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Opção 1 Esaú e Jacó [Machado de Assis] Machado de Assis [1839 - 1908] foi um dos mais geniais escritores. Prolífico, produziu crônica, poesia, contos, romances, crítica e peças de teatro. Seu estilo é marcado pela ironia, pela digressão, linguagem e profunda análise psicológica, mergulahndo na alma humana e revelando seus cantos mais escuros e ocultos. Destacou-se principalmente como contista e romancista. Entre seus mais famosos romances destacamos Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, D. Casmurro. Entre os livros de contos, vale citar Papéis Avulsos, Histórias sem Data, Várias Histórias e Relíquias da Casa Velha. Destacando o magnífico trabalho do professor Ubirajara Araújo Moreira do curso Milênio do Paraná, eis o resumo: 1.INTRODUÇÃO Publicado em 1904, Esaú e Jacó foi de modo geral considerado um romance de menor importância, se comparado aos três romances machadianos da fase realista: Memórias Póstumas de Brás Cubas [1881], Quincas Borba [1891] e Dom Casmurro [1899]. Julgava-se que em relação a estes, Machado de Assis nele teria suavizado seu realismo, tornando-o menos explícito e contundente, abrandando seu humor ácido e sua crítica mordaz à sociedade de seu tempo e ao homem burguês. Chegou-se mesmo a classifica-lo como um simples 'romance de costumes'... Hoje, porém, cada vez mais se descarta essa visão simplista e já se admite que Esaú e Jacó seja um dos romances esteticamente mais elaborados de Machado de Assis e, possivelmente, o de mais difícil compreensão e interpretação. Vamos, então, destacar alguns pontos cruciais dessa obra,

Esaú e jaco

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Opção 1

Esaú e Jacó

[Machado de Assis]

Machado de Assis [1839 - 1908] foi um dos mais geniais escritores. Prolífico, produziu crônica, poesia, contos, romances, crítica e peças de teatro. Seu estilo é marcado pela ironia, pela digressão, linguagem e profunda análise psicológica, mergulahndo na alma humana e revelando seus cantos mais escuros e ocultos.

Destacou-se principalmente como contista e romancista. Entre seus mais famosos romances destacamos Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, D. Casmurro. Entre os livros de contos, vale citar Papéis Avulsos, Histórias sem Data, Várias Histórias e Relíquias da Casa Velha.

Destacando o magnífico trabalho do professor Ubirajara Araújo Moreira do curso Milênio do Paraná, eis o resumo:

1.INTRODUÇÃO

Publicado em 1904, Esaú e Jacó foi de modo geral considerado um romance de menor importância, se comparado aos três romances machadianos da fase realista: Memórias Póstumas de Brás Cubas [1881], Quincas Borba [1891] e Dom Casmurro [1899].

Julgava-se que em relação a estes, Machado de Assis nele teria suavizado seu realismo, tornando-o menos explícito e contundente, abrandando seu humor ácido e sua crítica mordaz à sociedade de seu tempo e ao homem burguês. Chegou-se mesmo a classifica-lo como um simples 'romance de costumes'...

Hoje, porém, cada vez mais se descarta essa visão simplista e já se admite que Esaú e Jacó seja um dos romances esteticamente mais elaborados de Machado de Assis e, possivelmente, o de mais difícil compreensão e interpretação.

Vamos, então, destacar alguns pontos cruciais dessa obra, procurando compreendê-la um pouco em sua complexidade.

2. NARRADOR

A primeira grande questão é exatamente esta: quem é o narrador em Esaú e Jacó?Machado de Assis, antes do primeiro capítulo, escreveu uma advertência, na qual esclareça que 'Quando o Conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos [...].'

Os seis primeiros formavam um volume, que se transformaria no romance Memorial de Aires [que será publicado em 1908], e o sétimo, intitulado Último, constituía uma narrativa à parte, que ele, Machado de Assis, estava agora publicando com outro título também proposto pelo próprio Aires, qual seja: Esaú e Jacó.

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Portanto, Machado de Assis considerava-se apenas um editor do romance, cujo verdadeiro autor / narrador seria o Conselheiro Aires. Devemos, porém, nos lembrar que isto nada mais é do que uma estratégia narrativa de Machado de Assis, já que esse diplomata aposentado é obviamente uma criatura ficcional, ou seja, um ser imaginário inventado pelo escritor.

O Conselheiro Aires é também personagem de história, contada em Esaú e Jacó, cuja a atuação começa a partir do capítulo XI.

No entanto, embora Aires seja ao mesmo tempo narrador e personagem, observa-se que a narrativa não é contada em primeira pessoa, como seria de se esperar nesse caso.

A esse respeito é muito importante o capítulo XII, intitulado'Esse Aires', e que inicia assim: 'Esse Aires que aí aparece [referência ao cap. XI] conserva ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício. [...] Não me demoro em descreve-lo.' E a seguir o narrador traça um preciso perfil físico e psicomoral do diplomata aposentado.

Ora, quem é esse autor? Notamos então que a narrativa vem sendo feita [e será toda feita] por um narrador externo à história, ou seja, que não atua como personagem, e que, embora usando às vezes a forma da primeira pessoa, caracteriza-se como um típico narrador de terceira pessoa, onisciente - ou seja, que sabe tudo sobre a vida externa e interna das personagens e que, de cima, tem a visão global da sociedade e da geografia nas quais eles se movem.

Quem é esse narrador? É o Conselheiro Aires, que se disfarça e se duplica, falando de si mesmo em terceira pessoa, num processo de distanciamento e pretensa objetividade? Ou é o próprio Machado de Assis que, editor fictício, apropria-se da narrativa e torna-se narrador, transformando-se também num ser ficcional - ou seja, invenção de si mesmo?

Muitos estudiosos consideram o Conselheiro Aires um alter-ego de Machado de Assis, isto é , um seu dublê, um porta-voz de suas opiniões, senão sempre, ao menos em muitas situações.

Nesse caso, o narrador de Esaú e Jacó não seria um terceiro elemento, um híbrido, um narrador - síntese que integra Machado de Assis [autor real, implícito] e o Conselheiro Aires [autor fictício e personagem]?

Vemos por aí o quanto Machado de Assis problematizou um dos elementos mais importantes da narrativa: o narrador. Esse procedimento constitui uma novidade para seu tempo e caracteriza-se como um traço de sua modernidade.

A esta altura é importante também observar que: 'A narrativa do romance de Esaú e Jacó se submete à visão de mundo do Conselheiro Aires. Os fatos falam através do seu ponto de vista. [...] Aires representa alguém que ironicamente possui a verdade,

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ou sobre ela reflete. É a sua posição ideológica que fundamenta a narrativa [...]. ele é quem opina sobre a significação da matéria narrada, mesmo que não possa esclarecer todos os enigmas.'[Dirce Cortes Riedel - Um romance 'histórico'?]

3. REALISMO?

Embora Machado de Assis, após o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, seja classificado dentro do Realismo, a verdade é que se torna difícil e inadequado confinar sua obra nos limites estritos de escolas e movimentos literários.

O enredo de Esaú e Jacó, por exemplo, gira ao redor da permanente rivalidade entre os gêmeos Pedro a Paulo. Já começaram brigando no ventre materno e continuam se desentendendo vida afora. Pedro, mais dissimulado; Paulo, mais agressivo. Pedro, conservador; Paulo, agitado. Pedro, monarquista; Paulo, republicano [variadas situações serão criadas ao redor dessa polarização]; Pedro, médico, no Rio de Janeiro; Paulo, advogado, em São Paulo; ambos eleitos deputados, mas por partidos contrários...

Essa oposição sistemática só é interrompida duas vezes pela trégua momentânea motivada pela morte das duas figuras femininas que capitalizam o afeto dos gêmeos: Flora [a indecisa amada dos ambos] e Natividade [a mãe].

Ora, o leito logo percebe o quanto de inverossímil, de artificial, de forçado mesmo, existe nessa oposição sistemática entre os gêmeos. O irrealismo dessa situação só se compara ao irrealismo de Flora, personagem estérea, vaga, sem outra substância que não seja vivenciar, na indecisão, o conflito do amor duplo de que é alvo por parte dos gêmeos. Conflito e indecisão que, de certo modo, levarão à morte.

Verdade que o próprio narrador, às vezes de forma ambígua, às vezes de forma irônica, reconhece a inverossimilhança e o irrealismo dessas situações... Portanto, não se trata de um realismo do tipo 'espelho fiel e exato' da vida real.Apesar disso, porém, identificamos no romance uma dimensão realista no sentido de que nele ocorre momentos e cenas de forma verossímil, plausíveis, representam [imitam] situações da vida real, parecendo, portanto, um típico 'romance de costumes'.

Exemplo convincente disso nós podemos encontrar logo no primeiro capítulo, cuja a narração, descrição e diálogo nos apresentam cenas caracterizadas pó um vivo realismo.

O romance. Portanto, oscila entre situações realistas, verossímeis, plausíveis, e situações artificiais, inverossímeis - não podendo, pois, ser enquadrado dentro de um Realismo escrito.

4. ROMANCE POLÍTICO?

É do ponto de vista da história política, no entanto, que o romance parece ancorar-se mais solidamente no Realismo. Historicamente a narrativa se passa no período da

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transição do Império para a República, e esse acontecimento é referido diversas vezes e sob diversos aspectos.

Há estudiosos que chegam mesmo a considerar Esaú e Jacó um romance histórico ou político, centrado exatamente nesse conflito: República X Império; conflito do qual os gêmeos seriam simbolicamente a personificação.

Numa perspectiva bem-humorada e acidamente irônica, o conflito é salientado no famoso episódio da tabuleta do Custódio [cap. XLIX, LXII e LXIII]. Dono da Confeitaria do Império, Custódio precisou trocar a tabuleta que já estava bem velha, mandando pintar uma nova. Nesse meio tempo, porém, aconteceu a mudança de regime, com a proclamação da República. Custódio ficou temeroso do nome de sua confeitaria e achou prudente mudá-lo. Na dúvida, foi então consultar o Conselheiro Aires, na esperança de encontrar um novo nome para seu estabelecimento, o qual não fosse politicamente comprometedor e ao mesmo tempo lhe garantisse a fidelidade da freguesia.

O episódio tem vários aspectos. A referência irônica à República, porém, está principalmente em dois comentários similares de Custódio diante das sugestões de Aires. O primeiro é quando o Conselheiro lhe propõe trocar o nome para Confeitaria da República, e ele pondera: '- Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembro que, se daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro.' E o segundo comentário, ao final do mesmo capítulo LXIII, é quando Aires então sugere Confeitaria do Custódio, e o comerciante considera: '- Sim, vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas [...].'

Percebe-se, por aí, a insinuação de que seria de pouca seriedade e duração a República recém-proclamada. Esse ponto de vista depreciativo, aliás, aparece em outros momentos do romance, reafirmando a conhecida preferência do cidadão Machado de Assis pelo Império. Várias vezes o escritor se manifestou a esse respeito, opinando que, por razões históricas e culturais, o regime imperial era o mais adequado à realidade brasileira. Por outro lado, Machado de Assis também tinha consciência de que o Império apresentava rachaduras e estava se desmoronando.

Flora, simbolicamente, personifica essa perplexidade: não pode ficar só com Pedro [Monarquia] nem só com Paulo [República]. Seu desejo é a fusão, a síntese do que de melhor houvesse nos dois: ideal irrealizável !

A não-conciliação dos gêmeos representaria, então, a impossibilidade de se chegar a um regime político ideal, o que, nessa obra, explica o já tão comentado pessimismo e ceticismo machadiano.

5. INTERTEXTUALIDADE E POLIFONIA

O texto literário realiza-se como um espaço no qual se cruzam diversas linguagens, variadas vozes, diferentes discursos. O procedimento pelo qual se estabelece esse múltiplo diálogo é a intertextualidade. Ora, as vozes que se cruzam nesse espaço

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intertextual são vozes diferentes e às vezes opostas - caracterizando-se portanto o fenômeno da polifonia.

O romance Esaú e Jacó é rico nesses dois procedimentos. Sirva de modelo o capítulo I. Natividade e sua irmã Perpétua sobem o Morro do Castelo para consultar Bárbara, a cabocla vidente. Essa motivação e a cena da entrevista com a adivinha caracterizam o discurso mítico, a esfera da religiosidade e da crendice. Nesse caso, relacionado a um contexto popular. Mas o narrador faz referência a Ésquilo, considerado o criador da tragédia grega, a sua peça As eumênides e à personagem Pítia, sacerdotisa do templo de Apolo que pronunciava oráculos. Temos aqui novamente o discurso mítico, só que agora no contexto da antiguidade clássica, ambientado na sofisticada Grécia.

A referência ao teatro, por sua vez, remete a uma outra linguagem, e temos então a voz narrativa do romance dialogando com a voz da personagem teatral.

Observe-se, ainda, que durante a consulta, lá fora o pai da advinha tocava viola e cantarolava 'uma cantiga do sertão do Norte' - portanto, outra voz / outro discurso se cruzando com os demais: a música e a poesia sertaneja.

E assim vamos encontrar ao longo do romance inúmeras referências, alusões, citações [inclusive em francês e latim], situações... - relacionadas com a Bíblia, com personagens famosos do mundo da política, da literatura, do teatro, da filosofia, da mitologia.

É bom salientar que um dos procedimentos intertextuais mais curiosos é o fato de, com certa frequência, o narrador transcreve trechos do romance Memorial de Aires - uma espécie de diário do diplomata aposentado, e que ainda não havia sido publicado!

6. LINGUAGEM E LUDISMO

A linguagem é um procedimento pelo qual o narrador, em certos momentos, interrompe o fluxo narrativo para fazer reflexões e comentários sobre a própria narrativa, sobre o ato de narrar, a técnica, o estilo, a construção do enredo das personagens, etc. Ou seja, o ato de escrever torna-se objetivo de análise de própria escrita.

A Advertência que Machado de Assis colocou já antes do primeiro capítulo tem esse caráterlinguística, pois se trata de um 'esclarecimento' sobre um dos elementos-chave da narrativa: o autor [fictício] da história.

Há várias estratégias através das quais esse procedimento se realiza ao longo da obra. A mais evidente, conhecida por todos os que leem Machado de Assis, é o capítulo XXVII - De uma reflexão intempestiva, em que o narrador finge zangar-se contra o possível comentário de uma leitora, que estaria querendo adiantar-se aos fatos. O narrador é explícito: 'Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo escrito com método.'

O capítulo XII - A epígrafe é, a esse respeito, um dos mais elucidativos. O processo de

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elaboração e desenvolvimento do romance é comparado ao desenrolar de uma partida de xadrez, durante o qual, 'por uma lei de solidariedade', o leitor e os próprios personagens colaboram com o autor / narrador [o enxadrista].

Já no final do romance, a metáfora linguística usada é a da viagem - o percurso da escrita e da leitura se compara ao transcorrer de uma viagem.

Observar que nos dois casos fica também evidenciado o caráter lúdico da escrita e da leitura: é como se fosse um jogo, uma brincadeira, uma diversão, um lazer.

7. CONCLUSÃO

Como deu para perceber, o romance Esaú e Jacó, para alem de sua aparente simplicidade, é na verdade uma obra complexa, que comporta diferentes ângulos.

Aqui nós destacamos alguns aspectos fundamentais dessa narrativa, mas haveria outros também interessantes, como: a linguagem machadiana, a questão do seu estilo; o nível mítico e simbólico, envolvendo personagens e situações [pó exemplo, a simbologia de certos nomes: Natividade, Flora...]; as relações desse romance com o romance Memorial de Aires; a tematização do dualismo e da ambiguidade.

O importante é superar a visão simplista de que Esaú e Jacó seria uma obra menor de Machado de Assis, e resgatar seu valor artístico-literário.

OPÇÃO 2

Natividade e sua irmã Perpétua foram visitar uma cabocla que, segundo boatos, via o futuro das pessoas. Natividade não queria saber sobre o seu futuro, sim o de seus dois filhos; os gêmeos Paulo e Pedro. Elas chegaram e a cabocla lhes perguntou se os meninos brigaram no ventre materno, a mãe respondeu que sentia muita inquietação durante a gravidez, o que foi deduzido como a briga dos gêmeos. Depois dessa confirmação a cabocla revelou que eles seriam grandes homens no futuro. Com essa promessa as irmãs foram embora.

Fazendo o caminho de volta à carruagem que as esperava, um mendigo pedia pelas almas. A felicidade de Natividade com a revelação do futuro dos filhos era tão grande que deu ao homem dois contos de réis, que foi guardado por ele. Quando chegou a hora do jantar, Natividade contou ao marido, Santos, a revelação da cabocla. Ele se alegrou com a previsão para o futuro dos filhos, mas se inquietou com a briga que eles tiveram no ventre.

Mesmo prometendo à mulher que não diria nada a ninguém, ele procurou seu amigo Plácido, um líder espírita, e confessou toda a história. Plácido analisou e concluiu que a briga era o sinal da grandeza dos meninos, assim Santos se aquietou.

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Os meninos foram crescendo, fisicamente eram idênticos, porém suas opiniões e modo de pensar divergiam muito. Isso afligia Natividade, que era toda dada aos filhos, esses por muitas vezes brigavam por nada, afligindo a mãe ainda mais. Um dos motivos de tanta discórdia eram as opiniões políticas que tinham. Natividade tentava fazê-los abandonar tal assunto, justificando a pouca idade dos meninos, mas não conseguia.Pedro era a favor do Império e Paulo, da República. Certa vez, cada um comprou um quadro de homens públicos, que representavam seus ideais políticos, e os pendurou em cima de sua cama. Mas logo um começou a fazer desenhos no quadro do outro e assim acabaram lutando, deram socos um no outro e rasgaram os quadros.

Os pais quando souberam do futuro grande de seus filhos sonharam com suas profissões, assim Pedro foi estudar medicina e Paulo direito. Eram rapazes e estudantes quando a primeira paixão os despertou. Flora, esse era o nome da amada. No início apenas achavam a menina bonita, prendada, mas com o passar do tempo apaixonaram-se por ela. A moça, perdida entre os dois, não escolhia nenhum e assim foi seguindo. Pedro tinha a favor dele a proximidade com a donzela, pois vivia no Rio de Janeiro assim como ela, Paulo estudava direito em São Paulo.

Batista, o pai de Flora, recebeu o cargo de presidente da província. Sabendo da nomeação, Pedro disse à Flora que para onde o pai dela fosse ele iria atrás. Pensando, Flora viu que não queria sair da corte e pediu ao conselheiro Aires, amigo das duas famílias, que fizesse com que o pai negasse o cargo. No entanto, nada aconteceu, ele foi feito presidente da província ao norte.Flora estava extremamente triste, mas de repente um golpe foi dado no governo e o país deixou de ser Império e tornou-se República. Paulo ficou muito feliz, já Pedro, a pedido da mãe, guardou silêncio no jantar e no resto do tempo. Paulo saiu, encontrou-se com amigos e festejou, voltou cantando e foi para o quarto, onde estava Pedro, que ignorava tudo. Tardaram a dormir. Paulo pensando na nova fase do país e Pedro imaginando que o golpe não foi nada e que logo o imperador estava de volta ao poder.

Com essa mudança política, o cargo de Batista se perdeu e eles permaneceram no Rio. O amor dos jovens irmãos era crescente e a confusão da menina também, não escolhia nenhum, parecia querer ter os dois. E assim a desavença entre os gêmeos crescia. Por fim fizeram um acordo, o escolhido teria a moça e o rejeitado se conformaria, foi um acordo fácil, pois os dois se imaginavam mais amados.

Flora era toda confusa e perturbada, passou a ter visões. Via os dois, Pedro e Paulo, hora era só um, depois se tornavam dois e assim se afligia. Chegou o tempo de subir até Petrópolis, para os bailes, reuniões e etc. Os gêmeos tomaram justificativas relacionadas ao estudo para permanecerem no Rio, mas na verdade o motivo da permanência era Flora. Esta já se perturbava de tal modo que não aparecia mais quando os irmãos iam a sua casa. Assim pediu ajuda a Aires, que lhe disse para viajar e se ausentar por uns tempos.

Assim Flora foi para casa de D. Rita em Andaraí, irmã de Aires. Lá a moça ficava a desenhar. As cartas que recebia deixava Aires satisfeito. Flora era bonita e ganhou outros pretendentes, mas não tinha olhos para eles. Nóbrega, aquele mendigo que recebeu os dois contos de réis de Natividade, tornara-se rico, capitalista e bom partido. Fez um pedido à Flora o qual ela rejeitou. Depois de tal acontecimento adoeceu. Inicialmente Rita não chamou os pais da moça, mas depois de uma consulta médica eles foram vê-la.

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Natividade também passou a sair de Petrópolis todos os dias e ir até Andaraí pra ter com a menina, Aires a visitava dia sim e dia não. Os gêmeos também apareciam. Já formado, Pedro também a examinava. No entanto, a menina morreu. O enterro se fez e todos choraram.Nos tempos seguintes, os irmãos seguiram suas profissões e quanto às opiniões políticas, Pedro aceitou a República, mas Paulo queria mais dela.

No mês de aniversário da morte de Flora, os dois saíram cedo e foram ver o túmulo. Pedro primeiro, Paulo depois. Rezaram e choraram. Os dois então foram eleitos deputados, um fazia oposição ao outro; nesses tempos Natividade estava velha e no momento antes de morrer teve uma conferência com os filhos, os fez jurar que para sempre seriam amigos e morreu. E assim foi o primeiro ano na política, eram amigos fiéis, todos se impressionavam. No ano da morte da mãe, choraram.

A câmara fechou em dezembro e reabriu em maio do outro ano. Só Pedro apareceu, Paulo estava a passeio em Minas. Mas quando voltou todos viram a diferença nos gêmeos. Odiavam-se. Muitos perguntaram a Aires, que era amigo da família, o que aconteceu para que os irmãos mudassem, Aires apenas afirmou que eram os mesmos.A previsão da cabocla se concretizou: ambos se tornam grandes, porém inimigos.

OPÇÃO 3

Esaú e Jacó, de Machado de Assis

Esaú e Jacó é a penúltima obra de Machado de Assis, uma obra-prima de realismo lírico, com as tintas descritivas da própria vida da cidade, temperadas pela ousadia da construção do foco narrativo.

Enquanto as outras obras do autor têm um maquinário evidente, essa, por sua vez, exige uma apuração mais detalhada que, se bem executada, revela um Machado no auge do domínio de sua escrita. Autor atento aos acontecimentos e ao ser humano, demonstra em Esaú e Jacó sua qualidade de historiador ao ressaltar, a partir de dois irmãos, a disputa política entre monarquistas e republicanos: Paulo era republicano e Pedro, monarquista. Em sua obra, a história é narrada, privilegiando-se tanto os aspectos macros quanto aqueles que dizem respeito à cotidianidade da cultura.

O livro conta a história de dois irmãos gêmeos, Pedro e Paulo, que brigam desde o ventre materno. Unidos pelo amor à mãe e rivais pelo coração da jovem Flora, Pedro (de temperamento mais cauteloso, estudante de Direito) e Paulo (mais arrojado, estudante de Medicina) se põem em campos opostos inclusive na política. A simetria absoluta dos gêmeos e a contraposição única de seus temperamentos e opiniões são os elementos que constroem a narrativa.

O título é extraído da Bíblia, remetendo-nos ao Gênesis, à história de Rebeca, que privilegia o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, fazendo-os inimigos irreconciliáveis. A inimizade dos gêmeos Pedro e Paulo, do romance de Machado, não tem causa explícita, daí a denominação que Machado inicialmente imaginou para o romance Ab ovo (desde o ovo).

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Enredo

É o romance da ambigüidade, narrado em terceira pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo seriam “os dois lados da verdade”.

À medida que vão crescendo, os irmãos começam a definir seus temperamentos diversos: são rivais em tudo. Paulo é impulsivo, arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador, o que vem a ser motivo de brigas entre os dois. Já adultos, a causa principal de suas divergências passa a ser de ordem política: Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Estamos em plena época da Proclamação da República, quando decorre a ação do romance.

Até em seus amores, os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois: é retraída, modesta, e seu temperamento avesso a festas e alegrias levou o Conselheiro Aires a dizer que ela era “inexplicável”. O conselheiro é mais um grande personagem da galeria machadiana, que reaparecerá como memorialista no próximo e último romance do autor: velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, muitas vezes parece exprimir o pensamento do próprio romancista.

As divergências entre os irmãos persistem, muito embora, com a morte de Flora, tenham jurado junto a seu túmulo uma reconciliação perpétua. Continuam a se desentender, agora em plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados, e só se reconciliam ao fim do livro, com novo juramento de amizade eterna, este feito junto ao leito da mãe agonizante.

No texto a seguir, transcrito do capítulo XVIII de Esaú e Jacó, um retrato de como vieram crescendo os dois gêmeos.

Obedeciam aos pais sem grande esforço, posto fossem teimosos. Nem mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira é alguma vez meia virtude. Assim é que, quando eles disseram não ter visto furtar um relógio da mãe, presente do pai, quando eram noivos, mentiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por eles em plena ação de furto. Mas era tão amiga deles! -e com tais lágrimas lhes pediu que não dissessem a ninguém, que os gêmeos negaram absolutamente ter visto nada. Contavam sete anos. Aos nove, quando já a moça ia longe, é que descobriram, não sei a que propósito, o caso escondido. A mãe quis saber por que é que eles calaram outrora; não souberam explicar-se, mas é claro que o silêncio de 1878 foi obra da afeição e da piedade, e daí a meia virtude, porque é alguma cousa pagar amor com amor Quanto àrevela ção de 1880 só se pode explicar pela distância do tempo. Já não estava presente a boa Miquelina; talvez já estivesse morta. Demais, veio tão naturalmente a referência...

— Mas, por que é que vocês até agora não me disseram? teimava a mãe.

Não sabendo mais que razão dessem, um deles, creio que Pedro, resolveu acusar o irmão:

—  Foi ele, mamãe!

—  Eu? redargüiu Paulo. Foi ele, mamãe, ele é que não disse nada.

— Foi você!

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— Foi você! Não minta!

— Mentiroso é ele!

Cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhes os braços a tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaçar~ beijou-os com tamanha ternura que eles não acharam melhor ocasião de lhe pedir doce. Tiveram doce; tiveram também um passeio, à tarde, no carrinho do pai.

Na volta estavam amigos ou reconciliados, Contaram à mãe o passeio, a gente da rua, as outras crianças que olhavam para eles com inveja, uma que metia o dedo na boca, outra no nariz, e as moças que estavam às janelas, algumas que os acharam bonitos. Neste último ponto divergiam, porque cada um deles tomava para si só as admirações, mas a mãe interveio:

—  Foi para ambos. Vocês são tão parecidos, que não podia ser senão para ambos. E sabem por que é que as moças elogiaram vocês? Foi por ver que iam amigos, chegadinhos um ao outro. Meninos bonitos não brigam, ainda menos sendo irmãos. Quero vê-los quietos e amigos, brincando juntos sem rusga nem nada. Estão entendendo?

Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, e deu igual resposta. Enfim, porque esta mandasse, abraçaram-se, mas foi um abraçar sem gosto, sem força, quase sem braços; encostaram-se um ao outro, estenderam as mãos às costas do irmão, e deixaram-nas cair.

De noite, na alcova, cada um deles concluiu para si que devia os obséquios daquela tarde, o doce, os beijos e o carro, à briga que tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, como um romance ao piano, resolveram ir à cara um do outro, na primeira ocasião. Isto que devia ser um laço armado à ternura da mãe, trouxe ao coração de ambos uma sensação particular; que não era só consolo e desforra do soco recebido naquele dia, mas também satisfação de um desejo íntimo, profundo, necessário, Sem ódio, disseram ainda algumas palavras de cama a cama, riram de uma ou outra lembrança da rua, até que o sono entrou com os seus pés de lã e bico calado, e tomou conta da alcova inteira.

Neste outro texto, do início do livro, relata-se a reação de Natividade, mãe dos gêmeos diante da gravidez. Observe o sentimento negativo diante da maternidade, a quase recusa da gestação e das alterações que ela provoca no corpo, além da limitação que impõe à vida social.

Nos primeiros dias, os sintomas desconcertaram a nossa amiga. E duro dizê-lo, mas é verdade. Lá se iam bailes e festas, lá ia a liberdade e a folga. Natividade andava já na alta roda do tempo; acabou de entrar por ela, com tal arte que parecia haver ali nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas também outra em Petrópolis; nem só carro mas também camarote no Teatro Lírico, não contando os bailes do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus, todo o repertório, em suma, de vida elegante. Era nomeada nas gazetas, pertencia àquela dúzia de nomes planetários que figuram no meio da plebe de estrelas. O marido era capitalista e diretor de um banco.

No meio disso, a que vinha agora uma criança deformá-la por meses, obrigá-la a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto? Tal foi a primeira sensação da mãe, e o primeiro ímpeto foi esmagar o gérmen. Criou raiva ao marido.

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Ao final do livro, Natividade, já agonizante, obtém dos filhos o juramento de reconciliação. Mas, como já acontecera na morte de Flora, a reconciliação era provisória, e duraria até pouco depois do enterro da mãe:

Ora, o que a mãe fez, quando eles entraram e fecharam a porta do quarto, foi pedir-lhes que ficasse cada um do lado da cama e lhe estendessem a destra. Juntou-as sem força e fechou-as nas suas mãos, ardentes. Depois, com a voz expirante e os olhos acesos apenas de febre, pediu-lhes um favor grande e único. Eles iam chorando e calando, porventura adivinhando o favor.

—  Um favor derradeiro, insistiu ela.

— Diga, mamãe.

— Vocês vão ser amigos. Sua mãe padecerá no outro mundo se os não vir amigos neste. Peço pouco; a vossa vida custou-me muito, a criação também, e a minha esperança era vê-los grandes homens. Deus não quer, paciência. Eu é que quero saber que não deixo dois ingratos. Anda Pedro, anda Paulo, jurem que serão amigos.

Os moços choravam. Se não falavam, é porque a voz não lhes queria sair da garganta. Quando pôde, saiu trêmula, mas clara e forte.

— Juro, mamãe!

— Juro, mamãe!

— Amigos para todo sempre?

—  Sim.

— Sim.

— Não quero outras saudades. Estas somente, a amizade verdadeira, e que se não quebre nunca mais.

Natividade ainda conservou as mãos deles presas, sentiu-as trêmulas de comoção, e esteve calada alguns instantes.

— Posso morrer tranqüila.

— Não, mamãe não morre, interromperam ambos.

Parece que a mãe quis sorrir a esta palavra de confiança, mas a boca não respondeu à intenção, antes fez um trejeito que assustou os filhos. Paulo correu a pedir socorro. Santos entrou desorientado no quarto, a tempo de ouvir à esposa algumas palavras suspiradas e derradeiras.

OPÇÃO 4

Esaú e JacóA obra

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Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis.O título é extraído da Bíblia e remetendo-nos ao Gênesis: à história de Rebeca,

que privilegia o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, fazendo-os inimigos irreconciliáveis. A inimizade dos gêmeos Pedro e Paulo, do romance de Machado, não tem causa explícita, daí a denominação de romance "Ab Ovo" (desde o ovo).

É o romance da ambigüidade, narrado em 3ª pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo seriam "os dois lados da verdade". Filhos gêmeos de Natividade e Agostinho Santos, à medida que vão crescendo, os irmãos começam a definir seus temperamentos diversos: são rivais em tudo.

Paulo é impulsivo, arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador - o que vem a ser motivo de brigas entre os dois. Já adultos, a causa principal de suas divergências passa a ser de ordem política - Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Estamos em plena época da Proclamação da República, quando decorre a ação do romance.

Para apaziguar a discórdia fraterna, de nada valem os conselhos de Aires, amigo de Natividade, nem as previsões de discórdia e grandeza feitas por uma adivinha (A Cabocla do Castelo), quando os gêmeos tinham ainda um ano.

Até em seus amores, os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois. Além disso, a moça é retraída, modesta, e seu temperamento avesso a festas e alegrias, levou o Conselheiro Aires a dizer que ela era "inexplicável".

O conselheiro Aires é mais uma grande personagem da galeria machadiana, que reaparecerá como memorialista no próximo e último romance do autor: velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, muitas vezes interpreta o pensamento do próprio romancista.

As divergências entre os irmãos continuam, muito embora, com a morte de Flora, tenham jurado junto a seu túmulo uma reconciliação perpétua. A morte da moça, porém, une temporariamente os gêmeos, mais tarde, também a morte de Natividade cria uma trégua entre ambos, mas logo se lançam às disputas.

Continuam a se desentender, agora em plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados por dois partidos diferentes. Absolutamente irreconciliáveis, cumpre-se, portanto, a previsão da adivinha: ambos seriam grandes, mas inimigos.

O ESTILO DE ÉPOCACronologicamente, Esaú e Jacó é um livro que surgiu nos fins do Realismo

(1904), estando fora da fase áurea do Realismo brasileiro e da ficção machadiana (1880-1900). Isso quer dizer que se torna difícil enquadrar o romance nos moldes realistas, como quer a crítica, ao situá-lo na segunda fase de Machado de Assis. Talvez mais correto seria localizá-lo numa terceira fase... Além do mais, por essa época (1893), surgia um novo estilo - o Simbolismo, que, apesar de ser um movimento essencialmente poético, vai manifestar-se no livro de Machado de Assis.

Não obstante, alguns aspectos do Realismo podem ser detectados:1) Fidelidade na descrição de situações e personagens. A verdade dos fatos é

uma das principais preocupações realistas. Ser fiel àquilo que descreve é uma norma que o escritor realista, tanto quanto possível, procura seguir. Ao se comparar o escritor realista com o romântico, vê-se que este se caracteriza pela fantasia, pela imaginação, pelo idealismo. O escritor realista é, mais ou menos, o oposto: encara a realidade direta e objetivamente e procura mostrar o que é, não o que deve ser, como os românticos.

Em diversas passagens, Machado se preocupa com a verdade dos fatos, em ser fiel àquilo que narra, como é o caso desta passagem do Cap. V:

“Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua história,

ou prezasse a lógica aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as causas se

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passaram, e refiro-as tais quais. Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não pegue”.

Quanto à autenticidade das personagens, é difícil perceber no livro, com exceção do Conselheiro Aires, que acaba “ocupando o centro de toda a narrativa”, como ressalta Massaud Moisés. Outras personagens, como Pedro, Paulo e Flora, lembram figuras românticas. Flora, por exemplo “é moça, virgem, e morre de doença estranha, mal de sentimento ou coisa parecida” (Massaud Moisés).

2) Gosto pela análise. A análise é uma característica básica na ficção realista, principalmente a análise psicológica.

Esaú e Jacó, atém-se à análise da complexidade dual do ser humano. Em inúmeras passagens encontra-se essa preocupação de analisar, onde Machado procura desvendar e esclarecer os segredos da alma humana, como é o caso do excerto abaixo, extraído do Cap. XCIII:

“Talvez a causa daquelas síncopes da conversação fosse a viagem que o espírito da moça fazia à casa da gente Santos. Uma das vezes, o espírito voltou para dizer estas palavras ao coração: “Quem és tu, que não atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será difícil a ação, porque a lembrança de um acabará por destruir a de outro, e ambas se irão perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e novas, além das partículas de cousas, tão leves e pequenas, que escapam ao olho humano.

Anda, esquece-os: se os não podes esquecer, faze por não os ver mais; o tempo e a distância farão o resto”.

3) Objetividade a impessoalidade. Não resta dúvida que essa é uma característica que reflete a época do cientificismo, da precisão, da observação. Ao contrário do Romantismo, no Realismo o escritor não interfere na conduta de suas personagens; tanto quanto possível, ele se afasta delas, desenvolvendo assim uma narrativa objetiva e impessoal.

No romance em questão, é fácil perceber essa característica, embora o Conselheiro Aires tenha muito de Machado de Assis: é um homem cordato, grave, ponderado, equilibrado, inteligente como o próprio escritor. Mas o livro em si retrata uma situação que é vista e narrada por um observador que procura ser objetivo e impessoal, como se revela na passagem abaixo, do Cap. XLVIII:

“Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso por aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo”.

4) Narrativa lenta e pormenorizada. Se a grande preocupação do escritor realista é com a análise, claro está que o seu processo narrativo será lento. Os pormenores, detalhes aparentemente dispensáveis, contribuem, por outro lado, para o painel ou retrato da realidade que se quer expor.

Em Esaú e Jacó, a narrativa está cheia de fatos e episódios que não fazem parte propriamente da história, o que retarda o desfecho: o processo é, pois, lento e pormenorizado.

Como exemplo, veja-se esta passagem do Cap. XI:“Perdoa estas minúcias. A ação podia ir sem elas, Mas eu quero que saibas

que casa era, e que rua e, mais digo que ali havia uma espécie de clube...”5) Enfoque do tempo presente. O Realismo retrata a vida contemporânea.

Enquanto o romântico se volta para o passado ou se projeta no futuro, através do sonho, da imaginação, da idealização, o realista se fixa no presente, porque o que lhe interessa é a vida que o rodeia. Nesse sentido, justifica-se a crítica, a sátira e a ironia, que se tornam armas com que os escritores realistas combatem as depravações morais da sociedade, da qual riem e escarnecem.

Marca registrada de Machado de Assis, em Esaú e Jacó, abranda-se o tom irônico, não havendo tanta descrença e tanto niilismo como nas Memórias ou em Quincas Borba.

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6) Aspectos simbolistas. O Simbolismo é um movimento essencialmente poético, o que não quer dizer que a prosa esteja totalmente excluída. Inaugurado, oficialmente, entre nós, em 1893, com o livro Broquéis, de Cruz e Sousa, o Simbolismo é um movimento literário que se fundamenta basicamente na linguagem figurada - no símbolo, como sugere a palavra. Com base nisso, depreende-se a busca do etéreo, do vago, da música, do mistério e do metafísico.

Para o crítico Cavalcanti Proença, “desde o título, há simbolismo” em Esaú e Jacó, apontando inúmeros exemplos como aquele “lenço verde” de Natividade, a simbolizar a esperança no futuro dos gêmeos ou aquela “alma azul” de que o escritor fala no Cap. XIX:

“Com esse lenço verde enxugou ela os olhos, e teria outros lenços, se aquele ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma dela”. Enfim, “ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul”.

Mas, como observa o citado crítico não ficam aí os exemplos, e, sem esforço, pode-se lembrar que os dois namorados levam grinaldas à sepultura da moça que ambos amavam. Uma é de perpétuas, de simbolismo muito evidente, e a outra, mais obscura, de miosótis, o “forget-me-not” dos ingleses; um dos apaixonados diz de si mesmo “que o seu amor é que era um substantivo perpétuo, não precisando mais nada para se definir”.

Outra figura que lembra o Simbolismo é a moça Flora, que tem muito das virgens vaporosas que povoam a literatura simbolista e se aproximam das esferas celestes e etéreas. Também o velho Plácido, “doutor em matérias escusas e complicadas”, conhecedor de “gestos visíveis e invisíveis”, pode ser colocado aqui como exemplo nesse sentido.

Estrutura de Esaú E Jacó1) Ação. O núcleo central do romance gira em torno da rivalidade entre os dois

gêmeos, sendo de fundamental importância aqui também a presença de Flora.Pedro e Paulo, os gêmeos, filhos de Natividade e Santos, nascem sob o signo

de uma profecia: seriam rivais na vida, mas estavam fadados à grandeza: “cousas futuras” - como previu a cabocla do Castelo.

Nascem e crescem sob o signo da rivalidade, tal como Esaú e Jacó ou os apóstolos Pedro e Paulo. E por ironia do destino, amam a mesma mulher, Flora, filha do Batista e de D. Cláudia. Flora, a eleita dos dois, que também os ama a ambos, acaba morrendo, como solução para o intrincado impasse.

Pedro e Paulo, depois de formados - médico e advogado, respectivamente, chegam às “cousas futuras”: tornam-se deputados.

No romance, é marcante a figura do Conselheiro Aires, pai espiritual dos gêmeos. Sua presença acaba por ofuscar as demais, passando de personagem secundária a principal, “ocupando o centro de toda a narrativa”, como salienta Massaud Moisés.

O drama central do livro é um triângulo, onde os gêmeos assumem posições opostas e buscam a mesma mulher (Flora), que tenta uni-los, assentada no seu trono etéreo, inatingível. Entre eles se põe o Aires, que ocupa o centro do triângulo e do livro, como guia e pai espiritual dos três.

2) Lugar. A história se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro, com diversas referências a localidades ainda hoje existentes, como o Morro do Castelo (hoje Esplanada do Castelo), Botafogo, Andaraí e outras. Mais no fim do romance, a ação se desloca, durante algum tempo, para Petrópolis.

3) Tempo. Embora Machado seja mestre no tempo psicológico, aqui a seqüência dos fatos se revela essencialmente cronológica; inicia-se com a previsão da cabocla do Castelo, em 1871, indo até os primeiros anos da República (1889). Muitos fatos políticos que se situam nesse espaço de tempo merecem referências, como é o caso da Proclamação da República, que ocupa mais de dois capítulos do livro.

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4) Personagens. Com exceção do Conselheiro Aires, todas as personagens de Esaú e Jacó são fracas e estão muito longe da complexidade humana das grandes personagens machadianas. Todas elas, com exceção do Aires, podem ser classificadas como planas, dada a fragilidade que encerram. Observe:

a) O Conselheiro Aires: acaba ocupando o centro de toda a narrativa, dada a sua importância no romance como guia espiritual dos meninos. Era estimado e respeitado pela sua conduta ímpar, pela sua hombridade, experiência e dignidade. O título que ostenta - conselheiro - é mais um rótulo feliz de seu papel ao pé daqueles com quem convive do que uma simples referência à glória diplomática. Como observa Massaud Moisés, “é um homem de nervos, sangue, cheio de humanidade, de contradição por isso mesmo, dono duma vitalidade incomum à idade e, simultaneamente, duma melancólica e conformista visão da existência”, no que lembra o próprio Machado de Assis. Em suma, “Aires é a crença no homem e no seu destino terreno” e revela na obra um gosto pela vida que encanta pela alta dose de sinceridade e pela concepção estóica e sábia da existência.

b) Pedro e Paulo: são os gêmeos que dão nome ao livro (Esaú e Jacó). Caracteriza-os uma rivalidade que remonta ao ventre materno, quando já brigavam.

Não constituem individualidades autônomas, não passando de símbolos da dualidade do ser humano, na sua natureza complexa e intrincada, que só uma Flora pode ver e “explicar”:

“No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e sutileza, seria o gêmeo Pedro”. E que são o “coração” e o “espírito” senão dualidades do mesmo ser? Era certamente por isso que Flora não os distinguia, chamando Paulo de Pedro e vice-versa:

“Em vão eles mudavam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes também, e os três acabavam rindo”.

Mas a dupla Pedro-Paulo é não só símbolo da dualidade do ser humano como também um meio de Machado pôr a vivo a situação política dos fins do século XIX, em que igualmente está implícita a ambigüidade humana: Pedro era monarquista (conservador), Paulo republicano (liberal): “A razão parece-me ser que o espírito de inquietação está em Paulo, e o de conservação em Pedro”.

Segundo a caracterização do Aires, ainda dentro dessa linha de oposições, o perfil de Pedro estava no início da Odisséia, de Homero:

“- Musa, canta aquele herói astuto, que errou por tantos tempos, depois de destruída a santa llion...”

O de Paulo no começo da Ilíada:“- Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta aos gregos,

que precipitou à estânciade Plutão tantas almas válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos

cães...”Quer dizer, Pedro era astuto como Ulisses; Paulo, colérico como Aquiles.Enfim, como ressalta o crítico Affonso Romano, “a narrativa machadiana

desenvolve-se sistematicamente explorando a duplicidade através de um jogo de oposições”, em que Pedro e Paulo estão como “a dualidade básica do livro”.

E assim termina o livro: os gêmeos, agora deputados - “eleitos em oposição um ao outro” - continuavam rivalizando pela vida: eles eram “os mesmos, desde o útero” - assevera o Aires. Assim é o homem, desde a criação, feito à imagem e semelhança de Deus...

c) Flora: é uma personagem que atravessa a sua curta existência sem perturbar ninguém, ofuscando-se no ocaso da vida sem nenhuma manifestação de natureza ruidosa. “Flora toca-nos, comove-nos até, mas desaparece mansamente do romance como desaparece mansamente de nossa memória sem deixar maior rasto impressivo, como deixa Capitu para sempre e sempre”.

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Flora não é uma personagem de carne e osso, como o é Sofia (Quincas Borba) ou Capitu (D. Casmurro). É antes uma idéia poética, um ideal de juventude do que propriamente uma personagem.

“Por pouco é uma heroína romântica, não fosse haver ao todo de sua personalidade um grão de mistério para além dos problemas de ordem amorosa”: vive de leve, morre de leve, sem perturbar ninguém com sua presença, como se não tivesse direito à vida, ou se sua presença fosse o motivo da discórdia entre os dois irmãos, que ela confunde numa só pessoa. Enfim, como a vê o Aires, Flora é uma criatura inexplicável.

d) Batista - D. Cláudia: São os pais de Flora. D. Cláudia é o retrato da mulher forte, que subjuga o marido fraco. Em muitas partes, “D. Cláudia sobe como personagem, ainda que desça como criatura, pela estreiteza de seus desígnios egoísticos.” A fraqueza do Batista e a fortaleza da mulher podem ser vistas no Cap. XLVII, onde Machado coloca a mulher como sinônimo do diabo. O Batista é o tipo do político que quer subir, mas é fraco; D. Cláudia a mulher ambiciosa que quer tudo para o marido, porque serão delas os privilégios e regalias do sucesso e das glórias dele.

e) Natividade – Santos: São os pais dos gêmeos. Ela, esposa dedicada e mãe extremada, que não hesita em se expor à opinião pública em favor dos filhos, como no caso da consulta à cabocla do Castelo, aonde foi juntamente com a irmã, Perpétua: “tinha fé, mas tinha também vexame da opinião”. Ele, comerciante bem sucedido e banqueiro de grande respeito na praça, como toda personagem machadiana. Daí até o baronato foi um pulo: “...no despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José dos Santos fora agraciado com o titulo de Barão de Santos.”

f) Nóbrega: É o “irmão das almas”, que aparece no início do livro tirando esmola “para a missa das almas”. Depois fica rico sem fazer muito esforço, beneficiado que foi pela esmola “graúda” de Natividade (como ocorre no início do romance) e pela política do “encilhamento”, famosa na história do Brasil. Foi um dos pretendentes de Flora e representa uma das inúmeras caricaturas machadianas.

g) Plácido: É “doutor em matérias escusas e complexas”, que procura explicar a rivalidade dos gêmeos. Morre desenvolvendo a teoria da “correspondência das letras vogais com os sentidos do homem”.

h) Perpétua: Irmã de Natividade e, portanto, tia dos gêmeos. É a responsável pelos nomes dos meninos, que, segundo Machado, os tirou do Credo, “estando à missa”, o que constitui um “cochilo”

machadiano, pois, no Credo, não há referência aos apóstolos Pedro e Paulo. Certamente quis dizer no “Confiteor”, onde os dois apóstolos estão presentes.

i) Rita: É a mana do Aires, com quem Flora vai passar uma temporada, em cuja casa acaba morrendo.

Era viúva e se vangloriava de “ter cortado os cabelos por haver perdido o melhor dos maridos”.

ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTESEmbora Esaú e Jacó apresente a juventude de Flora e dos gêmeos, além de

outros, bem como a idade provecta do Aires, marcada pela serenidade e sabedoria, temas que podem ser estudados no livro, o núcleo principal do romance é a dualidade do ser humano.

Ao abordá-lo, Machado de Assis faz um retrato do momento político brasileiro, em que o Brasil passa de Império a República, mudança que tem um tratamento irônico no livro.

1) Dualidade do ser humano. É o que está explicito no próprio título do livro: Esaú e Jacó, figuras bíblicas que rotulam o romance, filhos de lsaac e Rebeca, que se caracterizaram pela rivalidade. No romance, os irmãos têm nome de Pedro e Paulo, o que evoca os dois apóstolos, também rivais, segundo a explicação do velho Plácido.

Pedro e Paulo, como já ressaltado “não são individualidades autônomas”, não são pessoas físicas, mas símbolos, representação duma dualidade radical no homem, desde a criação, como faz sugerir a expressão “desde o útero” e a “flor eterna” do

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Aires, no final do romance: o homem nasceu assim, é assim, e será eternamente assim.

O drama, que constitui o caso psicológico e humano abordado no romance, resulta de serem os gêmeos dois e não um. Quer dizer, os dois gênios (Pedro e Paulo) que deveriam nascer em um, nascem em dois. Os dois aspectos que deviam estar numa só pessoa, como é normal, brotam em duas.

Machado poderia muito bem pegar uma só pessoa e analisar-lhe essa complexidade dual. Não o fez.

Preferiu isolar os dois componentes básicos do ser humano: coração (Paulo) e espírito (Pedro), para usar a nomenclatura de Flora. Isolados em dois, seria mais fácil a dissecação do ser humano, a análise da complexidade antitética do homem.

É isso que Machado quer insinuar: todos nós temos dois gênios (=gêmeos) dentro de nós. Com outras palavras: todos nós temos um Pedro (espírito) e um Paulo (coração). Ora somos inquietos, como Paulo, ora dissimulados, como Pedro; ora republicanos (Paulo), ora conservadores (Pedro).

Por isso mesmo é que Flora os confundia numa só pessoa: Pedro era o lado que faltava em Paulo, e Paulo era o lado que faltava em Pedro; um completava o outro, porque cada um deles não era uma pessoa completa: “Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausência de um gêmeo”.

Também nesse sentido está aquele desenho de Flora, “em que estavam desenhadas duas cabeças juntas e iguais”, que o Aires identificou com os gêmeos, observando que “as duas cabeças estavam ligadas por um vínculo escondido”.

Nesse sentido, outra passagem ainda que merece destaque é a cena da morte de Flora, quando os gêmeos “queriam entrar ambos” no quarto, e Flora tem esta expressiva pergunta que é tomada como delírio da moça:

“- Ambos quais? perguntou Flora.”Mas o Aires, que conhece e sabe tudo, “rejeitou o delírio”: os gêmeos eram

uma só pessoa e, portanto, não podiam ser “ambos”.Enfim, assim termina o romance: os dois gêmeos deputados com prenúncio de

que seriam maiores ainda - Presidente da República, certamente. O pior é que “a presidência da República não podia ser para dous”, e eles eram um em dois, criados à imagem e semelhança de Deus, que é um em três...

2) Momento político brasileiro. A narrativa machadiana vem entrecortada de fatos políticos da história do Brasil: a abolição da escravatura, em 1888, vem aí mencionada opacamente, mas servindo para Paulo tecer considerações nitidamente de sentido republicano “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”. A “emancipação do branco” seria a

República, o que “era uma ameaça ao imperador e ao império”, conforme pressente Natividade.

Chega rápida e mansamente a República, da noite para o dia (“Noite de 14” e “Manhã de 15”), o que Machado vai ironizar com a “tabuleta do Custódio”, que caía aos pedaços com a “madeira rachada e comida de bichos”. Era então a “Confeitaria do Império”. Era preciso uma reforma, e o Custódio, embora a contragosto, envia-a ao pintor. Nem bem este tinha acabado a sua obra (estava no “d”), proclama-se a República, sem ao menos avisarem ao pobre homem... Custódio estava desesperado. Em vão o Aires procura consolá-lo, observando que nem tudo estava perdido. Poderia perfeitamente trocar de nome. O pintor parara no “d” (“Confeitaria d”). Era fácil acrescentar “República” (“Confeitaria da República”), ao que o Custódio responde:

“Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dous meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro”.

Mas como insinua o Aires, agora junto ao Santos, “nada se mudaria; o regime, sim era possível, mas também se muda de roupa sem mudar de pele (...); tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.

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OPÇÃO 4

Análise Estrutural Esaú e Jacó

RESUMO

Na segunda metade do século XX o Estruturalismo firmou-se como método de análise da língua, da antropologia, da psicanálise, da filosofia, da cultura e das ciências humanas em geral. Apesar de não ser considerada uma escola e não haver unanimidade quanto à definição teórica de seus princípios, segundo Ivan Teixeira (1998, p.14) nenhum intérprete das humanidades pensará de forma adequada caso não incorpore os pressupostos estruturalistas, ainda que seja apenas para os negar... Aplicada ao discurso literário, a oposição langue/parole, formulada por Ferdinand Saussure é um dos princípios fundamentais de abordagem estrutural do texto. A langue é um sistema abstrato de normas e a parole o uso individual da langue. Assim, sob o ponto de vista da crítica estrutural, contrariamente à análise imanente, as obras literárias são entendidas como langue, ou seja, a estrutura ideal e impessoal que antecede a parole, associando deste modo a literatura à lingüística, tal como a interpretou Saussure. O estruturalismo tenta encontrar no discurso literário particular os modelos virtuais que lhe dão sentido. Sob a ótica estruturalista cada obra individual é o reflexo de uma outra coisa. Este trabalho é a procura dessa outra coisaem Esaú e Jacó de Machado de Assis, sem dúvida uma das obras mais marcantes da literatura nacional.

1 Introdução

Em relação à análise estrutural de autores nacionais temos que reconhecer a existência de uma lacuna. São poucos os trabalhos dedicados a encontrar as 'estruturas' de nossas narrativas. Sobre o assunto, Afonso Romano (1990, p.10) faz o comentário: "[... quando, em 1970, iniciei as aulas de pós-graduação em literatura brasileira, na PUC do Rio de Janeiro, foi impossível localizar material que exemplificasse a aplicação do método estruturalista em narrativas brasileiras". (Em 1971, Willi Bolle apresentou, em língua alemã, na Universidade de Bochun, como tese de doutoramento, o texto Fórmula e Fábula, publicado em 1973 pela Editora Perspectiva e traduzido pelo próprio autor,em que faz análise estrutural de textos de João Guimarães Rosa, mas que provavelmente não tenha alcançado repercussão na época ).

Este trabalho, inspirando-se na obra de Afonso Romano (1990), onde ele "extrai" os 'modelos' da narrativa machadiana "Esaú e Jacó", pretende ser uma pequena contribuição para o preenchimento daquela lacuna.

Machado de Assis nasceu no Morro do Livramento, Rio de Janeiro, de ascendência negra e numa época ainda escravocrata. Sua iniciação pública foi com um poema na revista Marmota Fluminense, em 1855. Seus romances 'realistas' começaram a ser

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publicados em 1881 e em 1889 torna-se um dos principais colaboradores para a criação da Academia Brasileira de Letras.

Machado iniciou-se na carreira literária como poeta, com CRISÁLIDAS; escreveu crônicas para diversos jornais do Rio; foi crítico literário e contista. Seus primeiros romances, RESSURREIÇÃO, A MÃO E A LUVA, HELENA, IAÍA GARCIA, pertences à sua fase 'romântica'.

Sobre Machado e sua obra muito se tem escrito. No prefácio de um de seus livros, Roberto Schwars (2000, p.9) chega a indagar: "Em que consiste a força do romance machadiano? [...] Que pensar do enorme desnível entre Memórias Póstumas de Brás Cubas e a nossa ficção anterior[...]? Depois da leitura de Brás Cubas comecei a entender que se podia ser um grande escritor brasileiro,sem falar de índios, de caipira ou da roça,.( MAGALHÃES JR.,1981,p.376 apud SCHWARS,1990,p.10).

Esaú e Jacó e Memorial de Aires foram os últimos trabalhos da fase "realista" de Machado de Assis, e encerram o ciclo das obras primas do autor, iniciadas com as Memórias Póstumas de Brás Cubas e seguidas de Quincas Borbas e Dom Casmurro.

Quanto ao título, o próprio narrador nos esclarece logo no início (2003, p.9)

Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos[...]Cada um dos primeiros seis tinha o seu número por algarismos romanos[...]O sétimo trazia este título: Último.

A razão desta designação especial não se compreendeu então nem depois[...]Era uma narrativa; e posto figure aqui o próprio Aires, com seu título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos.[...] Nos lazeres do ofício, (Aires) escreveu o Memorial, que, aparado das páginas mortas ou escuras, apenas daria ( e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis.

Tal foi a razão de se publicar apenas a narrativa. Quanto ao título, foram lembrados vários, em que o assunto se pudesse resumir, Ab ovo, por exemplo, apesar do latim: venceu, porém, a idéia de lhe dar estes dois nomes que o próprio Aires citou uma vez: ESAÚ E JACÓ.

(Os manuscritos citados dariam origem ao último trabalho de Machado, Memorial de Aires).

A trama de Esaú e Jacó é tecida pela história da vida dos gêmeos Pedro e Paulo, suas idéias, seus desejos e ambições e, sobretudo, pelo amor que ambos dedicam à mesma donzela.A discórdia dos gêmeos inicia no útero da mãe e percorre toda a narrativa. Discórdia quanto ao temperamento, posições políticas, visão do mundo.

O relato nos conta sobre o período de transição entre o Império e a República, época da economia do café, da libertação dos escravos, das grandes transformações urbanas. Coma maestria de sempre Machado nos revela os costumes, os hábitos, as idiossincrasias de seu tempo e, sobretudo,as profundezas da psique das personagens.

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O jogo de oposições e ambigüidades em Esaú e Jacó, os aforismos, paradoxos, ironias, espalhados por toda a trama, prestam-se a uma gama enorme de interpretações. Inclusive a uma análise estrutural, como veremos a seguir..

A gênese do estruturalismo lingüístico encontra-se nos cursos ministrados por Ferdinando de Saussure em Genebra, nos ano de 1906 e 1911. Sua tese sustentava que a história de uma palavra não dava conta de seu sentido na atualidade, ou seja, o estudo diacrônico não alcança, em definitivo o significado da palavra, por outro lado, a pesquisa sincrônica conduz à compreensão entre signo e sentido, pois capta o "sistema", (a estrutura), que num dado momento histórico representa o conjunto das significações, que são ao mesmo tempo distintas, opostas e relativas umas as outras.

O que leva Saussure defender o sincronismo do sistema é a constatação do caráter arbitrário do signo verbal. O 'significante' não tem em si nada que lembre o conteúdo 'significado' e, portanto, não comporta relações diacrônicas estáveis.

A maior contribuição de Saussure para o conceito de 'estrutura' no discurso literário foi a distinção entre langue e parole.Para Ivan Teixeira (1998, p.35):" Langue é o sistema abstrato de normas, segundo as quais se manifesta a parole, que é uma espécie de projeção concreta daquela estrutura ideal, formada pelo conjunto hipotético de todas as paroles do homem".

A obra literária é, portanto, parole, uso individual da langue, apropriação por um narrador desse sistema abstrato, empregando-o num dado momento. A crítica imanente, intrínseca, preocupa-se com a descrição da obra, ou seja, com a parole. A crítica estrutural pretende investigar o sistema abstrato, langue, que em determinada obra é manifestado pela parole. Entretanto, apesar de afastar-se da crítica imanente, o estruturalismo nega também os métodos extrínsecos de análise, que associam a obra literária a outros campos do conhecimento, sociológicos, históricos, psicológicos, etc. Recusando a descrição e não se preocupando com os estudos extrínsecos à obra, a crítica estrutural irá buscar as regras gerais e abstratas, segundo as quais se concretiza a obra individual. De acordo com Roland Barthes, citado por Ivo Teixeira (1998 p.36): "[...] não seria necessário investigar todas as narrativas do mundo para chegar à essência do discurso narrativo. Bastava o conhecimento de um número considerável de exemplos para obter as regras, segundo as quais se articulam as demais narrativas".Deixando explícito o caráter dedutivo do método estrutural.

O estruturalismo literário procura extrair da obra particular as estruturas gerais de um gênero, de um movimento ou de uma literatura nacional.(LEILA; As Estruturas Narrativas de Todorov, 2003).

Buscar as estruturas gerais é tentar estabelecer um modelo, um protótipo que extraído de uma obra particular poderá ser aplicado a outras obras.

Um dos princípios básicos da epistemologia estruturalista é o conceito de 'modelo'. O termo 'conjunto', empregado em matemática, assemelha-se à "estrutura", em ciências humanas. 'Conjunto' é uma totalidade formada por elementos articulados, Milton José (1971, p.18), nos apresenta o seguinte exemplo: "o conjunto dos números pares é representado pela expressão: Np=2n, sendo n³1". Essa expressão é o 'modelo',

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através do qual podemos encontrar qualquer elemento do conjunto e conclui Milton José (idem):

" O estruturalismo procura fazer o mesmo com as ciências humanas: considera um determinado 'objeto'( um enunciado lingüístico, um mito,as relações de parentesco numa comunidade,etc) como um conjunto formado por elementos num 'modelo'".Assim, partindo do todo pode se obter qualquer elemento do conjunto, ou, a partir do elemento e seu modelo, reconstituir o todo".

'Modelo' é uma forma comum a diversos fenômenos, é uma " categoria crítica" elaborada com ajuda de numerosas análises concretas,mas é uma abstração que independe da existência factual da obra".(ECO, 1968, p.26 apud Sant'Ana, 1990, p.27).

A análise estrutural de narrativas quer encontrar, nas obras particulares, o 'modelo' pré-existente, protótipo virtual daquele gênero ou movimento literário, visando aplicá-lo a outras obras particulares, no dizer de Todorov (2003:1);

"Procura-se, por exemplo, estabelecer o protótipo de determinado tipo de narrativa não para alcançar este protótipo ele mesmo, mas para aplicá-lo a obras particulares. Cria-se, pois, um movimento circular, das obras particulares extrai-se o modelo, que em seguida será aplicada a obras particulares".

A postura estrutural terá, portanto, um caráter teórico e não descritivo. A obra será sempre considerada como a manifestação de uma estrutura abstrata da qual ela é apenas uma das realizações possíveis. A análise estrutural não interpretará a obra em termos psicológicos ou sociais, por exemplo, nem fará uma descrição da obra. Como diz Todorov (2003 p. 81): "Seu objeto é o discurso literário mais do que a obra literária, a literatura virtual, mais do que a literatura real". (idem p. 81).

Certamente a análise estrutural terá que extrair suas teorias das obras reais, mas tentará encontrar nelas o que ela tem de comum com outras obras.

2A Poética Estrutural

Todorov (1970 p.11), falando sobre poética apresenta-nos inicialmente duas posições diante da obra literária.A primeira tem como objeto de análise o texto 'em si'; de acordo com a segunda cada obra literária é considerada como manifestação de "outra coisa". A primeira postura ele denomina descrição.

A descrição não pensa a literatura como conceito filosófico, nem a considera como estrutura inconsciente. Na descrição o discurso se faz por si mesmo. Temos, neste caso, uma abordagem imanente da obra.

Entretanto, a noção de imanência limita, logo de início, os princípios da descrição. É praticamente impossível descrever uma obra literária, por ela mesma, sem projetá-la, em nenhum momento, fora de si mesma, a não ser copiando-a tal qual ela é. Talvez a simples leitura de um texto poderia aproximar-se da descrição ideal, apesar de que dificilmente dois leitores descrevem uma obra de modo idêntico, pois ao ler acrescentamos ou suprimimos o que queremos ou não queremos no texto.

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A descrição tem como objeto esta ou aquela obra particular e pretende estudá-la permanecendo tão próximo dela quanto possível. Mas, no intuito de resumir e explicar o texto a crítica descritiva transpõe-no para seu próprio discurso, negando, deste modo, um dos seus princípios básicos que é o manter-se fiel ao texto analisado. Além disso, a descrição de fatos particulares dificilmente alcançará o status de ciência.

A outra atitude encontra na obra algo além dela mesma. Poderá ser uma visão psicanalítica, sociológica, filosófica, ou de outras áreas do conhecimento. Assim o sentido do texto será transportado para essa, ou outras, visões particulares. Por exemplo, as discussões acadêmicas sobre as posições políticas do autor Machado de Assis, implícitas em suas obras e transmitidas pelo discurso de suas personagens, ou afirmações como a de Schwars (2000, p.11), " E com efeito, a prosa machadiana é das raríssimas que pelo seu mero movimento constituem um espetáculo histórico-social completo". Aqui Todorov (1970, p.15) situa a poética estrutural. "Não é a obra literária em si mesma que constitui o objeto da atividade estrutural, o que esta interroga são as propriedades desse discurso particular que é o discurso literário".

O fundamental, o essencial é encontrar essa característica abstrata que impregna o texto de ' literariedade'. No dizer de Todorov (1970 p.16), "Propõe-se uma teoria que apresente um quadro tal dos possíveis literários, que as obras literárias existentes apareçam como casos particulares realizados".O nome de Poética será dado a esse empenho em encontrar a própria estrutura do discurso. Poética, não em seu sentido restrito, de coleção de regras referentes à poesia, mas, "como nome de tudo quanto diga respeito à criação, ou à composição de obras cuja linguagem seja, a um só tempo, a substância e o meio". (VALÉRY, 1945, p. 291 apud TODOROV, 1970, p.16).

3.Estruturas de narrativa: o simples e o complexo

A narrativa oral ou escrita, em todos os tempos "esteve sempre envolvida com dois elementos: o mito e a ideologia".(ROMANO 1999, P.17).

A narrativa poderá ter uma estrutura simples ou complexa. A estrutura simples narra de modo natural, ingênuo. Aceita a sociedade tal como se apresenta, muito mais endossando seus valores do que os criticando. É um modo de contar que nunca entra em choque com o sistema.

A narrativa de estrutura complexa, pelo contrário, critica a realidade cotidiana e até os modos de narrar. Os mitos que sustentam os valores sociais são questionados ideologicamente. Com ela surge o anti-herói.

O mito e a ideologia convivem pacificamente na narrativa de estrutura simples, mas na de estrutura complexa são ambos duramente questionados.

Modernamente as novelas de televisão, os enlatados norte-americanos, e a grande maioria das histórias em quadrinhos são exemplos clássicos da narrativa de estrutura simples.

Romano (1990 p.19) cita o mito do Superman como exemplo extremo da consciência civil ingênua de toda uma comunidade. Estruturalmente suas ações são sempre as mesmas, defendendo a lei e a ordem.

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Nas narrativas de estrutura simples o bem sempre vence o mal, o mocinho conquista a mocinha, o amor triunfa sobre o ódio. Na de estrutura complexa os valores convencionais podem ser totalmente invertidos.

Romano (1990 p. 21) reduz a análise do simples e do complexo em duas categorias: "o simples está do lado do significado, do estatuído, do conceitual, da infinitude fechada; o complexo está do lado do ambíguo, do inconsciente, do imaginário em aberto, do significante".

Como exemplo de autores nacionais que narram, um de modo simples, outro, complexo, podemos citar José de Alencar, de um lado, e Machado de Assis, de outro. No dizer de Romano (1990 p.21): "em O Guarani, Alencar revalida a ideologia medieval e sua versão mítico-indianista[...] bem diferente é a posição de Machado de Assis, que parece ter sido quem iniciou entre nós a narrativa de estrutura complexa[...] Não é por acaso que em Machado temos um anti-romântico (anti-mítico) e um anti-realista (anti-ideológico)"

4.Análise Estrutural da Narrativa: Esaú e Jacó

O livro Esaú e Jacó possui características de estrutura complexa. Assim, para compreendê-la será preciso isolar os suportes míticos e históricos que se cruzam no nível da composição. O autor afasta-se tanto do mito quanto da História brasileira, centralizando-se na problemática da escrita.

Um olhar sobre os níveis da narrativa, dos personagens e da língua, irá revelar-nos alguns modelos, cuja crescente complexidade pode ser exemplificada pelos personagens Pedro/Paulo, Flora, Conselheiro Aires. Esses modelos são didaticamente chamados de duplicidade (AXB), alternância (A ou B), e integração (A e B).

4.1 Nível da narração

Numa narrativa de estrutura simples, como o Guarani de José de Alencar, por exemplo, a análise revela que a estrutura repousa sobre o mítico e o ideológico,reduplicando modelos comuns ao folhetim. São 54 capítulos, distribuídos em quatro partes: "Os aventureiros", "Peri", "Os Aimorés", "A catástrofe". Inicialmente temos o cenário e os personagens, sem nenhum conflito; em seguida os conflitos começam a se delinear e quase todos são destruídos, finalmente, na última etapa os personagens que sobrevivem voltam a viver em harmonia, como no começo da narrativa.

Em Esaú e Jacó não há apoio sobre o mítico ou o ideológico. No dizer de Romano (1990 p.104), temos uma composição "baseada sobre a própria escrita". Portanto, os referentes não se encontram fora do texto, mas em sua própria textura. Há um suporte mítico e ideológico, mas ele é exterior, aspectual, não alcança a própria estrutura da obra.

O suporte mítico iremos encontrar em duas fontes: uma bíblico-judaica-cristã, a outra greco-romana e pré-cristã. A primeira vamos encontrar na Tora e no Velho Testamento, em Gêneses, capítulo 25, versículo 19, que narra o nascimento dos filhos gêmeos de Isaac e Rebeca, Esaú e Jacó. Entretanto, a história da vida dos gêmeos

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bíblicos e a dos personagens de Machado diferem em pontos essenciais. Os da Bíblia reconciliam-se no fim do mito, como lemos no capítulo 33, versículo 3. "E ele (Jacó) passando adiante, prostrou-se atéa terrasete vezes antes de se aproximar de seu irmão. Mas Esaú correu-lhe ao encontro e beijou-o e puseram-se a chorar". Pedro e Paulo, os gêmeos machadianos, jamais se reconciliam. O conflito entre ambos, iniciado no ventre materno, permanece até o fim da trama.

A matriz greco-romana pode ser estabelecida entre Castor e Pólux, gêmeos nascidos de Leda, um, filho do deus Júpiter, imortal como pai, o outro filho de Tindaro, rei da Esparta.

No mito, Júpiter, encantado com a beleza de Leda, transforma-se num cisne e mantém relações com ela. Mais tarde Leda irá parir dois ovos. De um deles nascerá Pólux, imortal, filho de Júpiter do outro, nascerá Castor, um homem comum. Mas os gêmeos do mito pagão não se hostilizam, como os gêmeos da obra de Machado, chegando Pólux a repartir com o irmão a imortalidade que o deus Júpiter lhe concedera.

Portanto, pode-se acreditar que os mitos, de Esaú e Jacó iniciando a narrativa, e o de Pólux e Castor a terminando, sirvam, um para dar ênfase à rivalidade entre os irmãos, e o outro apenas para ilustraro capítulo final, exercendo , desde modo uma função apenas aspectual.

Outros mitos surgem na narrativa, mas apesar de formarem pares antitéticos, não chegam a alicerçar a estrutura da obra. Por exemplo, o par Sibylla/David, que dão título ao capítulo XV, referindo-se a primeira ao mito da sacerdotisa da antiga Roma pagã, e o segundo ao mito bíblico-cristão, identificados na obra pelo par Plácido/Cabocla, esses mitos apenas apontam, no dizer de Romano (1990 p.105) "que tanto o oráculo bíblico, quanto o pagão, tanto a cartomante quanto o espírita da classe média confluem através da mesma profecia, no caso, o futuro dos gêmeos".

Se o suporte mítico não alcança a estrutura da obra, seus modelos estruturais também não serão encontrados na ideologia ou na História do Brasil, tantas vezes citada na narrativa, apesar da aparente antítese Pedro e Paulo / República e Monarquia e a fixação de D. Cláudia com datas políticas: "febre das ações" (1855); nascimento dos gêmeos em 7 de abril 1870, aniversário da queda de Pedro I; morte do marido de Perpétua na Guerra do Paraguai; nascimento de Flora, durante o Ministério Rio Branco,e ainda o Batista, marido de Cláudia tão ligado à política que, no dizer do narrador (capítulo 78): "nele a política era menos uma opinião que uma sarna". Apesar ainda dos capítulos inteiros dedicados a discussões entre conservadores e liberais, como no capítulo 47; das discussões sobre a escravatura, deixando clara a postura antitética dos irmãos; do próprio episódio da tabuleta, iniciado no capítulo 49 e continuado no 63, onde Custódio exclama: "-A República está proclamada"; apesar disso tudo nos conduzir ao paralelismo entre a estória e a História, de acordo com Romano (1990 p.106), "essahipótese parece não se sustentar". A possibilidade de aproximar a morte de Flora à morte aparente da República é descartada no capítulo 107, onde se lê: "Ao cabo de 72 horas todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora". Aqui fica evidente que a figura de Flora não se explica por fatos políticos ou jornalísticos. No capítulo 79 é o próprio narrador que comenta que o caráter de Flora não podia ter sua explicação somente "na variação política da mãe de Flora", e no capítulo 90, Aires relata que: "a

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moça não era como a república, que um dia podia defender e outro atacar, cumpria ganhá-la ou perdê-la de vez".

Outro modo de demonstrar que os dados políticos não alcançam a estrutura da obra em questão é comparando-a com outras do segundo período de Machado (veja-se o Dom Casmurro, ou as Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo), onde a História, mesmo presente, não é contada, nem para ilustrar mitos, como se fazia no Romantismo, nem para descrever uma realidade social fotográfica, como no Realismo, no dizer de Romano (1990 p107):

"Se fosse narrativa mítica e ideológica ela se deixaria centrar em referentes externos, seria ilustração de uma fábula já narrada. Tome-se aquilo que se convencionou chamar de romance histórico, seja as Minas de Prata de Alencar, seja Ivanhóe de Walter Scott. O caráter sobredeterminante dos referentes ideológicos explicita a simplicidade simétrica daquelas narrativas. Elas reduplicam uma mensagem e cumprem um roteiro estabelecido fora delas [...]Em Machado o texto concebido é um texto fictício e não o texto da realidade ideológica codificada pela história. Daí se poder dizer que o mítico ( ainda que escasso) e o histórico( ainda que insistente) em Esaú e Jacó se prendem à área do significado, do esteio exterior, apenas aspectual, e que a compreensão da obra deve ser mais fundamente buscada no significante, naquilo que o inconsciente foi largando aqui e ali em seu alargamento e na expansão do imaginário".

A História, a Psicologia, a Geografia e até mesmo a Metafísica, são elementos necessários, mas não decidem a narrativa, são conjunturais, não alcançam a estrutura da obra, fazem parte do seu universo, mas não explicam seu mecanismo de construção, que deve ser buscado naquela realidade autônoma do autor, que não seprende aos modelos da narrativasimples, que apenas conferem aquilo que se narra, com o que está narrado no mito e na ideologia.

A questão da verossimilhança em Esaú e Jacó é buscada nos elementos internos da obra e não na realidade exterior, a escrita volta-se para si mesma. Logo no início, na " Advertência", o narrador adverte queirá narrar a leitura de um Manuscrito . Há, portando dois narradores, ou duas escritas. Um irá contar a história dos gêmeos, seus envolvimentos políticos, suas pretensões amorosas, suas disputas (Conselheiro Aires), o outro fará observações sobre o manuscrito, (Machado). No dizer de Romano (1990 p109), "Repete-se o mesmo jogo de relações que de um lado tem o enunciado (estória) e de outro a enunciação (articulação da estória), a tal ponto que se poderia tentar a seguinte proporção. Aires: Machado: enunciado: enunciação"

Certamente é difícil desvendar essa duplicidade de narrador 1 e narrador 2, enunciado e enunciação são faces de uma mesma moeda. Entretanto, há trechos como este (cap.55) "tal foi a conclusão de Aires, segundo se lê no Memorial. Tal será a do leitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho de Aires: não o obriguei a achar por si o que de outras vezes é obrigado a fazer". E continuando, no mesmo capítulo, referindo-se aos níveis em que sua obra pode ser lida diz: "O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida".

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O leitor "ruminante" está, sem dúvida, ao lado do narrador 2, ao lado da enunciação, tal como este conceito está sendo aqui interpretado.Esse leitor é capaz de criticar, e essa é função do narrador 2, que usa a escrita como "um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro, ou totalmente escuro" ( cap.3). Machado torna-se crítico de sua própria narrativa, construindo uma metalinguagem a um só tempo, séria e irônica.

No capítulo 13, percebe-se essa consciência de converter em tema a própria narração. No dizer de Romano (1990 p.110) "Todo o capítulo, A Epígrafe é dedicado a esse aspecto e por ai já se vai definindo a narrativa como a arte de jogar criticamente o próprio jogo da escrita". Lê-se no referido capítulo:

"Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trabelhos".

Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa fazer de torre, nem a torre de peão. Há ainda a diferença da cor, branca e preta, mas esta não tira o poder de marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai o mundo".

Ao nível do enunciado, trata-se aqui de um jogo de xadrez, mas que ao nível da enunciação desvenda-se como o jogo da própria escrita do romance. No capítulo 27, novamente a narrativa é ironicamente convertida em tema: "Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo escrito com método. A insistência da leitora em falar de uma só mulher chega a ser impertinente". O livro está sendo escrito com método, tema abordado também em Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde Machado mais uma vez revela sua arte de compor. No capítulo 9 da referida obra lê-se: "Que isso de método, sendo como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensório, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor do quarteirão". Há, portanto, um método de escrita em Machado, que poderá vir à tona através de uma análiseda estrutura de sua obra.

Notou-se a presença de dois narradores, em Esaú e Jacó, destacou-se o enunciado da enunciação e a problemática da escrita em si mesma foi separadada questão do mito e da ideologia. Afastado os aspectos conjunturais da obra, resta tentar encontrar nela os modelos capazes de revelarem sua estrutura.

Romano (1990 p.111) introduz três modelos, encontrados tanto ao nível da narração, quanto ao dos personagens e da língua:

A narrativa machadiana desenvolve-se sistematicamente explorando a duplicidade através de um jogo de oposições.

Os elementos de opostos não surgem de forma sistemática se complementando. Têm características ambíguas e bivalentes, sem que se possa prescindir de um deles ou se consiga separar um do outro com precisão, pois formam um composto de elementos solidários e inseparáveis.

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À duplicidade e à ambigüidade soma-se um terceiro estágio que dá sentido aos anteriores na medida em que conjuga e integra os elementos do sistema dentro de uma idéia de complementaridade. As oposições e ambigüidades deixam de ser sistemáticas para se tornarem sistêmicas.

Como ficou dito no início a duplicidade pode ser representada pelo signo (AXB); a ambigüidade pela alternância, (A ou B); e o terceiro estágio por (A ou B). Esses três movimentos, é fundamental ressaltar, podem estar tanto nas partes como em toda a narrativa.

Também no início relatou-se que as duplas Cabocla/Plácido, David/Sibylla, Castor/Polúx, apesar da duplicidade, (AXB), são apenas conjunturais, são mitos que não alcançam a estrutura da narrativa. No dizer de Romano (1990 p.112): "Mais vale dizer que põe o mito a serviço da narrativa do que a narrativa a serviço do mito, como se dá nanarrativa de estrutura simples". Em Esaú e Jacó o mito apenas reforça a estrutura da obra, dele se extrai a duplicidade, um dos modelos reveladores dessa estrutura. Também a ambigüidade está presente em toda a trama, desvendada na constante oscilação, Pedro ou Paulo. No capítulo 80, apenas para citar um entre inúmeros exemplos, o narrador desvenda o pensamento de Flora: "... mas logo que se acostumou a passar de dois a um e de um a dois, pareceu-lhe graciosa a alternação, e chegava a evocá-la com o propósito de divertir a vista. Afinal nem isso era preciso, a alteração fazia-se de si mesma".

Assim como o mito está a serviço da narrativa, os fatos da História do Brasil contados em diversos capítulos, também aparecem apenas para ilustrá-la, e em vez de República/Monarquia no Brasil, o autor pode, como o faz no capítulo 24, contrapor Robespierre/Luiz XVI, na França.,a oposição, como modelo estrutural, poder ser encontrada na história dequase todos continentes.No dizer de Romano ( 1990 p.113): " Tanto faz que se digaAut César aut Nihil, ou César ou João Fernandes. A verdade é que a estrutura A/B é idêntica em qualquer das sentenças[...]a função é sempre a mesma e a estóriae/ou história continua". Ironicamente o narrador comenta no capítulo 116: "Como nas missas fúnebres, só se troca o nome do encomendado ___ Petrus, Paulos..."

Ou Robespierre ou Luiz XVI, ou David ou Sibylla, mudam-se os nomes permanece o drama. A dualidade, a alternância, a integração, são os modelos. O jogo da escrita serve-se tanto do Mito quanto da História.

Os modelos podem ser reduplicados, deixando de se ater a referentes externos (mito/história), para se articularem, em forma de anedotas ou pequenas histórias. No capítulo 23, "Quando tiverem barbas" temos presente a dualidade branco/preto, religioso/profano. Diz o narrador: "Trata-se de um frade. Pedro não lhe conheceu a barba preta, mas já grisalha e longa [...] Quando voltou trouxe-nos a todos grande alegria e maior espanto. A barba estava negra. [...] Quanto à segunda barba não era de frade, mas de um maltrapilho [...] a barba ele as pintava de negro. No capítulo 81 o personagem Plácido apresenta sua teoria da correspondência entre vogas e sentido (duplicidade)".Morreu no seu ofício; expunha a três discípulos novos a correspondência das letras vogais com os sentidos do homem"Oposição (AXB) vem em seguida, através de um grupo de dissidentes, que afirmam:'a correspondência exata não era entre as vogais e os sentidos, mas entre os sentidos e as vogais". Um

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terceiro grupo, dissidentes de ambos, apresenta uma nova teoria, que integra as outras duas: "... o homem é um alfabeto de sensações". No capítulo 44, "Gestos opostos", lemos: ''Nem esqueça o próprio crânio do homem, que os cobre igualmente, não só diverso, senão opostos". No capítulo seguinte, "O terceiro", o narrador nos apresenta um personagem que reflete os três modelos revelados pela análise. Gouveia fazia versos no tempo que era simples escriturário. Promovido a oficial de cartório pôs de lado a veia poética. Agora, apaixonado por Flora, alterna a seriedade de oficial, como descompromisso do poeta. Gouveia, de longe, aprecia sua amada Flora, quando começa a garoar. E o narrador, assim descreve a cena: "... Acrescento que começou a pingar fino e a ventar fresco. Gouveia trazia guarda-chuva e ia abri-lo, mas recuou. [...] O oficial queria abrigar-se da chuva, o amanuense queria apanhá-la, isto é, o poeta renascia contra as intempéries, sem medo ao mal, prestes a morrer por sua dama, como nos tempos da cavalaria. [...] Flora entrou e fechou a janela. O amanuense esperou ainda algum tempo, até que o oficial abriu o guarda-chuva e fez como os outros. Em casa achou a triste consolação da mãe".

Certamente, nas narrativas de estrutura simples, encontramos também, e com freqüência, a oposição, mas, no dizer de Romano (1990 p.114):

"Esse tipo de construção eventualmente existe em Machado, mas sua narrativa não se limita ai. Ele abandona a simplicidade da oposição vida/morte que aparece no princípio de Esaú e Jacó, por exemplo, para jogar com a duplicidade convertida em tema da composição".

O tema das antíteses é revelado na importância dada ao modo de apresentar os capítulos "como técnica de montagem", como diz Romano (1990 p114). Por exemplo, no capítulo 7, "Gestação", sobre o breve parto de Natividade diz o narrador: "Em verdade, a mãe padeceu muito durante a gestação, e principalmente nas últimas semanas. Cuidava trazer um general que iniciava a campanha da vida, a não ser um casal que aprendia a desamar de véspera". No capítulo seguinte, "Nem casal, nem general", o narrador diz já no primeiro parágrafo: "Nem casal, nem general. No dia 7 de abril de 1870 veio à luz um par de varões...", deixando claro que a narrativa tomaria outra direção.

Esse modo de contar, consertando a própria escrita revela-se explicitamente no capítulo 48, onde a narrador comenta: "Ao contrário do que ficou dito atrás, Flora não se aborreceu na ilha. Conjeturei mal, emendo-me a tempo".No dizer de Romano (1990 p.115); "Em Machado o concerto da estória é seu modo de contar a estória. A negação ou modificação do enredo ou alteração das características dos personagens demonstra sua obsessão pela enunciação, seu prazer pelo bordado da narrativa, sua paixão pelo jogo".

No capítulo 74, Alusão ao texto, o autor nos revela que a verdade não é algo fixo, imóvel, mas mutável como todas as coisas e que, portanto a própria narrativa também pode se alterar no curso da narração. O personagemNóbrega, no capítulo 3 recebe uma esmola muito generosade Natividade. Esmola que deveria ser entregue para a igreja, mas que ele guarda no próprio bolso. Na ocasião, Nóbrega atribui a esmola à alegria de Natividade por ter tido uma aventura amorosa. No capítulo 74 ele atribui aquela esmola à proteção da santa. Diz o narrador: "Não leitor, não me apanhas em contradição. Eu bem sei que a princípio o andador das almas atribuiu a nota ao prazer

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que a dama traria de alguma aventura. [...] Mas agora atribuía a nota à proteção da santa, não mentia então, nem agora. Era difícil atinar com a verdade.". Se a verdade não tem um centro fixo, a narrativa também não há de tê-lo.

Romano (1990 p.116) apresenta-nos 18 capítulos onde o jogo entre os contrários é desvendado:

2-Melhor descer que subir

5-Há contradições explicáveis

8-Nem casal, nem general

15-Teste David com Sibylla

19-Apenas duas.Quarenta anos.Terceira causa

24-Robespierre e Luiz XVI

37-Desacordo no acordo

79-Fusão, difusão, confusão.

80-transfusão, enfim

81-Ai, duas almas

85-Três constituições

87-Entre Aires e Flora

93-Não ata, nem desata

94-Gestos opostos

100-Duas cabeças

105-Ambos

113-Uma Beatriz para dois

118-Cousas passadas, cousas futuras.

Percebe-se aqui a importância do título em Machado, informado, tanto a enunciação, quanto à estrutura do livro. Em Memórias póstumas de Brás Cubas o capítulo 139, De como não fui ministro D'Estado, ilustra genialmente isso, todo ele sendo narrado apenas por reticências.

4.2 Nível DAS personagens

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As personagens de Esaú e Jacó, também se relacionam através dos modelos de dualidade, alternância e integração. Esses modelos são apresentados por Romano (1990 p.117), em três níveis de complexidade:

"a) O modelo da duplicidade e oposição se exemplifica pela atuação dos gêmeos Pedro&Paulo e na carreira que estabelecem opondo-se simetricamente (AXB).

b) O modelo da ambigüidade desenvolve-se através da figura de Flora que pelo seu caráter de "inexplicável", enfatiza a dubiedade entre os dois elementos antitéticos (A ou B).

c) O modelo da integração se explicita pela atuação de Aires, que reúne a duplicidade e a ambigüidade abrangentemente como narrador ( A e B ). Os três modelos se necessitam para se explicarem e revelam uma linha de simplicidade ( ilustrada na oposição dos gêmeos) que acaba derivando para uma complexidade que tem Aires como exemplo.

O sistema de dualidade revela-senos personagens de menor importância, Natividade e Perpétua, (cujos próprios nomes remetem a um jogo infinito de relações), "uma alta e reta, a outra, mais baixa e gorda" cap.8; Cabocla do Castelo/Plácido, ambos oráculos, ela representando o espiritismo popular, ele o espiritismo cientifico,das elites; Nóbrega, inicialmente um pobretão,que pede esmolas para as almas e no fim um rico cidadão que se casa com a filha de um Ministro. Como diz Romano (1990 p118): "Entre um dado e outro está a vida e/ou a narrativa com suas antíteses". Revela-se também, com maior ou menor complexidade, nos personagensprincipais da trama, Pedro e Paulo, Flora, Conselheiro Aires .

Pedro e Paulo já são rivais, antes mesmos de deixarem o útero materno. No capítulo 1, Cousas futuras, narrador descreve a encontro de Natividade com a adivinha Cabocla do Castelo:

 "E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer".

- Brigado?

-Brigado, sim, senhora.

-Antes de nascer?

...Natividade, que não tivera a gestação sossegada, respondeu que efetivamente sentira movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e insônia..."

A oposição entre os gêmeos permeia toda a narrativa. Senão vejamos:

a)Capítulo 8: "Os pequenos que se distinguiam por uma fita décor passaram a receber medalhas de ouro, uma com a imagem de São Pedro, outra com a de São Paulo".

b)Capítulo 35: "Já os dois gêmeos cursavam, um a Faculdade de Direito, em São Paulo;, outro a Escola de Medicina, no Rio.

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c)Capítulo 22: Ao tomarem conhecimento de que o pai havia recebido o título de Barão, assim o narrador descreve-lhes o sentimento: "... mas acresce que havendo o título produzido em outros meninos dous sentimentos opostos, um de estima, outro de inveja".

d)Capítulo 23: Perguntados sobre a data de nascimento responde Paulo: "- Nasci no aniversário do dia em que Pedro I caiu do trono,enquanto Pedro diz: "- Nasci no dia em que Sua Majestade subiu ao trono".

e)Capítulo24:"... Havia ali uma loja de vidraceiro, com espelhos de vários tamanhos [...] Logo depois, Pedro viu pendurado um retrato de Luís XV (Monarquia), entrou e comprou-o [..] Paulo quis ter igual fortuna, adequada às suas opiniões, e descobriu um Robespierre (República)".

f)Capítulo 36: "A imaginação os levou então ao futuro, a um futuro brilhante, como ele é em tal idade. Botafogo teria um papel histórico, uma enseada imperial para Pedro, uma Veneza republicana para Paulo".

g)Capítulo 37: Para Pedro a emancipação dos escravos era "um ato de justiça", para Paulo era "o início da revolução"

h)Capítulo 44: "Ao almoço, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro com desdém" ; Paulo ainda se declarou capaz de derribar a monarquia com dez homens, e Pedro de extirpar o germém republicano com um decreto"

i)Capítulo 45: "No fim do almoço, Aires deu-lhes uma citação de Homero, aliás duas, uma para cada um... Paulo no começo da Ilíada [...] Pedro estava no começo da Odisséia".

j)Capítulo 65: "A melancolia de um ia com a alma da casa, a alegria do outro destoava dela".

l)Capítulo 85: "A Constituição, se fosse gente viva, e estivesse ao pé deles, ouviria os ditos mais contrários deste mundo, porque Pedro ia a ponto de a achar um poço de iniqüidade, e Paulo a própria Minerva nascida da cabeça de Jove".

m)Capítulo 112: Flora havia falecido há um mês e os irmãos foram levar-lhe flores ao túmulo. Pedro chegou primeiro e depositou as flores no túmulo, Paulo observava escondido e quando Pedro saiu foi também depositar sua grinalda. Diz o narrador: "Paulo vagarosamente caminhou para a sepultura. Indo depositar a grinalda [...] O que fez foi colocar a coroa que levava no lado correspondente aos pés da defunta, para não a irmanar com a outra, que estava do lado da cabeça".

n)Capítulo 109: Com a morte de Flora os gêmeos fizeram um acordo de paz. "-Ela nos separou, disse Pedro; agora, que desapareceu, que nos una. Paulo confirmou com a cabeça.".

o)Capítulo 115: Pedro, monarquista convicto, torna-se republicano; Paulo republicano passa a fazer oposição ao governo: "Paulo entrou a fazer oposição ao governo, ao

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passo que Pedro moderava o tom e o sentido, e acabava aceitando o regime republicano, objeto de tantas desavenças"

p)Capítulo 119: No leito de morte Natividade pediu-lhes que se tornassem amigos e elas prometeram que sim, mas esse acordo não durou muito.

Romano (1990 p.120) apresenta três princípios básicos regendo os modelos estruturais estudados:

"a)Há uma oposição constante entre os elementos. Toda a estória é construída em torno desse eixo oposicional revelador de um certo determinismo e de um mistério que os mais diversos oráculos ( Cabocla e Plácido) registram.

b)A oposição, conquanto sistemática, está sujeita a intermitências. Nem por isso há quebra no ritmo, mas é por ai que se depreende uma maior complexidade do sistema. Há dois acordos de paz, quebrados logo depois e motivados pelas duas figuras femininas que polarizam os gêmeos: Natividade e Flora.

c)Pode haver troca na posição dos elementos em jogo sem que isto lhes altere a função. Pedro pode ocupar o lugarde Paulo e vise-versa. Quem era contra o regime passa a ser a favor, enquanto o outro passa à oposição. Essa alteração aspectual apenas reforça a função entre os dois elementos. Eles apenas trocam de lugar, mas seu desempenho é o mesmo".

De acordo com os princípios apresentados, a relação entre os gêmeos revela uma oposição constante (AXB); uma Pausa na oposição, (A=B), e troca de posição (BxA). A esses princípios, Romano (1990 p.120) denomina "modelos parciais integradores do modelo de oposição AXB".

A personagem Flora não apresenta aquela oposição simples e de pouca complexidade dos gêmeos. Surge na trama no capítulo 3 como"inexplicável". Nas palavras do narrador: "Flora, aos quinze anos, dava-lhe para se meter consigo. Aires, que a conheceu por esse tempo, em casa de Natividade, acreditava que a moça viria a ser uma inexplicável".

Para situar essa "inexplicável" é mister olhar seu modo de relacionar-se com outros personagens da trama. Primeiro com a mãe dos gêmeos, Natividade, que apesar de ter, ela mesma uma dualidade, não é, no dizer de Romano (1990 p.121) "uma dualidade conflitiva". No capitulo 19 ela é introduzida pelo narrador:

"... Ainda não lhes disse que a alma de Natividade era azul [...] Ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul. [...] venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe derribassem a nau, nem as ondas a engolissem. [...] Não negaria que alguma lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete [...] mas foram bocejos de Adamastor. Consertou a vela depressa [..] e seguiu o caminho da Índia".

Nocapítulo 81, "Ai, duas almas..., o narrador pede: "Anda, Flora, ajuda-se, citando alguma cousa, verso ou prosa, que exprima a tua situação. Cita Goethe, amiga minha cita um verso do Fausto, adequado: Ai, duas almas no meu seio moram! A mãe dos

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gêmeos, a bela Natividade podia havê-los citado também, antes deles nascerem, quando ela os sentia lutando dentro em si mesma: Ai, duas almas no meu seio moram! Nisto as duas se parecem - uma os concebeu, outra os recolheu".

E é o próprio narrador que estabelece o limite entre as duas, dizendo em seguida: "Nisto as duas se parecem - uma os concebeu, outra os recolheu. Agora, como é que se dá ou se dará a escolha de Flora, nem o próprio Mefistófeles no-lo explicaria de modo claro e certo" A oposição Pedro/Paulo encontrará em Natividade a integração, em Flora essa oposição permanecerá mesmo depois da morte. Os versos de Goethe não têm, portanto, o mesmo sentido quando aplicado a Flora ou à Natividade. Para ilustrar essa idéia, Romano (1990 p.121) cita um trecho do mesmo capítulo 81, falando de Flora: "Queria Natividade sempre ao pé de si, pela razão que já deu, e por outras que não disse, nem porventura soube, mas podemos suspeitá-la e imprimir. Estava ali o ventre abençoado que gerara os dois gêmeos. De instinto achava nela algo de particular".

Quanto aos gêmeos, Flora, manteve com eles inicialmente um relacionamento ingênuo. Não havia motivos para escolha entre um ou outro. No capítulo 35, diz o narrador:

 "Lá que viessem a amar a pequena com igual força é o que se pode admitir desde já, sem ser preciso que ela os atraísse de vontade. Ao contrário, Flora ria com ambos, sem rejeitar nem aceitar especialmente nenhum; pode ser atéque nem percebesse nada.[...] Demais, Flora simulava às vezes confundi-los, para rir com ambos. E dizia a Pedro:

- Doutor Paulo!

E dizia a Paulo:

-Doutor Pedro!

Em vão eles mudavam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes também, e os três acabavam rindo".

Como nessa fase ingênua, Flora não cogitava escolha, tinha com ambos a mesma postura. Lê-se no capítulo 58: "Ora bem, acabas de ver como Flora recebeu o irmão de Pedro; tal qual recebia o irmão de Paulo. Ambos eram apóstolos."

No desenvolvimento da narrativa a personagem Flora vai se tornando cada vez mais "inexplicável" Romano (1990 p.122), para defender esse ponto de vista, cita o capítulo 58, "Noite de 14", onde Aires (o narrador 1), escreve em seu Memorial : "Que o diabo a entenda, se puder; eu, que sou menos que ele, não acerto de a entender nunca. Ontem parecia querer a um, hoje quis ao outro; pouco antes das despedidas, queria a ambos. Encontrei outrora desses sentimentos alternos e simultâneos, eu mesmo fui uma e outra cousa, e sempre me entende a mim. Mas aquela menina e moça... A condição dos gêmeos explicará esta inclinação dupla; pode ser também que alguma qualidade falte a um que sobre a outro, evice-versa, e ela, pelo gosto de ambas, não acaba de escolher de vez. È fantástico, sei; menos fantástico é se eles, destinados à

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inimizade,acharem nesta mesma criatura um campo estreito de ódio, mas isso explicaria a eles, não a ela..."

O modelo de duplicidade (AXB) é bastante explícito (Pedro/Paulo); a alternância (A ou B), tambémé clara: "Ontemparecia quer a um, hoje quis ao outro". Entretanto a integração não se revela tão facilmente, a questão de Flora, não é uni-los, seu problema é separá-los. No capítulo 100, "Duas cabeças", o narrador conta que Aires foi visitar Flora e que ela mostrou-lhes alguns desenhos, um deles ela relutou em apresentar-lhe, mas "Aires insistiu; ela não pode recusar mais tempo, abriu a pasta, e tirou um pedaço de papel grosso em que estavam desenhadas duas cabeças juntas e iguais" E mais adiante completa o narrador: "As duas cabeças estavam ligadas por um vínculo escondido". Assim, o modelo de integração, no dizer de Romano (1990 p122: irrealizado em Flora e entendida a simultaneidade como sua solução para a impossível integração, pode-se localizar mesmo no nível da frase a permanência dos modelos: "Ontem parecia querer a um, hoje quis ao outro; pouco antes da despedida queria a ambos". A permanência dos modelos e a ambigüidade de Flora podem ser lidas também no capítulo 84, quando o narrador conta a reflexão de Natividade: "Parecera-lhe antes que Flora não aceitava um nem outro, logo depois que os aceitava a ambos, e mais tarde um e outro alternadamente."

A incerteza de Flora chega a ser comparada à fábula do asno de Buridan, assim explicada na Novíssima Delta Larousse (1982 p.375): "Nesta se punha em cena um asno incapaz de escolher entre dois sacos de aveia, até que morreu de fome por não poder optar entre os dois".

O elo entre os níveis da narração, personagens e linguagem é o Conselheiro Aires, já apresentado como o narrador 1, autor do "Memorial" imaginado por Machado. Para Romano (1990p. 123) "... Aires é o único que alcançou as leis do sistema que pressupunha um jogo de oposição, alternância e complementaridade".

Aires sempre está um pouco acima dos demais personagens..Lemos no capítulo 44: No domingo foram os dois ao Catete, menos pelo almoço que pelo anfitrião. Aires era amado pelos dous;...". E um pouco mais adiante: "Aires queria cumprir deveras o ofícioque aceitara de Natividade. Quem sabe a idéia de pai espiritual dos gêmeos..."Pai espiritual, sem dúvida um nível acima de Natividade, a mãe, telúrica, biológica, natural.

No capítulo 12 o narrador fala de Aires: "Esse Aires que ai aparececonserva ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício". E no parágrafo seguinte: Não me demoro a descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo do ofício, o sorriso aprovador, a fala branda e cautelosa, o ar da ocasião, a expressão adequada, tudo tão bem distribuído queera um gosto ouvi-lo e vê-lo[...] tempo houve que em que também se apaixonou por Natividade. Não foi propriamente paixão; não era homem disso".

Como se vê, o Conselheiro Aires é apresentado como um tipo superior, como alguém capaz de controlar o emocional. No capítulo 42, "Uma hipótese", o narrador chega a dizer: "... se os gêmeos tivessem nascido dele talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao equilíbrio do seu espírito".

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Aires conhece a arte de "descobrir" e "encobrir", como lemos no capítulo 98: "Aires fora diplomata excelente, apesar da aventura em Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a vocação de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia está nesses dous verbos parentes". O autor explicitamente revela que Aires faz com maestria a síntese dos contrários. "Os verbos parentes, com os quais ele lida diplomaticamente, remetem-nos a Pedro e Paulo, os gêmeos que o amam e que ele compreende cada um como ele é. O que Flora nunca conseguiu fazer. Aires assimila as divergências dos gêmeos, como nem mesmo Natividade, a mãe consegue fazê-lo. Vemos nocapítulo 83: "Natividade, que em tudo via a inimizade dos gêmeos, suspeitou que o intuito de Pedro fosse justamente comprometer Paulo". O grande talento para a convergências e a síntese é revelado na resposta do Conselheiro, quandoFlora lhe diz: "Já o tenho achado em contradição" , "Pode ser, responde oConselheiro, avida e o mundo não são outra coisa" (Capítulo 87).

Para demonstrar que, em Aires se manifestam a duplicidade, a alternância e a integração, Romano (1990, p.124) cita todo um parágrafo do Capítulo 12:

"José da Costa Marcondes Aires tinha que nas controvérsias, uma opinião dúbia ou média pode trazer a oportunidade de uma pílula, e compunha as suas de tal jeito, que o enfermo, se não sarava, não morria, e é o que fazem as pílulas. Não lhes queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com açúcar.Aires opinou com pausa, delicadeza, circunlóquios,limpando o monóculo ao lenço de seda, pingando as palavras graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem busca uma lembrança, e achava a lembrança, e arredondava com ela o parecer. Um dos ouvintes,aceitando-o logo, outro divergiu um pouco e acabou de acordo,assim o terceiro e a sala toda".

4.3 Nível da lingua(gem)

Neste nível busca-se reencontrar os modelos, que haviam sido desvendados nos níveis da narração e dos personagens. Busca-se a sintaxe estrutural e encontrar no estudo das frasesos modelos de duplicidade, ambigüidade e integração. No capítulo 47, temos: "Se há muito riso quando um partido sobe também há muita lágrima do outro que desce, e do riso e da lágrima se faz o primeiro dia da situação, como no Gênese [...] Esse casal só não era igual na vontade; as idéias eram muitas vezes tais que, se aparecessem cá fora, ninguém diria quais eram as deles, nem quais as dela, pareciam vir de um único cérebro{...] E lembrava-se do visconde de Albuquerque ou de outro senador que dizia emdiscurso não haver nada mais parecido comum conservador que um liberal.

Temos no capítulo 35: "Nãotardaria muito que saíssem formados e prontos, um para defender o direito e otorto da gente, outro para ajudá-la a viver e a morrer. Todos os contrastes estão no homem"

No capítulo 70: "Quando a lembranças de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza empanava a alegria, mas a alegria vencia depressa a outra, e assim acabou o baile. Então as duas, tristeza e alegria, agasalharam-se no coração de Flora, como as gêmeas que eram". E no 79: "Era um espetáculo misterioso, vago, obscuro, em que as figuras visíveis se faziam impalpáveis, o dobrado ficava único, o único desdobrado, uma fusão, uma confusão, uma difusão".

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A permanência dos modelos pode ser encontrada, não só a nível formal na frase, mas também ao nível de conceitos, como no capítulo 94: "... Não esqueça o próprio crânio do homem, que os cobre igualmente, não só diversos, senão opostos".

Os modelos estruturais já encontrados ao nível da narração e dos personagens são também reduplicados nos processos estilísticos do plano frasal.

Os aforismos e provérbios espalhados por toda a obra revelam, de modo marcante, o jogo das oposições. O emprego de aforismos faz com que o bem apareça no momento em que o mal é mostrado, ou que a virtude brote na presença do pecado. O aforismo e a parábola tornam mais clara a mensagem a partir da oposição dos elementos.

No dizer de Romano (1990 p.126): "O aforismo, sobretudo, reproduz um universo de causa e efeito ao nível da ideologia que o gerou." Esse recurso lingüístico é empregado muitas vezes na história de Esaú e Jacó. Alguns de origem popular como: "O que o berço dá, a cova tira"; "Na mulher o sexo corrige a banalidade; no homem agrava"; "Pitangueira não dá manga"; ou criados pelo próprio narrador: "Teste David com Sibylla"; sempre ressalvando o modelo da dualidade.

O mesmo jogo das dualidades é revelado através das redundâncias, como: Foi um Conselho do Conselheiro"; Petrópolis deixou Petrópolis"; "Verdades eternas pedem horas eternas".

O paradoxo também revela esse jogo de oposições: "A discórdia dos dois começou com um acordo"; A morte é um fenômeno igual a vida; talvez os mortos vivam"; nada mais parecido com um conservador que um liberal e vise-versa".

Outro recurso retórico empregado por Machado é o estranhamento. Para Romano (1990 p.127): "Se através dos aforismos ele se exercita na formalização das dualidades, através do estranhamento se apropriará da "Sabedoria" e da "Verdade" da comunidade modificando-a a seu modo. Inverte e subverte as regras do jogo, introduz uma ruptura no sistema lógico do esperado".

Assim, em Esaú e Jacó, lemos: "A ocasião faz o furto: o ladrão já nasce feito" capítulo 75, em vez de "A ocasião faz o ladrão"; "nenhum quer, nenhum briga", capítulo 91, em vez de: "quando um não quer, dois não brigam".

O estranhamento reforça a figura mais empregada por Machado: a ironia. Dizer o contrário do que se pensa, um falar dúbio, que se desvia da normalidade. No capítulo IV, a ironia está presente já no próprio título, "A missa do coupe". Nas palavras do narrador, descrevendo a igreja: "metida ao canto de um pequeno largo, adequada à missa recontida e anônima" e mais adiante: ' Na sacristia era tudo espanto. A alma que a tais sítios atraíra um carro de luxo, cavalos de raça, e duas pessoas finas não seria como as outras almas ali sufragadas".E no último parágrafo a ironia atinge o clímax: " Que o motivo da pratinha de Natividade deitada à caixa das almas fosse pagar a adoração do defunto, não digo que sim,nem que não; faltam-me pormenores, Maspode ser que sim, porque esta senhora era não menos grata que honesta. Quanto às larguezas do marido, não esqueças que o parente era defunto, e o defunto um parente menos".

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Através dos aforismos, paradoxos, estranhamentos e ironia chega-se enfim ao estudo não apenas da língua, mas às considerações sobre como tudo isto reverte para a constituição da linguagem em Machado. Essa linguagem que se desenvolve sobre os modelos da dualidade, alternância e integração só se realiza graças ao aspecto não apenas transformacional dos elementos, mas à sua dança lúdica que faz com o centro esteja sempre em movimento e os pares se completem dialeticamente transparecendo na enunciação o que disfarça no enunciado.(ROMANO; ANÁLISE ESTRUTURAL DE ROMANCES BRASILEIROS, 1990).

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Machado a narrativa se assemelha a um jogo. Essa revelação ele a faz explicitamente em todo um capítulo de Esaú e Jacó, onde a história dos gêmeos é suspensa e ele confessa qual seria a epígrafe de sua obra: ( capítulo XIII,p.39).

"Ora, ai está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro.

Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos.

Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa fazer de torre, nem a torre de peão. Há ainda a diferença da cor, branca e preta, mas esta não tira o poder de marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai o mundo. Talvez conviesse pôr aqui, de quando em quando, como nas publicações do jogo, um diagrama das posições belas ou difíceis. Não havendo tabuleiro, é um grande auxílio este processo para acompanhar os lances, mas também pode ser que tenhas visão bastante para reproduzir na memória as situações diversas. Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo irá como se realmente visses jogar a partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo".

Presente na disputa os pares de opostos: rei e dama; branca e preta; Deus e o Diabo; pessoa e pessoa. E não se sabe quem será o vencedor, "umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai o mundo". E assim vai o mundo. O lúdico está presente em toda a trama, explicitamente, como foi dito, nesse capítulo 13, onde o próprio narrador comenta a narrativa.

Machado, como se viu, afasta-se do ideológico e usa o mítico e o histórico apenas aspectualmente, a estrutura mesma da narrativa repousa sobre seus referentes internos. Na busca da "outra coisa", o que encontramos foi um mundo a parte, com suas próprias leis e com seu próprio tempo. A realidade cotidiana é apenas pano de fundo para o jogo da escrita. Jogo que o leitor é convidado a participar, "há proveito em irem as pessoas de minha história colaborando nela, ajudando os autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e seus trabalhos". Jogo em que a narrativa em si mesma não é o mais importante, como diz Aires no capítulo 51: "Há estados de alma em que a matéria da narração é o nada, o

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gosto de a fazer e a ouvir é que é o tudo". Enfim, os modelos de duplicidade, alternância e integração, foram encontrados nos níveis da narração, dos personagens e da linguagem, em Esaú e Jacó. Entretanto, todos sabem que a verdade não tem centro e, portanto, essa visão estruturalista não esgota a questão de sabermos se "a correspondência exata é entre as vogais e os sentidos, ou entre os sentidos e as vogais" (cap.81). Em outras palavras, esse olhar é apenas um dos múltiplos olhares que se podem lançar sobre a obra de Machado de Assis.

Referências biográficas

Livros:

ASSIS,Machado. Esaú e Jacó. São Paulo. Nova Cultura.2003

BOLLI, Willi. Fórmula e Fábula. 1ªed.São Paulo.Editora Perspectiva.1973

BORDINI, Maria da Glória. Fenomenologia e Teoria literária. 1ªed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1990

PIAGET,Jean. O Estruturalismo.Tradução de Moacir Renato de Amorim. 1ªed. São Paulo.Difusão Européia do Livro.1970.

ROMANO, Afonso de Santa'Ana. Análise estrutural de romances brasileiros. 7ªed. São Paulo: Ática.1990.

TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. Tradução de Leila Perrone. 4ªed. São Paulo: Perspectiva. 2003.

TODOROV, Tzvetan. Estruturalismo e Poética. Tradução de José Paulo Paes. 1ªed. São Paulo: Cultrix. 1970.

Revistas:

TEIXEIRA, Ivan. Estruturalismo. Cult. São Paulo. p.14-15-16-17 out/98

Internet

DOSSE, François. História do Estruturalismo. http:/ptwikipedia.org.Etruturalismo. 2005

Leia mais em: http://www.webartigos.com/artigos/analise-estrutural-esau-e-jaco/16223/#ixzz29luK7dPM