedras preciosas, um belo design, daí é que não passa.»

CHEGOU O PENDULAR DE MONTEMORO restauro do momento estava quase pronto – o relógio da Congregação de Nossa Senhora da Caridade, em Viana do Castelo. Aguardada há meses, chegara a máquina que deixara de bater horas numa torre do castelo de Montemor-o-Velho. Deve estar feliz o nosso mecânico, a desmanchar rodas e rodinhas, a desenferrujar o pêndulo, a desmantelar tudo, antes de lhe curar as feridas. «Não

Hermínio Nunes recupera relógios de torres sineiras. É um homem culto: historiador, escritor, até poeta, sempre a reviver e a remexer no passado. Mora na Marinha Grande, tem uma o�cina, precária mas funcional. Antiguidades e velharias são com ele.

do relógioTEXTO CARVALHO SANTOS FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

NÃO HÁ RELÓGIO QUE NÃO TENHA CONSERTO

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há relógio que não tenha conserto», reforça. «É a fase em que me divirto mais na oficina». E lá de cima, durante as montagens, tem «o privilégio de ver que não há grandes homens». Interpomos: quanto tempo dura um relógio destes? «O que está no Quartel General de Évora vai durar mil anos!» Fê-lo, de raiz, em 2009.

De dia trabalha, de noite congemina. «Muitos dos problemas da mecânica resolvem-se na cama.» Ou lê, ou escreve, é lícito supor. Hermínio Nunes adora o silêncio. Tranquilo enquanto comanda as mãos, agitado enquanto reflecte. É louco por velharias e por relíquias sem valor que transforma em preciosidades. Algumas delas, assegura, não as venderia por nenhum preço.

«O vidro já não dá nada», contudo, ainda produz, para Espanha,

sobretudo com destino ao mosteiro de Oseira, na Galiza, algumas garrafas para conservar licores.

Intervenções na chamada relojoaria grossa são tantas que nos fi-camos por algumas, em monumentos ou santuários mais conhe-cidos: Torre Municipal de Aljubarrota, Santuário de Santa Maria de Vagos; antiga Agência do Banco de Portugal, em Coimbra; Igreja Paroquial da Marinha Grande; Santuário do Senhor Jesus, Leiria; Igreja Paroquial de Ançã; Torre do Mercado de Benfica do Ribatejo. Queremos saber que livros, sobre relógios e relojoei-ros, nos recomendaria o mestre. Cita apenas um: Quem é Quem, no Tempo e em Portugal, de José Mota e Fernando Correia de Oliveira.

GUARDADOR DA OBRA DE JORGE REISSe lhe agrada mais a parte manual do que a actividade cultural, não im-porta saber. Acreditamos que este figueirense de nascimento ganha tempo a investigar, seja a matemática, a que lhe serve para contar o tem-po, ou o que respeita ao passado e presente da Marinha Grande, terra de adopção desde 1977.Amante incondicional do património, Hermínio de Freitas Nunes tor-nou-se, há duas décadas, investigador da história da Marinha Grande. Da indústria do vidro aos fenómenos sociais, políticos e religiosos.Colaborador e colunista em jornais da região e conferencista, este inves-tigador de 55 anos assinou até hoje mais de uma dezena de livros. Já é fraca a visibilidade na sua biblioteca, onde ressaltam exemplares de Ros-tos, Um Vidreiro no Tarrafal, Alvorada de Esperança, A Elevação da Mari-nha Grande a Concelho, A Irmandade do Senhor dos Aflitos, Os Pesca-dores da Praia da Vieira, O Documento de Certidão de Nascimento da Marinha Grande. Entre outros. É fiel depositário de parte da obra do es-critor Jorge Reis, autor de Matai-vos Uns aos Outros. Com natural orgu-lho exibe uma preciosidade livreira - «o único exemplar da primeira edi-ção de A Memória Resguardada». Hermínio Nunes interessa-se pela arte sacra, é membro fundador da As-sociação Portuguesa de Cister. Está ligado às artes tradicionais da pes-ca, do Furadouro à Vieira de Leiria, vulgo da Xávega. Que ligação? «In-vestigo. E integro o grupo de pessoas que preparam o projecto de candidatura da Cultura Avieira a Património Nacional».

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A Coimbra de quem lá vive

Coimbra não é dos estudantes. Estes só passam por ali porque têm condições para tanto; que lhes são dadas por uma Coimbra que tem conimbricenses. E bairros onde há gente que estuda (sim, também!), mas trabalha e vive na que é chamada «cidade dos estudantes». A EPICUR esteve no que é, porventura, o bairro mais emblemático e dos mais antigos da cidade: o Bairro Norton de Matos.

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É verdade que eles enchem as ruas de capas e batinas, de trajes negros. Mas é, sobretudo, verdade que o pulsar da cidade está nas gentes que ali vivem em per-manência. Está no Bairro Norton de Matos onde a vida é menos boémia, mas perene.

Integrado na Freguesia de Santo António dos Olivais, uma das maiores e mais populosas do país, o

Bairro Norton de Matos é dos que foram criados nas grandes cidades para alojar pessoas que, por qual-quer motivo – a construção da Ponte 25 de Abril, em Lisboa, por exemplo – foram obrigadas a abandonar as suas casas.

Não raro, contudo, estes bairros, pela sua quali-dade de construção, acabavam por ir parar às mãos

A Coimbra de quem lá vive

TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS HERNÂNI PEREIRA

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de «filhos» do regime, que os «enteados» acabavam em outros com bastante menos condições.

Em Coimbra, o Bairro Norton de Matos tem hoje três «rostos»: as vivendas maiores, com três frentes ajardinadas, as vivendas ge-minadas, com duas frentes, e a área mais recente já com prédios de apartamentos.

Edificado na década de 40 do século passado, o Bairro teve em vista o alojamento dos conimbricenses que viviam na Alta de Coimbra, de-molida para ali surgirem edifícios que albergam hoje departamentos diversos da Universidade, uma obra ligada a Salazar e Duarte Pacheco que pretendiam construir a cidade universitária.

Inicialmente chamado de Bairro do Calhabé e mais tarde Marechal Carmona, com ruas denominadas por letras, o hoje Bairro Norton de Matos foi implantado em terrenos expropriados aos Bourbon e re-cebeu famílias de recursos médios que ocuparam as 392 casas edi-ficadas. Mas tantas eram as ruas que, esgotado o alfabeto, foram as letras substituídas por nomes de antigas colónias e gente ligada aos Descobrimentos.

Os tempos mudaram, as casas foram sujeitas a obras e o comércio local implantou-se numa força e dinamismo, numa imaginação e cria-tividade que levam a que ali os cafés fechem às duas horas da madru-gada e as Noites de Verão (mormente em Julho) sejam animadas com espectáculos de rua, muita música e festejos. Distantes dos tempos de outras noites de Verão, precursoras das actuais, em que havia uma ca-bine de som e se dedicavam músicas pedidas às namoradas.

Claro que a nenhuma destas actividades é alheia a presença da Junta

de Freguesia de Santo António dos Olivais, ou não fosse ela liderada por um histórico da região, Francisco Andrade, que tem na «sua» autarca Graça Oliveira, do pelouro da Cultura, uma verdadeira «força da natureza».

O périplo da EPICUR começou, pois, na própria Junta de Freguesia, onde Francisco Andrade iniciou a conversa por uma ver-dadeira reivindicação: «Santo António é de Coimbra!», já que a vida de Fernando Bulhões mudou aqui, quando descobriu a sua vocação e mudou de nome, mais concre-tamente no eremitério dos Olivais.

Há 16 anos à frente dos desígnios da fregue-sia, Francisco Andrade revela que no último census foram contados 50 mil habitantes, havendo 34 mil eleitores. Mas sabe que os números são muito mais elevados, porque conhece gente que não foi recenseada e, em matéria de eleitores, não foram contados os menores de 18 anos.

Jogador da Associação Académica de Coimbra na crise de 1961, Francisco Andrade treinava já o clube em 1969, quando surgiu nova crise. Era, pois, do grupo que colocou em causa o regime na final da Taça de 1969,

quando os jogadores da Académica, no dia 22 de Junho, deixaram cair as capas em sinal de luto. E era ainda treinador quando nasceu o 25 de Abril de 1974.

Com o desporto no coração, esta freguesia tem espaço para diversas actividades que incluem diferentes tipos de ginásticas, tanto para os mais novos como para os mais velhos.

É, pois, este mesmo Francisco Andrade, de 72 anos, natural de Viseu mas de Coimbra por amor à terra, homem de fortes convicções, quem resume a vida de Santo António: «Nasceu em Lisboa Fernando Bulhões, nasceu António em Coimbra, para ser frei, e fez-se Santo em Itália».

Daí que a freguesia dos Olivais tenha um centro de estudos e um núcleo museológico ligado ao santo. Mas nada que prepare quem es-creve e fotografa para a maravilha que é a igreja da freguesia, situada no cimo da colina de Santo António dos Olivais, onde anteriormente ficava a Capela de Santo Antão, doada por Dona Urraca aos francisca-nos e, portanto, com construção iniciada, possivelmente, no séc. XII.

A escadaria foi construída no século XVIII. São 30 degraus de pedra divididos em seis lanços, ladeados por seis capelas que contam o Calvário de Cristo. Foram diversas e naturais as alterações ao primeiro

«SANTO ANTÓNIO É DE COIMBRA!» JÁ QUE A VIDA DE FERNANDO BULHÕES MUDOU AQUI, QUANDO DESCOBRIU A SUA VOCAÇÃO

O PRESIDENTE DA JUNTA, FRANCISCO ANDRADE, E A AUTARCA GRAÇA OLIVEIRA

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templo, mas uma grande parte foi destruída num incêndio em 1851, de que só restaram a igreja e a sacristia.

Os azulejos revestem a maior parte do interior da igreja e da sacris-tia, onde podem ser encontrados quadros de Pascoale Parente. E há a talha dourada, as imagens, o altar-mor de pedra lavrada, das oficinas do mestre João Machado...

Numa visita à zona é absolutamente impensável não ir ver o pre-sépio junto à igreja, que se julga ser dos maiores e mais antigos da Europa, possivelmente construído ao longo do tempo, já que parece haver uma mistura de estilos, tanto nas figuras como na própria construção da pedra e nos materiais utilizados. Certo, somente, é que foi restaurado em 1929, porque a placa assim o indica.

Depois da visita à igreja, é tempo para um café. Chama-se (claro!) Café Santo António, mas todos o conhecem por Adelino, nome do proprietário que ali está desde 1968. Conta histórias, como a do prato que servia, o Biafra: «Um prego no prato com batatas e ovo, mas que era um preguinho pequenino. Nos anos 70 custava dez escudos e os estudantes faziam fila para comer.»

E recorda que no dia em que abriu o estabelecimento vendeu sete bicas e 20 litros de vinho tinto à taça. No final do dia a caixa tinha 430 escudos. «Um tempo em que só se bebia café ao domingo, dia em que se chegava a vender 200 pastéis de nata, contra a média semanal dos dois ou três.»

Por estes lados foi feito também um roteiro de escritores, já que por ali passaram Teolinda Gersão, Vitorino de Nemésio, Miguel Torga e Assis Pacheco, entre muitos outros. A cultura é, aliás, uma das preo-cupações maiores de Graça Oliveira que entende ser dever de autarca «levar de tudo e a todos». Por isso, os roteiros culturais, desde a mú-sica à escrita são frequentes.

Note-se que a freguesia foi fundada em 1855 e assinalou os seus 157 anos com uma festa que juntou várias gerações de fadistas e propor-cionou um documento único, em DVD, com alguns dos intérpretes do Fado de Coimbra dos anos 40, 50 e 60. Desde as guitarras e vio-las de Durval Moreirinha, Rui Pato, António Andais, Octávio Sérgio, Jorge Tuna às vozes de Luíz Goes, Fernando Rolim, Camacho Vieira, Napoleão Amorim, Fernando Gomes Alves, José Miguel Baptista e Vítor Nunes, foi possível guardar para memória futura alguns dos mais consagrados músicos que por Coimbra passaram.

Depois, segue-se a visita ao Bairro Norton de Matos onde, segundo Graça Oliveira, o número de crianças está a aumentar, criando novas expectativas e esperanças para o futuro.

Com efeito, nesta zona vêem-se muitos jovens e crianças, tanto nas ruas como nos parques infantis, ao entardecer. Há bicicletas, trici-clos, bolas e aparelhos de ginástica. Percebe-se que se misturam avós e netos, sobretudo em algumas pracetas do bairro, em tudo com ca-racterísticas tradicionais. De notar que a farmácia Silva Soares, por exemplo, funciona muitas vezes como posto social, de atendimento, de solidariedade, ou simples local de desabafos.

Há moradores que se queixam da falta de segurança, mas esse, como consideram, «é um problema generalizado». Maria José Neves, enge-nheira técnica agrária, que mora no bairro há 61 anos, lembra o tempo em que «era uma casa só, de janelas e portas abertas», sempre com a mesma gente e a mesma vizinhança.

É verdade que muita coisa mudou no Norton de Matos, mas não é menos verdade que todos se saúdam, falam, cumprimentam e os tratamentos em «inho» manifestam um carinho, um cuidado, uma familiaridade susceptíveis de fazer inveja a quem vive do outro lado, mais na cidade dos estudantes.

O PRESÉPIO NÃO TEM DATA DE CONSTRUÇÃO. A SACRISTIA É, TODA ELA, UMA OBRA DE ARTE

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Os três mais famososNão são longe uns dos outros. São cafés que marcam a vida do bairro. Falamos do Samambaia, do Mónaco e do Esquininha.O primeiro tem mais de 40 anos e foi remodelado mais recentemente. Por lá passa-ram muitos nomes marcantes de Coimbra e os clientes são saudados de forma fa-miliar. Todos se conhecem bem e, pela localização, é um local de primeira para os espectáculos das noites de Verão.No Mónaco, que abriu em 1961, as coisas têm corrido pior do que nos dias em que Fernando Tordo e Ary dos Santos, entre muitos outros, o frequentavam. Era mesmo conhecido pelo «café dos comunistas». Hoje, faz-se chalaça: como tem três portas e outras tantas salas, as ideologias políticas distribuem-se em conformidade. Quer dizer que na sala onde se reúnem os de esquerda não ficam os da direita. Mas é mesmo

de «picanço», como explica Graça Oliveira, adiantando que agora já nada disso se justifica e as pessoas se entendem. O Esquininha não parou no tempo. Existe há mais de 25 anos e foi desde mer-cearia a pastelaria e ponto de venda de uma fábrica de bolos. Tem uma especia-lidade: a tosta de galinha. É feita com pão caseiro e frango estufado e desfiado. Leva queijo, orégãos e picante. E, claro está, vai tudo à tostadeira. E diz quem sabe que é possível trocar a galinha por lombo desfiado e fica um outro petisco.

Samambaia – Praça Infante D. HenriqueEsquininha e Mónaco – Rua Daniel de Matos

Do bolo aos mimos de Santo António Os doces de Santo António têm, na freguesia e no bairro, uma história. Quis a primeira homenagear o Santo e promoveu, há dois anos, um concurso que vi-sava a criação de uma receita que, obrigatoriamente, teria flor de laranjeira e frutos secos.Os grandes vencedores foram a Vasco da Gama, no Bairro Norton de Matos, e a Tosta Rica. A primeira confecciona hoje o bolo de Santo António que é com-prado com uma caixa que, além de servir de prato, ainda tem a história do santo.Mas nem só daquele bolo vive a Vasco da Gama, que tem algumas verdadeiras especialidades, como os tradicionais pastéis de Santa Clara, os viscondes (bolos de chocolate e amêndoa), e os queijinhos conventuais. Tudo a servir há mais de 28 anos, ou não fosse esta a «casa mãe» de uma rede de estabelecimentos que vingou na região.Já a Tosta Rica, que existe desde 1978, ainda que antes tenho sido uma padaria, é um negócio de família. Hoje é de José e Maria Isabel Gaspar, mas a criação deve-se ao pai do primeiro.Quanto aos mimos de Santo António, eles são isso mesmo: o recheio é feito com farinha de arroz, fios de ovos, ovos, açúcar e flor de laranjeira, que dá um travo delicioso e que se prolonga na boca.Vendido em caixas do género das dos pastéis de Belém, os mimos também con-tam a história do santo e trazem mesmo um pequeno desdobrável destinado ainda a servir de marcador de livros.Os salgados são aqui uma outra especialidade, mormente as tartes. Mas a do-çaria conventual, aliás como em quase toda a região, é sempre o «prato forte».

Pastelaria Vasco da GamaRua Vasco da Gama

Tosta Rica, Lda.Rua das Parreiras, 41

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São de Mortágua, mas há 21 anos que estão no Bairro Norton de Matos. São os irmãos Ventura, com Rui à cozinha e Pedro a gerir. Começaram por assar leitões em restaurantes da zona da Bairrada, aí pelos 15 anos. Depois, um emigrou para a Venezuela onde fez uma churrasqueira, o outro foi ficando a cozinhar em Portugal. Há 21 anos juntaram-se em Coimbra e ali fizeram o restaurante D. Duarte II onde o polvo à lagareiro é prato de excelência. Mas há mais: o arroz de costela de porco em vinha-d’alhos, o sável de escabeche ou frito com açorda de ovas, os crepes de camarão com arroz do mar.Na sobremesa são de não esquecer os crepes do chefe, com doce de ovo e calda de laranja, natas com amêndoa ralada, tudo queimado a ferro quente, ou a tarte de natas com chocolate. O vinho a fixar é o da Bairrada, de 2008, Contracorrente, de três castas, a saber Castelão Nacional, Tinta Cão e Cabernet Sauvignon.Crise? Com certeza, mas dão «o máximo para a contrariar». Por isso, oferecem «uma cozinha de excelência». Hoje já têm muitos clientes do próprio bairro, o que representa uma conquista, pois a clientela é de classe média/alta e, no início, parecia receosa. «Mas a qua-lidade na confecção e a simpatia dos funcionários Gil e Marta» levaram a melhor. Há mesmo marcações para grupos de diversas partes do país que ali querem apreciar também o peixe fresco e os mariscos.

D. Duarte II Rua de Moçambique, 34Telef.: 239701461

Quantidade não é mesmo qualidade!Na mercearia A. Bernardo & Simões o lema é que quantidade não é qualidade. Os produtos são maioritariamente regionais, desde o vinho aos queijos, pas-sando pelos enchidos e a fruta.Luís António e Maria de Lurdes Simões instalaram-se no bairro já lá vão 41 anos. E são defensores acérrimos do comércio tradicional.«As grandes quantidades são para as grandes superfícies. Aqui tudo é regional e apostamos sempre na qualidade», afirma Luís António, enquanto a bem--disposta Maria de Lurdes recebe alegremente clientes que lhe perguntam que idade tem, já que aparenta bem menos do que aquilo que terá. «Ora diga lá que idade me dá?», pergunta. E o cliente: «58?» Maria de Lurdes é rápida na resposta: «E não é que acertou?» O mesmo diálogo se sucede com outros que lhe dão 62 anos. E a resposta vem sempre: «E não é que acertou?» Para Maria de Lurdes o riso e a boa disposição fazem parte de um bem receber clientes que dali saem sempre mais contentes. «É que a crise bateu à porta de todos, mas o riso não se paga», afirma a dona da mercearia.Luís António está mais preocupado: «Falava-se na crise, foi-se falando, mas agora chegou com muita dureza e as pessoas não têm dinheiro, nem para os bens mais essenciais.»Apesar de tudo, nem que seja para «dois dedos de conversa» ou para «acertar» na idade de Maria de Lurdes, os residentes do Bairro Norton de Matos não dis-pensam a passagem por ali no seu dia-a-dia.

A. Bernardo & SimõesRua Mouzinho de Albuquerque, 48-54

Um ponto de encontro da culturaNo Bairro Norton de Matos quando se precisa de artigos de papelaria ou de qualquer livro vai-se à Minerva. Isabel e José Alberto Garcia criaram a livraria/galeria em 1998, o natural prolongamento da editora com o mesmo nome.«Era um bairro com várias escolas e sem nenhuma oferta livreira», conta José Alberto, acrescentando que, durante muitos anos, foram o único estabelecimento desta natureza no bairro.Acabaram por tornar-se um espaço cultural, onde se fazem mostras de pintura, lançamentos de livros, palestras e até «pequenas manifestações culturais desde teatros a conversas com autores». A Universidade dos Tempos Livres, destinada à terceira idade, chegou a dar aulas na Minerva, incluindo de literatura, história, arqueologia. E já ali decorreu um Encontro de Gerações que juntou conimbri-censes de todo o mundo. Mostra de colecções e conferências sobre Santo António são, como é quase óbvio, outra das actividades da livraria.As Edições Minerva Coimbra começaram a editar em 1982, sendo a sua primeira obra as actas do Congresso Internacional de História de Arte. Hoje lideram as publicações nas áreas do jornalismo e comunicação.O espaço no bairro Norton de Matos é verdadeiramente único, num desenho da autoria dos seus proprietários, todo forrado a madeira «já que este é um ma-terial nobre». E para quem quiser ir passear na zona, nada como repousar na Minerva, desfolhar um livro, ver uma boa exposição e ver algumas das obras únicas que ali aguardam «quem as mereça comprar».

Livraria MinervaRua de Macau 52

D. Duarte II conquistou

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Vivem no Bairro Norton de Matos, onde Graça Oliveira os pôs em contacto, para uma conversa que já se alonga no tempo. O Sr. Ribeiro, como lhe chamam, começou a fazer peças pequenas com os paus dos gelados, do «Rajá», para entreter os filhos quando iam para a praia da Figueira, numa época em que «se ia a banhos». A primeira foi uma ventoinha, seguiram-se os atletas. «Depois, os

miúdos já iam apanhar os paus para terem mais coisas.» Em casa tem uma colecção particular e não vende nada, «porque cada peça é um filho e os filhos não se vendem».

Mais tarde, depois de anos a trabalhar na Sonap, posteriormente Petrogal, veio a reforma e o Sr. Ribeiro passou a dedicar o seu tempo a uma actividade que sempre o fascinou. A primeira peça foi um

São dois artistas. Não gostam de assim ser chamados, mas verdade é que o são. Manuel Marques Ribeiro tem 75 anos. José Moura Távora tem 56. Um recicla tudo o que é madeira. O outro manda vir de Espanha tijolos de terracota de sete milímetros. Um faz fontanários portugueses, torres e igrejas, o outro atira-se a casas de xisto e a monumentos históricos. Juntos têm cumplicidades e uma amizade que lhes permite a crítica construtiva, o melhorar de cada peça.

Património em pequeninonasce a quatro mãos

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fontanário de Condeixa-a-Nova, de onde a mulher é natural. Hoje, já tem todas as fontes da freguesia e até a Fonte das Três

Bicas, em Leiria. Já construiu as igrejas de Santa Cruz e de S. Bartolomeu e a Torre de Santa Cruz que, num atropelo da época, foi demolida em 1935.

Para o Sr. Ribeiro não há dificuldades. Ele pega em fotografias, es-tuda a história do que pretende construir, vê as dimensões («sem-pre fui bom a Matemática») e constrói. O estudo da História passa também por aqui. «Sem se ter o conhecimento não se consegue fazer nada.» Por isso, aprende-se que o nome de Tondela faz sentido: era uma propriedade em que a proprietária usava uma corneta para cha-mar os criados para o almoço. «Eles iam ao tom dela (Tondela), para a refeição.» Por isso, o fontanário da região é encimado com o busto da senhora tocando a corneta.

Há tempos construiu o mosteiro de Santa Cruz. Só a fachada de-morou um mês. Mas até os sinos dobram. E está a fazer a Igreja do Carmo.

A perfeição dos azulejos e as bicas da água têm uma explicação. Os primeiros são feitos com o cartão, que se risca em quadriculado

com uma esferográfica que já não escreva. Depois, com uma outra já mais gasta, fazem-se os desenhos conforme o original e esbatidos. Termina-se com as bicas que não são senão as cargas vazias das mes-mas esferográficas. Parece fácil? Mas não é, porque a precisão de cada objecto é matemática. E isto mesmo é explicado às crianças quando o Sr. Ribeiro faz exposições ou se dirige às escolas da zona, porque ele «ensina a fazer contas e esquadrias de uma outra forma».

Como curiosidade, saiba-se que na parte de trás de cada peça está escrita a sua história, para que nada seja dito ou feito ao acaso e todos possam aprender.

Porque não exibe mais o seu trabalho, porque faz dele próprio um desconhecido da opinião pública? Porque enjeita o ser um ar-tista? Além da modéstia que caracteriza a postura do Sr. Ribeiro, há a necessidade de «assumir um acto de revolta, para mostrar que, de facto, temos muito e aproveitamos pouco». E recorda o seu mentor, Monsenhor Nunes Pereira, que trabalhava com igual modéstia e com quem aprendeu «muito».

Para o Sr. Ribeiro, José Moura Távora é o Sr. Moura. Há tempos, durante a construção da Torre de Almedina, que tem uma parede

O «MOCHO» DE COIMBRA, QUE POUCOS ENCONTRAM

A CASA DE XISTO

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que já não existe e que o artista tinha construído, o Sr. Ribeiro foi pe-remptório: «Sr. Moura, dê-lhe aqui uma martelada para ficar em der-rocada.» O Sr. Moura, depois de tanto trabalho a construir o muro, pecinha a pecinha, pegou num martelo, hesitou, pousou o martelo, pegou-lhe de novo e «de lágrimas nos olhos», como o próprio conta, «zás!», foi-se ao muro e deu-lhe uma martelada. «Ficou a peça mais leve, mais bonita, mais em conformidade!», reconhece. Mas diz que ainda lhe dói, só de pensar nisso.

O Sr. Moura é aposentado da PT. Fez modelismo até aos 18 anos e parou esta actividade até aos 53, quando a retomou, na sequência da reforma. Hoje, a par de inúmeras acções com diversos grupos de des-porto ligados ao basquetebol, elabora duas colecções: casas tradicio-nais portuguesas e monumentos de Coimbra. Mas confessa ter um hobby: os carros e pistas.

«A terracota nunca foi verdadeiramente explorada em Portugal e a espanhola tem metade da dureza da nossa pedra de Ançã.» Por isso, manda vir o material de Espanha. «Além disso, com portes e tudo, fica mais barato», acrescenta. E adianta que também trabalha com papel higiénico, para fazer montes, e pedras várias.

Em três anos, construiu 12 peças de Coimbra. Mas o total, com as casas portuguesas, já é superior a 20. Conta que estudou e entrou em Direito. O professor Veiga Simão deu-lhe aulas de português e nem seria mau aluno. Todavia, uma vez na faculdade, «partiu a perna a uma cadeira, como se diz em Coimbra, e acabaram-se os estudos».

«Artista, eu? Não! Sou só um curioso de moldar alguma coisa. É assim que me sinto», afirma. E conta que, por vezes, sentado diante dos seus trabalhos, se espanta e interroga-se: «Moura, foste mesmo tu quem fez isto?» Mostra, de lágrimas nos olhos, uma casa: «Era a do meu maior amigo, já falecido, e agora nunca vai sair de ao pé de mim». Junto a um monte alentejano, explica que a árvore é um bró-colo seco, pintado e envernizado.

As cumplicidades do Sr. Ribeiro e do sr. Moura? É o segundo que as explica: «A formação católica, o gosto pela História e a an-siedade que ambos temos em saber e aprender cada vez mais. Não queremos saber tudo, mas um pouco mais em cada dia que passa. Completamo-nos.»

As obras do Sr. Moura estão guardadas numa casa, cedida por uma amiga, onde também costuma trabalhar na sua arte: «A minha mu-lher já não podia ver o material em cima da mesa da sala de jantar…»

E ri com gosto, acentuando que edificou a igreja onde a amiga casou, para lha oferecer. Se recebe encomendas e lhe pagam? O Sr. Moura fica chocado com a pergunta e mostra o «seu» Mosteiro de Santa Clara, a «sua» Sé Velha («entre 300 e 400 horas de trabalho»), a «sua» Ponte do Ó.

Por entre risos, conta a história da abóbada da Sé Velha: «Não sabia como havia de fazer o redondo. Um dia, estava pôr a mesa para o almoço e abri uma gaveta, que nem sequer era a que queria, e vi ali o funil. Percebi logo!» Depois de fazer desaparecer a peça de cozinha, o Sr. Moura ainda se fez de achado quando a mulher pas-sou dias à procura do funil…

O Sr. Ribeiro comenta que a sua leitura, no momento, já é o II volume da História da Sé Velha, a mesma que, nas mãos do Sr. Moura, já tem um investimento superior a 500 euros, somente nos tijolinhos.

Objectivos? O Sr. Ribeiro quer continuar as suas obras e ensinar mais crianças, enquanto o Sr. Moura tem em vista «acabar toda a História da cidade».

Sofrimentos de artistas? Ambos sofrem quando vêem a sua arte maltratada. O Sr. Moura conta, por exemplo, que um dia, de um organismo público ao qual ofereceu algumas peças, as recusaram dizendo que era «coisa que as crianças compravam nas papelarias e construíam em casa…», ou que quis oferecer toda a sua obra a um privado que a recusou. Nomes de quem e quando, prefere não referir, mas o Sr. Moura acrescenta que foi uma daquelas pessoas que, algum tempo mais tarde, teve de lhe dar um prémio atribuído numa exposição…

De resto, o Sr. Moura confessa sofrer quando lhe falta menos de um quarto do trabalho: «Dá-me a ansiedade!». E o Sr. Ribeiro fica triste «quando se vêem alguns erros.»

Aos jornalistas afigura-se que o Sr. Ribeiro nunca deve ficar triste e que o Sr. Moura não tem motivos para ansiedade. De todo o modo, ao leitor restará visitar a casa do Sr. Ribeiro, na Rua Infante Santo, no Bairro Norton de Matos, pedir para ver as obras e que o leve até à casa de trabalho do Sr. Moura. Só depois se pode debater a arte destes dois homens.

MM/HP

A ARTE EM TIJOLO DE TERRACOTA COM SETE MILÍMETROS E EM MADEIRINHAS TALHADAS

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O último dos garimpeirosO garimpo de ouro no Tejo e no vizinho Ocreza terminou há 60 anos. Manuel Ribeiro Gonçalves, de 85 anos, ainda o recorda, na aldeia de Foz do Cobrão. «Só lá íamos porque a vida do campo aqui era uma miséria e passávamos fome».

TEXTO E FOTOS NUNO FERREIRA

Manuel Ribeiro Gonçalves, de 85 anos, mais conhecido por Manuel «Paneiro» acabara de chegar do lagar de azeite e sentara-se, há não mais de cinco minutos, num sofá das instalações do GAFOZ (Grupo de Amigos da Foz do Cobrão): «Não gosto de estar parado. Gosto de andar ou então leio os livros que a câmara traz. Ultimamente li um da Isabel Alçada e esse grandalhão que está aí (2666, de Roberto Bolaño). Li tudo mas não gostei muito. Do Sousa Tavares gostei muito, aquele passado em África.» Manuel já trabalhou muito no campo, nas ceifas no Alentejo, na azeitona e na vinha, vendeu fatos para homem e transportou limões da zona para vender no Mercado da Ribeira, em Lisboa, mas do que todos querem saber é dos seus tempos como garimpeiro no Tejo e no vizinho Ocreza.

«Eram anos de miséria. Só íamos para o rio pesquisar o ouro para matar a fome. Era preciso comer quando terminavam as ceifas ou a apanha da azeitona. Naquele tempo a aldeia tinha umas 600 pes-soas e só oliveiras, batata, couves. Não havia cereais. Tínhamos 20 moinhos a água mas precisávamos de comprar o cereal para fazer o pão no mercado de Vila Velha do Ródão», conta Manuel, que come-çou no garimpo em criança, com o pai.

Da Foz do Cobrão, concelho de Vila Velha de Ródão, partiam gru-pos de três ou quatro homens que se espalhavam pelas margens al-cantiladas do Ocreza, entre as fragas das Portas de Almourão onde, conta a lenda, um dia dois pescadores encontraram no fundo do rio um carrinho de bois em ouro. «Queriam levá-lo para casa mas com a ganância deixaram-no resvalar e lá voltou ele para o fundo.

É o que se conta, sempre se contou essa lenda.» Manuel e os outros garimpeiros chegavam a andar por ali semanas, dormindo à beira rio, pesquisando, lavando, uns dias com sorte, outros nem por isso. Usavam uma bandeja redonda em madeira. «Segurava melhor o minério.»

Na bandeja vinha estanho, ferro, chumbo e, com sorte, algum ouro. «Era preciso ter cuidado para não deixar chumbo nenhum na bandeja. Depois, colocávamos o mercúrio. Este é que separava o ouro do resto. Ficava branquinho...» No final, aqueciam o ouro numa colher até o amarelecer.

«Dava poucochinho, se desse muito estava rico», conta a sor-rir. À procura do ouro da Foz do Cobrão chegavam das bandas de Cantanhede os «malas verdes», ourives ambulantes empoleirados em bicicletas transportando um baú de folha-de-flandres. No mer-cado de Vila Velha do Ródão, tanto compravam como vendiam: «Aos 19 anos, no Dia dos Santos, comprei-lhes um relógio por 360 escudos, ganhava eu 15 a 16 escudos… Ainda o tenho.»

Os outros iam largando o rio e o garimpo, Manuel «Paneiro» foi dos últimos. «Andei lá até 1955.» Hoje, Foz do Cobrão tem cerca de 40 habitantes, a maioria idosos. Ganhou alguma vitalidade e muitos visitantes com a criação do GAFOZ e a adesão à Rede das Aldeias de Xisto. «Aparece muita gente no Verão e nos fins-de-se-mana.» Muitos querem saber como se fazia o garimpo de ouro no rio Ocreza e Manuel, um homem que gosta de conversar, nunca se faz rogado e leva-os até ao rio. «Sempre que há um grupo e me pedem eu vou…»

NUNO FERREIRA

Portugueses

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Hoje vamos mudar de rumo. De rumo e de tema. Vamos deixar as grandes cidades, servindo-nos apenas delas como lugar de aboleta-mento, como ponto de partida. Tratemos de sair para o mundo rural, para os amplos espaços que o campo nos oferece. Neste caso os cam-pos de fronteira entre o Alto e o Baixo Alentejo. Vamos penetrar na humildade de uma ou outra ermida, vamos olhar-lhes a decoração interior.

Vamos, de rota traçada, espreitar umas quantas pinturas a fresco que, na sua maioria, o tempo, a mudança de gosto e de moda, nem sei se a própria ortodoxia clerical, por vezes ocultaram e, outras vezes, renovaram com novas pinturas. Com representações que, depois, o tempo fez quase – ou mesmo de todo – cair em ruína, os homens puseram de lado e tantas vezes sacrificaram aos novos e sucessivos tempos.

E porque os novos modos de encarar o património, os novos inte-resses dos investigadores se passaram a inclinar ainda mais para tal matéria – o fresco – vamos por isso correr na sua esteira um peque-nino circuito alentejano. Desordenadamente, um de tantos circui-tos possíveis. Iremos partir de Évora, mas já com olhos embebidos na pintura mural presente em duas das múltiplas igrejas da cidade, a de Santiago e a de S. Mamede.

Depois havemos de ir Portel. E daí à Vidigueira, mas para não parar-mos senão em S. Cucufate. E passamos ao Alvito. E depois rumamos à Vila Nova da Baronia, mas ao campo. Até terminarmos o percurso junto à alentejana Viana, onde se acha o esplendoroso santuário de-dicado à Senhora d’Aires que, em toda a glória, mas em humildade, nos vai fechar o percurso.

Posto isto e sem mais dilações, avancemos, que está na altura de

iniciarmos a nossa visita. Vamos então ver os nossos santos, que é a suas casas que nos estamos a fazer convidados. A ordem de chegada, a hora de batermos às suas portas, há-de corresponder às voltas do caminho que formos fazendo, aos rumos traçados pelas estradas. Só que, para evitar ciúmes e invejas, a que tanto são atreitos estas respei-táveis figuras, havemos de enfileirá-los, por ordem alfabética, a partir de Évora, aos santos das moradas rurais, que não aos da cidade.

Antes de mais, adiantemos como Évora, também em termos de pintura, é terra de pergaminhos e de acentuado património mural. Frescos profanos ou de inspiração antiga, pagã, tem-nos nas suas aristocráticas moradas, inseridas na velha acrópole: os quinhentistas

TEXTO E FOTOS FERNANDO-ANTÓNIO ALMEIDA

Santospintados de frescono AlentejoEste é um percurso em que se procura, declaradamente, seguir os caminhos da santidade. Nas terras alentejanas, inúmeras igrejas exibem ainda, nos seus muros, em pintura a fresco, em retrato, as �guras de alguns dos mais dignos representantes da Corte Celestial.

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frescos das 'casas pintadas', ou os do palácio de S. Miguel. E, parale-lamente, proliferam as composições de temática cristã, apostas em templos e casas conventuais. E sempre vão ressurgindo outras, es-condidas ou ignoradas, como os fragmentos de pintura mural acha-dos mais de recente na prestigiosa Igreja de Santo Antão, na Praça Grande (a depois batizada como sendo a do guerreiro Giraldo).

Mais por devoção que por opção pela hierarquia de valores estéti-cos, ainda que sem desmerecê-los, vamos porém ir de romaria, como vimos, a duas igrejas da cidade: a de S. Mamede e a de Santiago. A primeira, a de S. Mamede, o leitor curioso há de ir achá-la na velha Mouraria eborense, desconfiando eu de que terá sido ali erguida e

dedicada ao santo para facilitar a passagem espiritual dos moirinhos do bairro ao grémio cristão. É que o nome de Mamede lhes haveria de aparecer a soar ao nome do seu profeta Mafamede e que passar de Mafamede a Mamede, invocá-lo, a um ou ao outro, ao profeta das Arábias ou ao santo, que na Capadócia pregava o Evangelho aos bi-chos do deserto, se havia de equivaler.

Mas ponhamos de lado teologias e matreirices eclesiásticas e vamos ao percurso. O templo de S. Mamede ali está, com a sua galilé saliente dotada de três pórticos de volta redonda. Lá dentro, na nave e na ca-pela da Irmandade da capela do S. S., dominam nas paredes laterais os azulejos seiscentistas (olhem: lá está o Filho Pródigo!). Nos tectos (no

VIANA DO ALENTEJO. SR.ª D'AIRES

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da nave regista-se o ano de 1691), as pinturas são deslumbrantes – as figuras humanas, os símbolos cristãos, as figuras de inspiração clás-sica, barrocas, com profusão de golfinhos e anjos meninos…

E, agora, adeus Mamede, que logo depois passamos à casa de Santiago, um velho conhecido do leitor peninsular, já que não foram poucas as boas ou más feitorias que (T)iago (Jacó, Jaime, Jacques, Iago, Diogo…) por estas nossas terras cometeu, arvorado em ferocíssimo Mata-Moiros. Vizinha da Câmara Municipal eborense, eis a igreja: frontaria austera, com duas torres ladeando o pano central da fa-chada. Lá dentro, a par da também riqueza azulejar que reveste as paredes (onde, em painel, se evoca, por exemplo, também, o Filho Pródigo, ou onde, noutro painel, o próprio inventor exibe a sua as-sinatura de grande pintor de azulejos: Gabriel del Barco – 1690), lá

dentro ressalta a abóbada de berço, com seus tramos iluminados por intensa decoração pictórica, barroca, mas sujeita a uma intensa dis-ciplina geometrizada.

SANTOS CAMPESTRESE, de Évora, da cidade, é quase nada, mas é tudo. Partamos ao encon-tro do campo e de seus santos. E comecemos por ela, por Águeda, que a ordem dos santos é, como dissemos, alfabética. Vamos a Vila Nova da Baronia. Tomemos a estrada que, fosse esse o caso da nossa peregrinação, em horas de calma nos havia de levar à albufeira de Odivelas. Pois lá está a capelinha, à esquerda da estrada, passados escassíssimos três quilómetros de marcha.

O terreiro é vasto e quase infindo. Restam-lhe nele ainda memó-rias físicas da recente festa em honra da padroeira das mulheres que amamentam (amas de leite, mães naturais…), pois que, sob o prefeito Quintiliano, à santa lhe arrancaram os dois peitos com crudelíssimas tenazes. Pelo que, para que os seus fiéis se não esqueçam (e a reconhe-çam), Águeda (ou Ágata) de Catânia (na Sicília) há-de exibir-lhes, para sempre, os ensanguentados peitos dispostos numa bandeja.

Lá dentro da igreja, como cá fora no terreiro, Neutel, o antigo titu-lar da casa, depois destronado com 1755, faz ainda milagres. Um deles é o de extirpar o Senhor Diabo do corpo de um moço, ainda que me pareça que, se este Neutel é o Eleutério de Tournai, então o Diabinho estava ali enfronhado nas partes mais lascivas do corpo de uma moça bela e rica que andava de cabeça perdida por ele próprio, bispo Leu(ou Neu)télio. Isto é o que consta nos livros. Mas, fora dos suspeitos livros santos, vá-se lá a saber a verdade…

A Neutel e a Águeda não falta um quase regimento de santos e santas a acolitá-los em casa. É preciso não esquecer que, logo ao pe-netrar na igreja, ao descrente e ao fiel, lhes é, desde logo, fornecida, num rompante, uma verdadeira imagem do Paraíso. O céu cobre-se de trinados e de mil flores, os santos exibem-se, vaidosos, posando pelos muros do templo, com as figuras mais sagradas do consistório a tomarem lugar na capela-mor.

E aí os temos: S. Brás e S. Amaro; S. Bartolomeu, com o seu Diabinho acorrentado; S. Luzia, de olhos postos no pratinho;

NAQUELE ESPAÇO RESERVADO AOS CRENTES ESVOAÇAM ANJOS ALADOS ENTRE ROLOS DE NUVENS

EVORA. IGREJA DE SANTIAGO

SR.ª D'AIRES. EX-VOTO

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S. André de cruz em aspa; mais o douto S. Agostinho, norte-africano; S. Catarina, com a longa espada; e, desarmado, S. Inácio, destroçado, no meio dos dois leões. E ainda Maria Madalena, mais que arrepen-dida da velha vida passada.

E pronto. Agora, deixando S. Águeda com as vasilhas de leite que os seus fiéis lhe ofertavam, seguindo a proposta ordem exata, passamos a S. Brás, à terra de Portel. Antiga capela de romaria (hoje integrada no cemitério), a cobertura interior da casa de Brás não tem o encanto das de abóbadas de cruzaria, como a que envolve S. Águeda. Dedicada ao conceituado protetor das gargantas humanas, suponho que ainda deve haver por aí, à venda, nalguma mercearia perdida, os seus famo-sos e antigos rebuçados.

Foi isso: livrou Brás um rapazinho de uma espinha de peixe que lhe tinha ficado atravessada na garganta e ganhou fama de santo. Fama

ganhou, também, quando, de rosto irado, obrigou o lobo mau a res-tituir a uma humilde velhinha o bacorinho que a fera, à socapa, lhe tinha surripiado, esfregando já, luxurioso, o dente enferrujado da fome, olho posto na festa do repasto.

Assim, como outros seus colegas, é Brás protetor dos animais, e era grossa a romaria que lhe armavam ali no campo, à capelinha isolada. O edifício seiscentista é amplo, aberto, com abóbada de berço e a ca-pela-mor de cúpula ovalada. No altar principal, ao centro, figura Brás, o bispo arménio que, mais tarde, já posto a ferros, vai ter direito a comer a cabeça daquele leitoninho que ele próprio, para o restituir à velha, surripiou ao lobo. O seu templo estaria integralmente de-corado com pintura, em boa parte apenas decorativa, a do teto. Já as paredes laterais da nave exibem ainda hoje várias figuras de santos, em grandes molduras: Águeda, Apolónia, Clara, Madalena, Roque…

SEGUE-SE S. CUCUFATE É um verdadeiro concerto polifónico ce-leste este que nos espera no Alvito, em casa de S. Sebastião. Organizaram-se os anjos para tocarem, ao cimo, dispostos nas faces das abóbadas, os mais variados instrumentos musicais, afinados em pleno céu. Aliás a casa merece-o. É uma daquelas igrejinhas quinhentistas, designadas com sendo de estilo gótico alentejano, talvez mudéjar, porque inspiradas na arte dos Mouros. Com seus contrafortes cónicos e a ainda memória dos seus merlões deco-rativos chanfrados, seu portal quebrado.

Postada à entrada da vila, o santo tinha por missão proteger os alvitenses das iras de deus, maus humores que se traduziam pelo arremesso de castigadoras setas pes-tíferas por parte da divindade, flechas que S. Sebastião absorvia no seu corpo já de si chagado, tudo para proteger os seus fregueses.

No interior, a ermida resplende de sons de vozes, de sons de instrumentos mu-sicais, de harmonias: o Céu acha-se ali no teto abobadado do templo, o som re-percute e difunde-se pelas nervuras das cruzarias. Naquele espaço reservado aos crentes esvoaçam anjos alados entre rolos de nuvens. Cordas, metais, harpas, trom-betas, liras, glorificam o reino de deus. Não há crente que não se desvaneça pe-rante as figuras do papa Fabiano, protetor dos oleiros, o mártir Lourenço, quase sa-dicamente feito patrão dos cozinheiros (o mártir foi assado vivo, na brasa, deposto numa grelha), o lapidado Estêvão, com sua almofadinha de pedras. E não vão fal-tar, nem S. Pedro nem S. Paulo, nem S. Francisco nem S. António. A intervenção pictórica na ermida deve ser cerca de um século posterior à sua ereção, já de inícios do séc. XVII.

E aqui deixamos esta igrejinha do Alvito assente em espaço inseguro, em terreiro minado de silos subterrâneos e de pe-dreiras, para passarmos rapidamente a ALVITO. IGREJA DE S. SEBASTIÃO

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S. Cucufate, à beira da Vila de Frades, à beira da Vidigueira. Aqui, o espanto maior é esta imponente ruína romana, objeto de intenso estudo arqueológico, que – séculos há – alberga no seu seio pagão um hóspede cristão. Convento de S. Cucufate, primeiro, haveria de fazer-se depois ermida de Santiago. S. Cucufate, talvez já moçárabe, santo, ao que parece, algures, com algum pendor brejeiro (ao menos a crer numa certa canção francesa…), deu lugar ao nosso já nome-ado Matamoiros, Santiago.

Ao abrigo da fábrica romana não faltou a decoração mural cristã, hoje bastante esmaecida, mas sempre a proclamar as virtudes seis-centistas da religião. E lá os vemos: as cenas bíblicas, e os santos de per si: Bento e Diogo, Francisco e António. E um Sol, ao alto. E mais diríamos, se não fôssemos de carreira saudar com vénia particular a Senhora de Aires, ainda que, de caminho, deitando um olhar guloso – é paixão, é gosto apaixonado e velho – a uma das belas igrejinhas

do país, a matriz de Vila Ruiva, com sua torre-almenara, cilíndrica, resplandente de brancura, também ela repositório de decoração fresquista.

Mas agora, já no domínio de Viana, lá está, quase surrealista, implantada no centro da paisagem rasa da planície o soberbo templo dedicado à Senhora d’Aires. Barroco e rococó, com suas duas altas torres e seu zimbório, branco e ocre, foi sendo edificado pela segunda metade do século XVIII. Implantado na antiga

Estrada dos Diabos (talvez memória de estatuária antiga), teve ori-gem num sítio romano, no local onde existia, ao tempo, uma esta-ção viária.

É certo que o templo, também ele, exibe perante os fiéis ampla de-coração pictóricas mural – e lá os temos, sisudos, um S. Agostinho, um S. Jerónimo, um S. Gregório… No entanto – e com isto fecha-mos – em matéria de decerto bastante menos mestria, é muito mais gostosamente que chamamos a atenção do leitor para o acervo ali existente em matéria de material votivo, desde o mais recente, constituído por uma infinidade de fotografias dos devotos, até – e sobretudo – aos quadrinhos votivos, pintados, que figuram cenas em que os fiéis se retratam, ilustrando as difíceis situações que vive-ram e pelas quais apelaram à urgentíssima intervenção da Senhora d’Aires. E aí temos toda uma série de comoventes quadrinhos, em que se nos conta o 'Milagre que fez…'

MEMÓRIAS PERDIDASHá sempre, não digo um Paraíso Perdido, mas um bem perdido. Haverá imensos bens, obras de arte, mais ou menos bem realizadas, testemu-nhos artísticos que o tempo vai destruindo, deixando perder. Queremos aqui evocar apenas – no Alentejo, na zona de Évora – o fresco que (seria pelo ano de 1995) registámos na foto que aqui reproduzimos. Tanto quanto pode ver-se, representa dois santos: o da esquerda (Lourenço?), com auréola, gorra preta, na mão direita segura uma bolsa; detrás, um cavalo de que se vê parte da cabeça. O santo que lhe faz parelha (Estê-vão? Vicente?), em vestes eclesiásticas rituais, ostenta na mão direita a palma do martírio e na esquerda mostra um livro aberto. Os restos do fresco, que poderia datar dos anos 20 do século XVI, foram fotografa-dos, junto a outros vestígios de pinturas, na antiga e abandonada Igreja Paroquial de S. Jordão, junto a Évora, indo para Torre de Coelheiros. Já quase destruído, a EPICUR reproduziu-o ainda, deu dele notícia, no seu nº 12; era – cremos – o ano de 2001. Depois disso, o que dele restava de-sapareceu. Completamente.

A NEUTEL E A ÁGUEDA NÃO FALTA UM QUASE REGIMENTO DE SANTOS E SANTAS A ACOLITÁ-LOS EM CASA

V. N. DA BARONIA. S. NEUTEL

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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Quando larguei Ponta Delgada a pé na direcção do extremo ociden-tal da Ilha de São Miguel, a banda Amor Electro actuava durante duas noites no Teatro Micaelense, um cruzeiro com três mil turistas a bordo acabara de desembarcar na barbatana em cimento das Portas do Mar e um rol de viaturas apressava-se a combater o tédio do fim--de-semana em 45 minutos de corrida na recente SCUT que liga a cidade à Vila do Nordeste.

Dentro de mim, enquanto me procurava afastar das rotundas e das novas vias da São Miguel de 2012, havia a pergunta: até onde che-garam os ventos indesmentíveis de mudança? A resposta, perceberia mais tarde, viria ter comigo aos poucos, entre sinais contraditórios, o velho e o novo cruzando-se a cada instante à medida que percorria as freguesias da ilha.

Logo no primeiro dia, ao descer ao pequeno pedaço de paraíso, bem à beira do aeroporto chamado Rocha da Relva, cruzei-me com um de-sempregado. «O meu emprego na cidade estoirou, então venho aqui todos os dias. Subo e desço para cuidar da minha 'oficina' e nunca se sabe, 'n´é', podem roubar alguma coisa, passa aí muita gente».

Quando cheguei à freguesia rural dos Ginetes, já experimentara por diversas vezes a sensação de atravessar cafés e praças habitadas por

Ao largar os prédios e as rotundas de Ponta Delgada, vai-se ao encontro de uma ilha de São Miguel onde a agricultura e a pesca já quase só existem na memória dos mais velhos. Onde se semeava o milho e o trigo circulam hoje centenas de vacas. «Foi tudo atrás dos subsídios.»

TEXTOS E FOTOS NUNO FERREIRA

CARLOS PAIVA, ÚLTIMO ALBARDEIRO DA RIBEIRA GRANDE

A ILHA VERDE, LONGE DAS VIAS RÁPIDAS E ROTUNDAS

«Esqueceram todos a agricultura»

Açores a pé

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desocupados. Se tudo era verde e bucólico na freguesia, a realidade exi-bia diversas cambiantes: encontrei os mais velhos e últimos lavrado-res, encontrei os mais jovens e empreendedores criadores de vacas e os desempregados, aqueles que trocaram o campo e o mar pelas luzes de Ponta Delgada e hoje não têm trabalho.

Manuel Pimentel da Costa, de 72 anos, mais conhecido como Manuel «da Maia» (veio da freguesia da Maia, na costa norte da ilha), é dos poucos que ainda semeia. «O povo viciou-se nos subsídios e no rendimento mínimo. Eu cá sou um homem feliz, não sinto a crise e não preciso do governo para nada. Tenho a reforma e continuo plan-tando três alqueires de batata, um alqueire e meio de batata-doce, fei-jão, banana...»

Nos Mosteiros, apesar da melhoria das condições do porto, encon-trei a pesca quase em extinção, a freguesia entregue aos pastos e ao tu-rismo. Chegaram a sair para o mar 20 a 30 embarcações em condições muito piores que as actuais. Hoje, poucos vão à faina. «Isto é para aca-bar», explicou-me Tomé Ferreira, pescador desde os 14 anos de idade, «os mais novos não querem pescar».

O mar é rico em peixe: garoupa, abrótea, congro, chicharro, cavala, cherne. Tomé que o diga. Um dia pescou um espadarte de 110 quilos. «A fotografia desse espadarte está na América. Já disse à minha filha, que vive em Fall River, que eu quero essa fotografia.»

A ilha e o mar parecem não querer nada um com o outro na zona da Bretanha, onde os pastos terminam em arribas abruptas sobre o oceano imenso, cercando tudo. Voltei ao contacto com os arrifes e as ondas nas Capelas, onde se caçou a baleia e existiu até há pouco tempo a ruína de uma fábrica baleeira.

Ti Manuel «Favica», de 87 anos, ex-operário na fábrica, vive numa casa minúscula vizinha de um bar de karaoke onde os netos dos ba-leeiros se encontram e vêem a MTV num ecrã de plasma. Da fábrica, em frente ao que é agora um moderna piscina natural, só resta prati-camente a chaminé. «Quando fechou, desmantelaram tudo», conta pausadamente o Ti Manuel, um dos últimos sobreviventes. «Do meu tempo, já morreu quase tudo.»

O Ti Manuel trabalhou, em turnos de quatro horas, uma «mão cheia de anos» na fábrica baleeira. «Acartávamos o toucinho em cestos e os ossos com a palanca. Nesse tempo havia muita baleia», contou-me

Manuel, que começou ali com 26 anos. O trabalho, no entanto, era duro e mal pago. «Já se sabe, para acartar a baleia, um homem chegava ao fim das qua-tro horas do turno sem se poder mexer e não dava para comer. Pagavam um escudo e 20 à hora.»

Ao longo do caminho, perdidos em freguesias ur-banas e populosas, fui sempre encontrando resquí-cios de uma outra São Miguel, uma ilha agrícola e pobre que não existe mais. Estava a sair do bulício da Ribeira Grande quando deparei com um velho senhor num vetusto labirinto de albardas e correias. Carlos Manuel Paiva, 78 anos, é um sobrevivente

da ilha outrora agrícola, quando tudo era transportado em burros e estes precisavam de albardas. A melhor época do ano era o Inverno: «Trabalhava mais no Verão à espera das chuvas, já se sabe, as albar-das apodreciam e vendiam-se mais. E eu já sabendo, esperava pelo Inverno. Obra feita, dinheiro espreita…»

Enquanto procurava lentamente dar conta das lombas e contra lom-bas do concelho do Nordeste, fui coleccionando mais histórias quer do passado pobre e de subsistência, quer da emigração, a inevitável. «Esta freguesia vivia do trigo, do milho, da beterraba. Estradas só de terra», confidenciou-me Tomás Raposo Ferreira, de 79 anos, ex-agricultor, ex--emigrante e tocador de violão e viola da terra, na Lomba da Fazenda.

No tempo das festas, os habitantes da Lomba da Fazenda iam a pé. Tomás ia com os amigos pela Serra da Tronqueira à Festa do Corpo de Deus na Povoação. «Dormíamos onde calhava. Uma vez, dormimos por cima da casa de um burro, deitados na folha que era para o animal comer. Levávamos roupa mais usada e, dentro de um saco, a roupa melhor, para usar na festa.»

«NOS MOSTEIROS ENCONTREI A PESCA QUASE EM EXTINÇÃO»

O VELHO E O NOVO CRUZANDO-SE A CADA INSTANTE À MEDIDA QUE PERCORRIA AS FREGUESIAS

ROMEIROS DA LAGOA A CHEGAR AOS GINETES

TOMÉ, PESCADOR EM MOSTEIROS

VIA SACRA DA SENHORA DO PRANTO

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Portugal, Luz e Sombra

A geografia dos anos 60revisitada e comparada

É um reencontro contado em imagens. Portugal revisitado e comparado. Há um antes, «puro» e «eterno», no olhar do geógrafo Orlando Ribeiro. Há um agora, neste tempo «avassalador», visto pelo fotógrafo Duarte Belo. Portugal, Luz e Sombra é um relato da nossa identidade no formato livro.

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Portugal vivia o ano de 1961. Às mãos de António de Oliveira Salazar chegavam os dois volumes do inquérito à Arquitectura Popular em Portugal. Documento de fôlego, proposto anos antes pelo arquitecto Francisco Keil do Amaral junto do poder central.

O documento final, fruto de anos de trabalho de campo, 50 mil qui-lómetros percorridos, dez mil fotografias compiladas, milhares de apontamentos, contrariava a ideologia reinante. A unicidade da casa típica portuguesa não existia. A habitação lusa assentava numa plura-lidade de soluções, uma arquitectura popular com qualidade, de dese-nho e materiais decorrentes da implantação nas paisagens.

Era um Portugal diverso que não surpreendia um homem que desde 1937 corria e registava, quase sempre a pé, lugares e paisa-gens. Um exercício de proximidade ao território e pessoas que fi-xava uma «identidade portuguesa» até então completamente arredada também das fontes visuais. Orlando Ribeiro (1911-1997), o geógrafo que assinou o antológico Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, arrebanhou nos inúmeros cadernos de campo, e na objec-tiva da sua máquina fotográfica Leica, o Portugal longe dos grandes centros. Aproximou-o, assim, do poder político e órgãos de decisão. Fê-lo com profundidade, um olhar misto de selectivo, científico, emotivo e sensível.

«As imagens fotográficas de Orlando Ribeiro são como a sua es-crita, sinceras, autênticas, cheias de uma verdade que se aceita como exterior, documentos da realidade. Mas também, irrecusavelmente únicas, fazendo parte de um projecto estético», escrevia a ex-direc-tora do Centro Português de Fotografia, M. Tereza Siza, na revista Finisterra, em 1994.

Essas fotografias traduziam «um país que parecia eterno», «asso-ciado a um passado lento e antigo, perene», «leituras da paisagem e do povoamento dos lugares sempre feitas a partir de um olhar pro-fundamente humanista», recorda em 2012 o arquitecto e fotógrafo Duarte Belo no seu mais recente título, Portugal, Luz e Sombra - o País depois de Orlando Ribeiro (ed. Temas e Debates/Circulo dos Leitores).

A obra assenta num exercício comparativo: imagens actuais, cap-tadas exactamente a partir dos mesmos locais e respeitando os en-quadramentos do mestre Orlando Ribeiro. Algumas das fotografias originais datam dos anos de 1930. O objectivo destes pares de foto-grafias é «perseguir espaços e tempos que se transformaram». A obra completa-se com textos do autor e excertos de alguns dos principais livros da obra de Orlando Ribeiro.

Após seis mil quilómetros de caminhos e outros tantos milhares de fotografias, Duarte Belo encontrou «não apenas alterações, mais ou

TEXTO JORGE ANDRADE FOTOS DUARTE BELO

A OBRA ASSENTA NUM EXERCÍCIO COMPARATIVO: IMAGENS ACTUAIS, CAPTADAS RESPEITANDO OS ENQUADRAMENTOS DE ORLANDO RIBEIRO

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menos significativas, de aspectos das paisagens e das arquitecturas, mas um tempo civilizacional diferente». O autor de Portugal, Luz e Sombra quis com esta obra reflectir sobre «o destino que estamos a dar ao espaço que habitamos, a forma como moldamos o nosso pró-prio território, espelho da nossa identidade como Nação».

Um trabalho que para Duarte Belo expõe «o poder avassalador do tempo, que, em muitas situações, não nos permite um olhar distan-ciado sobre os nossos próprios projectos de modelação das paisa-gens, rurais e urbanas, o que leva a que erros sejam cometidos, de que resulta, inevitavelmente, uma perda de qualidade do nosso es-paço habitado».

UM PAÍS DIFERENTEPara Duarte Belo «o Portugal nas imagens de Orlando Ribeiro, prin-cipalmente naquelas fotografias feitas até aos anos de 1960, era um país de carácter vincadamente rural, que estava a encerrar um ciclo de um certo imobilismo e se preparava para as transformações profundas que estavam prestes a acontecer». Um tempo de com-promisso com a natureza, em que a intervenção humana sobre as paisagens e as modificações do território ainda eram relativamente reduzidas.

«Tudo isso acabaria num processo imparável de que o próprio Orlando Ribeiro se viria a aperceber em escritos tardios e que nos dá conta em algumas fotografias em que regista os novos bairros de algumas cidades. As fotografias feitas por mim, na actualidade, mos-tram-nos que nem tudo mudou no Portugal contemporâneo, mas a sensação global com que se fica é a de que o país está significativa-mente diferente», sublinha Duarte Belo. As transformações ocorrem primeiro nos arrabaldes dos maiores aglomerados urbanos. Isto a partir dos meados da década de 60 do século XX, fruto de uma vaga

emigrante do interior do país para o litoral. «Aqui, dá-se uma pri-meira fase de transformação do território: o esvaziamento dos cam-pos e o alargamento, em mancha de óleo, de cidades como Lisboa e Porto», reflecte Duarte Belo no livro.

As alterações, em certos casos, impossibilitaram ao fotógrafo, no de-curso do trabalho de campo, fixar imagens dos lugares. Em Malpica do Tejo, no distrito de Castelo Branco, ninguém conseguiu indicar o local captado numa imagem de Orlando Ribeiro. Por seu turno, na Gafanha da Nazaré, próximo de Aveiro, um antigo estaleiro naval não passa de uma memória fotográfica fixada para a posteridade pelo geógrafo.

«O meu objectivo foi o de, fundamentalmente, fazer uma fotografia em tudo o semelhante à que Orlando Ribeiro havia feito no passado. A maior dificuldade foi, por vezes, encontrar o local exacto dessa tomada de vista. Encontrado esse ponto, apenas fiz a fotografia de forma muito objectiva e o mais rigorosamente possível. De um modo claro e sem rodeios poderia afirmar que o meu trabalho, além do con-ceito subjacente à edição, se limitou a uma abordagem de 'copista”'em relação ao trabalho fotográfico de Orlando Ribeiro.»

Portugal «copiado» mas irrepetível.

DIALOGAR COM O MESTREOrlando Ribeiro compilou, ao longo de mais de quatro décadas, perto de 11 mil fotografias. Percorreu um país que não conhecia ainda a auto-estrada, antes cir-culando sobre carris. O geógrafo optava muitas vezes pelo percurso a pé, mais próximo das paisagens e das gentes. Em Outubro de 2011, no terreno, Duarte Belo percorreu numa viagem «relâmpago» de duas semanas os caminhos do fo-tógrafo. Antes isolou o objecto de estudo. Cingiu-se às imagens arquivadas no Centro de Estudos Geográficos. Daqui, resultou uma selecção de 252 fotografias a preto e branco e a cores, abordando paisagens rurais e urbanas em Portugal continen-tal. «Tive a preocupação de tentar cobrir todo o espaço português, mesmo que essa cobertura tenha sido feita por Orlando Ribeiro, por vezes, com algumas as-

simetrias, com um predomínio de viagens à serra da Estrela e às Beiras». A via-gem de reencontro com a obra do geógrafo «que se emocionava com as paisa-gens» não foi um exercício estranho a Duarte Belo. O fotógrafo havia em diferentes momentos, antes deste Portugal, Luz e Sombra, dialogado com o tra-balho de Orlando Ribeiro: «Foi já perto do final do trabalho fotográfico para o Portugal - O Sabor da Terra que viria a conhecer pessoalmente Orlando Ribeiro, bem como a sua casa de Vale de Lobos. Foi justamente o meu encantamento por essa casa, onde em cada pequeno detalhe parecia estar representado não apenas Portugal, mas todo o vasto mundo de Orlando Ribeiro, que me levaria a desenvolver o trabalho Orlando Ribeiro - Seguido de uma viagem breve à Serra da Estrela.

«A SENSAÇÃO GLOBAL COM QUE SE FICA É A DE QUE O PAÍS ESTÁ SIGNIFICATIVAMENTE DIFERENTE»

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O que separa a Eunice de hoje da que era há mais de 70 anos? A actriz, sentada num gabinete do Teatro Mirita Casimiro, «onde costumamos ensaiar», pondera na resposta: «Separa-me a idade, o conheci-mento, a experiência; separa-me o que é viver com essa idade, tudo o que é viver com essa idade e olhar para ela com a idade que tenho neste momento.»

Não sente diferença nos espectadores que a viram e que hoje a admiram, porque «quem me vê é quem gosta de teatro. As diferenças não existem». Mas nota que, «como todos nós sabemos, agora há é uma liberdade muito grande na linguagem».

O discurso é sereno, necessariamente desigual do que nos habituámos a ver no palco, na televisão. Se os mistura no quo-tidiano? Eunice Muñoz diz que não: «Os meus papéis são os meus papéis, a minha vida de todos os dias é a minha vida de todos os dias. Não têm de estar mistura-dos.» Admite ser natural que apareça uma palavra ou outra. «Já decorei tanta pa-lavra que é mais do que possível que elas surjam.»

Teve momentos em que deixou os palcos, ainda que tenha começado a carreira «com os avós e os pais, aos cinco anos», mas

recorda os quatro anos, entre os 23 e os 27, um período da sua vida em que se afastou do teatro e que classifica de «muito inte-ressante, porque estive com pessoas que nada tinham a ver com o meio».

Foi a oportunidade de lidar com «meros espectadores, conhecer outras profissões e, provavelmente, até uma outra forma de olhar para as coisas, em alguns casos». Uma experiência «salutar porque me mos-trou gente que estava fora do ambiente e da linguagem teatrais e fora até da ma-neira de olhar para as coisas».

Fala das recordações do início de carreira com Amélia Rey Colaço. «As melhores.» E repete pausadamente: «As melhores.» Para continuar: «Eu tinha 13 anos e esses são os tempos que não se esquecem nunca mais. Ela foi para mim de uma bondade e uma tal generosidade, enfim, tratando-me como uma familiar e ensinando-me coi-sas muito importantes. Colhi dela as pri-meiras grandes lições da minha vida como aprendiz de actriz.»

Depois, no meio dos teatros e dos pal-cos, vêm os tempos da Brasileira, no Chiado, onde era frequente vê-la com António Barahona da Fonseca. «Sim, sim, nos anos 70.» Uma época «importante e

interessante, pelo conhecimento de gente que encontrei nessa altura, dos poetas com quem tive ocasião de conviver através de António Barahona. Foram anos muito im-portantes na minha vida».

O olhar alonga-se na pequena sala onde decorre a conversa, com ternura. Recorda a «união de oito anos, da qual nasceu uma filha». E sublinha que «continuamos a ser muito amigos. Tenho uma grande es-tima e admiração pelo António Barahona,

«Estou contente comigo»Chega atrasada à entrevista e reclama do seu tempo. É que o ensaio é às 15 horas e aí a pontualidade é obrigatória. Eunice Muñoz, a grande senhora do teatro, começa por dizer que «ser actriz continua a ser apaixonante. De outro modo, já cá não estava, já tinha parado». Como não parou, está no palco do Teatro D. Maria II, em Lisboa, onde dá vida a Flora Goforth, em O Comboio da Madrugada, uma peça que lhe «dá um especial prazer representar». A actriz sofreu, entretanto, um acidente e a estreia foi adiada.

TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

Eunice Muñoz

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porque ele é, e parece que agora é que co-meçam a descobrir que ele é e sempre foi, um grande poeta».

A conversa continua, célere pelo tempo que resta e muitas são as perguntas. De facto, entrevistar Eunice Muñoz não é ta-refa de todos os dias e há camaradas de profissão e amigos que pedem respostas através do jornalista que pode colocar as questões. Demasiadas…

Mãe Coragem, Dona Branca ou Zerlinda?

«Gostei dos três papéis. Não me identifico com nenhuma. Acontece é que as inter-pretei e são grandes papéis que me deram um prazer enorme fazer, mas nada têm a ver comigo.»

Recusa-se a revelar quem são, em seu en-tender, os melhores actor e actriz do pa-norama português, porque «certamente havia colegas que ficariam magoados», mas não enjeita o teatro em tempo de crise: «Em tempos de crise ou sem ser em

tempos de crise, o teatro é sempre muito importante para o espírito, que também precisa de se alimentar.»

Também as mudanças no Teatro Nacional e a saída de Diogo Infante da li-derança da instituição são motivo de con-versa: «O Nacional? Lá vai, lá continua.» Mas Eunice Muñoz tem «a maior pena de que Diogo Infante tivesse saído. Somos grandes amigos de há muitos anos. Ele tinha um projecto muito interessante

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para mim, que era o Rei Lear como Rainha Lear. Mas, paciência, tomou a atitude que lhe parecia mais certa. Eu acredito nele. Sei que é homem honesto, um grande tra-balhador e grande actor.»

E sobre a actualidade: «Agora temos o João Mota, um director excelente que tem uma longa história, um longo curriculum cheio de espectáculos excepcionais e irá, certamente, e já está, a fazer uma progra-mação inteligente e muito válida.»

Revela que não há qualquer papel que lhe falte desempenhar: «Fiz todo o género

e todas as características da mulher. Surgiu agora esta Flora, uma personagem muito rica que qualquer actriz gostaria de interpretar.»

E, afinal, quem é Eunice Muñoz? «Nunca estive muito interessada em procurar saber isso.» Por entre risos, diz que a conhece. «Não a renego de modo ne-nhum.» E peremptória: «Estou contente comigo mesma, com os defeitos e qualida-des que tenho.»

Chega-se ao tempo de outros prazeres. Eunice Muñoz não come nada antes de

entrar em cena, já que tal «perturba muito a dicção». Assim, se vai representar às 21 e 30, a sua última refeição é às 18 e 30. E quanto a pratos favoritos, a diva do teatro português gosta, simplesmente, de comer. Já nos vinhos, a sua eleição vai para os na-cionais: «São espantosos e gosto muito.»

A finalizar ficam as suas palavras sobre a peça ora em cena: «O Comboio da Madrugada é um encontro muito bom entre mim e a personagem. É uma peça que me dá um especial prazer represen-tar. Há várias coisas muito agradáveis, in-cluindo o facto de agora ter a presença da Lia Gama em substituição da Ana Paula, um papel que vai certamente fazer muito bem.»

Também sente «um acerto muito grande do Pedro Caeiro com este Anjo de Morte (o jovem poeta Chris Flanders, que tem por hábito visitar velhas senhoras nos úl-timos momentos das suas vidas), que ele interpreta de uma forma muito inteli-gente». De resto, «o facto de ser um texto de Tennesse Williams já é uma grande segurança». E lembra que a peça esteve muitas semanas no Mirita Casimiro com muito sucesso do público, bem como no Porto, onde também as pessoas marca-ram presença». E a referência de carinho: «Continua presente a minha neta, Lídia, uma alegria muito especial. Acredito que o futuro dela será como actriz e será bas-tante bom.»

UM AMOR ESPECIALAos 15 anos foi pela primeira vez ao Porto. «Uma cidade que amo especialmente, que tem um público excelente, que me acarinha de uma forma exemplar e me tem dado grandes alegrias.»«Claro que amo Lisboa, para onde vim viver aos sete anos», mas o carinho maior é para o Porto, uma cidade «belíssima, onde tenho re-presentado todas as minhas peças, e que nada tem a ver com Lisboa.» E acentua: «Tem sido muito compensador para mim representar para o público do Porto.» E fala da «arquitectu-ra da cidade e daquele lindíssimo rio que a atravessa…»Conta ainda da sua paixão por grande clássi-cos, encabeçados por Bach, seguido de Bee-thoven e Chopin, sendo que Artur Pizarro e Maria João Pires são, no piano, os seus intér-pretes de eleição.

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Gente do seu tempo lembra-se do rosto e gesto singular, na meninice; gente mais nova foi, de fulgor em fulgor, seguindo a actriz que se estreara em 1941. De menina--prodígio a grande dama do teatro, sete dé-cadas são passadas, sempre o palco no seu amor e no labor.

Nascida na Amareleja a 30 de Junho de 1928, Eunice Muñoz, fora o vendaval (de espanto e de esperança) na peça de estreia, O Vendaval, escrita por Virgílio Vitorino. Estava a companhia Rey Colaço/Robles Monteiro, então sedeada no D. Maria II. Ela só tinha 13 anos!

Num ápice, nascera uma estrela. E o ta-lento natural de Eunice desde logo é reco-nhecido por Palmira Bastos e João Villaret, entre outros saudosos nomes. Amélia Rey Colaço abre-lhe, portanto, as portas da companhia. Faz Labirinto, faz Raparigas Modernas, de Leandro Torrado. Só mais tarde concluirá o curso do Conservatório Nacional de Teatro. Com 18 valores!

Fará mais de cem representações (!), a maior parte nos palcos reais, representou também no cinema e na televisão, solici-tada por um vasto público.

Adquire popularidade no Variedades e na Companhia de Teatro Alegre, ao Parque Mayer. Passa pelos teatros São Luiz, Avenida, Politeama, Villaret, volta ao Trindade, onde é aclamada como Joana D’Arc, de Jean Anouilh. Com Carlos Avilez adquire novos conhecimen-tos no Teatro Experimental de Cascais. E Oeiras dedica-lhe um espaço com o

seu nome – Auditório Municipal Eunice Muñoz. Concede esta entrevista no Mirita Casimiro.

Mulher simples (sempre), corajosa, opti-mista, Eunice Muñoz foi muitas vezes dis-tinguida, premiada. Tantas, que já nem se lembra de quantas. Ao entregar-lhe a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, o presidente da República considerou estar, talvez, na presença da actriz mais completa do país. Moderada e moderadora, tem feito questão de frisar que os anos da ditadura lhe roubaram muito tempo de teatro.

Peças de referência? Não é fácil citar quais; e seriam injustiçadas as não refe-ridas. O justo (mas inconveniente) talvez fosse mencionar as de menor qualidade… Não por culpa da actriz, mas sim, admiti-mos, do tempo português, de censura e de incultura, em que viveu a maturidade.

Significativas são algumas das escolhas de Eunice Muñoz. Ao longo dos anos, tra-balhou a partir de obras escritas por au-tores clássicos. Nomeadamente e sem preocupação cronológica: Pirandello (A Desconhecida), Luiz Francisco Rebelo (Pássaros de Asas Cortadas), Anton Tchekov (Noite de Reis), Alexandre Dumas (A Dama das Camélias), Jean Cocteau (A Voz Humana), Bernardo Santareno (O Duelo), Jean Racine (Fedra).

Aquando da reabertura do Teatro Nacional D. Maria II, final dos idos anos 80, a actriz vive tempos áureos, na representa-ção de obras de Bertolt Brech, André Brun, John Murray, com encenadores como João

Perry, João Lourenço ou Filipe La Féria.No cinema, em plena juventude, foi in-

térprete em Camões, realização de Leitão de Barros; e em Ribatejo, de Henrique de Campos, além de filmes de menor ex-pressão cultural. Mais tarde, é brilhante na Manhã Submersa (Lauro António), em Matar Saudades (Fernando Lopes), em Tempos Difíceis (João Botelho). Em 2008 está Entre os Dedos de Tiago Guedes e Frederico Serra.

Nos últimos dez ou 15 anos, Eunice faz te-levisão com alguma regularidade. Começa na RTP, é Dona Benta, na Banqueira do Povo. Passa para a TVI, quer como prota-gonista, fazendo parte de elencos princi-pais, quer em participações especiais. Já tinha feito longas tournées por Angola e Moçambique. O Cerco de Leninegrado, de Celso Cleto, leva-a pela primeira vez às cenas de Madrid.

Eunice Muñoz diz, hoje como ontem, e muito bem, os poetas que ama e divulga. Aventuramos duas passagens de estrofes. De Florbela Espanca: «Deixa-me ser a tua amiga, amor/a tua amiga, só/já que não queres que pelo teu amor, seja a melhor/a mais triste de todas as mulheres/que só de ti me venha mágoa e dor/que me importa a mim…»

E de Eugénio de Andrade: «Tinha um cravo no meu balcão/Veio um rapaz e pe-diu-mo…/Mãe, dou-lho ou não?/… Dei um cravo e dei um lenço/ só não dou o coração/mas se o rapaz mo pedir…/Mãe, dou-lho ou não?»

Uma estrela sempre brilhanteCARVALHO SANTOS

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É um dos nomes cimeiros das artes plásticas portuguesas contem-porâneas. O Museu Berardo, ao Centro Cultural de Belém, acolhe uma vasta retrospectiva da obra plástica de Nikias Skapinakis, a maior alguma vez dedicada ao artista. Em visita cerca de 260 obras, que cruzam e atravessam géneros pictóricos diversos, além de vasta documentação de Imprensa e bibliográfica. Abstracta, figurativa, re-alista, onírica, surrealista também, a pintura de Nikias move-se no amplo universo das suas afinidades, donde são dilatadas as citações

do seu criar, bem como as fronteiras até onde alcança o seu olhar e sentir plástico e poético. Nikias pinta há mais de 60 anos e tem mais de 80 anos. A EPICUR conversou com Raquel Henriques da Silva, curadora.

Qual a importância desta reunião antológica?A importância desta exposição resulta, em primeiro lugar, e não

é pouco, para o próprio autor, Nikias Skapinakis, que pinta há seis décadas! E o fazer esta antológica foi uma vontade dele próprio…

A pintura como reinvençãoDa melancolia da �guração ao recorte abstracto, passando pela poética das formas e pela pesquisa cromática. No Museu Berardo, em Lisboa, os vastos mundos de Nikias Skapinakis abrem-se à descoberta, que é também um convite a entender o século XX nas artes plásticas portuguesas. Uma antológica imperdível, até 24 de Junho.

TEXTO PEDRO TEIXEIRA NEVES

DISNEYLAND RIVER 1985

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Porque, já agora, crê ter ele sentido essa necessidade?Para os artistas, como para cada um de nós, de vez em quando é im-portante rever aquilo que se fez. É importante frisar que ele está em plena criação, se calhar está a preparar novas fases, não sei. E por-tanto ele achou que era o momento de rever quadros, alguns deles que não revia há muito tempo – alguns nunca tinham mesmo sido expostos em público. Isso, para o pintor, é de grande importância. Tal como para o Museu Berardo, uma vez que este foi um projecto muito acarinhado pelo François Chougnet, o anterior director, e que o Pedro Lapa – que é amigo pessoal do Nikias –, recebeu muito bem quando chegou.Mais-valias portanto também para o museu.Sem dúvida. Para um museu que é conhecido, e muito bem, so-bretudo pela sua colecção de arte internacional, aceitar fazer uma grande exposição neste espaço tão extraordinário sobre um artista português, que é um artista que começa a carreira num período em que a modernidade era quase um tema proibido em Portugal, eu acho que também é de considerar, e sem dúvida, importante para o currículo do próprio museu. Por último, eu diria que se trata de uma exposição importante para o público em geral. Eu espero que seja sobretudo importante para o público, porque nós, na nossa cultura, cultivamos quase sempre um repto e desenvolvemos uma ânsia pelo que está a dar, pelo que se está a fazer, pelo que está em cima do momento, e o recuo da história é às vezes uma premissa com que não se conta.

Ora, para quem é historiador, e é o meu caso, nós sabemos que esse recuo é muito importante. E a possibilidade de ver o percurso de um homem que começa em cima do segundo pós-guerra a traba-lhar, a trabalhar numa Lisboa que era uma Lisboa muito difícil, por-que depois da guerra havia a esperança de que o regime se alterasse, e o regime endurece, e depois um homem que vive a sua juventude

e sua primeira maturidade num clima bastante opressivo, que ele trata numa série com um nome extraordinário, que é o Estudo da Melancolia em Portugal, e que depois se vai libertando e que hoje, com a idade que tem, se inspira, por exemplo, nomeadamente na pintura de rua, nos gra�ti, e que faz uma última série de retratos que já não são exactamente retratos – porque quem posa, entre aspas, são manequins, manequins propriamente ditos, não gente –, portanto, abordando todas as questões do que é o Humano hoje, do que é o clone, do que é o transumano, essa oportunidade, de aqui abarcar todos esses períodos criativos, é de enorme importância.Um dos fascínios da obra de Nikias, de resto, é a sua abrangência de registos.Sem dúvida. É um homem que vai desde uma pintura muito lírica, muito nostálgica, muito concentrada na sua própria aprendizagem, e que chega com um esplendor extraordinário até hoje. Que, por exemplo, trabalha em larguíssimas séries – nós estamos numa sala de desenho que tem, desde lá do fundo, uma série que são as pintu-ras higiénicas, os desenhos higiénicos, que são feitos sobre rolos de papel higiénico, que ele vai desdobrando e portanto não têm fim... Mas é sobretudo um homem da tradição do trabalho em atelier – ele só trabalha com luz natural. É um homem da pintura a óleo, ele usa o guache e usa os instrumentos do desenho, mas ele é um homem do óleo e o óleo é uma técnica que exige muito tempo, muita se-gurança (o óleo para quem não sabe lidar com ele é muito ingrato, com muitos tempos de secagem, muita pintura sobre pintura, para encontrar o tom certo). Portanto ele é um homem de sólido ofício, e gosta disso, adora, creio que é o máximo para ele é estar no atelier a pintar, mas depois é também um artista que abre esse ofício tra-dicional de pintura a reptos sucessivos de modernidade. Que pas-sam pela figuração, que passam pela abstracção, e que passam por uma coisa que é muito peculiar neste homem, que é um homem

É UM PINTOR QUE TANTO FAZ UM PAISAGISMO COMO UMA GRANDE MARCA DE ABSTRACÇÃO

RAQUEL HENRIQUES DA SILVA, CURADORA DA EXPOSIÇÃOTALVEZ

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discreto, até assim com um ar ligeiramente distanciador, que é a ironia.Uma veia que lhe vem de onde?Ele tem uma ironia incrível, que nós, culturalmente, conotamos com o dadaísmo. Por exemplo, a série dos papéis higiénicos de que já falei, ou a série dos Quartos Imaginários, que é uma grande série – que começa em 2001 e que se prolonga até hoje, em que ele in-venta quartos de grandes pintores, de grandes escritores, de figu-ras que ele admira. Por exemplo, o quarto do Fernando Pessoa, do Amadeo Souza Cardoso, do William Blake, do Piranesi, do Freud… não é? E em que monta histórias. Ele é um pintor que tanto faz um paisagismo com uma grande marca de abstracção e trabalhado pela cor, como tem um gosto extraordinário pela narrativa, que passa pelos títulos e que passa pela forma como ele articula os assuntos.Pode concretizar?Por exemplo, além da série Para o Estudo da Melancolia em Portugal, que são retratos de intelectuais da época, ele tem uma série notável na passagem dos anos 60 para 70, mas antes do 25 de Abril, que são Os Caminhos da Liberdade, que é uma série de

uma ironia extraordinária sobre o feminismo. Uma coisa que vai crescendo ao longo do século, que é um traço da nossa cultura ocidental, talvez o melhor traço da nossa cultura ocidental, que é o estatuto da mulher, e que ele apanha em cheio nos anos 60 e 70, aqueles movimentos feministas… E faz uma série de pinturas que parecem cartazes, que jogam um bocadinho com um gosto pop e que são altamente provocatórios, porque são nus femininos de gente que era identificável na época e na cidade. E que, aliás, po-saram para ele, não foi nenhuma pintura clandestina. Portanto, é um homem que junta muitos contrários, e eu acho que esta ex-posição permite um percurso notável pela história da pintura do século XX.E também um artista que não se demite de um olhar crítico ao mundo em volta, certo? Prova disso a implicância na edição de Quando os Lobos Uivam, do Aquilino Ribeiro…Sim, é verdade. O Nikias do início, o Nikias dos anos 50, e 60, e até ao 25 de Abril, é um homem que a par da sua actividade de artista, que é o essencial da sua vida e o que lhe interessa, é um homem que tem uma actividade política. Sempre teve, foi sempre um homem

CIRCO ROSA

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de oposição, foi um homem que chegou a estar preso, conotado com o Partido Comunista, o que era extremamente proibido… Eu estou a dizer conotado, não estou a dizer que fosse comunista, eu acho que era compagnon de route, como se costuma dizer. E tem, por exemplo, essa série notável de desenhos fantásticos, notáveis ilustrações que ele fez para o livro do Aquilino – o livro que foi apre-endido e cujos desenhos originais desapareceram. A esse propósito, recordo uma história curiosa. Quando ele esteve preso, ficou com, e já teria antes, uma ficha na PIDE. A ficha na polícia políticado re-gime tinha sempre aqueles pequenos retratos a acompanhar as in-formações sobre os detidos ou suspeitos. E ele teve acesso ao seu retrato, que aliás tem um número de identificação que a PIDE lhe dava… Ora, ele transformou esse retrato no seu retrato oficial. E passou, nos anos subsequentes, nos diversos catálogos que fez, a utilizar esse retrato, o retrato da ficha da PIDE. Esse retrato, tirado pela polícia, está, de resto, aqui na exposição.

E em matéria de influências, heranças, o que há a dizer?O Nikias, embora seja um pintor moderno, é um homem que tem consciência das vanguardas anteriores. Ele é, por exemplo, um grande admirador de Amadeo Souza Cardoso, de Eduardo Viana, de Mário Eloy… E por outras razões, que não pictóricas, também do Almada – em 57 ele conseguiu mesmo que o Almada posasse para ele, e, facto interessante, esse retrato, pela primeira vez apresenta lá uma pintinha, uma pequena bola vermelha que ele considera que é um sol que havia de guiar toda a sua produção pictórica. Esse qua-dro também aqui está, embora não o original.Como resumiria o que aqui podemos encontrar?O que aqui há é um percurso que nos seduz pela capacidade de con-tar histórias em pintura. E esse contar histórias tanto ocorre na-queles quadros figurativos, uma natureza morta, um retrato, uma paisagem, como na quase luxúria da cor. No mais, por tudo o que atrás disse, é uma obra de uma grande importância.

UMA RETROSPECTIVA OBRIGATÓRIA NO MUSEU BERARDO, EM LISBOA

O QUARTO DE BANHO DE MARCEL DUCHAMP

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O espólio de estuques decorativos e artísticos da antiga Oficina Baganha era pertença do Museu Soares dos Reis. A Câmara Municipal do Porto tinha-o classificado como património, mas estava a deteriorar-se em armazéns, pelo que o Museu Nacional Soares dos Reis, há 17 anos, o entregou à fiel depositária, a Crere de João Oliveira, Paulo Ludgero de Castro e Miguel Figueiredo -, atribuindo-lhe a exclusividade dos direitos de reprodução e as con-trapartidas da manutenção, conservação, restauro e divulgação da colecção, assim como desta arte que se pode dizer quase extinta.

São mais de cinco mil peças da Oficina Baganha (entre modelos ori-ginais, duplicados, provas, desenhos, livros e utensílios de trabalho), a mesma que construiu três gerações de edifícios emblemáticos da cidade do Porto, desde a Câmara ao Banco de Portugal, ao fabuloso café Majestic, passando pelo Hotel Infante Sagres. Existindo desde o final do séc. XIX, a Oficina viveu os anos 60 do século XX, o apogeu das artes decorativas do Norte. Após o 25 de Abril encerrou activi-dade. E assim o espólio foi parar ao Museu Soares dos Reis.

Foi há cerca de 20 anos que Paulo Ludgero de Castro, recém-che-gado de Inglaterra e empenhado na defesa do património, depois de conhecer as pinturas decorativas e os acabamentos em folha de ouro, entre muitas outras artes, procurou pessoas que executas-sem os trabalhos. Acabou por criar a Crere, a que se juntaria Miguel Figueiredo, um engenheiro agrónomo e enólogo, com mestrado em gestão do património. Trata-se de uma empresa especializada em conservação e restauro que, afinal, «começou porque não gostava de ver deitar casas a baixo» e cujo mérito levou a que, em proto-colo, o Ministério da Cultura lhes entregasse todo o espólio da an-tiga Oficina Baganha.

Agora, na Rua Miguel Bombarda, por excelência ligada às Artes, numa Galeria Comercial, têm ainda um estabelecimento onde vale a pena entrar, nem que seja somente para apreciar as peças de es-tuque que vão de máscaras a aplicações para tectos, passando por bibelôs e apliques. A loja tem só efeitos decorativos e ornatos. E jus-tificam: «A decoração existe para melhorar os momentos menos conseguidos da arquitectura e da engenharia».

Ali está também o designer de interiores João Oliveira que sente «que o Porto sofre hoje as consequências da moda da escola de Arquitectura da cidade».A conversa flui, naturalmente, com os intervenientes a alertarem «para a destruição dos interiores mais ricos das casas e património». E para o facto de haver pessoas ligadas à arquitectura e à engenharia

que ainda não perceberam que os interiores das casas com bens ar-tísticos, apesar de escondidos do cidadão comum, são elementos que resultam da estrutura técnica, económica e social da cidade. E, como tal, também são determinantes para a formatação da imagem e da história da Cidade. Não se trata apenas de uma história de fachada…

Paulo Ludgero de Castro pertence a cinco gerações de emprei-teiros que construíram a cidade do Porto. Em criança ficava fas-cinado com os castelos e palácios que os pais o levavam a visitar.

Paulo Ludgero de Castro, Miguel Figueiredo e João Oliveira estão por aí. O primeiro recusou-se a ver património destruído em nome do progresso. Os outros aliaram-se. Todos juntos detêm o espólio da O�cina Baganha, cedido pelo Museu Soares do Reis. Todos juntos pertencem à Crere, uma empresa que recupera edifícios antigos e impede que a recuperação de imóveis passe só pela manutenção das fachadas.

TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS HERNÂNI PEREIRA

Recuperar é mais do que a

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Ganhou gosto pelo restauro e prefere a ideia de preservar e conser-tar. Aprendeu a fazer de tudo e gosta particularmente da argamassa de cal, que considera ser «melhor, mais bonita e, sobretudo, melhor para a saúde».

«Quem vive num prédio em betão em vez de ter uma estrutura de madeira, mais cedo ou mais tarde, terá problemas de articulações e mais alergias, com todo o tipo de doenças que lhes são inerentes».

Depois do nascimento da Crere, o trabalho não parou mais, até

MIGUEL FIGUEIREDO, PAULO LUDGERO DE CASTRO E JOÃO OLIVEIRA SÃO MESTRESNA RECUPERAÇÃO DO PATRIMÓNIO

manutenção das fachadas

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porque a conservação e o restauro são áreas em que tanto o Estado como os privados sentem já necessidade de investir. Foi por isso que restauraram desde o Palácio do Freixo ao Museu dos Coches, passando pelos estuques da Câmara de Lisboa, depois do incêndio, em 1996.

INTERIORES NÃO SÃO UMA PRIORIDADE POLÍTICANo Porto há grandes zonas com necessidade de reabilitação. «Mas os interiores não são uma prioridade política da autarquia, ou, pelo menos, parecem não ser», alertam. Para citarem a urgência em recuperar «grandes quarteirões, mas não como no Hotel Continental, em que só se atentou ao exterior». Segundo estes es-pecialistas, «há um potencial enorme no país em relação a esta arte, mas é preciso perceber que por detrás de um tecto em estuque há um engenho e arte que nos faz ser diferentes».

Querem, pois, chamar à atenção dos promotores «para que se lembrem que por detrás de um tecto em estuque há mais do que pladur, e fazer entender a mais-valia que é ter um tecto artístico único, muito mais do que um simples caixote, com fachadas boni-tas. «Infelizmente, a grande maioria não sabe, nunca sentiu e mui-tas vezes não há esse ponto de vista. A reabilitação em massa fez perder os pormenores», afiança.

Sob a direcção da Crere foi restaurado o Teatro Nacional S. João, os estuques da Câmara Municipal de Lisboa, os bens patrimoniais do Palácio do Freixo, do Palácio de Estói, da Casa da Ínsua e, mais recentemente, o Fabuloso Obelisco da Boavista, o Salão árabe do Palácio da Bolsa, o mítico Hotel Palace de Vidago e o Palácio dos

Rodrigues de Matos onde está instalado o novo projecto de turismo cultural de Paulo Ludgero Castro: O Mercador. De momento, a Crere está a trabalhar no Restauro da Pintura Mural do tecto da Misericórdia de Viana do Castelo e vai iniciar um novo projecto numa das antigas casas de Guilherme de Nassau no Porto.

Tudo em nome das Artes que merecem e devem ser mantidas.

Para mais informações ver www.crereportugal.com ou contacte para [email protected] (João Oliveira 919 623 922 / Miguel Figueiredo 914 161 399). Ver ainda O Mercador em: www.mercador.com.pt/

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A IMPORTÂNCIA DOS DETALHES E DA MINÚCIA

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O Porto é uma cidade rica em estuques. Por isso, a EPICUR propõe um roteiro dedicado ao estuque artístico na cidade Sempre Leal e Invicta, bem como às suas diferentes gramáticas e usos entre o séc. XVIII e XX. Um roteiro que pode ser feito a pé, de bicicleta ou da forma que mais agrade, para usufruir da estrutura edifi-cada pelo homem em complementari-dade com implantação no terreno e a sua escala morfológica de acordo com os va-lores sociais, culturais e económicos ao longo da história da cidade.

Comece-se, pois, pelo Palácio do Freixo, onde se pernoitou, para, ao acordar, tomar um pequeno-almoço desfrutando a vista sobre o Douro.

Ali se encontram os estuques artísti-cos setecentistas de Nicolau Nasoni, tal-vez dos mais importantes em Portugal, quando nos reportamos ao período que vai até cerca de 1750. Para quem não saiba, a entrada nobre no então palácio de D. Jerónimo de Távora Noronha Leme de Cernache (Deão da Sé do Porto), era feita a partir do rio, até por ser a forma mais fácil e rápida de deslocação entre a cidade e o lugar do Freixo.

Nos dois principais tectos da ala sul do palácio ficam as salas da lavra de Nicolau Nasoni, que sobreviveram à ruína iminente a que o edifício esteve sujeito até ao início dos anos 90 do Séc. XX. Estes tectos são dos mais importantes para a história da arte do estuque artístico em Portugal já que Nasoni, traz consigo o conhecimento da mais aclamada es-cola à data na Europa e onde estudara – a Academia Clementina de Bolonha. No Palácio foram incorporados elementos do estilo rococó bolonhês que, transportando consigo mais especificidades, se des-tacou dos demais ao ponto de assumir um nome distinto - o baroc-chetto. Neste contexto encontramos o tecto da sala D João V e da sala chinoiserie assim como a capela, obras extraordinárias de estuque ar-tístico onde a escala, a perspectiva e a tridimensionalidade do estuque artístico são executados com uma espacialidade única e ilusória que nos transportam além do espaço real das salas; arquitecturas ilusórias dentro da arquitectura real onde é permitido ao homem, à sua escala humana, aceder ao divino, onírico, e exótico.

Saindo do palácio acompanhe-se as escarpas e receba-se a luz que se evapora do espelhado do rio. Eis o Bonfim. Ainda da segunda me-tade do XVIII existe o sólido bloco da actual capela do cemitério do Prado do Repouso e que faria parte do conjunto destinado a albergar a Igreja do Tribunal do Santo Ofício no Porto. Com a extinção do Tribunal ficou apenas concluída a capela do Santíssimo.

As paredes interiores da capela são decoradas com estuque artístico dourado e policromado da autoria de Luigi Chiari. Os estuques exi-bem feição neoclássica e representam os 12 apóstolos e os seus atri-butos, numa iconografia próxima das novidades arqueológicas que surgiram no fim do XVIII, nomeadamente com as grandes campa-nhas de Pompeia e Herculano. A imagem de cada um dos apóstolos é representada em grandes esculturas de vulto que se animam das pa-redes a partir de molduras em mandorla, como se se tratasse de gran-des camafeus de elevado efeito cénico e dramático. Talvez esta seja a melhor obra da escultura artística em gesso do neoclássico existente em Portugal.

Ainda pelas escarpas do Douro, aproveite-se a descida feérica pelo funicular dos Guindais. Acompanhe-se o túnel da ribeira e aprecie--se o famoso painel da Ribeira Negra oferecido por Júlio Resende à cidade do Porto. E aqui estamos na Ribeira do Porto onde existem conjuntos artísticos em estuque, quer de carácter doméstico quer de carácter institucional. Mantém-se o neoclássico, uma das maiores virtudes artísticas do Porto em relação às campanhas de obras defi-nidas pelos Almadas, assim como a todo o florescimento comercial produzido a partir das transacções do vinho do Porto. Neste centro, classificado como património da UNESCO, podem apreciar-se dois

Porto: percurso por tectos, esculturas e painéis

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tipos de neoclássico: o trabalho dos artistas ingleses e o dos italianos/portugueses. São a Feitoria Inglesa e a Igreja da Venerável Ordem dos Terceiros de São Francisco.

O primeiro, na Rua do Infante Dom Henrique, é um excelente tes-temunho da aliança luso-britânica e do peso da comunidade britâ-nica na cidade, grandemente empenhada no comércio do Vinho do Porto. Construída entre 1785 e 1790, de acordo com um projecto do cônsul inglês John Whitehead, a Feitoria Inglesa é inspirada no estilo palladiano, sendo a única Factory House que sobreviveu até à actua-lidade, das diversas que existiam em todo o mundo. É, pois, um ver-dadeiro must see!

Continuando pela Rua do Infante, está a escadaria cénica da Igreja da Venerável Ordem dos Terceiros de São Francisco, que segue ainda os moldes do barroco, do voir et être vu.

E ao lado está o Palácio da Bolsa, que reúne o espírito do Porto e do Portugal de novecentos. O romantismo pleno do XIX e o ecletismo da transição do XIX e início do XX. No contexto do Palácio da bolsa destaca-se, inquestionavelmente, o Salão Nobre, dito Árabe, onde o trabalho em estuque artístico é levando ao expoente máximo.

No Porto, é consabido, come-se b em. Almoce-se e, ao início da tarde, rume-se à Cadeia da Relação que se abre sobre o Jardim da Cordoaria. Além de um edifício de excepção, é possível visitar a Sala do Tribunal, célebre pelas audiências de Camilo e Ana Plácido, reves-tida a estuques neoclássicos.

Na transição do neoclássico para o romantismo passe-se pelo Hospital de Santo António (o mais notável edifício neoclássico da ci-dade do Porto e construído com o risco de John Carr), pelo Palácio das Carrancas (onde está instalado o Museu Nacional Soares dos Reis) e visite-se as várias salas de decoração estucada sempre de fei-ção neoclássica e de autoria de Chiari mas, também, reinterpretações feitas já nos anos 40 do Séc. XX.

Daqui segue-se um passeio pelos Jardins do Palácio de Cristal pro-jectados, na década de 1860, pelo paisagista alemão Émile David.

Vai-se até à Rua de Santa Catarina para lanchar no que está conside-rado como um dos cafés mais bonitos do mundo: o Majestic. Notável pela sua decoração arte nova, preserva ainda o ambiente e o espírito eclético do início do Séc. XX. Siga-se para o Teatro Nacional São João e observe-se a riqueza e a extraordinária força do programa deco-rativo em estuque artístico das diferentes salas, com destaque para máscaras, mascarões, frisos e grinaldas aplicados nas paredes e tectos de todas as salas do teatro.

O jantar pode ser no Hotel Infante Sagres. Considere-se a sua de-coração em estuque do século XX e realizada no estilo Riba d´Ave (assim designado em concordância com todo uma programação arquitectónica e decorativa fomentada pelo comendador Delfim Ferreira de Riba d´Ave). O Hotel tem uma programação em estuque artístico e a especificidade decorativa deste espaço marcou a época áurea do Porto dos anos 40 do Séc. XX.

No final, aprenda-se a Arte da Oficina Baganha e perceba-se por que a Crere recuperou a maioria destes espaços. Mais uma vez, em nome de tudo o que se deve preservar.

«ENTRE O PATRIMÓNIO CULTURAL E O VINHO HÁ MAIS DO QUE SEMELHANÇAS E PARECENÇAS»

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Entre o vinho e o patrimónioO que faz um enólogo no meio do estuque? A questão coloca-se a Miguel Figueiredo, que se especializou em enologia pela Universi-dade Técnica de Lisboa (no Instituto Superior de Agronomia) e durante dois anos se dedicou «à actividade mais criativa e abstrac-ta na área científica: a investigação».Por isso, explica: «Tentava perceber como é que a formação de ál-coois superiores interfere na composição aromática dos vinhos e a sua predisposição para os assuntos do património e identidade». Em Portugal, e em relação ao vinho, património e identidade são palavras imediatas: a vastíssima quantidade de castas nativas do nosso país, transportam consigo características aromáticas que permitem produzir uma grande diversidade de vinhos com perso-nalidades muito distintas. Depois da enologia, «alargou» a carreira à área do restauro, desen-volvendo um trabalho de parceria com Paulo Ludgero de Castro. Fizeram a Crere, no âmbito da gestão do património cultural, num momento em que, em Portugal, se vivia uma época «árida», quer em termos práticos quer em termos teóricos.Além de alguns estágios efectuados em ateliers de conservação e restauro, de breves pós-graduações nas práticas de conservação e restauro em pintura mural e bronzes artísticos pelo Instituto do Património Andaluz, acabou por optar por uma pós-graduação em gestão do património cultural na Universidade Católica. Então, onde é que os aromas de um vinho se cruzam com a ges-tão do património cultural de bens artísticos e com a conservação e restauro dos mesmos? «De um lado para o outro, os processos não mudam muito, já que todos interferem numa lógica sensorial e criativa onde o factor e o rigor técnico e científico são determinan-tes à manutenção de um património e de uma identidade.» Para Miguel Figueiredo, entre o património cultural e o vinho há mais do que semelhanças e parecenças no modo de actuação, seja do ponto de vista da conservação e restauro seja do ponto de vista da produção de um vinho: «Há um factor essencial que é o da manutenção da nossa identidade a única forma de nos manifes-tarmos no mundo e mostrarmos o que somos.»

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Nem sempre foi assim. Eram armazéns variados, espaços enormes desaproveitados, moradores antigos. Agora, desde que o galerista Fernando Santos para ali se mudou em 1995 (apesar de manter uma outra galeria na Rua de D. Manuel II, desde 1993), tudo foi alterado. Os valores eram comportáveis e Fernando Santos incentivou outros a ocupar os velhos armazéns, fazendo até a «ponte» nas negocia-ções. E a Miguel Bombarda passou a pedonal, uma conquista que ainda demorou algum tempo, mas a que não foi alheio o facto de

ali se terem concentrado cerca de duas dezenas de galerias e espa-ços de arte, que incluem lojas várias e até restaurantes e um centro comercial.

O trabalho de Fernando Santos foi desenvolvido em função de quatro propósitos complementares: divulgar e apoiar projectos de novos artistas portugueses, atender a um melhor conhecimento de alguns nomes da arte internacional, abrir às instituições e a um leque de coleccionadores de obras de prestígio a possibilidade de

De armazéns a espaços de culturaMiguel Bombarda, Porto

TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS HERNÂNI PEREIRA

De uma rua de armazéns, incluindo de vinhos, a um espaço de cultura foi um passo. Dado por Fernando Santos. E ao fundo a Torre de Pedro Sem observa o movimento. É a rua Miguel Bombarda, no Porto, inundada de galerias de arte, livrarias e a que não falta a Rota do Chá. Pedonal, com certeza!

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permanecerem em contacto próximo com nomes de referência no mercado da arte nacional e internacional e manter em aberto uma linha de exposições capaz de continuar a atender à produção de al-guns dos mais significativos artistas portugueses surgidos nas últi-mas quatro décadas.

Daí que a galeria vá, alternadamente, realizando exposições nestas quatro vertentes, com mostras dos seus artistas, apresentando a sua obra em museus e espaços institucionais de prestígio, bem como, marcando presença em grandes feiras nacionais e internacionais.

Mesmo em frente à galeria fica o Papa Livros, onde estes são tra-tados como obras de arte e os clientes estão habituados a vê-los ex-postos. «Tão habituados que já estranham vê-los de lombada», diz Adélia Carvalho, uma educadora de infância de 42 anos que tam-bém escreve. Ali estão livros infanto-juvenis e da autoria da res-ponsável pelo espaço constam, entre outros, O Elefante em loja de porcelanas, elaborado em parceria com a Vista Alegre, e A Crocodila mandona que está em português, espanhol e inglês.

Papa Livros é uma verdadeira Galeria com um espaço infantil, onde são promovidas as horas de conto para as crianças, e se faz lançamentos de livros e até cursos de escrita criativa.

Crise? Adélia Carvalho explica que «este é o mercado que está a

NA ROTA DO CHÁ É POSSÍVEL REPOUSAR, BEBER, CONVIVER E COMPRAR O DITO. UM ESPAÇO ÚNICO, ATÉ DE APRENDIZAGEM

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sobreviver melhor, porque era o menos explorado e a ilustração veio ajudar. Mas não foi despiciendo o trabalho do Plano Nacional de Leitura, que levou a uma maior procura dos livros».

Domingos Faria, que reside na Miguel Bombarda há mais de 30 anos, não está «pelos ajustes» e queixa-se de que «tudo veio tra-zer uma grande confusão». Acha que «para os negócios, esta rua se tornou muito interessante», mas lamenta que, «sobretudo aos sá-bados quando há eventos, como inaugurações, deixem tudo sujo». Exemplifica com «os copos que ficam nos beirais das janelas». Além disso, os moradores sentem-se incomodados com o barulho e o mo-vimento a que não estavam habituados, e a falta de estacionamento. Domingos Faria alerta: «Tudo seria diferente se respeitassem mais quem mora aqui…»

Mas, a moradora, que não quis identificar-se, fala do «bom que é, a qualquer hora, ir repousar um pouco, descontrair na Rota do Chá». A casa fica ali, meio escondida, numa entrada discreta. Mas, quando se passa o corredor, desemboca-se numa pequena sala que se abre para um jardim cuidado em que as tisanas são rainhas.

Acolhedor e muito bonito, há quadros antigos, chávenas e bules, posters. No exterior mistura-se conforto e relaxamento, com muitos motivos vindos do Oriente.

A arte está, pois, na rua. No Porto, basta ir à Miguel Bombarda.

A HISTÓRIA DE PEDRO CEMComeçou por ser um homem muito rico e mandou construir a Torre do Palácio dos Terenas, no século XIV, nos arredores do que então era um burgo medieval, para assinalar a sua quinta, a que o povo chamaria de Quinta da Boa Vista. Uma tempestade destruiu-lhe a frota e perdeu tudo quanto possuía. Sem amigos, afastados já pela sua ostentação, acabou pedinte nas ruas do Porto, clamando: «Esmola para Pedro Cem que tudo teve e nada tem!».Mas como «quem conta um conto acrescenta um ponto», há uma outra versão que fala em Pedro Pedrossem da Silva, um mercador rico, director da Companhia dos Vinhos e Juiz de Con-fraria. Reza a história popular que Pedrossem teria caído na ruína por afronta a Deus. Quando viu, do alto da sua torre, as naus a entrarem na barra do Douro, cheias de riquezas, terá desafiado: «Agora, mesmo Deus querendo, eu não posso ficar pobre!». Nesse momento sobre-veio a tempestade que tudo destruiu e o obrigou a mendigar.Há, contudo, algumas verdades em todas estas estórias. De facto, Pedro Pedrossem da Silva existiu: nasceu no Porto, onde morreu em 9 de Fevereiro de 1775. Viveu perto do Rio Dou-ro e foi casado com Ana Micaela Fraga, de quem teve três filhos.Seria, na realidade, um homem muito rico, com uma figura impo-nente, mas, usurário e orgulhoso, granjeou muitas animosidades. Daí que, quando perdeu todos os seus bens, estivesse, também, sem amigos. Não será, todavia, verdade que algum dia tenha mendigado.

O PAPA LIVROS E A GALERIA FERNANDO SANTOS CRIARAM OUTROS LAZERES NA MIGUEL BOMBARDA

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7ªARTE CARVALHO SANTOS(

Missão cumpridaFernando Lopes

Antes do IndieLisboa onde tudo ainda se passa, das Curtas de Vila do Conde, que já aí vêm, e do despertar de uma nova geração de cineastas portugueses sob a ameaça de zero em orçamento, um voto de imenso pesar por Fernando Lopes. Que nos deixa, a todos, mais pobres.

Quem nos cine-clubes lutou contra a Ditadura é (por norma), gente de bem. Quem (com Paulo Rocha e Manoel de Oliveira) tem o nome ligado ao Novo Cinema Português transmitiu-lhe uma lufada de ar fresco. Quem deu à televisão (por pouco tempo, infelizmente) mo-mentos raros de qualidade e beleza tem esse crédito a haver. Quem estudou em Londres e Hollywood, ama a profissão. Quem produ-ziu 50 filmes em 50 anos, trabalhou insanamente. Quem tem uma íntima relação cinematográfica com os clássicos portugueses, é um homem da cultura. E quem melhor do que Fernando Lopes, dignifi-cou a chamada nobre arte? Marcado pelos movimentos intelectuais antifascistas, Belarmino é um dos grandes clássicos da corrente neo--realista. Defensor de boas causas, amigo de actores, de produto-res, de escritores, das artes, um amigo para a vida de quem com ele privou ou admira o seu cinema. Fernando Lopes é, acima de tudo, considerado um homem bom. Disse dele o cineasta Alberto Seixas Santos: «A sua generosidade, passava-a para os filmes e para o amor

às pessoas». Será, quanto a nós, deficiente a publicitação feita ao sentido técnico e estético do cineasta. Exemplos de carinho à dança e às artes plásticas são os documentos que dedica à coreógrafa Pina Bausch e ao pintor Michael Biberstein.

Se Fernando Lopes deu tudo de si ao cinema, se têm justifica-ção os elogios sequentes ao seu desaparecimento, obras como Belarmino, O Delfim, Uma Abelha na Chuva, Crónica dos Bons Malandros, Nós por Cá todos Bem, Sorrisos do Destino não podem cair no esquecimento. E também o último filme que editou, Câmara Lenta, uma vez mais, expressão de comprometimento com o amor e a verdade.

Há quatro anos, João Lopes documentou, sob o título Fernando Lopes, Provavelmente, a vida e obra do cineasta. É de aproveitar o provável aproveitamento dos grandes operadores do vídeo e da rede móvel para ver, «gratuitamente», até ao fim do mês, o extenso do-cumento do credenciado crítico.

ÂNGELA CAMILA CASTELO-BRANCO

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CANIJO, MIGUEL, TOCHA, SALAVIZAHá uma nova geração de cineastas portugueses que nos leva a pensar em Pedro Costa. Não será um percursor, no sentido literal do termo, mas apenas João Canijo, dos quatro grandes triunfadores do mo-mento (conquistam prémios internacionais quase todos os meses), se identifica menos com ele e mais com Manuel de Oliveira, o que não lhe fica nada mal…

Criterioso, João Canijo porfiou, optou por um cinema de autor e de actores, estudado e conjugado ao pormenor. Em Sangue do Meu Sangue virtualiza o amor incondicional, conquista plateias em Portugal e no mundo. Foi recentemente homenageado em Buenos Aires, onde a crítica qualifica o seu trabalho como obra-prima.

Que dizer de Miguel Gomes e do seu Tabu? De territórios imagi-nários à África colonial, concebe uma obra genial. A dois tempos, começa nos anos de ontem e acaba nos de hoje, como se os tivesse vivido todos. Em obra de esmagadora intensidade, usa intencional-mente os tempos mortos (da acção) para subitamente, os revigorar. Conjuga tudo: da originalidade ao retrato da beleza natural, da con-tenção à explosão de emoções, do quotidiano, à construção de espa-ços de nostalgia, quase diríamos, à morte anunciada de colonizadores e colonizados.

Talvez o jovem Gonçalo Tocha nem quisesse seguir a carreira de ci-neasta… Acabará por seguir tal rumo? Certo é que anda pela Europa e nas Américas, a conquistar enlevos e galardões. Quis mostrar que o Corvo é mais do que uma ilha desgarrada e bela. Apaixonou-se, con-viveu com os habitantes, viveu os seus problemas que são, hoje, de degradação, tornou-se um corvense! Toda a gente (no documentário)

lhe chama Gonçalo, aparece por segundos, quase sempre de costas, revisita os amigos e entra no mundo deles. Se filmou para seu prazer e dos corvenses, quis lá saber que três horas sejam demais para mos-trar uma ilha onde quase nada acontece!… Começa a encomendar um boné tradicional, o filme só termina quando a dona Augusta lhe dá o último ponto.

João Salaviza: Somos dos que pensam que o jovem de 28 anos reúne potencialidades incontornáveis, que virá a ser muito mais do que o simples «captor de momentos» que diz ser. Saber que trouxe ouro de Cannes e de Berlim é uma coisa. Ver os 25 minutos de Rafa é outra coisa, quase de inimaginável originalidade e tal perícia no domí-nio da câmara com a qual, considerou, «quase se limitou a seguir os movimentos autónomos do protagonista». Se Pedro Costa viveu dez anos num bairro degradado para uma trilogia de antologia, até parece que, a Salaviza bastaram as 24 horas do drama que regista. Rodrigo Perdigão, um actor prodigioso? Provavelmente sim, aos 13 anos, tudo o indica. Há condições para que o também autor de Arena e Cerro Negro realize a sua primeira longa-metragem.

Porém, a lei de que cineastas, produtores, distribuidores, directores de festivais e, aparentemente, o próprio secretário de Estado gostam não há meio de sair, a contento. Nem, por enquanto, uma solução de emergência que evite a ruptura eminente do Instituto do Cinema e os compromissos assumidos em 2010 e 2011! Bem podem Manoel de Oliveira e seus pares fazer ultimatos…

Aquando da antestreia de Rafa, João Salaviza disse publicamente que até «as coisas mais bonitas têm a ver com o dinheiro». E que os próximos anos «não serão fáceis para ninguém». «Muitos de nós, vão desistir, outros podem tentar custear os próprios filmes. E quem tiver pais ricos...»

A esta hora já estarão a passar filmes do Indie no circuito comercial, incluindo os vencedores absolutos, De Jueves a Domingo, de Dominga Soto Mayor e Juku, de Kiro Russo. Assim como os intrigantes Nana, de Valérie Massadian e 4:4 Last Day on Earth, de Abel Ferrara, entre outros, que gostaríamos de abordar. Mas estamos numa onda portuguesa…

TABU É UM AMOR IMPOSSÍVEL E MUITAS COISAS MAIS

GONÇALO TOCHA APAIXONOU-SE PELO CORVO E PELOS CORVENSES

SALAVIZA EM NAMORO COM A SUA LISBOA

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A CAMA ONDE O GATO SE ENROLA Filipa Reis e João Miller Guerra foram uma vez mais consagrados, agora, no IndieLisboa que lhe atribuiu o prémio de melhor curta-me-tragem portuguesa. Cama de Gato integra-se no projecto BV, criado pelos dois realizadores, juntamente com Pedro Pinho e os habitu-ais colaboradores. O filme é desenvolvido pela Vende-se Filmes no bairro da Bela Vista em Setúbal, com apoio camarário e deseja-se con-tinuidade. Parte da realidade dos actores, o resultado é de partilha entre personagens e formadores. Disse-nos Filipa Reis: «Ensinamos e aprendemos todos os dias.»

O mote enquadra-se num ensinamento de Agostinho da Silva, a que não resistimos: «As coisas acontecem e a gente aproveita, ou não. Há um jogo de meninos que, em Portugal, se chama cama de gato: os meninos atam um cordel em círculo, depois fazem assim com a mão, vem outro e faz uma complicação qualquer, mete o dedo e faz outra complicação, vem outro ainda e quanto aos dedos faz assim e tira, e forma outra figura… Então, eu acho que na vida o que há é um perpé-tuo jogo de crianças… que a vida vem e de vez em quando apresenta--nos o problema… fazemos assim e sai outra coisa…»

TANTOS PORTUGUESES NO IMPÉRIO DAS CURTAS!...Na primeira linha de talentos em 2011/2012 faz sentido integrar José Filipe Costa que apresenta nas salas comerciais a sugestiva revisitação dos dias de Abril-74, a Herdade da Torre Bela Vista como se a realidade fosse um filme.

Passaram pelo Indie longas metragens, de Júlio Alves, Catarina Ruivo, André Valentim Almeida, Pocas Pascoal, Júlio Alves, Catrina Ruivo, Helena Inverno e Verónica Castro. Em competição, ou não,

7ªARTE(CAMA DE GATO É UM JOGO DE MENINOS

A LIBERDADE E O SEU ESPANTALHO

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assinaram curtas Filipa Reis/João Miller Guerra, Luís Matta, Pedro Lino, André Godinho, Pedro Peralta, Pedro Brito, João Guerra, Isabel Aboim Inglez, Rui Cardoso, Edgar Pêra, Paulo Abreu, Regina Pessoa, António da Silva, Salomé Lamas, Cláudia Varejão, José Alberto Pinto, Gabriel Abrantes, Flávio Pires, Leonor Noivo, Paulo Abreu, Diogo Sequeira, Tiago Ferreira, Filipe Afonso, Gonçalo Robalo, Rafael Morais, João Mário Grilo, Filipe Pinto/Pedro Pinto. Raul Brandão Era um Grande Escritor, de João Canijo, também lá esteve. Sinais de vita-lidade do pelotão, agora, comandado por João Salaviza.

20 ANOS FESTIVOS EM VILA DO CONDE

A inovação é uma constante no Curtas Vila do Conde, e por celebrar 20 anos, a edição que decorre de 7 a 15 de Junho adivinha-se especial. Stanley Kubrik, de The Shining à Laranja Mecânica, estará em desta-que, assim como Olivier Assayas, nome importante do cinema fran-cês contemporâneo.

Quase a par da concorrência nas curtas de realizadores nacionais e estrangeiros, de 13 a 17 de Junho, a Agência de Curta Metragem, em colaboração com o festival Séquence, desenvolve um programa exclu-sivamente dedicado à Lusofonia.

A exibir: Viagem a Cabo Verde, de José Miguel Ribeiro; Cândido, Zepe; Desassossego, Lorenzo Degl’Innocenti; Pássaros, Filipa Abranches, 3x3, e Vicky and Sam, Nuno Rocha; Fado do Homem Crescido, Pedro Brito; Afonso Henriques, O Primeiro Rei, Pedro Lino.

Em acordo com a brasileira Refinaria Filmes, a mesma agência passa no Rio de Janeiro (26/6 a 1/7) e em São Paulo (3 a 8 de Julho) uma mostra de cinema português contemporâneo. Nomeadamente: Canção de Amor e Saúde, de João Nicolau; Viagem a Cabo Verde; Mercúrio, Sandro Aguilar; China, China, João Pedro Rodrigues/João Rui Guerra da Matta; A Noite, Regina Pessoa, Kalkitos, Miguel Gomes; Crime/Abismo Azul/ Remorso Físico, Edgar Pêra.

KÊ LI KÊ LÁ FOI À GULBENKIANO programa durou três anos, já então sob a égide da Vende-se Filmes e com a equipa orientada por Filipa Reis e João Miller Guerra. Foi prazenteiro assistir na Gulbenkian ao desfilar do trabalho global de Ké Li Kê Lá,- Nada Fazi, o último destaque. Coisa invulgar: protago-nistas na tela, os mesmos actores na plateia, cheiinha e cheia de risos. Filipa espera dividendos…

Quase todas as acções decorrem no Bairro da Boba, concelho da Amadora; a interacção entre autores e actores (estes que nunca antes o tinham sido) permite a visão (e transformações?) de uma diferente realidade quotidiana; e vêm a lume valores que se conjugam com práticas menos recomendáveis - generosidade, irreverência, sentido de humor, solidariedade e inteligência que muitos julgam perdido nos bairros sociais. Oxalá se enganem.

Alguns daqueles jovens já são actores ou modelos, outros chegaram a constituir um conjunto musical, a Orquestra Geração.

FESTA À ITALIANAA Portugal, chegam cada vez menos filmes da Bela Itália. 8 ½ trouxe novidades, boas realizações dos últimos anos. E trouxe a Lisboa, ao Funchal, a Coimbra, Porto e Guimarães convívios, apetite para ci-néfilos amantes da gastronomia, risos e pés de dança. De parabéns, portanto, o Instituto da Cultura Italiana, a Sorpasso II e a Medeia Filmes. O público escolheu Scialla, de Francesco Bruni. O júri, de que fez parte Leonor Silveira, escolheu a obra-prima, Là-Bas, de Guido Lombardi.

KALKITOS, DE MIGUEL GOMES

NOS FILMES TAMBÉM SE APRENDE A COZINHAR

SCIALLA PREMIADO NA FESTA DO CINEMA ITALIANO

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Num prédio em ruínas, uma mulher rapta e mantém prisioneiro um ser muito belo. Este o ponto de partida para a mais recente longa-metragem assinada por Margarida Gil. Um �lme sobre o amor e os seus subterrâneos.

TEXTO E FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

o acto de criaçãoEsse acto tresloucado,

Margarida Gil (n. Covilhã, 1950), realizadora que se estreou em 1989 com Relação Fiel e Verdadeira, também guionista e professora, regressa às longas-metragens depois de Adriana (2004) disposta a mostrar a paixão pelo lado do excesso. É isso que filma, num enredo escrito a meias com Maria Velho da Costa, surpreendendo-nos a meio do ca-minho quando inverte a relação entre algoz e prisioneiro. Como nos diz: «… normalmente a vítima tem um grande potencial de devir um violador, ou um ser também violento.» De grande plasticidade, visual e sonora, Paixão é sobretudo um objecto de reflexão, um objecto ar-tístico cujos méritos maiores radicam na eficácia e simplicidade dos meios narrativos, tecendo o passar do tempo, abrindo espaço para entrarmos nas personagens.

Nas actuais circunstâncias sociais, com a Cultura em clara des-promoção nas prioridades do governo, com as estatísticas de con-sumo cultural em baixa, como vê a chegada ao grande ecrã de um novo filme?

Com muito entusiasmo. Acho que nas alturas de grande perigo é preciso ter a cabeça bastante fria. Acho que o chegar às salas já é muito bom e devo alegrar-me. Mas com muito medo de que as pes-soas, que se recolhem ao mínimo sinal de crise, tenham um compor-tamento reflexo, que é não ir pagar um bilhete, por exemplo. Esse automatismo de ficar em casa porque o tempo está muito mau… porque o país está em crise… É compreensível, claro, eu compreendo muito bem os receios, mas assim como nós temos que resistir, por-que é preciso espírito de resistência – para escrever, para filmar, para produzir o que quer que seja –, quando se faz, quando se cria, desde o início temos consciência de que não há dinheiro para isso. Pelo que é sempre um acto de generosidade do criador quando faz qualquer coisa da sua cabeça. A criação, em princípio, pressupõe um acto de liberdade e de generosidade. O filme tem que ser visto, nessa altura acaba o processo, o meu processo de liberdade. Por isso fico contente com o facto de o filme sair em sala e espero que as pessoas também sejam suficientemente generosas e livres para completarem esse acto.O que me está a dizer é que o cinema é hoje em dia um acto de resistência?Eu acho que sempre foi, sempre foi. Há muitas maneiras de fazer um processo criativo mas se ele não for um acto de resistência con-tra algo que já está instalado e anquilosado, que está feito, não é um acto criativo. O acto criativo pressupõe um ponto de partida em que se anula o passado, em que se anula aquilo que está para trás. Isso

muitas vezes não é deliberado, não é cons-ciente, mas tem de existir, é por isso que é sempre um acto de resistência e tem de ser um acto livre.Além da liberdade intrínseca ao acto cria-tivo, e que parte do criador, este reserva sempre algum espaço para pensar no des-tinatário, ou seja, de algum modo actua em função de expectativas de terceiros?Eu acho que isso está imanente, faz parte do processo, mas quando se faz cinema ou quando se escreve, pinta, eu duvido muito que se pense imediatamente nisso. Mas aceita-se um processo, sem dúvida, que ter-mina com o público que vê, que olha, que lê. Que pode ser um amigo, eu própria, al-guém, seja quem for. Não há nenhum rea-lizador que não goste que o seu filme seja muito visto. Se algum disser isso eu não acredito. Pode estar a ser sincero, eu é que não acredito!Há nisso que me diz um desejo também de partilha?Não sei se há assim uma consciência. Há uma necessidade de expressão. Acho que é sobretudo isso, uma necessidade vital de filmar, de escrever, de compor, de pintar… senão morre-se.As coisas só fazem sentido se chegarem ao Outro?Aí não concordo, acho que não, não acredito nisso. Acho perfeita-mente possível não chegar ao Outro e ser na mesma um processo criativo. Pode, eventualmente, dizer-se que não está completo. Mas no caso do cinema, é muito difícil não chegar ao Outro, porque senão nem se sequer se chega a fazer. Tão-só porque é um acto que começa por ser solitário, mas no qual, depois, participa muita gente. Participa uma equipa, é preciso financiamento, é preciso passar por um pro-dutor, há os actores, em princípio costuma ser assim. Portanto, esse acto é múltiplo. É isso que também torna o cinema tão gratificante. Começa por ser um acto livre, e essa liberdade vai sendo partilhada,

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isto é, perdida, porque é partilhada por muita gente, que se associa e generosamente participa nesse acto. É fascinante.Algum momento do processo lhe é especialmente caro?A escrita. O começo. O momento da total liberdade, em que tudo é possível. Não há pensamento, não há público, orçamento… Tudo é possível.Quanto a esta nova longa-metragem, Paixão, qual a sua génese?É difícil situá-la… Perde-se muito no tempo… Há um belo dia em que uma pessoa se senta e escreve um acto tresloucado! Esse acto treslou-cado, que é o acto de criação, um acto de inauguração de qualquer coisa, vem de onde? Não se sabe!

«A CRIAÇÃO, EM PRINCÍPIO, PRESSUPÕE UM ACTO DE LIBERDADE E DE GENEROSIDADE»

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Fala-nos de um rapto, de uma mulher que rapta e mantém pri-sioneiro um homem. Um caso com alguns paralelos com a actualidade…Sim, mas a ideia para o filme nasceu antes de se falar desses casos de pessoas metidas em caves e raptadas, em que se começou a falar da sín-droma de Estocolmo; nessa altura já estava o filme escrito. Eu tenho sempre a sensação que a vida é muito mais imaginosa do que a arte. Quando pensamos que estamos a fazer uma coisa completamente tresloucada, depois, a seguir, é só abrir os jornais e a vida encarrega--se de nos desmentir, mostrando que, afinal, é muito mais venturosa. A ideia surgiu como nos outros meus filmes. Costuma-me aparecer uma ideia completa, depois é descascar uma cebola, é chegar lá, ser o mais verdadeira possível em relação a essa ideia inicial que é…, normal-mente, é a mais fulgurante.E neste caso, que ideia inicial foi essa?Precisamente a de uma mulher a quem acontece uma grande desgraça e que rapta um ser belíssimo num prédio em demolição.Porquê o aspecto da demolição?É muito importante. O prédio em demolição… não quer dizer que estas coisas tenham um acto simbólico. Mas… o prédio em demolição é uma situação precária, ameaçada, há uma ameaça permanente no filme. Eu penso que hoje em dia é difícil escrever algo que não esteja contagiado por algo de grande ameaça e derrocada, porque estamos numa época de derrocada. Não foi deliberado, mas eu agora vejo que essa imagem de um prédio em demolição, faz muito sentido.É um filme que vai ao encontro de muitas outras paixões, certo? Nomeadamente, a musical, que tem tradições na sua família…É fatal como o destino. Eu tenho a música permanentemente em cir-culação dentro de mim. Para já, porque eu vivo dentro de música, estou sempre a ouvir música, desde miúda, a música tem um papel muitís-simo importante no meu quotidiano, portanto seria difícil escapar-lhe.E do mesmo modo a componente plástica do filme assume grande cuidado…Eu também pinto, mas não sei se isso tem uma influência directa. Vejamos, no cinema há um olhar, se esse olhar não tiver uma compo-nente plástica não sei se o cinema será muito interessante.E os nomes dos protagonistas? João, a lembrar o evangelista… Maria…Chama-se Paixão, o filme. Há uma componente religiosa, natural-mente; por muito que eu não queira, tudo o que eu faço a assume. E

há um universo um pouco sadomasoquista, dos mártires, da tortura física, a maneira como a tortura física se mistura com o prazer, a ma-neira como no imaginário religioso a história da mística se associa, não só a uma qualidade estética, como a algo que tem a ver com um certo prazer na dor. A paixão é isso. É um ser que se transforma num outro, que o come, que o engole, há uma simbiose. Não é propriamente uma simbiose feliz, há muito na paixão de dramático, de dor, é algo por que todos os adolescentes anseiam, um paixão, mas não sei se há muito de felicidade nessa procura.E a que se deve aquela inversão de papéis, a meio do filme, entre car-cereiro e prisioneiro?Pois… talvez eu queira falar outra vez, falando de paixão, da inversão de papéis numa relação de poder, que existe sempre numa relação amo-rosa. Atingindo o ponto culminante na relação passional. A relação in-terdependente da vítima e do carrasco, criando uma simbiose. Que eu penso que é um dos factores que me interessa no filme, acho que é um dos traços da paixão, acho que é um dos traços da violência, da-quele que exerce a violência sobre o outro e está a gerar um ser vio-lento no mesmo momento em que exerce essa violência. Eu penso que a grande armadilha da vida é precisamente essa, é escapar a essa correia de transmissão de violência, aquilo que acontece quando numa situa-ção de miséria, numa situação de exercício de tortura de um sobre o outro, normalmente a vítima tem um grande potencial de devir um violador, ou um ser também violento. Esse processo é um processo ao qual é muito difícil escapar.Os abismos da alma humana… Gostava que me falasse agora de como decorreu o trabalho de escrita de argumento a dois com a Maria Velho da Costa.Já trabalhamos há muito tempo. Mas eu estou, entre aspas, muito mal habituada. É que eu comecei por trabalhar com a Luísa Neto Jorge, e trabalhei com o João César Monteiro e depois com a Maria Velho da Costa, com o Manuel Gusmão… São poetas e escritores que eu res-peito imenso e que aprecio imenso. Com a Maria Velho da Costa tenho uma relação longa de amizade. Há uma simbiose perfeita no resultado, mas temos universos muito diferentes, eu sou do cinema, ela da lite-ratura, isso já conduz a caminhos paralelos. Podem tocar-se mas não é necessário.Ficção ou documentário? Para onde pende actualmente?Ficção, eu tenho sempre uma tendência para entortar o documentário para o lado da ficção.

«É DIFÍCIL ESCREVER ALGO QUE NÃO ESTEJA CONTAGIADO POR ALGO

DE GRANDE AMEAÇA E DERROCADA

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«Um país pequeno, mas rico culturalmente. Uma cultura muitas vezes desconhecida», sublinha Tiago Pereira. O realizador, deci-dido a mudar esta visão de horizontes cur-tos sobre a nossa cultura, no caso vertente musical, «rema» desde Janeiro de 2011 con-tra a maré. Fá-lo num «barco» carregado de sons nacionais. Apelidou-o de A Música Portuguesa a Gostar dela Própria (MPAGDP).

«Gostava de que as pessoas percebessem que aquilo que se produz de música em Portugal não é só o que passa nas rádios, televisão ou em concertos. Há muita coisa que é feita no país», explica Tiago Pereira.

A Internet é o meio de divulgação desta iniciativa multimédia que casa música e realização. A plataforma na rede foi imagi-nada por Tiago para ser aberta (opensour-cing). Um local de encontro e partilha de imagens e sons.

Um ano bastou para que a página reunisse perto de 700 vídeos e 300 autores. O leque é largo. Lado a lado convivem sonoridades tradicionais e novas tendências. Exemplos não faltam. Em Bucos, Cabeceiras de Basto, uma mulher fia utilizando uma dobadoira. Em Ifanes, Miranda do Douro, durante um minuto assistimos e escutamos a passagem pachorrenta do gado bovino. Mais a sul, em Monsanto, Castelo Branco, as adufeiras lançam as suas vozes e instrumentos numa «Marcelada». Tiago Pereira chama-lhes «paisagens sonoras».

Do rural para o urbano, na lisboeta rua Cor-de-Rosa, Cais do Sodré, os Óai d’Ir in-terpretam um repertório inédito de can-ções acústicas. Baseiam-se nas percussões portuguesas e do mundo. Recorrem a ins-trumentos étnicos, entre os quais alguns de raiz tradicional portuguesa. A paleta sonora neste A Música Portuguesa a Gostar dela Própria é imensa e organizada por ordem alfabética.

«Temos a voz de uma senhora açoriana de 91 anos, escutamos bandas experimentais, mas também bandas mais conhecidas como os Pão, os Paus, Os Azeitonas. Pessoas com

Junta o tradicional, o experimental, sons urbanos e rurais. A Música Portuguesa a Gostar dela Própria faz-se na Internet com 700 vídeos, 300 autores. A encabeçar a iniciativa, o realizador Tiago Pereira. Apoios? «Mais de cem respostas negativas.»

A tradição musical já não é o que era

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ligações à indústria discográfica. Outras sem qualquer ligação. Cantam porque a música é uma forma de estar», comenta Tiago Pereira.

No plano da realização, também há uma concepção desejada por Tiago: «Gostaria que a maioria dos filmes gravados para a MPAGDP colocasse os artistas na rua, pro-porcionando uma simbiose entre a sonori-dade do cantor e a paisagem envolvente.» Exemplos? «Sinos a tocar, o afã dos tran-seuntes, carros a transitar, aves a cantar, máquinas agrícolas em funcionamento.»

Uma iniciativa que também é «carolice». «Consideramos que de certo modo o que

estamos a fazer é um serviço público. Isto porque dá a conhecer Portugal. É um pro-jecto que devia ser abraçado como causa. No entanto já recebemos mais de cem res-postas negativas.»

Os promotores da MPAGDP já contacta-ram televisões, rádios, empresas de diver-sos sectores. As manifestações de interesse são substituídas, mais tarde, pelo vazio. «Parece-me que continua a haver muito preconceito em relação ao rural, ao fol-clore, às artes populares. E isto acontece, em parte, porque nunca houve uma polí-tica muito forte para promoção desta nossa cultura.»

Entraves que não deixam Tiago Pereira, um «caçador de ritmos, de canções, e de loops», de braços cruzados. A divulgação da música nacional é, para este autor, «uma corrida contra o tempo. É importante que haja um grupo de raparigas no Minho, na casa dos 20 anos, que canta polifonia tal como há 50 anos. Que haja pessoas com 12 anos que toquem música tradicional açoriana».

O realizador reforça que o grande traba-lho que urge fazer é «mudar mentalidades. Não se pode ter vergonha da ruralidade. Em 1930 os Pauliteiros de Miranda actuavam em Londres. Hoje isto não acontece».

Tiago Pereira deixa, ainda, uma mensa-gem sobre a defesa exacerbada da tradi-ção: «O purismo quando se fala de música tradicional está muito presente. Há uma tendência portuguesa para considerar que a tradição é aquilo que se fazia an-tigamente, mas não, a tradição evoluiu muito. Encontramo-la tanto num grupo de rap como na senhora que canta a música tradicional.»

Tiago Pereira, natural de Lisboa, inclui entre outras obras B Fachada - Tradição Oral Contemporânea (2008), Significado (2010). Em 2010 foi o vencedor na catego-ria «Missão» da primeira edição do Prémio Megafone João Aguardela. Em 2011 realizou o filme de 60 minutos, Sinfonia Imaterial, uma recolha do património oral tradicional.

http://amusicaportuguesaagostardelapropria.org/

RECORREM A INSTRUMENTOS ÉTNICOS, ENTRE OS QUAIS ALGUNS DE RAIZ TRADICIONAL PORTUGUESA

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JOÃO AFONSOA NOSSA MÚSICA(

A essência do regresso à ribalta Resistência em edição limitadaDesde a saída de Teresa Salgueiro, a inicial voz feminina, os Madredeus, têm visto a sua formação mudar constantemente. Agora, depois de um curto interregno, voltam às luzes da ribalta, que o mesmo é dizer às gravações de discos, aos concertos e às extensas digressões pelo estran-geiro.De facto, com nova formação, os Madredeus, liderados por Pedro Aires Magalhães que incluem no line up as teclas de Carlos Maria Trindade, as cordas de António Figueiredo, Luis Clode e Jorge Varrecoso e a voz reve-lação de Beatriz Nunes acabam de

gravar um novo disco que afinal de contas é uma revisitação ao reportório clássico da banda, especialmente à sua primeira década de actividade.Segundo o seu líder Pedro Aires Magalhães, «trata-se de variar através dum novo ensemble: a melodia fica muito mais apoiada, mas preservamos muito a melodia, o ritmo e as passagens harmónicas ou seja, a essência».E foi precisamente este termo «essência», o escolhido pelo grupo para dar título ao novo disco, gravado para uma nova editora - a Sony Music, e que afinal é motivo de dupla comemoração, pois, além de marcar o regresso do grupo, assinala também os 25 anos de actividade artística da banda portugue-sa mais conhecida e bem sucedida no estrangeiro.

Surgiu recentemente no mercado nacional uma edição comemorativa dos 20 anos de formação dos Resistência, grupo que, apesar de ter du-rado apenas dois discos e dois anos e dois meses, se tornou pioneiro dos super-grupos em Portugal.Fruto da inesperada junção de uma série de músicos e cantores de gru-pos rock portugueses, que aparentemente pouco tinham em comum entre si, o Resistência, foi sem dúvida um dos mais bem sucedidos pro-jectos de música pop/rock em Portugal: as extraordinárias vendas de discos registadas e as lotações esgotadas dos concertos falam por si!A presente edição limitada junta os dois únicos discos que o colectivo gravou, agora remasterizados, e inclui ainda um livro de 40 páginas em que, além de se contar a história da banda, estão todas as letras das canções, fotos inéditas, etc..Um documento essencial duma geração que fica para a história do pop/rock português.

Nos últimos anos, o Castelo de S. Jorge, em Lis-boa, tem sido palco da Festa do Fado, uma série de espectáculos incluídos nas festas de Lisboa e cuja organização tem estado a cargo da EGEAC (departamento cultural da Câmara de Lisboa) e da HM, empresa de Hélder Moutinho vocacio-nada para agenciamento de artistas e produção de espectáculos.A programação, ambiciosa como vem sendo há-bito, inclui uma mão cheia de nomes de primeiro plano do panorama fadista nacional, tais como Kátia Guerreiro (dia 8), Hélder Moutinho e Os Fadistas (Ricardo Parreira, Marco Oliveira, quar-teto de cordas Tempus, Miguel Menezes e Dani Schvetz) no dia seguinte; Jorge Fernando & Fábia Rebordão (dia 15), Beatriz da Conceição, que na sua noite convida Fernando Tordo e Maria da Fé (dia 16), A Naifa (dia 22) e, finalmente, na noite imediata e a encerrar com grande brilhantismo o certame actuará o colectivo Os Vadios, consti-tuído por Camané, Mário Laginha e Bernardo Sassetti.Um elenco de luxo que vai fazer com que o mês de Junho, no Castelo de S. Jorge, não seja só local de encontro de turistas, sardinhas e santos popu-lares, mas também de fado.

Fado volta ao Castelo

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Ana CarolinaÉ visceral, desbragada, canta o que lhe apetece, da forma que entende, e não se preocupa com a lin-guagem que usa. É, também, emocional, sexual e apaixonadamente explícita. Chama-se Ana Caroli-na, acaba de lançar Ensaio a cores, disco ao vivo em que se faz acompanhar por um trio de grandes exe-cutantes femininas, com grande eficácia ao piano, no violoncelo e na bateria/percussão. E é nada me-nos do que... a maior cantora brasileira da actuali-dade! Que furacão está desde há poucos anos a assolar a moderna música brasileira! CD Sony Music

Filipe CattoTem uma tonalidade vocal à la Ney Matogrosso, é contratenor e gaúcho, e foi considerado pela con-ceituada revista Rolling Stone como a mais surpre-endente aparição musical brasileira dos últimos dez anos! Trata-se de Filipe Catto, que no seu primeiro dis-co, Fôlego se assume também como cantautor pois assina a maioria das canções do disco, e diversifica a sua viagem musical por territórios tão diversos como o tango, os blues, o rock e o samba. Uma revelação prometedora, que já no seu primei-ro disco canta com a emoção e a alma dos grandes artistas. CD Universal

Paco De LuciaFalar-se de Paco de Lucia é sinonimo de falar do mais fantástico guitarrista de flamenco da actuali-dade, do criador do imortal Entre dos aguas e do participante da obra-prima Friday night in S. Francisco, onde tocou ao lado de outros dois «monstros sagrados» da guitarra - Al di Meola e John MacLaughlin. Todo o seu potencial como ins-trumentista, esplendor e virtuosismo estão bem patentes no disco ao vivo recentemente editado - En vivo - resultante de actuações em Espanha durante o ano de 2010. Mais de hora e meia de energia, es-pontaneidade e perfeição artística. CD duplo Universal

AS NOSSAS ESCOLHAS(

De entre o grande número de trabalhos discográ�cos editados em Portugal nos últimos tempos seleccionamos uma série, pela qualidade que lhes reconhecemos...

Homem de ideais, Bruce Springsteen a estrela maior do Rock in Rio – Lisboa 2012, está de volta aos discos, com uma gravação surpreendente - Wrecking ball onde denúncia os seus gostos musicais e assume as suas influências que vão desde o gospel aos blues, passando pela música irlandesa e pela country.Contrariamente a outros, em vez de cantar sobre drogas, sexo e afins, sempre foi sua preocupação debruçar-se sobre flagelos da Humanidade como a sida, (quem não recorda o filme Philadelphia) a guerra, o desemprego, os desprotegi-dos da sorte, a depressão, as separações, as profissões de risco como as dos pescadores e mineiros, sabendo no entanto deixar sempre nas suas letras uma réstea de esperança no futuro e um crédito ao amor! Bruce já anteriormente editou discos que foram consideradas obras-primas, mas quanto a nós nenhum tão perfeito, profundo e completo como este. Um disco que o consagra como o maior rocker entre os maiores e, acima de tudo, como um compositor genial fazendo mais uma vez jus ao epíteto de The boss. Adepto confesso de concertos de estádio, compôs também um tema que fica para a história dos seus concertos ao vivo, American land, um hino absolutamente esmagador pela intensidade, força e vitalidade que irradia e que juntamente com Jack of all trades constituem os dois mágicos momentos de Wrecking ball. CD Sony Music

Bruce Springsteen

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CarminhoMuito pouca gente pode gabar-se de alcançar o es-tatuto de estrela ao segundo disco de originais. Carminho pode orgulhar-se disso e essa circuns-tância tem muito a ver com... Espanha. De facto, além de ter cantado com grande sucesso em Fados, de Carlos Saura, continuam a fazer-se sentir os ecos da sua participação no álbum En acustico, de Pablo Alboran, que aqui referimos há alguns números. O seu fabuloso dueto com o artista espanhol, Perdoname, levou o seu nome aos quatro cantos do globo e angariou-lhe uma plêiade de admiradores em numerosos países. E isso levou a que este seu segundo álbum tenha também trepado ao top 10 em muitas charts mundiais (em Portugal saltou di-rectamente para o lugar cimeiro na semana de lan-çamento). Dona de uma voz poderosa, fadista até à raiz dos cabelos (contrariamente ao que sucede com muitas intérpretes de fado que ultimamente têm surgido), Carminho canta com garra, maturidade, sentimento e... alma, afinal de contas predicados fundamentais de uma grande fadista!Alma, na edição especial, inclui um DVD com o registo de um concerto no conhecido Lux da capi-tal portuguesa, sob a direcção do realizador de ci-nema João Botelho. Um disco notável de uma fa-dista que emociona e seduz. CD/DVD EMI

BongaÉ sem dúvida a expressão máxima da música ango-lana entre nós. Chama-se José Adelino Barceló de Carvalho, mas é mundialmente conhecido por Bon-ga, tem o ritmo no corpo e uma voz rouca que cati-va e faz vibrar; entre nós, acaba de lançar um fabu-

loso novo disco, Hora kota, em que, assinando todos os temas, retrata o quotidiano do povo angolano e espraia de várias formas todas as suas grandes po-tencialidades vocais. Bonga tem já 40 álbuns gravados (!!!), quer em por-tuguês, quer em dialecto angolano, e a sua música é uma caldeirada de ritmos trepidantes como kizomba e semba misturados com folk e elementos latinos ( rebitas, merengues...). Bonga prepara-se para no próximo ano festejar 70 primaveras, mas continua imparável, não se estranhando, portanto, que a sua carreira esteja para durar por muitos e bons anos, dianta da vitalidade que ainda vai de-monstrando. É o caso do presente trabalho: além de dar os seus recados, não deixa de expressar o seu amor à terra natal, ás suas gentes, usos e costumes. CD Lusafrica/Tumbao

BirdyA sua voz embriaga e acaricia os tímpanos e seduz--nos como poucas novas intérpretes. Chama-se Jasmine Van der Bogaerde, todos a conhecem por Birdy, canta e toca piano e é a mais recente revelação vocal da musica das Ilhas Britânicas.Tem 16 anos, mas foi com apenas 12 que ganhou o prestigiado Open Mic, em 2008, e com Skinny love se guindou aos postos mais altos dos tops ingleses. Acaba de lançar o seu primeiro álbum a solo e vai dar muito que falar no futuro diante dos múltiplos predicados que já evidencia. Faltou só dizer que tem o gene do sucesso no sangue, pois é sobrinha/neta de... sir Dirk Bogarde, o fabuloso actor de cinema britânico, que brilhou em dezenas de filmes de cul-to especialmente, em O criado e Morte em Veneza. CD Warner Music

Lenita Gentil Tem no fado uma carreira consolidada e uma voz poderosa, mas desta vez resolveu vaguear por outras praias musicais e gravar temas tão díspares quanto nostálgicos. Assim, no novo disco podemos encon-trar desde o célebre Canzone per te, de Sérgio Endri-go, até à emblemática dedicatória de Carlos Puebla a Che Guevara - Hasta siempre passando por Sau-dades do Brasil em Portugal de Vinicius e Canção com lágrimas da dupla Adriano Correia de Oliveira/Manuel Alegre, entre outros.Um inspirado disco de uma das mais expressivas vozes femininas do fado.CD Ovação

Amélia Muge/M. LoukovikasFalar de Amélia Muge é falar da melhor cantora da música popular portuguesa contemporânea; e falar de Michaelis Loukovikas é sinónimo de se falar de um músico grego, inspirado, que agora, numa perfeita odisseia musical assina, em parceria com Amélia, uma das mais belas peças musicais que nos foi dado ouvir nos últimos tempos.Conheceram-se na internet, encontraram-se no espaço virtual, «casaram» musicalmente, conce-beram através das novas tecnologias e o fruto des-se feliz encontro chama-se Periplus – deambulações luso-gregas. Nesta aventura musical, Amélia e Michaelis tiveram também, em parceria, a ajuda de muita gente, nomeadamente José Martins (que artífice!!!), Filipe Raposo, José Salgueiro, Kyriakos Gouventas e o Coro Outra Voz. Constituído por gente de Guimarães, o coro apoiou, em conjunto com a Capital Europeia da Cultura, a feitura e apresentação deste disco e em conjunto ajudaram a pôr de pé este projecto ambicioso onde coabitam na perfeição o fado, o folclore , a música árabe e até a morna cabo-verdiana numa verdadeira orgia vocal e sonora que nos transporta a paragens mi-tológicas, numa verdadeira simbiose cósmica que une Portugal e Grécia, guitarra portuguesa com bouzouki , Ocidente com Oriente, o Castelo de S. Jorge com a Acrópole, Açores com as Ilhas gre-gas, Camões e Aristóteles, cigarras gregas e melros de Lisboa, Natália Correia com Ares Alexandrou, ninfas da mitologia grega com sereias, a tradição e o destino embriagador... CD Éter Music

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Um dia destes um meu confrade dos puros actuava num restaurante onde é permitido fumar… Mas ao lado dele uma senhora não parou de fazer uma plena manif… O compadre, que embor-cava um charuto de pouco porte, vá lá para ser «educado» e não estar em gran-des delongas, não conseguiu ficar impá-vido e sereno, ripostando – a si o meu fumo incomoda-a…, pois o odor do seu perfume incomoda-me ainda mais! Foi remédio/perfume certo. A tia ficou com o perfume, o Pedro quedou-se com o charuto.

A verdade é que não dá para andar todos os santos dias num permanente desembainhar armas contra os que acham ter todos os direitos, nós à míngua de quase nenhum. Agora querem menos um direito, indiscritível… Não vamos poder puxar fumo na viatura. É a originalidade à portuguesa, de que nenhuma lei estrangeira se lembraria. Há os casos de ruas lá para a Califórnia onde é expressamente proibido fumar, pelo andar da carruagem só nos falta esta. Raios e coriscos.

Depois há uma estória, essa sim, da capacidade de in- dignação, fundo de revolta, defesa das liberdades míni-mas, ocorrida em Espanha… Veja-se Barcelona onde senti-mos na pele a proibição total e absoluta de sinais de fumo, vogamos para Sul, Andaluzia, e a cantiga é outra… Ah, não se pode fumar (?), ainda que com o cuidado de não pertur-bar ninguém, isso deve ser regra básica, mas a rapaziada fuma (!), liberdade ao Sul e ao Sol. Venha quem vier, a ra-paziada resiste. Lá no Sul, derrubar elefantes é que não… Mas é miserável quando somos obrigados a invocar resis-tência à pala de um simples cigarrito, charuto que seja… Aqui o acto de resistir perde eloquência, desbarata-se, in-felizmente, por dá cá aquela palha…

E a poluição em geral? E o fast food? Há almas contra essa trambalhada? Diríamos que estão entretidas, e tão só, com o fumo, atacando-o perfumadamente… Recordo o meu amigo Victor Cunha Rego, grande figura, meu director de sempre, para sempre - «Não nos largam com o fumo. E a

bomba atómica?!» E as centrais nuclea-res? Acrescento, que ao tempo do Vítor não ameaçavam tanto.

Invoquei entrelinhas a liberdade e vogo para uma linda, para que não seja tudo tão mau. Duro. É que pura foi aquela manifestação das freguesias, onde pes-soas autênticas por dentro desfilaram. Esgrimiram os seus propósitos, o seu di-reito de serem livres. De decidir! Nunca presenciei uma manif assim. Bombos, fanfarras, música a rodos, tão autêntico. Alegria na tristeza deste país de corifeus entrincheirados. E podia-se fumar.

Por trincheira e corifeus, acabei de ler o livro da descida aos infernos: A

Verdadeira História do Clube Bilderberg, versão brasi-leira dada à estampa pela Planeta, impossível de encon-trar um exemplar que seja… Mistérios… Escrita heroica de um jornalista assaz perseguido, Daniel Estulin. Um livro proibido em muitos sítios, editoras ameaçadas se o publicarem, arrestos policiais conhecidos, enfim, far-tar vilanagem. E outros tão preocupados em dar caça aos fumadores, castigando com odor de perfumes horripilantes…

Vou deixar apenas um excerto do prólogo, assinado por Jim Tucker: «Todo aquele que esteja interessado em saber mais sobre os poderes factuais que governam o mundo e influenciam na vida de todos os seus habitantes ficará impressionado com este livro (…). Daniel e eu colabora-mos durante anos perseguindo a Bilderberg, a organiza-ção secreta internacional integrada por líderes políticos, financeiros e corporações multinacionais (…). O traba-lho do Daniel é mais académico que o meu. Cita os fac-tos em toda a sua crueldade e credita as suas fontes em notas. Eu improviso com o que sei directamente de fontes procedentes de Bilderberg e confio-me ao julgamento da História (…).

Disse. Melhor, dizem os andaluzes, os manifestantes das freguesias, o Daniel e o Victor Cunha Rego. Está na hora de acender um puro!

Fumo

EDUARDO MIRAGAIA

Puro Duro&

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