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Nº 12 | II SÉRIE | ANO XIV | 5€ As belas artes de Joana Vasconcelos em Versalhes HABEMUS NOVO BARCA VELHA AVELEDA VENCE EM PROVA CEGA Peixe português porquê? «É vivinho da costa!» RESERVA 2008 DA ROMEO PARA FUMAR SEM DELONGAS

Epicur n12 Telmo

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Nº 12 | II SÉRIE | ANO XIV | 5€

As belas artes de Joana Vasconcelosem Versalhes

Habemus novobarca velHa

aveleda venceem prova cega

Peixe português porquê?«É vivinho da costa!»

ReseRva 2008 da RomeopaRa fumaR sem delongas

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SUMÁRIO(

12 O peixe não puxa carroça, como diz o povo. Mas foi a base dos pobres ao longo da História. E os mais abastados também lhe reconheceram os méritos. Hoje, é o que se sabe. E o nosso, o português, foi alcandorado a melhor do mundo.

24A ala nascente do Terreiro do Paço animou-se com a implantação de uma área de restauração, divertimento e cultura. Condicionado o trânsito, arranjado o piso, as esplanadas avançaram e o a praça tornou-se um terraço sobre o Tejo.

32Um hotel vínico em Vila

Nova de Gaia, o Yeatman, albergou uma etapa da

Rota das Estrelas. Lá compareceram laureados

portugueses com o Michelin e fizeram pratos que ficaram na memória.

Como o pôr-do-sol, que juntou os chefes no

terraço, a beber um copo, e a gozar a paisagem

sobre o Porto.

26Muitas das receitas consagradas incluem natas nos ingredientes. Mas as mais recentes aboliram-nas, sem aparente diminuição de qualidade. O vencedor de 2012 no concurso do melhor pastel de nata de Lisboa foi atribuído à Pastelaria Aloma, em Campo de Ourique. Sem segredos guardados a sete chaves, para contrariar os de Belém.

8Olga Roriz foi a primeira contemplada com o Prémio União Latina. Aos 57 anos faz o balanço de uma vida de dança e coreógrafa e das exigências do trabalho, que a remetem para uma alimentação cuidada. «Nunca se diz que não a um Pêra Manca branco», admite a propósito de vinhos.

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EditorialFama e Proveito - Olga premiadaZambujal e os PortugregosO nosso cantado peixeUm livro pedagógicoO peixe em TaviraO peixe em CatâniaO peixe transmontanoTerreiro do Paço chega-se ao rioOs natas premiados e os outrosComme à Lisbonne, natasUm céu cheio de estrelasNuno Diniz ácidoHarmonia em Churchill’s maiorFialho fanático do que é nossoBarcelona à mesa Barca Velha de regressoAveleda ganha em prova cegaSaramago, 50 anos de carreiraVinhomaniaHá novidades no fumoA arte de enrolar charutosGlenfiddich e os portuguesesAutomóveis para todosTavira e a sua riaA Casa da Calçada…… e a Casa Redonda do PinhãoNuno Ferreira foi à pescaO livro vai de carrinhoVila Real e os seus mistériosJoana em casa de AntonietaEstrangeiros na GralheiraAvis Rara nascidaMúsica, nossaMúsica, escolhasMorisson, o actor de LopesOliveira em VenezaA poesia é para comerPuro & Duro

Director Rui Dias José, [email protected] | Editor Rogério Vidigal, [email protected] | Redactor-principal Eduardo Miragaia, [email protected] | Redactores Carvalho Santos, Margarida Maria | Colaboradores Ana Clara, António Pimenta de Castro, Artur Miranda, Fernando-António Almeida, Filipa Melo, João Afonso, Jorge Andrade, Maria Helena Neves, Martim Santiago, Miguel de Almeida, Luís Garcia, Sara Pelicano | Cronistas Mário Zambujal, Nuno Diniz, Nuno Ferreira | Fotografia Antunes Amor, Clauso Neves, Hernâni Pereira, João Francisco Vilhena, Miguel Silva, Pedro Teixeira Neves | Projecto Gráfico e Edição de Arte Marcos Bruno | Publicidade Paulo Falcão Magalhães [email protected], Pedro Santos [email protected] | Produção Frederico Valarinho [email protected] | Secretariado Anabela Pereira [email protected] Assinaturas JM TOSCANO LDA, Rua Rodrigues Sampaio, 5 – 2795-175 LINDA-A-VELHA, NIB – 0045 4060 4010 2972 07319 [email protected] Telefone 21 414 29 09 Fax 21 414 29 51 | Edição Vertimag – A Vertigem das Imagens e dos Sons e das Palavras, Unipessoal Lda. NIPC – 507 808 606. Nº de Registo na Entidade Reguladora da Comunicação Social – 12275 Depósito Legal – 128565/98 | ISSN – 1647-9874 | Marca Comunitária Nº 9013707 | Administração, Redacção e Publicidade Rua Poeta Bocage, Loja Nº 2 C 1600-233 Lisboa Telefone 21 727 1564 | Fax 21 716 2597 | Periodicidade Bimestral | Impressão Textype | Distribuição VASP

40Fialho deixou uma receita de arroz de perdizes que «modestamente» o espantavam. Isso por causa «da concepção genial que uma simples perdizes chisparam do meu estro». Uma espécie de reacção à desnacionalização da cozinha, «o primeiro avanço da derrocada dos povos».

52Eram 14 as garrafas de rótulo previamente ocultado dadas à prova dos membros de um júri escolhido pela EPICUR, em que pontuava uma especialista – Vera Moreira. O preço unitário de cada uma das seleccionadas rondava os dez euros. O ganhador foi o Aveleda Reserva da Família 2011

120Rui Morisson é um dos actores que Fernando Lopes preferia. Homem da rádio, recusa falar disso. É o realizador que mobiliza as recordações, os comentários, as saudades. «Penso no Fernando quase todos os dias, quase todos os dias penso em cinema», sintetiza.

84Nuno Ferreira, quase a terminar o seu «Açores a pé», apanhou o barco. A tripulação do Ponta dos Mosteiros acolheu-o a bordo e foi mostrar-lhe como a tripulação se lança na faina, com o atum como alvo muito interessante. É uma espécie muito rentável.

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A revista, está bem de ver – por muito gozo que dê na germinação, florescência e amadu�recimento – não nos é destinada: são os seus leitores que lhe dão utilidade e razão de ser. Ao seu encontro partimos, procurando sedi�mentar relação e diálogo, enquanto busca� e diálogo, enquanto busca�, enquanto busca�mos atingir novos públicos. Sem desvirtuar matrizes ou trair espectativas que são base de fidelidade e de saudável cumplicidade.

Como apenas dependemos de nós, não estamos obrigados a seguidismos ou vassa�lagens serôdias, redutoras e castrantes de imaginação ou iniciativa. Recusando de�pendências e “capelinhas” ou submissões a centros de interesses. Cada vez mais mergu�lhando no que de bom e de diferente se faz no campo da gastronomia e dando especial atenção aos fenómenos de mutação e evo�lução da produção (e comercialização) dos produtos portugueses. Num caso e no outro, terá de existir especial cuidado em separar o que de qualidade real se faz daquilo que é “ruído” gerado em torno de alguns segmen�tos que, sendo importantes, não esgotam a riqueza de um universo mais amplo que se afirma e ganha terreno.

Já aqui o dissemos e reafirmamos, que, das crises, o único benefício que poderá advir será o destaque dos que se afirmam contra dificuldades e intempéries, deixando para trás alguns ditos “intocáveis” que só manifes�tam notoriedade em tempo de vacas gordas.

Claro que, quando escrevemos coisas des�tas, não podemos passar em claro o drama de centenas de pequenos empresários da restauração, alguns deles bons intérpretes nas suas regiões da genuinidade das nos�sas tradições gastronómicas, ameaçados de encerramento e falência com a inevitável queda no desemprego dos seus trabalhado�res – imolados no combate ao défice e nau�fragados na maré crescente do IVA e demais imposições legais.

Mas agora estávamos apenas a olhar, numa perspectiva egoística, a EPICUR e o seu relacionamento com actores e par�ceiros de áreas que são nosso terreno de

actuação privilegiado. Pretendendo ape�nas significar que, do mesmo modo que investimos no alargamento da nossa área de influência a públicos de que andávamos distraídos, também o queremos fazer em relação a segmentos produtivos que me�recem e justificam uma abordagem mais constante e cuidadosa.

Tínhamos prometido uma maior aten�ção aos lazeres de fruição de paisagens e patrimónios, cumprimos� E fazemos afi rma�umprimos� E fazemos afirma�ção de fé de continuar a passear e a saborear. Sem perder o pé em relação àquilo de que gostamos: entre um bom uísque e um cha�ruto de eleição, cultivar o prazer da conversa e a elegância da palavra.

Sabemos que esta Revista apenas se jus�tifica com o toque do papel e o cheiro das tintas. Por isso não parámos de melhorar a qualidade de impressão e de arranjo gráfico. Mas não desprezaremos novas plataformas de comunicação que permitem encurtar dis�tâncias e encetar diálogo com leitores de lín�gua portuguesa em qualquer outra margem de mar…

Não é impunemente que é nossa a maior revista digital que conta o país interior e o desenvolvimento regional: o “Café Portugal”� Também não se deve ao acaso que tenhamos sido nós a criar a maior página do Facebook que conta Portugal – o Descobrir PORTUGAL”, que ultrapassou o meio mi�lhão de membros e agora aposta no reforço da sua posição no Brasil.

Mas, este ano de redobradas apostas, fica também marcado pela edição do “Portugal a Pé” de Nuno Ferreira. Em poucos meses apresenta já um significativo desempenho no quadro de vendas das livrarias portugue�sas. E, por estes dias, é também com o nosso apoio que aquele jornalista peregrina, a pé, paisagens e rostos de todas as ilhas do arqui�pélago açoriano.

Em relação à EPICUR propriamente dita, a uma maior abrangência de temas quere�mos juntar o aprofundamento das suas va�lências mais técnicas. Regressamos às provas

Editorial

[email protected]

HÁ ALDEIAS QUE SÓ VIVEM DO VINHO E OUTRAS QUE PRECISAM DOS AVIÕES…

O tempo escoou-se num repente. Já dois anos? Já 12 números desta nova vida da Epicur?E aí está ela feita aposta e vontade de contar prazeres e seduções. Mesmo em tempos de crise… Apostando na imaginação que falta aos responsáveis políticos, irrequieta nas interrogações e nos desejos, senhora de si nas afirmações de excelência dos produtos que experimenta e conta, atenta ao país que a explica mas sempre pronta a alargar vistas e desejos.

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de vinhos e passaremos a promover três por ano: uma para os brancos, outra para os vi�nhos do Porto e a terceira para os tintos.

Tudo isto a significar que os compromissos que anunciámos há dois anos permanecem intocados. A contraciclo! Com as crescentes dificuldades da conjuntura! Mas, também, com a energia, o empenho e a paixão de acreditar no que fazemos, na sua utilidade e capacidade de êxito.

A CULPA NÃO É DO VINHO…Das imposições da Troika de redução do défice e das premências governamentais de crescimento (a qualquer preço) das expor�tações, o vinho não fica de fora. � excelên�� excelên�excelên�cia dos néctares prometem�se capacidades (e disponibilidades) de marketing externo. Todos os caminhos parecem ser bons se de�saguarem em vendas ao estrangeiro!

Mas, nos últimos anos, assistimos a um proliferar de marcas que irá constituir difi�culdade acrescida à penetração em mercados e à rendibilidade do negócio. Afirmar a ima�gem de tantas designações junto de poten�ciais compradores externos é complicado e exponencialmente oneroso. A algumas pro�duções de reduzida dimensão só restará a aposta em mercados de nicho. Outros (pou�cos) poderão aspirar a uma presença regular e a uma visibilidade mais significativa.

Garanto que nada percebo de marketing de vinhos, nem sou profundo conhece�dor dos circuitos externos da sua comer�cialização. Mas, como leigo na matéria, interrogo�me em relação ao modo como conseguirão a quadratura do círculo de aumentar significativamente os volumes de vendas ao estrangeiro com tão dispersa oferta. Reconheço que deverão caber às en�tidades oficiais da área do comércio externo as campanhas�âncora de promoção dos vi�nhos portugueses. Mas mesmo assim… Já agora, entre custos de rotulagem, de afir�mação de marca, de acompanhamento dos mercados, etc. – quanto custará a co�locação à venda de uma garrafa? Das tais de produção reduzida e de comércio quase seleccionado…

Face à capacidade de exportação de chi�lenos, sul�africanos e outros, muitos dos nossos vinhos de melhor qualidade irão quedar�se por algumas lojas “gourmet” de umas quantas capitais. Enquanto isto, aquilo que na sua maioria está a chegar às grandes superfícies de muitos países são produtos vínicos portugueses de baixa qua�lidade, destinados a serem vendidos baratos e de forma nada prestigiante para a vinicul�tura portuguesa.

Pode até acontecer que eu dê de caras com marcas de que nunca tinha ouvido falar antes de me deparar com elas nas pra�teleiras de um supermercado da estranja. Esmiuçados os rótulos, posso até descobrir que são da responsabilidade de conceituados produtores e apenas engarrafadas para ex�apenas engarrafadas para ex�portação. Não acredito que, na generali�dade, deixem uma imagem favorável a um reconhecimento crescente da qualidade dos vinhos portugueses. Mas, eles é que sabem, eles é que têm de vender e de sobreviver à custa do negócio…!

Eu fico apenas com as minhas interro�gações: de que modo a política da mul�tiplicação de marcas e de rótulos (para mercados mais exigentes) se conjuga depois com aquela estratégia de presença nos seg�mentos mais baixos do consumo? Não per�cebo… mas deve ser problema meu. Pelo sim pelo não… prometo nunca arriscar debicar alguns daqueles líquidos que nunca pres�senti entre nós.

O vinho não tem culpa nenhuma. Até por�que, face ao gradual abandono dos campos e à crescente desertificação do Interior, a cul�tura da vinha – a par da oliveira, de algumas frutícolas e da carne – afirmou�se como o principal argumento de fixação do que resta de mão�de�obra activa nas nossas aldeias. Qualquer problema nesta área terá conse�quências desastrosas. Como já se está a per�ceber no Douro…!

Restará um voto de confiança a tanta gente que dedicou vida e saberes ao vinho. Que nele investe o que tem e o que não tem. Que dele quer fazer futuro e herança!

A VER OS AVIÕES PASSAR…Este vai ser um ano de férias baratas, quem puder aproveitar… que aproveite! Apanhadas nas malhas da crise, as unida�des hoteleiras estão a vender ao desbarato. “Compre 5 noites, durma 7”, “descontos de 35%” e muitas outras frases como estas constam dos anúncios que por aí circu�lam. Nunca se viram hotéis de 5 estrelas a fazer publicidade tão agressiva e saldos de tão grande dimensão. Já me vi obrigado a bloquear o acesso à minha caixa de correio electrónico a muita desta gente, recusando sequer visualizar tão “aliciantes” propos�tas. Ou então não faria mais nada senão ler publicidade hoteleira.

Se na perspectiva do consumidor a baixa de preços é uma hipótese sedutora, o reverso da medalha não é muito agradável: vamos ter falências em série e encerramentos de uni�dades. Com os subsequentes despedimentos colectivos.

A não ser… que os estrangeiros caiam do céu! Mesmo com a crise que também os be�lisca. Até os que estão melhor viajam menos. Que o digam britânicos e franceses. Este ano muitas das expectativas voltam�se para os alemães e os russos. Mas o que vinha mesmo a calhar eram os nórdicos. Como seria inte�ressante o regresso aos tempos do mito do macho latino e o Algarve carregadinho de suecas…

A complicar tudo, os mercados interna�cionais estão cada vez mais fluidos. Com os grandes operadores a reagirem casuis�ticamente a qualquer crise nos mercados receptores. A situação grega e os últimos desenvolvimentos no Egipto poderiam – em última análise – beneficiar o Algarve. Veremos o que as escolhas de última hora vão ditar. Porque, da forma como as coisas evoluem, já não há centros de estudos turís�ticos em cujas previsões se possa confiar.

Valerá a pena reforçar as apostas em rela�ção aos fluxos provenientes do Brasil afir�mando Portugal como porta de entrada dos brasileiros na Europa e aproveitando o pres�tígio que a TAP detém do outro lado do mar. Pelo menos enquanto a companhia de ban�deira não for alienada a capitais estrangei�ros. O que, sendo uma forma de arrecadar dinheiro e minorar o défice, constituirá uma bomba�relógio para o nosso sector turístico: quem comprar passa a deter as licenças de voo e voará para onde quiser, poderá até – se essa for a opção estratégica dos futuros donos – deslocalizar o centro das operações de tráfego para onde muito bem entender e abandonar Lisboa. Passaria a ser maior o nú�mero de brasileiros que chegam à Europa via Madrid. E que, muito dificilmente, passa�riam por Portugal.

Ou seja, muito do dinheiro arrecadado com a venda da TAP teria sumiço imediato, consumido pelas previsíveis quebras de re�ceitas que adviriam da perda do emergente mercado turístico brasileiro.

APROVEITEM, SABOREIEM…E, por falar em férias, este é o número da EPICUR que irá acompanhar muitos dos nossos leitores nos seus tempos de veraneio.

Desejamos que a aproveitem bem e que sejam retemperadores os vossos dias de fé�rias (activas, passivas, assim…!). Se algumas das pistas e sugestões que preenchem a re�vista � dos vinhos aos passeios � vos parece�rem úteis… usufruam delas! E depois, digam qualquer coisa!

Cá nos encontraremos para a EPICUR de Setembro.

Até lá…

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A entrevista decorre no espaço da companhia que tem o seu nome, na Rua da Prata, em Lisboa. Aparece como dança: descalça. A saia é comprida e esvoaça. Porque Olga Roriz não caminha. Dança sempre.

Foi surpreendida por um galardão inesperado: o Prémio União Latina que, pela primeira vez, distinguiu uma personalidade da área da dança e da coreografia. «Tem uma dimensão e prestígio muito importantes, mas ao mesmo tempo faz sentido. São dez anos de prémios e, pelas pessoas já galardoadas, tem a ver com uma longa carreira.» A verdade é que a música também ainda não foi representada e não há tantos core�grafos, como arquitectos ou escri�tantos core�grafos, como arquitectos ou escri�tores. «Não somos assim tantos e, sobretudo com essa característica que tem a ver com um nome de uma pessoa», explica. Num gesto que se percebe ser característico, passa as mãos pelo cabelo, afastando�o do rosto. «Mas é sempre bom o reconhecimento. É muito importante e, neste caso, é dividido por todos os artistas que trabalham comigo.»

Olga Roriz tem 57 anos e uma carreira praticamente da sua idade. «Embora tenha começado aos 20, aos três anos já andava a dançar. Por isso, sim, acho que a minha carreira tem a minha idade. Tem a minha idade com vários percursos.»

A conversa regressa ao prémio com a core�grafa a explicar que «uma carreira não se faz sozinha e a minha ainda menos. O escritor pode fazer tudo sozinho, é um solitário. Um pintor também. Mas o core�grafo não existe sem os bailarinos, a produção, etc., e todas as pessoas que me influenciaram.» Fala de Jorge Salavisa, «que foi meu padrinho, a pessoa que acreditou em mim e me fez estar no lugar certo no momento certo. Se tivesse outro director naquela compa�nhia que não acreditasse em mim tudo teria sido diferente. No Ballet Gulbenkian estava tudo preparado para me acarinhar. A pessoa do Jorge Salavisa foi muito importante na minha carreira.»

É core�grafa ou bailarina? «Sou as duas coisas. São indissociáveis uma da outra. Já quando era pequenina e ainda nem sabia dizer a palavra, explicava o que queria fazer. Eu pensava que cada bailarino fazia as suas danças e a minha mãe disse: ‘Isso são os core�grafos’. E eu respondi: ‘Eu quero ser isso’. Mas achei que um bailarino é não s� um intérprete mas também um criador. Ou deveria ser.»

Considera que esta sua actividade é alguma coisa que não está nela, «não cresceu ao longo da minha formação como bailarina. Pelo con�não cresceu ao longo da minha formação como bailarina. Pelo con�trário, já existia e a minha formação como bailarina veio completar a parte artística e técnica, sem conseguir tirar de mim a esselado criativo. Às vezes, quando se passa na adolescência por esse período muito rí�gido de aprendizagem técnica, vai�se perdendo…»

Sempre teve que ter muito cuidado com a linha, porque a família tem tendência a ser mais forte. «Tenho de ser muito rigorosa. Não acho que

eu seja magra. Sou normal.» Contudo, gosta de comer. «Gosto muito e gosto de tudo. É mesmo assim. Mas não como de tudo. Sou muito ri�gorosa com a minha alimentação. Há praticamente dez anos que sou macrobi�tica. Sou fanática por uma alimentação saudável. Não como carne, nem fritos, nem doces e quase todos os alimentos com que co�zinho são integrais.»

Todavia, quando diz gostar de «tudo», envolve doces e salgados. Aprecia os mais variados tipos de cozinha, desde o chinês, ao japonês, francês, ao cozido à portuguesa. «De tudo, desde que esteja bem feito. Assim como me delicio s� com uma salada e um iogurte.»

Também cozinha bem, mas tudo de improviso. «Actualmente a minha especialidade é o tofu e legumes, com várias coisasespeciarias. E invento.»

Quanto a vinhos, «os brancos, desde que sejam bons, ainda que tal não seja muito bom para os músculos». Mas, verdadeiramente, os seus preferidos são os tintos alentejanos, em detrimento dos do Douro. «Nunca se diz que não a uma Pêra Manca branco, já que o tinto nunca provei. É muito caro. Nunca daria esse dinheiro por um vinho.»

O verde tinto, mais da zona onde nasceu (Viana do Castelo) provoca��lhe acidez no estômago e «qualquer coisa que me faz mal, eu digo logo que não gosto. Há alguma coisa que o meu corpo deixa de gos�tar. É maravilhoso, o meu corpo é super�inteligente e diz que não. Até agora , tem reagido assim, felizmente».

Começou a fumar aos 33 anos, depois de ter a segunda filha e de decidir que não queria ter mais crianças. «E já estava num ponto da minha carreira… O meu marido fumava e eu achei que podia fazê�lo, porque já não estava a fazer tanto es�forço físico.» Hoje, fuma, em média, cinco a oito cigarros por dia, «por puro prazer».

Regressa ao seu corpo. «Sou à por�tuguesa, tenho anquinhas (e di�lo, entre risos, com acentuada pronun�cia do Norte)». Reconhece que não é o prot�tipo de bailarina clássica. Mas defende que esse, hoje, «já co�meça a estar um bocadinho longe da realidade porque, felizmente, já se olha para o corpo de uma bailarina do ponto de vista da sua linguagem, da sua qualidade de movimento, da sua dinâmica, e não das suas for�mas». Ressalva: «Obviamente que

Nunca diz que não a um Pêra Manca branco, não tem corpo de bailarina, não sabia dizer coreógrafa quando descobriu ser essa a sua vocação. Olga Roriz recebeu, aos 57 anos, o Prémio União Latina 2012. Atente-se à sua estatura física e perceba-se que não estamos diante de uma mulher baixa, mas antes de alguém muito «concentrado» e, sobretudo, completo.

Olga Roriz, a coreógrafa antes de dançarUma dádiva por inteiro

TEXTO MARGARIDA MARIAFAMA E PROVEITO(

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depende das companhias em que uma pessoa está e dos coreógrafos.»

Embora já tenha feito três fil-mes – estreou o primeiro em 2006, Felicitações Madame, seguindo-se A Sesta, em 2007, e Interiores em 2010 – es-pera a oportunidade de fazer A Floresta. «Trata-se de um orçamento muito ele-vado. Tem argumento e é para ser feito no Buçaco, na mata e no hotel, e no jardim. É uma mulher e dois homens. E pronto!»

Afirma que não faz «a mínima ideia» de quem é Olga Roriz. E reitera: «Não faço a mínima ideia!» Atira a cabeça para trás numa imensa gargalhada. «Claro que faço!»

Define-se como uma mulher «apaixonada» que entra «nas coisas a �00 por cento. �s vezes traz dissa-nas coisas a �00 por cento. �s vezes traz dissa-bores, o que é normal, mas, no meu caso, no cômputo geral, trouxe benefícios. O que é que me acontece? Dou-me toda e ao dar-me assim não faço distinções. Como a dança e tudo o que está à sua volta, como a escrita, a fotografia, a minha visão e o meu olhar, a vida, o céu, sei lá, está em tudo, está em todo o lado».

Por isso, o amor foi muitas vezes sacrificado, por este outro amor. «Não se passa assim de um lado para o outro. A minha profissão é muito absorvente. Uma vida muito absorvente, sem momentos mortos. E quando tem, sento--me no canto do sofá a pensar e a criar. Estou sempre em criação. É o que eu faço: não é uma coisa do saber, do querer ou estar.»

Pára, como se se perdesse nas palavras. E depois: «Acordo assim e adormeço assim, e ainda sonho assim. Não há volta a dar-lhe, e também não quero dar-lhe volta nenhuma. Está tudo bem. Está tudo no seu lugar.»

Com veemência declara que é feliz: «Sou, sou!» E fala mais das suas características «deste dar-me, desta paixão do ser». Uma melancolia ensombra-lhe o olhar. «Sim, por vezes fico triste e melancólica, mas é do meu semblante, é normal.»

«Sou uma mulher muito séria, talvez pela minha própria profissão em que tenho de ser muito, muitíssimo disciplinada e organizada.

Sou uma pessoa que faz anteontem o que era para fazer ontem. Portanto já está feito. Quando me pedem, já fiz.» Uma verdadeira workaholic, «porque trabalho, trabalho, trabalho, e o trabalho, para mim, é um prazer. Daí que tenha a capacidade de dar «gargalhadas imensas e, se não as der todos os dias, então não é dia.»

Reconhece que as filhas, hoje adultas, se ressentiram da sua dedi-cação ao trabalho. «As duas sim, sim, sim. Só que têm um orgulho muito grande na mãe.»

UMA FAMÍLIA PRESENTENascida em Viana do Castelo, sobrinha-neta do Padre Cruz – «sou muito parecida com ele no rosto» – vem de uma família já dife-rente à época, mas sempre muito presente. Os pais casaram, qual-quer deles em segundas núpcias, o que então não era vulgar. Ele, engenheiro naval, era muito criativo, e a mãe, jornalista, dedicou-se por inteiro à carreira da filha, deslocando-se para Lisboa, quando, em 1959, Olga iniciou os seus estudos de dança na capital, com Margarida de Abreu.

Aliás, no dia em que decorreu esta entrevista e em que Olga Roriz partia para o Brasil, lá estava a irmã para lhe dar os últimos afectos antes da viagem.

Em 1975 iniciou a colaboração como bailarina no Ballet Gulbenkian, mas foi no ano seguinte que integrou o elenco dirigido por Jorge Salavisa. Criou a sua primeira coreografia Que loucos que somos! Tu não és? para o Atelier Coreográfico do Ballet Gulbenkian, em 1978.

Segue-se um longo percurso artístico que mereceu diversos pré-mios e galardões, tendo, pelo meio, em 1995, fundado a sua própria companhia – Companhia Olga Roriz.

Agora, tem A Floresta em lista de espera…

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Nunca tanto como agora se justificou que um cronista do quotidiano inicie a prosa com a frase cautelar: «No momento em que escrevo estas linhas...» O momento. Os mo-mentos sucedem-se, vertiginosos, e os factos acotovelam-se para desfrutarem do seu mo-mento. Um pobre consumidor de informa-ção ainda não teve tempo para avaliar uma novidade, já ela deixou de ser a novidade. Há outra. E logo outra que contraria a ante-rior. As certezas tornam-se incertas porque amanhã, ou ainda hoje, logo mais, muito pode ser diferente. Os noticiários galopam tentando perceber os desenfreados acon-tecimentos, mas tropeçam em inesperáveis desvios. Saltita-se entre o desânimo e as pa-lavras de confiança. Nas bolsas. Nos sinai-zinhos das estatísticas. Nas declarações dos políticos. Nos inquéritos de rua.

Entretanto, estamos de olho na Grécia. Respira-se o medo, mais ou menos disfarçado, de que os gregos vão apenas um ano à nossa frente mas o caminho e o destino são os mes-mos. No ponto em que nos encontramos esta-ríamos como portugregos.

«No momento em que escrevo estas linhas...» - precata-se o cronista. Pobre dele, não sabe o que virá próximo. Trágico e hilariante é que ninguém sabe. Desfilam

políticos e economistas pelos ecrãs das televisões, pelos microfones das rádios, palas páginas dos jornais. Sabiamente nos falam do que se passou, não nos dizem o que se vai passar. Cada dia tornou-se embalagem fechada com conteúdo mistério. Ena, olha o trambolhão que deram hoje as bolsas!

- O que diz esse estudo? Mau, e o outro? Enfim, sempre é um pouco melhorzinho.

- Que desgraça, tantas empresas a fechar, não tarda os desempregados chegam ao milhão!

- A Auto-Europa, hã?, vendo bem, temos em-presas muito boas..

- Ainda aumentarão mais os impostos? - O problema é europeu, a Europa e que tem

de resolver. - Isso é o que dizem os gregos.No momento em que escrevo estas linhas

brilha, grátis, o nosso estupendo sol, muitos portugueses trabalham e outros gostariam de fazer o mesmo, na esplanada discute-se fute-bol, aparece um homem de meia-idade a pedir «uma moedinha», um autocarro despejou crianças com mochilas às costas e tento adi-vinhar como será o país deles quando forem crescidos. De súbito não tenho dúvidas, nada os forçará a deixar Portugal. Com ou sem euro, isso é que não sei.

MÁRIO ZAMBUJAL

Cronicamente

Portugregos

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O mais provável é que o leitor já se tenha deli-ciado com um almoço de peixe grelhado, nestes dois primeiros meses de tempo quente. Em al-ternativa, uma fritada de peixe, uma caldeirada, quem sabe, mesmo uma cabeça de cherne cozida, ou coisa que nos valha – com as batatas de regra, os legumes. E o azeite, está feito. Um assado no forno, pargo, a cebola, tomate, umas fatias de toucinho a olear com a salmoura inerente.

A bondade do produto, a sua popularidade, é frequentemente motivo para juntar família numa sardinhada, mesmo só amigos, que ficam à conversa. «Mais uma sardinha para acabar o pão, mais pão para acabar a sardinha», vem no adagiário. E um tinto que corte a gordura, mesmo um branco, por que não um jarro de sangria…

Há-de ser português, o peixinho. É coisa apa-rentemente descoberta agora, quando um especialista como José Bento dos Santos apadri-nha uma obra, de Fátima Moura, feita «estado da arte»: pós de história, breviário científico, incursão pela moderna culinária, receitas várias dos chefes que dão cartas, incluindo estrangeiros rendidos à evidência da matéria-prima.

Há quanto tempo se juntam os portugueses à volta desta mesa, construída com base nas pesca-rias secularmente abundantes? Já Raul Brandão, em Os Pescadores, registava «a piscosa Sesimbra», até os historiadores dão a abundância de peixe como uma das boas razões para a demanda da Península Ibérica pelos fenícios, cartagineses, ro-manos. Mas, será por acaso, apenas por razões comerciais, que a peixeira no mercado lhe expli-cará: «É caro, mas é do nosso mar»?

Claro que a fartura de produtos agrícolas, mais a caça e o gado criados nos matos, consolidaram essa garantia histórica de um mar fértil. Alfredo Saramago considera, na sua obra, por exemplo, que, na Idade Média, «a variedade da alimentação era garantida no conjunto com um peso signifi-cativo da presença de carne à mesa das classes po-pulares». Um «facto insólito e fora do comum na História da Alimentação», regista o gastrónomo e antropólogo.

O tempo não parou nos fenícios, cartagine- não parou nos fenícios, cartagine- fenícios, cartagine-ses e romanos. Não, já Olisepona navegava em «tempos de grandes perturbações, desde o de-saparecimento do Império Romano até aos su-cessivos domínios dos povos bárbaros», que incluíam os germânicos. Ainda assim, o porto ex-portava garum e peixe salgado, uma herança dos pioneiros.

Comida de rico, o peixe, no tempo dos roma-nos. Saramago atribui aos pobres uma alimen-tação assente na trilogia pão-vinho-legumes, enquanto a «de pão-vinho-carne (ou peixe) foi

refeição de ricos». «Consideradas comidas de rico eram as ostras (…) o peixe (…) e o garum que Olisipo tanto exportava».

UM BANQUETE DE D. SEBASTIÃOVem dos fundos da História o princípio de que «o peixe não puxa carroça» e tal terá favorecido a consolidação do prazer da carne, que se impôs ao longo dos tempos, apesar das limitações religio-sas que remetiam sempre que possível para jejuns e contenções à base de peixe.

A discussão sobre o que era peixe em cada reli-gião cruzou, assim, séculos – com escama ou sem escama, no confronto judaico-cristão. Ou, até, se a lagosta estaria no domínio do peixe, ou o polvo, ou a lampreia…Apesar disso, lembre-se o milagre da multiplicação dos peixes (e do pão…), como o faz gastrónomo Virgílio Gomes.

Uma pirâmide alimentar citada por José Pedro Lima-Reis, referente aos progenitores de D. Afonso Henriques, tinha na base, como prefe-rências das classes dominantes do condado, os produtos cárneos, a gordura animal para a con-feccionar, e o pão. «Nos patamares seguintes, o peixe, aqui mais por imposição da Igreja do que pelas paixões que pudesse suscitar, e a fruta», regista.

O mesmo autor anota que, em 1125, Dona Teresa consentiu ao arcebispo de Tui o direito de pescar lampreia (e há quem lhe recuse a nomen-clatura de peixe…) no rio Minho, da Lapela para montante. «Começava cedo o envolvimento do clero e da nobreza com o saboroso ciclóstomo, que se vai manter ao longo da nossa história», ironiza Lima-Reis. «E explica porque na ucha-ria de D. Afonso III existiam (…), nada mais nada menos, do que 1656 lampreias convenientemente secas para consumo fora de época», acrescenta.

A lampreia «sempre foi tida como manjar de nobres e, por isso, tem, desde a fundação da na-cionalidade, lugar certo na mesa das classes abas-tadas que chegavam a disputar o privilégio de a incluir na sua dieta». Como prova disso, conta o autor, Bartolomeu dos Mártires soube, depois de ocupar a cadeira pontifícia da diocese de Braga em 1559, que os seus antecessores recebiam, em fins de Janeiro, as primeiras lampreias pescadas nos rios da diocese (Minho, Lima e Cávado) e de imediato as mandavam entregar aos despensei-ros da corte «para que as pudessem servir frescas a suas altezas».

Mas o arcebispo não teve dúvidas e decidiu aca-bar com essa prática, «isto é, pô-las à venda pela melhor oferta e distribuir generosamente pelos pobres da diocese o chorudo provento arreca-dado com o negócio.»

A lampreia é, como sublinha o autor, «a única

TEXTO ROGÉRIO VIDIGAL

Viva o peixe, abaixo as espinhas!

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BALTAZAR GOMES FIGUEIRA, NATUREZA-MORTA COM PEIXES, CRUSTÁCEOS, CEBOLAS LARANJAS E GATO, VENDIDO PELA CABRAL MONCADA LEILÕES, EM NOVEMBRO DE 2006

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espécie aquática de que a Infanta [D. Maria] ‘cozinheira’ nos dá receita».

A centralidade do peixe nobre, das espé-cies que as classes mais altas apreciavam, assume grandes proporções considerando um procedimento de D. Sebastião, em via-gem por terras de Espanha, governada pelo seu tio D. Filipe II (futuro primeiro Filipe de Portugal), quando resolveu dar um banquete em Guadalupe.

E o que compareceu à mesa, relata Lima-Reis, foi uma rapsódia de frutos do mar que ia das lagostas às ostras, passando por «amêi- joas, empadas de cherne, congro e salmone-tes, bem como azevias, besugos e linguados fritos». O tio, senhor de poderosa esquadra, reconheceu: «O certo é que o Rei meu sobri-nho é o Senhor dos mares», como consta na crónica de Diogo Barbosa Macedo e Virgílio Gomes cita.

UMA SARDINHA TEM O MAR TODO«Uma avaliação de magro», conclui o autor, considerando os alimentos descritos. «No entanto, a utilização da lagosta nesses dias não deveria ser consensual entre os mem-bros do clero porque frei Bartolomeu dos Mártires (1514-1590) se recusou a comê-la no refeitório do Convento de S. Domingos de Benfica na véspera de S. João porque era considerado dia de jejum», esclarece o autor de Algumas notas para a História da alimentação em Portugal.

Desde sempre, as conservas de peixe fize-ram o seu caminho, algumas delas, como o garum, sob a forma de produtos de luxo – o gourmet actual.

Mas teremos de dar papel central ao baca-lhau, ainda hoje vedeta. Se caíram as antigas salmouras de atum, resistem prestigiadas as moxamas, os carapaus secos da Nazaré, o litão olhanense, as cãs sesimbrenses… A ca-neja de infundice.

Lá vai o tempo da sardinha de barrica, mé-todo de conservação de uma das espécies que garantiam o aporte de proteína animal ao povo – as espécies nobres iam a outras mesas. O peixe escuro, reimoso, era de rodas baixas e ainda no século XX os médicos o es-conjuravam pelo perigo para a saúde nas do-enças circulatórias. Havia de chegar o dia de todos os ómegas, com o 3 à cabeça. A ser ver-dade, o povo era só saúde.

As sardinhas, essas, pela popularidade, che-garam a moeda de troca, pois «a maioria das vezes constituíam parte do pagamento em géneros aos servidores do rei». E eram abun-». E eram abun-. E eram abun-dantes, confiando em escrito de Frei Nicolau Oliveira, citado por Lima-Reis, garantindo que em 1620, «com frequência saíam 112 barcos a pescá-la e que, além das que se ven-diam frescas, havia a possibilidade de recor-rer às conservadas, uma vez que, pelo menos

na capital, existiam já verdadeiras oficinas de salga».

José Quitério homenageia a pobre senhora enobrecida pela tradição, no seu Livro de Bem comer. Cita estrangeirada embasbacada pela prodigalidade da espécie e sublinha o desdém que lhe votam as classes possi-dentes, «clerezia e fidalgagem». «Embora apreciando-lhe o paladar, não deixam de franzir narizes à fumarada gorda e grossa que se desprendia dos 'lugares de frigideiros', poisos ambulantes que se encontravam em todas as ruas, onde se frigiam e assavam sar-dinhas para uma multidão afreguesada que, com pão autotransportado e uns quartilhos na taberna da esquina, assim refeiçoavam por reduzidos réis».

«Uma sardinha, uma só, é o mar todo», sintetiza Quitério com uma citação de Julio Camba. Mas acrescenta a recomendação do hispano-galego de que «mesmo assim, não deve nunca deixar de se comer pelo menos uma dúzia». Assim seja.

A MÃO E O SABER AO COMANDOPeixe há muito, dir-se-á. Tantos são os ocea-nos, as espécies, os tratamentos culinários… Os viajantes levam e trazem, trocam expe-riências, inovam. Mas há dados adquiridos. Há misturas que não resultam, há condi-mentos essenciais e outros repugnantes. Há especiarias adequadas a situações, há pre-parações em que as especiarias devem ficar longe.

Dado adquirido será a qualidade do peixe que se pesca na costa portuguesa, ainda que sem nacionalismos exacerbados. Outra certeza irrefutável é a do modus faciendi, o conjunto de práticas culinárias que a ex-periência de séculos sedimentou, com que moldou o nosso gosto, nos propiciou

culinária própria – e em matéria de peixe tal é uma evidência. Outros, cada um, nou-tras longitudes e latitudes, com matérias--primas diferentes, hão-de chegar aos seus próprios resultados. Sushi, sashimi, fishfin-gers, caris de mariscos, molho de peixe. Os típicos africanos, sul-americanos, mais ou menos molho, mais ou menos picante, mais ou menos ceviche.

Peixe assim, como o nosso, é o nosso. «Não basta, para que o desfrutemos em toda a sua sapidez e volúpia, que o peixe seja fresco e de grande qualidade», defende José Bento dos Santos, gastrónomo das sete parti-das e presidente da Academia Portuguesa de Gastronomia (APG), na apresentação de Portugal, O Melhor Peixe do Mundo, de Fátima Moura.

«É bem verdade que essas características proporcionaram, desde sempre, a este país, uma técnica única de grelhar peixe sobre brasas de carvão, reflectida numa cozinha simples mas nunca redutora, pois que ao seu profundo gosto a mar basta acrescentar um pouco de calor das brasas», explica.

Hoje, o problema extravasou. Talvez deva dizer-se que sempre o problema esteve além das brasas ou das frituras básicas. Tudo in-dica que o refinamento é uma prática su-cessiva da culinária, que mediante o êxito gastronómico foi ganhando direitos de re-gisto nos receituários. E os tempos correm de feição à introdução de novos processa-mentos, saberes, e gostos. A fusão soprada pela globalização, favorecida pelas auto--estradas da comunicação, que são as redes sociais.

«É absolutamente necessária a presença dos nossos chefes, daqueles que nos prepa-chefes, daqueles que nos prepa-ram pratos da nossa riquíssima cozinha po-pular e de tradição, e dos que foram capazes

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de se formar nas escolas de cozinha mais moderna e actual», salvaguarda o presidente da APG.

HÁ UM MAR, SENHORES…A história dá-nos conta desse prestígio piscícola, a ciência procura e dá explica-ções para os inquestionáveis altos padrões de qualidade. Facto é que somos «um dos povos do mundo que desde sempre mais peixe consumiram», segundo Ricardo Serrão Santos, presidente do Instituto do Mar (IMAR) e director do Departamento de Oceanograf ia e Pescas (DOP) da Universidade dos Açores, e Filipe Porteiro, investigador do mesmo departamento.

«Porquê o melhor peixe do mundo?», interroga uma das notas inseridas na obra. A Lusitânia, esclarecem os dois cientistas, é uma província biogeográfica constitu-ída por Portugal Continental e os dois ar-quipélagos dos Açores e da Madeira que

«encerra uma imensa diversidade entre as suas fronteiras oceânicas: diferentes tipos de habitats costeiros, recifes rochosos, baías abrigadas, rias e estuários, e também uma imensidão de mar aberto». As profundezas estão semeadas de montanhas submarinas, constituindo uma zona de transição e con-fluência de uma enorme diversidade de fau-nas, desde as boreais às subtropicais.

Já os arquipélagos açoriano e madeirense assentam numa «complexa teia de monta-nhas submarinas de origem vulcânica» com efeitos oceanográficos que conduzem ao aumento da produtividade local «que ajuda a manter uma rica diversidade de peixes re-sidentes, mas que também atrai numerosos visitantes». Somando as espécies das zonas baixas dos declives das ilhas, obtém-se «uma biodiversidade única que só na região dos Açores atinge cerca de 600 espécies de peixes – 600 variedades de sabores».

Acresce que à diversidade biológica

corresponde interesse gastronómico, ao contrário das águas mais a Norte e a Sul. «A confluência de elementos tropicais, vin-dos do Sul, com as influências temperadas e frias, dos mares do Norte, faz com que, às nossas latitudes, a diversidade ecológica das espécies comerciais seja imensa», escla-recem os cientistas. E há peixes demersais e pelágicos, litorais e oceânicos, residentes e migradores, herbívoros, zooplanctívoros, ou mesmo predadores de topo, que se re-produzem a todas as estações do ano.

Bastava tanto, mas os nutrientes jogam a favor, são quase constantes, com fitoplânc-ton e zooplâncton abundantes, o que vai reflectir-se na qualidade nutritiva e orga-noléptica do peixe e marisco portugueses. Para colocar o produto no topo mundial, há a qualidade das pescarias de pequena escala, de linha e anzol e pequenas redes tradicio-nais – afinal uma actividade sustentável.

Está explicado, sejamos servidos.

Há que não ser exaustivo, por falta de espaço. O problema é que a alta consideração dos consumidores portugueses pelos produtos do mar multiplicou o receituário, os aproveitamentos, as soluções. À beira-mar, como no interior, em fresco ou salgado, seco ou fumado, grelhado ou guisado, o peixe ganhou um lugar fundamental na alimentação de um povo amante de carne, mediterrânico no uso dos vegetais.O bacalhau sempre, claro, sobretudo na costa Norte e no interior. No Minho, as lampreias em várias apresentações e preparações, o sável, salmão, polvo, solha seca frita ou assada, como recorda José Quitério no Livro de Bem Comer. Ainda a santola no carro e o arroz de lagosta. O Douro Litoral a alinhar com pescada à poveira, arroz de sardinha, caldeirada dos poveiros, entre outros. Mas o Porto, e aquele mundo de sabores que o envolve, com os filetes de pescada, o congro estufado, e, memória!, a cabeça de pescada à Rosa do Adro, no desaparecido restaurante Montenegro, em que o nome da senhora aparecia transfigurado e se tornou verdadeira referência da casa – A Mamuda.Registemos a Beira Litoral na ligação às celebradas enguias à moda de Aveiro, a canja correspondente, as de escabeche, mais o ensopa-do, a sopa de peixe à pescadora, as espetadas de mexilhão… As especialidades de peixe da Estremadura figuram neste levantamento com as caldeiradas da Nazaré, mais as sardinhas fritas e a santola

recheada. E a lista é longa para o Algarve, em que o mar vem à mesa como petisco, das ovas secas ao biqueirão envinagrado, mais a caneja alhada. Mas não se fica por aqui, Quitério: a sopa de amêijoas ou de langueirão, o xerém, a sardinha em tudo o que pode dar, o polvo igualmente, as caldeiradas, as cataplanas. Mais, José Quitério sobreleva o atum no seu exaustivo aproveitamento.Não é só o litoral. O país profundo dos tempos sem estradas propiciou a criação de pratos seus, as suas janelas de oportunidades conforme a abundância nos mares mais próximos. A sardinha, na magnífica bola transmontana, o polvo ou o congro com ervilhas, também aqui com receituário específico; as trutas e lampreias das beiras interiores; o cação na sopa perfumada pelo Alentejo. A Madeira do espada, do atum e lapas, de Quitério deve, ao mar uma sopa de peixe, as lapas, grelhadas ou de escabeche, ventrechas e filetes de espada, e variações sobre o atum, com destaque para o raro bucho de atum guisado. E nos Açores o caldo de peixe, os chicharros de agraço com molho verde, vários bifes de atum em que a sua parte de oceano abunda, as garoupas e as abróteas, as lapas de molho Afonso e de arroz, o polvo guisado que frequentemente aparece na ementa dos mariscos – pois, aí estão as cracas, por direito natural.O peixe não pode queixar-se. É bom, mas os portugueses têm dado oportunidade a que brilhe. E o princípio vai em frente com os novos cozinheiros, como aqui se vê.

O MAR SEMPRE, EM PETISCOS E PRATOS DO MINHO AOS AÇORES

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Rodízio de vento em popaFomos bem avisados na escolha do Vela 2 como o melhor restaurante para degustar, mais e melhor, peixe na grelha, em Tavira. Com pequenas alterações de preço (que a vida não está fácil para ninguém), o conceito de rodízio mantem-se: comer até querer, muito bem, e pagar pouco.

Numa comunidade representativa da candidatura portuguesa a património cultural e material da humanidade, a dieta mediter-rânica faz todo o sentido. Em Tavira o peixe é a vida, é a tradição. Um dos expoentes, desde há muito, chama-se Vela 2. A ponto de a casa ser considerada uma das 18 atracções da cidade. É sentar e esperar, os peixes vão chegando, é comer até querer.

Marido e mulher, donos do restaurante, o senhor Arlindo e a dona Celeste, esperam-nos sentados ar livre, no espaço aberto onde descansam das lides ou conversam com amigos. Teve de ser ao jantar e cedo, a outras horas «seria cá uma confusão...»

Por onde quer começar? E ele: «Olhe, aos vinte anos trabalhei num bar com um amigo, depois foram seis amigos, durou um mês, as amizades é que ficaram. Depois noutro bar, o Clube de Vela de Tavira; daí este nome, Vela 2.»

Na Rua dos Mártires da República conquistou fama e algum pro-veito. «Levo 30 anos disto, quis ter um espaço próprio. Cá estou, em Santa Margarida.» Os clientes vêm ter com eles e «alguns tu-» Os clientes vêm ter com eles e «alguns tu-s e «alguns tu-«alguns tu-guns tu-ristas sabem colher informações».

O peixe vem todo da lota, «é o melhor». Dantes, o senhor Arlindo ia para lá, às seis da manhã. Agora, tem um amigo que lhe faz esse favor, «sabe escolher o que vem dentro dos barcos». Atalha Celeste Guerreiro: «Às cinco da manhã já o meu marido está ao telefone, a ver que peixe há-de comprar.»

O segredo também passa pela grelha… Sem curso nenhum, con-sidera-se, meio a sério meio a brincar, o melhor das redondezas. «É a experiência, é a mão, é o prazer, um dom que nasce com a gente. Se a mão se descuida, queimou, vai para o lixo, põe novo.»

Pois, a grelha não a confia a ninguém. Desde logo nos desvenda

TEXTO CARVALHO SANTOS FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

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que o carvão tem de ser de azinho, que o derivado da flor de sal utilizado na casa é apanhado à mão, nas salinas. «Isto é tudo muito popular, cada um come o que tem na vontade, a humildade faz as pessoas grandes.» Uma dose do dia custa nove euros. Os verdes, tintos e brancos e o Mateus Rosé, para os ingleses, são à parte. Sem sombra de especulação.

A Celeste, sócia gerente, quase não sobra tempo para fazer festas à netinha. «Não me sinto escrava, gosto disto, gosto de conversar com os clientes.» E «isto» está aberto todo o ano, só a segunda há tempo para a família. Na cozinha estão duas senhoras de confiança, «a Inês, está cá há 20 anos, é o nosso braço direito, a Daniela é boa rapariga».

Arlindo escolhe-nos um cantinho, confidencia que tinha guarda-das, para nós, umas barriguinhas de atum. Mas que nome vemos à entrada? Estadium Restaurante! Lá dentro, duas salas enormes, vivas, bem decoradas e uma esplanada ao fundo albergam 220 pessoas. E há um pequeno horto, uns temperos enquanto duram… No balcão identifica-se uma representação do Estádio da Luz, também se vêem, penduradas, camisolas de jogadores. Se é defeito ou é feitio, Arlindo Guerreiro não se importa, faz gala do seu ben-fiquismo. Assume-o, porém, com simpatia, diz e acreditamos, que até os portuenses se riem e gostam de ver. «As pessoas vêm aqui para ser bem servidas e eu sirvo bem.»

E fomos à peixada que já tarde se fazia. Que nos iria caber? Vêm chocos, sargos, ferreiras, besugos. Juntamos o apetite ao bom que estava tudo, regado por um fresco Muralhas. E as barrigas de atum, que delícia! Dessas, repetimos. Por fim, só para tomar o gosto, provámos as doçarias: de alfarroba, de figo e de amêndoas.

Prometemos voltar e, claro, recomendamos vivamente.Vela 2Campo Mártires da República, nº1 –Santa Margarida, Tavira 8800-218, tel. 281323661 Descanso: Domingo

UM ROBALINHO NO TRÊS PALMEIRASO restaurante Três Palmeiras tem boa tradição em Tavira. Segue um conceito semelhante ao do celebrado Vela 2: três/quatro peças por pessoa. Bom peixe, batata, salada, pão torrado barrado com massa de pimentos, alho e piripiri, embebidos em óleo. Só servem mesmo peixe grelhado. Vítor André herdou a casa do pai Adelino, nem tempo tem para um minuto de conversa. O velhinho que es-tava ao grelhador, esse, então, nem pensar…

Calharam-nos besugos e bicas. E enquanto nos pergunta se fica-mos «bem assim», simpática, Lucinda já vai trazendo o melhor do almoço, dois robalinhos de estalar na boca. Um sítio recomendá-vel, capacidade até 140 pessoas – popular, mas bom e barato.Três Palmeiras Vale Caranguejo, Tavira Tel: 281 325840Descanso: (Verão: encerra ao domingo; inverno: aberto todos os dias e encerra ao jantar)

LINGUEIRÃO NO PAVILHÃO DA ILHAMal se sai do barco, uma série de pavilhões, à partida todos iguais. Queríamos o Pavilhão da Ilha, lá estava, no meio de tantos, é o mais afamado. O típico, segundo Eduardo Reis, é o arroz de lin-gueirão, bife de atum de cebolada, as cataplanas e os joaquin-zinhos fritos com arroz de tomate. Aconselham-nos dourada escalada. Devemos ter torcido o nariz, já que Fernando, ao sair do grelhador comenta: «Nós, algarvios, sabendo dessas coisas, tam-bém pescamos e só servimos peixe do dia. Robalo e dourada, de esteiro ou do mar, é quase a mesma coisa… Se o robalo é de viveiro é cinzento, mais redondo. O que nos dá publicidade é não enga-narmos as pessoas.»

Ficamos elucidados, não saímos nada mal servidos com a dou-rada, «do mar», insiste. Bem, mesmo bem, soube-nos a rabujada de conquilhas, amêijoas e berbigão, oferta da casa. «Esta ilha dá tudo - amêijoas de várias espécies, a ostra, o búzio, o choco, o polvo, a canilha.»

O custo de uma refeição é mediano, 30 euros por pessoa.Pavilhão da IlhaIlha de TaviraÉpoca de abertura: Março à Outubro, não encerra

RESTAURANTE TRÊS PALMEIRAS

RESTAURANTE PAVILHÃO DA ILHA

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Os caminhos institucionais são peri-gosos, as ratoeiras da oportunidade e do oportunismo políticos andam por aí muito à espreita. Acontece grandes ideias terem de procurar abrigo apare-lhístico, ou caírem nesse saco, que ao caso até pode ser interesse nosso, de Portugal. E, se não for mais do que isso, de que queixarmo-nos?

Uma frase de José Bento dos Santos, nome grande e confiável dos saberes gastronómicos portugueses, e não só, irrompeu numa síntese perfeita, frase publicitária se quisermos, e até agora in-contestavelmente, perfeita: «Portugal, o melhor peixe do mundo.»

As grandes ideias podem ficar no li-mite de um desabafo, num circunló-quio, numa ironia. Se não surgir o braço executor, nunca romperá o limbo do esquecimento. No caso da «venda» deste peixe, lá está o interesse de uma estrutura governamental, o Turismo de Portugal, já manifestado num ante-rior «Cataplana experience», e agora no livro dedicado aos nossos «frutos do mar».

Vamos a este, que nos justifica a convic-ção de que temos mesmo um privilégio de pescado e de privilegiados. José Bento dos Santos, presidente da Academia Portuguesa de Gastronomia e presidente-delegado da Academia Internacional de Gastronomia, não está pelos ajustes: «Durante a minha vida de viajante pelas cinco partidas do mundo, devo ter provado o peixe e o marisco de todos os oceanos, de todas as costas, de muitos lagos e muitos rios», justifica, como coorde-nador, numa nota introdutória da obra de Fátima Moura.

Essa condição de «papa-léguas» dá-lhe o à-vontade bastante para garantir: «Tenho, para mim, a convicção íntima e segura de que jamais, em lado algum, encontrei a qualidade, o sabor e a frescura que rivalizam com o meu peixe de Portugal.»

«Temos uma pesca que as regras da Europa ainda não estragaram», completa Fátima Moura, à EPICUR. «Temos pesca artesanal, o peixe é bem tratado, chega rapidamente à lota. Não há aquele efeito destruidor de cer-. Não há aquele efeito destruidor de cer-tas artes de arrasto, que implicam mau estado do produto.»De peixe sabemos nós, portugueses, a História está aí a testemunhá-lo. O saber e

o gosto dos nossos primevos fixaram-se na prática quotidiana, nas mãos do povo e dos entendidos, dos práticos e dos teóricos. Foi dando frutos diversos, da simplicidade inicial ao elaborado. A matéria-prima disponível permite a receita de sempre, correspondendo a parâmetros consensuais, mas também a elaborações e sofisticações que se traduzem em novas texturas e novos modos de cozi-nhar (e não cozinhar…).

UM LEGADO APRECIÁVEL«Acho que há lugar para tudo, dos

grelhados aos preparados palacianos», admite e elogia Fátima Moura. Lembra o

peixe assado à portuguesa, à lisboeta, e outras receitas específicas, as cataplanas, pois então, que ela ajudou a divulgar e a implantar. Mas ressalva: «O problema é que surgem as adulterações. A cataplana não tem nada a ver com o afogueamento do preparado.»

Tem a ver connosco este raciocínio, pois, lá está, o peixe está na onda do interesse econó-mico, as exportações traduzem-se em cifrões abençoados pela «nossa senhora dos aflitos». Tem a ver connosco, porque consumimos, sabemos as receitas de sempre, mas vamos no arrasto das modas, das novidades, novas ervas e especiarias na preparação, texturas

Peixe português um mundo fish

UM MANUAL TEÓRICO-PRÁTICOPortugal o melhor peixe do mundo apresenta, dir-se-ia que inevitavelmente, um conjunto de receitas da responsabilidade de cada um dos oito chefes que exemplificaram as razões do seu elogio ao peixe português e o que com ele é possível maravilhar.Mas vai mais longe, ao explicar «métodos e técnicas de cozedura», das bases da cozedura à fumagem do peixe, acessível a nível doméstico, passando pelo confit, o estufado, o assado no forno, o papelote (papillote), a selagem, a fritura, noções básicas que muito podem ajudar para triunfar em casa.

Fátima Moura e

TEXTO ROGÉRIO VIDIGAL FOTOS JOÃO FRANCISCO VILHENA

FÁTIMA MOURA E A DEDICAÇÃO AO PEIXE

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desconhecidas, guarnições surpreendentes com outros resultados.

O que sabemos, está à vista, salienta José Bento dos Santos. «Os turistas vêm cá, comem peixe grelhado acabado de pescar e vão daqui a dizer que é muito bom… Mas temos de desenvolver isto nas escolas de ho-telaria, ter garantia de que o preparado cor-responde… Têm de ir daqui a dizer que é único.»

O gastrónomo refere-se explicitamente à vulgata feita displicência, grelhas que servem indiscriminadamente todos os produtos, o convívio lado a lado com os odores que cir-culam e acabam por contaminar o cozinhado

vizinho. Um facilitismo fatal para peixes de grande finura, peixes de carne sensível aos odores vizinhos.

PITECANTROPO DA CULINÁRIA«O grelhado é o pitecantropo da culinária», ataca José Bento dos Santos. «Não basta cozer o peixe em água e sal, temos de usar o court-bouilon, o papelote, a cataplana, são diferentes formas de cozinhar peixe.» E, no entanto, o grelhado é um produto único, quando bem feito, o carvão de azi-nho acrescenta um fumado natural. «É maravilhoso…», mas «o processo tem duas fases importantes, tem de passar por calor mas não pode secar ao ponto de ficar como cartão».

Fátima Moura emerge aqui, na sua casa de Sintra, onde a licenciada em Filosofia curte agora reflexões sobre os preparados de peixe. «Grelhar o peixe tem que se lhe diga. O es-calamento tão em moda só por si não é um crime, mas não é para toda gente fazê-lo bem feito», explica.

Minudências, dir-se-á. Mas este olhar é de bem servir o cliente, acima de tudo, e tam-bém é de atender à imagem que vendemos, ao bom gosto e à memória que acompanhará o turista de bom gosto – afinal aquele que

pode deixar euros e levá-lo a recomen-dar a terceiros.

«O nosso turismo tem de ser gastro-nómico, o peixe é o melhor do mundo, reconhecidamente. Mas temos de cui-dar dos legumes, das batatas, do modo de prepará-los. Não podemos ficar-nos na salda de tomate com alface e cebola…», previne Bento dos Santos.

«Exportamos mais legumes do que vinho», segundo o gastrónomo. «Temos potencialidades e temos de desenvolvê-las. Há quem viaje para o Peru para comer as batatas em toda a sua diversidade, noutros casos as ervas e o que cada um com elas sabe fazer. O Brasil tem um restaurante em 4º lugar na lista dos 50 melhores do mundo…»

UMA FILEIRA DE PREOCUPAÇÃOO peixe, de novo, como preocupa-ção, a par dos campos reduzidos por políticas de circunstância. Afinal, do mar ao prato há todo um circuito que precisa de ser garantido, na qua-

lidade, na quantidade: é aí que aparecem os pescadores. Uma actividade, a pesca, que reconhecidamente foi muito afectada por al-a por al-terações político-económicas talvez inevitá-veis mas não devidamente acauteladas.

«Sinto alguma preocupação na fileira do peixe, em que os pescadores são os que menos lucram com o produto do seu trabalho e aí é muito justo que as coisas sejam diferentes», alerta Bento dos Santos. Mas perspectiva dias melhores, «há quem já venda directamente do mar, pelo telemóvel». O problema (será lucro?) é que, por exemplo, «os espanhóis vêm cá buscar percebes por preços altíssimos…»

Uma das áreas de negócio é, afinal, o da exportação directa e imediata, para diver-sos destinos do «melhor peixe do mundo». Bento dos Santos não se cansa do elogio que para nós representa o facto de laureados res-taurantes dos EUA fazerem gala do peixe recebido na hora a partir dos mares portu-gueses. Como fazem no Japão, e em França…

Fátima Moura reuniu um conjunto de pre-parações assinadas por chefes reconhecidos, portugueses, Bertílio Gomes, José Avilez, Paulo Morais, Vítor Sobral e Leonel Pereira. E também dois espanhóis, Ferran Adriá e Joan Roca, e um francês, Jean-Michel Lorain.

Peixe português um mundo fish

Receitas-base é um outro passo no conhecimento dos procedimentos essenciais para chegar a operações mais complexas. É o caso, a título de exemplo, do court-bouillon, preparação prévia essencial a uma cozedura que vá além do básico que é a cozedura em água e sal – no caso português mantido como inquestionável. Depois há os fundos, os molhos, os polmes, e um guia de peixes portugueses. Uma interessante súmula, nesta área específica, que permite uma bordagem séria e rápida do mundo piscícola.Seja bem servido.

José Bento dos Santos

JOSÉ BENTO DOS SANTOS, A ENOLOGIA E A GASTRONOMIA DE MÃOS DADAS

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Aquele peixede Catânia

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Vou directo ao assunto, porque revelação é fu-turo neste relato. Para trás, resumidamente, ficam dias desiludi-dos em Malta, então longe do euro, com dezenas de moedas em trocos dos autocarros. Milhares de europeus, sobretudo alemães e ingleses, com esperança de vida prolongada, acotovelavam-se nos elevadores dos hotéis, atravanca-vam as ruas, invalidavam as pers-pectivas de encontrar o estilo de vida próprio da ilha mediterrânica. A verdade é que tudo ali estava feito à medida deles, os circuitos turísticos, as ementas dos restau-rantes, os lazeres.

Um dia, em desespero, um cartaz de uma agência turística no hotel levou à compra imediata de uma viagem em hovercraft para a Sicília, logo ali à mão de navegar no Mediterrâneo. Não era caro, bas-tava levantar cedo e deitar tarde para um dia diferente. E lá estaria Catânia, que cidade era essa?

Largada pela madrugada ainda escura, levámos a sova de um mar reguila que atirou ao tapete boa parte dos passageiros. Foram mais horas do que o imaginado, e o desembarque, nessa altura em que Malta ainda só sonhava com a entrada no espaço euro-peu, atribulado por um controlo fronteiriço que nos fez suspeitar de nós próprios – estaríamos a soldo de grupo mafioso siciliano? (Estranho, porque esses nunca são incomodados…)

Desembarcados, lá fomos à vida, e encurtando razões literalmente cilindrados pela vida e beleza da cidade. O Duomo, os cafés, o �ar-Duomo, os cafés, o �ar-dim Belini, mais o Etna ao fundo, inútil, surdo, mudo, só promessa turística – que poucos dias mais tarde desataria em torrente de lava. Digo-vos, que a vida também tem disto, da surpresa quando um carabinieri solícito nos levou a vi-sitar um mosteiro que, dizia, tinha seguido a linha arquitectónica

dos nossos Jerónimos. E elogiava o nosso nível de vida…

Por fim, a busca de local para a amesenda-ção. Assim, a olho, em lo�a de souvenirs, por baixo da porta Uzeda. Já ali, esclareceu o comer-ciante, é virar à direita e seguir o cheiro do peixe.

Sim, um caminho entre a antiga frente de casas e uma linha de ca-minho-de-ferro lá nos levou a um centro comercial digno dos povos do Sul. Aqueles que os do Norte vituperam… Ao ar livre, abun-dante de espécies, dos polvinhos e lulinhas aos atuns corpulentos, manuseamento expedito, turistas e locais a tropeçarem.

E um restaurante anunciado, agora quase sob a porta dei Canalli. Cheio que nem um ovo, a dizer: «Vai-te embora, vai bater a outra porta.» Mas a afluência e os exemplares expostos, mais uns pratinhos que ainda ornamenta-vam as mesas, levaram a aceitar a espera: «Meia hora…», promete-ram. E foi, gente de primeira.

Depois foi o deslumbramento, até onde a memória alcança. Peixinhos, e só peixinhos, em vá-rios molhos, fritos e não assim, um vinho fresquíssimo desocultado de rótulo, mineral, se me lembro, talvez passado pela lava fria do Etna, naquelas encostas ásperas que mesmo não vistas se adivinha-vam lá ao fundo da tele-ob�ectiva da máquina fotográfica.

E a grappa, meus senhores?! E a conta, de tão ínfima que foi para tanto deleite. Um dia volto lá, ha�a Berlusconi ou um Monti qual-quer. Estamos condenados a estes pequenos crimes – o de comer aqueles peixinhos que Bruxelas �á excomungou. Mas o Inferno, esbraseado castigo que os tem-pos apagaram da religião católica, não vem da cúpula da Europa. Espere-se que o Paraíso ainda more naquele restaurante. Ou ta-berna, se�a como for que se diz em italiano…

ROGÉRIO VIDIGAL

De gOstando

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Os transmontanos costumam dizer que «peixe não puxa carroça», querendo dizer que a carne dá mais energia para o trabalho e por isso alimenta melhor quem labuta manualmente, sobretudo no campo. Não admira que digam isto, na medida em que Trás-os-Montes tem excelente carne, sendo de destacar, entre outras, a mirandesa e a bar-rosã, para não falar da carne de borrego, cabrito e «sua excelência» o porco, como o rei da carne, dos presuntos e dos enchidos. O Abade de Baçal, nas suas Memórias Arqueológico - Históricas do Distrito de Bragança, citou o seguinte rifão popular: «Das carnes o carneiro, das aves a perdiz e, sobretudo a codorniz; mas se o porco voara, não havia carne que lhe chegara?!»

Concordamos que a carne é, aqui, a rainha, mas Trás-os-Montes, tem excelentes peixes de rio, bem como o lagostim de água doce (so-bretudo no rio Angueira). Os transmontanos sabem amanhá-lo ad-miravelmente, com ingredientes e ervas da região como a célebre «erva peixeira». Aqui, no Nordeste Transmontano, penso que é unâ-nime, que os peixes mais saborosos são os do Rio Sabor e que, embora se comam bem em muitas outras localidades ao longo deste rio, ver-dadeiramente límpido, a capital da sua degustação é na Foz do Sabor. Na verdade, há nesta localidade (e outras vizinhas), muitos restau-rantes especializados na sua confecção. É, além disso, um local idí-lico (Vale da Vilariça), onde o Sabor se junta ao Douro e onde existem várias quintas com excelente e afamado vinho, entre muitas outras, a Quinta de Vale Meão e a Quinta da Palmeira.

Elegemos para esta nossa reportagem, o peixe do rio Sabor, como rei da gastronomia desta região. Não o fomos degustar na Foz do Sabor, uma vez que é local sobejamente conhecido. Antes, procu-ramos um local típico, com uma excelente cozinheira, onde, como escreveu Esculápio (pseudónimo de Eduardo Fernandes), ainda se fazem «os ágapes do povo» e onde se revigora o corpo e a alma, de-pois de um dia de intenso trabalho.

Escolhemos a Taberna do 'Reta'. É uma casa com mais de 50 anos, neste momento a única taberna genuína (ou tasca) de Torre de Moncorvo. Aqui se preparam os vários petiscos do povo transmon-tano. É uma taberna verdadeiramente mítica para as gentes de Moncorvo e um consolo para os seus, muitos, visitantes. Foi a única que «escapou» a transformar-se, seguindo a moda, em snack-bar, ou mesmo a fechar, como muitas outras da terra.

Actualmente é explorada pela excelente cozinheira Celeste Mota e pelo seu marido o José Alberto, animador dos arraiais da região, e não só… Como se vai para lá? Partindo da Praça Francisco António Meireles, que é o centro da vila, qual ágora onde passeavam os ilus-tres da terra, que tem um chafariz filipino no centro. Este chafariz foi colocado na Praça em 1636, durante a dinastia filipina, mas foi derrubado nos finais do séc. XIX. Em 1999, foi restaurado e reposto no centro da Praça; daí, desce-se até à Corredoura (por várias ruas alternativas) - sobre este nome há duas teorias: poderá ter origem no local onde «corriam» os animais, como cavalos e outras bestas para trabalho (burros, mulas, etc.) sobretudo nos dias de feira, ou de uma fábrica de cordas, já que estava ali instalada a Real Feitoria do linho cânhamo, pois as pessoas mais antigas ainda pronunciam Cordoira, (esta última informação foi-me fornecida pelo meu amigo Nelson Rebanda).

Chegados ao fim da Corredoura, contornamos pela direita a ca-pela do Mártir S. Sebastião e entramos no Largo do Ferreiro; é aí, nos

Sabores do SaborTEXTO ANTÓNIO PIMENTA DE CASTRO FOTOS ANTERO NETO

ENGUIAS NO TACHO, LEVADAS À MESA

CELESTA MOTA, COZINHEIRA DA TABERNA DO RETA, À MESA COM AS ENGUIAS QUE PREPAROU

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números 27 e 29, que se encontra a Taberna Reta – que serve almo-ços, petiscos e jantares. Aí serão magnificamente recebidos pelos anfi-triões Celeste Mota (cozinheira) e José Alberto (o homem do bar). Esta taberna tem dois andares, o rés-do-chão (onde fica o bar) e o primeiro andar (onde se situa a sala de refeições).

Para a reportagem da EPICUR, foram servidas enguias de escabe-che (outrora muito abundantes no rio Sabor). Receita: limpam-se as enguias (foi-nos dito por pessoas com muita experiência que, antiga-mente se limpavam com folhas de figueira, para lhes retirar a gordura exterior. Hoje há, evidentemente, outros processos para as limpar); partem-se aos bocados; temperam-se com sal grosso; fritam-se numa frigideira; põem-se num recipiente e, no molho de fritar coloca-se ce-bola às rodelas, alho, louro e malagueta quanto baste; deixa-se alou-rar a cebola e coloca-se uma pitada de colorau; por fim põem-se o vinagre caseiro tinto; deixa-se ferver mais um bocadinho (dois ou três minutos) e deixa-se arrefecer o molho que se coloca no recipiente por cima das enguias. Convém aguardar um ou dois dias até o servir.

(Foi-nos referido que, antigamente também se arranja-vam com outras ervas aromáticas, como por exemplo o tomilho). Também nos serviram enguias fritas. Receita para duas pessoas: cerca de 400 gramas de enguias, de preferência finas e pequenas; limão; sal grosso e azeite. Modo de preparar: limpam-se e lavam-se bem as en-guias, enxugam-se bem e temperam-se com sumo de limão e sal grosso (deixe-as repousar uma a duas horas); fritam-se bem no azeite muito quente. Depois de as retirar da frigideira, coloque-as sobre um papel absor-vente para enxugar a gordura que as enguias largam, re-sultante da fritura.

Outro prato que nos foi servido: peixes do rio fritos. Amanha-se o peixe (todo o tipo de peixe que foi pescado no rio), tempera-se com sal grosso e leva-se a fritar em azeite bem quente. Serve-se na mesa com o molho de alho partido muito pequenino, azeite, malagueta q. b., uma pitada de colorau, uma folha de louro, vinagre ca-seiro e erva peixeira. Também há quem lhes adicione hortelã e a chamada erva sardinheira.

E agora vamos às famosas migas de peixe. Como diz o povo, «cada roca tem seu fuso e cada terra seu uso», assim, como em quase toda a culinária regional ou tra-dicional, ainda que na mesma terra um prato pode ter várias receitas. Assim, vamos dar-vos três receitas das migas de peixe à moda do Sabor. Para a primeira, migas de peixe, coze-se o peixe (não se deixa cozer demais) com água e sal, alho, cebola, azeite, louro e coentros; corta--se o pão em migas (o pão não deve ser muito fresco, deve ter pelo menos um ou dois dias); amolecer as migas com esta água, abafam-se (para amolecer para ficarem um bocadinho mais secas), quando estiverem bem amo-lecidas, estrugir com azeite, bastante alho, louro e erva peixeira; por cima põe-se um pouquinho de colorau (a erva peixeira e o colorau só devem ser adicionadas antes de juntar o azeite ao pão) e deita-se bastante quente em

cima das migas, juntamente com o peixe. Uma segunda receita de migas de peixe: coze-se o peixe grande com erva peixeira, alho, cebola, malaguetas e sal (a gosto). Quando estiver cozido retira-se o peixe e côa-se a água. Num tacho, faz-se um refogado com bastante cebola, azeite, deita-se colorau e batata partida aos quadradinhos muito pe-queninos; vai-se juntando água de cozer o peixe, até as batatas estarem bem cozidas, praticamente desfeitas; junta-se bastante água, deixa-se ferver e miga-se o pão (de preferência parte-se com a mão). Pode en-feitar com a cabeça do peixe. Finalmente a terceira receita das migas: amanha-se o peixe (deve ser grande, de preferência barbos) e leva-se a cozer em água temperada (com sal, alho e uma folha de louro), deixa--se ferver. Retira-se do peixe as espinhas (à parte já deve estar o pão fatiado, recorde-se com um ou dois dias, muito fino). Deita-se a água por cima do pão (para amolecer) e o peixe é desfiado por cima do pão. Há quem faça um refogadinho de azeite, cebola, alho e uma pitada de colorau, deixa-se alourar e coloca-se por cima das migas. Sobremesas, no Reta foram-nos postas à disposição as seguintes sobremesas: queijo Terrincho com marmelada; bolo de bolacha caseiro; semifrios de vá-rios sabores; salada de fruta e fruta da época. Estava tudo delicioso. O vinho que acompanhou este verdadeiro banquete foi um vinho branco da região (Peredo dos Castelhanos), do meu amigo Hélder Ferreira, que é, diga-se, digno dos deuses. Taberna Reta 922 176 867 / 936 955 800.

ELEGEMOS O PEIXE DO RIO SABOR COMO REI DA GASTRONOMIA DESTA REGIÃO. PROCURÁMOS UM LOCAL TÍPICO, COM UMA EXCELENTE COZINHEIRA

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TEXTO ROGÉRIO VIDIGAL

O Terreiro do Paço já não é o que era. A an-tiga sede do poder esvaziou-se, as ministe-riais cadeiras estão semeadas pela cidade, o espaço tornou-se apetecível para outras ac-tividades. E a velha praça cresce para o Tejo, faz-se varanda apetecível aberta à Outra Banda, largueza de esplanadas, áreas de res-tauração, cada vez mais diversas, propostas na área cultural.

Não t�m escasseado alternativas e suges-ão t�m escasseado alternativas e suges- alternativas e suges-tões. A ala poente foi a primeira no caminho do fim das funções tradicionais, viraram-na ao turismo, ensaiaram-se restaurantes com pretensões – nem sempre com sucesso. O Páteo da Galé encontrou uma vocação maior em eventos, de que é exemplo o repetido Aqui Há Peixe!

No alforge dos interventores (Turismo de Lisboa, sobretudo, actualmente…) há de tudo um pouco, e ali cabe um mundo. Há hotéis anunciados, na esperança de que a sofistica-ção assente bem no ambiente arquitectónico de uma das mais belas praças da Europa. E, acima de tudo, seja âncora de um turismo de qualidade que nos renda os maravedis sal-víficos. Os lisboetas, os portugueses, esses, podem passar o Arco da Rua Augusta, que a cidade já não acaba aqui.

A ala nascente deu agora, em Junho, os primeiros passos no caminho da moderni-zação: de uma assentada foi corrido todo o edifício com a instalação de um conjunto de

restaurantes, cafés, discoteca, um Museu da Cerveja (que dá nome à respectiva cerveja-ria), um espaço polivalente para iniciativas públicas (na antiga Bolsa de Lisboa), «um conceito inovador de casas-de-banho públi-cas», que os ingleses entenderão mais facil-mente – the sexiest WC on earth, by Renova. Entre outros comércios e um Lisboa Story Center – Memórias da Cidade, «em total res-peito pelo valor histórico e arquitectónico» do edificado, segundo o promotor.

A operação é cara, dir-se-á, mobiliza fun-dos comunitários que chegam sob o nome de Jessica, mais os dos privados. No total, dez milhões de euros, saídos da conta do Estado portugu�s (QREN – Quadro Refer�ncia Estratégico Nacional), do Banco Europeu de Investimento, e os tr�s milhões dos in-vestidores. Por trás de tudo, a Associação do Turismo de Lisboa.

Um espaço de fruição da cidade, enfim. Cidade, para que te quero? Só nas esplanadas, foram instalados 1.280 lugares.

O que há (e será instalado) na ala nascente do Terreiro do Paço:

Museu da Cerveja (mais de 1300 m2) – museu e ementa de cervejaria, dos mariscos, aos bifes de tradição em Lisboa, com pro-messa de petiscos típicos;

Nosolo Italia (mais de 750 m2) – restau-rante, pizaria, geladaria, virado ao moderno comfort food, com toques da gastronomia

portuguesa e mediterrânica (tem espaço infantil);

Can the Can (cerca de 255 m2) – dedicado à indústria alimentar nacional, em que as con-servas gourmet fazem jus ao nome, com fado em fundo;

Populi (mais de 280 m2) – que se diz ur-bano, descontraído e convidativo, abrigado na fórmula food with friends, que se apresenta com «uma ementa de fusão, entre os produ-tos tradicionais portugueses e as diferentes influ�ncias de culturas e povos»;

Ministerium (mais de 960 m2) – espaço polivalente de cultura e restauração, com programação musical e artística diária, que integra os já conhecidos doutros pontos de Lisboa Hot Dog Lovers e Banana Café;

Ginginha do Carmo (6,6 m2) – quiosque, dedicado ao conhecido licor, mas também aos refrescos;

Lust Lisbon (600 m2) – com promessa de «glamour, charme e elegância»;

Torreão Nascente (430 m2) – para eventos institucionais e privados;

Florista – uma espécie de altar, inspirado nos tronos de Santo António;

WC Públicos – temos dito;Lisboa Story Center – Memórias da Cidade

(2083 m2), «plataforma de conhecimento, interactividade e tecnologia», em que a uti-lização do 4D levará o visitante à experi�ncia do terramoto de 1755.

Terreiro do Paço de pés no Tejo

O TÁRTARO COM GEMA TRUFADA DO POPULI: o segredo está no corte do bife do lombo, na altura, à mão; o chefe Luís Rodrigues acrescenta-lhe um tártaro de tomate, com uma erva (cebolinho, no caso). Mistura-se, com um toque de azeite, sal e pimenta. A gema é escalfada a 65º, 45 minutos, e a gema misturada com azeite trufado, temperado com sal e pimenta. Por fim, o empratamento, ervas e uma tosta.

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Um dos espaços de restauração que se instalaram no food court (tem de ser à moderna) da ala oriental do Terreiro do Paço é o Populi, um nome com ressonâncias… Declaração de interesses, a começar: um dos accionistas do estabelecimento é um jornalista conhecido do autor destas linhas, mas foi o projecto, em si, que motivou a visita – a partir da carta de vinhos do restaurante. Não muito extensa, mas com uma selecção interessante e o objectivo declarado de não infla-cionar os preços.

Food with friends, o lema escolhido, chegaria depois, e foi-nos es-clarecido que, sim, a ideia do nome do restaurante saiu da expressão vox populi (voz do povo), com «o objectivo claro de nos tornarmos conhecidos e falados�. �uanto ao princ�pio, dizem os donos e auto-�. �uanto ao princ�pio, dizem os donos e auto-. �uanto ao princ�pio, dizem os donos e auto-res da ideia, «decorre do facto de acreditarmos que à mesa se fazem boas amizades e se permutam as melhores, e, porventura, as piores também, experiências da vida�.

Amigos, amigos, restaurantes à parte. Ou seja, uma das piores ex-periências da vida, ainda que com friends, à mesa, poderá ser a co-mida. O que está na ementa e o que chega à mesa. �uem desenhou a ementa e porquê, quem a executa e com que méritos.

Promessas, de dossiê de imprensa, por exemplo, de ostras e viei-ras, olhos postos em turistas com carteira à altura. Mas, nos pri-meiros dias a mariscada não compareceu à convocatória. Sinais dos tempos, dir-se-á, e o chefe Lu�s Rodrigues, lá nos explicou que, ao disponibilizá-las querem dar ao cliente a total garantia de frescura. Sem evidência de escoamento rápido…

Mas lá estão as tábuas de presunto, enchidos e queijos� das «cro- tábuas de presunto, enchidos e queijos� das «cro-cro-quetas� de rabo de boi aos espargos marinados e à sa-� de rabo de boi aos espargos marinados e à sa- de rabo de boi aos espargos marinados e à sa-lada de folhas verdes com nozes, requeijão e vinagreta de mel, são outras tantas propostas (todas postas?)� das «brus�etas� (o que será, escrito assim?) de pato cara-brus�etas� (o que será, escrito assim?) de pato cara-� (o que será, escrito assim?) de pato cara- (o que será, escrito assim?) de pato cara-melizado e pastéis de bacalhau aos peixinhos da horta e cogumelos salteados com alecrim e nozes. Os res-ponsáveis do Populi dizem ter elevado «a fasquia da oferta porque, conscientes da necessidade de oferecer uma proposta diferente e ousada, o objectivo norteado é fazer comer e chorar por mais�.

O «MELHOR GELADO DE CHOCOLATE DO MUNDO»Uma visita, não para provar mas para ver o que por ali se faz, teve o resultado curioso, até contraditório, de encontrar um jovem chefe, Lu�s Rodrigues, de 37 anos, traquejado em cozinhas comandadas por nomes sonantes (de José Avillez a Sergi Arola, passando por Lu�s Baena e Giorgio Damasio), que faz um discurso da simplicidade. E exemplificou, para a fotografia – e o repórter elogiou o tártaro com gema trufada. Sim, também reconfirmei a bondade da ideia na sua pureza. E hei-de repetir um dia. Venha também, que o rio é logo ali.

Por fim, e a mostrar o que nos espera nestas novas tendências, foi--nos apresentado o «melhor gelado de chocolate do mundo�, como o designam os do restaurante, com os olhos postos num franchising, que tinha de ser em inglês, claro.

A ideia chispou do chamado «melhor bolo de chocolate do mundo� criação de um português, Carlos Braz Lopes, de Campo de Ourique. «Eu e o meu sócio somos amigos dele e desafiámo-lo a criar um novo produto�, conta António Sousa Duarte, sócio do Populi, à EPICUR. Pensaram, evidentemente, no facto de o «me-lhor bolo� já ter chegado ao Brasil, EUA, Austrália e Espanha, e nas possibilidades de acontecer o mesmo com o gelado, tendo-os a eles como parceiros e o exclusivo em Portugal.

A ideia está a�. Ao lado, em toda a frente do edif�cio pombalino, ao longo das arcadas, outros restauradores tentarão a sua sorte. Lá voltaremos, se se proporcionar – a ver o que «lavam� no rio (não é só o Populi), para recordar o poema de Pedro Homem de Mello que Amália imortalizou. R.V.

Populi, que lavas no rio?

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Um pastel de nata que não leva natas, resul-tado da receita consagrada no concurso deste ano para apurar o melhor de Lisboa – dos apresentados à prova. Uma aparente contra-dição, pois nata é, necessariamente, um lac-ticínio – e assim está definida. Ao gosto, na verdade, a textura oferecida ao consumidor é a de nata.O debate sobre a verdadeira origem deste pastel é longo e as opiniões contraditórias su-cedem-se. Ao ponto, por exemplo, de procu-rar saber qual o conteúdo das caixinhas dos pastéis de Belém – veja-se que já não lhes cha-mam «de nata», os pasteleiros-autores. No fundo, a grande curiosidade, além de saber se tem mais ou menos farinha, mais ou menos ovos, é desvendar essa questão das natas ou leite para o recheio. Claro que tem valia acres-cida a grande habilidade que é fazer aquela massa folhada verdadeiramente estaladiça, no forno certo e à temperatura definida, mas o creme, esse…

O gastrónomo Virgílio Gomes, que já fez júri neste certame anual de Lisboa para eleger o melhor pastel de nata, assinala no seu blo-gue* que é difícil estabelecer a origem do doce e também a questão do recheio. Neste levan-tamento, refere vários livros que incluem re- vários livros que incluem re-s livros que incluem re-ceitas, muitas delas atribuídas aos antigos conventos.

«Apesar de aparecer em vários registos, es-Apesar de aparecer em vários registos, es-pecialmente do começo do século XIX, não consegui, ainda, documentar-me para poder afirmar, de forma categórica, onde começa-ram, em que data, e como se expandiram», assinala. Evidente se torna, contudo, que a sua confecção não se limitou, ao longo dos tempos, aos pasteleiros da capital.

Alfredo Saramago regista em diversas obras suas sobre a história da doçaria, a re-ceita do pastel de nata e/ou seus similares. Fá-lo, por exemplo, na Doçaria Conventual do Alentejo, quando refere os pastelinhos de nata do Convento de Santa Clara, de Évora. O preceituário desta casa monástica estabe-lece: «Misture meio litro de natas com açúcar e junte depois 112 gemas de ovo. Engrosse a mistura ao lume. Faça uma massa folhada, e forre as formas com a massa, metendo den-tro recheio. Leve ao forno até dourar.» Numa outra instituição religiosa da mesma cidade, o Convento de Santa Catarina de Sena, as natas integram o recheio, menos quantidade com 100 gramas de açúcar, misturadas, que após passagem pelo lume recebem menos (seis) gemas de ovo.

Lá estão as natas, como igualmente figuram

em O Cozinheiro dos Cozinheiros, de Paulo Plantier, publicado em 1905, sob a mesma de-signação de Pastelinhos de nata: «Desfaça-se em assucar fino seis tigelas de nata e quinze gemmas de ovos; engrosse-se ao lume. Guarneçam-se depois umas fôrmas de massa folhada, mettendo-se a nata dentro, vão co-zer-se ao forno. Sirvam-se quentes.»

Virgílio Gomes cita A Tradição Conventual na Doçaria de Lisboa, de Carlos Consiglieri e Marília Abel, com uma listagem de conven-tos femininos de Lisboa, em 1833, nos quais supostamente se produziria doçaria. A re-ceita apresentada, sem identificação de con-vento, revela uma parte para a massa folhada, que leva açúcar e canela, e o «creme feito com gemas de ovo, açúcar, natas, leite, um pouco de farinha de trigo, sal e pau de canela».

Alfredo Saramago, em parceria com Manuel Fialho, refere em Doçaria dos Conventos de Portugal duas receitas, uma delas do Convento de Arouca, com massa fo-lhada muito fina recomendada. A outra co-munga o recheio do já mencionado eborense Convento de Santa Clara.

O périplo da investigação chega às ver-sões brasileiras. Virgílio Gomes reaviva um Dicionário do Doceiro Brasileiro, de 1892, com três receitas de pastéis de nata e outros tan-tos recheios. Um claramente espúrio; os ou-tros semelhantes entre si: recheio de gemas, açúcar, natas e raspa de limão, num caso, leite guardado de um dia para o outro para lhe extrair as natas, açúcar em calda, uma co-lher de manteiga… «até chegar ao ponto de ovos-moles».

E há mais autores, de Emanuel Ribeiro (que não explica o creme) a Maria de Lourdes Modesto (em que há natas e casca de limão), passando por Olleboma (com dois recheios) e João Ribeiro, o famoso chefe do Hotel Avis, que inclui as natas e calda de açúcar. Há mais natas, recorda o gastrónomo, noutras refe-rências bibliográficas, que nomeiam casas conventuais como Odivelas e Mafra (neste caso de frades, não de freiras).

Tudo somado, o autor não arrisca a elabora-ção de uma árvore genealógica. «Arrisco, no entanto, a pensar que uns dos seus antepassa-dos sejam os ‘Pastéis de leite’, receita número XXV do caderno de receitas da Infanta Dona Maria, muito embora a massa exterior dos pastéis ainda não seja folhada.»

Já Alexandra Prado Coelho, que nos últimos tempos se tem dedicado à causa gastronó-mica (com bom gosto…), no Público, reporta o que lhe disseram na Antiga Confeitaria de

Belém: «Segundo se conta, a receita foi inven-tada no Mosteiro dos Jerónimos. 'Havia uma feira diante dos Jerónimos e era muito típico os monges comercializarem doces'. Como em tantas outras histórias de doces conventuais em Portugal, com o encerramento do con-vento em 1834 o segredo do doce sai para o exterior, e o que se sabe ao certo é que a re-ceita terá ido parar às mãos de um empresá-rio chamado Domingos Rafael Alves que, em 1837, inaugurou ali a Refinação de Açúcar e Confeitaria de Belém Lda..»

Um passo dado em favor de Belém como marca dos pastéis que comemos como sendo de nata – ou serão mesmo beneficiários de um segredo fechado a sete chaves?

Virgílio Gomes, voltemos à sua condição de júri em Lisboa, no ano passado, descreve assim a prova: «Primeiro observamos o seu aspeto. O olhar é o primeiro sentimento. Depois os dedos tocam a massa exterior e sente-se o estaladiço da massa folhada. É o primeiro reflexo para o gosto. Depois uma ligeira trincadela para perceber na boca a massa. E agora a dentada mais avançada para o creme… e depois apetece mais.»

Se apetece!…

*http://www.virgiliogomes.com/cronicas/451--melhor-pastel-de-nata-2012-em-lisboa

TEXTO ROGÉRIO VIDIGAL

A nata se fez nada

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João Castanheira, dono da Aloma há três anos, acabava de chegar: «Fui levar o meu filho mais velho à camioneta que o vai levar à praia. Quis que eu ficasse na rua a dizer--lhe ‘adeus’. E eu fiquei. Quando era pe-queno também gostava que os meus pais fizessem isso.»

Os pastéis de nata vêm para a mesa. O creme sente-se na boca. Engole-se de uma vez só. João Castanheira afirma que «bom mesmo é acompanhado com Moscatel Roxo da Quinta da Bacalhoa colheita de

2000, ou com abafado da quinta de Alorna com cinco anos». Mas, claro, todos o pedem com café.

A pastelaria e confeitaria Aloma existe há 70 anos. Na origem do seu nome está o filme que em 24 de Dezembro de 1943 era exibido, ali ao lado, no cinema Europa. Aloma of the South Seas tinha como pro-tagonista a actriz Dorothy Lamour. A sua beleza impressionou os proprietários do es-tabelecimento que, de imediato, decidiram chamar-lhe Aloma.

Agora, João Castanheira, de 33 anos e com um grande palmarés de investimentos, que vão desde farmácias a um ginásio e até uma oficina de automóveis, dá continuidade à fama, «com matéria-prima de excelên-cia». Admite que é um «fura-vidas», mas adianta que o seu bisavô teve padarias na-quela zona. «Luís Filipe, um dos pasteleiros, ainda trabalhou com ele.»

«Tenho coragem e arrisco, mas sei que aquilo que faço, quando faço, tem de sair bem», acentua para explicar que «quando soube deste negócio assumi a gerência, reestruturei, fiz mudanças e atentei a uma excelente equipa». Daí que o prémio seja «de todos». «Não só de quem cá está, mas de todos quantos, ao longo de 70 anos, fize-ram esta casa», explica.

«Todos deram um bocadinho de si. A não ser assim, não se facturava e agora não haveria negócio», faz questão de frisar. Quanto ao segredo, «é toda a feitura com matéria-prima de grande qualidade: o ovo é físico, que não pó ou pasta e derivados. São todos partidos à mão como antigamente».

E, a atestá-lo, lá estava o sr. Carlos, obreiro há uma dúzia de anos, que se ri: «Partir ovos é sempre uma aventura, quando se

TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS MIGUEL SILVA

Um por dentadaTem o «Melhor Pastel de Nata de Lisboa». Aloma, com 70 anos a servir o público, é um investimento de João Castanheira. Pastelaria e confeitaria, no bairro típico de Campo de Ourique, recebeu o galardão na IV Edição do concurso promovido pelo Festival Gastronómico do Peixe em Lisboa. A clientela enche o pequeno espaço. E ninguém sai desiludido. O problema é que um só sabe sempre a pouco!

LUÍS FILIPE DEMORA SEGUNDOS A FORMATAR A MASSA JOÃO CASTANHEIRA, UMA APOSTA NOS NATAS

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espera que, um dia, saia de lá um pinto. Continuo à espera…»

Luís Filipe está por ali desde 1974. Faz as coisas «a olho ou mais ou menos». Num ambiente em que os fornos trabalham a 350 graus, «não conseguimos comer pastéis de nata, nem qualquer outra coisa».

Porque ali, toda a pastelaria e não só as natas são um labor integralmente manual. Não há máquinas. Tudo é batido à mão. Os homens chegam ali pelas quatro da ma-drugada e só saem, às vezes, 12 horas de-pois. Entrementes, os bolos e salgados vão saindo e os clientes consolam-se com as delícias.

É Luís Filipe quem explica que a massa é feita, enrolada, cortada tapada. «Qualquer golpe de ar cria crostas.» Depois, é tendida à mão (cinco segundos por pastelinho) nas formas que vão receber o creme, entretanto cozinhado e mexido permanentemente.

«Não se pode parar.» Os ovos, já com as gemas separadas (leva poucas claras) são misturados com cuidado. Pelo meio há períodos de repouso da massa e do creme (de nata mas sem natas!), que também é vertido com um funil. Na medida exacta, uma vez que se caírem gotas no tabuleiro é o suficiente para que a cozedura dos pastéis não seja bem feita.

Cinco minutos depois, o forno abre-se. Os pastéis ainda vêm en-funados. Baixam ao arrefecer e estão prontos: entre 80 e 90 calo-rias por cada dose. Doses delicio-sas, diga-se!

João Castanheira reconhece que o galardão lhe trouxe mais e novos clientes. Até tem encomen-das para o estrangeiro. Mas, rea-lista e perfeccionista, não hesita em considerar que «também trouxe mais responsabilidades».

A mulher, com quem «namora desde os 15 anos» acompanha-o em tudo e, não raro, é vê-la atrás do balcão a servir pastéis de nata.

Sempre iguais? «Não, não po-diam ser porque há diferenças pequenas como nas tempera-turas, nos ovos, no leite... Mas há uniformização e a receita é sempre a mesma.» Além disso, é intransigente: «A qualidade está sempre presente.» E pode-se dar a receita, sendo certo que há coi-sas que nunca são iguais, «são mais a olho».

João Castanheira fala também de si, do seu sucesso: «Chumbei

cinco anos em engenharia mecânica. Não estava no rumo certo.» E conta que o curso mais caro que pagou «foram os negócios furados. Perdi muito, mas aprendi muito e nem paguei propinas».

Os pais sempre o apoiaram e sente a falta da mãe, falecida no ano passado: «Não me davam dinheiro, eram avalistas porque sempre acreditavam mim. É por isso que sou um homem de família».

Ao balcão, o Sr. Jorge é incansável a ser-vir. Está há mais de 40 anos na pastelaria e «nisto desde que nasci». Se sabe fazer pas-téis de nata? Sabe servi-los, mas se necessá-rio fosse, aprenderia também.

Se a bela Dorothy Lamour encarnou a doce Aloma do filme, não restam dúvi-das de que a Aloma de Campo de Ourique está para ficar e tornar a vida de todos mais doce.

Pastelaria Confeitaria AlomaRua Francisco Metrass, 67, Lisboawww.omelhorpasteldenatadelisboa.com

UM RESULTADO MUITO ESPECIAL

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É sem vaidade ou pretensão que cos-tumo dizer que da minha porta de entrada Victoriana Londrina aos portais de ferro da parisiense Gare du Nord vão cerca de duas horas e meia. Uma viagem rápida e confortável sem os excessos e as horas mortas, embora necessárias, nos aeropor-tos e que se resume a quatro estações de

metro e uma viagem no meu predilecto meio de transporte, o Eurostar. Um com-boio ultra-rápido que vai desbastando os subúrbios de Londres e o countryside in-gles até alcançar a entrada do canal da Mancha. E pelo trabalho exímio da en-genharia percorre debaixo da terra e do mar, como se de uma gigante toupeira

mecânica se tratasse, as cerca de 25 mi-lhas que separam o Reino Unido da velha Europa até chegar ao outro lado, a França.

Esta facilidade de viagem permite-me saltitar entre o «cá» britânico e o «lá» continental sem muitas perdas de tempo. Paris fica assim tão perto e digno de regu-lares visitas de fim-de-semana. Quando

Mais um fim-de-semana alcançado, mais uma viagem a concretizar. Miguel de Almeida segue desta vez para Paris e relata que nesta cidade nem tudo é tarte tatin ou crème brûlée…

TEXTO MIGUEL DE ALMEIDA IMAGENS COMME À LISBONNE

Comme à LisbonneVICTOR SILVEIRA SINGRA COM OS PASTÉIS DE NATA, QUE FIZERAM ÊXITO

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vou à «cidade-luz» fico sempre hospedado num apartamento situado na Boulevard du Temple, edifício marcado pela arqui-tectura neoclássica, situado no central bairro, o Marais. Um apartamento de ami-gos de longa data, com duas assoalhadas e divididas por paredes angulares e tec-tos muito altos onde peças de Calder le-vemente se suspendem. E ao sábado de manhã, enquanto tudo dorme, saio à des-coberta de pequeno-almoço.

Foi recentemente, numa destas escapa-delas, que numa rua transversal à que nor-malmente pernoito encontrei o Comme à Lisbonne. A tradução mental e automática fez com que me apercebesse que este esta-blecimento boutique teria algo a ver com Portugal. O Comme à Lisbonne é uma pe-quena pastelaria que se dedica sobretudo à venda de um dos ícones da nossa gastro-nomia: o pastel de nata.

Estive à conversa com o dono deste es-paço único em Paris, Victor Silveira, que entre um café e mais do que um pastel, me apresentou o conceito deste espaço dedicado à degustação dos mais refina-dos pastéis de nata. Com uma apresenta-ção cuidada, pretendem homenagear este nosso doce secular mantendo assim todo o processo artesanal da sua produção. 

A receita da sua mãe é seguida religiosa-mente e foi-lhe transmitida ao longo da infância. Além dos deliciosos pastéis de nata, a Comme à Lisbonne tem o intuito de representar Portugal e a sua cultura em pleno coração de Paris, algo até então ine-xistente na terceira cidade do mundo com mais portugueses. Há também para venda o café de uma conhecida e excelente marca tratado em Portugal, vinhos, licores, azei-tes compotas e chá, tudo proveniente de terras lusas e de extrema qualidade.

Numa cidade e cultura em que o histo-rial de doçaria é tão marcado, questionei--me inicialmente acerca da aceitação deste doce por parte dos parisienses, que por norma torcem um pouco o nariz às inves-tidas culinárias por parte de outros. Mas as minhas dúvidas desvaneceram-se porque ao longo desta nossa conversa uma fila for-mou-se uma fila desde o balcão até ao pas-seio da rua, demonstrando que este nosso doce bem casado com um atractivo es-paço, é receita de sucesso. A clientela é so-bretudo parisiense, gente que procura algo diferente e de boa qualidade e Victor asse-gura-me que só fecha as portas quando o último pastel de nata é vendido.

Também os turistas que vão deambu-lando entre ruas, boutiques e pracetas deste tão relaxado bairro parisiense en-tram no Comme à Lisbonne. Para estes,

o pastel de nata e o café são ideais como pausa entre novas descobertas. Conversa terminada, não resisto e compro meia dúzia. E sigo de volta a casa, passando pela Place des Vosges, o Musée Picasso até abrir a porta e subir as escadarias de ferro for-jado deste apartamento. Pastéis num prato e café-au-lait na mão vou acordando gen-tes, que interessadas me perguntam o que levo na mão: Breakfast, petit-dejeuner! É um pouco a moeda de troca pela hospe-daria de mais um fim-de-semana bem pas-sado em Paris. A caixa vazia, as migalhas no chão e as caras besuntadas pelo creme que, inevitavelmente escorrega por qual-quer bom pastel de nata depois de mor-dido, levam-me a concluir que transação foi bem sucedida.

NUMA DESTAS ESCAPADELAS, ENCONTREI NUMA RUA TRANSVERSAL ÀQUELA EM QUE NORMALMENTE PERNOITO O COMME À LISBONNE. UMA PEQUENA LOJA DE PASTÉIS DE NATA

UMA PEQUENA PASTELARIA EM PARIS COM A MARCA DE PORTUGAL

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A festa, porque de uma verdadeira festa gastronómica se tratou, durou dois dias e reuniu no hotel vínico de Vila Nova de Gaia um total de oito distinguidos chefes de cozinha. Sete deles ostentam Estrelas Michelin no currículo. O oitavo, Jerónimo Ferreira, do Sheraton Porto, conta outras distinções e averba a amizade e reco-nhecimento do anfitrião, o chefe Ricardo Costa, que com ele traba-lhou e, certamente, aprendeu antes de liderar a sua própria equipa. Dois jantares que vão ficar na memória de quem neles participou e que ficam a marcar o regresso da área metropolitana do Porto às geo-grafias das estrelas gastronómicas.

Não que o Porto não tivesse, antes, suficientes atributos na arte das comedorias. Que as tinha e em bom número, mesmo sem serem

estreladas. Mas a verdade é que, desde 1974, quando o Portucale, pri-meiro e único restaurante da cidade que até agora havia merecido a escolha dos críticos Michelin, recebeu o galardão, nunca mais nesta área metropolitana o mérito gastronómico havia sido reconhe-cido com estrelas. Até agora. Por mérito do The Yeatman e do chefe Ricardo Costa.

Estamos a meio de Junho, a 14 para ser mais exato. Ao final da tarde, no The Yeatman, a azáfama na cozinha não era demasiada. Boa parte do trabalho estava feito e o que ainda faltava fazer aconteceria um pouco mais tarde, quando as cinco dezenas de comensais esperados para esse dia estivessem já à mesa. Talvez por isso, alguns dos che-fes aproveitavam o sol que, subitamente e já ao final do dia, decidiu

TEXTO ARTUR MIRANDA FOTOS HERNÂNI PEREIRA

Do outro lado do rio, esplendorosa, a paisagem inigualável de um Porto Sentido que, ao final da tarde, os terraços do The Yeatman Hotel convidavam a desfrutar. À noite, ninguém se fixou em estrelas do céu. Era então tempo de brilharem as iguaria preparadas pelos chefes que ali se reuniram para mais uma etapa da Rota das Estrelas.

Em Gaia, a ver estrelasA EQUIPA DE COZINHA DO THE YEATMAN PREPARA AS "SAUDAÇÕES DOS CHEFES", A ENTRADA QUE DEU INÍCIO AO JANTAR

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marcar presença para beberricarem algo e desfrutarem da paisagem num terraço contíguo à sala do restaurante. Estivemos alguns minu-tos à conversa com eles, falamos de peixe e de mercados, de hortas e produtos biológicos, da necessidade de garantir bons fornecedores, da qualidade dos produtos indispensável para se obter resultados. E até de pequenas hortas que alguns hotéis de luxo vão cultivando para terem as ervas ali à mão. E fomos até à cozinha, onde divididos por grupos, chefes e ajudantes iam continuando a preparar o menu que, daí a pouco, faria vibrar alguns palatos.

Depois de alguns minutos a observar a mestria dos chefes e da equipa que os apoiava, deixamos a cozinha. Ali bem perto, Beatriz Machado, a diretora de vinhos do Yeatman, colaborava na tarefa de enfiar cada ementa na sua garrafa, transformando-a, assim, numa verdadeira message in a bottle para cada um dos participantes. «Este é um hotel vínico. Por isso faz todo o sentido esta apresentação», adianta. E aproveita para dizer que os vinhos que nos iriam ser servi-dos ao jantar não eram, por ventura, escolhas óbvias, mas que todos proporcionariam boas harmonizações com cada um dos pratos con-feccionados pelos chefes.

O sol brilhava no seu caminho para poente. A vista sobre o Porto, da Ribeira até à Foz, estava ainda mais esplendo-rosa. A hora do jantar ia-se aproximando. Num dos terraços serviam-se os «cocktails de assinatura do The Yeatman», todos eles tendo o vinho do Porto como base. Era o momento de juntar todos os che-fes para um brinde e uma saudação a todos quantos iam participar no repasto. Foi então que confron-támos Ricardo Costa, o anfitrião, com a sensação de ter sucedido ao emblemático Portucale como representante portuense na galeria das estrelas Michelin quase quatro décadas depois. O chefe, que tinha ido dias antes, a convite do jornal Público, conhecer o mítico restaurante localizado no 13.º piso da Cooperativa dos Pedreiros, não esconde a sua satisfação. Lembra-se, então, de que daquele restaurante havia avistado o seu hotel e busca no horizonte a torre que continua a marcar a paisagem da Invicta. Lá está ela, na parte alta da cidade, desta-cando-se entre outras mais recentes, mas erguidas em zonas menos elevadas.

Era tempo de seguir para a mesa e começar a de-gustar as propostas dos chefes que entraram em acção naquela primeira noite da “Rota das Estrelas”, no The Yeatman. E começamos com uma entrada a que chamaram Saudações dos Chefes, na qual coube-ram pedacinhos crocantes de choco, panceta e crus-táceos, uma esfera de rabo de boi, um creme brullé de crustáceos e um desafiante creme de ouriço-do-mar. Tudo isto acompanhado de um espumante Soalheiro Alvarinho Bruto 2010, que se mostrou à altura deste desafio e acompanhou igualmente com distinção o prato que se seguiu, uma deliciosa combinação de foie gras com cereja, presunto pata negra e ginja da Madeira, criação do chefe Benoit Sinthon, do Il Gallo D’Oro, restaurante do Hotel The Cliff Bay, da Madeira, onde a folha de ouro que salpicava o foie gras combinava com o vermelho da surpreendente ginja num verdadeiro deleite para os olhos, primeiro, e, assim que a pintura começava a ser desfeita, para o paladar.

Depois foi a vez de entrar em cena a salada de lavagante pre-parada pelo chefe Miguel Vieira, o português que brilha no Restaurante Costes, em Budapeste, ele que ostenta a única estrela Michelin de todo o firmamento culinário húngaro. Tínhamos tido a

oportunidade de o ver na cozinha, um pouco antes, enrolando meti-culosamente os pequenos canudinhos com o crustáceo que no prato nos chegaram acompanhados de nabo Daikon marinado, rabanetes e vinagrete de yuzu. Uma combinação de sabores elegante num prato bem colorido que teve um parceiro fantástico no Casa Ermelinda Freitas Sauvignon Blanc/Verdelho 2010, um surpreendente vinho da Península de Setúbal.

Prosseguindo neste desafio de sabores, o chefe Albano Lourenço, do Restaurante Arcadas, da Quinta das Lágrimas, em Coimbra, brindou--nos com umas vieiras acompanhadas de pimento vermelho, funcho, morcela e molho de vitela. Poderia causar alguma estranheza a asso-ciação do sabor forte e ativo da morcela e até do molho de vitela com a vieira, mas o resultado eliminou qualquer sombra de suspeita. Uma delícia que o Quinta do Ameal Escolha 2009 ajudou a valorizar.

E eis-nos chegado ao peixe propriamente dito com uma proposta incomum. Um rascasso dos Açores, peixe com uma boa consistência (talvez semelhante à do cherne), assado com beringela, gratinado de legumes e molho de fígados. Aqui, a assinatura não foi de nenhum dos chefes estrelados mas antes de João Oliveira, um dos subchefes de Ricardo Costa no Yeatman, que desta forma quis valorizar a im-

portância da equipa que com ele trabalha e permitir a um dos seus mais directos colaboradores um momento de destaque. Para realçar o rascasso foi servido um Ravasqueira Flavours Viognier 2010, um alentejano de aroma intenso, encorpado mas fresco que, diga-se, se mostrou à altura do acontecimento.

Nesta altura, o chefe anfitrião resolveu surpreender-nos com uma iguaria que não constava da ementa. Um ovo biológico cozido a baixa temperatura (60 graus) durante 45 minutos, com creme de ervilhas e wasabi e panceta estaladiça. Acompanhado de um Duorum Colheita 2010 que trouxe pela primeira vez à cena a Região do Douro, esta surpresa do chefe Ricardo Costa revelou-se um bom prelúdio para o prato de substância que nos apresentou em seguida, um rabo de boi cozinhado muito lentamente e lacado (24 horas a confecionar, de-pois de idêntico período numa marinada), com cogumelos chantarelle

ALGUNS DOS CHEFES APROVEITARAM O SOL PARA BEBERRICAREM ALGO E DESFRUTAREM A PAISAGEM NUM TERRAÇO

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e molho de wasabi. Um sabor forte a pedir um vinho encorpado, capaz de encher a boca, como foi o caso do Quinta do Crasto Reserva Vinhas Velhas 2007, em garrafas jeroboam (três litros).

Para um fecho digno de estrelas, o chefe pasteleiro do Yeatman, José Bastos, apresentou uma criação que denominou de cerejas e que constava de diferentes texturas e combinações: «Lasagne doce, parfait, sorvete e merengue de cerejas». Para acompanhar, Vinho do Porto, obviamente, não estivéssemos nós em pleno bairro das caves de Porto e num hotel que integra o grupo The Fladgate Partnership, detentor das marcas Taylor’s, Croft e Fonseca. Mas não um Porto qualquer. Aliás, o que nos foi proposto foi uma vasta seleção de Vintage 2005, de diferentes marcas, cabendo a cada um dos presentes escolher entre mais de uma dúzia de hipóteses. E dada a companhia de Adrian Bridge, CEO do hotel e diretor-geral do grupo da Taylor’s, e sua mulher Natasha Bridge, diretora da sala de provas, optamos por saborear dois vinhos desta marca, o Quinta de Vargellas e o Quinta de Terra Feita, diferentes mas igualmente capazes de um bom fecho de noite, que não acabou sem um aplauso aos chefes e a toda a equipa de cozinha que os acompanhou para a elaboração deste verdadeiro manjar de deuses.

A noite ia longa mas ainda houve tempo para um último brinde no terraço adjacente ao restaurante. Estava uma temperatura amena e, então, ao contrário do que canta Rui Veloso, havia estrelas no céu a dourar o caminho de regresso a casa...

A ROTA NO THE YEATMAN (PARTE II)A ideia inicial era que no primeiro dos dois dias desta Rota das Estrelas no The Yeatman brilhassem apenas os chefes mais jovens para que, no segundo dia, o protagonismo fosse dado aos que há mais tempo se movimentam entre tachos, frigideiras e panelas. Um percalço que atrasou Hans Neuner, o jovem chefe com duas estrelas Michelin do Restaurante Ocean, do Vila Vita Parc Hotel, no Algarve, obrigou a uma ligeira alteração, passando este para o grupo do segundo dia e entrando em acção no primeiro Albano Lourenço, da Quinta das Lágrimas. Não estivemos presentes nesta Rota das Estrelas – Parte II mas, para que conste, aqui fica a respetiva ementa: Saudação dos Chefes do The Yeatman; Sardinhas e Atum servidos sobre pedras de sal aquecidas (chefe Aimé Barroyer, Restaurante Tavares, Lisboa); Ceviche de Atum, uma proposta da subchefe Carla Patrícia, do The Yeatman, mais uma das colaboradoras que Ricardo Costa entendeu destacar; Vieiras na cataplana, acompanhadas por lulas e percebes (chefe Hans Neuner, Vila Vita Parc); Carabineiro do Algarve com risotto de cevadinha, percebes e micro-verdes (chefe Jerónimo Ferreira, do Sheraton Porto); Cherne com lula recheada, polenta cremosa e molho de crustáceos e caril (uma proposta do anfitrião Ricardo Costa); Vitela Mirandesa com dome de batata e queijo terrincho, esparregado de salsa, foie gras e trufa de verão (chefe José Cordeiro, Restaurante Feitoria do Hotel Altis Belém); sorvete de nectarinas e granizado, uma pré-sobremesa do chefe pasteleiro José Bastos, do The Yeatman); para fechar, o chefe Miguel Vieira (do Restaurante Costes, de Budapeste) preparou uma pera envolta numa esfera de chocolate a que adicionou chocolate quente.

AS ESCOLHAS DE BEATRIZAs escolhas de Beatriz Machado, Mestre em Viticultura e Enologia pela Universidade da Califór-nia, em Davis, EUA, revelaram-se adequadas aos diferentes sabores com que foram confrontadas, proporcionando-nos gratificantes experiências sensoriais. A especialista de vinhos do The Yeatman garantiu-nos que teve «a preocupação de eleger vinhos que estão disponíveis no mercado e que não têm preços demasiado elevados». Tendo, também, revelado uma aposta na diversidade geográfica que se traduziu numa viagem por diferentes regiões vitivinícolas de norte a sul do país, do Minho a Setúbal, passando pelo Alentejo e concluindo no Douro, Beatriz Machado explicou a seleção de vários Porto Vintage 2005 como uma forma de marcar uma data que, disse, «fica na história deste hotel e da região do Porto. Quando Obama foi eleito, foram guardados numa espécie de nave do tempo vários objetos entre os quais um Vintage de 2005. Era um momento histórico e alguém entendeu que esse ano deveria ser assim assinalado para memória futura. Foi o facto de também aqui se estar a fazer História que, salvaguar-dando a devida distância, pretendi assinalar com a selecção de Vintage 2005». É importante assinalar que o The Yeatman é um hotel vínico que tem os seus 82 quartos e suites decorados com motivos vínicos pelas diferentes marcas com as quais estabeleceu parceria, muitas delas concorren-tes directas das que integram o portfólio do grupo proprietário do hotel. Nas suas caves repousam mais de 25.000 garrafas de um extenso rol com mais de 1.000 referências, algumas delas muito raras. E que, no âmbito desta aposta nas parcerias com produto-res nacionais, organiza todas as quintas-feiras jantares vínicos.

RICARDO COSTA, O CHEFE ANFITRIÃO, ORIENTANDO OS TRABALHOS NA COZINHA

O "RASCASSO DOS AÇORES" JÁ PREPARADO PARA SEGUIR PARA A MESA

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Às vezes, ser velho e azedo, é excelente. E não comecem a imaginar coisas pois, no relembrar da minha última crónica, estou (apenas) a falar do fermento, ca-seiro, feito da alquimia entre água, ar e farinha, combinada com o passar do tempo e alguns cuidados básicos de saúde, como ter a preocupação de o ali-mentar uma vez por semana. Este fer-mento, velho e ácido, melhorará com a idade e permitirá que o que quer que fa-çamos com ele, tenha outro sabor, outra complexidade, outra vida.

Porque a acidez é fundamental , como o é a diversidade, a autenticidade, o radical e o modernismo, a doçura do conhecimento dos mais velhos, a recusa da pasteurização do sabor, da massificação do intelecto, do dogmatismo intolerante que ciclicamente nos ataca.

Entre os meus produtos de eleição, já passaram por estas páginas, entre outros, o pão e a batata. Hoje continuamos na senda da simplicidade, com o destaque dado a algo tão simples, acessível e tan-tas vezes grátis: o limão.

Talvez o alimento mais utilizado na minha cozinha, a sua polpa, sumo e casca, aparecem com intensidade e fre-quência nos meus pratos. Salgados, doces, amargos, gordos, magros, quase tudo fica melhor quando tem um toque de acidez. Coloco a casca em sopas, o sumo em purés e em arroz, a polpa em

estufados. Componente fundamental dos meus caldos, equilibrador dos molhos, acentuador dos aromas. As flores fazem grandes infusões e temperam orientali-ces de anciã transmutação lusa. Mágico, delicado, belo desde o momento em que aparecem as primeiras flores na árvore.

Na quinta dos meus avós maternos havia muitos limoeiros. Havia também um cruzamento mal sucedido entre um limoeiro e uma laranjeira (experiência frankensteiniana de um avô que não era agricultor mas que achava que era!), e lembro-me de um primeiro fascínio com o extraordinário aroma das folhas quando esmagadas na mão. Como um perfume que persistia durante horas, fresco e ins-pirador de viagens e sons, lendas e mis-térios que acompanhavam uma infância pré-televisão.

Oriundo do Sudoeste Asiático, apura-se no Médio-Oriente, para entrar na Europa via Itália e daí, graças ao império ro-mano, atingir grande parte do continente e também o norte de África.

A sua contribuição nos meus pra-tos é imparável, a frescura dos sabo-res cítricos, luminosos e carregados de personalidade, marcam com leveza e personalidade os preparados em que são combinados, relembrando-me ou-tros tempos, despreocupados e riso-nhos, tardes de Verão com a família, onde aparecia sempre, uma limonada, ou

um mazagrã (café, água, gelo, açúcar e limão; o refresco predilecto do meu pai), nesse misto de técnica, memória, saber--fazer e alguma emoção, que caracte-riza um estilo culinário e que para mim é actualmente definido como “tradição tolerante”.

Fica assim assumida, sem tergiversa-ções a importância primordial que eu dou à acidez, que é tão diferente do... aze-dume, uma característica de tantos, que por vezes parece prevalecer e dominar o nosso dia a dia.

A acrimónia dominante no comentário político, mas também demasiadamente

O limão e a azia

NUNO DINIZ

Emoções

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frequente na crítica em geral, seja gas-tronómica, musical, cinematográfica ou outra, parece indicar um permanente estado de azia, que se suaviza episodi-camente para passar a mão pelo pêlo a alguns amigalhaços, para rapidamente voltar a resvalar para a maledicência, ignorante e preconceituosa, que enche o pequenito mundo de alguns tristes.

Falemos, só porque tem mais a ver com o cronista, dos combinadores de letras, pontos e vírgulas, que se entretêm com as cozinhas. Há demasiados que sabem pouco. Mas têm muitas, definitivas e toni-truantes opiniões. Maralham em conceitos

baralhados que confundem com a ver-dade. Assumem rumores e sussurros como o píncaro da perfeição. Deslumbram-se com técnicas que consideram de van-guarda (e que na maior parte dos casos têm décadas), e quase sempre desprezam a singeleza coerente da simplicidade.

Tal como o outro que queria malhar na direita, ou o que hoje quer malhar nos jor-nalistas, ou o que há-de chegar a querer malhar em todos, também alguns escre-vinhadores acham que para exibir o seus auto-proclamados conhecimentos, não há nada melhor do que malhar nos que ten-tam fazer qualquer coisa. Porque, fique

claro, todos nós somos críticos, todos nós damos opiniões, todos nós gostamos e não gostamos, mas há uma grande diferença entre fazer e falar de quem faz. A liber-dade para dar opiniões não pode ser maior do que a liberdade do criador, do intér-prete, ou mesmo a do executor que cum-pre regras rígidas e imutáveis. Eu tenho direito de não gostar, mas não tenho o di-reito de dizer que está mal feito, sem pelo menos tentar perceber porquê.

Quando se diz que uma carne está muito passada, isto não passa de uma opinião de uma pessoa que, em tantos casos, não corresponde à opinião de outra. Quando se escreve, então existe a obrigação de tentar saber porque é que a carne, ou o peixe, ou a cenoura estão como estão. Foi engano? É propositado? E se é para ser mesmo assim então o autor deverá saber explicar porquê.

Eu não gosto de pimentos, logo tenho a liberdade de não os utilizar na minha co-zinha. Não tenho o direito de dizer que um prato é mau só porque leva pimentos; posso dizer que assim não gosto, mas nada mais. E o problema é meu.

Para mim o bacalhau não dever ser co-zinhado a mais de 70º, logo se alguém escrever que um bacalhau feito por mim estava mal passado, está enganado, não tem razão! Pode dizer que para o gosto dele o bacalhau estava pouco passado, não pode dizer que está mal feito. E, claro, tem sempre o direito final e absoluto de pedir para que o cozinhem mais.

É nesta mixórdia frequente entre os gos-tos pessoais, preconceitos, e falta de ta-rimba e conhecimentos que, infelizmente, se banha alguma da crítica mais caloira.

E no entanto existem em Portugal, vá-rios grandes exemplos de notáveis crí-ticos, que procuram a informação e o conhecimento e que exercem a sua função com elegância e delicadeza, não despre-zando o sempre fundamental didactismo quando a lidar com os mais novos. É por isso que não posso deixar de homenagear os sérios e bons relembrando o exem-plo fulgurante de David Lopes Ramos, que exibiu a crítica como um acto de paixão e que sem a necessidade de se esconder por baixo do capuz de ridícu-los anonimatos, tentava sempre perceber qual tinha sido a intenção do cozinheiro, e conversava, opinava, perguntava, escla-recia e aprendia... E como ele dizia, sem azedumes, para quê gastar tempo e es-paço a dizer mal, quando há tanta coisa no mundo para apreciar e dizer bem.

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«Venha para o pé de nós beber um Porto», é o convite de Maria Emília Campos, di�rectora da Churchill’s. Por isso, os vinhos da Churchill’s «serviram» a �astrono�«serviram» a �astrono� a �astrono�mia: entradas de robalo marinado em limão e laranja tiveram Dry White Porto, camarão com puré de couve�flor para o Churchill’s�branco de ���� e bacalhau co��branco de ���� e bacalhau co�e bacalhau co�zido em toucinho com arroz de favas para o Quinta da Gricha ���5 e ���9. A sobre�mesa, pudim Abade Priscos e musse de maracujá, teve a acom�panhar o Vinho do Porto Vinta�e, por ventura o único a merecer reparo já que al�uns dos convi�vas consideram ser «doce em de�masia». Mas Sobral explicou que o fito do maracujá era, exacta�mente, quebrar o doce. Ainda que «o vinho do Porto seja, por si só, uma sobremesa», como opinou Maria Emília Campos.

O centro de visitas Churchill›s promete «privile�iar as provas de vinho do Porto vintage desta�cando as características sin�ula�res e únicas de um produto que é considerado um dos �randes vi�nhos do mundo».

Os pratos foram cozinhados pelo chefe diante dos convidados, com John Graham, o fundador da empresa e enólo�o, a apresentar os vinhos, todos criteriosamente escolhidos para o evento, com a competente explicação da opção.

Os elo�ios a Vítor Sobral não foram re�ateados, sendo o chefe chamado de «embaixador» do Vinho do Porto e talvez «o �rande representante da �astronomia portu�uesa no estran�eiro». Até porque, além de chefe, é pro�, além de chefe, é pro�prietário de um restaurante de sucesso em São Paulo, onde co�mercializa o vinho do Porto da

Churchill’s e os vinhos do Douro, e de um outro em An�ola, além da conhecida Tasca da Esquina e Cervejaria da Esquina, ambas em Lisboa. Também por isso, Maria Emília Campos fez questão de homena�ear os seu «ami�o de lon�a data».

Num ambiente informal, em que o chefe protestava pela bancada em que desenvol�via os petiscos, Maria Emília Campos apro�veitou a deixa para o desafiar a deslocar�se

ao Porto, pelo menos uma vez por mês, para efectuar cursos de cozinha. Vítor Sobral aceitou o convite, comprometendo�se a estar presente de três em três meses. E, em tom jocoso, voltou a referir a bancada que não foi feita a seu �osto, ainda que a sua es�trutura se enquadre na perfeição no �énero de decoração do espaço.

Enquanto cozinhava, Sobral aproveitou para adiantar que já não tem necessidade

TEXTO MARGARIDA MARIA

Vinho do Porto com todos os privilégiosA Churchill’s tem um novo centro de visitas. É na Rua da Fonte Nova, em Gaia, sobranceiro ao Douro, com uma vista de excepção, e recebeu, na inauguração, um show cooking do chefe de cozinha Vítor Sobral. A presidir, um lema: o vinho tem sempre de estar «casado» com a gastronomia. Trata-se de um investimento que ronda os 400 mil euros, com cerca de 350 metros quadrados, onde se pode apreciar um cálice de Porto, tendo o rio e a cidade como pano de fundo. Um luxo, enfim!

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de provar que é um grande cozinheiro, pelo que a sua intenção «é fazer coisas que se podem repetir em casa». E acentuou: «uma cozinha rápida e simples, tendo por base os tradicionais sabores portugueses».

O chefe aconselhou que se provasse sem-pre o vinho, antes de começar a cozinhar («é necessário saber bem o sabor que se pretende e adequar o vinho aos alimentos») e deu uma lição de história: «O refogado português está na base de todas as cozi-nhas. Ninguém inventa nada. Nós criámos, de facto, uma miscelânea porque acrescen-támos sempre na medida da nossa História – ingredientes, especiarias – e isso torna a nossa cozinha rica e em evolução».

A não perder, a receita de bacalhau: as pos-tas, pequenas, são cozidas embrulhadas em toucinho, com um fio de azeite para facilitar

a libertação da gordura, e o arroz de favas tem um toque muito es-pecial com hortelã fresca.

No final, a visita obrigató-ria ao novo centro de visitas da Churchill’s, onde se podem agora efectuar provas de vinhos mediante marcação, jantares de grupo até 40 pessoas, reuni-ões, workshops, e outro tipo de iniciativas.

A recuperação do espaço, de-senvolvida pela CRERE/Museu do Estuque, foi, naturalmente, inspirada no vinho e é curiosa a sensação que se tem na área dos quatro tonéis, com capaci-dade para 45 mil litros, cada um, destinados ao vinho do Porto da categoria especial LBV (Late

Bottled Vintage), onde o vermelho nos re-mete para o interior do próprio vinho.

Com um horário de visitas entre as 10 e as 19 horas, o Centro de Visitas Churchill’s apresenta diversas opções de provas a todos os que visitam aquele espaço. Deste modo, quem pretende aprofundar os conhecimen-tos sobre Vinhos do Porto, tem à disposição as provas verticais diárias, realizadas me-diante marcação, para um mínimo de cinco pessoas.

Estas provas técnicas, acompanhadas por um profissional da equipa Churchill’s, vão dar ao visitante a possibilidade de mergu-lhar no fabuloso mundo do Vinho do Porto e aprender a avaliar os seus diferentes esti-los e sabores.

As provas turísticas destacam-se, tam-bém, por darem aos visitantes a possibi-lidade de escolha de uma prova de vinhos

personalizada, tendo em conta as novas tecnologias e utilizando um conjunto de Ipads preparados especificamente para esta aplicação. Contudo, é sempre bom ouvir os especialistas e quem serve, dado o seu ele-vado grau de profissionalismo.

Ainda no que respeita à recuperação do es-paço, na sala superior, onde a vista do Douro é emoldurada pelas janelas, vivem-se as cores claras, quebradas por quadros e mobi-liário do espólio da Churchill’s. Fica-se, pois, com os olhos lavados e a alma cheia daquele rio que banha a Invicta Cidade.

E, claro, imprescindível sempre, um cálice de Vinho do Porto!

Rua da Fonte Nova 5Vila Nova de GaiaTelef.: 223703641www.churchills-port.com

JOHN GRAHAM E MARIA EMÍLIA CAMPOS NÃO POUPARAM ELOGIOS A VÍTOR SOBRAL, «EMBAIXADOR» DO VINHO DO PORTO

Vinho do Porto com todos os privilégios

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Na esteira dos sentimentos nacionalistas que varrem a elite in-telectual portuguesa dos últimos anos do século XIX, o escritor Fialho de Almeida (1857-1911) não deixa – tal como outros seus confrades – de transportar para a gastronomia, para a cozinha portuguesa, o mesmo tipo de atitude. Pondo-a nomeadamente em confronto com a cozinha francesa, então dominante.

«A desnacionalização da cozinha é para mim, talvez primeiro que a dos sentimentos e das ideias revelada pela vida pública, o primeiro avanço da derrocada dos povos.» A frase, veemente, afirmativa, é de Fialho de Almeida e há de ter sido redigida lá pelo ano de 1891, que a este ano diz respeito o artigo que autor incluiu em Os Gatos, folhetos de anunciada publicação perió-dica mensal, em que Fialho ia comentando – com seriedade, com algum humor e ainda com alguma forte verrina – o dia a dia da vida política, social e cultural portuguesa.

Editada naquele ano de 1891, a crónica – de onde extraímos esta frase e outras ideias e trechos que se seguirão – foi recom-pilada numa série de volumes que conservaram o nome ori-ginal que Fialho lhes tinha dado: Os Gatos. Isto é: bichos de letras que, quando saíam à rua, se punham naturalmente de garras de fora, prontos a arranhar, a irritar, a fazer mossa na so-ciedade portuguesa de então. Aguerridos e acrimoniosos estes Gatos tinham sido modelados na sequência de umas Farpas, que a dupla J. M. de Eça de Queirós e J. D. Ramalho Ortigão tinha começado a dar à estampa vinte anos antes, já em 1871, e a que, com a partida de Eça em funções diplomáticas para Cuba, Ramalho haveria, agora só, de dar continuidade, ainda durante uma boa dezena de anos.

Ainda quanto a Os Gatos e à personalidade literária (e não só…) de José Valentim Fialho de Almeida vale decerto a pena transcrever aqui a justeza com que, em artigo não assinado, se carateriza a pena e o pendor fialhianos: «Como panfletário, nos Gatos, Fialho tem páginas que são um misto de notável e de mau gosto, de belo e de desequilibrado, de justiceiro e de horrorosamente injusto.» Magister dixit. E, com isto, volta-mos ao nacionalismo gastronómico-culinário do senhor José Valentim.

Claro está, como o leitor muito bem sabe e vê, que a atitude nacionalista de Fialho acaba por integrar-se nesta linha rei-vindicativa, nesta veia de reabilitação daquilo que é nacional e tradicional, linha que congrega personagens como alguns da-queles cuja expressão, neste domínio, já, na EPICUR, temos

Dotado de uma prosa generosa e virulenta, afirmando-se no seu patriotismo, na altura em que Portugal se achava imerso em profunda crise, Fialho de Almeida não hesita também em elevar a culinária portuguesa aos mais alto grau da civilização. Escutemo-lo, pois.

FERNANDO-ANTÓNIO ALMEIDA

Passado gastronómico

«A mais sápida cozinha do mundo»

FIALHO DE ALMEIDA E O ELOGIO DA COZINHA PORTUGUESA

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trazido à baila: um Camilo, um Ramalho, um Júlio Dinis. Estes e ainda um super cosmopolita (Cuba, Inglaterra, França…) José Maria Eça de Queirós que, na pessoa de um certo Jacinto, rejei-tando Paris, acaba por render-se a um humilde e sublime arroz de favas, que lhe é servido num desterrado e serrano Douro, pri-mitivo mas autêntico, uma pura emanação da terra-mãe.

Pois Fialho – voltemos a Fialho – antes de mais, acusa os por-tugueses de, por pura imitação, cometerem um verdadeiro aten-tado de lesa-pátria, ao desnacionalizarem a culinária local: «A desnacionalização da cozinha é, para mim, talvez primeiro que a dos sentimentos e das ideias, revelada pela vida pública, o pri-meiro avanço indicativo da derrocada dos povos.»

Considerando indiscutível que «Portugal é o país onde se come menos e pior», Fialho considera que, acima de tudo, tal se deve àquilo que chama «a monomania do estrangeirismo»: «O estrangeirismo, ou monomania de adaptação do (que é) es-trangeiro à vida nacional, enxertado sem critério nem precisão imediata…» E, daqui, a acusar os seus contemporâneos – a elite (ou uma certa elite) de então, claro está – de cairem no «eston-«eston-eston-teio de civilizações superficiais, como a francesa», de cederem perante «a torrente de preparados desenxaibidos com que Paris inunda as mesas do mundo».

E, prosa adiante, logo lhe surge estabelecer o paralelo entre a cozinha portuguesa e aquela que é praticada pelas então duas maiores potências mundiais em conflitual presença no palco da História, a Inglaterra e a França (os Estados Unidos da América do Norte ainda seguiam na via da matança das populações ín-dias aborígenes, a Alemanha preparava-se para prosseguir na sua triunfal e bélica carreira europeia…). E Fialho, de língua afiada, não hesita em contrapor-nos, na matéria, a ingleses e a franceses: «sob o ponto de vista da alimentação, nós estávamos, há dois séculos já na idade dos guisados, enquanto o grosseiro inglês permanece ainda nas carnes sangrentas, reminiscência dos períodos antropófagos, e o ardiloso francês nas massas e pi-cados, isto é, nos jantares em pílulas, cujo último resultado é, nada menos, que a supressão do paladar».

Chamando a si os «mestres excelentes» que nós, portugueses, tivemos na matéria, cita o folhetinista o termos herdado «do árabe a caçarola e a arte de fritar e refogar»; ao que acrescenta a herança que, através das viagens de descobertas, fomos rece-bendo pelo mundo: «as especiarias do Oriente, os picantes do Brasil, a arte de doçar (sic.) dos países gulosos, a Turquia, a Índia, e os sultanatos mouros da orla de África, subsídios culinários, condutos, mimos, receitas, que muito cedo nos fizeram tomar a dianteira dos povos gastrónomos».

E será assim, contestando acirradamente os «patetinhas» por-«patetinhas» por-patetinhas» por-» por- por-tugueses (estrangeirados, é bem de ver…), que qualificavam a cozinha portuguesa como «a mais estúpida e gentílica», que Fialho, patrioticamente, considera, sem mais rodeios, a nossa cozinha ser «a mais requintada, a mais voluptuosa e a mais sá-pida cozinha do mundo».

OS GATOS. BICHOS DE LETRAS QUE, QUANDO SAÍAM À RUA, SE PUNHAM NATURALMENTE DE GARRAS DE FORA, PRONTOS A ARRANHAR, A IRRITAR, A FAZER MOSSA NA SOCIEDADE PORTUGUESA DE ENTÃO

O ARROZ DE PERDIZES DE JOSÉ VALENTIMNão era só conversa, da parte de Fialho. Ele punha as mãos na massa, isto é, refinava-se na preparação de especialidades ao gosto português e, particularmente, ao seu – assinadas por José Valentim, de seu nome pró-prio. É o caso de um arroz de perdizes que pelo menos cativou Júlio Dantas, que assim se expressou a propósito da prova: «Um verdadeiro puxativo celestial que deixou fogo em todas as línguas, lágrimas em todos os olhos, gratidão em todos os corações e um “bravo!” em todas as gargantas», como reproduz José Quitério, em Histórias e Curiosidades Gastronómicas.Ele, o cozinheiro, não se encolheu, pelo contrário: «O meu arroz já por várias vezes mereceu as honras da Imprensa, e não me admiro, porque ele é obra íntegra e cientifi-camente criada para lisonja dos mais subtis requintes gustativos.»Magnânimo para com ele próprio, Fialho espantava-se, como escreveu a Dantas, «da concepção genial que umas simples perdizes chisparam do meu estro, e felicito o Senhor que houve por bem fazer deste arroz - v. permite – a minha Ceia dos Cardeais»Segue-se a lista de ingredientes, a preparação, o apu-ramento. E desperta (ou sustenta) o apetite de Dantas: «Em meus lazeres trastaganos, enquanto as uvas madu-ram, novos pitéus geniais saco ao bestunto.» Modéstia não era coisa abundante naquela cabeça.

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Boa entrada de férias, rumo a Barcelona, e a correr desde logo para uma exposição imperdível, patenteada no Palau Robert, Passeig de Gràcia, 107. É um festival gastronómico cuidado ao pormenor e o retrato do percurso de vida de Ferran Adrià e do seu elBulli, tudo encimado pelo título Riesgo, Libertad y Creatividad. Uma exposição que vai ajudar a animar a cidade até Fevereiro do próximo ano… Uma espécie de curso gastronómico virtual. É um momento raro, uma mostra de construção soberba! Assim tivéssemos cá…

Em boa verdade, a visita à exposição faz-nos abrir apetites. Mas não sabemos como começar, se pela clássica gastronomia catalã ou pelas novas e modernas interpretações da dita. Atacámos a primeira, aconchego na Ca l´Isidre (www.calisidre.com), quartel--general na rua Les Flors, 12, uma parte antiga da cidade. Por este poiso está em prática a gastronomia catalã tradicional, assim tudo desferido desde há 43 anos, porto seguro e bem escorado, cliente-las fiéis, até da realeza, como aparece nalgumas das fotografias que

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

Mesas de BarçaPara um mini roteiro de férias à mesa, Barça está a dar. Primeiro visitar o encanto da exposição dedicada a Ferran Adrià, é o aperitivo, depois siga os passos para dois restaurantes de charneira. Um cheio de pergaminhos, gastronomia catalã pura e dura, outro de cozinha de autor onde se faz malabarismo com cozinhas de várias paragens. Só por isto vale dar uma saltada a Barcelona.

UMA EXPOSIÇÃO IMPERDÍVEL A VER ATÉ FEVEREIRO DO PRÓXIMO ANO

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embandeiram as paredes de uma das salas de refeição. No turno dos entrantes, manjares a que piscámos o olho: carpaccio de atum, moluscos da Ligúria, camarão ravioli aromatizado com gengibre e limão. De pedir bis, salada de vieiras com ovas de truta e romesco. Saltada para os peixes, arrelagar o sobrolho para diversas iguarias, alguns exemplos: risoto com frutos do mar; filé de atum Balfego com coulis de tomate. Baixa o pano com um creme de ervilhas a acolher um pregado híper-fresco e bacalhau com feijão Llauna Morro de Santa Pau. Venham carnes, basta explicar duas transcen-dências: uma só para espíritos não impressionáveis… ou os cére-bros de cordeiro, a outra proposta mais «civilizada» dá-nos porco trotters recheado com cogumelos e trufas com fígado de pato. E fechar o círculo com uma sobremesa que muito bem cai no goto, o Gin Tonic Texturas.

Restaurante que já chegou a ter duas Estrelas Michelin, de re-alçar a carta de vinhos, onde se consagram grandes referên-cias mundiais e onde os portugueses dão uma perninha bem congeminada.

Mas o espanto, para nós neófitos na matéria, foi quando saltou para a mesa um animalejo de seu nome espardenya… Há quem lhe chame pepino do mar, dada a sua forma alongada. Na boca há lai-vos do sabor das lulas, mas o espardenya ganha-lhes aos pontos pela intensidade de cheirinho a mar. Bichinho caro e raro cons-titui uma especialidade catalã e é apanhado apenas na costa me-diterrânica. E é um cabo dos trabalhos para o catar, vivendo em solos arenosos e em profundidades entre os 20 e os 40 metros. Um animalejo de que se come uma ínfima parte, situada no seu interior, parcos cinco centímetros de «carne». No Isidre são con-fecionados com arroz, com refogados com alho ou simplesmente grelhados.

MOO HARMONIZAÇÕESOutro espirro de barça é o Moo (www.hotelomm.es), 1 Estrela Michelin atribuída em 2006, dois sóis no Guia Campsa, alojado no gabarito e frenesim do Paseo de Gracia. Da ideia do seu staff implicado nos fogões – supervisão de Joan Roca, Josep e Jordi, ad-ministração do chefe Felip Llufriu – está acima de tudo a harmo-nização da gastronomia com os vinhos. Escolhe um determinado prato e o sommelier apresenta-lhe um vinho que, quanto a ele, casa às mil-maravilhas… Para todos os efeitos, o escanção Xavier Ayala é um rapaz bem cotado, eleição de melhor da Europa e segundo a nível mundial. Um homem que já geriu na casa mais de 600 vi-nhos, actualmente, adega mais branda, ainda assim estão por lá 216 referências. De portugueses registámos Portos e dos melho-res: Symington Down´s Vintage 2000 (109,15€), Taylors Vintage 85 (200,10€) e Niepoort Vintage 2000 (65€).

Para a mesa saltaram benesses encantatórias, exemplo de entra-das de carpaccio de pies de cerdo y cigalas e nueces de foie gras com su sopa. Vem o essencial e fica na retina uma dorada com trufa e al-cachofras, mais cordero com menta y cous-cous vegetal, remate com liebre a la royal. Nas sobremesas, categóricas sopa de coco com yema de piña e bombones de castañas. Enfim, tudo assente na ma-triz da gastronomia catalã mas a dar cheirinhos de muitas outras paragens, onde o extremo Oriente exerce uma influência consi-derável.

ESPARDENYA É BICHINHO CARO E RARO E CONSTITUI UMA ESPECIALIDADE CATALÃ, APANHADO APENAS NA COSTA MEDITERRÂNICA

OS MATERIAIS DE ADRIÀ NUMA GRANDIOSA EXPOSIÇÃO

CLÁSSICO ISIDRE MOO ESTRELA MICHELIN

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Barca velha, barca novaNo tempo em que não havia grandes vinhos havia um grande e poderoso vinho. Barca Velha, claro! Tudo começou com um artífice imorredoiro, Fernando Nicolau de Almeida. Ido de 1952, é iniciada a saga da Barca. Até hoje 17 colheitas, e mais uma saída da forja, emblema de 2004. Trabalho leonino para apenas pouco mais de 20 mil garrafas. Mas trabalho lindo e glorioso!

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FERNANDO NICOLAU DE ALMEIDA, TUDO COMEÇOU COM ELE

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TEXTO EDUARDO MIRAGAIA

O convite anunciava-se misterioso… Uma nova edição de Barca Velha, mas de que ano? Não era referido… Segredo de estado. Para todos os efeitos o convite era prazenteiro, rezava: propomos--lhe uma viagem ao berço deste expoente máximo da região do Douro, para um evento que já não se repete desde 28 de Maio de 2008, quando foi publicamente apresentado o Barca Velha 2000. E lá fomos embarcados do Pocinho até à Quinta da Leda. É ali, (já na embarcação se palpitava que o próximo Barca era e é o de 2004) para os apaniguados enólogos da Leda, «chanceler» Luís Sottomayor, que calor como neste Douro Superior só no Alentejo. Nesta paisagem lunar, monte Callabriga pela frente, onde viveram os romanos, as graças da microzonagem puseram a descoberto oito tipos de xisto, foi um mês inteiro a fazer perfurações. Dos almana-ques extrai-se que a Leda, embora a braços com o inóspito Douro Superior, dá para todos os casos uma nova dimensão para os vinhos durienses. Produtos de enorme complexidade e estrutura, porten-tosos mas plenos de frescura e vigor. O enófilo mais avisado por certo conhece a excelência de dois case study, Quinta da Leda e Callabriga. Nos dizeres de Sottomayor, a Leda configura todo um

novo desafio enológico para a região, possuindo os mais modernos sistemas de plantação e vinificação do Douro. Os seus 160 hectares de vinha estão separados por castas, sendo a Touriga Nacional a sua plantação mais recente.

E vem a prova dos nove… Foi preciso esperar pelo jantar para en-trar à fala com o Barca 2004, escoltado por uma perdiz estufada na cocotte com puré tosco de batata e esparregado de favas, um man-jar precioso servido pelo turismo rural das Casas do Coro, aldeia de Marialva. Bebido assim à queima-roupa, este 2004, para todos os efeitos um jovenzinho, atingiu as alturas, quanto a nós ainda melhor do que a edição de 2000. Lá se confere uma intensa cor ruby, aroma de alta harmonia e complexidade. O final é soberanamente longo e complexo, estrutura pujante. E pensar que esta última cotada só deve atingir o apogeu muito provavelmente 15 a 20 anos após a colheita! Mas da casa, à nossa mesa o patriarca Fernando Guedes soletra mais: prevendo-se, contudo, que se mantenha vivo por um período até hoje indeterminado. Para lhe tratar devidamente da saúde, em prol da ve-lhice, apesar de pronto a consumir desde já, tem um largo potencial de guarda e evolui positivamente em garrafa, mas alerta: desde que

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esta seja mantida deitada, em poiso seco e fresco, ao abrigo da luz. E outro alerta: para preservar a sua mais alta qualidade, foi engarrafado sem tratamento, sendo portanto natural a formação de depósitos.

Nascido apenas de vindimas excepcionais, só narizes apurados podem determinar quando é ou não Barca Velha. Um desses narizes confere com Luís Sottomayor, «adivinhava» ele há tempos: «Há al-guma coisa que nos diz, e que a experiência estimula, que aquele ano vitícola tem as características para Barca Velha». Mas há sempre con-dições… Este néctar não se compadece com pressas, pressões, nem efeitos de moda ou tendências! E foi sempre assim, a começar nos idos de 1952, estando-se na 17ª colheita. E pensar que o seu criador, Fernando Nicolau de Almeida, um visionário, já sonhava com a sua concretização na década de 40…

Em abono deste 2004 é por bem explicar os meandros. É que a grande dificuldade, enquanto vindima de grande qualidade e quantidade, foi separar as uvas que iam fazer história daquelas que estavam apenas destinadas à produção clássica. Aduzindo Sottomayor: e assim, em plena vinha, começava a confiança num ano Barca Velha. «Ainda me lembro da cuba, 3.4., que tinha 90 por cento de uvas da Quinta da Leda e dez por cento de zonas mais altas no Douro Superior». No total apenas deram à vida umas pre-cisas 26.068 garrafas numeradas, cada a valer PVP 100 euros. No entanto é preciso esperar… A distribuição só se inicia no próximo mês de Setembro. Bafejados pela sorte estão apenas, de imediato, os sócios do Clube Reserva 1500, a estrutura que é obra criativa da Sogrape.

ACHADOSÉ de ontem e de hoje que o Barca Velha está pejado de curiosidades. Para alinhar apenas algumas…É de mestre – �rrojado e�erc�cio de enologia� dada a ino�a��o dos m�� �rrojado e�erc�cio de enologia� dada a ino�a��o dos m��todos utilizados por mestre Fernando Nicolau de �lmeida e sua equipa� que lograram ultrapassar as dificuldades t�cnicas que diziam respeito ao equil�brio da matura��o/acidez natural e o controlo da fermenta��o� particularmente da temperatura. O problema da matura��o foi solucio�nado com a selec��o de u�as a diferentes altitudes no Douro Superior� que �aria�a consoante os anos para conseguir a acidez desejada. Em re�la��o à quest�o bicuda do controlo de fermenta��o� a solu��o passou por adaptar uma tecnologia importada de Fran�a� utilizando a remonta�gem por bomba em balseiros� obtendo deste modo a e�trac��o preten�dida. Já o dom�nio da temperatura foi almejado pela utiliza��o de gelo� que era transportado de Matosinhos para o Pocinho� em camiões� de forma a garantir a fermenta��o alcoólica entre os 28 e os 30 graus cent��grados. Como contar Leda – � história da Quinta da Leda come�a por um aca�so� em 1979… O antigo proprietário do terreno foi a Vila No�a de Gaia apresentar a sua proposta de �enda. Sabendo que ha�ia no sector em�presas interessadas em produzir no Douro Superior� dirigiu�se à Ferreira pensando que contacta�a outro produtor que� entretanto� já tinha fe�chado um negócio naquela sub�regi�o� dei�ando assim o caminho li�re… ��aliadas as condi�ões� a Ferreira decidiu a�an�ar e plantou �inha em terras que at� ali esta�am destinadas à produ��o de centeio. No in�cio eram apenas 20 hectares e toda a produ��o ia para Vinho do Porto� Bar�ca Velha e Vinha Grande. �s �inhas mais antigas têm cerca de 30 anos� mas actualmente a Leda dispõe de 160 hectares.Clones milagre – Numa altura em que a Touriga Nacional esta�a em ris�co� dada a sua bai�a rentabilidade� nos idos de 1987 foram plantados na Quinta da Leda 197 clones� utilizando a raiz 1103�P� para estudar a �ariabi�lidade gen�tica desta casta. � labuta ali desen�ol�ida� num �inhedo �ira�do a sul� a 181 metros de altitude� foi crucial para descobrir os clones com maior rentabilidade� relan�ando assim aquela que � hoje a casta mais badalada de Portugal.Brinquinho de adega – � adega da Leda� que recebeu a primeira �indi�ma em 2001� � e�emplar� na medida em que utiliza uma abordagem que permite ao enólogo o contacto ideal e fácil com o �inho. É composta por �árias sec�ões que se desen�ol�em na �ertical� dando prioridade à rece���o das u�as no plano superior e utilizando a for�a da gra�idade para a mo�imenta��o das massas ��nicas� o que garante um flu�o muito mais natural com ganhos de qualidade para o �inho.Sonho de enólogo – � pensar nos �inhos de topo de gama� e inspirada num balseiro de duas toneladas que desde 2007 ocupa�a um canto da adega da Leda� em 2009 foi criada uma linha especial� com um teg�o que lhe dá acesso e�clusi�o� totalmente imaginada pela equipa de eno�logia. «É o sonho de qualquer enólogo»� afirma Lu�s Sottomayor� a pro�pósito das seis cubas de cinco toneladas em forma troncocónica com controlo de temperatura. � �antagem� deslinda �ntónio Braga� � que «o seu formato pequeno permite uma separa��o minuciosa� um �erdadeiro trabalho de precis�o� fazendo um melhor apro�eitamento do trabalho que se faz at� à entrada das u�as na adega». Para Sottomayor� «� uma zona e�perimental� onde podemos me�er� �er e sentir o �inho». Com um robot pisador adaptado às cubas� remontagens manuais ou delestage� aqui a tecnologia n�o dá desculpas para que n�o se produzam �inhos soberbos.

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NASCIDO DE VINDIMAS EXCEPCIONAIS, SÓ NARIZES APURADOS PODEM DETERMINAR QUANDO É OU NÃO BARCA VELHA

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OS PRAZERES SÃO A REGRA!

Herança de puro prazer

Mediterrâneopão azeitevinho

EUNICE MUÑOZ:UMA VIDA EM PALCO

MARGARIDA GILA PAIXÃO DO CINEMA

MONTECRISTO Nº2CHEGA ÀS BANCAS

E HABANOS PEDEM PORTO

INVICTA NA ROTA

DO ESTUQUE

ÉVORADE FRESCOEM FRESCO

Nº 11 | II SÉRIE | ANO XIV | 5€

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Trabalho apaixonado, não pode ser de outra forma a centelha que implica construção de vinho. Nesta precisa medida está o enólogo Luís Sottomayor, que desde 2007 dirige a equipa de enologia de todas as marcas de vinho do Porto e Douro da Sogrape Vinhos. Aos ombros, Luís transporta ainda uma herança inolvidável… A de ter partilhado sonhos e trabalho com Fernando Nicolau de Almeida. Vamos escutá-lo.

A sua afirmação de que o Barca Velha «é 90 por cento uvas e 10 por cento de enologia» não é válida para todos os grandes vinhos?

Na realidade sim! Se é verdade que todos os vinhos precisam de boas uvas, os grandes vinhos vivem fundamentalmente da uma vi-ticultura de alta qualidade. Claro que um bom trabalho na adega é igualmente essencial, com a tecnologia e a paixão do enólogo a preservarem e temperarem aquilo que a natureza naquele ano ofe-receu. E se há vindimas em que a intervenção é mínima, eu diria que também há casos de grande surpresa!

Há sempre uma aposta em algumas vinhas…Sem dúvida. A experiência e o conhecimento que temos das quin-

tas incentivam-nos a olharmos para as diferentes parcelas de uma vinha de maneira diferente. São vários filhos do mesmo pai, cada um com a sua personalidade e comportamento! Na Quinta da Leda, de onde provém a grande parte do lote que é usado para Casa

Ferreirinha Barca Velha, fazemos uma viticultura de precisão. Isto significa que há determinadas vinhas que foram identificadas por terem consequentemente demonstrado uma qualidade acima da média, e nas quais fazemos uma forte aposta. Portanto, a estes 30 hectares, está alocada uma equipa da 18 pessoas cuja única função é acompanhar o ciclo vegetativo daquelas videiras, proporcionando--lhes as condições essenciais ao seu desenvolvimento.

O potencial de guarda do BV, em exagero, pode descaracterizar o vinho… E o que é um exagero?

Não diria que o potencial de guarda descaracteriza o vinho, mas se o encararmos como um produto vivo e natural, é normal que haja uma evolução.

Não obstante, e falando especificamente de Barca Velha, quando o vinho nasce, a sua robustez e estrutura são tão intensas e eviden-tes, que podem dificultar a sua compreensão enquanto jovem. Daí a Sogrape Vinhos assumir a responsabilidade de o preservar, e nós, enólogos, termos a paciência para aguardar a sua evolução até ao ponto em que temos prazer em prová-lo.

Mas o Luís já experimentou alguns «exageros» e fi cou espan�á experimentou alguns «exageros» e fi cou espan� e ficou espan�tado, não é?

Na realidade não devia ser novidade para mim, mas fico sem-pre surpreendido quando vejo Barca Velha antigos, porque a sua

A mandar no Barca Velha e não só, é o Luís

LUÍS SOTTOMAYOR: «QUANDO O BARCA VELHA NASCE, A SUA ROBUSTEZ E ESTRUTURA SÃO TÃO INTENSAS E EVIDENTES, QUE PODEM

DIFICULTAR A SUA COMPREENSÃO ENQUANTO JOVEM»

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capacidade de evolução é sem dúvida espantosa. Barca Velha 1957, por exemplo, que provei há três anos, estava ainda cheio de cor. Portanto exagero não será a palavra certa, porque ele aguentou, e bem, e mais aguentará!

Li que neste momento se acha um pouco só para as decisões, de-signadamente do BV. Estar só pode ser bom ou tem que ser mau?

Não me sinto só. A equipa de enologia Douro inclui seis provado�res que me acompanham nas provas, de quem recolho opiniões que são muito importantes na tomada de decisão final, que sendo exclu�sendo exclu�sivamente minha, é�o numa posição confortável.

O que pode expressar sobre Fernando Nicolau de Almeida? Teve «estórias» curiosas com ele?

As histórias com Fernando Nicolau de Almeida são muitas! Realmente tive a sorte de o conhecer e aprender com ele. Era uma pessoa com uma personalidade forte e com uma filosofia de vida muito particular, mas encantadora. Lembro�me das suas conver�sas sobre o nascimento de Barca Velha, das suas visitas aos forne�cedores de vinhos e histórias com eles. Recordo�me especialmente

que gostava dos vinhos quentes e nas provas preferia os vinhos de prensa, mais robustos e estruturados.

Há muita «discussão» na altura de se pensar em lançar uma co-lheita de BV?

Não. Se houver muita discussão, se houver dúvidas ou hesitações, então o vinho não é declarado Barca Velha. Para merecer este nome, o vinho não pode provocar qualquer tipo de desconfiança. Portanto, e falando especificamente de 2004, é uma decisão que começa na vindima e amadurece com o tempo.

O BV de 1999 foi o mais complexo da década? Sei que o consi-dera um vinho moderno… Como caracteriza um vinho moderno?

Se os diferentes anos e vindimas marcam o perfil do vinho, o estilo de Barca Velha, a sua identidade, permanecem intocáveis. É verdade que ao longo dos anos o vinho conseguiu modernizar�se, deixando de usar as madeiras de carvalho português que lhe davam caracte�rísticas mais rústicas. Com novas vinhas, novas tecnologias, novas abordagens, é inegável que o vinho evoluiu, mas mantendo�se sem�pre fiel à sua personalidade.

A percentagem de Touriga Nacional tem aumentado. Razões?A Touriga Nacional representa cerca de 30 por cento do encepa�

mento da Quinta da Leda, que é desde os anos 80 a principal ori�gem das uvas com destino a Barca Velha.

Aliás, numa altura em que a Touriga Nacional estava em risco dada a sua baixa rentabilidade, no final dos anos 80, foram planta�dos aqui 197 clones, utilizando a raiz 1103�P, para estudar a variabi�lidade genética desta casta. Este trabalho foi crucial para descobrir

A COLHEITA DE 2004 CONTEMPLA TOURIGA NACIONAL (40 POR CENTO), TOURIGA FRANCA (30), TINTA RORIZ (20), O RESTANTE É COMPOSTO POR TINTO CÃO

A EQUIPA DE ENOLOGIA DA QUINTA DA LEDA

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os clones com maior rentabilidade, relançando assim aquela que é hoje a casta mais conhecida de Portugal.

Na Vinha do Grilo, que ocupa uma área de 1,12 hectares, durante mais de dez anos, todos os clones eram pesados por forma a ava-liar a produção em termos de rentabilidade e, simultaneamente, fa-ziam-se na adega micro vinificações para analisar a qualidade dos vinhos resultantes.

Este trabalho deu-nos portanto um grande conhecimento da Touriga Nacional, que nos permite hoje em dia tirar cada vez mais partido desta casta.

Já a quantidade em que entra no lote, tem necessariamente a ver com as condições do ano.

Já Fernando Nicolau de Almeida ia buscar uvas aos terrenos mais altos… É uma questão decisiva?

A acidez é uma condição essencial a um vinho de guarda. As uvas da Quinta da Leda estão a uma altitude entre os 200 e os 300 me-tros, e conferem grande estrutura ao lote, que sai beneficiado com uvas de zonas mais altas para reforçar a acidez. No entanto, esta é novamente uma variável que depende das características do ano.

O Douro Superior é adorável. O que tem esta região que os «ou-tros Douros» não possuem?

No Douro Superior o terreno não é tão acidentado, há mais calor, é mais desértico, menos povoado, mais longe e mais misterioso. E portanto aqui nascem necessariamente vinhos com características diferentes. São vinhos mais robustos, mais estruturados, com maior incidência de aromas a fruta vermelha muito madura, cacau e notas minerais.

DE FIO A PAVIOCastas – Barca Velha é, desde a sua criação, elaborado com uvas se-leccionadas no Douro Superior, a diferentes altitudes. A colheita de 2004 contempla Touriga Nacional (40%), Touriga Franca (30%), Tin-ta Roriz (20%), o restante é composto por Tinto Cão. Todas estas castas provêm maioritariamente da Quinta da Leda (a bela, obriga-tório visitar!). Apenas uma pequena percentagem são oriundas de outros vinhedos situados a altitudes mais elevadas.Ano vitícola – 2004 foi um ano quente e seco. Apesar de no Inverno e Primavera ter chovido pouco, reduzindo a incidência de doenças. O início de Setembro ameaçava uma situação sanitária desfavorável devido à precipitação anormalmente elevada em Agosto (segundo mês mais chuvoso do ano). Contudo, as condições inverteram-se com uma vindima muito quente e seca, iniciada em meados de Se-tembro e que durou até ao final de Outubro, registando-se nesta fase final já fortes chuvadas, mas que acabaram por não afectar a quali-dade das uvas mais sensíveis, entretanto colhidas.Vindima e vinificação – As uvas colhidas à mão para Barca Velha 2004 foram vinificadas por castas separadas ou em lotes escolhidos na vinha e/ou à recepção na adega. Após desengace total e suave esmagamento, a fermentação alcoólica decorreu em cubas de aço inoxidável e lagares. Durante este período, procedeu-se a remonta-gens por bomba e pigeages com robots, com temperatura controla-da por sistema automático. Realizou-se uma adequada maceração, obtendo-se assim a extracção aromática e polifenólica desejada. No final, e no momento exigido por casta/lote, o vinho foi encubado e as suas massas prensadas, sendo o resultante da prensagem conserva-do à parte do de lágrima.Maturação e estágio – Os vinhos foram transportados para Vila Nova de Gaia logo após o final da maceração, onde depois das fer-mentações de acabamento foram submetidos a um estágio em bar-ricas de carvalho francês de 225 litros, 75 por cento de madeira nova e 25 por cento de madeira usada, durante aproximadamente 16 me-ses. O lote final foi elaborado com base na selecção continuada dos melhores vinhos, resultante das inúmeras provas e análises efectua-das durante este período aos diferentes lotes e barricas existentes. Nesta selecção organoléptica rigorosa, norteada pelos tradicionais princípios da Casa Ferreirinha, reside o verdadeiro «segredo» do Bar-ca Velha. Finalmente para os mais bem empertigados: Álcool: 13,5º; Acidez Total: 5,49; Açúcar: 3 gr/litro; pH: 3,57.

A LEDA CONFIGURA TODO UM NOVO DESAFIO ENOLÓGICO PARA A REGIÃO

CLÃ GUEDES

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Para margens de sonho ou em ligação a atributos reais, diz-se que os vinhos brancos podem enumerar uma mão cheia de seduções… ele-gância, amizade, alegria, descontracção, prazer, fresco, leve, macio e suave. Para a Associação Wine Lovers, «os vinhos brancos, verde, rosé e espumante são ricos em sensações. O verde e o rosé são tam-bém jovialidade e o tinto e o Porto são complexos».

Mais ou menos prédica, verdade é que os vinhos tintos ganham todas as batalhas, pelo menos no nosso território. Na observação

das vendas, os tintos concitam 56 por cento do consumo, contra os 30,2 dos brancos, e veja-se o texto em detalhe nestas páginas. Irritação é aquele tipo de consumidores que amiúde lançam torpe-dos aos brancos, ao género de vinhos é tinto… Facto é que segundo uma caterva enorme de especialistas, hoje em dia os brancos passa-ram a ser consumidos durante todo o ano. Se abordarmos mercados externos, como os países nórdicos, é essa a grande realidade.

Era uma vez… Não há muitos anos a produção de brancos entre

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA FOTOS JOÃO FRANCISCO VILHENA

A causa é branca!Não é só pelos odores do Verão que se alinha esta prosa. Contas feitas, o hábito pelos vinhos brancos já não é exclusivo do tempo estival. São produtos em que a leveza e o álcool moderado concitam as preferências de milhentos consumidores, entre nós e além-fronteiras. Como diz o outro… Deus fez o tinto, o branco é invenção do homem.

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nós era falha… Pela pequena produção, pela fraca qualidade da generalidade. O mercado não conseguia instigar os consu-midores para esse conceito vínico, mesmo que os preços fossem muito inferiores aos tintos, de resto, caso que ocorre ainda. São outros contos… Ainda assim, os enólogos de renome afirmam que é praticamente sempre mais caro fazer um bom branco do que um bom tinto…

Até que, num salto de gigante, a maio-ria esmagadora dos produtores decidiram construir brancos bem estruturados, que «já não provocavam dores de cabeça»… Foi o tempo em que as exportações dispara-ram e, entendemos, era preciso satisfazer inúmeros mercados externos que pediam branco, mais branco.

Hoje, entre nós, a construção de vinhos brancos é absolutamente notável. Nenhum vinhateiro lhe foge, contando-se por mui-tas centenas as marcas. Com um reparo muito importante: brancos gastronómicos cavaram também o caminho. Deixaram de ser apenas vinhos de «intervalo» entre re-feições, mero aperitivo ou só bom para o veraneio. De tal maneira que conseguem ombrear com tintos para fazer vocação à mesa. Vinho é tinto? Qual quê!

Auscultando um conhecedor de vinhos, como Raul Riba D’Ave, proprietário da Directwine, uma causa está relacionada com a expansão dos brancos: «O mercado está a pedir vinhos mais leves e menos al-coólicos, havendo uma tendência do con-sumidor para pensar que os brancos são mais leves que os tintos – o que em mui-tos nem sequer é verdade – pode ser uma boa razão para justificar o tal aumento de vendas». Por este diapasão alinha também Luís Sottomayor, esse mesmo, o enólogo do Barca Velha: «Como em todos os secto-res, no vinho eu diria que também há ten-dências. E os vinhos leves, com níveis de

álcool mais baixos, estão sem dúvida a captar a atenção dos consu-midores. Hoje em dia produzem-se vinhos melhores, não só bran-cos, mas tintos também». No mourejo da causa, outra condição a extrair por Raul: «A crença de que só o vinho tinto é que faz bem à saúde… Deve-se esclarecer que os brancos, em cuja produção se utiliza o removimento de borras [vulgo bâtonnage] e ou se apliquem macerações peliculares longas, também vão buscar à pele das uvas, da mesma forma que os tintos, os polifenóis e outras substâncias que tão bem fazem à saúde, acabando estes vinhos por ter característi-cas, se bem que em menor proporção, pelo menos similares aos seus congéneres tintos».

Na senda das crenças está a questão da «impossibilidade» dos brancos não envelhecerem… Raul lança do seu alforge: «Destaco três exemplos de vinhos feitos em Portugal que já deram provas ex-traordinárias no que respeita à sua passagem pelo tempo. Quem é que ainda não provou um bom Alvarinho de Monção/Melgaço

com 10 ou mais anos de garrafa?». Conclusivo: «Não é vergonha nenhuma dizer-se que os melhores exemplos destes vinhos se asse-melham à nobreza dos grandes brancos da Borgonha, tal o gabarito! E quem ainda não ouviu falar dos vinhos da casta Encruzado na re-gião do Dão? Vejam o testemunho daqueles que provaram os bran-cos do Centro de Estudos de Nelas, alguns deles com mais de 40 anos e a mostrarem-se absolutamente fantásticos! E como último exemplo, o fabuloso vinho de Bucelas, tão cativante quando jovem e tão absolutamente extraordinário quando envelhecido na garrafa, a fazer lembrar os grandes Riesling do vale do Mosela, na Alemanha».

No jogo desta condição esbranquiçada, Domingos Soares Franco é, incontornavelmente, um defensor da causa, como ele soletra, «após o french paradox, eu nunca acreditei que o branco desapare-cesse, inclusive em novas plantações púnhamos castas brancas em vez de tintas. Sempre aconselhei a plantar também uvas brancas, pois mais tarde o consumo iria aumentar. Acho que a melhor saída para branco continua no nosso país, porque, por muito que nos custe a admitir, a qualidade em geral é inferior à maioria do vinho produzido lá fora». Facto é que a José Maria da Fonseca continua a apostar em branco, consolidando marcas e plantando castas.

Para esta espécie de távola redonda vem também à liça António Saramago, a cumprir agora 50 anos de enologia: «Estou contra aqueles que dizem que branco não é bom. Os brancos têm ascen-dido bastante junto das pessoas de camadas mais jovens, de resto, nas práticas iniciáticas eles são uma porta de entrada». É Saramago, um dos grandes defensores de uma casta prodígio, como o Castelão.

Do lado do comércio pousa a Garrafeira de Campo de Ourique, trabalho denotado de Arlindo Santos, garboso enófilo. De há cinco há seis anos que o consumo aumentou naquela loja. Para Santos, «em parte porque os tintos são muito iguais, acho que há uma certa saturação devido a isso. Depois, o consumidor mais co-nhecedor acede aos brancos, até pelo caso dos seus preços serem mais baixos. Acresce o facto dos vinhos brancos já envelhecerem muito bem».

Importa ainda, segundo o nosso interlocutor, «que hoje os bran-cos deixaram de ser sazonais, eu pelo menos vendo-os durante todo o ano». E o negócio vai de vento-em-popa, «até porque o branco mais caro custa 30 euros». Já no apimentado de Arlindo, «Deus fez o tinto, o branco é invenção do homem».

Socorrendo-nos ainda de Raul Riba D’Ave, ele bem deixa à ma-neira de conclusão, citamos: «Temos que assinalar a contribuição que os vinhos brancos estrangeiros deram quando começaram a entrar no mercado nacional há cerca de dez anos. Estamos a falar essencialmente de vinhos que vieram do Novo Mundo (Argentina, Chile, Nova Zelândia, Austrália e África do Sul), com o seu perfil limpo e aromático, alguns com excelente madeira, outros apenas fruta, abrindo as mentalidades dos nossos consumidores e sendo seguidos de perto pelos produtores portugueses que logo percebe-s de perto pelos produtores portugueses que logo percebe-ram que tipos de vinho branco tinham que produzir: aqueles que agradassem ao consumidor».

OS VINHOS LEVES, COM NÍVEIS DE ÁLCOOL MAIS BAIXOS, ESTÃO SEM DÚVIDA A CAPTAR A ATENÇÃO DOS CONSUMIDORES

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Juntámos, cabo de trabalhos para reunir em dia conveniente, um painel de provadores para o repto que lançámos – prova cega de vinhos brancos. Outro cabo de trabalhos foi escolher os 14 brancos que faríamos alinhar. A EPICUR procedeu a uma primeira esco-lha, depois confrontámo-la com a opinião de diversos especialistas e assim ficou para a mesa: Quinta da Casa Amarela Selection 2011, Aveleda Reserva da Família 2011,

Soalheiro Alvarinho 2011, Redoma Niepoort 2010, Quinta dos Carvalhais Encruzado 2010, Luís Pato Maria Gomes 2010, Quinta da Murta Clássico Bucelas 2007, Domingos Soares Franco Colecção Privada Verdelho 2011, Dolium Escolha 2010, Crasto 2011, Alves de Sousa Branco da Gaivosa 2011, Ribbonwood 2011 (Nova Zelândia), Michel Lynch 2010 (Bordéus) e Crios Torrontes 2010 (Argentina).

Quanto ao douto painel, alinhámos: Manuel Moreira, o nosso mais cotado som-melier, o chefe José Cordeiro, os enólo-gos António Ventura e Vera Moreira, Gil Regueiro, produtor duriense, Óscar Correia, director de Food e Beverage, Arlindo Santos, proprietário da Garrafeira de Campo de Ourique, e Mário Zambujal, digamos a re-presentar os consumidores, com um de-sempenho a dar valores que deixou os

A nossa selecção

ÓSCAR CORREIA, MÁRIO ZAMBUJAL, ANTÓNIO VENTURA, VERA MOREIRA, JOSÉ CORDEIRO, GIL REGUEIRO, MANUEL MOREIRA E ARLINDO SANTOS

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especialistas espantados. Como é norma, embora nada o imponha, prova que se quer cega decorre no silêncio dos deuses, todos os intervenientes concentrados, ora es-preitando a cor e a limpidez, descobrindo aromas que envolvem narizes, bocas por fim que vão deslindar néctares. Mas ainda assim saltaram alguns comentários deste género, para a geral pensar… «Faz-me lem-brar um produtor; Ele engana no nariz; Estou meio constipado (aqui Cordeiro a queixar-se); Agressivo; Acidez agressiva; Madeira que tem alguma apara» (cientista Moreira, só podia ser ele).

Conclusa a tarefa, a descontracção, essa sim, passava inteirinha para o al-inteirinha para o al-moço, servido a contento no restaurante/

charcutaria Aromas e Sabores, onde pon-tifica Arlindo Santos. Para os vinhos apre-sentados ao almoço, escolha nossa, ainda pensámos sujeitar o painel a mais uma prova cega… mas era castigo maior. Agora assim, procedendo-se a um casamento de brancos com tintos. Lá ficaram espoja-dos Les Carisannes Sauvignon Blanc, Vin de Pays du Val de Loire, França, 2010, um dos presentes de Raul Riba D’Ave e da sua empresa Directwine, ele; de resto, que apre-sentou todos os produtos estrangeiros, e ainda os portugueses que comercializa cá: Casa do Valle Grande Escolha Branco 2010 e Rubrica Branco 2010. Para além destes bran-cos, aposta também no PL (Paulo Laureano/Laura Regueiro) Velho Mundo IX.

RIBBONWOOD (16,62), O ESTRANGEIRO DA NOVA ZELÂNDIA A FAZER DAS SUAS ENTRE A PORTUGUESADA; MICHEL LYNCH (16,43) FRANCÊS A PUXAR PELOS GALÕES

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DESPIQUE NAS PRATELEIRASDe acordo com a análise efectuada pelo Instituto da Vinha e do Vinho, mais de metade dos vinhos vendidos em Portugal (56,5 por cento em 2011) são tintos e a tendência tem-se mantido estável nos últimos três anos.O vinho branco está na segunda linha de escolha e representa 32 por cento das vendas efectuadas em 2011, registando um aumento de dois pontos desde 2009. O vinho rosé tem vindo a crescer nas vendas (mais 110 mil litros em 2011), mas é uma opção que só preenche 1,8 por cento do total do volume comercializado. As lojas de distribuição (hipers, supers e lojas tradicionais – canal Off-trade) representaram 73,7 por cento das quantidades de vinho vendido em 2011. Também aqui, os tintos são os mais escolhidos (55 por cento), seguindo-se os vinhos brancos (30 por cento) e, por último, os rosés (2 por cento). Para uma parte dos vinhos vendidos (13 por cento) não estão disponíveis dados relativos à cor. A restauração (canal On-trade) representou 26,3 por cento das vendas de vinho em 2011, com os vinhos brancos a serem mais requisitados (37 por cento) do que nas lojas de distribuição. Todavia, à hora da refeição os tintos continuam a ser os mais escolhidos (62 por cento), sendo o rosé aquele que é menos selecionado (1 por cento).

(Fonte: Instituto da Vinha e do Vinho)

Da banda dos tintos, as seguintes feras: sublime Quinta de La Rosa Reserva 1997, Quinta da Gaivosa 2008, Fiuza Reserva 1996 e Aequinoctium Autumnus 2009 Grande Reserva, José Carvalheira Wines Creator. Mas guardado estava o bocado… Arlindo Santos abriu uma das poucas gar-rafas que guarda a sete chaves, da anti-quíssima Noval: Da Silvas, um Porto Seco (muito pálido, como está inserido no ró-tulo), obra e graça de António José da Silva.

Apetece o atrevimento de dizer que já não há coisas assim.

Até que a tarde se fez solene… E quem ganha, numa pontuação de 0 a 20? Aveleda no primeiro posto (17,43); e a eito os se-guintes, por ordem de melhores notas: Ribbonwood (16,62), o estrangeiro da Nova Zelândia a fazer das suas entre a portugue-sada; Michel Lynch (16,43) francês a puxar pelos galões, aroma sublime; para ficar em quarto lugar, outro forasteiro, o argentino

Crios Torrontes (16,37). Mais nenhum es-trangeiro pelo caminho, ordem ganhadora que resta: 5º Crasto (16,18), Alves de Sousa (16), Casa Amarela (15,87), Soalheiro (15,50), ex aequo Luís Pato e Carvalhais (15,31), Dolium (15,12), Redoma (14,87), Murta (12,75) e Soares Franco (12).

Como diria o outro… Não se aceitam re-clamações, só aclamações. Com uma certeza - ganhou especialmente a causa dos vinhos brancos.

Quadro de méritoBranco em prova cega, com 14 em compita renhida. Onde os estrangeiros fizeram mossa, apelando para os primeiros lugares da classificação. Salvou a honra portuguesa o excelente Aveleda. A esta escolha presidiu o critério de produtos com um custo médio de dez euros. De 0 a 20, ei-los…

1º Aveleda Reserva da Família 2011 (17,43)

2º Ribbonwood 2011 Nova Zelândia (16,62)

3º Michel Lynch 2010 Bordéus (16,43)

4º Crios Torrontes 2010 Argentina (16,37)

5º Crasto 2011 (16,18)

6º Alves de Sousa Branco da Gaivosa 2011 (16)

7º Quinta da Casa Amarela Selection 2011 (15,87)

8º Soalheiro Alvarinho 2011 (15,50)

9º Quinta dos Carvalhais Encruzado 2010 e Luís

Pato Maria Gomes 2010 (15,31)

10º Dolium Escolha 2010 (15,12)

11º Redoma Niepoort 2010 (14,87)

12º Quinta da Murta Clássico Bucelas 2007 (12,75)

13º Domingos Soares Franco Colecção Privada

Verdelho 2011 (12)

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Paulo Laureano Vinus brinda-nos com a vertigem de quatro vinhos brancos, produtos da colheita de 2011. Não contente com a enorme empreitada, traz ainda um exemplar espumante. No cerne conti-nua a saga de só castas portuguesas, refrão de que faz muita questão este enólogo alentejano. Mas desta feita a fazer uma perninha na re-gião de Bucelas, alvitre para o Paulo Laureano Bucelas Vinho Branco 2011. Emblemas de composição, Arinto e Esgana Cão. Como nos re-fere, «é um branco que traduz tudo aquilo que distinguiu, distingue e distinguirá Bucelas do resto do mundo vitivinícola».

Na linha de «um branco para todos os dias», outro produto é o Paulo Laureano Clássico Branco 2011. Com o Antão Vaz a fazer as graças deste clássico, pede ainda ajuda ao Roupeiro e uma reduzida percentagem de Fernão Pires. Como nos explica Paulo, «o Antão Vaz confere fruta tropical, o Roupeiro dá-lhe notas de citrinos e o Fernão Pires subtis notas florais».

A bem do clima, 2011 foi uma vindima marcada por uma produção mais reduzida, resultante de um período de clima muito instável na Primavera, que agudizou alguns problemas sanitários. No entanto,

uma maturação suave, marcada por dias quentes e noites frescas à beira da escarpa da Vidigueira, da Serra de Portel, permiti-ram um enorme equilíbrio nas uvas das cas-tas brancas de Antão Vaz, Roupeiro, Arinto e Fernão Pires.

O senhor que se segue é o Paulo Laureano Premium Branco 2011, Antão Vaz todo-po-deroso, escoltado em percentagens peque-nas pelo Arinto e uma pitada de Fernão Pires. Branco claramente gastronómico transporta a enorme vantagem de estar particularmente preparado para guarda, longevidade é o tim-bre. O Antão Vaz foi fermentado em barricas novas de carvalho francês, enquanto o Arinto e o Fernão Pires, após uma pequena macera-ção pelicular, fermentaram em inox.

E vem o último moicano… Antão Vaz a solo, Paulo Laureano Reserve Branco 2011. Segundo a cábula do enólogo, «Antão Vaz é uma casta rara, cujo habitat preferencial são as terras xistosas da Vidigueira e Vila de Frades. Este é marcado claramente pelo terroir da Vinea Julieta na Vidigueira, que o distingue». Uma fermentação cuidada, em barricas de carvalho francês, acentua a sua

enorme personalidade, sem que a madeira esconda algum dos seus excelsos caracteres varietais.

O último da fileira fica estabelecido como Paulo Laureano Bucelas Vinho Espumante de Qualidade Bruto 2006. Produto de uma par-ceria com António Pinto, que representa a actual geração vinícola da família Camilo Alves, trata-se de um espumante cujo vinho base foi vinificado em 2006, em barricas de carvalho francês de segundo uso. Tendo como castas base o Esgana Cão e o Arinto, a espuman-tização foi operada pelo método clássico, ocorrendo em Janeiro de 2007. Abracadabra, o vinho precisou depois de uma autólise (está-gio na garrafa em contacto com a borra da levedura) de mais de 50 meses! Após este longo estágio, o dégorgement começou a ser feito em Janeiro deste ano. E aí está ele!

Entronizado em absoluto no efeito branco, Paulo exclama que «as pessoas começaram a perceber a sua identidade própria». Algo, porém, rejeita à partida… «Não aos brancos só assentes em levedu-ras». Por fim, lança o que por vezes se esquece: «Em termos gas-tronómicos, 50 por cento dela está vocacionada para os brancos».

Paulo muito branco

JOR

GE SIM

ÃO

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António Saramago é o caso acabado de um vetusto enólogo, nos tem-pos em que a designação era pouco representada. E veja-se… São 50 anos a meter a mão na massa. Mas, no fundo, a trabalhar para outros, o António não tem sequer um pedaço de chão para plantar vinhas próprias. A sua tarefa especial nos vinhos é a de consultor. Neste afã já chegou a consultorias em 14 poisos, de Norte a Sul. Hoje são bem menos, assim quer.

Num dia passado em Azeitão, onde cantámos os parabéns, exibiu as suas melhores chancelas e como anunciou aos convidados, «não vêm só para almoçar, mas também para trabalhar». Toma que é democrá-tico. De uma caterva de vinhos assinados pelo António, ficaram na retina e no céu-da-boca: Aldeias de Juromenha Garrafeira, um tinto cheio de alma, de 2005; um clássico Tapada de Coelheiros, tinto de 2007, uma casa onde Saramago trabalha há um ror de anos e o Risco 2010, um branco de alto coturno, nascido numa coutada das terras setubalenses.

Onde a festa clamou mais beleza foi quando, à maneira de melhor aniversário, escorreram uma saraivada de vinhos em que o enólogo se empertigou em particular: António Saramago Reserva 2009, António Saramago Moscatel de Setúbal Reserva 2007 e o Cinquenta A.S., 2009. Todos os seus vinhos da região são vinificados na Quinta de Catralvos, uvas também compradas e em abono da melhor selecção. Lá diz ele: «É um grande risco ter uma vinha. Os custos são sempre os mesmos, mas se um ano é ruinoso…»

Espreitando a saga antonina, começa a trabalhar aos 14 anos de idade na José Maria da Fonseca, mais tarde corre por conta e risco, já feita especialização em Enologia, dedicando-se à actividade de con-sultor, a Tapada de Coelheiros foi a primeira empresa que lhe deu trabalho, depois vieram muitas outras. Graça é o seu dote para o cla-rinete… O instrumento deu-lhe para integrar a banda da Força Área, cumprindo assim a tropa durante quatro anos, acomodado ao con-forto lisboeta da base militar do aeroporto. Nos intervalos da música, que eram muitos, continuava a trabalhar a vinha. Há gente com sorte, dizemos nós.

Apaniguado em força da região de Setúbal, de onde é oriundo, de-fende-a com unhas e dentes: «Aqui temos uma enorme identidade e o que pode acontecer a uma zona é perdê-la. Depois é fazer todos os dias melhor. E falo por mim, que tenho o privilégio da idade». Uma

coisa é segura: o seu filho António, um rapagão jovem, está preparado para assegurar a terceira geração da família e já mete bem a cara nas vinhaças.

Dedicado actualmente a prestar consultoria a cinco casa vínicas, re-partido entre o Alentejo e a Bairrada, a quinta é grande empreitada… Não provámos o vinho, mas é oriundo do Brasil, estado de Santa Catarina e saravá. O António, afinal, achou o Brasil e ameaça sur-preender. Esperamos estar cá para provar, promessa que ficou com-binada para um próximo encontro, quiçá quando Saramago quiser comemorar mais parabéns.

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA

Que bom ter 50 anosNunca teve terrunho seu. Trabalha para outros e já aconselhou 14 quintas, hoje menos, assim quer, em abono de estar mais concentrado em fazer todos os dias melhor. É António Saramago, enólogo de respeito a comemorar 50 anos de carreira. Mas como Portugal já não lhe chegava, ataca o Brasil e lá vem vinho com sotaque.

António Saramago

ANTÓNIO SARAMAGO RESERVA 2009, ANTÓNIO SARAMAGO MOSCATEL DE SETÚBAL RESERVA 2007 E O CINQUENTA A.S., 2009

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Venha o Sri LankaE esta… A Quinta do Quetzal acaba de receber uma encomenda muito especial, vinda do Sri Lanka. Instalar uma vinha, recheada de tecno-logia de vinificação de timbre lusitano. O ideó- logo dos vinhedos será Rui Reguinga que pro-cederá à plantação de dois campos experimen-tais, incorporando Syrah, Alicante Bouschet, Merlot e hossanas para a Touriga Nacional. Do lado dos asiáticos entram com um casta autóc-tone com nuances do nosso Moscatel. Segundo «adivinha» Reguinga, «vai ser possível elaborar um vinho frutado, aromático, equilibrado e com um estilo que se aproxima ao Novo Mun-do». O projecto, que já foi apresentado no ga-binete do presidente daquele país, estende-se a uma adega com capacidade para 150.000 garrafas. Quanto à produção estimada é de 75 por cento de vinho tinto e 25 de rosé. O target que se pretende alcançar são os hotéis e restau-rantes da capital Colombo, os resorts turísticos situados junto às praias do Índico e os milhares de emigrantes da Europa, Austrália e Canadá. Presentemente, o consumo de vinho naquelas paragens está nas 450 mil garrafas/ano. Um negócio, certamente, para florescer.

FAVAIOS HARD TRICKÀ maneira do ludopédico, hard trick para os genero-sos de Favaios, passando no difícil crivo dos con-cursos made in England. Tudo aconteceu no De-canter World Wine Awards e lá foram três condeco-rações – Moscatel Favaios 1980, ouro; prata para o Reserva e bronze no caso do Favaios 10 anos. Os Fa-vaios inventariados são fruto de colheitas de gran-de qualidade, envelhecidas em tonéis de madeira de castanho.

UVA É ESPUMANTESorvemos um espumante de belo recorte, o Min-gorra bruto rosé 2010. Mais uma nova cartada dos produtos Henrique Uva, como ele soletra sempre, «um apelo forte à partilha». E com o con-tributo de um enólogo que não se distrai quando se fala de qualidade, caso de Pedro Hipólito. Tecido a partir de Aragonez e trabalhado por método clássico, aqui fica este M, que deu à vida lá para os lados de Beja.

SAEM TALHASFica um «guia» para orientar a navegação dos consumidores… A distinção das melhores co-lheitas de 2011 na produção, atribuídas pela Confraria dos Enófilos do Alentejo. Nos tintos, em primeiro, Talha de Ouro para a Fundação Eugénio de Almeida, na prata a adega Coope-rativa de Borba e bronze para a Herdade da Malhadinha Nova. Quanto aos brancos, os três do pódio: Adega Mayor, Serrano Mira e, por último, Ervideira. No capítulo dos rosés: Ervi-deira, Fundação Eugénio de Almeida e Coope-rativa Agrícola de Reguengos de Monsaraz.

ARROCHELLA COLHEITA E RESERVA Douro Superior marche… Daí saídos, dois novos vinhos da Casa d´Arrochella. Destaque particular para o Grandes Quintas Colheita Tinto 2009, alcandora-do ao pódio com uma medalha de prata na Vinalies Internationales de Paris. Assinado pelo enólogo Luís Soares, estagiou dez meses em barricas de carvalho francês, tendo sido produzidas 50 mil garrafas, PVP de 7,5 €. O senhor que se segue é o Grandes Quintas Reserva Tinto 2009, concebido a partir de mais de 80 por cento de vinhas velhas, predominando Touriga Nacional, Touriga Fran-ca, Tinta Roriz e Tinta Barroca.

EDUARDO MIRAGAIA

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ADEGA NA RIBALTAO projecto muito catita da nova adega da duriense Quinta do Vallado vai disputar a final dos meritórios prémios FAD, um dos mais relevantes galardões da Arquitectura Ibérica. Há um ano atrás, refira-se que o Vallado já embandeirava em arco com a referência que lhe tinha sido feita pela emblemática revista Wallpaper, salientando o estilo contemporâneo-histórico da ampliação e modernização da adega. Vai ganhar? Daqui a poucos dias se verá.

ELE É NEIVA CORREIAO enólogo José Neiva Correia, e a sua DFJ Vinhos, que gere, (há pouco tempo alvo de uma entrevista na EPICUR), não pára de ganhar. Desta feita foi considerada a Companhia Portuguesa de Vinhos do ano de 2012 e em relação ao mercado norte--americano. A distinção foi atribuída no concurso New York International Wine Competition. A empre-sa não se quedou por aí, vendo ainda consagrados quatro dos seus vinhos com medalhas de prata: Portada Branco 2011, DFJ Alvarinho, Chardonnay 2011 e DFJ Pinot Noir & Alfrocheiro. Refira-se que o NYWC caracteriza-se por ser o único concurso cujos juízes são compradores de vinhos. Neiva Cor-reia é um dos mais antigos enólogos portugueses, e com a sua DFJ a exportar cerca de 90 por cento dos vinhos para o estrangeiro, estando presente em força nos Estados Unidos. E dá-se ao luxo de, numa linha de garrafas, «bordar» em banho de ouro as gaivotas que se destacam no rótulo…

PORTUGALIDADEBoas novas vêm de Azeitão, oráculo onde debuta a José Maria da Fonseca. Assinalando-se a nova colheita do tinto alentejano José de Sousa 2010. Um gran-de vinho, palavra de escuteiro! A bem da tradição, este vinho tem história, ora atente: mantendo viva uma tradição iniciada pelos Romanos, há mais de 2.000 anos, a adega José de Sousa está equipada com 114 ânforas de barro, um método de fermentação ancestral e raro. Para além da adega tradicional, abaixo do nível do solo, com as ânforas e dois lagares para a pisa, também a adega mo-derna com 44 tanques de inox e a tec-nologia indispensável para a fermenta-ção de tintos e brancos. Chegado ao mercado, José de Sousa alinha as castas Grand Noir (45 por cento), Trincadeira (35) e Aragonês (20). O envelhecimento foi obtido 30 por cento em carvalho novo americano e francês. PVP reco-mendado de 7,49 €. Outra nova é a al-teração do rótulo Periquita. Segundo António Soares Franco, «este projecto é fundamental para o futuro da marca e da nossa empresa, reforçando o posi-cionamento como símbolo da Portuga-lidade».

GRANDE DÉCADA!Numa mesma década, serem declarados quatro Porto vintages, é feito de monta. O que aconteceu com a Taylor´s! Puxando pelos galões, a companhia decidiu comemorar a façanha lançando uma caixa onde constam em berço de ouro os vintages 2000, 2003, 2007 e 2009. Mas trata-se de uma edição exclusiva de 100 exemplares numerados a um custo de 400 €. Facto é que a primeira década deste século foi invulgarmente abundante em grandes anos para o Porto Vintage clássico, ao contrário das últimas décadas do século XX, em que cada uma produziu três vintages. Para concluir, e o que deve ser bem sabido: a declaração de vintage apenas acontece em anos de excepcional qualidade, numa combinação entre a dádiva da natureza e a mestria de David Guimaraens, o poderoso enólogo da casa.

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DOIS VINHOS, SEIS MEDALHASA Quinta do Couquinho, ali em pleno Dou-ro Superior, já nos habituou a excelentes vinhos. E vem mais uma consagração in-ternacional da parte do Decanter World Wine Awards na The London International Wine Fair. Ao todo, estiveram presentes a concurso mais de 12 mil vinhos de várias partidas do mundo, analisados pela cater-va de 400 especialistas de prova, oriundos de 25 países. A empresa colocou a concur-so apenas duas referências, o Encostas do Gavião 2009 e o Grande Reserva 2009. Ambos foram distinguidos nos três con-cursos, tendo sido premiados com um to-tal de seis medalhas que incluem uma Outstanding Silver Medal, três medalhas de Prata, uma de Bronze e uma Commenda-tion. Refira-se que o Encostas do Gavião é o lançamento mais recente da quinta.

DITO E FEITOMais um pleito para engrande-cer um néctar nacional, Cortes de Cima Homenagem a Hans Christian Andersen 2009. Pas-sagem directa para o livro Top Ten World´s Best Syrah, concur-so francês Syrah du Monde 2012. Quer dizer, inscrito entre os dez melhores Syrah de todo o mun-do. Mais categórico quando esta alforria é desferida no confron-to entre mais de 445 vinhos da casta Syrah de 24 países. O feito valeu uma medalha de ouro.

ALVARINHO SEMPRE!O único vinhateiro do Douro a apostar num monovarietal de Al-varinho é questão de honra para a Real Companhia Velha. E acaba de dar à luz o Quinta de Cidrô Alva-rinho 2011. Palavra para Pedro Silva Reis: «O Alvarinho tem de-monstrado um excelente compor-tamento no Douro, dando origem a vinhos de enorme complexidade e persistência. O Quinta do Cidrô Alvarinho é um vinho expressivo e cheio de personalidade, que com-bina de forma perfeita a frescura e exuberância aromática tão carac-terísticas desta casta com a con-centração e complexidade do Dou-ro». Mais palavras, para quê?! Disse bem o administrador da casa.

PARA A PRAIA E NÃO SÓNão escondem a condição de vi-nho de aperitivo – esquecemos por vezes que isso existe e que é agra-dável – e é o Fiuza 3 Castas Nature. Um vinho frisante branco, claro, de baixa graduação alcoólica (10%), atinente às castas Vital, Arinto e Sauvignon. Para Fiuza a prédica: «vai ao encontro de uma nova geração de apreciadores jovens». Para nós, é para sorver a meio da tarde na praia ou no campo, amor- ou no campo, amor-tecendo um sol fustigante.

GUARDA VALENTECasa da Ínsua é desde logo uma edificação de res-peito, solar barroco, antigamente palácio da Casa Real. Mas outros ventos acrescentam-lhe notorie-dade, no avatar de produtor de vinho. Para confe-rir recentemente a distinção de medalha de prata no exigente Concurso Mundial de Vinhos de Bru-xelas. Apresentou a pleito o Casa da Ínsua Tinto Reserva 2006, vestido com as castas Touriga Na-cional, cruzado Cabernet Sauvignon e Tinta Roriz. Longos 18 meses a estagiar em barricas de carva-lho francês. Da casa proclamam a possibilidade de ser guardado por mais de 20 anos.

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BEBÉ CRESCE A OLHOS VISTOSPé-ante-pé a Herdade do Rocim cumpre agora cinco anos de existência. Trata-se de um projecto notável, que tem à frente uma jovem de garra, Catarina Vieira. E quando em curtos anos conseguiu um vinho alentejano de grande estaleca. Ca-tarina estudou a preceito, a eito, os enigmas da vinha e num ápice chegou a con-clusões inabaláveis de como apresentar vinhos de timbre marcante. E ainda… desenvolveu categoricamente uma estratégia de divulgação dos seus produtos que é absolutamente exemplar. Contornou à melhor a horrenda crise, avançou, está aí para vencer.

NÃO TORCER O NARIZOutra vinhaça à qual muitos torcem o nariz, não acreditando que é feito de uvas, enfim… Para nós tem a ver minimamente com o esplendor do Sol. É o Gazela Sparkling Dry White. Um espumante concebido pelo grande Miguel Pessanha, um esteio do quadro enológico da Sogrape. É arrancado às castas Maria Gomes, Arinto, Cerceal e Bical, mis-tura fina. Como Miguel dá a táctica, «as uvas da Bairrada foram colhidas cedo para ga-rantir uma boa frescura e acidez, sendo prensadas com grande suavidade. O mosto obti-do após uma cuidadosa clarificação foi lentamente fermentado a baixa temperatura. O vinho assim obtido sofreu uma segunda fermentação lenta, em cuba fechada (método Charmat), a cerca de 16º C, sendo depois estabilizado, clarificado e engarrafado».

COMPANHIA PEJADA DE BRANCOSHá cada vez mais produtores em-á cada vez mais produtores em- cada vez mais produtores em-pertigados na construção de brancos. Se muita boa gente con-sidera que vinho é tinto, desen-ganem-se. Um bom branco, e temos entre nós excelentes notas dessas, pode valer muito mais que um tinto. Facto é que já não há hoje em dia produtor que se furte a apresentar brancos. Veja--se o caso concreto da Compa-nhia das Quintas, entre muitos inúmeros produtores, que expla-na de uma assentada vários bran-cos. Corridinho para o Prova Régia Premium 2011, Arinto, contorno inexcedível da zona de Bucelas, mais Quinta do Cardo Síria 2011, resultante de uma se-lecção cuidada de uvas desta cas-ta, proveniente de vinhas de alti-tude, plantadas a 700 metros, para fechar o círculo com o Pan-cas Branco 2011, blend de Arinto, Chardonnay e Vital.

SEXY APPEALA nota é sexy, como o vinho, obra do enólogo António Maçanita, viticultura de David Booth: Sexy Sparkling Rosé Brut. E mais uma vinho, neste caso na dimensão de um rosé brut, feito de uvas… sem qualquer tipo de escape grossei-ro… Dizem-nos que foi inspirado nos métodos de produção dos champagne rosé. Uma mistura de quatro colheitas diferentes,

fermentado e envelhecido em garrafa. Compõem-no Tou-riga Nacional e Castelão,

casta virtuosa, cinquenta por cento de cada uma delas. Estão à mão de se-mear 13 mil garrafas. PVP puxado: 12,99 €.

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Dois regalos em particular vão chegar até nós quando Outubro bata no calendário. Referência expressa ao Romeo y Julieta Petit Churchills e ao Cohiba Piramides Extra. Do lado do Romeo é ofere-cido um puro para fumar sem delongas, um havano de cepo grosso e de longitude reduzida, basta ver: 20 milímetros. Predicados, liga aro-mática e equilibrada, excelente combustão. A seu favor concorre o facto de usar tabaco de Vuelta Abajo DOP, a região categórica do ta-baco produzido na ilha. É apresentado em caixas de 25 unidades, po-dendo também ser adquirido em tubo de alumínio.

A outra pérola, Cohiba Piramides Extra, apresenta-se com um cepo 54 por 160 milímetros de largura e é o primeiro figurado que perma-necerá na gama Cohiba, quanto ao mais, é uma vitola de galera única e em relação a todas as marcas dos puros cubanos. Especificando, o Extra insere-se na linha clássica da Cohiba, com uma fermentação adicional, elaborada com tabacos de San Juan y Martínez (DOP) e de San Luis (DOP), em Vuelta Abajo. Um predicado importante cen-tra-se na nova cinta, de múltiplos holográficos visíveis e invisíveis, a tanto obriga a segurança contra a tentação de contrafação. Sobre a sua comercialização apresenta-se em caixas de dez unidades e em tubos de alumínio.

Outro galante cavaleiro é o Romeo y Julieta Churchills Reserva Cosecha 2008, cepo 47x178 mm de largo. Para os anais dos puros, é a primeira reserva da marca em 137 anos de história. E precio-sismo: a liga é elaborada com uma selecção dos melhores tabacos de Vuelta Abajo, especialmente envelhecidos durante três anos; foi supervisionada por um painel composto pelos melhores 50 mestres tabaqueiros.

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA

Três mosqueteiros

Estão a chegar até nós três puros de respeito. Por um lado, um Petit Robusto a pensar nos fumadores que não abdicam de um charuto, mas que não dispõem de muito tempo para lhe ligar. De outro lado, está um figurado da Cohiba, este sim exigindo mais calma e próprio para os momentos de repouso. Nesta calha, olhos bem abertos para o Reserva 2008 da Romeo.

Romeo Cosecha e Petit, Cohiba Extra

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NOSSO DIANão é o pomposo Festival dos Habanos, que decorre todos os anos em Cuba, este é o nosso, que vai na terceira jornada. Por ali é dar azo a testar uma panóplia imensa de puros. Não só, há provas de con-fronto entre charutos e bebidas, para conferir aquela que melhor con-diz com os sinais de fumo. É ainda uma mostra onde pode aprender a construir o seu puro. O III Habanos Day vai ocorrer no próximo mês de Outubro. Coordenadas para melhor informação: www.facebook.com/pages/habanos-day-portugal/25206288759.

LIVRO A NÃO PERDERPara quem quer dar brilho a uma estante, há um livro que convém possuir: The Illustrated History of Cigars, obra maior de Le Roy e Szafran. Para além dos puros, designadamente a sua história, também são aconselhados os vinhos que podem estabelecer a melhor ligação. E para quem estiver disposto a inteirar-se dos meandros da planta do tabaco, fica a saber tudinho. Notas sobre gastronomia são ainda de ter em conta. E para remate, informação detalhada sobre avaliações de marcas e vitolas.

RUMO A PARISPara quem acede a Paris, há um lugar de culto bonito de se ver: trata--se do emblemático estabelecimento de charutos Tabac George V. São mais de 30 anos de existência, sublinhando o excelente atendi-mento. Ao leme está Maurice Sermet, que nos propõe puros cubanos, dominicanos e hondurenhos. A George V é justamente tida como o melhor local para adquirir charutos em Paris. E há praticamente de tudo, desde o sublime Montecristo A, passando pelo magnífico Partagas Lusitanias. Coordenada: Av. Gorge V, 22.

HAVANEZA NO PORTONo ano em que se comemoram os 148 aniversários da fundação da Casa Havaneza do lisboeta Chiado, outra casa está destinada aos fu-madores de puros, no Porto. Era uma velha ambição do importador Empor/Casa Havaneza. A nova loja fica perto da zona do Bessa, na Rua Arquitecto Cassiano Barbosa, loja nº 40 (telefone 226174171). Na linha das suas congéneres de Lisboa, está presente toda a linha de puros cubanos e ainda mais, no que toca aos acessórios: Porsche Design, ST. Dupont, Peterson, Big Ben e Humidif.

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No topo da pirâmide, são as mãos das mulheres e homens que enrolam as folhas de tabaco, os enroladores, ou se preferirmos o nome mais tradicional, os torcedores, que com a sua empolgante arte conseguem criar essa maravilha que é um charuto Premium. E não, como conta essa pequena estória algo desgastada, que os melhores charutos cuba-nos seriam enrolados entre as coxas de jo-vens virgens…

A confecção de charutos feitos totalmente à mão reside numa arte centenária que pouco se tem alterado nos últimos 150 anos e que vai sendo transmitida de geração para geração. Para se ser reconhecido como tor-cedor deverá exigir-se em média uma prá-tica de seis anos, e na ordem de uma dezena para adquirir a necessária destreza que lhe permita enrolar com perfeição qualquer for-mato. Um charuto deficientemente enro-lado vai afectar o tiro, a combustão, o aroma e o sabor.

A GALERAO centro de uma fábrica de charutos é a galera. É uma grande sala preenchida com mesas corridas onde os torcedores se sen-tam, lado a lado, para confeccionar os cha-rutos. Nas fábricas mais tradicionais, faz lembrar uma sala de aula, já que vamos en-contrar o chefe da galera sentado numa grande secretária que está sobre um estrado, virado para os torcedores.

Em regra uma galera é formada por de-zenas de torcedores, havendo fábricas que têm duas a três centenas destes especialis-tas. Cada �construtor� disp�e de um es-�construtor� disp�e de um es- disp�e de um es-casso número de ferramentas: uma pequena prancheta de madeira; uma lâmina bem afiada, chamada chaveta; uma guilhotina; um frasco com cola vegetal e, acima de tudo, os seus dedos. Em média um torcedor pode produzir 100 a 120 charutos por dia depen-dendo dos respectivos formatos.

No século XIX era tradição cada galera ter o seu leitor, o lector de tabaqueria, que lia em voz alta romances enquanto os torcedo-res enrolavam os charutos. Os livros eram

escolhidos através da votação dos interessa-dos e, entre os autores, contavam-se nomes como Cervantes, bem como traduç�es de Shakespeare e Dickens. Hoje, em algumas fábricas, para além de serem lidas as notícias do jornal do dia ouve-se essencialmente mú-sica transmitida pela rádio.

LEQUE OU ACORDEÃOO processo começa pela sabedoria de reu-nir a quantidade exacta de tabaco, das três qualidades, para compor a tripa. É impor-tante a forma como as folhas são dobradas em leque ou acordeão, no sentido do com-primento, de modo a deixar pequenos canais para passar o ar, garantia de uma combustão uniforme. Segue-se a colocação do capote, que não é mais que uma primeira folha que envolve toda a tripa, que a segura e lhe dá consistência.

Este conjunto da tripa com capote chama--se bunche ou tirulo e tem já um aspecto de charuto, mas despido, sem roupa, e ainda sem a sua forma completamente cilíndrica. Para adquirir essa forma o bunche é colocado num molde. Para cada formato o seu molde. Estes moldes são prensados entre 15 e 60 mi-nutos para obrigar o tabaco a atingir a forma desejada.

O torcedor vai rodando o bunche den-tro do molde, para que a forma cilíndrica se estenda a todo corpo do futuro charuto. Segue-se a delicada colocação da folha da capa, que exige uma grande habilidade e em que só a experiência é capaz de garantir a perfeição, especialmente a parte final da operação, que consiste no remate da folha na cabeça do charuto, isto é, na ponta que leva-mos aos lábios. Esta operação de fechar a ca-beça através de uma tampa, a perilla, consiste em recortar uma pequena porção de tabaco, que é depois colada com a cola vegetal na ca-beça do charuto.

Há, todavia, uma forma de enrolar a capa de forma diferente, conhecida como de rabo de porco, cujo remate da cabeça dispensa a colocação posterior de um bocado de folha de tabaco. O remate final é feito com a

TEXTO MARTIM SANTIAGO

Enrola, enrolaVamos sondar uma mão cheia de palavras… No cruzamento do que significa galera, enrolar ou secagem e envelhecimento. Para ir ainda mais longe: cores dos tabacos, a utilidade das cintas e aconselhamentos práticos para degustar um puro.

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própria folha da capa, mas esta técnica tam-bém designada como flag exige destreza e grande experiência.

Finalmente, segue-se a fase de cortar com a guilhotina o charuto, rigorosamente, à me-dida certa, de acordo com o formato que se está a produzir. Os puros depois de confec-cionados são sujeitos a um processo rigoroso de controlo de qualidade, para confirmar o seu correcto diâmetro e comprimento, a perfeição da colocação da capa e o nível de enchimento da tripa. Todos os charutos são ainda colocados em câmaras de fumigação,

em vácuo, para eliminar qualquer insecto que possa estar acamado no tabaco, e que, possivelmente, chegue a incubar, apare-cendo mais tarde e destruindo o charuto. Esta operação de fumigação não é mui-tas vezes, infelizmente, eficiente; por isso, é aconselhável não armazenar e conservar charutos nos humidificadores a temperatu-ras muito superiores a 20º C.

Nos últimos anos, foram instaladas nas fá-bricas de charutos as máquinas de tiro para verificar a circulação interna do ar nos bun-ches, antes de serem aplicadas as respectivas

capas, de forma a garantir uma tiragem de fumo adequada. Qualquer tripa que haja sido mal enrolada é desta forma identificada e rejeitada pelo controlo de qualidade, e terá que ser novamente enrolada da forma cor-recta. A introdução deste controlo coincide também com o quase desaparecimento de charutos com tiro deficiente, que obrigava o fumador a um esforço suplementar de as-piração para conseguir um volume de fumo correcto à sua degustação.

SECAGEM E ENVELHECIMENTOToda a operação de confecção do charuto exige que as folhas sejam humedecidas para que se possa trabalhar melhor, daí que quando termina a confecção de um charuto este esteja húmido. Por isso, os charutos, após serem produzidos, são armazenados em salas forradas com madeira de cedro, os escaparates e com temperatura e humidade controladas, durante um período de tempo de pelo menos três semanas, mas podem aí estar alguns meses. As produções especiais chegam a estar guardadas mais de um ano nestes escaparates, ganhando mais quali-dade. Mas é também nesta operação de se-cagem que os charutos de uma certa marca e com uma certo formato, que são armaze-nados juntos, ganham também mais homo-geneidade pois os seus aromas fundem-se entre si. As últimas operações de todo o pro-cesso consistem na selecção, de acordo com as suas cores, na colocação das respectivas cintas e no seu acondicionamento nas caixas de cedro.

A COR DO PUROA cor de um charuto é a da folha de tabaco que foi usada como capa para a sua confec-ção. É o tal «vestido» que adorna o puro e que constitui o primeiro elemento revelador da sua qualidade. E a capa tem uma grande importância, como já referimos. As folhas cultivadas nos Tapados têm uma excelente qualidade: são sedosas, sem excesso de ner-vuras, suficientemente oleosas e com uma cor homogénea. É então a partir da cor da folha das capas que podemos tipificar as vá-rias cores que um charuto pode ter, e que são sete. Porém, a tradição cubana restringe as cores apenas a cinco variedades, e são as que abaixo estão sublinhadas. Não encontrare-mos Havanos com capas cujas cores sejam Double Claro e Oscuro. Vejamos então as várias cores: Double Claro, a capa tem uma cor esverdeada clara. Esta cor é conseguida através de um processo de secagem rápido, com recurso ao uso de calor, de forma a fixar a clorofila nas folhas. Esta cor de capa foi muito apreciada nos Estados Unidos, tendo agora menos apreciadores, enquanto O CENTRO DE UMA FÁBRICA DE CHARUTOS É A GALERA

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os fumadores europeus, no geral, nunca a tiveram em boa conta. Também é desig-nada como Claro Claro, ou Candela. Claro: é uma capa com uma cor castanha amarelada. Alcança-se esta cor das folhas colhidas das plantas que se desenvolveram nos Tapados. As folhas, para terem esta tonalidade, são co-lhidas mais cedo e são secas ao ar livre. São folhas com sabor pouco intenso. É a cor mais tradicional da folha Connecticut. Colorado Claro: é uma cor que está entre castanha clara a castanha. Na maioria das vezes são folhas cultivadas ao ar livre, outras vezes nos Tapados. Também é conhecida como cor «natural». Colorado: é a cor central da es-cala. É castanha avermelhada. Tem um sabor forte, embora de aroma suave, e as suas fo-lhas procedem das plantações em Tapados.

Os fumadores ingleses têm uma certa pre-ferência pelo Colorado Maduro, uma cor mais escura que o colorado, com folhas com proveniência dos Tapados e, como a colo-rado, tem um acentuado sabor e aroma sub-til. Maduro: é uma cor castanha escura. Pode oscilar desde um castanho forte até quase à cor negra. Como o nome sugere, estas folhas precisaram de um período de maior amadu-recimento. Foram sujeitas a operações de fermentação mais longas e, principalmente, durante a fermentação, alcançaram tempe-raturas mais elevadas do que aquelas que são as normais (35 - 40 graus). Uma capa do tipo Maduro marca um charuto pelo seu forte sabor, muitas vezes um pouco adocicado e pelo aroma suave. São folhas geralmente muito acetinadas e oleosas.

Oscuro: é a cor negra. E são raros os charu-tos que se apresentam com este tipo de capa. A marca ONIX, produzida na República Dominicana, recorre a este tipo de capa, que importa do México. As folhas, originá-rias dos Tapados, são colhidas tardiamente e o processo de fermentação é necessaria-mente mais longo e as temperaturas mais elevadas. O excesso de fermentação das fo-lhas provoca com frequência certa aspereza na sua superfície. Esta cor é também muitas vezes chamada de «negro» ou de double ma-duro. Têm um sabor forte, mas são pouco aromáticas.

Apesar de estarem tipificadas estas sete cores na fase final da produção, o escogedor identifica mais de meia centena de tons, que só olhos bens treinados conseguem distin-guir. De facto, as zonas de fronteira entre as cores são de difícil destrinça. Constitui um desafio interessante, aquando de uma visita a uma das fábricas, tentar fazer uma selecção de acordo com as cores. E isto por-que uma caixa de charutos Premium não deve acondicionar charutos de coloração diferente. É inaceitável! Apenas diferentes

matizes dentro da mesma cor e respeitando a tradição, ou seja, da tonalidade mais escura para a mais clara, da esquerda para a direita, são aceites.

Julgamos poder concluir, assim, que a cor na apreciação de um charuto é em primeiro lugar uma valência estética, mas a forma como se consegue determinada cor acaba por ter influência no sabor e no aroma. O que não tem, ao contrário do que muitos julgam, é uma correlação directa com a for-taleza do charuto. Isto é, um charuto com a cor Claro ou Colorado Claro não tem que ser necessariamente um puro suave, pois isso dependerá também, em grande me-dida, da tripa que o compõe e do capote. Mas também é verdade, há que reconhecê--lo, que há uma certa tradição para optar por uma capa de cor mais escura, quando deter-minada marca tem uma combinação de fo-lhas, a liga, orientada para ter um sabor mais forte. É o caso do Bolivar que ostenta uma capa com a cor Maduro e é uma marca de sabor forte. E ao invés, no H. Upman, que tem uma cor Claro ou Colorado Claro, o seu sabor é reconhecido como mais suave ou li-geiro. Enquanto o Montecristo tem uma cor Colorado Claro e está classificado como sendo uma marca com sabor Médio para Forte. O fumador tradicional português médio tem predilecção pelas cores médias/

para escuras, ou seja, entre o Colorado Claro e o Colorado Maduro, o que reflecte afinal as marcas tradicionalmente mais fumadas, a Montecristo, a Romeu y Julieta, a Partagas, a que se juntou o Cohiba nos últimos anos.

A CINTAA origem da cinta, ou anilla, data do século XVIII e foi criada para evitar que a tinta da nicotina, contida no fumo do charuto, manchasse os dedos dos fumadores ou a brancura das suas luvas. Já que alguma aris-tocracia desse tempo fumaria também com luvas brancas calçadas. Conta-se mesmo que a Imperatriz Catarina II da Rússia usa-ria umas pequenas faixas de cetim à volta do charuto para evitar que os seus dedos ganhassem a cor amarelada da nicotina. Mas foi o holandês Gustav Bock, produtor de charutos Havanos, que em meados do sé-culo XIX criou uma pequena cinta de papel a rodear a cabeça do puro, imprimindo a sua marca, para diferenciar os seus produtos dos demais no mercado. E essa inovação foi ime-diatamente seguida por todos os fabricantes, tradição que se mantém até aos nossos dias. A sua função é hoje essencialmente deco-rativa, mas servirá também como elemento identificador da marca.

Nem todos os charutos Premium têm cinta, ou anilla. Mas uma grande maioria dos Premium ostenta este adereço. A co-locação da cinta é uma operação delicada, geralmente feita por mãos femininas, a Anilladora, e é executada na fase final da confecção, antes de serem acondicionados nas caixas de madeira. A sua fixação é feita com o recurso a uma cola vegetal e a sua po-sição é junto à cabeça do charuto. Alguns apreciadores julgam que devem remover a cinta antes de começarem a fumar… Nada de mais errado, pois arriscam-se a danifi-car a capa. Mas se desejam de facto retirar a cinta, devem fazê-lo passado algum tempo após o charuto estar aceso, pois o calor fará com que a cola vegetal amoleça e a opera-ção de remoção da cinta seja facilitada. As cintas têm impressas as respectivas marcas identificadoras, sendo algumas delas muito discretas, como a Montecristo, ou elegan-tes como a Cohiba, enquanto outras seguem um conceito mais tradicional, recorrendo a imagens coloridas e com intensos doura-dos e vermelhos das marcas mais clássicas, como a Romeu y Julieta, Hoyo de Monterrey, Bolivar, entre outras. São muitos os aprecia-dores que guardam as cintas dos charutos que degustaram com mais prazer, e existem mesmo coleccionadores que se dedicam à Vitofilia, que inclui o coleccionismo não só de cintas, mas também das vistas das dife-rentes marcas.

CATARINA II DA RÚSSIA USAVA FAIXAS DE CETIM À VOLTA DO CHARUTO PARA EVITAR QUE OS SEUS DEDOS GANHASSEM A COR AMARELADA DA NICOTINA

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William Grant era um homem voluntarioso que sabia bem o que queria. No Verão de 1886, começou a construir a sua própria desti-laria, literalmente. Com as suas próprias mãos, da mulher, dos seus sete filhos e duas filhas. No dia de Natal do ano seguinte, jorrava o primeiro spirit, dum pequeno alambique. Logo ali baptizou a desti-laria como Glenfiddich, o Vale do Veado.

125 anos depois, jorram 10 milhões de litros por ano, a maior quantidade produzida por uma destilaria para a sua própria marca. Recentemente, a Diageo construiu uma ainda maior, a Roseisle, mas trata-se sobretudo de uma operação industrial que visa abas-tecer os seus blends, em substituição de compras a terceiros. Mas noutros aspectos a Glenfiddich continua a ser única:

- Mantém uma tanoaria, controlando assim a construção e quali-dade dos seus cascos;

- Controla todo o processo no mesmo local até ao engarrafa-mento. As outras destilarias, concentram o engarrafamento das suas marcas num local mais central, utilizando �gua corrente des-�gua corrente des- corrente des-mineralizada. A Glenfiddich em contrapartida utiliza a própria �gua da sua nascente no engarrafamento, reforçando o seu car�cter de terroir como ninguém;

- A cuba de casamento comporta o conteúdo de 30 cascos. Ali du-rante nove longos meses procede-se ao seu casamento para uma li-gação homogénea dos diferentes componentes arom�ticos;

- Após sete gerações, continua a ser uma empresa familiar, caso único entre os grandes grupos. A diferença é que agora a gestão é profissional mas o capital continua na família;

- Para uma destilaria tão grande os seus alambiques são surpreen-dentemente pequenos, o que d� origem a whiskies «à moda antiga» muito redondos e complexos, em que os componentes sulfurosos e vegetais foram removidos graças ao intenso contacto com o cobre;

- Foi a primeira destilaria a focar-se quase exclusivamente na sua própria marca enquanto as restantes forneciam a quase totalidade do seu malte para os blends do grupo. A Glenfiddich foi assim pio-neira neste desenvolvimento crucial que lhe permitiu desde cedo ser a marca de Single Malt com maior reconhecimento a manter a liderança do mercado mundial nos nossos dias, face a grupos finan-ceiramente bem mais fortes.

Esse seu pioneirismo foi uma verdadeira descoberta de um novo mundo, o dos Single Malts, praticamente desconhecidos até então

do consumidor. Os seus pergaminhos conferem-lhe com naturali-dade toda a autoridade para lançar no mercado um lote limitado, intitulado The Age of Discovery. Trata-se de uma versão que pre-tende homenagear os Portugueses pelas Descobertas de um mundo novo que arregalaram no seu tempo os olhos dos Europeus. É um lote com 19 anos de maturação total em cascos, nos quais previa-mente havia estagiado vinho Sherry (carvalho europeu) e Bourbon Whiskey (carvalho americano). No último ano, deu-se o casamento em cascos que previamente contiveram Vinho da Madeira… por sinal a primeira das Descobertas dos Portugueses no longínquo ano de 1419.

Os cascos de Madeira apresentam comprovadamente dos me-lhores resultados no acabamento de lotes, tornando-os redondos, licorosos e com ricas notas de marmelada. Esta versão apresenta aromas de figo maduro, fruta caramelizada. Na boca, revela-se rico e apicantado, revelando passas e especiarias (canela e pimenta preta moída, gengibre). O final é algo seco, sedoso e com permanência.

Os Portugueses sentir-se-ão devidamente honrados com esta ho-menagem. Não ser� f�cil adquiri-lo, dada a exígua quantidade que veio para Portugal. Veja em www.whisky.com.pt

Descobertas

LUÍS GARCIABOLSA DE WHISKY(

Tudo se iniciou nos idos de 1886. Cumpridos 125 anos da saga deste whisky, está erigido o monumento anual de 10 milhões de litros. Aí está Glenfiddich. E uma verdadeira descoberta de um novo mundo, o dos Single Malts, praticamente desconhecidos até então do consumidor.

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Ao longo das décadas, as versões descapotáveis da Classe E da Mercedes-Benz eram penalizadas, em nossa opinião, por um visual demasiado sóbrio. Geração após geração, faltava-lhes aquele elã dos seus «irmãos» mais arrojados da Classe SL, capazes de fazer virar cabeças e de deixar a salivar os transeuntes com quem nos cruza-mos. Até que, de súbito, toda a Classe E – dos sedans às carrinhas, passando pelos coupés – foi alvo de uma alteração estética radical. Ganhou elegância e solidez. E conquistou, sobretudo, uma base, em termos de design, capaz de originar uma deliciosa versão cabriolet.

Filosoficamente, nada se alterou nos E Cabrio. Continuamos a estar perante um 2+2 que tem, sobre os SL, uma vantagem gritante em termos de versatilidade. Os lugares traseiros, não sendo muito generosos, logram transportar dois adultos em razoável comodi-dade. O porta-bagagens, com a sua capacidade de 300 litros, per-mite transportar alguma coisa – mas nem se pense que lá cabem as malas de férias de uma família. A mudança gritante surge, já o dis-semos, ao nível estético. Mantendo o air de famille, surge um desca-potável elegante, que respira encanto por todos os poros – ou por todas as válvulas.

A versão que ensaiámos estava dotada da motorização diesel de 2.2 litros, que debita 204 cavalos. Não sendo um monstro de potência,

é um propulsor equilibrado, capaz de satisfazer a esmagadora maio-ria dos utilizadores. A caixa de velocidades automática que o equipa mostra-se especialmente adequada para este motor, com o elevado binário (500 Nm é obra!) a permitir acelerações e recuperações in-teressantes e agradáveis para quem aprecia um comportamento desportivo (mas sem exageros, porque os radares das autoridades estão onde menos se espera). A suspensão será, talvez, um tudo--nada dura em excesso para estradas deterioradas, mas assegura um comportamento saudável quando se pretende andar mais depressa.

Há duas grandes desvantagens neste carro, é verdade. A primeira diz respeito ao preço. Os 64 mil euros da versão de base não são um exagero, é certo. No entanto, quando queremos personalizá-lo com algumas opções interessantes (do simples ar condicionado automá-tico aos sofisticados AIRSCARF e AIRCAP, passando pelos estofos em pele e pelo sistema de som, por exemplo), as coisas começam a agravar-se e, em menos de um ápice, chegamos aos já proibitivos 80 mil euros. Mas, no fim, ficamos com um carro tão bom!...

Ah!, é verdade, falta a segunda desvantagem! Pois é, após 72 horas com um carro lindo, branco com capota vermelha, de que disfrutá-mos durante um fim-de-semana ensolarado, tivemos de o devolver aos seus legítimos proprietários. Não é justo.

TEXTO FREDERICO VALARINHO

Amor de VerãoProcura um automóvel com capacidade para viajar com a família? Necessita de espaço para bagagens? Não tem capacidade para gastar mais de 80 mil euros num carro? Então esqueça o Mercedes E250 CDI Cabrio! Mas se, em contrapartida, quer aproveitar o Verão para passear num automóvel lindo, então compre-o. Já!

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Custa uns milhões, mas a indústria automóvel, ao mais elevado nível de competição, não se dispensa de ensaiar soluções para futuros próximos ou distantes, muitas das vezes nem uma coisa nem outra, ficando na gaveta… Nome de código: protótipos. Desta feita, damos sinal de uma mão-cheia deles.

O primeiro que sai da calha vem do imaginário da Peugeot, Urban Crossover. Eles chamam-lhe «impertinência e sedução». À pala do estudo que foi agora apresentado, os senhores Peugeot necessitam, alvitre nosso, de justificar a condição do sonho… «No início desta década, havia em todo o mundo 30 cidades com mais de dez mi-lhões de pessoas. Num horizonte de 2050, 5,3 mil milhões de habi-tantes do planeta viverão em mega-metrópoles. A Peugeot, sensível à evolução do mundo que a rodeia, alimenta uma reflexão sobre um automóvel polivalente, compacto, tão à vontade no ecossistema ur-bano como nas estradas abertas», garante a marca.

O Urban Crossover está presentemente a ser exibido no Salão de Pequim, noblesse oblige, retornando à Europa apenas em Setembro,

onde poderá ser avaliado no Salão Automóvel de Paris. Curioso é que as equipas que gizaram o modelo apresentam um pendor for-temente internacional, pensaram o popó a partir de Paris (secção Estilo Peugeot), Xangai e São Paulo. Neste mote, apuraram-se sen-sibilidades de continentes bem diferentes. Entrando em linha de conta com o seu carácter marcadamente urbano, este Crossover tem dimensões relativamente contidas: um comprimento de 4,14 me-tros, uma largura de 1,74 m. Para os criadores, trata-se antes de mais de um veículo «aventureiro pelo seu estilo atlético e pleno de raça, que oferece um poder de sedução fora do comum e universal»… Queira isto o que queira dizer, perdoem a intromissão da nossa la-piseira. Trocado por miúdos, o Urban nos dizeres seguintes já tem uma pretensão mais clara: conjugar o requinte de uma berlina com a impertinência de um SUV; abono ainda para pensar numa habita-bilidade boa e numa função polivalente.

Para os insignes da marca, é hora de puxarem, os galões: «Quisemos levar mais longe esta reflexão, com base numa forte

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA

Peugeot, Porsche e Lamborghini em versões de protótipos para regalar a vista. Nem sempre passam a produção em série, mas de um modo geral buscam nessa condição concept-car novas soluções tecnológicas. E eventualmente antecipam o futuro! Essencialmente naquilo que quanto a nós interessa mais… Menor consumo de combustível, mais segurança e, já agora, maior gozo de condução.

Futuro ao volante

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credibilidade no domínio dos veículos compactos, re-sultante de mais de 15 milhões de unidades das séries 200 e numa legitimidade recente, já mais notável no domínio do Crossover, com o sucesso do 3008, do qual se venderam em todo o mundo 368.000 exemplares». Ainda mais para o rol: «A apresentação do concept car SXC no Salão de Xangai em 2011. A marca conjuga estes dois domínios de excelência no seio de um con-cept car».

PORSCHE ELÉCTRICONo olhar para o senhor que se segue, ficam em riste os protótipos do Porsche 918 Spyder. Mas estes já a inicia-rem testes à tripa forra. É um super-desportivo a pensar, contudo, para o futuro. Mas um futuro próximo: dado agora o passo em frente para a conclusão do espada com testes já iniciados, o Spyder vai entrar em produção em Setembro de 2013. Dizem-nos que «tal como planeado, com os primeiros clientes, vão receber os seus veículos antes do final desse ano. O que estamos a fazer com o 918 Spyder é redefinir o prazer de condução, a eficiência e a performance».

Para uma explicação mais clara das intenções registamos no papel: «Os protótipos possuem uma camuflagem que remonta aos histó-ricos modelos de competição Porsche 917, ignorando os retoques finais do 918 Spyder. O foco está na interação entre os componentes sofisticados do acionamento individual». A saber, «a combinação entre o motor de combustão e os dois motores eléctricos – um no eixo dianteiro e outro na linha de transmissão, que actua nas rodas traseiras – obriga a novas exigências no desenvolvimento das estra-tégias de funcionamento».

O mais espantoso vem a seguir, especialmente no que concerne aos consumos: estando-se a referir uma máquina de competição pura, desenvolvendo mais de 770 cavalos, os consumos rondam os três litros por cada 100 quilómetros percorridos… Assim, o autor destas linhas quer um Porsche. E o leitor não?

Mais, num fartote de engrenagens, apresenta uma estrutura mono-carlinga totalmente elaborada em polímero reforçado de fibra de carbono; a aerodinâmica totalmente adaptável, o eixo tra-seiro adaptativo e o inovador sistema de escape com saídas para cima. E remata a marca: «No processo, o 918 Spyder oferece um vis-lumbre do que a Porsche Intelligent Performance permitirá fazer no futuro».

LAMBORGHINI SEM RETROVISORESAgora, para o senhor que se segue, este último da saga protótipos pode bem ser o primeiro, na ordem do texto, especialmente, para nós, pela beleza que lhe toca. É o Lamborghini Urus. Patente para embasbacar no Salão Automóvel de Pequim, falam desde logo os seus 600 cavalos, diz a marca que «transferiu para o Urus todo o seu know-how tecnológico de vanguarda, quer no aspecto dinâ-mico quer de design e construção ultra leve». Indo aos detalhes, que são muitos, oferece o valor mais baixo de emissões CO2 em relação a toda a concorrência desta categoria; assentos são quatro, mas de espaço à fartazana; distância ao solo variável; e obrigató-ria tracção permanente às quatro rodas. No interior tudo é de alta qualidade, onde a fibra de carbono cava os seus efeitos.

Não se sabe quanto vai custar, desconhecendo-se quando vai para a produção, uma coisa está descortinada: os mercados-alvo são principalmente os Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha,

Rússia, Médio Oriente e, claro, China. Uma coisa, porém, está esclarecida: o volume de produção anual poderá ser estimado em cerca de três mil automóveis.

Este concept-car está pejado de engenhocas curiosas. Escolhe-se esta de muitas: não há espe-lhos retrovisores exteriores, mas sim pequenas câmaras aerodinâmicas optimizadas, que moni-torizam as condições de tráfego atrás do veículo. Estas imagens são exibidas através de dois ecrãs TFT colocados em posições ergonomicamente perfeitas, à esquerda e à direita do cockpit.

E remate de Urus… Como tem sido tradição na Lamborghini, o nome do protótipo é derivado uma vez mais do mundo do toureiro. O Urus, tam-bém conhecido como Aurochs, é uma das grandes e ancestrais raças de touro. O touro Urus pode medir até 1,8 metros de largura.

PORSCHE QUE CONSOME TRÊS LITROS AOS 100

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420 cavalosAbeira-se de nós, final de Julho, a excita-ção emblemática do novo Porsche Cayenne GTS. É o SUV que entra na segunda gera-ção. «Para variar», nota dos tempos actuais, a estreia ocorreu recentemente em Pequim. Receita soletrada pela marca: um motor mais potente, mais rápido na entrega de po-tência, chassis mais firme e uma altura ao solo mais reduzida, a acentuar-lhe frenesim desportivo. Tiro na mouche: 420 cavalos a partir do propulsor V8. E mais para orde-nar… arranque dos 0 aos 100 km/h em 5,7 segundos. No limite estonteante, uma velo-cidade máxima de 261 km/h. Preço a partir dos 131.448 €.

Bentley chinesaContinuando a falar da China… Para a Bentley (representada em Portugal pela SIVA) esse é já o seu primeiro mercado de vendas, destronando os Estados Unidos. A avaliar, as vendas na China aumentaram 84,9 por cento, o que representa a comer-cialização de 578 carros. Relativamente ao velho continente, bons auspícios também, tudo em crescendo: 34,4 por cento (207 automóveis).

Exploradores urbanosA onda dos SUV (Sport Utility Vehicle) está para durar, sejam maiorzinhos ou pe-queninos, neste último caso o novíssimo Chevrolet Trax, com estreia mundial agen-dada para o Salão Automóvel de Paris, Setembro próximo. A chegada do Trax está prevista para a Primavera de 2013, seguindo--se ao novo Malibu e à aguardada carrinha Cruze. Mesmo antes da apresentação mun-dial, o regozijo pelo lançamento está pa-tente nas declarações da patroa da marca para a Europa, Susan Docherty: «O Trax representa para a Chevrolet a entrada num segmento que se encontra em crescimento, oferecendo flexibilidade, grande economia de combustível e o estilo de condução que os exploradores urbanos apreciam».

Confiar na santaA Hyundai é um símbolo automóvel em relação ao qual são apreciáveis os seus sal-tos qualitativos! Mais um, como é a ter-ceira geração do Santa Fé, há pouco tempo exibido no brilho nova-iorquino do Salão Internacional do Automóvel. Para a ardó-sia das principais características, é um SUV longo, mais baixo e largo que o seu anteces-sor, mas com os mesmos 2 700 milímetros de distância entre eixos. A gama de motores para a Europa inclui um bloco a gasolina e dois diesel, com potências entre os 150 e os 200 cavalos.

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A nata do estiloMuito aprumada, a Citroën acaba de inaugurar um suco-da--barbatana: Direcção de Estilo. O alvo principal centra-se na linha DS, a que chamam «modelos de elevada distinção», fi-cando à parte os modelos C. Dois designers de alto coturno estão encarregados da tarefa: para o DS fica Thierry Metroz, para o C dirige Alexandre Malval. Segundo declarações do director-geral do emblema, Frédéric Banzet, «para acompa-nhar a subida em gama e a internacionalização da Citroën, designadamente na China, é importante reforçar esta dife-renciação de estilos entre a gama C e a linha DS nos seus es-paços respectivos». A China, sempre ela nas intenções, é o que é… Mas, por DS, leonino é o DS3 R3, vero popó despor-tivo que acaba de deixar os ateliers de Versalhes, não sabemos se a Joana Vasconcelos o mirou, lá do alto da sua exposição… Em suma, uma arma da marca que vai a tudo que é rali. Brinde para trêsTrês benquistos modelos da Audi acabam de ser condecora-dos, e já estão para nós à venda. Referência às gamas A6, A6 Avant e A7 Sportback. E qual é o factor de elevação de con-ceito? Aquilo a que os engenheiros da marca chamam uma jóia tecnológica, assente na motorização 3.0 TDI Biturbo, de 313 puxados cavalos. Característica muito própria de um construtor que se preze, para além do novel propulsor, espreite-se o A6 limousine e o Avant, construídos em alu-mínio e aço, pedindo ainda meças pelo carácter híbrido. Relativamente ao A7 Sportback, característica de dois em um… coupé e limousine. Remetendo ainda para a palpitação da construção da carroçaria com múltiplas peças em alumí-nio e até a incorporação de um chassis desportivo.

Mais crescidoTem tudo como numa boa feira de bricabraque … É o Astra da Opel. Para além de renovar o design, sugere mais motores e tecnologia. Indo por partes, no capítulo dos propulsores propõe um 2.0 BiTurbo CDTI de 195 cavalos e um 2.0 Turbo a gasolina que monta possantes 280 cavalos. Importante ainda o novo sedan de quatro portas, que completa a gama. Puxando pela tecnologia do modelo, veja-se: câmara dian-teira Opel Eye de segunda geração, com Detecção de Sinais de Trânsito, o sistema de Aviso de Saída de Faixa, a Indicação de Distância e o Alerta de Colisão Dianteira. É tudo a apitar, mal os sensores descubram maroscas…

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Deixar o alcatrãoA Volkswagen empertiga-se para que a sua clientela faça uma perni-nha fora das estradas de alcatrão e lá vem o Passat Alltrack. E como comunicam, ipsis verbis: «Muitos condutores – desde esquiadores a apaixonados pela vela, passando por caçadores, etc. – procuram um veículo versátil e robusto, com características para o fora de es-trada, não dispensando ainda um generoso espaço para passageiros

e bagagens e dotado de características para o todo o terreno». Já co-nhecíamos de ginjeira a versão Passat Variant, mas esta nova solu-ção Alltrack incorpora novos pára-choques, guarda-lamas e soleiras das portas de proporções mais avantajadas. Para além disso, como não podia deixar de ser, apresenta uma maior altura ao solo, mon-tagem de protecções nas zonas inferiores da dianteira e da traseira e os ângulos de entrada, saída e ataque. Mais poderoso é o TDI de 170

cavalos, equipado de série com o sistema de tracção permanente, bloqueio do diferen-cial electrónico e transmissão automática de dupla embraiagem.

Especial de corridaSe quer transportar muita tralha não é o destino do novo Suzuki Swift Sport, pois claro. Até porque esta nova versão está ex-clusiva na condição de três portas. Para a anterior, porém, cresceu a olhos vistos: comprimento de 3,89 metros, e quatro centímetros maior do que os derivativos convencionais da gama Swift. Para o lado daquilo que rosna, motor de 1,6 litros a ga-solina, tendo sido mantida a estrutura bá-sica deste bloco de quatro cilindros, mas existindo inúmeros desenvolvimentos. A potência foi aumentada em 11 cavalos, fi-xando-se nuns bons 136. Em simultâneo, o binário cresceu dos anteriores 148 Nm, au-mentando o seu poder de impulso. Até dá para fazer cavalinhos…

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Três dias passam a correr, deu para muitas coisas ver. Mais do que num mês em que por lá, antes, veraneámos…

Tavira tem nove freguesias, Cabanas, Santa Luzia, Cachopo, Luz, Santo Estêvão, Conceição, Santa Maria, Santiago e Fonte do Bispo. Cada uma tem, (ou teve) as suas valên-cias e historial próprio, mas não iremos por aí. A constante, nas zonas litoral e mesmo no barrocal, são os pescadores e a pesca. Deles vem a excelência gastronómica, peixe e gre-lha, já está, mas há que saber… (como se faz e onde se vai comer).

Não faltam restaurantes e tascas, o peixe é, no geral, razoável ou bom, chega a ser muito bom. Contudo, quem for exigente, não vá em aparências, nem sempre o mais caro é o melhor… Não se pense que todo o peixe vem directo da lota para o nosso prato. Mesmo na lota a escolha faz diferenças… E há viveiros onde o peixe é alimentado natu-ralmente e outros menos credíveis. Na Ilha come-se bem, mas há melhor e menos bom. Deixamos um conselho: pergunte-se, sobre-tudo a pescadores, quem bem pratica o con-ceito de rodízio. Se o leitor acertar, ganha na

qualidade, na quantidade, até no preço. Não se descurem, contudo, os sabores serranos. No Caldeirão fazem um cozido de carne e feijão que é, dizem, de comer e morrer… Da região serrana vem a alfarroba, cresce a fi-gueira, pratica-se a cultura de sequeiro. Mau grado a companhia de arbustos e ervas, al-gumas daninhas, que o homem foi deixando medrar ao longo dos tempos…

Tavira é uma antiga princesa. Teve a sorte e a arte de não se deixar apanhar pela febre da construção desenfreada do comércio estan-ércio estan- estan-dardizado que, de algarvio, nada tem.

TEXTO CARVALHO SANTOS FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

Vai Formosa e vai seguraChegámos a Tavira com algumas certezas, saímos com algumas dúvidas. A cidade depende do turismo? Sim, mas tem vida própria. Ainda vive da pesca? Vive, mas a vida dos pescadores é, hoje, diferente, mais precária. Contudo, o peixe é rei, rainha é a Ria Formosa.

A ver Tavira

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Até no centro histórico, onde converge toda a gente, se respira o ar puro que nasce no parque natural da Formosa. Passear nas ruas, permanecer numa esplanada, degus-tar petiscos, conversar com os tavirenses são privilégios. Se a tradição é forte, o patri-mónio histórico é imenso. E tudo remonta aos tempos áureos das armações de atum. Tempos e armações que voltam, agora di-ferentes, mais técnicos, de menos proveitos para a população.

A antiga Armação do Barril é hoje um lugar de culto. Na praia, dantes, viam-se cemité-rios de âncoras e de embarcações, ao longo da costa. Ao que vimos e nos contaram, resta um conjunto de âncoras, praticamente colo-cadas em fileira.

NOVOS TEMPOS, VIDAS DIFÍCEISAs armações estão, portanto, de volta. A que os pescadores chamam «dos japone-ses» pertence a uma empresa luso-japonesa,

a poucas milhas da costa da Fuzeta. Quem lucra são, logicamente os japoneses. Eles adoram o nosso atum, quem moureja já é pouca gente e pouco ganha. O atum tam-bém não é assim tanto como já foi, é preciso alimentá-lo até atingir o tamanho bom. E vi-giá-lo. Não há muito tempo, houve notícia de serem encontrados mortos um homem enrolado nas redes e um atum com um es-porão no corpo!

No Barril prepara-se o relançamento do atum em cativeiro, vamos lá saber quanto tempo aí permanecerá. O passado que o diga, o atum não fica eternamente nas mesmas regiões. Desta feita o capital é luso-espanhol. Uma viagem em torno das duas armações permitir-nos-á abor-dar esta realidade e um pouco a vida difícil dos pescadores que se dizem desportivos. Nos tempos que correm, são em menor número os que trabalham no arrasto, há perigos e limitações; uns mergulham,

outros, quiçá a maior parte, safa-se à linha, e muita gente anda fora da lei.

HOTEL DE LUXO RESPEITA ARRAIALOs pescadores chamam-lhe templo, hoje é o esplendoroso Hotel Albacora. O Arraial Ferreira Neto foi porto de abrigo das arma-ções de pesca do atum, situado nas Quatro Águas. Em 1943 o mar destruíra o que exis-tira do outro lado do canal. De imediato, a empresa Ferreira Neto erigiu o edifício que durante mais de duas décadas deu emprego e deu casas, escola, até uma igrejinha a cerca de 150 famílias de pescadores.

Era o Arraial, ainda o é como património de interesse público. No começo da década de 60, o atum começa a rarear, na de 70 Ferreira Neto desiste, é o abandono. No começo do século, o Vila Galé Albacora recupera todo aquele espaço para um hotel de cinco estrelas. Preservando o essencial da estrutura, incluindo o nome da an-tiga fundação – Arraial Ferreira Neto.

Um barquinho periclitante, 40 cavalos, aí vamos nós com Sérgio Correia ao leme e o Luís, de alcunha o Pepe Rápido. Pescam de meias, à linha, chamam-lhes, como a tantos outros, pescadores desportivos. De facto, a designação é enganadora, o desporto deles é fazer alguma coisa para governar a vida. Experimentado e vivaço, o Pepe explica-se: «Empregos, ninguém dá, nem a pescadores, isto chegou ao que chegou. Não nos falta é peixe em casa e sempre vai dando para comprar qualquer coisinha.» Portanto, lá vamos. Nós pelo trabalho, eles numa faina que lhes foge ao dia-a-dia.Passamos pelo cais de desembarque de lixo da Ilha de Tavira, Ria Formosa adentro. Pepe de pé, ajuda os movimentos do leme de Sérgio, quando necessário. «Somos uma equipa e nestas marés mortas, é preciso cuidado.» A Sotavento do Cerro de São Miguel, estamos entre águas baixinhas e terras húmidas, férteis de pescaria miúda.Manobra atrás de manobra. Quem sabe não encalha, mas há que ser expedito. Já vemos os marisqueiros de bivalves, amêijoa, berbigão, ostras e o que a ria mais dá. Para trás ficaram os apanhadores de conquilha.Para mergulhar é precisa uma licença. «Lá estão dois; mergulham, espalham o sal no fundo esburacado, o lingueirão vem cá acima expulsá-lo e é agarrado à mão. «Já houve mais, já houve menos, a estação de tratamen-to de esgotos melhorou a flora da ria».Nunca tanto, tão de perto, víramos tantos marítimos ganhar a vida assim. A estibordo e a bombordo, quantas salinas, quantos viveiros! Num, de amêijoas, havia gente a limpar, a tirar limos e a afastar areal. Um homem gordo, com água pela barriga, cumprimenta os nossos guias. «Apanhou isco para pesca desportiva»,

adivinha o Pepe. O outro, de longe, grita, «é casulo, já estou safo». Era o Zé, era um amigo.Vamos, de momento, mais ao largo, aligeiram-se, por mais atlântica atmosfera, a cor e o cheiro da Formosa. Mas, eis que voltamos a ter terra bem à vista. Estamos em frente de Santa Luzia, a terra do polvo, sem ver nenhum polvo, «este ano foi fraco». Muito bonitas as casinhas de pescadores, à primeira vista, quase alinhadas. Sérgio: «Esta ria vai de Cacela a Ancão.»E quase embatemos, parecia, numa rocha… Um levanta o pontão, o outro pescador dá-lhe de ré; e a seguir dão gás ao barquito. O Pepe percebeu mas não ia preparado: «Há peixinho a bater aqui.»Mais adentro, mais além, nas águas destapa-das pela maré baixa, há pessoal a mariscar.

«Estão a apanhar casulo com um palim», uma espécie de pequena pá com cabo de madeira. O casulo tem de ser bem lavado, «senão aquilo morre tudo.» Passamos a antiga barra da Fuzeta, agora à esquerda, de novo, o cerro de São Miguel. «Os antigos e quem não tem GPS, orientam-se por ele», diz Pepe.A caminho da Torre d’Aires, um homem muito velho numa barcaça, tão velha como ele, leva amêijoa de arrasto. Sérgio: «É proibido, é perigoso, mas uma pessoa tem de se governar…»A ria tem comedores, há peixes que saltam para apanhar os restos que a passarada deixa, «até minhocas desfeitas». A polícia não deixa arrastar seja o que for, mas há quem arrisque.Enfim, Pepe considera operação de risco rumar da barra da Fuzeta a caminho do

Uma viagenzinha inesquecível

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oceano. «Isto está quase tudo areado, a maré tapa e destapa.» Quer ele dizer que não é para qualquer andar a motor. A dado momento, repisa para o Sérgio, «este sítio está carregado de robalos, bem os sentiste, não digas a ninguém…»

OS ENGANOSAté que vemos as primeiras bóias da armação da Fuzeta. «São as barreiras das primeiras redes onde entram os atuns.» Os japoneses, em 94/95, fizeram um contrato de 50 anos, em quase duas milhas de extensão, a fundura é de 15 a 20 metros. Pormenorizadamente: o peixe entra nos labirintos e quando dá por ele, está preso. No enguiço sempre fica algum peixe. No copo final já não se safam. Umas duas vezes por semana, «tiram às toneladas, cada atum tem duzentos, trezentos quilos…Uma fortuna». Os mergulhadores entram lá dentro, «aos tubarões não sei o que fazem», comenta o Sérgio Correia.

O atum é desmanchado na Docapesca, em Olhão, «pouco fica por cá, só os mais magros…» Fazem fotografias e «contro-lam tudo». Só se pode pescar a 300 metros dos limites da armação. Corvinas, safio, besugos, tudo.«E agora dá-lhe gás», comanda Pepe, acelera Sérgio. Damos a volta completa, rumamos para o Barril. A nova armação fica a quase duas milhas da que vimos na Fuzeta. As bóias são avermelhadas. Ainda pouco batidas pelo mar, sugerem uma plantação de papoilas… «Ainda não têm os postes montados, mas o copo é maior, é tudo maior», vai calculando, com a experiência que o mar lhe deu, o mais antigo dos nossos pescadores desportivos.Está quase pronta a armação do Barril. «É mais para exportar, não se gasta assim tanto atum em Portugal», nem estranham. Escrituras, corpo técnico, embarcações e parque de desmanche, a firma tem tudo preparado.Regressamos pela Praia da Terra Estreita, frente a Santa Luzia. Desembarcamos na velha barra de Tavira que está em mau estado... Despedimo-nos dos exímios guias. Mais a brincar do que a sério, Pepe convida: «Querem vir connosco aos robalos? Mas calados, senão, amanhã, estão aqui cinco ou seis barcos!»

Tentaremos, com alguns realces, dizer como se vive em Tavira, sabendo-se que o ponto de rebuçado está na beleza incomparável das suas praias. Contemplar a Ria Formosa, andar no meio dela, no sapal, ou no rio Gilão, só por si, já é divertimento.

As praias: Barril-Pedras, D’El Rei – para lá chegar vai-se num comboiozinho, mas também se vai a pé; Ilha de Tavira e Quatro Águas – a área de pinhal e a brisa marítima são o aroma e a cor da ilha; Cabanas – o mergulho é bom, nas cabanas viviam pesca-dores durante a faina, havia a fábrica, hoje lugares de referência gastronómica; Santa Luzia – um cantinho à beira da ria, casinhas de pescadores; Terra Estreita – começa no cais de Santa Luzia. Praias todas luminosas, limpas, mas diferentes.

Monumentos e igrejas monumentais são cerca de 30. Santa Maria do Castelo, Convento do Carmo, Igreja Paroquial da Luz, Forte da Conceição, Igreja da Misericórdia… As ruínas são parte inte-grante e importante, falam por centenárias, quiçá por milenares. A cada ano, sucedem--se achados arqueológicos, com exagero, a presença islâmica é quase palpável.

Talvez a ponte não seja romana…Ex-libris, a Ponte Romana é local de passa-gem obrigatório e de encanto. Acreditamos nas vozes que abonam a segurança da es-trutura. Em 1989, a violência das cheias que assolaram o rio Girão colocou-a em perigo. «As obras de profundidade então realizadas são mais fiáveis que centenas de prédios e pontes por esse país fora…»

De resto, a partir da reconstrução, a ponte que talvez nem seja romana, passa a ser pe-donal. Tem séculos, mas há dúvidas. Quem pensa que a construção ocorreu nos pri-meiros tempos da época medieval, chama--lhe, antes, Ponte Antiga. É muito, muito bela, mais do que as outras quatro que ligam margens.

… nem o castelo tenha moiras encantadasNão há certezas, sequer, sobre a data de re-conquista cristã de Tavira e do seu Castelo aos muçulmanos. Segundo Alexandre Herculano, as forças comandadas pelo que viria a ser Mestre da Ordem de Santiago forçam a entrada em 1240. Das repara-ções ordenadas por D. Dinis ao tempo dos Descobrimentos, aos estragos provocados pelo terramoto de 1755 e posteriores recons-

truções, é pródigo o historial. Castelo legen-dário, é infalivelmente lendário. E conta a lenda que uma moura encantada vai lá cho-rar todos os anos. Arqueólogos descobriram recentemente uma muralha fenícia, avaliada ao século VIII a.C. Importante é, hoje, o que se adivinha nas ruínas. Só a fachada já é polo de atracção…. À volta, baixinho e condizente na paisagem urbana, o casario está tão pró-xima da entrada…

Universo pessoano na BibliotecaTavira vive a cultura e, no primeiro plano, está uma biblioteca recente, modelar. No universo pessoano, o heterónimo Álvaro de Campos nasceu e teve casa em Tavira (e neste caso houve escolha). A câmara local dá-lhe o nome em homenagem – Biblioteca Municipal Álvaro de Campos. Há outros nomes ligados à instituição que presta ser-viços de leitura, multimédia e de lazer, desde 2005. Antes de tudo, o legado cultural e mo-netário de José Joaquim Lara. Depois, na re-abilitação, o mérito pertence ao arquitecto Carilho da Graça.

Tantas praias, tantos monumentos!

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Morar no Convento das BernardasDas 78 moradias que o génio de Souto Moura transformou em arte nova no Convento das Bernardas, umas estão em fase de conclusão, outras já foram vendi-das. Privilégio para alguns, orgulho para a cidade. Pena que o condomínio seja fe-chado, pois muitas peças antigas povoam o próprio pátio interior. Pátio enorme, onde foi reconstruída uma fonte dos tempos ma-nuelinos e, pasme-se, construída uma pis-cina, que não destoa do conjunto, parece um grande lago quinhentista!

Não só o portal manuelino, também, uma parede aqui, outra pouco mais longe, man-têm, no todo ou em parte, a traça ordenada pelo rei D. Manuel I. Várias cidades euro-peias edificaram empreendimentos habi-tacionais em simbiose com monumentos históricos. Eduardo Souto Moura fez a me-lhor conjugação, um projecto onde sim-plicidade e bom gosto elevado estão a par. Assim, justificou o arquitecto mais um pré-mio, Pritzker-2011.

Recebidos por Maria Alice Fragoso, do Entreposto de Gestão Imobiliária, ela re-sume cinco séculos de história. «Isto foi convento e foi panificadora, teve estas duas vidas.» Depois destas vidas, o maior edifí-cio conventual do Algarve, entrou em ru-ínas, mais de um século esteve encerrado.

Resumimos nós: em respeito pelos espaços museológicos, a estrutura e estabilidade são máximas, o conceito inovador e conforto contemporâneo. A que acresce a visão pró-xima do sapal da Ria Formosa.

O vaso de TaviraDa Tavira fenícia, à Tavira romana, à Tavira islâmica, por muitos estudos de campos arqueológicos feitos e trabalhos publicados, muito há ainda que moure-jar. O Império Islâmico fundou-se com

a rapidez que os tempos permitiam, ex-pandiu-se e manteve-se coeso durante 200 anos. Praticamente até à reconquista cristã, no século XIII. O espólio encon-trado é muito e variado, contudo, segundo o estudo de Ricardo Pereira Tomás, as fon-tes que suportam a investigação sobre a presença islâmica na região, «são escassas e de difícil alcance». Para complicar mais, é presumível que esta presença «seja ante-rior à data dos registos históricos encon-trados nas escavações».

Calcule-se, assim, o esforço e o orgulho da câmara local e do museu municipal ao abrirem, já este ano, o Núcleo Islâmico.

Devemos ao director do departamento de património, cultura e turismo, Jorge Queirós, um agradecimento especial por quanto nos ajudou em toda a pesquisa de Tavira Vive Cultura. Entre outras publi-cações, ofertou-nos um exemplar da obra da arqueóloga Maria Garcia Maia sobre o ex-libris do Núcleo Islâmico, o Vaso de Tavira. É de barro torneado, moldado, pin-tado e cozido e o seu bordo está rodeado por um conjunto de figuras humanas e de animais, «de feição popular e moldadas manualmente, de forma realista». Ficamos por aqui, acha bem, o leitor?

Andrades, 100 anos a fotografar!Queríamos encontrar alguém da família Andrade, tivemos sorte. Entramos no re-novado Palácio da Galeria, procuramos no Museu Municipal e havia lá uma exposi-ção – «A Família Andrade, Olhares Sobre Tavira». Perguntamos, responde um fun-cionário: «O senhor Luís Andrade vem já, mora aqui perto.» Vem logo, conduz-nos na visita, vai dando explicações.

São quatro gerações, tudo começou em 1912, quando o avô de Luís, Apolinário de Andrade, se estabeleceu em Tavira, vindo a

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falecer em 1945. «Era bom na profissão, so-bretudo, um grande retocador de clichés.» O pai de Luís deu continuidade ao trabalho e trouxe-se-lhe «maior qualidade». Hoje, Luís e o filho Miguel são bons artífices da fotografia e do vídeo, onde os tavirenses se revêm e descobrem um século de história. O espólio abarca milhares de fotografias e máquinas em diferentes épocas.

Não haverá no mundo outros Andrades nem outras cidades que assim se retratem. O comissariado científico de Jorge Queirós concebeu a valiosa exposição, enquanto nar-rativa e musealizada. Para a história fica o catálogo editado pela câmara tavirense, com textos explicativos de Teresa Siza, directora da Árvore, e da historiadora Rita Manteigas.

Diz ser o clube mais antigo do mundo…Fundado em 1979, o Clube de Ciclismo de Tavira será o mais antigo do mundo, em actividade… Não vamos discutir isso, mas como é que eles sabem? De resto, bem mais antigo é o Ginásio Clube de Tavira, nascido em 1928! O clube de ciclismo pro-vém de uma cisão, da qual Brito da Mana se aproveitou, a bem da sua modalidade.

«O mais antigo era a Kelme, acabou há uns anos», palavras de Carlos Martins que, sem ser ciclista, já fez 20 voltas a Portugal, «desde o tempo do desenrasca.» Face ao do-mínio das marcas, é normal a extinção dos

clubes… O de Tavira resiste, tem tradição e é muito querido da população. Com um or-çamento de 350 mil euros não falta a uma Volta a Portugal. «Já foi de 800 mil e agora temos de baixar mais…» Isto, com 13 ciclis-tas profissionais, cadetes, juniores, no total 37 corredores.

A TRADIÇÃO LEVOU ALGUMAS MACHADADAS MAS A INOVAÇÃO REABILITOU TESOUROS MUSEOLÓGICOS

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Mandada construir no final do século XVII pelo desembargador Jerónimo da Cunha Pimentel, a casa foi acrescentada alguns anos mais tarde com a capela dedicada a S. Jerónimo, ou não fosse aquela uma casa de Jerónimos. Sucede que o seu proprietário não tinha filhos e deixou todos os seus ha-veres ao irmão, na condição de ali mandar erigir a mencionada capela.

Manuel Villas-Boas não é Jerónimo, não pôs aos filhos o nome de família, mas está à frente da casa onde agora se pratica enoturismo e que dispõe, numa área de construção mais recente, de oito quartos confortáveis, um em duplex. As camas são de ferro e as cores da casa (azul, amarelo e vermelho) sobrepõem-se as todas as ou-tras, num ambiente muito português e que convida mesmo ao repouso. Manuel Villas-Boas faz questão de acentuar que todos os objectos são portugueses, incluindo os de decoração.

Ao lado está a piscina, numa zona protegida, construída entre as ruí-nas de um velho armazém, guar-dada por um enorme castanheiro.

E há a recuperação das mais an-tigas tradições, incluindo a gastro-nómica. Na cozinha da casa grande, onde a traça e a decoração foram respeitadas (até tem uma salga-deira) a recuperação foi efectuada com recurso a materiais e eletrodo-mésticos que permitem a funciona-lidade sem chocar quem ali queira partilhar refeições e a respectiva confecção. Quem preferir a sala ao lado, pode sempre esperar, apreciando um Vinho do Porto, qual-quer que seja a hora do dia ou da noite.

Manuel Villas-Boas conta que na sala de jantar da casa-mãe, onde podem estar até 40 pessoas sentadas, a electricidade é mínima e as noites são passadas à luz de velas e candeeiros a petróleo que dão aos tectos, coloridos, tonalidades bem diferentes.

No exterior da habitação, seja qual a for a porta por que se saia, esperam-nos os quatro hectares e meio (tudo plano, numa zona de montanhas) de vinha, alguma com talhões centenários, de onde sai uma produção de excelência em parceria com a companhia de vi-nhos Niepoort, que levou à criação da marca de vinhos Morgadio da

Calçada, com a assinatura de Dirk van der Niepoort, como referiu Manuel Villas-Boas.

O Morgadio da Calçada já tem no mercado seis vinhos do Porto (Dry White, Tawny, Colheita 1998, Rubi, LBV, Vintage 2007) com rótulos das garrafas da autoria do arquitecto Michel Toussaint, re-tratando a frontaria da Casa da Calçada. Os vinhos de mesa têm ró-tulos da autoria de Siza Vieira, a partir de um seu esquiço da adega da Casa da Calçada.

Temos, pois, a História de Portugal aliada à gastronomia e aos vi-nhos do país, na aldeia de Provezende, uma das cinco classificadas do vale do Douro.

Daí que valha a pena, uma vez mais, ir ao Douro, ficar pelo Morgadio da Calçada, deixar que Ana ou Carmen, as duas empre-gadas da quinta, tomem conta do bem-estar, passear pela região vi-nhateira e esperar o fim do dia para um mergulho na piscina, um jantar e tudo bem acompanhado por Vinho do Porto. E, se estiver mais frio, há sempre o recurso à lareira e uma noite para ouvir his-tórias de Jerónimos e aprender os rostos de uma comunidade que é Património Mundial.

Morgadio da CalçadaLargo da Calçada, 185060-252 ProvesendeTelef.: 254732218Email: [email protected]

TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS HERNÂNI PEREIRA

O império dos JerónimosTem duas das maiores pipas da região do Douro. A data da construção é de 1680 e foi edificada de uma vez só. Por isso, há uma harmonia diferente, num quadrado com um pátio central, onde impera uma enorme japoneira. Ali já residiram quatro gerações de Jerónimos. É o Morgadio da Calçada, um dos mais antigos solares de Provezende.

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Tem dez anos de Património Mundial da Humanidade declarado pela UNESCO e em cada curva do caminho descobre-se uma nova paisagem. Seja de carro, de com-boio ou de barco. O Douro é sempre igual e sempre diferente.

É para as bandas do Pinhão que a Real Companhia Velha (RCV) faz a proposta de Verão: um dia no Douro. Este ano há no-vidades: a RCV lançou um pacote turís-tico com início na Quinta das Carvalhas. Segue-se uma viagem panorâmica no mi-nibus descapotável da Companhia e um

almoço na Casa Redonda, bem no topo do monte, a 550 metros de altitude e onde se desfruta uma paisagem a 360 graus.

Mais tarde, pode-se visitar a loja e co-nhecer os vinhos das várias quintas que a Real Companhia Velha detém na Região Demarcada do Douro, seguindo-se o tempo para navegar no rio numa viagem a bordo do Friendship, um barco de luxo da empresa Pipadouro, com destino ao Tua. No final do programa, está previsto um brinde com um copo de Evel, uma das mais antigas marcas de vinhos DOC Douro.

Recorde-se que, para incrementar a bio-diversidade, a RCV deixou cair algumas vi-nhas menos boas para criar matas e passar a ter alguns animais.

Aliás, no dia em que esta reportagem ocorreu, foi possível aos jornalistas verem diversos pássaros que ali começam a apare-cer, bem como um texugo.

Temos, assim, paisagem, gastronomia e vinhos, e é tempo de navegar no rio Douro, entre as 16 e 30 e as 18 e 30. Portanto, é aproveitar até Setembro para conhecer esta zonas e deleitar-se com um serviço de

TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS HERNÂNI PEREIRA

E o Douro ali tão belo...O Douro é sempre o mais belo rio do Mundo. Vê-lo e senti-lo a partir da Casa Redonda, na Quinta das Carvalhas, é uma emoção. Mas navegá-lo a bordo do Friendship, um bar-co de luxo da empresa Pipadouro, é, verdadeiramente, de encher a alma. Ainda mais se for acompanhado de um cálice de Porto. São propostas para o Verão. Irresistíveis!

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excelência a bordo do Friendship, onde o skeeper António Chaves não regateia aten-ções. O barco tem capacidade para 12 pes-soas mais a tripulação e um dos skeepers, António Ferreira, é mesmo um descendente de D. Antónia, a Ferreirinha, a senhora Vinho do Porto.

A bordo tem serviço de cozinha, podendo ser apreciado qualquer tipo de refeição, da confecção mais simples à mais sofisti-cada. O barco, construído em 1957 para a Marinha inglesa, para servir às deslocações de terra para os navios de grande porte das altas patentes, tem dois camarotes com casa de banho.

António Chaves conta que já houve situ-ações em que casais se conheceram no pas-seio, no final da viagem, «já combinavam ir jantar juntos» ou encontros em outros locais.

O projecto Pipadouro tem como base o Rio Douro - Douro Valley, desde  a Foz no Porto até Barca d’Alva, que faz fronteira com Espanha e conta com diversos servi-ços. Pode-se escolher um almoço gourmet no Douro servido no deck à popa, um fim de tarde no rio, um jantar no Pinhão ou no Porto, tendo o rio sempre como pano de fundo.

Mas há ainda um dia no Douro, em par-ceria com uma das maravilhosas quintas ou mesmo dois dias no rio para conhecer o verdadeiro Douro.

Importante ainda é reservar algum tempo livre para visitar a vila do Pinhão. Apreciar os azulejos da estação, dar um passeio e al-moçar num dos restaurantes mais interes-santes da zona. Chama-se Ponto Grande e faz parte de uma residencial que tem mais de 50 anos. Vale a pena conversar com o proprietário, José Vieira, funcionário pú-blico reformado, senhor e conhecedor de bons petiscos. E deixar-se servir pelo Ricardo que sabe exactamente como deixar os clientes satisfeitos. Ali, são «de comer e chorar por mais» as alheiras grelhadas, a costelinha de assuã em vinha d’alhos e a caldeirada de cabrito. Para finalizar, é de ex-perimentar o bolo borrachão ou o pudim caseiro de ovos.

E no final, claro está, vai um cálice de Vinho do Porto. Sempre! No Douro, claro!

Este programa destina-se a grupos de 20 pessoas, sendo de marcação obrigatória, através do [email protected] ou do telefone 254 738 050. O custo é de 75 euros por pessoa para adultos, 37,50 euros para crianças entre os seis e os 12 anos e é grátis para crianças até aos cinco anos.

A CASA REDONDA

UM TEMPO PARA NÃO ESQUECER

A ESTAÇÃO DE COMBOIOS DO PINHÃO

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Pelas três da manhã o porto da Caloura dormita. De dia, é possível apreciar as arribas castanhas que descem até às águas esverdeadas de um dos locais mais apreciados pelos locais para veraneio. À noite, a luz artificial da doca concede ao local uma atmosfera fantasmagórica.

Dois barcos de boca aberta balouçam suavemente pressagiando um dia de pesca de navegação macia. Por perto, há pessoas movendo-se dentro de um carro. Uma mulher com um cobertor nas costas es-preita pela vidraça. Um homem mais velho sai lá de dentro. É o vigi-lante. «Sou quem está encarregue de vigiar o barco até os pescadores chegarem. Nunca se sabe quem pode aparecer aí à noite para roubar equipamento. É você que vai no Ponta dos Mosteiros?». Ergue a cabeça

e observa o céu estrelado: «Vão ter um dia bom de pesca. Agora está frio mas quando o sol levantar lá para os 'setenta' você vai ter de tirar a roupa e ficar em t-shirt.»

Os 'setenta' é a zona, a sueste da Ilha de São Miguel e na direc-ção de Santa Maria para onde se dirigem nesta época de pesca ao atum todos os barcos da frota. Quando lá chegarmos, daí a umas três horas de motor ronronante, balanço suave e a lua como teste-munha, não dá para os contar pelos dedos das mãos. Vão de Rabo de Peixe, Caloura, Vila Franca do Campo, da Ribeira Quente, todos ao mesmo, todos para pescar o máximo possível de atum. «É o que dá mais. Depois no Verão ainda temos o bonito mas no Inverno só

Quase a terminar o périplo pela ilha de São Miguel, paro na zona de Água de Pau, um reduto tradicional de pescadores. Rumo ao porto da Caloura onde embarco numa viagem de pesca ao atum no Ponta dos Mosteiros. Durante horas acompanho a azáfama de toda uma tripulação. A safra é boa e inclui um «bichinho» de 160 quilos.

TEXTOS E FOTOS NUNO FERREIRA

NO PONTA DOS MOSTEIROS VIVEM-SE MOMENTOS DE APREENSÃO: «HÁ ATUM?»

Na pesca do atum com o Ponta dos Mosteiros

Açores a pé

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há chicharro e é uma miséria. Se os homens querem ganhar algum, é agora».

Os pescadores chegam acasacados e de gorros na ca-beça pelas 3h30 da manhã. A maioria pouco diz. Vêm ensonados e preparados para se estender à proa debaixo de uma lona durante as três horas de viagem até à zona de pesca. Daí a pouco já largámos sem sobressaltos. Um homem chama-me debaixo da lona: «Eh! Irmão, deita--te aqui». Colocam um colete salva-vidas para me aju-dar a fazer de almofada. Sigo o tempo sem conseguir fechar os olhos, sacudindo o frio do corpo, escutando a conversa dos mais velhos que seguem sentados. Lá mais ao fundo, brilham as luzes de Vila Franca do Campo.

Cerca das sete da manhã, a linha do horizonte começa lentamente a pintar-se de amarelos e laranjas entre os contornos pontiagudos das nuvens. O sol quer romper e acordar a tripulação.

À nossa esquerda, o dorso escarpado e escuro do Nordeste da ilha de São Miguel. À direita, a sombra difusa de Santa Maria. Um a um, como autómatos, os homens vão levantando-se, retiram a lona, posicio-nam-se. Observam estremunhados a dança dos res-tantes barcos que surgem não se sabe como nem de onde. Alguns navegam muito perto, o que permite aos pescadores saudarem-se. Gritam de barco para barco. Comentam nomes de ou-tros pescadores de outras embarcações, todas elas garridas e relati-vamente pequenas. Ali o Letícia Moniz, acolá o Monte Santo, mais adiante o Ana Beatriz.

Esta será a parte mais tensa de todo o dia. Os homens observam de rostos fechados a direcção tomada pelas cagarras. Onde elas estive-rem está o peixe. São cerca de uma a duas horas de silêncio pesado a bordo, de expectativa. De repente, o primeiro atum aparece e o am-biente taciturno e ansioso dentro do Ponta dos Mosteiros é substituído por uma azáfama febril.

Todos querem pescar, todos gritam, todos se movimentam. «Olha o bichinho!», soltam, mal avistam a sombra escura de um atum so-bressaindo no azul límpido do mar dos Açores. Outros correm, uns na proa, outros na popa, pedindo insistentemente «cavalinha» a João

Amaral, o rapaz do isco. Se ele demora mais do que uns segundos, ouve imediatamente: «Eh! João, eh! João!»

A captura do atum obriga o homem que o pesca a um jogo hábil e duro de braços, puxando e segurando-o com o nylon até estar sufi-cientemente perto para outro lhe enfiar o gancho e poder ser puxado para dentro do barco. O «bichinho» obriga os homens a vergar-se sobre a borda em madeira. Quando já está suficientemente dentro da embarcação, largam-no e vêem-no sacudir-se até um pescador pegar numa marreta em madeira e lhe enfiar umas pauladas na ca-beça. Daí a pouco, um outro encarregar-se-á de varrer a água com réstias de sangue. Ensopam o atum com um ou dois baldes de água até abrirem o porão. Um pescador coloca-se de um lado e outro no outro. Seguram-no com firmeza e deixam-no descair nas entranhas do Ponta dos Mosteiros.

A faina é feita de momentos. Tanto se respira alguma tranquilidade como tudo acelera de novo. De um momento para o outro, um rol de barcos rompe em desfilada para uma área onde aparentemente sur-giu mais peixe. À popa do Ponta dos Mosteiros, controlando as opera-ções, o mestre Weber Pacheco não se impacienta. Ele é que sabe para onde vai e quando se vai.

Ao fim de horas de dura labuta nos «setenta», Weber decide avan-çar para o mar do Nordeste de São Miguel. O intervalo é aproveitado pelos homens para dormitar, comer sandes, chicharros ou fumar mais um cigarro. A descontracção é maior porque já pescaram um número considerável de atuns. O sol cai a pique e obriga-os a despi-rem as camisolas.

Quando a costa recortada e alcantilada do Nordeste surge cerca das 16 horas, adivinho o casario adormecido de lugares mágicos e pacífi-cos onde passei a pé. Ali à frente Água Retorta, mais adiante o Faial da Terra entalado entre duas ravinas, a Fajã do Calhau polvilhando a encosta de um pequeno dedal de casas, dir-se-ia suspenso no abismo.

Serão umas sete da tarde de um dia quente e luminoso quando o motor do Ponta dos Mosteiros acorda definitivamente rumo a casa, deixando a Povoação, Ribeira Quente e mais tarde Vila Franca do Campo sucessivamente para trás. Os homens conversam alegre-mente, rodeando o mestre, que finalmente larga o seu lugar na popa para vir conversar com a tripulação, quase todos familiares uns dos outros.

IOPPIOPIOIPOOIOPAgradeço, aqui, a simpatia e o carinho de todos os pescadores com quem partilhei o Ponta dos Mosteiros: Mestre Weber Pacheco, 35 anos, Paulo Roberto, 45, Luís Remouga, 40, Ismael Pacheco, 24, Marco António, 34, Ismael Pacheco, 24, Bruno Machado, 29, André Pacheco, 27, Valdemar Fixinha, 27, José Pacheco, 51, João Amaral 22, João Pacheco, 40, António Medeiros, 46 e João Pacheco, 30 anos.

UM «BICHINHO» COM 160 QUILOS É PUXADO PARA BORDO

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Há seis anos que Nuno Marçal, de 38 anos, bibliotecário da Câmara Municipal de Proença-a-Nova (Castelo Branco) percorre as al-deias desertificadas e de população envelhecida do concelho ao vo-lante da Biblioteca Móvel. Em 2010, foi o candidato português da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB) ao Prémio Astrid Lindgren Memorial (ALMA), criado em 2002 pelo governo sueco em memória daquela escritora, e destinado a distinguir escritores, ilustradores e entidades de todo o mundo que promovam a litera-tura infantil.

Desde Março, e correspondendo à evolução por que passam bi-bliotecas e bibliotecas móveis no país e no estrangeiro, além de livros, dvd’s, revistas, jornais e internet, a Biblioteca-Móvel de Proença-a-Nova disponibiliza a entrega de requerimentos. «Este é o passo natural que as bibliotecas têm de dar e algumas estão a dar. As pessoas vêm aqui requerer bolsas de estudo ou uma licença para uma fossa ou algo relacionado com acção social e acabam a folhear uma revista ou um livro.»

Desde que começou e expandiu o seu trabalho de visitante am-bulante de livros e jornais que Nuno Marçal tem visto a popula-ção residente envelhecer. Essa mesma população, em redor de um livro, de um jornal ou da simples presença do bibliotecário, ganha uma alma nova. «Eu diria que 30 por cento do meu trabalho é o de bibliotecário e 70 é serviço social. São as tais aspirinas contra a solidão e o envelhecimento. Não curam mas servem de paliativo. É muito importante estar no local, ouvir essas pessoas e fazer-lhes companhia.»

Nuno perdeu no ano passado dois dos seus melhores leitores. «Morreram duas pessoas que consumiam muitos livros». Num dos casos, tratava-se de uma mulher que tendo vivido muito tempo fora e sofrendo problemas de enraizamento, se refugiava na leitura. «Lia tudo compulsivamente.»

O segundo caso era o de um homem que cursara Direito em Lisboa e por problemas diversos regressara às origens e pastoreava cabras. «Era um homem que seleccionava as suas leituras. Eu tenho uma foto dele a ler O Processo de Kafka junto a uma oliveira en-quanto tomava conta dos animais.»

De segunda a sexta-feira, a carrinha da Biblioteca Móvel de Proença-a-Nova chega com livros, revistas e internet a uma população esquecida e envelhecida de 30 aldeias beirãs. Muitos, analfabetos, usam as revistas como pretexto para conversar. Outros, são leitores compulsivos, como o pastor que lia Kafka encostado a uma oliveira.

TEXTO E FOTOS NUNO FERREIRA

NUNO FERREIRA

Portugueses

O senhor biblioteca-móvel

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Na zona, existem vários guardadores de cabras que gostam de pas-sar o tempo com revistas e jornais fornecidos pela Biblioteca Móvel de Proença-a-Nova. Os homens que não sabem ler nem escrever pedem para folhear revistas de pesca e caça. «É um pretexto para estarmos à conversa sobre as suas pescarias e caçadas.» As mulhe-res pedem revistas de bordados e culinária. As crianças que Nuno Marçal visita no jardim-de-infância local gostam de navegar na in-ternet mas também procuram banda desenhada ou livros da colec-ção Uma Aventura.

No top de autores de livros pedidos estão, entre os portugueses,

José Rodrigues dos Santos, Margarida Rebelo Pinto e clássicos como Almeida Garrett. Nos estrangeiros, figuram nomes como Paulo Coelho, Nora Roberts, Nicolas Sparks e Isabelle Allende. «Também há uma grande saída dos livros de agricultura e de culinária», ex-plica Nuno Marçal.

Numa região cuja população está a envelhecer, a presença da Biblioteca-Móvel pode ser um bálsamo. «Essencialmente, é im-portante estar, conversar, escutar. Em certos sítios tratam-me com muito carinho, como amigo, quase como se fosse da família», co-menta o bibliotecário.

«DIRIA QUE 30 POR CENTO DO MEU TRABALHO É O DE BIBLIOTECÁRIO E 70 É SERVIÇO SOCIAL»

O DIA DA CHEGADA DE NUNO MARÇAL ROMPE AS ROTINAS

A BIBLIOTECA ITINERANTE CHEGA A UMA REDE DE 30 ALDEIAS

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Charutos, vinhos, doces… E uma descida ao Vale das Furnas. Foi um corridinho pleno na Ilha de S. Miguel. O convite à EPICUR come-çou por se quedar para um jantar de Charutos & Vintages, do cardápio constavam os inefáveis puros da Fábrica Estrela e também a delícia das suas cigarrilhas, trabalho de formiguinha, ima-gine-se, construídas manualmente, isto tecido em função de pequenas quantidades. Para pro-duções maiores a produção é mecânica, mas a capa ajeitada manualmente. Lá estão em apreço as Estrelas, Democratas e as Ilhéus, mais com-pridas, venda forte para o gosto das mulheres, ao que nos confidencia Costa Martins, admi-nistrador da Fábrica Estrela e sabe-tudo sobre tabaco, mestre da apurada construção das ligas. Envolvidos nos charutos tabacos de Cuba, em

TEXTO EDUARDO MIRAGAIA FOTOS EDUARDO COSTA

Corridinho na ilhaE os Açores tão longe… Não devia ser, não pode ser. Em cada recanto da ilha esconde-se trabalho de valer a pena espreitar. Veja-se a exemplo a recuperação da Lagoa das Furnas, para melhor acompanhar o tradicional cozido… Na área da plantação de frutas que viram compotas para o mundo, nós por cá todos bem. Tudo a rematar, merecidamente, com um charuto adulto da Fábrica Estrela.

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percentagem de cerca de 60 por cento, o res-tante oriundo da Indonésia e Brasil. Para as capas o eldorado do tabaco americano, de Connecticut, o balúrdio de 120 dólares por quilo. Alternativa menos dispendiosa o tabaco de capa oriundo da Nicarágua e Equador, que, recentemente, vão conquistando adeptos.

Sendo o ganha-pão da Estrela a produ-ção de cigarros, marca emblemática o Alem Mar, ainda assim a «graça» de produzir charutos lança-se anualmente para as 72 mil unidades, 30 mil de cigarrilhas. E fica pouco para as encomendas: parte consu-mida nos Açores, outro tanto a caminho da Madeira (40 mil charutos, 25 mil cigar-rilhas). Nós, no Continente, quase a ver na-vios, mais fáceis de comprar nas lojas da Casa Havaneza. Ou então encomende di-rectamente à Fábrica Estrela.

Uma curiosidade é a produção de rapé

da Estrela… Inicialmente a quota de ia nas cinco mil toneladas, actualmente fica nas três. Consumidores de vulto os Açores e a Madeira. Mas dá para exportação: Suécia e Noruega, os campeões do consumo, depois vêm os alemães.

Foi a janta, foram os sinais de fumo, pre-parávamo-nos para abalar até Lisboa, mas não… A fidalguia açoriana lançava ou-tros desafios ao repórter. Eram desta feita os vinhos a falarem alto. Toca de alinhar em diversas provas verticais, onde essen-cialmente os brancos marcham a preceito. Aqui o cicerone é Jorge Tavares, um jorna-lista que andou pelos jornais continentais, mas que foi para os Açores e lá ficou, tam-bém à escrita mas a pender também para os vinhos, à frente da garrafeira A Vinha. Enófilo dos sete costados, desata à con-versa: «Trabalhei também na Vinitur, um

CANDELÁRIA PARA O MUNDOAviados charutos e vinhos, deslinda-se outro Açores de mão cheia, na vertente de doces inexcedíveis: Quintal dos Açores! (www.quintalacores.ondebiz.com). O empertigado casal Sousa iniciou o trabalho na terra há cerca de dez anos e saem inúmeras delícias, sacadas a partir da colheita média de 30 toneladas de produtos: figo, capucho, ananás, abóbora, amora, para uma lista que não mais acabava. Noutros néctares: mel, ovinhos de codorniz, massa de churrasco, massa de pimenta, pimenta moída… Até tremoços constam.Na volta do caminho, terras de Candelá-ria, damos de caras com uma preciosida-de: Araçazeiro… Fernando Sousa dá a aula prática: «É uma planta que esteve quase em extinção e que era muito usada entre nós para fins medicinais, mas que redescobrimos para produzir doce». Convida-nos a provar aqueles frutos vermelhos ou amarelos… Sabor mil. Planta de carácter subtropical, segundo o nosso interlocutor, «não é conhecida noutras zonas agrícolas, mas acho que em Braga existe, não sei é se é utilizada.» A bem das exportações, o Quintal dos Açores não se pode queixar: Alemanha, França, Espanha, essencialmente Barcelona, Canadá e Estados Unidos são bons clientes.

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empresa de consultoria e de divulgação do vinho, em Matosinhos, onde organizáva-mos cursos para pessoas interessadas em aprofundar os seus conhecimentos, aliado a visitas a quintas. Depois, foi a vinda para os Açores, onde durante uns anos escre-via uma página sobre vinhos, no Açoriano». E ala para o cerne da questão, Jorge debita: «Reconheço que existem bons vinhos bran-cos nos Açores. A qualidade dos vinhos brancos tem vindo a subir de nível, e alguns tintos, embora não se possam colocar num patamar idêntico, têm alguma qualidade. Os brancos da ilha do Pico, alguns da ilha Terceira, e até um outro vinho da ilha de S. Miguel, não deslustram a acompanhar um bom peixe grelhado dos Açores. Ainda muito recentemente um branco, Quinta da Galera, me surpreendeu pela positiva. Temos é que ser realistas: as produções são mínimas.»

Então brancos em frente: «Em relação a isso, e atendendo a que existe uma grande tradição, e um bom tratamento das castas brancas, como o Verdelho, muito utilizado na confecção desses vinhos, gostaria de refe-rir o trabalho que o enólogo Paulo Laureano tem vindo a fazer na ilha do Pico.»

Na curva do caminho apanhamos Laureano e o círculo do vinho açoreano fica desferido. Como confere, «os brancos funcionam bem por terem condições de clima». No apreço das castas, boa implanta-ção de Verdelho, Arinto do Pico, Viosinho, Malvasia e Terrantez. Mas para uma bitola de referência, como testámos em sessões

prolongadas de provas verticais, lá passa-ram com nota alta o Regional do Curral de Atlantis, (blend de Viosinho e Verdelho), Gigante da Adega Cooperativa do Pico… Mas para a cábula dos tintos, a contento o Regional do Curral de Atlantis (composição de Merlot e Cabernet Sauvignon). Na esfera analítica de Paulo Laureano, a conferir: «A dificuldade dos tintos tem a ver com um ciclo vegetativo muito curto e poucas horas de sol. Os resultados, de resto, só se com-põem através das castas Merlot e Cabernet Sauvignon.»

JÁ NÃO FALTAM HOTÉISHouve tempo, todos o sabemos, que a oferta hoteleira nos Açores era parca e pobrezinha. Mas a paisagem mudou, para nós que há muitas luas não visitávamos a região. No caso de S. Miguel visitámos duas instalações hoteleiras a pedirem meças aos melhores hotéis. Em apreço o Hotel Marina Atlântico, do grupo Bensaude Turismo, quatro estrelas a deitar para o mar, logo por si a paisa-gem que conforta. Mais que isso, ali nos deleitámos com uma gastronomia saída das mãos do chefe Paulo Mota, um discípulo de Luís Baena. Mais que tudo, o seu arroz de lapas ficou na retina. Tal gastronomia é timbre do hotel e sustentada a pulso pelo seu director João Luís Cogumbreiro e o seu adjunto Miguel Rego.Soalheiro e recatado vem na peugada outro estabelecimento. O Royal Garden, mais um caso de quatro estrelas que podia representar mais uma estrelinha. E onde a gastronomia regional tem espaço para estar à larga. À frente da unidade está Costa Martins… No fim de contas tão bom na arte de fabricar os charutos da Fábrica Estrela, como de nos tratar do descanso prazenteiro no hotel que também dirige.

A ESTRELA PRODUZ RAPÉ. E EXPORTA: SUÉCIA E NORUEGA, OS CAMPEÕES DO CONSUMO

JORGE TAVARES ( NA FOTO, À ESQUERDA) SABEDOR DE VINHOS AÇOREANOS

ROYAL GARDEN HOTEL

HOTEL MARINA ATLÂNTICO

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Anichamo-nos na Lagoa das Furnas, braço dado com a polaca Malgorzata Pietrzak e Miguel Ferreira, duas boas histórias de vida. Malgorzata visitou a ilha há quatro anos e acabou por ficar. Mãos ao trabalho, empenhou--se na recuperação da zona das Furnas, apanhando a boleia que o Governo Regional em boa hora decidiu desenvolver com vista ao Ordenamento das Bacias Hidrográficas. Caso contrário, com alarmismo suficiente, as águas tendiam a perder as suas propriedades. Até recentemente pasto de vacas, que inquinavam a bacia, está a passar-se para a plantação de fruta, que há muitos anos tinha esmorecido. Retornando às histórias de vida, para integrar o projecto surgiu Miguel Ferreira, especializado na organização de espaços verdes, deixando para trás os seus haveres em Copenhaga, aceitando de pronto o convite feito pelo Governo Regional. Nasce assim há dois anos o Centro de Monitorização e Investigação. Passando de uma fase de inventariar as espécies que outrora existiam por ali, começou a labuta de plantar diversos frutos, entre outros, laranjas e maçãs.

E saiba-se que só em relação às maçãs foram apuradas 21 variedades. Noutro plano, até as camélias voltam à vida nas Furnas. Num apanágio de Miguel «diz-se que tem tinha vacas era malandro, laranjas é que valem».E cola-se a propósito uma história descrita por Maria Filonema Mónica em Os Cantos (2010): «José do Canto vivia agora a pensar no regresso à ilha. Sabia que nem tudo seria um mar de rosas, mas, em vez disso o assustar, estimulava-o: queria pôr em prática aquilo que aprendera na Europa. Muitos dos seus conterrâneos imaginavam que a laranja iria ser

exportada até ao fim dos séculos, mas ele estava consciente de que os bons tempos haviam ficado para trás. No início de 1866, em carta a José Jácome, criticava a inércia dos proprietários.»Assim tem sido feito… conduz-nos Miguel: «Se o objectivo imediato e primordial do Plano de Ordenamento da Bacia Hidrográfica da Lagoa das Furnas (POBHLF) é interromper o processo de eutrofização da lagoa, realizando as medidas correctivas e preventivas que este objectivo exige, tal operação deve igualmente dar continuidade ao espírito do lugar que séculos de humanização desenharam com conhecimento e grande sensibilidade estética. Se por um lado, ainda Miguel no uso da palavra, as extensas áreas abrangidas pelo POBHLF devem servir de campo experimental para a recuperação da floresta do Vale das Furnas na perspectiva de uma economia menos dependente da pecuária, também é verdade que respeitar e projectar para o futuro a memória deste lugar, desafiam por si só a imaginação a criar, onde antes só havia extensões de pasto, verdadeiras florestas encantadas.»No íngreme trabalho de devolver à vida as Furnas segue-se também a antiga cultura do inhame, em substituição da batata e as leguminosas habituais, como a fava e o feijão. Serão ainda muitos anos até que o projecto fique concluso. Basta atentar noutra preten-são…Sementes à terra com vista à produção de mais árvores datadas da colonização. Só depois disso outro sonho está em perspectiva: tudo preparado para receber pessoas de todas as partes do mundo, envolvendo-as em workshopes. Para já, fica ali um museu digno de se ver, onde está passado a pente fino tudo o que é vida no local. Uma visita guiada que não deixa margem para dúvidas. Para o que era mal dantes e para aquilo que vai ser um dia. Uma coisa, porém, não pode ser devassada por forasteiros, como as áreas das muitas plantações, que excepcionalmente visitámos, pé ante pé. E entoaram-se risadas quando demos de caras com um bando de galinhas……«Uma quinta biológica tem de ter animais», soletra Malgorzata. E pensar que para lá do trabalho de frenesim que decorre nas Furnas, ainda falta atacar a Lagoa das Sete Cidades… Mas Miguel e a amiga polaca estão à espreita.

TRABALHO EXEMPLAR É NAS FURNAS

MUSEU DAS FURNAS

MALGORZATA E MIGUEL FERREIRA DEVOLVEM À TERRA MUITAS CULTURAS

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Mistérios, maravilhas e curiosidades de Vila Real

PALÁCIO DE MATEUS

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O princípio da cidade foi a Vila Velha, que deveria agora presidir ao destino adminis-trativo da vasta Terra de Panóias, que, com limite sul no Douro, se estendia para nas-cente até ao Tua, para além de Murça, bem para além de Alijó. Mas o começo da nova póvoa não foi fácil. A sua criação, tentada primeiro por Afonso III, acaba por ser me-lhor alicerçada, alguns anos mais tarde, por seu filho Dinis (forais de 1272 e de 1293). E assim Vila Real nascera – praticamente do nada. Implantada num promontório, ris-pidamente cortado pelos vales dos rios Corgo e Cabril, a localização de Vila Real faz lembrar um pouco o posicionamento da Conímbriga romana, também apertada em bico, mas esta, apesar de tudo, assente em terra menos fragosa e já virada aos ares e ao sonho das terras do litoral.

Vila amuralhada, no seu interior situaram--se a igreja dedicada a S. Dinis, que havia de ser a sede paroquial, e ainda, acoplada a ela,

a capela de S. Brás, esta um pouco mais re-cente que a primeira, com a igreja mãe a re-velar ainda memórias da época românica. Templos, ambos, que nos dias de hoje – e desde 1841 – se encontram integrados no cemitério municipal e participam ambos da decadência que tomou posse da Vila Velha, agora quase integralmente despovoada.

Apertada entre as duas ravinas, a do Cabril a poente e a do Corgo, a nascente, a vila, a cidade teve que tomar o caminho do norte para realizar o seu desejo de expansão. Desmontada, e feita cómoda pedreira de pedra já lavrada, a muralha, o aro da Vila Velha tem sido objeto de pesquisa arqueoló-gica e veio a beneficiar da presença do novel Museu (da Vila Velha – 2008).

À expansão urbana verificada logo no século XV (Convento de S. Domingos, desde os anos de 1420), veio somar-se o grande surto expansionista, já oitocentista, que se manifesta pela existência dos edifícios,

TEXTO E FOTOS FERNANDO-ANTÓNIO ALMEIDA

Mistérios, maravilhas e curiosidades de Vila RealVila Real foi, tal como outros centros urbanos da terra portuguesa, uma vítima recente do descontrolado surto construtivo, muito alicerçado na especulação e na mediocridade, mas, todavia, é visível na cidade o seu desejo de reabilitação. Entretanto, Vila Real esconde em si alguns enigmas.

PROCISSÃO DO CORPO DE DEUS

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contemporâneos, o da atual Câmara Municipal (1817) e o do antigo Governo Civil. A rotura, ao modo de boulevard, da Avenida Carvalho de Araújo (1916), que desfez o tradicional terreiro do Campo do Tabolado, veio a ter como contraponto a expansão da cidade para a margem es-querda do Corgo (Ponte Metálica, em 1904; Estação de Caminho de Ferro, 1906).

Já os passados anos 80 vieram semear a anarquia urbana em Vila Real, anarquia que nos dois últimos decénios se tem tentado camuflar ou compensar através da execução de edifícios públicos de prestígio, como os

bem conseguidos museus de Arqueologia e Numismática (reinterpretação de 1997) e da Vila Velha (2008), o Conservatório (2004), e, já mais “modestos”, a Biblioteca (2006) e o menorizado Teatro (2004), um edifício sem “rosto”, a deixar-se esmagar e a servir de “pau de cabeleira” ao impante novo-rico vizinho, o centro comercial.

Para além disto, diante das mais mar-cantes edificações antigas, torna-se tam-bém quase inalienável a sensação de falta de autenticidade presente em alguns dos mais emblemáticos edifícios da cidade, como a Câmara Municipal (acrescida, em

prótese, já no século XX, com a escada-ria do Convento de S. Francisco), a reto-cada Sé, o alterado Palácio dos Marqueses de Vila Real, a enganosa casa dita de Diogo Cão, o falsificado Pelourinho. Isto, quando não evocar o abandono de algumas peças de arquitetura, menores mas muito signifi-cativas, como as duas esventradas residên-cias góticas, fronteiras à Casa dos Brocas. Moléstias que, porém, não desfazem, por exemplo, numa admirável Capela Nova… Nem nos enigmas e curiosidades de que a cidade não é nada avara e dos quais, agora, enunciamos alguns…

O cão de S. DomingosCom a fachada canonicamente virada a poente, a exibir os três panos verticais de muro que correspondem às suas três naves, com os dois gigantes a enquadrarem o pano central em que se rompe o portal em arco quebrado sobreposto por um óculo, a qua-trocentista igreja do convento dominicano de Vila Real serve hoje de casa episcopal, de Sé. A moldura do óculo enquadra um vitral de desenho complexo, que só de dentro do templo, através da luz do exterior, coada pelo próprio vitral, será possível entender. Na parte superior do pano que enquadra o

TEATRO DE VILA REAL

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portal, dois nichos terminados por frontão triangular, clássico, albergam os dois fun-dadores das ordens mendicantes: Francisco de Assis, à esquerda, Domingos de Gusmão, à direita. Delimitando o adro da igreja, a norte, um muro rasgado por dois por-tões quase contínuos, que davam acesso às áreas de mais restrita vivência monás-tica. Encimando o portal principal, um ani-mal, um cão, estendido, segura nos dentes um objeto longo e estreito, com uma apa-rência de flauta. Mas não, não se trata de qualquer canídeo amestrado, superdotado, capaz de extrair e espalhar sons, a partir do manuseamento de um instrumento de

sopro. Aquele cão, ali, simboliza sim o pa-trono da Ordem Dominicana. Espanhol de Calahorra, onde nasce em 1170, pre-nhada dele, a mãe de Domingos visionara o futuro do próximo futuro rebento, com uma estrela vermelha na testa e, a seus pés, um cão malhado, de branco e preto (assim Domingos haveria de ver o mundo…), segu-rando nos dentes uma tocha acesa. O filho da dama prenhada estaria, portanto, desti-nado a defender a fé dos ataques dos heréti-cos. E assim haveria de ser, assim haveriam os dominicanos de sustentar impiedosa e impenitentemente a luta contra os ini-migos da fé. O seu papel no brutal desem-penho que viria a ter a Inquisição, o Santo Ofício, foi crucial – inúmeras iriam ser as fogueiras de esturrar hereges, ateadas pelos membros da Ordem Dominicana ao longo dos séculos… Quanto ao canídeo, o leitor visitante de Vila Real há de reparar como ele figura no nicho da fachada, que antes referimos, estirado aos pés do fundador da Ordem…

OS VITRAIS DA SÉAcabámos de falar no óculo aberto no alto da fachada principal da igreja de S. Domingos, na rosácea, no vitral colorido. Do interior do templo o leitor turista vi-sitante há de ver passar a luz através de outros vidros em que se desenham for-mas e cores. Por exemplo através de uns retângulos alongados, postos na verti-cal. Todas estas, formas e cores, têm o seu significado. O mais curioso dos visitan-tes, para procurar entendê-lo, poderá re-correr a um livrinho, a um guia de leitura de «Os Vitrais da Sé de Vila Real» (2005). Por exemplo: podemos adiantar que o que está grafado no óculo circular da fachada é: «Eu - sou – o Al – fa e o O – meg – a O – pri – nci – pio – e o – fim». E mais não dizemos. A não ser que os modernos e no-táveis vitrais da Sé de Vila Real estão data-dos de 2003 e que o seu autor foi o pintor João Vieira (1934-2009), um artista bem conhecido da nossa arte da 2ª metade do século XX.

O LEITOR TURISTA VISITANTE HÁ DE VER PASSAR A LUZ ATRAVÉS DE OUTROS VIDROS EM QUE SE DESENHAM FORMAS E CORES

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ADÃO E EVAAdão e Eva. Só duvidosamente se tratará do Adão e da Eva bíblicos. Mas há que dar um nome de gente a este par de criaturas des-nudadas que figuram como timbre ao bra-são dos Teixeira de Macedo, sobrepujando o elmo do escudo. Nem claro é se se trata de um casal ortodoxo (macho e fêmea), se – como parece poderem aqui figurar – de dois homens machos. Exibem-se ali, discre-tos embora, mesmo junto da Capela Nova, ao nível do segundo piso de uma casa bra-sonada. Mistério ou enigma, seguramente, pelo menos para a presente testemunha, que não tem sabedoria que baste que lhe permita decifrá-lo.

SENHORA DE ALMODENAPergunta-se a gente que vem fazer a estes ar-redores da cidade de Vila Real a famosíssima padroeira da cidade de Madrid, capital de Castela e de Espanha, a Senhora, Almudena de seu nome original. Deixa o paciente tu-rista a cidade de Vila Real por poente, bor-dejando o edifício do antigo Governo Civil, fiado nos prometidos, mas mais que ilu-sórios, 15 minutos pedestres de caminho. Passa-se a Rotunda do Chinês (Shop 7), des-cortinam-se finalmente as barracas dos olei-ros de barro preto de Bisalhães (perguntada pelos oleiros, a prestabilíssima adolescente, desentendida do termo meio erudito utili-zado pelo peregrino, acaba finalmente por apontar, logo ali, as improvisadas tendas. E, sem sombra de malícia, explica-se pelo seu desconcerto: «É que a minha mãe chama--lhes paneleiros»). Visitadas as tendas dos fazedores de panelas, tachos e outros arte-factos pretos de fumo e utilitários, inteira-se o visitante de que, «figuras» de barro, quem as fazia era a «canalha»; que, com a proibi-ção do trabalho infantil, extinguiram-se (ou

quase) os modeladores do barro em forma de bichos e de gente. Passado então o duplo cruzeiro do Senhor do Bom Caminho e da Senhora da Boa Ora (sic.), bordejada a mo-destíssima Rua Nova de Almodena, lá se chega ao sítio da capela. No terreiro, entre-tanto refeito, o templo, sabe-se, vem já de meados de Oitocentos. Junto a ele, um im-ponente chafariz de espaldar regista uma quadra: «O límpido cristal desta água pura / Que a Virgem fez brotar desta colina / As flo-res vivifica da campina / O corpo refrigera, as dores cura» - é a Fonte dos Milagres. Encima o espaldar a Sr.ª da Saúde. Capitão de cou-raças no Reino da Flandres, região e teatro de guerra do império hispano-castelhano, D. Pedro Taveira Souto Maior, mandou aqui er-guer, no século XVII, na época do Portugal fi-lipino, decerto por livração de golpe de arma branca ou de arcabuzada, se não de queda de cavalo, a capela dedicada à Sr.ª de Almudena, que, aqui, em Vila Real, passou a grafar-se com um o. Demolido o templozinho pri-mitivo, a invocação manteve-se, apesar de, decerto, ter passado a ser patrioticamente olhada de soslaio depois de 1640.

SIMÃO, O VOADORPedro era um judeu que pescava na Palestina, em Cafarnaúm, no Mar da Galileia, e cha-mava-se, sim, Simão. Este Simão tinha po-deres mágicos, de taumaturgo. Lembre-se, a este propósito, o leitor, como este Simão con-seguiu ressuscitar um arenque morto, já dei-tado de conserva em salmoura, obrigando-o a nadar num tanque de água doce. Pois um dia, em Roma, pôs-se o nosso Simão/Pedro,

APERTADA ENTRE AS DUAS RAVINAS, A DO CABRIL A POENTE E A DO CORGO, A NASCENTE, A VILA, A CIDADE TEVE QUE TOMAR O CAMINHO DO NORTE

FIGURAS DO BRASÃO DOS TEIXEIRA DE MACEDO

SENHORA DA ALMODENA

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perante um grupo de sábios, a disputar artes de magia com outro Simão (este, Simão, o Mago). Pois bem, mago de fama, o Mago dis-põe-se a demonstrar a sua superioridade na matéria. Sobe, no Capitólio, a uma alta torre de madeira e, lançando-se no espaço, põe-se tranquilamente a voar. Perante isto, porém, Simão/Pedro, arguto, não se deixa ludibriar. Começa a rezar, e com suas rezas faz com que o Mago se estatele rapidamente no chão. É que Simão, o Mago, contava, para exercer as suas artes, com a ativa cumplicidade dos Diabos. Para fazê-lo voar, por exemplo, os seus aliados colocavam-lhe invisíveis asas nas pernas e nos braços. Porém, diante da força das rezas de Pedro o poder dos Diabos

revelou-se completamente ineficaz. Diabos que tiverem então que – literalmente – dei-xar cair o seu protegido. Pedro e Simão, o Mago voador, mais os sábios juízes, estão representados no interior da Capela Nova. Figuram num painel de azulejos setecentis-tas, num silhar, do lado esquerdo de quem entra. O Mago ali está, serenamente voando, perante a estupefação de Pedro.

O SANTUÁRIO DE PANÓIASÉ, decerto, um dos sítios arqueológicos mais misteriosos de Portugal. Fica também junto a Vila Real, passando por Mateus. Um campo aberto de volumosas fragas onde foram rasgados entalhes, aplanadas lombas, abertas

caixas, escavados cilindros, traçados degraus, definem um misterioso santuário cuja área se estende para além do campo circundado. De origem pré-romana, há de, em tempo de Roma, ter integrado um vasto espaço marcado pela Chaves / Aquae Flaviae e, ao sul, pela zona mineira de Três Minas e de Jales. Dedicado quer a deuses locais, quer a cultos orientais (de ali, onde nasceu também o Cristianismo), entre os quais Serápis se destaca, beneficiou também da fé e dos dinheiros e das obras de piedoso senador romano, de seu nome Calpúrnio Rufino…

S. PEDRO E A ORELHA DE MALCODe jornada até Vila Marim, vamos com o fito de descobrir as recuperadas pinturas a fresco existentes na Igreja Paroquial. Pertencem, creio, aos séculos XV-XVI. A degradação que ainda sofreram, já posterior à sua recupera-ção, ocultou em parte a ilustração dos mi-lagres devidos ao santo S. Brás. O Menino de ossinho a sair-lhe da garganta, a cabeça do bacorinho assadinha no forno e trazida numa bandeja pela pobre velha, ainda lá se vislumbram. De S. Brás mais não digo, que o leitor mais paciente há de ter-me lido a croniqueta acerca dos frescos alentejanos na última EPICUR; assim, que nada mais acrescento em louvor de Brás. Falo agora de S. Pedro, ainda que não necessariamente em sua louvação. É que, aqui na igrejinha de Vila Marim, em painel também da face interior da parede norte do templo, sobreposta ao fresco de S. Brás, figura a cena da prisão de Jesus no Horto das Oliveiras. Na composição figura um Judas ruivo (no cumprimento do

SÃO PEDRO E O MAGO

PANÓIAS, ALTAR DE SACRIFÍCIOS

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recado que lhe rendeu os 30 dinheiros), sol-dados romanos, um judeu de nariz adunco. Já em posição de relevo, empunhando uma alentada cimitarra, um espadão, figura Pedro. No chão, de joelhos, com a mão di-reita, Malco, servo do Sumo Sacerdote Caifás, ampara o sítio onde estivera a sua orelha, que Pedro lhe acaba de cortar

O OBSERVATÓRIO DE S. CIBRÃOPoderia ter sido dedicado a S. Cipriano (Cibrão é Cipriano, por via popular), o lei-tor sabe, o autor livro das fórmulas mágicas de desencantar tesouros ocultos, aviar feiti-çarias, amestrar Diabos. Do alto desta mar-quise descortina-se todo o Universo, numa roda de 360 graus. Fica lá para os lados das terras onde imperam o S. Marcos mártir e o deus Serápis. Em S. Cibrão.

O GRITOA Capela Nova, Igreja de S. Paulo, Igreja dos Clérigos, Igreja de S. Pedro Novo, assim parece poder (heteronimicamente…) de-signar-se o notável templo vila-realense que abre em duas (a Rua das Pedrinhas / Rua 31 de Janeiro e a Rua Direita / Rua Dr. Roque da Silveira) a Rua Central / Rua dos Combatentes da Grande Guerra. E, a pro-pósito desta dúplice toponímia urbana, não passe em claro o vaticínio do velho poeta novecentista brasileiro Manuel Bandeira que, num dos seus poemas sobre a sua ci-dade natal, o Recife, tão justamente escre-via, mais ou menos assim, ao evocar a Rua do Sol (creio que era esta): Rua do Sol – tenho medo que hoje se chame Rua do Dr. Fulano de Tal… Atribuído que é o projeto do templo ao toscano Nicolau Nasoni (1691-1773), pin-tor e arquiteto que veio a estabelecer-se na ci-dade do Porto, por volta de 1725, e que deixou uma forte marca da sua personalidade artís-tica no Norte de Portugal, ou de um qual-quer seu discípulo, pertença a sua autoria a

quem-quer que seja, o certo é que estamos perante uma das melhores peças histórico--arquitetónicas existentes em Vila Real. Aqui, neste apontamento, queremos apenas chamar a atenção do benévolo leitor para o amplo óculo que se sobrepõe ao portal e à sua extraordinária expressividade. A remeter-nos para o quadro do pintor expressionista no-rueguês Edvard Munch (1863-1944), O Grito.

S. MARCOS, O MÁRTIR DE MATEUSO palácio de Mateus, nos arredores de Vila Real, é seguramente uma das peças arqui-tetónicas barrocas mais significativas de Portugal. O contributo de Nicolau Nasoni, que aí terá trabalhado entre 1739 e 1743, pa-rece ter sido decisivo para a sua traça. Como curiosidade, porém, registe-se aqui a exis-tência, na capela solarenga, do corpo de um certo S. Marcos, mártir ignoto, adquirido em 1704, em Roma (ainda que só o corpo, que o mesmo já foi fornecido sem cabeça) por Diogo Álvares Mourão, o Santo Arcediago, filho do 3º morgado de Mateus. O mesmo Diogo que, ainda de Roma, trouxe uma lauta coleção de milagrosas relíquias, de bentos Agnus Dei, destinados a proteger a mansão de Mateus e os seus habitantes.

MALCO, SERVO DO SUMO SACERDOTE CAIFÁS, AMPARA O SÍTIO ONDE ESTIVERA A SUA ORELHA, QUE PEDRO LHE ACABA DE CORTAR

PINTURA DE MUNCH E ÓCULO DA CAPELA NOVA

S. CIBRÃO

O Leite de Colónia está de volta, para realçar a beleza feminina. Desde 1960 que a fórmula mágica, desenvolvida pelo médico brasileiro Dr. Arthur Studart, está bem guardada. O Leite de Colónia é um segredo partilhado durante gerações, que conquistou avós, mães e filhas.

Agora, a família cresceu. Para além do tónico facial clássico, vai encontrar também o novo sabonete aromático Leite de Colónia, o creme de mãos, o creme de pés, o bálsamo para lábios, o gel de banho, o tónico facial sem álcool, o champô, o leite de corpo, o leite desmaquilhante e a água de rosas. A melhor forma de manter o aroma inesquecível de Leite de Colónia, em todo o corpo.

Os resultados estão comprovados. Agora, chegou a sua vez de experimentar e realçar também a beleza que há em si.

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O Leite de Colónia está de volta, para realçar a beleza feminina. Desde 1960 que a fórmula mágica, desenvolvida pelo médico brasileiro Dr. Arthur Studart, está bem guardada. O Leite de Colónia é um segredo partilhado durante gerações, que conquistou avós, mães e filhas.

Agora, a família cresceu. Para além do tónico facial clássico, vai encontrar também o novo sabonete aromático Leite de Colónia, o creme de mãos, o creme de pés, o bálsamo para lábios, o gel de banho, o tónico facial sem álcool, o champô, o leite de corpo, o leite desmaquilhante e a água de rosas. A melhor forma de manter o aroma inesquecível de Leite de Colónia, em todo o corpo.

Os resultados estão comprovados. Agora, chegou a sua vez de experimentar e realçar também a beleza que há em si.

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Até ao final de Setembro Joana Vasconcelos recebe em Versalhes. O famoso chefe português José Avillez preparou o banquete inaugu-ral, para 400 convidados, que decorreu no palácio e nos jardins. A luxuosa residência dos Reis de França é de Joana, para apresentar obras imensas em todos os sentidos. E levar ao mundo um pouco de Portugal, ainda que ela própria tenha nascido em Paris em 1971.

É a primeira mulher e a mais jovem artista contemporânea a expor em Versalhes. Como é que isto se traduz? Que sentimento gera esta primazia?

É uma honra imensa. O universo de Versalhes esteve sempre presente na minha obra, através do excesso, da experimentação, da

dimensão operática, do luxo e do gosto, e, por isso, ver as minhas esculturas dialogarem directamente com aquele contexto. Faz todo o sentido. Além disso, é um prazer levar Portugal através do fado, das faianças do Rafael Bordalo Pinheiro, da filigrana portuguesa e do artesanato de Nisa –a um espaço tão mítico que acolhe, todos os dias, um público tão vasto e diverso.

A questão do género já lhe mereceu reflexões mais detalhadas. Diz não concordar que a mulher seja parte de uma posição atra-sada em relação ao homem. Remete para a inteligência como ponto instrumental de controlo. «A inteligência não tem sexo», disse. Quer explicar?

TEXTO MARGARIDA MARIA E ROGÉRIO VIDIGAL

Recusa o feminismo, sobretudo na sua concepção mais sectária. Contudo, é a primeira mulher a mais jovem artista contemporânea a expor em Versailles. O que a «honra imenso». Joana Vasconcelos mudou-se para o Palácio dos Reis de França. E ali assume o papel de rainha, levando a sua arte, o fado, as faianças do Rafael Bordalo Pinheiro, a filigrana portuguesa e o artesanato de Nisa.

A sagração de Joana Vasconcelos

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Não creio que o feminismo, particularmente na sua concepção mais sectária, seja o caminho para equilibrar as assimetrias que a sociedade contemporânea ainda apresenta. Acredito na defesa uni-versal dos direitos humanos, que todas as pessoas são iguais, e que o género, tal como a religião, a etnia, etc., nunca devem ser factores diferenciadores.

Nasceu em Paris e trabalha em Portugal. Como vê hoje a situa-ção inversa dos jovens que hoje são obrigados a ir trabalhar para o estrangeiro?

Lamento que seja tão difícil encaixar jovens profissionais em de-terminadas áreas, obrigando-os a procurar oportunidades fora do

país de origem. Contudo, não posso deixar de referir o meu exem-plo: desde cedo na minha carreira que me foram apresentadas oportunidades no estrangeiro, como residências, por exemplo, que nunca aceitei. Sempre optei por trabalhar em Portugal, mas com o objectivo de fazer chegar a minha obra além-fronteiras. O mundo tem evoluído para uma realidade em que, cada vez mais, é possível fazer-se isto, e Portugal é um país com características óptimas, a partir do qual se pode trabalhar com horizontes alargados.

Porquê nesta área das artes e não em outra qualquer?Foi algo que foi acontecendo. Fui procurando o meu caminho e

descobrindo. Podia ter sido muitas outras coisas – pratiquei karaté

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desde os seis anos e cheguei a dar aulas, por exemplo – mas acabei por enveredar naturalmente pelas artes plásticas.

Formou-se no Ar.Co (Centro de Arte e Comunicação Visual, em Lisboa). Que outras formações efectuou? Onde mais estudou? Onde busca a inspiração?

Estudei joalharia, design e desenho. Curiosamente, não estudei es-cultura. A inspiração para as minhas obras vem dos aspectos mais banais do quotidiano, dos objectos de que nos rodeamos, dos sím-bolos e tradições que nos são próximos.

As Artes Plásticas são (para os apreciadores) um prazer. E para a Joana?

São o meu trabalho e a minha forma de me relacionar com o mundo.

Uma das suas obras foi uma encomenda do restaurante Eleven. Já explicou que se tratava de uma encomenda para estabelecer

a relação da nossa história, da tradição, com o conceito de luxo e de restaurante. Resultou um misto de fado, joalharia tra-dicional, comida. É uma síntese, esse co-ração de Viana, com talheres de plástico, na linha da filigrana e do ser português à mesa?

O Coração Independente Dourado re-sultou de uma encomenda do restaurante Eleven, e é uma obra que confronta uma série de questões. Por um lado, temos o fado, que é tradicionalmente cantado em restaurantes e que, a par da forma do co-ração de Viana, conjuga duas importantes manifestações da cultura portuguesa; por outro, há o coração que é, em si mesmo, um símbolo universal, e os talheres de plástico, um objecto banalíssimo que é igual em todo o lado. É uma obra que propõe inúmeros significados, e que é habitada por uma série de dicotomias (o luxo e o banal, o particular e o universal, produção artesanal e produ-ção em massa, etc.).

Já referiram o seu trabalho como uma «espécie de escultura quase arquitectó-nica». Replicou que se sente mais como «artista-escultor», mais interessada na criação do que no material. A ideia é a arte? Estamos no domínio do conceptual, que adapta os materiais à sua medida?

A ideia é absolutamente central no meu trabalho. É a ignição da minha escultura, é o que me move para construir objectos que serão o veículo dessa mesma ideia, condu-zindo-a ao público.

Que critérios para as opções, afinal uma mais-valia pela originalidade? Considera que se trata de um novo e mais eficaz ins-trumento na concepção e produção das suas obras? Exemplifique, por favor, as vantagens de cada um, nos vários cami-nhos feitos.

O que define a escolha dos materiais é a ideia. Depois, recorro aos objectos do quotidiano, que utilizo na minha obra enquanto mate-riais, pensando não só na sua fisicalidade – a aparência, o tamanho, a textura, etc. –, mas no objecto enquanto signo, cujo significante eu descontextualizo para que o objecto ganhe novos significados. Um exemplo disto é Marilyn, o par de sapatos de salto alto feitos com panelas e as respectivas tampas. Na minha obra, saem do seu contexto doméstico habitual, libertando-se da função para a qual foram concebidas; transformam-se num material que, através da repetição, dá origem a uma nova forma – o sapato de salto alto. Esta subversão é fundamental para criar novos significados e para activar o diálogo entre obra/público/contexto expositivo.

Temos uma mesa, gastronomia, de «filigrana» ou a nossa é uma arte bruta de pouco requinte?

A gastronomia portuguesa é de enorme qualidade e sofisticação.

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TEXTO MARGARIDA MARIA FOTOS MIGUEL SILVA

Crochets, fios de todas as cores, uns mais finos, outros mais grossos, toalhas, loiças, garrafas, ferros de engomar, toda uma amál-gama de objectos e componentes que, em conjunto, se tornaram peças de arte. No ate-lier de Joana Vasconcelos, três dezenas de pessoas trabalharam para pôr de pé o que a artista sonhou. Mais de dois milhões de euros, pagos por mecenas, é o custo da ex-posição patente no palácio de Versalhes até 30 de Setembro. A EPICUR foi espreitar os meandros e preparativos.

Os espaços são enormes, não fossem as peças imaginadas pela artista de dimen-sões extraordinárias, tal como os salões de Versalhes. Quatro senhoras agilizavam as agulhas de croché nos collants e nas sensuais roupagens que iam revestir Le Dauphin e La Dauphine (uma instalação agora em França), um casal de lagostas que iria sentar-se uma mesa recoberta por uma toalha adamas-cada. À semelhança dos reis de França, que em Versalhes abriam as portas para que as pessoas os vissem comer, as duas cerâmicas iam «esperar» os monarcas na antecâmara do Grand Couvert, onde a refeição seria ser-vida, num namoro em queo desejo sexual e a gastronomia interagem.

Le Dauphin e La Dauphine são trabalhos desenvolvidos a partir de faianças desenha-das por Rafael Bordalo Pinheiro, que tem, aliás, em Joana Vasconcelos um elo entre a cultura popular e a erudita, a tradição e a modernidade.

Um pouco adiante estava a Perruque, uma espécie de ovo com madeiras e embutidos da Fundação Ricardo Espírito Santo, de onde saem cabelos artificiais, em tufos mais ou menos compridos, relembrando como os penteados eram importantes em Versalhes e como as damas se exibiam numa celebração

Do atelier em Lisboa aos salões de Versalhes

A PERRUQUE LEMBRA OS PARTOS DA RAINHA

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ao exagero que a época impunha. A peça, pa�tente agora no quarto da Rainha, lembra os 19 partos que ali ocorreram. Daqui que tudo surja numa forma uterina que remete para as crianças ali nascidas, entre as quais os fu�turos reis Luís XV e Luís XVI.

A peça Vitral, agora na escadaria da Rainha, estava ainda no atelier. Uma tapeçaria ur�dida em grande escala e em ponto de Portalegre (Alto Alentejo), onde a obra foi laboriosa e pacientemente feita à mão, a re�meter para os vitrais tão importantes à época em que Versalhes era o centro do mundo. O topo em arco seria para encaixar numa das arcadas do Palácio.

Em peças estavam ainda as Valquírias que foram instaladas na galeria das Batalhas. Suspensas a partir do tecto abobadado, os enormes e invulgares corpos têxteis de Royal Valkyrie, Golden Valkyrie, e Valquíria Enxoval usam técnicas artesanais de labor tradicio�nalmente feminino.

São três obras que reportam para realida�des diversas: a Royal Valkyrie traz a moda palaciana de Versalhes, a Golden Valkyrie re�ferencia o ouro, e Valquíria Enxoval aponta à

estética rural, com cores, motivos e técnicas tradicionais de Nisa, pequena vila do interior de Portugal.

As Valquírias «percorriam os campos de batalha, montadas em cavalos alados, para recrutar os futuros guerreiros de Odin».

Uma peça tinha já sido embalada e en�viada para França: Lilicoptère, «uma obra que encena a mais desconcertante e fan�tástica aproximação ao universo estético de Versalhes». �rata�se de um helic�p�». �rata�se de um helic�p�. �rata�se de um helic�p�tero, revestido a folha de ouro e decorado com mi�lhares de brilhantes, com o exterior da cabina e as pás das hélices, cobertos por uma colorida cober�tura de penasde avestruz, em tons salmão, rosa e la�ranja. A pequena abertura na frente da cabina mostra um interior sumptuoso, de madeiras trabalhadas, dou�rados e tapetes bordados. «Microcosmos anacr�nico e máquina do tempo que

transporta a rainha consorte francesa até à contemporaneidade».

Passamos a outra sala, como a um novo mundo. Impunha�se uma obra monumen�tal constituída por duas estruturas verticais gémeas, feitas de garrafas de champanhe, que seriam iluminadas a partir do interior. Aliás, a escolha das garrafas teve em vista essa mesma iluminação e o transporte para os prazeres da mesa, tão portugueses, sobre�tudo quando aliados à gastronomia.

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Um pouco adiante estava uma composição em redondo, feita com ferros de engomar. Não irá para Versalhes, mas o seu conceito não deixou de chamar a atenção, sobretudo porque o inaudito e surpreendente con-junto, depois de pronto, gerará um nenúfar que, ao abrir, expelirá vapor.

É evidente o carácter inquiridor da obra da artista, que, através do uso de objectos do dia-a-dia, como garrafas, ferros de engomar, rendas e fios, nos obriga a olhar, a questionar a nossa relação com os objectos de que nos rodeamos.

A arrumação e a ordem, a despeito de se estar a menos de um mês da inauguração da mostra, eram bem patentes. Caixas de tecidos, fios, lãs, berloques, tudo arrumado, prestes a que alguém fosse buscar alguma coisa, a utilizasse e deixasse tudo como es-tava antes. «Que a arte não tem de ser desor-ganizada. Pelo contrário, tudo é preparado ao milímetro para funcionar bem e não sub-sistirem, à última hora, surpresas desagradá-veis». Uma nota diferente é o senhor José, no

meio das senhoras, também ele embrenhado nos crochets que seguiriam para França. Como diferentes são as prateleiras com ce-râmicas representando bichos diversos de Bordalo Pinheiro.

E há a oficina, onde são reis os carpinteiros, electricistas e outros profissionais, incluindo os «dos sete ofícios» que sabem o que fazer a partir das maquetes feitas pelos arquitec-tos, que, por sua vez, dão corpo aos sonhos de Joana.

No gabinete de arquitectura está também o marido da artista. Se tudo é possível no mundo de Joana? Duarte Ramirez responde: «Às vezes não no imediato, mas depois faz--se.» Porque uma organização de excelência dá resposta a todas as ideias que são, depois, «transformadas» em desenhos técnicos com medidas rigorosas, tudo na melhor das de-finições. «De outro modo, imagine, corria--se o risco de não caberem, ou saírem mal feitos.»

A título de exemplo, Duarte Ramirez fala do Jardim do Éden que demorou oito

anos a construir. «Uma peça enorme que foi alvo de um trabalho muito meticuloso, com desenhos, maquetes, entre outros». Menciona-se um coleccionador sul-coreano que possui uma casa desenhada pelo arqui-tecto Siza Vieira e que tem um bule elabo-rado por Joana Vasconcelos.

Difícil fazer a exposição em Versalhes? «Muito!», comenta a equipa de apoio à ar-tista: «O local não está preparado para expor arte contemporânea, não pode ser fechado e tem visitas diárias, pelo que só se pode trabalhar à noite». Preços? «Ronda os mais de dois milhões de euros, pagos por mecenas».

Na visita ao atelier não se pode passar em branco sobre o funcionamento do gabinete de imprensa, a área financeira e a zona onde se desenvolvem os debates de ideias para que tudo funcione na perfeição. Porque Joana Vasconcelos cria, pensa, imagina, e depois é necessário encontrar soluções para concre-tizar os sonhos da artista. Cumpridos, desta feita, em Versalhes.

RENDAS, TAPEÇARIAS, TRABALHOS DE ELECTRICIDADE. OBRAS QUE NASCEM EM LISBOA PARA SEGUIREM OS CAMINHOS DE FRANÇA

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Joana Vasconcelos cumprirá a terceira Bienal de Veneza em 2013, após as passa-gens de 2005 e 2007. Antes já ganhara o Prémio EDP Novos Artistas 2000 e depois fez a mostra antológica Sem Rede, no Museu Colecção Berardo, a mais visitada de sempre em Portugal, com cerca de 168 entradas mil em dois meses.

Um leilão da Christies’s , em 2010, trans-formou-a na artista nacional mais cara, logo após Paula Rego. Um percurso exaltado pu-blicamente pela reapropriação de objectos banais, «que se diverte a transformar com a ajuda de técnicas imaginadas que lhe permi-tem criar um diálogo entre a cultura e a sua história pessoal», que lhe permite «interro-gar o conceito do belo». Há críticas mais e menos favoráveis, mas todas são unânimes em encontrar um aspecto importante na sua obra: «o humor».

Ainda assim, quando, a 19 de Junho, Versalhes abriu as portas à mostra de Joana Vasconcelos, não estava lá A Noiva, um lus-tre feito de tampões, considerado «inade-«inade-inade-quado» para a exposição, pela diretora do Castelo, Catherine Pégard. Mas a resposta não se fez esperar já que a escultura foi para

exibição no Centquatre, em Paris, até 18 de Setembro.

A artista manifestou espanto pela «cen-sura», até porque se trata de uma das suas mais conhecidas obras. «Não faz sentido algum – esta é a peça pela qual me tornei co-nhecida na arte contemporânea mundial e, tratando-se de um palácio, o lustre tem tudo a ver com o ambiente e com o resto da mos-tra que preparei», afirmou sucessivas vezes. E, na apresentação da exposição à imprensa, foi contundente nas críticas: «Fiquei mais do que decepcionada».

«É muito complicado porque A Noiva é uma peça muito importante que integraria esta mostra de uma forma essencial, porque esta exposição é à volta da figura feminina em Versalhes, das rainhas e das mulheres que viveram aqui», acrescentou a artista, para salientar que se trata de «uma peça com um simbolismo fortíssimo sobre a mulher, que integraria perfeitamente o espaço e, por-tanto, não tê-la aqui é uma grande lacuna».

A escultura já esteve patente em 13 ex-posições, sendo esta a segunda vez que é mostrada em Paris, e é a peça mais vezes apresentada publicamente até hoje.

Em Versalhes, Portugal estava, todavia, muito bem representado. Mariza, claro está!, incontornável. A fadista foi acompanhada dos músicos José Manuel Neto (guitarra por-tuguesa), Diogo Clemente (guitarra clássica), Vicky Fernandes (bateria) e José Marino de Freitas (viola baixo).

Inevitável, ainda, o chefe José Avillez, que serviu pastel de bacalhau revisitado e sua vi-chyssoise, robalo de Sesimbra assado, amên-doas do Algarve, girolles e puré de batata com limão confit. A sobremesa foi pastel de nata em mil-folhas com gelado de canela.

Porquê este menu? Porque Avillez quis um prato português «com alguma ligação à co-zinha francesa e a Versalhes. A cozinha não viaja e cada prato vive o lugar onde é confec-cionado e servido».

A vichyssoise foi feita com caldo da coze-dura do bacalhau e «o pastel fica diferente em quenelle com tomate e azeitonas», ex-plicou o chefe português, adiantando que o robalo com puré e limão foi muito bem re-cebido, tanto mais que este citrino é muito presente na nossa cozinha. Foram, pois, de-senvolvidas reinterpretações da cozinha na-cional e da própria cozinha de Avillez.

A noiva proibida de ir

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O chefe declarou ter sentido um grande orgulho e uma «imensa honra» por estar ao lado de Joana Vasconcelos e Mariza «num jantar que reuniu quase 500 pessoas, mas que mais parecia uma família unida no reco-nhecimento da cultura portuguesa nas mais diversas vertentes», em torno de bacalhau e pastéis de nata, com ementa inspirada nas peças de Joana Vasconcelos.

E em tempo de homenagens e para que fique claro o papel de Joana Vasconcelos nas artes portuguesas, a LeYa publicou, em co--edição com a editora francesa Flammarion, o catálogo da exposição Versalhes, da artista plástica.

Os textos são de Catherine Pégard, Jean-François Chougnet, valter hugo mãe e tem ainda uma entrevista conduzida por Rebecca Lamerche-Vadel. O catálogo reproduz ainda um conjunto de peças em grande escala es-pecialmente concebidas para esta exposição e que se integram no cenário de Versalhes e dos seus jardins. O design gráfico é da res-ponsabilidade do atelier Henrique Cayatte.

O catálogo tem os textos em português e inglês e estará disponível nas livrarias por 44 euros. M.M.

à festa

O atelier de Joana Vasconcelos é na mar-gem ribeirinha do Tejo. Mas foi dali que partiu o andor que homenageia os pesca-dores do Douro e que presenteou as fes-tas de S. Pedro da Afurada, em Vila Nova de Gaia.

Eduardo Matos é o presidente da Junta de Freguesia. Não é pescador, mas pre-side à Associação de Pescadores da Afurada e seu pai andava na faina. O Manto Dourado de Joana Vasconcelos é, para ele, «muito especial». E explica: «Sinceramente emocionou-nos muito porque estamos a falar de uma das me-lhores artistas da actualidade e, para nós, é uma enorme satisfação o facto de ela ficar ligada afectivamente a esta comu-nidade, que é uma comunidade piscató-ria também muito especial». E, citando a primeira mulher presente em Versalhes, adianta: «Não somos melhores nem pio-res, mas, como ela reconheceu, somos diferentes».

A ideia surge de um projecto, denomi-nado Festival do Norte, elaborado por intermédio do Turismo do Porto e do Norte Portugal, com a colaboração do município de Gaia. A artista correspon-deu, por lhe ter parecido «extraordiná-rio» que um grupo de pescadores pedisse a um artista plástico para intervir num andor. E acentuou: «Pensa-se que os ar-tistas não servem para nada e surge um exemplo em que podem servir a comuni-dade». Assim, como um pedido especial, foi ainda atendido enquanto tal.

Joana Meneses Fernandes, coordena-dora do Festival do Norte, explicou que o projecto nasceu no âmbito da 1ª edição do certame, tendo a artista produzido o Manto ou Rede em colaboração com os pescadores da Afurada. «Trata-se de uma intervenção no andor de S. Pedro, peça icónica da procissão de S. Pedro, na Afurada».

Para a responsável, o Festival do norte pretende fazer da criatividade o motor da competitividade e da coesão do território da Região Norte, através da valorização sustentada do seu património imaterial. «Este extraordinário recurso, que re-presenta a memória e a identidade mais profunda da comunidade, constitui a ma-téria-prima sobre a qual se deseja intervir e, a partir da qual, se pretende produzir novos bens culturais e criativos com rele-vante valor social, cultural e económico».

O programa do evento promove siner-gias criativas inter-municipais, respeita e dá corpo a um modelo de trabalho po-licêntrico, contribuindo para o apro-fundamento de parcerias entre actores de diferentes campos e coordenando a produção de conhecimento do patrimó-nio cultural imaterial com o domínio da criação contemporânea de artes e espec-táculos, um processo que envolve as co-munidades de cidades da Região Norte, fazendo-as participar activamente nesta construção colectiva, partilhando a res-ponsabilidade pelos seus resultados e os seus benefícios. M.M.

Do Tejo ao Douro

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Nas freguesias do concelho beirão de São Pedro do Sul, os sons do mundo rural servem de matéria-prima para as diversas iniciativas da Associação Cultural Binaural, fundada em 2004.

«Este projecto culminou um sonho de muitos anos. Nasci em Nodar, uma aldeia aqui do concelho. Estive em Lisboa a estudar e trabalhar, mas voltava sempre à origem e apercebi-me das transfor-mações que esta zona sofreu», explica Luís Costa.

O coordenador da Binaural acrescenta que perante estas mudan-ças no território percebeu «que tinha de ter um papel mais activo e não era possível voltar só nas férias. Queria ver esta transição de gerações, de modos de vida que desaparecem, novas actividades que

surgem. Quis ser um elemento activo nesta transição». Há muitos anos ligado à cultura, sobretudo na área do som, Luís quis aplicar todo um saber-fazer ao território onde decidiu viver. «O som in-corpora de forma intensa os lugares. Quem trabalha com os sons da paisagem acaba por sentir o território de uma forma muito pro-funda», comenta.

A Binaural que inicialmente se centrou nos sons da freguesia da Gralheira, inseridos nas iniciativas Aldeias Sonoras e Residências Artísticas, acabou por alargar horizontes e dedica-se agora a diver-sas expressões, como o artesanato e gastronomia. Isto na iniciativa Aldeias de Magaio.

TEXTO SARA PELICANO FOTOS BINAURAL

Andam artistas na serraAs serras do concelho de São Pedro do Sul são anualmente tomadas por um corrupio de artistas de diferentes nacionalidades. Inspiram-se no território para as suas criações. Interagem com as populações. À iniciativa Residências Artísticas, a associação Binaural junta as Aldeias Sonoras. Crianças recolhem sons intemporais e artesãos tornam-se estrategas.

A BINAURAL DESENVOLVE AS SUAS ACTIVIDADES NAS SERRAS DE SÃO PEDRO DO SUL

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MAPEAR OS SONS DO TERRITÓRIOEm parceria com a comunidade educativa local nasceu a iniciativa Aldeias Sonoras. Consiste no mapeamento dos sons efectuado pelas crianças e jovens. A coordenação no terreno fica a cargo de Luís Costa e Manuela Barile.

A Internet serve de plataforma para arquivo deste mapa dos sons (www.aldeias-sonoras.org/ ). «Dividimos o mapa em sons da paisa-gem, da fauna, antropológicos, a voz, mas também do trabalho, das alfaias, dos carros de bois. Fala-se no silêncio do mundo rural, mas o que na maior parte dos casos ocorre são os sons da natureza», co-menta Luís.

Os jovens estudantes são ainda envolvidos numa «aprendizagem teórico-prática, com o objectivo de dotá-los de conhecimentos, de tecnologias de registo e edição de sons, utilização de blogues para a organização e distribuição de informação, associando cada etapa do projecto a diversas disciplinas, como arte, história, cidadania, geogra-fia, tecnologias de informação».

VIVER NAS RESIDÊNCIAS ARTÍSTICASOs artistas, segundo Luís Costa, procuram hoje realidades fora das grandes cidades. Desta forma, a Binaural, recebeu em 2006 os pri-meiros criadores nas Residências Artísticas, sedeadas numa casa rural do século XIX, na aldeia de Nodar, a 150 quilómetros do Porto e 350 quilómetros de Lisboa. «Os criadores, perto de 15 a cada ano e de di-ferentes países, desenvolvem, entre Março e Novembro, projectos ligados ao território, paisagem e antropologia. Recorrem à «arte so-nora, música improvisada, composição contemporânea, vídeo, dança, fotografia, pintura, escultura, instalações».

«O que fazemos é um género de turismo cultural de longa estadia», acrescenta Luís Costa.

Em 2011, andaram pelas serras Patrícia Azevedo (Brasil) e Clare Charnley (Inglaterra), Rogério Nuno Costa (Portugal), Josef Sprinzak (Israel), Carmina Escobar (México), Toine Horvers (Holanda) e Myriam Van Imschot (Bélgica).

Patrícia Azevedo e Clare Charnley «interagiram com as pessoas da zona de Manhouce. Gravaram os sons do milho a cair numa jarra, da água, dos trabalhos no campo». Os intervenientes foram, depois, confrontados com esses sons familiares.

Por seu turno, o israelita Josef Sprinzak levou a sua voz à casa de cada habitante da serra, assumindo um papel entre o músico-poeta/contador de histórias e o «estranho» que executa peças vocais e ac-ções rituais baseadas em línguas estrangeiras.

Todas as intervenções artísticas são apresentadas no festival Vozes de Magaio que acontece em três momentos distribuídos ao longo do ano.

Até 30 de Setembro de 2012, decorrem as inscrições para as Residências Artísticas 2013, subordinadas ao tema «Som do Sagrado nas Comunidades Rurais».

CRIAR ESTRATÉGIAS PARA O TERRITÓRIO«Magaio corresponde ao antigo nome do monte de São Macário. O local integra o imaginário colectivo de todas as aldeias em seu redor. Isto, dada a romaria anual e festa no último domingo de Julho. Magaio era, também, uma divindade naturalista celta que significa 'aquele que nutre, aquele que cria'. Uma óptima e inspiradora metá-fora para uma iniciativa que pretende ajudar a promover a sustenta-bilidade das aldeias serranas», diz Luís Costa.

O projecto Aldeias de Magaio une todas as associações culturais das aldeias serranas. Juntas fomentam o artesanato, a gastronomia a cul-tura. Os habitantes locais trabalham, assim, em conjunto «com maior massa crítica e sentido estratégico, e não de forma casuística, aprovei-tando para tal as valências humanas das diferentes aldeias, tanto os conhecedores do território e das tradições, como uma nova geração de habitantes com competências variadas e complementares».

Conta Luís Costa que «as Aldeias de Magaio são fundamentalmente um projecto de desenvolvimento e preservação. Há elementos cultu-rais e patrimoniais trabalhados de forma activa, como o artesanato, a cultura, a tradição oral, a gastronomia. A nossa percepção é que pouca gente conhecia com detalhe a serra».

OS ARTISTAS REINTERPRETAM A PAISAGEM E A CULTURA LOCAL

TODAS AS INICIATIVAS DA BINAURAL PROCURAM A INTERACÇÃO COM AS POPULAÇÕES

ANUALMENTE, 15 ARTISTAS PROCURAM O CONCELHO BEIRÃO

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«Este é o álbum da maturidade.» É desta forma que o músico Carlos Guerreiro, um dos fundadores dos Gaiteiros de Lisboa, co-meça por definir Avis Rara, o mais recente álbum do grupo, traba-lho com dez faixas lançado a 4 de Junho.

«Gravámos este trabalho em 2009. Mas só agora foi possí-vel editá-lo», conta Carlos Guerreiro. O problema «é sempre o mesmo», desabafa: falta de editora. «Não somos os únicos. Qualquer artista que não tenha o mínimo de vendas garantido tem este problema. É um pouco como o país, não interessa o tra-balho mas as bitolas em termos comerciais», lamenta.

Mas isso «já lá vai», porque «felizmente» apareceu a D’Orfeu, Associação Cultural, e que através da d’Eurice, a sua editora inde-pendente, «nos proporcionou uma máquina promocional numa espécie de edição de autor partilhada».

Para já foram produzidas mil cópias do álbum, com distribuição nacional e internacional, porque «é preciso recomeçar com cau-tela», diz Carlos Guerreiro.

Avis Rara «mantém a essência do que somos», assegura, frisando que o novo disco «integra letras de poemas de autores portugue-ses, como Alexandre O’Neil, com interpretações novas de temas

TEXTO ANA CLARA FOTOS ANDRÉ BRANDÃO (D’ORFEU), MIGUEL SILVA

Avis Rara já cantaApós um hiato de seis anos fora do estúdio, os Gaiteiros de Lisboa regressam com um novo trabalho. Avis Rara é, nas palavras do músico Carlos Guerreiro, o álbum da «maturidade». O elemento da banda lisboeta recorda-nos os 21 anos de um grupo que «continua mais fiel do que nunca à essência da música tradicional portuguesa».

Gaiteiros de Lisboa

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tradicionais e outras recolhas etnográficas». Em Avis Rara há lugar também «ao cancio-neiro popular português, com temas galegos e originais compostos por nós», acrescenta. O nome Avis Rara tem «uma história engra-çada» e «uma razão de ser». «Inicialmente tínhamos escolhido a designação Voos Domésticos, mas os GNR já tinham um tra-balho com esse nome. E queríamos um nome que definisse o álbum como um todo, com toda a sua diversidade geográfica, a reinter-pretação de repertórios locais, e que fosse também a reinvenção das melodias e instru-mentos. E é um pouco isso, uma ave rara, que nos faz ir de norte a sul, acompanhando esse cruzamento de culturas.»

Carlos Guerreiro destaca a música Avejão, o single de apresentação do álbum. «A música é da minha autoria e trata-se de um hino às raí-zes dos Gaiteiros de Lisboa», sublinha, adian-tando que conta com a participação de Sérgio Godinho e do autor e apresentador do pro-grama Viva a Música, da Antena 1, Armando Carvalhêda. Avejão é «uma metáfora ornitoló-gica sobre o poder, as suas hierarquias, e em todas as suas frentes». «É uma música com uma carga social muito forte e não foi esco-lhida à toa». «Vivemos tempos conturbados e quem conhece os Gaiteiros de Lisboa, sabe que antes de trabalharmos a música tradicional, ti-vemos um percurso de intervenção», recorda, vincando que este Avejão é «um pouco a marca dos tempos que o país atravessa».

No mais recente trabalho dos Gaiteiros de Lisboa encontramos, ainda, alguns temas em colaboração com outros intérpretes. Fez Sábado Quinta-Feira, conta com os Adiafa; Pragas, com o contributo de Zeca Medeiros e Os Palácios da Rainha, com Ana Bacalhau.

IDENTIDADE MANTÉM-SE Sobre as duas décadas de existência do grupo (criado em 1991), Carlos Guerreiro consi-

dera que «a identidade mantém-se». «Quando começámos esta aventura havia um elemento incontornável que era a gaita-de--foles e foi à volta deste instrumento que se construiu o grupo. Quisemos construir um som que fosse tradicional mas que fu-gisse a outros grupos já existentes e acho que conseguimos cons-truir estruturas harmónicas polifónicas que casassem bem com a gaita-de-foles», explica.

Por tudo isso, o músico faz um balanço «positivo» destes 21 anos e reconhece que «são grupos como este que têm impedido que a música tradicional portuguesa morra».

Os Gaiteiros de Lisboa estão agora na fase de divulgação do álbum, com vários concertos agendados. Os primeiros decor-rem no âmbito do Festim, Festival Intermunicipal de Músicas do Mundo, tendo já actuado em Estarreja, Ovar, Sever do Vouga e Albergaria-a-Velha. O périplo termina a 26 de Julho em Águeda.

Segue-se a rentrée, como lhe chama o próprio Carlos Guerreiro, no início de Setembro, na Festa do Avante, na Quinta da Atalaia, Seixal.

«GRUPOS COMO ESTE IMPEDEM A MORTE DA MÚSICA TRADICIONAL PORTUGUESA»

E VÃO SEIS ÁLBUNSFiéis à música de cariz tradicional portuguesa, mas com assinatu-ra muito pessoal, os Gaiteiros de Lisboa actuaram pela primeira vez ao vivo em 1994. Um ano depois lançaram o primeiro disco, Invasões Bárbaras. Seguiu-se Bocas do Inferno (1997), Dança Chamas (2000) e Macaréu (2002). O quinto álbum, intitulado Sátiro, chegou ao mercado discográfico em 2006, tendo sido reeditado novamente em 2009. O grupo criou um registo musical com uma sonoridade marcada pela utilização de instrumentos tão diversos como a sanfona, a flauta, a trompa, a ponteira, a gaita-de-foles, os tambores, a kissange e o balafon africano. No currículo, os Gaiteiros de Lisboa contam dezenas de espectáculos em Portugal e no estrangeiro. O grupo integra Carlos Guerreiro, José Manuel David, José Salgueiro, Pedro Calado, Paulo Marinho, Pedro Casaes e Rui Vaz.

«O PROBLEMA É SEMPRE O MESMO: FALTA DE EDITORA»

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JOÃO AFONSOA NOSSA MÚSICA(

JBJ&Viceversanova editora

Áfricatrês antologias

José Serrão, que há anos foi director de marketing da antiga CBS em Portugal, e, mais tarde, também no nosso país, director-geral da Som Livre e da I-Play, protagoniza uma outra aventura musical. Agora lidera uma nova companhia discográfica, a JBJ & Viceversa, que, além de apostar em artistas portugueses (Katia Guerreiro, Claud, Salvador Taborda, Roberto Leal) e ainda na venezuelana Daniela Galbin (grande trabalho o seu primeiro Back to simple, recém-editado), tem o seu grande trunfo editorial centrado na música brasileira com a representação da Biscoito Fino, uma das mais importantes discográficas do país verde-amarelo, que tem no seu catálogo nomes como Maria Bethânia,

Simone, Zélia Duncan, Rodrigo Maranhão, Alcione (acaba de sair o novo Duas faces mais um excelente disco em que participam Lenine, Bethânia, Martinho e Djavan), Zeca Baleiro, Chico Buarque, Djavan e Elba Ramalho, entre outros, além da dupla que lidera a compa-nhia Olívia & Francis Hime.

Desde que a world music começou a ter a divulgação que realmente merece, começámos saber o que de melhor se vai fazendo um pouco por esse Mundo fora em termos de música popular e tradicional. Artistas há que chegam já a ombrear, em termos de vendas e popularidade, com grandes nomes da cena pop/rock. Entre estes estão Youssou´n´Dour, a dupla Amadou & Mariam, os

irlandeses The Chieftains, as malogradas Cesária Évora e Célia Cruz, as estrelas cubanas do Buena Vista Social Club, etc.Entre nós, acabam de surgir três antologias, editadas pela Tumbao/Lusafrica, divididas, respectivamente, por vozes, guitarras e ritmos e onde podemos encontrar sons e vozes famosas de África como Bonga, Boubacar Traoré, Lura, Mário Lúcio, Cesária Évora, Teofilo Chantré, Zeca di Nha Reinalda, Ferro Gaita, Tcheka, Ildo Lobo, Sia Tolno, Tito Paris e outros.Nestes três discos pode mais profundamente aquilatar-se a incrível vitalidade da moderna música africana que, de dia para dia, se vai renovando, evoluindo e tornando cada vez mais uma verdadeira linguagem universal. Uma fantástica viagem musical que nos transporta a paragens tão diversas como Cabo Verde, África do Sul, Chade, Angola, Ilha da Reunião, Gabão...

Engane-se quem, pelo título, pensa que os Iron Maiden poderão em breve actuar em Portugal pois, por enquanto, quem os viu actuar no meeting motoqueiro de Faro em 14 de Julho de 2011, pode considerar--se privilegiado. Nos próximos tempos é muito pouco provável que a banda de Bruce Dickinson estacione por terras portuguesas salvo se, como é habitual, algum dos seus membros resolver fazer por cá umas feriazitas algarvias...Porém, quem quiser ver e ouvir a banda ao vivo pode fazê-lo já no duplo CD ou no DVD En vivo, que regista, através de nada menos de 22 câmaras HD e uma volante, um show fabuloso, gravado a 10 de Abril de 2011, num esgotadíssimo (50.000 pessoas) Estádio Nacional de Santiago do Chile onde a banda actuou com extraordinário sucesso.Duas horas de vitalidade, força rítmica, agressividade sonora e versatilidade instrumental que constituem um momento único na vida desta banda lendária do movimento heavy metal.No DVD podemos ainda encontrar um documentário de quase uma hora e meia onde se fica a saber o que é necessário para pôr em marcha uma mega-digressão mundial, bem como inúmeras imagens inéditas de bastidores que farão as delícias dos admiradores do metal, dos Maiden... e não só!

Duas horas de vitalidade

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Ringo StarrO patinho feio dos Beatles prossegue a sua carreira imune a modas e ditames. Agora lança mais um álbum a solo, em que mostra especialmente as suas fa-cetas de compositor e produtor, assinando desta vez um grande disco pop/rock, rodeado por um naipe de músicos de luxo tais como Joe Walsh, Charlie Haden, Edgar Winter e Dave Stewart, entre outros. Realce para o ins-pirado «Rock island line» e para a recordação ao saudoso John Lennon. Realmente dois grandes momentos de “Ringo 2012” CD Universal

Leonard CohenAo mesmo tempo que se anuncia nova presença entre nós do celebrado autor de So long Marianne, regressa com novo disco, o velho diseur e poeta canadiano Leonard Cohen, que nos últimos anos busca a perfeição e a espiritua-lidade suprema. Chama-se Old ideas e aborda, como é habitual na sua poesia, a morte, a sexualidade, o amor, os relacionamentos sentimentais, o sofrimento e a própria existência do ser humano. Em grande forma vocal e poética, Cohen, o veterano arquitecto da palavra, está mais uma vez na «crista da onda», que o mesmo é dizer nos lugares cimeiros dos tops mundiais, tanto mais que a sua imensa legião de fãs se mantém firme e fiel à sua obra. CD Columbia/Sony Music

Montserrat FiguerasNasceu em Barcelona e foi uma das mais fantásticas intérpretes de música antiga. A sua voz, na hora de se projectar e articular as frases, transformava-se como que por artes mágicas em autênticas cordas de um instrumento! Era de uma beleza rara, serena e surpreendente e dotada de uma elegância sensual e aristocrática; transbordava emoção, paixão e devoção em cada interpretação. Actuou um pouco por todo o Mundo, especialmente à frente do grupo Hesperion XX, que fundou com seu marido em 1974 na Catalunha e cujo objectivo era revitalizar a música original hispânica e europeia anterior a 1800.Um cancro levou-a, cedo de mais, dos cenários e do nosso convívio. Chamava-se Monserrat Figueras e era casada com o grande intérprete de viola da gamba, director musical, produtor e arranjador Jordi Saval, um dos principais

responsáveis pelo mesmo movimento de recuperação da música antiga, encetado por alturas do início dos anos 70 na vizinha Espanha.A sua voz, de características únicas, era inesquecível e estão ainda bem vivas na nossa memória mágicas actuações em Portugal, não só em diversos festivais de música antiga, mas também na capela barroca da Universidade de Coimbra e em inúmeras recitas na Fundação Calouste Gulbenkian!Em jeito de homenagem , Jordi Saval preparou um best of de Montserrat Figueras, La voix de l´emotion, agora editado pela Alia Vox/Megamúsica, que reúne em dois discos (incluindo um libretto com 274 páginas) 36 canções, gravadas entre 1978 e 2009 , consideradas o legado mais significativo de uma mão-cheia de discos que a sua voz abrilhantou ao longo dos últimos 20 anos abarcando musicalmente as épocas medieval, renascentista e barroca.2 CD Aliavox-Megamusica

MarizaA par de Amália Rodrigues e de Carlos do Carmo, Mariza tem sido sem dúvida a outra grande embaixadora do Fado no estrangeiro, não só porque passa lá a maior parte do ano em espectáculos, mas também porque tem registado vendas assinaláveis na edição dos seus trabalhos. E isto além de, muitas vezes, os seus discos estarem nomeados para os prémios anuais na categoria de world music. A sua discografia de estúdio, neste caso concreto composta somente por cinco discos (exceptuam-se aqui as edições em DVD resultantes de shows ao vivo e que completam a sua discografia geral), está agora disponível entre nós sob a forma de uma caixa, que serve simulta-neamente para comemorar dez anos da bem sucedida carreira musical de uma das mais carismáticas intérpretes femini-nas de fado da actualidade. Caixa 5 CD/World Connection/ EMI

Olívia/Francis HimeCasados há mais de 40 anos e com duas carreiras distintas e consoli-dadas - ela como cantora, ele como pianista -, Olívia e Francis Hime levaram finalmente avante a ideia antiga de gravarem juntos.Neste trabalho, Almamúsica, dividido em seis diferentes blocos e que pode definir-se como uma viagem musical a partir de canções que ao longo dos anos os marca-ram, brilham os dois, conseguindo um produto final que emociona pela sensibilidade e harmonia, pela grande riqueza harmónica, e que é uma verdadeira viagem musical pelo tempo, quer para eles, quer para os ouvintes.Uma obra que fica para a história da MPB e que pode ser devidamen-te apreciada ao vivo no concerto que a dupla deu em Lisboa no Cinema S. Jorge em Janeiro último. Francis, que emergiu como músico na geração dos anos 20 no Brasil,

tornou-se mesmo um dos mais brilhantes artistas contemporâne-os de tal modo que a história da MPB não poderia ser escrita sem o seu nome. Versátil, verdadeiro arquitecto dos sons, não restringe o seu trabalho ao piano e antes gosta de explanar outras ideias sendo vulgar incluir nas suas composições também instrumen-tos tradicionais brasileiros. Por seu lado, Olívia, que sempre esteve relutante em levar adiante a sua carreira de cantora por temer ser somente conhecida como «a mulher de Francis», abraçou-a com afinco e temeridade e foi, gradualmente, conquistando o seu

lugar sendo uma das mais reputadas intérpretes femininas da MPB, não se mantendo, no entanto, fiel a um só género musical, antes diversificando. É célebre o seu trabalho A música em Pessoa, em que arriscou musicar, brilhantemente, poemas do grande poeta português Fernando Pessoa. CD Biscoito Fino/JBJ

Smashing PumpkinsAo oitavo album de originais os americanos Smashing Pumpkins atingem o apogeu.O novo disco contem 13 musicas seleccionadas de uma totalidade de 44 temas disponibilizados gratuitamente na internet desde 2009.Produzido por Billy Corgan e Bjorn Thorsrud, Oceania prepara-se para os catapultar para a celebridade face a sua grande qualidade.CD EMI

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Norah JonesDe disco para disco Norah Jones surpreende, não desistindo de cantar tudo que lhe apetece, arrojando e desfilando o seu imenso talento. É assim em Little broken hearts, um disco mais denso, mais ritmado, mais indie e um pouco mais longe do jazz, que tem sido a sua cama musical nos últimos tempos. Mesmo assim brilhando intensamente como uma estrela com luz própria, continua, no entanto, intimista e sedutora como sempre.CD Blue Note/EMI

Maria RitaPropomos aos leitores um exercício: fechem os olhos, ouçam o novo disco de música brasileira Elo e respondam à pergunta sobre quem está a cantar. Muitos dirão, com certa segurança, que é Elis Regina, mas a verdade é que não é a desaparecida diva da MPB. Trata-se, afinal de contas, de sua filha Maria Rita que tem um timbre, uma vocalidade e um modo de cantar igual ao da sua falecida mãe. Ao mesmo tempo,

isto equivale a dizer que estamos em presença de uma voz excepcio-nal e de uma grande intérprete!Com efeito, em poucos anos apenas, Maria Rita já conseguiu lugar cativo na restrita lista das melhores vozes brasileiras da actualidade. Elo é a prova disso e também a confirmação de que a MPB contemporânea, está bem e se recomenda. Ouçam-se, por exemplo, Conceição dos coqueiros, a fantástica versão de Menino do Rio e Coração a batucar e comprove-se a excelência e alta qualidade desta voz e deste trabalho. CD Warner Music

Paul McCartney McCartney foi, sem dúvida, um dos grandes compositores pop/rock do século passado e um grande intérprete. Agora, apesar da idade - acabou de completar 70 anos - , o seu novo disco Kisses on the bottom

traz-nos o antigo partner de John Lennon a cantar ainda na plena posse das suas faculdades vocais e a surpreender tudo e todos, editando desta vez um disco de jazz com 12 clássicos e dois inéditos, depois de, há anos, já se ter aventurado pelos domínios da música clássica.Estamos em presença de um grande disco, bem conseguido, instrumen-talmente perfeito, a que não é certamente alheia a presença de dois amigos de Paul, Eric Clapton e Stevie Wonder, bem como a da banda residente - a banda de Diana Krall - , com a própria a pontificar no piano! Absolutamente imperdível! CD Universal

Roberto AlagnaCom o desaparecimento do grande Luciano Pavarotti, logo os entendidos começaram a interrogar-se sobre quem poderia substitui-lo no seio dos Três tenores, projecto fundado pelo próprio tenor juntamente com José Carreras e Plácido Domingo.Até hoje, a discussão continua, sem haver um consenso, tanto mais que aquele que era apontado como herdeiro do tenor italiano, Salvatore Licitra (que já o havia substituído com grande sucesso aquando de vários impedimentos nomeadamente no Met de Nova Iorque) desapareceu recentemen-te vítima de um acidente de moto!Quanto a nós, quem efectivamen-te merece o lugar é Roberto Alagna, tenor argentino que tem deslumbrado plateias em todo o Mundo!Com um já invejável curriculum, quer em quantidade de discos gravados quer em concertos, Roberto é um notável intérprete do bel-canto e um dos mais prestigiados da actualidade. A atestar este facto mais um registo discográfico com a sua assinatura: Pasion em que interpreta 15 das mais populares canções sul-americanas, como Piensa en mi, La cumparsita, Dos cruces, El dia que mi quieras, La llorona, Cielito lindo, entre outras.São 15 temas imortais, servidos por uma voz privilegiada que não conhece limites, qualquer que seja a área em que se movimente.CD/DGG Universal

Martinho da VilaMartinho da Vila continua a sua saga de levar o ritmo, o colorido e o balanço da música brasileira do povão aos quatro cantos do Globo. Agora, rodeado pela família (Maira, Tunico, Mart´nalia, Preto e Jújú), lançou um novo disco, Lambendo a cria onde explana a seu bel-prazer, samba, baladas, pagode e baião divididos por 15 canções, cuja maioria é de sua autoria ou de alguém da família e… arrasa!Está em grande forma vocal e demonstra que quem sabe nunca esquece e quem é rei no samba, será majestade toda a vida!CD/DVD Vidisco

Maria BethâniaCom a publicação de Oásis, Maria Bethânia, nome maior da constelação musical brasileira atinge a marca de 50 discos gravados, um número assinalável para quem contabiliza 47 anos de carreira!No novo álbum, esta nativa da Baía, que grava pela primeira vez um texto seu em disco, demonstra de novo todo o seu profissionalis-

Eis os discos seleccionados de entre a grande quantidade de edições registadas ultimamente e que acabam por ser, em simultâneo, as nossas escolhas.

JOÃO AFONSOAS NOSSAS ESCOLHAS(

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mo na escolha do reportório musical, de textos e dos autores: de Chico Buarque a Lenine, passando por Djavan, Roque Ferreira, Jotta Veloso e Fernando Pessoa, entre outros , o seu «olho clínico» é realmente impar pois todos os temas tem a ver consigo, com a sua sensibilidade, com o seu gosto pessoal. Cantando cada vez melhor, Bethânia assina em Oásis mais uma obra-prima na sua já extensa discografia.CD JBJ&Viceversa

The ChieftainsJá não há adjectivos que cheguem para catalogar os irlandeses The Chieftains, que costumo classificar como a maior banda da Irlanda! Termos como inspiradores, brilhantes, emocionantes ou esplendorosos são pouco ainda para classificar a música que estes músicos virtuosos vêm fazendo desde há quase meio século. Tocando, cantam a alma de um povo, alegram todos ao seu redor e mostram como a música que fazem pode ser um lenitivo para muitos males, problemas, muitos amores e desamores.No seu novo disco Voice of ages, onde surge de novo como convidado o seu grande amigo e gaiteiro galego Carlos Nuñez, apesar de nos presentearem com menos instrumentais do que é hábito, pois a comitiva pop/folk que os acompanha nesta aventura (Bon Iver, Imelda May, Punch Bros, e outros) encarregou-se de vocalizar muitas canções, os Chieftains mostram que ainda estão aí para as curvas, durante muitos mais anos ou não fossem eles como o seu familiar uísque irlandês que «quanto mais velho melhor!CD Hear Music/Universal

Miguel AraújoSe outra virtude não tivesse, só o facto de compor e cantar em português faria de Miguel Araújo um caso à parte na música que se faz em Portugal.

Ele vem juntar-se a outros grandes letristas portugueses como Sérgio Godinho, Carlos Tê ou Jorge Palma que, habitualmen-te, brincando com as palavras, dizem grandes e duras verdades. Com efeito, no seu primeiro disco a solo, o membro dos Azeitonas e da dupla Mendes e João Só, revela-se, além de um excelente intérprete e instrumentista, um grande escritor de melodias e letras. Quem não ouviu ainda, nas redes sociais ou nas rádios a canção Os maridos das outras? Poucos, certamente, tal a dimensão que esta criação de Miguel já alcançou e o país inteiro trauteia...São 11 melodias orelhudas, servidas por letras de cariz humorístico/social e integram Cinco dias e meio (assim se intitula o CD) que na sua versão especial compreende ainda um DVD contendo 11 videoclips, o tema principal do disco, bem como comentários tema a tema de todas as canções do álbum. Miguel Araújo, um nome da música portuguesa a fixar já em termos de futuro!CD/DVD EMI

Paula FernandesAlém de ter participado no mais recente disco do colombiano Juanes, a mineira Paula Fernandes, nova menina bonita da música brasileira, de quem demos notícia há números atrás, está de volta às edições com Meus encantos, mais um belíssimo disco onde exibe

todo o seu inegável talento de intérprete e instrumentista, além de confirmar a sua veia de compositora, assinando todos os temas do disco, incluindo duas parcerias com Zézè di Camargo e outra com Zé Ramalho com quem faz um dueto em Harmonia do amor. Uma novel artista que deixou já de ser revelação para passar a ter o estatuto de mais uma grande certeza da música brasileira contemporânea.CD Universal

Sigor RósNa terra de Bjork emergiu, há cinco discos atrás, um projecto que gradualmente está a conquistar o mundo da música internacional. Trata-se dos Sigor Rós que, com a publicação de Valtari acabam com

um hiato de quatro anos em matéria de originais.Com o novo disco estes islandeses continuam a quebrar barreiras e a desafiar convenções e preconcei-tos, arrojando cada vez mais em termos de sonoridade muito mais próxima desta vez do ambiental do que da pop, onde se movimenta-ram muitas vezes.Um disco influenciado, e muito, ao jeito do seu vocalista Jon Birgisson e que tem, por isso mesmo, muito de pessoal e intimista e que, apesar de tudo, emociona e seduz mesmo aqueles que acham o grupo longe das propostas sonoras evidencia-das nos primeiros discos dos Rós.CD EMI

Nancy VieiraCom o desaparecimento da diva dos pés descalços muita gente começou a conjecturar quem ocuparia o trono deixado vago por Cesária Évora e as opiniões dividem-se. Deixo aqui mais uma proposta para a discussão: quanto a mim, quem mais perto de Cesária, da sua essência, da dolência da sua voz, do reportório habitual, da maneira de cantar é

sem dúvida Nancy Vieira de quem acaba de se publicar No amá, um disco todo ele emoção à flor da pele e onde coabitam mornas e coladeras, valsa com Brasil, B-Leza com Teófilo Chantre, Eugénio Tavares com Amândio Cabral e Mário Lúcio, melancolia com saudade...Um disco onde a sonoridade tradicional da música de Cabo Verde serve na perfeição de leito conjugal para as canções superior-mente interpretadas por Nancy . CD Harmonia/Lusafrica

JuanesCelebrado intérprete de mega-érprete de mega-rprete de mega--sucessos como Camisa negra, A Dios le pido ou Todo mi vida eres tu, o colombiano Juanes lança agora um disco intitulado MTV unplugged que, como o próprio título revela, resulta de um espectáculo acústico registado nos palcos da MTV, com a direcção musical do autor do célebre Borbujas de amor, Juan Luís Guerra, e que teve também a participação da brasileira Paula Fernandes e do espanhol Joaquin Sabina em dueto com Juanes em Hoy me voy e Azul sabina, respectivamente.Um duplo disco (CD/DVD) contendo três inéditos, novos arranjos e um acompanhamento de luxo a cargo de uma orquestra de 16 músicos que proporcionou uma sonoridade quase sinfónica e que nos apresenta Juanes com todas as suas capacidades interpretativas em alta, intimista e arrebatador.CD Universal

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Há longo tempo germinava-nos a vontade de trocar impressões com Rui Morisson, bem-falante, apreciado por muitos ouvintes e autor de bons programas na rádio, onde deixou nome bem vincado, em especial no seu Morisson Hotel. Muitos anos mais tarde, no cinema, surge numa figura de certo modo enigmática, em trabalhos de eméritos realizadores. Discreto e imponente. Cativante, mesmo que os personagens o não sejam. Chegamos a ter a ideia de que a sua pose, distinta e distante, importa mais aos realizadores do que a ele próprio. «Você conhece-me?», pergunta ao aceitar o mote no primeiro instante. «Claro, que mais não fosse dos filmes de Fernando Lopes.»

A ideia era avivar, na presença do actor, a memória do cineasta que marca profunda-mente o cinema português. Mantinha-se a curiosidade, mas agora esbatida perante uma conjugação de vontades. «Não vamos falar da rádio», avisamos. «Ainda bem», re-plica. «Já estava cansado, senti que queria, podia, fazer coisas diferentes.»Cedo ficamos a saber que o nosso entrevis-tado gosta da vida, não de holofotes; mas também que tem quatro filhos, «dois traba-lham no cinema, um na publicidade, outro em informática».No final, fica-nos a impressão, muito forte, de que a forma de viver de Rui Morisson, se não é totalmente despida de ambições, as limita aos parâmetros da sua dignidade. Em menos palavras: um homem simples, tão simples que a glória não lhe interessa mesmo nada.O Delfim, Lá Fora, Os Sorrisos do Destino, Câmara Lenta. É o actor dos últimos filmes de Fernando Lopes. Há quem o considere como o espelho, em que o cineasta, revê o universo da vida, em que também disserta

O enigmático actor de Fernando LopesA Câmara Lenta de Fernando Lopes registou, ao ritmo quase perfeito, frases curtas, incisivas, por vezes, desabridas, sempre na valência amarga do filme interpretado por Rui Morisson, o actor preferido do cineasta. Implicitamente, estamos a recordar um homem que ambos admiramos.

Rui Morisson

TEXTO CARVALHO SANTOS FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

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sobre a morte. Vimos, em datas próximas, os dois filmes. Como os liga?A ligação está na tragicomédia de dois fil-mes clássicos. A infelicidade tem diferen-tes resultantes. Carlos é um personagem positivo, acaba a rir; o egocentrismo de Santiago, chame-se-lhe marialva do século XX, ou machista do século XXI, vai conduzi--lo a uma profunda depressão. Sorrisos do Destino é uma obra naturalista, Câmara Lenta transcende, penso que pela com-ponente fortemente poética, o próprio realismo.A incidência em citações de Alexandre O’Neal e a belíssima cena ao redor de uma elegante mesa de chá, são elementos transcendentemente poéticos…Serão. Porém, da planificação aos diálo-gos, a poesia é sempre explícita nos filmes do Fernando. O realismo decorre da acção, que começa num mergulho em que falha o resgate do irmão, e termina num mergulho sem retorno – a desistência de viver.A tomada de consciência da perda de al-guém querido nem sempre é imediata…O desgosto que eu tenho não é fácil de de-finir. Sinto uma falta, uma falta constante! Penso no Fernando quase todos os dias, quase todos os dias penso em cinema. É inevitável. Ele marcou-me tão profunda-mente… Como realizador e como pessoa, na relação de trabalho e na relação pessoal.O Fernando aceitava sugestões? No caso, sugestões suas…Essa é uma boa questão, apetece-me falar disso. Ele era tão generoso! Não conheço actor que tenha trabalhado com ele que não tenha adorado. E sei de alguns que aceitaram condições menos boas por puro prazer. Sim, ele dava margem de liberdade, até de lhe proporem quadros diferentes. Costumava dizer que gostava de ser sur-preendido! Não tinha medo das ideias dos outros, de que lhe estragassem os filmes.Mas não interferia no trabalho dos intérpretes?Como hei-de explicar? Ele sabia tão bem o que queria, explanava tudo tão bem, que tudo acabava por sair naturalmente.Em Câmara Lenta, mais do que nos Sorrisos do Destino, cigarro atrás de ci-garro, aqueles tiques, gestos de mãos e de cabeça tinham por intenção mostrar um homem intranquilo, pensamos…Com certeza, ajudavam a mostrar um es-tado de espírito. De contrário, eu não teria feito; ou então, o Fernando ter-me-ia avi-sado, «tira isso, tira»; ou então, «menos, menos».Há um instante em que Salvador, num excesso de afirmação ditatorial, puxa os cabelos sobre a testa, alonga o rosto,

endurece o olhar e… estamos a ver um imperador romano. Ensaiaram aquilo?Já não é a primeira a pessoa a falar-me disso. A primeira foi o Fernando, ele gos-tou. Mas olhe que não, aquela atitude saiu-me quase instantânea, na vivência do papel que desempenhava.(Rui Morisson não ri por coisa pouca. Esta recordação fê-lo sorrir com vontade)Desta vez, não à Câmara Lenta, viramo--nos para a câmara de filmar de Fernando Lopes. Pode afirmar-se que esta era uma câmara inteligente?(Morisson não esperava a pergunta, demora um tempo a responder)Ah! Muito inteligente! Ele nem precisava de a ver, está a ver? Explicava o plano em abstrato, se quiser. Olhava um determi-nado local e sabia, exactamente, como o queria filmar. Ia junto do director de fo-tografia e dizia: «Isto é assim, pás, pás, é assim!»Tem méritos firmados. Não lhe passa pela cabeça dar um salto em frente?Não sou pessoa de andar atrás de holofo-tes. As coisas acontecem quando têm de acontecer.Mas tem projectos…Tenho algumas coisas em carteira, e outras em perspectiva. O meu agente é que trata disso. O cinema está numa situação tão complicada…Íamos chegar aí. Já se adivinha o requiem?Para usar um lugar-comum, a esperança é a última coisa a morrer. Há muita gente a lutar pela continuidade do cinema portu-guês. Acabar com o cinema não passa pela cabeça de ninguém. Vendo melhor, passa por algumas cabeças…

Em contraciclo, o cinema português está em franca progressão, tanto técnica como qualitativa…O reconhecimento internacional é impor-tante, é preciso ser cego para não o ver.Vamos falar, em breves palavras, de alguns cineastas do momento? Podemos começar por João Canijo?Nunca trabalhei com Canijo. Gosto do tra-balho dele.Miguel Gomes….É já um caso muito sério do cinema português.João Salaviza…É um jovem com um talento incrível. No seu último ano de conservatório, tive oportunidade de trabalhar com ele. Fez um pequeno filme, espantoso. Duas Pessoas é a adaptação de um conto de Herberto Hélder. Era eu e a Julie Sargeant. Agora é fácil dizê-ê--lo, mas senti e tenho testemunhas que me ouviram. «Este miúdo é diferente, há-de chegar longe.»Passamos aos realizadores com quem tra-balhou, além de Fernando Lopes, claro. No Mal, de Seixas Santos…Fez muito pelo nosso cinema. Para mim foi um grande professor.João Botelho…Em tudo que faz, é de um rigor absoluta-mente fantástico.Solveig Nordlund…Os três filmes dela que fiz são adaptações de obras literárias. Como às vezes se diz, é uma cineasta que vai ao osso do personagem. Não se está a esquecer de Raúl Ruiz?Ah! O Rui também esteve nos Mistérios de Lisboa, era o brilhante Marquês de Montezelos.

«PENSO NO FERNANDO QUASE TODOS OS DIAS, QUASE TODOS OS DIAS PENSO EM CINEMA»

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Um mestre na verdadeira acepção da pala-vra. Uma pessoa de uma gentileza e sentido de humor únicos. Um homem com pro-funda sabedoria, do cinema e da vida. E cul-turalmente enciclopédico.Em seu entender, o cinema português ganhou em realismo um quinhão de po-esia perdida? Que, no entanto, sempre o caracteriza…Talvez sim, tenho notado essa tendência. Mas a componente poética é uma reali-dade endémica. Qualquer que seja o tema abordado pelos nossos cineastas, a poesia é sempre subjacente.Um bom actor é necessariamente culto?Ajuda muito.As sua preferências culturais…Cinema e literatura. Desde que me conheço.O teatro interessa-lhe menos?Não. Não me interessa nada menos! Gosto das duas coisas, tenho é estado menos no teatro. Nos últimos dez anos fiz sete peças, três com o João Lourenço no Teatro Aberto: A Democracia, de Michael Frayn; Galileu e

O Senhor Puntila e o seu Criado, ambos de Bertold Brecht.Quer destacar encenadores portugueses?João Lourenço, Luis Miguel Cintra, Jorge Silva Melo e António Pires.Já que admitiu estas referências, vamos ao cinema e à literatura?Antes do mais, quero explicar a minha ape-tência pela cultura norte-americana. Toda a minha família é açoriana, do Faial e do Pico, eu fui o primeiro a nascer no Continente. O meu pai era oficial da marinha mercante, passei com ele mais tempo na América do que em Portugal. Posto isto, direi que me pode agradar um filme que venha da Arábia, do Cazaquistão ou do Pólo Norte. Mas prefiro o ci-nema dos EUA. Dou como referências A Desaparecida, de John Wayne, Apocalypse Now, de Coppola e Taxi Driver, de Martin Scorsese. O meu escritor favorito é Philip Roth. Cito-o porque está vivo, é contempo-râneo e continua a escrever sobre proble-mas actuais. Releio os clássicos: Steinbeck, Tennessee Williams, Hemingway…

«COSTUMO DIZER QUE TENHO BOA BOCA»Considera heresia passar da cultura para a gastronomia?De modo nenhum. Costumo dizer que tenho boa boca, mas é um modo de dizer, pois a comida ajuda à boa disposição. E se a partilha está em tudo, à mesa também é importante.Resumindo…Gosto da cozinha tradicional portuguesa, principalmente da alentejana. Daqueles pratos com muitas ervas, de paladares discretos, mas tão saborosos… Também sou adepto de um bom bacalhau.Alguns desses paladares são bem pujantes…Concordo, mas nem esses se tornam enjoativos, não é? O indispensável, a todos esses sabores, é um vinho de qualidade condizente, alentejano, claro.Quanto ao bacalhau…Não gosto com natas nem espiritual e tem que ser do bom. De resto, vai de toda a maneira, cozido ou assado, e com os acompanhamentos indicados.Aprecia a cozinha de outros países…Gosto da mediterrânica, mas também a praticamos cá… Sem ser para o dia-a-dia, aprecio as cozinhas indiana e vietnamita. E gosto muito de sushi. Não aprecio a cozinha francesa. Tempera o peixe com qualquer azeite?Cozido ou grelhado, adoro o peixe das nossas regiões, mas só tempero com limão, excepto na sardinha. Na sardinha ponho azeite.(para acentuar a gordura ou porque às vezes lhe sai magra? Ficamos nós a pensar)

«ACABAR COM O CINEMA NÃO PASSA PELA CABEÇA DE NINGUÉM. VENDO MELHOR, PASSA PELA CABEÇA DE CERTAS PESSOAS»

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7ªARTE CARVALHO SANTOS(

Manoel em VenezaManoel de Oliveira teria preferido estrear O Gebo e a Sombra numa sessão singular. Terá sido sensível a pressões da organização e, lá o teremos, ao decano do cinema português e referência mundial, uma vez mais, no Festival de Veneza. Na 69.ª edição, que decorrerá de 29 de Agosto a 8 de Setembro, no Palazzo del Cinema.

Será, sob a direcção de Albert Barbera, uma festa do cinema em Veneza com muito menos filmes e aparatos do que a anterior edi-ção do festival que se integra na Bienal de Veneza. O que significa selecção mais criteriosa das obras a concurso, menos de vinte à procura do Leão de Ouro, enquanto o total de exibições do Festival Internacional de Veneza não deverá ultrapassar as setenta.

Um Leão de Ouro já está ganho. Pertencerá a Francesco Rosi, pré-mio de carreira. Filmes como Salvatore Giuliano, O Caso Mattei, As Mãos Sobre a Cidade e Três Irmãos, fizeram do ex-assistente de Luchino Visconti, o principal renovador do cinema italiano, polí-tica e socialmente empenhado. Aliás, este reconhecimento vem na sequência do Urso de Ouro Honorário, que Berlim concedeu a Rosi em 2008.

Na mesma linha, de reconhecimento por figuras prestigiantes do cinema italiano, se justifica a pré-abertura, em 28 de Agosto, no centro histórico da cidade, no San Polo Campo de Arena: a

obra-prima de Giuseppe De Santis, Roma Minério de 11, situa-se na fronteira do neo-realismo. Mais conhecido entre nós pela autoria de Arroz Amargo, De Santis é adorado em Itália, ao ponto de a sua morte, em 1997, ter levado o governo a decretar um dia de luto.

Em companhias como estas, ficam bem, argumento, filmagens e actores que trabalharam com o mestre do cinema português. Há muito tempo que Manoel de Oliveira vinha manifestando o desejo de prestar homenagem a Raúl Brandão, autor de Húmus. E ainda bem que teve tempo, tinha 102 anos quando filmou a peça O Gebo e a Sombra, em quatro actos para cinco personagens. E que persona-gens estes actores, capazes de agigantar Brandão e Oliveira!

Então veja-se: Michael Lonsdale (Gebo); Cláudia Cardinal (Doroteia); Leonor Silveira (Sofia); Ricardo Trêpa (João); Jeanne Moreau (Candinha); Luis Miguel Cintra (Chamiço). Pois, Manoel, está agora, um ano mais tarde, noutra! Está na Igreja do Diabo: a filmar com base em brilhantes estorinhas, interligadas e brasileiras,

BELÍSSIMA ENCENAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DO MESTRE

Estreia mundial

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7ªARTE(de Machado de Assis – uma visita do diabo à Terra, um adultério e desilusões de um estudioso de aves.

Já o presidente do júri é de diferentes coturnos. Emérito roteirista e director de cena, considere-se que o também realizador Michael Mann é um máximo expoente do cinema made in Hollywood. O Ladrão Profissional, Caçada ao Amanhecer, O Informador e Heath –Cidade Sob Pressão são de pregar o rabo à cadeira, threllers e Killers sempre de grande qualidade. Portanto, bem qualificado para es-colher entre filmes de Thomas Anderson, Brian de Palma, Silvio Soldini, Terrence Malick e outros.

LONGO ALCANCE DE CURTAS EM VILA DO CONDEEm Vila do Conde, o Teatro Municipal abre portas ao cinema no próximo dia 7 e o festival prolonga-se até 15 de Julho. Mas este vai mais longe na amplitude. Na Galeria de Arte Cinemática, a expo-sição da Solar é consagrada a Stanley Kubrick e a muitos autores que se identificam com a filosofia do mestre. O público pode rever Laranja Mecânica, The Shining e The Killing. E pode também assis-tir a obras do já renomado realizador francês Olivier Assayas, ou do norte-americano Robert Todd. E concertos musicais, este ano são mais do que nunca. Uma festa bonita para quem fez 20 anos de cinema!

Nunca tantas obras de autores portugueses foram exibidas como na 20.ª edição do Festival Internacional de Vila do Conde (quase 70!), nem tantos filmes se candidataram (mais de 2000!). A razão é simples: Por um lado, a qualidade arrastou consigo mais quanti-dade; por outro, com a produção quase completamente parada, por falta de definição e apoios ao cinema português, há que aproveitar a oportunidade – pode ser a última!

Há nomes consagrados e outros muito prometedores: Basil da Cunha, Gabriel Abrantes, Filipa César, João Pedro Rodrigues, Sandro Aguilar, Leonor Noivo, Filipe Abranches, Sandro Aguilar. Porém, a presença portuguesa não se limita a estes e outros con-correntes à competição nacional (19no total de 65) . O projecto Campus/Estaleiro permitirá a visão de A Rua da Estrada, de Graça Castanheira; Obrigação, de João Canijo; Cinzas, de Pedro Flores; e Um Rio Chamado Ave, de Luís Alves de Matos.

Mais difícil será fazer destaques na competição internacional. A organização aponta, entre outros realizadores, Dan Ojari, Mohan Kumar Valasala, Vladimir Dembinski, Caroline Deruas, Danis Tanovi…

O TERROR BATE À PORTA TODOS OS ANOSGáudio para os apreciadores do género, o cinema São Jorge, volta a acolher, pelo sexto ano consecutivo, o Festival Internacional de Terror de Lisboa. À data em que damos nota do acontecimento que deverá decorrer entre 12 e 16 de Setembro, os responsáveis do MOTELx estavam ainda em fase de selecção das candidaturas, que encerraram no passado dia 15. Mas já se pode falar de uma antes-treia, a de Kill List, de Ben Wheatley.

O realizador britânico relata os problemas de um matador profis-sional. Interrompe um período de reflexão para atender os amigos que lhe encomendam uma lista de pessoas a abater; mas a missão corre mal e ele vê-se emaranhado na própria teia. «Eu quis fazer um filme realista, que transcenda o género horror», disse Wheatley na apresentação. Pelos vistos conseguiu-o, ao ponto de o espectador se tornar sensível à má sorte do protagonista.

POCAS PASCOAL VITORIOSA EM LOS ANGELESA angolana Pocas Pascoal surpreendeu Los Angeles ao conquistar o Grande Prémio de Ficção. Por Aqui Tudo Bem, que passou pelo IndieLisboa, é a história de duas irmãs muito jovens que abando-nam Angola para fugir à guerra colonial. Em Lisboa, antes da reden-ção, sofrem agruras. É, afinal, uma história baseada na experiência de vida da própria realizadora. O director artístico, David Ansen, considerou o filme como «ousado, fresco e com uma visão que ex-pande o horizonte do cinema independente».

A LARANJA QUE IMORTALIZOU STANLEY KUBRICK

KILL LIST DE BEN WHEATLEY NO MOTELx

FUGIRAM DA GUERRA PARA O PURGATÓRIO

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VARIAÇÕES AINDA SEM VARIAÇÃOSe na foto junta, António Variações está com óculos de tesoura, o realizador João Maia tem um tesouro entre mãos e factores azia-gos não lhe permitem mostrá-lo na tela… Recorde-se que os estu-dos de pesquisa começaram em 2003; e cinco mais tarde, o projecto já tinha quase tudo, guião, actores, ��deos apresentados… �m de-actores, ��deos apresentados… �m de-sentendimento com a produtora de Alexandre Valente le�ou o caso para tribunal. Demorou, mas no fim do ano passado foi dada razão ao cineasta.

João Maia e toda a equipa das filmagens reiniciariam, portanto, os trabalhos, tudo parecia indicar que, neste 2012, Variações seria dado à estampa. Mas é apanhado pela crise do cinema, �olta a ponto morto. O realizador tem um no�o acordo, tal�ez lá para Setembro possa confirmar com que produtora. A má experiência justifica a reser�a. «Ninguém está seguro, ainda menos as produtores», disse o realizador à Epicur.

RECORDAR A CIDADE DE DEUSRealizado em 2002 por Fernando Meirelles, Cidade de Deus é um dos grandes clássicos do cinema mundial, um filme onde a fa�ela é a rainha plebeia, que canta os seus salmos de alegria, des�entura e morte.

Recorde-se que Meirelles se fundamentou no romance escrito cinco anos antes por Paulo Lins, respeitando-lhe o próprio nome. Alguma coisa mudou na fa�ela, é certo, a not�cia que tratamos aqui é o lançamento em Portugal, da obra a editar pela Caminho neste Julho. Em Maio, Desde que o Samba é Samba agitou os meios

literários de todo o Brasil. E desta �ez não será preciso esperar cinco anos para a sua adaptação ao cinema, já há pretendentes. A memó-ria de Paulo Lins , que só tem 53 anos, remonta à escola do samba--enredo. O seu caderno de apontamentos está replecto de sambas e sambinhas, de nomes de cantores e compositores. Ele próprio, na ju�entude, fez composições.

ANGELINA NÃO É NENHUMA BRUXAAngelina Jolie nada tem de bruxa, mas a �erdade é que assume o papel de �ilã na no�a �ersão da Disney, Maleficent, �ersão orientada por Robert Stromberg, com estreia pre�ista para 2014. Para �ariar, de tão batida e repetido que está o conto da Bela Adormecida, tro-cam-se as �oltas e a actriz passa a bruxa má.

De�e agradar-lhe o personagem, não lhe chega já ser �ista como mulher bela e boa fada, neste caso na condição de embaixadora do comissariado da ON� para os refugiados, aos quais já fez �ários do-nati�os. Ou, �erdadeiramente, Angelina é uma mulher tão �ersátil como corajosa. Em tempos saiu do palco, emprestou a imagem a slogans publicitários. A recente experiência como realizadora, não lhe correu bem nem mal. Em In the Land of Blood and Honey, retra-tou a Guerra dos Balcãs à sua maneira, dif�cil seria agradar a gregos e troianos.

SALAVIZA COM FILIPA E PAULO NA MALAPOSTAA Malaposta é reincidente na apresentação de extensões do IndieLisboa e escolhe bem. Neste quase Verão, uma das mais apre-ciadas sessões contou com o duo Sala�iza-Filipa Reis a que juntou a di�ertida Barba de Paulo Abreu.

Começando por este, o Portugal de hoje é mimetizado nas confron-tações entre um chico-esperto, um sonhador, um simplório e um preguiçoso, �i�endo numa comunidade pré-ci�ilizacional. Resulta quase alegre e não bate mal este pequeno filme a preto-e-branco.

Cama de Gato, de Filipa Reis e Miller Guerra, �encedor do último Indie, transporta-nos para um uni�erso infantil, com arte e extrema graça. Tem corrido o pa�s em carreira ascensional.

É imposs��el dissociar Cerro Negro das obras de Sala�iza que con-quistaram ouro em Cannes e Berlim, ou não fizesse parte da trilogia que prima por rigor narrati�o e primorosa direcção de actores. Em Arena, Mauro �i�e em prisão domiciliária; Rafa descobre às seis da manhã que a mãe está detida numa esquadra; Cerro Maior é o filme do meio, o que este ano conquistou Roterdão. Anajara faz do amor a sublime expiação. Na prisão de Santarém, dia da �isita semanal, o companheiro espera-a e ao filho… Sempre o ciclo da separação.

JOÃO MAIA AINDA ESPERA POR SINAL VERDE

DESDE QUE O SAMBA É SAMBA

POR UMA VEZ, ANGELINA É A MÁ DA FITA

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Agora povo agora pulso/agora pão agora poema. A estrofe é do poeta cabo-verdiano Corsino Fortes (em Do ónus de ser ao ónus de crescer ilha, da antologia Pão & Fonema) e coloca por ordem as prioridades na vida do Homem: paz, pão e poema. Ou, como escreveu Natália Correia: «Ó subalimen-tados do sonho! A poesia é para comer.» Foi deste último verso que nasceu o título da antologia de poesia lusófona, com con-ceito original e coordenação geral de Ana Vidal, que venceu o Best Food Literature Book dos Gourmand Book Award 2007 e o prémio de Melhor Livro de Literatura Gastronómica 2008, pela Academia Portuguesa de Gastronomia.

Nessa altura, A Poesia é para Comer: Iguarias para o Corpo e para o Espírito era ainda um livro com capa a preto e branco, o esboço do álbum agora disponível na loja da editora Babel, em Lisboa, com boas perspetivas de distribuição alargada em Portugal, tal como já acontece no Brasil. São 250 páginas de feliz correspondência e fusão entre poemas, criações gastronó-micas e obras plásticas, assinados todos por diversos criadores de todo o espaço lusófono. Tal como cada fonema diferencia o significado das palavras, também aqui cada sensação provocada no leitor confere unidade particular ao conjunto: uma festa de celebração dos prazeres subjectivos da poesia, da comida e da expressão plástica, no espaço fraterno da comunidade da lín-gua portuguesa.

Ana Vidal, guionista, letrista, com poesia, contos e prosa poética publicada, tem um longo currículo de actividade ligada à co-municação, em jornalismo, copywriting, assessoria de imprensa e escrita criativa. Daí resulta a proposta muito bem conse-guida de união de linguagens em A Poesia é para Comer, decorrente da escolha prévia, por parte da coordenadora, dos poemas (cada um com pelo menos uma referên-cia gastronómica), dos chefes convidados (com apoio, em Portugal, da consultoria do chefe José Avillez, e, no Brasil, da curado-ria da crítica gastronómica Luciana Frões)

e das reproduções de obras plás-ticas incluídas. Assim se de-gustam poemas de autores tão díspares como Bocage, Ruy Belo, Clarice Lispector, Ondjaki, Adélia Prado, Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Cesariny, Gil Vicente ou Vinicius de Moraes e criações ou sugestões dos melhores che-fes e gourmets dos dois lados do Atlântico, pontuadas por obras de Cândido Portinari, Josefa de Óbidos, Vik Muniz, Fernando Calhau, Emmanuel Nassar, Joana Vasconcelos ou Alfredo Volpi, entre muitos outros.

No pátio da sua casa em Sintra, numa conversa regada a café e chá de gengibre, Ana Vidal insiste em que «a cozinha é uma forma de alquimia». Fala do afecto pela «poesia, comida estranha» (Carlos Drummond de Andrade) e de como, no seu livro, cada poema deu origem a uma receita, com a palavra como elemento de ligação entre os dois. A refei-ção completa estende-se por seis capítulos: Prelúdios Inspirados (entradas), Boas Companhias (acompanhamentos), Prazeres da Carne, Presentes do Mar, Finais Felizes (sobremesas) e Néctares dos Deuses (bebidas e licores). No prefácio, o poeta Nuno Júdice apela a «saborear a língua» e a poetisa brasileira Astrid Cabral elogia «uma saudável aliança entre igua-rias que costumam comparecer isoladas, como se pertencessem a mundos incomu-nicáveis […] o alimento concreto e o abs-tracto, dispostos lado a lado em receitas e poemas». A Poesia É para Comer é, pois, um desfile de luxo de 100 receitas poéticas para a fome de coisas boas na mesa e no espírito.Quais foram as suas primeiras memó-rias afectivas da poesia e da cozinha?

O meu pai, Paulo Vidal, veterinário,

gourmet, era também um poeta e um le-trista [autor do Fado do Cavalo Russo]. A poesia veio-me pela mão dele. Entre as poesias que ele costumava dizer para mim e para os meus irmãos, lá estava a Nau Catrineta, muito ligada à nossa histó-ria épica. Na nossa casa, havia o culto da cozinha e, dos pratos com dias certos na semana que espreitávamos no tacho, lem-bro-me muito dos cozidos à portuguesa dos sábados e da língua de fricassé dos do-mingos. E lembro-me dos pastéis de massa

TEXTO FILIPA MELO FOTOS MIGUEL SILVA

Ana Vidal uniu pintura, poesia e gastronomia num álbum luxuoso, em homenagem aos prazeres da vista, da palavra e da boca.

Pão e fonema

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tenra da minha mãe, aos quais um tio meu chamava «pastéis de nada com recheio de coisa nenhuma». [risos]Os laços das pessoas com a comida, tal como com a poesia, são afectivos e muito subjetivos. O que é que unifica os vários sabores que este livro propõe?

O denominador comum são as emoções e as memórias olfactivas, visuais e de es-tados de espírito que podem ser desper-tadas no leitor. É a sensorialidade das três artes envolvidas, sendo que eu pretendia,

precisamente, dar à gastronomia o esta-tuto de arte maior. Agostinho da Silva diz: A quem faz pão ou poema / só se muda o jeito à mão / e não o tema. Se a poesia é mais subtil, a gastronomia é uma forma de comunicação universal e muito direta, que provoca reações imediatas e inten-sas. A comida é uma muito forte forma de influência.Este livro acabou por só ser possível graças a apoios angariados no Brasil...

Depois da primeira edição, modesta, em

2007, esta edição de luxo foi via-bilizada, sim, pela muito eficaz lei do mecenato brasileira e por uma equipa, à excepção de mim, inteira-mente brasileira. Por isso aumentei a proporção de poetas brasileiros incluídos.Qual era o seu principal objectivo?

Antes de mais, através da gastro-nomia, que está muito na moda, trazer novos leitores para a poesia, muitas vezes envolta numa aura de inacessibilidade. E proporcio-nar também o contrário: levar as pessoas que vivem enfurnadas nos seus olimpos literários até ao uni-verso da cozinha. Como é que foi a adesão dos vários criadores convidados a participar?

Só tive três nãos: os do artista plástico Pedro Cabrita Reis, do chef Vítor Sobral e de um novo poeta português, quase desconhecido [o livro inclui vários criadores mais ou menos desconhecidos, nele in-tegrados com a mesma visibilidade do que os consagrados]. De resto, a adesão foi entusiástica. Para os chefes a quem propôs que criassem receitas a par-tir dos poemas seleccionados, este deve ter sido um desafio insólito...

Tudo começou e partiu dos po-emas. Creio que todos se senti-ram lisonjeados com a proposta. E houve um grande empenho, já que todos eles têm muito pouco tempo disponível, também por-que são, hoje em dia, considera-dos e tratados como estrelas. E, na verdade, a generalidade deles são muito mais do que cozinheiros. São pessoas muito completas, como por exemplo, o Nuno Diniz [atual chefe executivo da York House, em Lisboa], que também pinta, com-

põe e escreve.Mas existe, de facto, essa lógica de estrelato...

... e que há de passar...Sim, talvez, mas que é hoje uma rea-lidade que pode até ofuscar a capaci-dade de avaliação dos novos chefs e da nova cozinha que criam. Este livro permite, aliás, avaliar a capacidade de resposta de cada um.

Há muito embuste na cozinha hoje em dia, mas também existe muito talento.

A POESIA VEIO-ME PELA MÃO DO MEU PAI VETERINÁRIO, GOURMET E TAMBÉM UM POETA

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Este livro propôs um teste de criativi-dade aos chefes convidados e, portanto, apelava a essas construções e descons-truções do que era tradicional. Ao mesmo tempo, tanto com a indisciplina como com o excesso de criatividade de alguns deles, houve que chegar a consensos, na difícil engenharia que foi toda a conjugação e equilíbrio do livro. Mas esta foi, de facto, uma prova dos nove. Acho que todos pas-saram na qualidade técnica dos pratos. Na resposta ao desafio, variaram muito. E daí também se vê a qualidade, a maturidade e o grau de cultura que têm para além do exercício da cozinha.O leitor pode fazer essa prova, execu-tando estas receitas?

Pode, embora algumas sejam complica-das, também porque parte delas são já re-ceitas consagradas do chefe em questão [é o caso de José Avillez, que contribui com estrelas da sua ementa, como A horta da galinha dos ovos de ouro ou Cascais à beira--mar]. Há sensibilidades muito distintas, o que tornou o processo muito divertido. Como é que avalia hoje a cozinha por-tuguesa, cujo consumo se reabilitou neste momento de crise?

Como a cozinha mediterrânica está nos tops, puxámos pelos nossos galões e esta-mos a voltar aos valores tradicionais, como o uso do azeite. Hoje, come-se muito bem e muito mal em Portugal.Onde?

Muito boa cozinha tradicional, numa infi-nidade de restaurantes baratos e de tascas, pelo país fora. Muito boa cozinha inova-dora, nos restaurantes de cozinha de autor. Estamos muito bem em termos de cozinha tradicional, embora tenha de existir cuida-dos para não se servir como tal uma coisa que já nada mesmo tem que ver com ela. Outro dia, serviram-me, por exemplo, ba-calhau com queijo da serra, uma brutali-dade calórica e gastronómica... Acho que não vale tudo como inovação.Reclama quando não gosta?

Quando está mal feito, reclamo e mando para trás...... o que não é hábito muito português.

Pois não. Pior: o português come tudo e depois reclama no fim... [risos] e perde a autoridade. Acho que deve haver uma crítica construtiva à co-mida, onde quer que ela seja ser-vida, mesmo que seja por um guru da cozinha, cuja autoridade hoje dificilmente é contestada. Falta-nos mais e melhor crítica do consu-midor e profissional. Na verdade, pode-se passar sem a poesia, mas não se pode passar sem comer. A cozinha, como a poesia ou as artes plásticas, permite, a quem faz e a quem saboreia, um voo da imagi-nação e da memória. Conjugá-las neste livro foi, em muitos casos, es-tabelecer uma rede de cumplicida-des e encontrar várias sintonias de emoções.

néCtares dos deuses | 221

Conselho Ana Vidal

Deixa-te de porquês. O quando, o onde

e o como?… Não mais que literatura!

Despe de vez o medo que se esconde

entre as frias cambraias da lisura.

Ou então não fales de paixão.

Chama-lhe, se quiseres, melancolia.

Que jamais o tropel de um coração

bate ao compasso da diplomacia.

Inteiramente Frio e QuentereCeita de Joana CarvalHo

Inspirei-me com a mistura do Martini com chocolate quente. Como adoro con-

traste quente-frio, meu conselho pra acompanhar a poesia da Ana é: seja os dois - o

que desejam que sejas e o que és.

Coulis de frutas vermelhas com banana e vermute seco frozen, derretido na hora

por abundante ganache quente de chocolate branco. Caramelo de gin e casquinha

de limão na borda do copo.

Sirva na taça de Martini e deite a calda quente ao gosto do comensal. Dê-se o luxo

de servi-lo acompanhado de um simples shot de tônica. As sensações se completam

para uma experiência onde as razões desaparecem levando junto as dúvidas.

Coulis

Colocar todos os ingredientes em uma panela alta e deixar cozinhar por 40 minu-

tos em fogo médio. Mexa de vez em quando para soltar da panela. Caso você uti-

lize frutas congeladas, elas soltarão mais água. Deixe cozinhar por mais 20 minutos

até que a calda pareça mais uniforme. Retire do fogo, separe as especiarias e deixe

esfriar. Leve ao congelador por no mínimo 4 horas, de preferência já porcionados

nas taças onde serão servidos.

Caramelo de Gin

Aqueça a panela em fogo baixo e coloque o gin. Deixe evaporar até reduzir a me-

tade. Acrescente o açúcar e deixe dourar até chegar ao ponto de bala. Vire o cara-

melo em uma superfície de pedra para que esfrie e endureça. Após esfriar, bata no

caramelo com uma colher de pau até que ele solte da pedra e fique em pedacinhos

bem pequenos de forma que possam grudar na borda da taça. Reserve em um bowl.

ganaChe de Chocolate Branco

Derreta o chocolate e misture ao creme de leite e ao leite, até que fique líquido

sem perder a cremosidade.

Montagem

Retire as taças com o coulis frozen do congelador. Molhe suavemente as bordas das

taças com mel ou agave, sem deixar que escorra pelo vidro. Afunde as bordas das

taças no bowl de caramelo, para que os pedacinhos grudem no local onde você

passou o mel. Corte seis finas fatias de casca de limão, fazendo pequenos caracóis

para que enfeitem a borda do copo. Aqueça mais uma vez o ganache, colocando-o

em uma espécie de leiteirinha. Sirva as taças, acompanhadas de um shot de tônica

e derrame a calda quente sob o frozen do coulis, conforme o gosto do comensal.

coulis

40 ml de vermut seCo

200 g de morangos piCados em 4

200 g de amora

200 g de Framboesa

(as Frutas podem ser FresCas ou Congeladas)

1 banana-maçã ou banana-d’água grande

ou 2 pequenas piCadas em CubinHos pequenos

150 g de açúCar ou 100 ml de agave

1 pau de Canela

3 anis estrelado

5 Cravos

caraMelo de gin

400 g de açúCar branCo

100 ml de gin

ganache de chocolate Branco

400 g de CHoColate branCo

200 ml de Creme de leite FresCo

100 ml de leite

2 ColHeres de sopa de mel ou agave

2 limões

para 6 pessoas

Que sabes tu das ávidas razões

que a razão desconhece? Da contenda

que nem sempre se trava nos salões

e quase nunca tem punhos de renda?

Não aprendeste nada sobre gente?

E Shakespeare, e Mozart, e Fellini?

Alguém te sonha chocolate quente

enquanto deitas gelo no martini!

< Fernando azevedo|ocultação

néCtares dos deuses | 221

Conselho Ana Vidal

Deixa-te de porquês. O quando, o onde

e o como?… Não mais que literatura!

Despe de vez o medo que se esconde

entre as frias cambraias da lisura.

Ou então não fales de paixão.

Chama-lhe, se quiseres, melancolia.

Que jamais o tropel de um coração

bate ao compasso da diplomacia.

Inteiramente Frio e QuentereCeita de Joana CarvalHo

Inspirei-me com a mistura do Martini com chocolate quente. Como adoro con-

traste quente-frio, meu conselho pra acompanhar a poesia da Ana é: seja os dois - o

que desejam que sejas e o que és.

Coulis de frutas vermelhas com banana e vermute seco frozen, derretido na hora

por abundante ganache quente de chocolate branco. Caramelo de gin e casquinha

de limão na borda do copo.

Sirva na taça de Martini e deite a calda quente ao gosto do comensal. Dê-se o luxo

de servi-lo acompanhado de um simples shot de tônica. As sensações se completam

para uma experiência onde as razões desaparecem levando junto as dúvidas.

Coulis

Colocar todos os ingredientes em uma panela alta e deixar cozinhar por 40 minu-

tos em fogo médio. Mexa de vez em quando para soltar da panela. Caso você uti-

lize frutas congeladas, elas soltarão mais água. Deixe cozinhar por mais 20 minutos

até que a calda pareça mais uniforme. Retire do fogo, separe as especiarias e deixe

esfriar. Leve ao congelador por no mínimo 4 horas, de preferência já porcionados

nas taças onde serão servidos.

Caramelo de Gin

Aqueça a panela em fogo baixo e coloque o gin. Deixe evaporar até reduzir a me-

tade. Acrescente o açúcar e deixe dourar até chegar ao ponto de bala. Vire o cara-

melo em uma superfície de pedra para que esfrie e endureça. Após esfriar, bata no

caramelo com uma colher de pau até que ele solte da pedra e fique em pedacinhos

bem pequenos de forma que possam grudar na borda da taça. Reserve em um bowl.

ganaChe de Chocolate Branco

Derreta o chocolate e misture ao creme de leite e ao leite, até que fique líquido

sem perder a cremosidade.

Montagem

Retire as taças com o coulis frozen do congelador. Molhe suavemente as bordas das

taças com mel ou agave, sem deixar que escorra pelo vidro. Afunde as bordas das

taças no bowl de caramelo, para que os pedacinhos grudem no local onde você

passou o mel. Corte seis finas fatias de casca de limão, fazendo pequenos caracóis

para que enfeitem a borda do copo. Aqueça mais uma vez o ganache, colocando-o

em uma espécie de leiteirinha. Sirva as taças, acompanhadas de um shot de tônica

e derrame a calda quente sob o frozen do coulis, conforme o gosto do comensal.

coulis

40 ml de vermut seCo

200 g de morangos piCados em 4

200 g de amora

200 g de Framboesa

(as Frutas podem ser FresCas ou Congeladas)

1 banana-maçã ou banana-d’água grande

ou 2 pequenas piCadas em CubinHos pequenos

150 g de açúCar ou 100 ml de agave

1 pau de Canela

3 anis estrelado

5 Cravos

caraMelo de gin

400 g de açúCar branCo

100 ml de gin

ganache de chocolate Branco

400 g de CHoColate branCo

200 ml de Creme de leite FresCo

100 ml de leite

2 ColHeres de sopa de mel ou agave

2 limões

para 6 pessoas

Que sabes tu das ávidas razões

que a razão desconhece? Da contenda

que nem sempre se trava nos salões

e quase nunca tem punhos de renda?

Não aprendeste nada sobre gente?

E Shakespeare, e Mozart, e Fellini?

Alguém te sonha chocolate quente

enquanto deitas gelo no martini!

< Fernando azevedo|ocultação

aldeia do lago

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Page 129: Epicur n12 Telmo

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Talvez pecado… ��a��a�ca� a� �a�e��ade� �a���o��� ��a��a�ca� a� �a�e��ade� �a���o���a� �a�e��ade� �a���o����ico� do chefe Jo�é Co�dei�o, �e��e do al�o, que a�o�a �ole��ou o �ovo ca�dápio, a �a��e� a�é Ou�u��o. No �e��au�a��e Fei�o�ia, �l�i� Belé�. U� pecadilho de 75€ pelo �e�u de de�u��a�ão. Ma� u� fa��o�e de pa�fa��o�e de pa�pa�oca: la�o��i�� do �a� co� e�pa��o� ��a�co� e ve��de�, syhra e peque�o� �o��e��o� de lei�ão; p�e�u��o de po�co ale��e�a�o e quei�o �o��e da vi�ha, �eld�oe�a� e peque�a� folha�; �o�alo co� cu�co� de li��uei�ão; �o�oc�o�á�ico de �al�o�e�e e ca�a�i�ei�o co� �o��a��o� �ilve���e� e �e�e��a�a� �iol��ica�; pei�o de pa�o co� e�co�cio�ei�a, co�u�elo� e a�eado� de pi��áchio; de�u��a�ão de po�co �í�a�o. E �afa: pão�de�l� de a���o�a e doce de ovo�, c�e�e de �equei�ão, alfaze�a e �elado de �el de u�ze e �e�e �a��ei�a� da �a�ã.

E��e é o �e�po e� que a �a���o�o�ia de ho�el e��á aí pa�a fica�, qua�do �ui�o a��e� e�a �e��i�a.

Talvez pecado… Ou��o ho�el, Bela Vi��a, ci�co e���ela�, i�pla��ado ��acio�a�e��e �o��e o �a� �a P�aia da Rocha, i�au�u�ado �ece��e��e��e e i��ei�a�e��e �e�odelado, �a� u� edificado que �a�ceu �o� ido� de 1918, �e�do u�ado co�o ca�a pa��icula�. Mai� �a�de �o��ou���e u� do� pio�ei�o� ho�éi� da �e�ião, p�i�ei�o� h��pede� e�pa�h�i� fu�ido� da Gue��a Civil. S� que a�o�a a e����ia é ou��a… Qua�do o di�ec�o� �e�al Dio�o Fo��eca e Silva a��a�ou a vo��ade de e��e�a� a �a���o�o�ia da ca�a. Pa�a a �e�po��a�ilidade da cau�a cha�ou o chefe Ro�é�io Calhau, a��a�ca�do�o a u�a ca��ei�a i��e��acio�al de �a�a�i�o, de�i��ada�e��e e� I��la�e��a, o�de f�eque��ou i�ú�e�o� �e��au�a��e� lau�eado� co� e���ela� Micheli�. E �e�o� o��a! Pecado da �ula, e��a�cou��o� �u� pa�a��oxa, �i�o�o de cevada a�o�á�ica e �el de li�ão, pe��a de coelho �echeada co� �o�cela e alpe�ce�, le��u�e� da e��a�ão, �a� pa�a ��á� fica�a ai�da a �ulodice de u� �o���icado de cava, ce�ola e fo�due de �o�a�e… � �a��i�a deixou de da� ho�a�, �a� e���ou �ai� u�a �ou��e de e�vilha, �e�a cozida a �aixa

�e�pe�a�u�a e p�e�u��o. Fa�a�ha �a��é� �a co�����u�ão de u�a ca��a ví�ica de e�ve��adu�a. Pa�a �i�, qua�do ve�o de�e�hado� e��e� �o�e�, vou à� lá��i�a�, ao pecado: ��eal E�colha, Soalhei�o (�up�a �u�o, p�i��ei�a� vi�ha�), Mo��e d’Oi�o e i�co��o��ável Mouchão. E �ui�o �e�, há vi�ho a copo!

Talvez pecado… E���e�ho��e de��a fei�a �o �ovo �e�u de de�u��a�ão do �e��au�a��e Ped�o e o Lo�o, o�de doi� pu�o� p�e�ide� ao� fo�õe�, �a� que �a�e� à ��ava da poda. Fia o �o�á�io: c�e�e de alho e a�ê��doa�, ca�acole�a� a��ada�, alface� e �a�a�e�e�; pa�o, ce��ou�a, �equei�ão e �e��i��e; a�u� pa�udo, a�aca�e e

�e�e��a�a, cayenne �i�ada, vi�a��e�a de a�chova� e coe���o�. Ba��a?! Deu�, eu pecado� �e co�fe��o, �a� é o que é, �ão �e�i��o e �a�cha u� �edo�do de �ovilho, chalo�a�, couve �oxa e la�a��a, �u�a�o e al�a�. So��e�e�a, e��a, �ão di�pe��o: c�e�o�o �e��o, ��a�co e �a�a�, streu-zel de a�ê�doa� e chocola�e, opali�e� e �i��a.

Talvez pecado… Deu� pelo �e�o� de��a fei�a �ão �e �e�e co��i�o. Que� �ela�a é Ga��iel Ga�cía Má�quez, Menu do Autor � «Não co�heci �i��ué� �ai� pa�ecido à ideia que a �e��e �e� de u� papa �e�a�ce��i��a: �lu�ão e �efi�ado. Me��o co���a a �ua vo��ade, �e�p�e p�e�idia a �e�a. Ma�ilde, �ua e�po�a, pu�ha �ele u� �a�ado� que �ai� pa�ecia de �a��ea�ia que de �e��au�a��e, �a� e�a a ú�ica �a�ei�a de i�pedi� que �e �a�ha��e �o� �olho�. �quele dia, �o Carvalleiras foi exe�pla�. Co�eu ��ê� la�o��a� i��ei�a�, e�qua��e��a�do�a� co� �e���ia de ci�u��ião, e ao �e��o �e�po devo�ava co� o� olho� o� p�a�o� de �odo�, e ia p�ova�do u� pouco de cada u�, co� u� delei�e que co��a�iava o de�e�o de co�e�: a� a�êi�oa� da Galícia, o� pe�ceve� do Ca��á��ico, o� la�o��i�� de �lica��e, a� espardenyas da Co��a B�ava. E�qua��o i��o, co�o o� f�a�ce�e�, �� falava de ou���a� delícia� da cozi�ha, e e� e�pecial do� �a�i�co� p�é�hi����ico� do Chile que levava �o co�a�ão».

O pecado� de��a� úl�i�a� li�ha� e�a Pa�lo Ne�uda.

Talvez pecado

EDUARDO MIRAGAIA

Puro Duro&

NA BELA VISTA, O SARGOREDONDO DE NOVILHO, É PEDRO E O LOBOCORDEIRO FAZ DAS SUAS

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