Escritos à margem

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Escritos margem: a presena de escritores de periferia na cena literria contempornea

Paulo Roberto Tonani do Patrocnio

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Sumrio

1. Introduo

2. Literatura Marginal, uma literatura feita por minorias 3. O cnone marginal 3.1. Orestes Barbosa, um olhar sobre a cidade noturna 3.2. Antnio Fraga, o Mangue como abrigo 3.3. Joo Antnio, o jogo de transitar pela cidade 4. Hip-Hop e Literatura Marginal, por uma pedagogia prpria 4.1. A presena do RAP na Literatura Marginal 5. Uma leitura de trs casos e uma possibilidade 5.1. Ferrz 5.2. Allan Santos da Rosa 5.3. Srgio Vaz 5.4. Marcelino Freire (uma possibilidade) 6. Entre os Marginais e os Intelectuais, uma leitura no conclusiva

7. Referncias Bibliogrficas

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1. Introduo

Inicio com uma cena: Um homem tambm poderia ser uma mulher; importa dizer que esse personagem marginalizado, e talvez negro, como quase todos os homens e mulheres pobres marginalizados o so transita de forma acanhada em uma superfcie branca. Em princpio sente um desconforto ao caminhar, o branco fere seus olhos e, principalmente, no se sente seguro. Sabe que, para percorrer tal superfcie com maior familiaridade, necessita de cdigos distintos, signos formulados por sujeitos que se diferem dele e, principalmente, por instituies s quais no pertence. No entanto, ao recordar que j havia estado ali inmeras vezes acompanhando por um guia, um condutor que feria o branco do ambiente com elementos negros talvez to negros quanto a sua possvel pele negra , passa a sentir mais confiana. Alm disso, se agora est transitando sozinho pela superfcie branca, sem a companhia do guia, isso resultante de sua prpria vontade, de seu desejo declarado de tambm poder selar a brancura de todo o espao com os caracteres. H uma diferena nessa nova visita, sozinho, no necessita seguir o condutor sussurrando o que ser estampado na superfcie. Mas, o personagem devemos lembrar que ele talvez seja negro, mas certamente marginalizado sabe que havia uma relao de troca com seu guia. Uma dependncia mtua. Por ser conhecedor dos signos necessrios para a transformao da superfcie branca em um tecido discursivo, o condutor servia como porta-voz, fazendo representar em complexos caracteres as angstias e desejos do nosso personagem. Tambm dizer que esse nosso personagem est sozinho , de certa

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forma, um equvoco. Lanando o olhar pela imensido branca, ele percebe vultos difusos, que transitam tambm de forma tmida. Vistos de longe, no possvel identificar caractersticas de singularidade nos vultos. Nosso personagem, mesmo forando o olhar em busca de um foco mais revelador, s percebe que os vultos tambm vagam sozinhos e so, em sua maioria, negros. Os vultos aos poucos abandonam sua forma difusa e ganham contornos mais delimitados, possuindo fisionomias prprias. Isto ocorre devido progressiva aproximao que nosso personagem realiza em direo aos vultos e vice-versa. Tal aproximao desencadeia na constituio de um grupo coeso, e um observador distrado poderia dizer, sem titubear, que o processo ocorreu como um fenmeno natural. No entanto, na construo de um olhar mais apurado sobre o evento, ser possvel constatar que negociaes, acertos e discrdias, so travadas. Agora, em grupo, os vultos, que no mais so vultos, mas, sim, sujeitos que buscam, cada qual a sua maneira e com os mecanismos disponveis, traar com signos negros os seus caminhos em uma terra de brancura plena. E, por mais que o resultado do ato de cravar tais elementos na brancura ato que podemos denominar de escrita aponte para a potncia criadora do sujeito que o executou, ainda permanecem em grupo. E, dessa forma, percebemos que no era o simples desejo de percorrer sozinhos a brancura de uma pgina em branco o que motivou o abandono do guia, mas, sobretudo, a necessidade de produzir seu prprio discurso. A cena descrita acima tem sido encenada em nossa literria h pouco mais de uma dcada. Desde o surpreendente sucesso de Cidade de Deus, de Paulo Lins, publicado em 1997, diferentes autores residentes em bairros perifricos, favelas e conjuntos habitacionais em sua maioria autores negros buscam expressar em forma de criao literria, seja em prosa ou poesia, o cotidiano de uma expressiva camada de nossa sociedade: as populaes marginalizadas. A presena desses autores em nossa srie literria no pode ser lida como um dado isolado, mas, sim, como a conformao de um grupo especfico que deseja se fixar no seio de uma estrutura hegemnica. Ao tomar a publicao do romance de Paulo Lins como possvel marco inaugural desse fenmeno, desejo ler o texto do autor de Cidade de Deus enquanto

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produto discursivo que une testemunho e fico, resultando em um novo olhar sobre a escalada da violncia nas favelas do Rio de Janeiro. Decerto, o plano temtico apresentado no inaugurado por Paulo Lins; h tempos, diversos discursos, sobretudo jornalsticos, empenham-se em indexar as razes do crescimento e proliferao de quadrilhas de varejistas de drogas nas favelas. O diferencial de Lins o seu ponto de observao, a possibilidade de narrar os fatos a partir de sua experincia de ex-morador da localidade, produzindo uma experincia artstica incomum como observou Roberto Schwarz, em resenha publicada no Caderno Mais do jornal Folha de So Paulo, em 7 de setembro de 1997. A singularidade de Cidade de Deus provm da constatao da origem do discurso, da percepo de que o local de enunciao o mesmo do objeto. Sobrepostas as duas esferas, criado um espao de conjuno entre sujeito e objeto. Ao apresentar-se como ex-morador da favela por ele romanceada, Paulo Lins passa a ser personagem, ator, agente que se situa naquele mesmo espao fsico, arquitetnico e simblico de excluso de que fala (Resende, 2002, p. 158), como destacou com grande propriedade Beatriz Resende, em Apontamentos de crtica cultural. O caminho aberto por Paulo Lins est sendo percorrido por inmeros autores de periferia. Reginaldo Ferreira da Silva mais conhecido por seu pseudnimo: Ferrz o exemplo mais bem-sucedido desse empenho em estruturar um discurso a partir do prprio referencial, formando uma compreenso das fraturas marginalizadas da sociedade fora dos espaos centrais de saber e poder. O xito de Ferrz deve ser medido no apenas na expressiva vendagem de seus livros, fator que revela o alcance de seu discurso, mas, principalmente, em sua contribuio na formao de um grupo de autores da periferia, a chamada Literatura Marginal. Residente no Capo Redondo, bairro da periferia de So Paulo, Ferrz autor de dois romances, Capo Pecado (2000) e Manual prtico do dio (2003), um livro infanto-juvenil Amanhecer esmeralda (2005), um livro de contos, Ningum inocente em So Paulo (2006), atuou como organizador dos trs volumes especiais da Revista Caros Amigos dedicados produo literria da periferia: Caros amigos/Literatura marginal a cultura da periferia, que resultou em um livro organizado pelo prprio autor, lanado pela Editora Agir, em 2005. Por fim, tambm importante destacar que Ferrz

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fundou, em 2008, uma editora independente, destinada unicamente publicao de autores perifricos cuja comercializao baseada em preos populares, a Editora Literatura Marginal/Selo Povo. Desse elenco de aes e publicaes do autor, uma das mais relevantes a atuao do autor na produo e divulgao dos suplementos literrios da Revista Caros Amigos. Alm do alcance da distribuio dos trs volumes, com uma tiragem de 30.000 exemplares, foi atravs destes suplementos que diferentes autores perifricos, a convite do prprio Ferrz, puderam publicar seus escritos e ganharem visibilidade. Ao reunir escritores de diferentes periferias do Brasil, as trs edies especiais podem ser lidas como um importante marco na formao e estruturao desse grupo de autores, fundando um espao prprio. A formao desse espao no repousa apenas na articulao entre vozes que outrora estavam dispersas, mas, igualmente, na estruturao de uma argumentao em favor da existncia de um conjunto de autores perifricos que cobra para si um lugar na cena literria contempornea. Tal argumentao apresentada nos manifestos que abrem cada publicao. No primeiro suplemento especial, Literatura Marginal A cultura da periferia, publicado em 2001, no Manifesto de abertura: Literatura Marginal, Ferrz apresenta a publicao como O significado do que colocamos em suas mos hoje nada mais do que a realizao de um sonho que infelizmente no foi vivido por centenas de escritores marginalizados deste pas (Ferrz, L.M.-I, p.3) E, na argumentao proposta pelo autor, o papel da publicao preservar uma memria e uma cultura que no encontra espao nos discursos hegemnicos que buscam apagar tais referncias populares/marginais:Jogando contra a massificao que domina e aliena cada vez mais os assim chamados por eles de excludos sociais e para nos certificar de que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua colocao na histria e no fique mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um pas que tem nojo de sua prpria cultura, a Caros Amigos/Literatura Marginal vem para representar a autntica cultura de um povo composto de minorias, mas em seu todo uma maioria. (Idem, Ibidem)

No se trata apenas de uma busca pela insero no espao literrio, mas, tambm de utilizar a literatura enquanto veculo de um discurso que almeja uma representatividade poltica para um grupo silenciado.

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Mas estamos na rea, e j somos vrios, e estamos lutando pelo espao para que no futuro os autores do gueto sejam tambm lembrados e eternizados. Neste primeiro ato, mostramos as vrias faces da caneta que se manifesta na favela, pra representar o grito do verdadeiro povo brasileiro. (Idem, Ibidem)

Representar, na concepo de Ferrz, designa a representatividade poltica dos autores em contato com os setores marginalizados. Ou seja, os escritores que compem esse grupo passam a ser visto como os nicos habilitados a produzirem uma literatura sobre a periferia. Tal noo, reforada de diferentes formas pelos autores da Literatura Marginal, passa a nortear a formao poltica do grupo. No entanto, no segundo suplemento especial, Literatura Marginal A cultura da periferia, publicado em 2002, aps apresentar uma breve definio do grupo A Literatura Marginal, sempre bom frisar, um literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconmicas. Literatura feita margem dos ncleos centrais do saber e da grande cultura nacional, ou seja, os de grande poder aquisitivo, Ferrz busca relacionar a Literatura Marginal a outros autores do passado, como Plnio Marcos e Joo Antnio, ato que podemos ler como a formao de um cnone, assim como a outras definies de Marginal:Tambm no vamos nos esquecer que em So Paulo, no gueto da Boca do Lixo, e no Rio de Janeiro, nas rebarbas da gerao Paisandu e do elitismo etlico de Ipanema, se fazia um certo cinema marginal, na periferia dos grupos de vanguarda do cinema novo. Desse tempo tambm o manifesto Seja Marginal, Seja Heri, de Hlio Oiticica(Ferrz, L.M.-II, p. 2).

Este aspecto mencionado por Ferrz merece uma anlise mais atenta no desejo de localizar as especificidades que o termo/conceito marginal pode adquirir para cada grupo cultural (autores de periferia e cineastas atuantes fora de um circuito estabelecido) e nas diferentes reas das cincias humanas (sociologia e crtica literria). Um primeiro aspecto a ser delimitado iniciar a busca por um possvel significado e os diferentes usos que este termo/conceito recebeu no apenas no campo dos estudos literrios, mas, igualmente, nos estudos de cultural. Podemos dizer que ser marginal , antes de tudo, se colocar, ou ser colocado, em uma posio antagnica a algo. O emprego do termo j traz em si uma forte carga metafrica que se baseia em categorias territoriais. Alm disto, o dado antagnico revela a formao de um jogo

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de oposies, na qual o marginal surge enquanto elemento contrrio ao centro. A potncia deste modo de leitura, que se baseia na existncia de elementos estanques, oferece uma visibilidade mpar para a compreenso e anlise do cenrio cultural e literrio no qual parecem duelar tais sujeitos discursivos. No entanto, a ocupao deste espao no decerto um ato simples. Em outros termos, ser marginal no ocupar de modos distintos um mesmo centro. Pois, importante recordarmos que no ser o centro pode ser um ato poltico performtico, propondo um posicionamento que deve ser lido como uma forma de resistncia; assim como pode ser a definio de um conjunto de textos no centrais, que a partir de critrios hierarquizantes so denominados de marginais. Neste ltimo caso, vale destacar como exemplo a coletnea de crnicas Marginlia, de Lima Barreto. A classificao dos escritos que compem a publicao enquanto marginais obedece a critrios formados pelo prprio autor, como podemos observar na crnica A questo dos poveiros: Organizei assim uma marginlia a esses artigos e notcias. Uma parte vai aqui (...) Ei de public-la um dia (Barreto, p.32, 1956). O termo marginlia, na acepo de Lima Barreto, designa um mtodo de elaborao que consiste em anotaes margem, assim como reflexes produzidas em forma de artigo para a veiculao em jornais. interessante notar a existncia de uma demarcao baseada na temporalidade para a classificao desta marginlia, o efmero passa a orientar a recolha dos textos. A efemeridade da crnica, uma vez que est ligada ao tempo presente do processo de escrita, abordando no calor do momento os acontecimentos e registrando-os em letra de frma, parece tambm determinar a marginalidade do texto. Nestes termos, a natureza do texto, sobretudo a sua estrutura, passa a ser o ndice necessrio para a definio de uma literatura marginal, como sinalizou Lima Barreto. Ao receberem a denominao de marginlia, os textos passam a ocupar outro espao no prprio conjunto da obra, formando, assim, uma estrutura hierarquizada. Nesse sentido, no estamos lidando com uma literatura marginal, mas, sim, marginalizada, para citar o termo empregado por Arnaldo Saraiva, no livro: Literatura Marginalizada. Publicado em 1975, o estudo de Saraiva problematiza o desprezo da teoria literria em relao a produtos discursivos populares e interroga os

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limites e possibilidades do campo disciplinar dos estudos de literatura frente a estes objetos. Importante destacar que Arnaldo Saraiva define enquanto marginal as literaturas populares, principalmente de cordel, devido o silncio dos crticos frente a este objeto, que a transforma em um objeto posto a margem e um sistema literrio que a desqualifica e apenas repete a mesma histria literria dos cnones oficiais: A literatura dita popular, antiga ou recente, tem sido a maior vtima dos muitos e vrios censores que tm existido ao longo da sua histria e que obviamente no desapareceram com o 25 de Abril (1975, p. 106). Na citao evidente o aspecto datado da anlise. Hoje, com a j consagrada recepo dos Estudos Culturais, a classificao de uma literatura enquanto marginal devido a sua origem popular, soa como algo quase anacrnico. No entanto, partir desse olhar contemporneo que os questionamentos do crtico portugus ganham novo relevo, devido a sua originalidade na abordagem de um campo que no perodo era pouco explorado. Alm disso, em sua anlise a designao literatura marginal no assinala um julgamento pejorativo, antes pretende favorecer a incorporao no espao da verdadeira literatura de inmeros textos que eram ou so colocados margem dela, no importa se por injria, por preconceito, por censura ou por ignorncia, desta forma marcando a provisoriedade e artificialidade do fenmeno da marginalizao literria.(Idem, p. 108) A provisoriedade e a artificialidade, na leitura de Arnaldo Saraiva, so duas caractersticas de um fenmeno de marginalizao que impulsionado pelo fato destes objetos serem preteridos pela crtica. Ao ser alada categoria de objeto, tais manifestaes literrias deixaro de ocupar a margem. O questionamento acerca dos limites e possibilidades do termo marginal para denominarmos parte da produo literria no novo. Em ensaio publicado no livro Crtica literria em nossos dias e a literatura marginal, lanado em 1981, Robert Ponge interroga: A partir do momento que se fala em marginal (pessoa, corrente literria, etc), levanta-se a questo: o que a marginalidade? Onde comea? Onde termina? Est margem de qu? De quem?(Ponge, 1981, p. 137). O leque de questes apresentado pelo crtico problematiza no apenas a aplicao do conceito, mas, principalmente, sua definio. Reconhecendo que a utilizao do termo marginal

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na maioria das vezes de fundo impressionista, sem rigor terico, na qual predomina a aplicabilidade indiscriminada do termo, Ponge prope uma definio sinttica que repousa na afirmao de que a Literatura Marginal aquela que aparece classe dominante como sendo outra, no lhe pertencendo. (Idem, p. 139.). E, a partir dessa breve definio, o autor busca sua aplicao em possveis vertentes da Literatura Marginal retirados de literatura francesa, sendo eles: (a) a literatura de mulheres em revolta, que congrega nomes como Hlne Cixous e Victoria Thrame, designando no apenas a existncia de um grupo de autoras que escreveram sobre mulheres, mas, principalmente, o aparecimento de uma proposta centrada no feminino; (b) A literatura proletarizante, que segundo o prprio Robert Ponge, uma proposta de escrita que fala dos proletrios e atravs deles, entre os escritores que merecem destaque podemos citar Joseph Benoit, Louise Michel e Louis Montagut; e, por fim, o autor tambm sinaliza para a existncia de uma proposta literria marginal que pode ser denominada como (c) A literatura de indivduos marginalizados, caracterizada enquanto uma literatura de minorias nacionais ou centrada em formas de representao de sujeitos desviantes da norma burguesa, como hippies, beatniks, drogados, misfits ou homossexuais. A delimitao proposta pelo autor, mesmo que fixada em exemplos recolhidos da literatura francesa, rentvel para observar o sentido poltico agonstico que orienta o olhar do crtico. Nesses termos, passa a ser denominada enquanto marginal no apenas a literatura que est margem, mas aquela que se coloca margem enquanto proposta de interveno literria que busca lanar uma sombra na modelao do sujeito burgus. importante notar que nos trs eixos classificatrios propostos pelo autor, todos se baseiam na estruturao de um discurso que se quer contrrio a um modelo forjado pela sociedade, seja no corte de gnero, de classe ou de padro de comportamento. Por outro lado, Srgius Gonzaga, em artigo publicado no mesmo livro, expande o conceito de Literatura Marginal ao propor uma caracterizao que no se baseia apenas em uma apreciao do carter poltico das obras. O autor prope uma leitura historicista acerca da utilizao do conceito e, principalmente, de sua acomodao para nomear parte significativa da literatura produzida na dcada de

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1970. Desse posto de vista, a marginalidade surge em decorrncia da prpria estrutura poltica do perodo.A euforia do milagre tornou suspeita qualquer forma de debate cultural e o letrado perdeu o respaldo das classes mdias que apoiavam seu discurso populista. Neste instante, a condio marginal oferece uma resposta. Aps a desiluso, o escritor comeava a se ver como um sujeito fora do processo social, ou ento descobria-se falando em nome dos sujeitos marginalizados pela expanso interna do capitalismo. (Gonzaga, 1981, p.147)

O intelectual perde o respaldo da classe mdia e busca amparo nos marginais, identificando neste ato de aproximao uma possvel sada para o impasse sobre a sua atuao. No entanto, no apenas um ato de solidariedade, mas de construo de uma identidade e de projeto, ligando sua condio de escritor condio dos sujeitos marginalizados pelo avano de um processo modernizador autoritrio. Contudo, mesmo que o autor aponte para a existncia de um marco poltico que orienta a constituio deste projeto de ligao entre intelectuais e marginais, igualmente colocado em destaque a existncia de uma postura marginal no exerccio da linguagem e na escolha dos objetos. Por esse vis, alm do sentido poltico, a definio de literatura marginal acaba por alcanar tambm a prpria dimenso esttica do texto literrio. Dito isto, o autor apresenta uma espcie de esquema que esquadrinha trs vertentes que lidam com o conceito de forma distinta: os marginais da editorao, os marginais da linguagem e os marginais por apresentarem a fala daqueles setores excludos dos benefcios do sistema. Interessa-me, sobretudo, esta ltima categoria. Pois, a partir da leitura produzida pelo autor, torna-se rentvel estabelecer as possveis aproximaes e os distanciamentos entre esta manifestao da dcada de 1970 e a produzida na contemporaneidade. Em outras palavras, possvel observar como operado uso do termo marginal para denominar a proposta de autores que se empenharam em representar os setores mais baixos da sociedade ainda que no sejam eles mesmos marginais e a consequente adaptao deste termo para designar a literatura produzida por autores ligados periferia esses, sim, marginais. No elenco dos autores marginais da dcada de 1970 que buscavam apresentar sua produo enquanto ferramenta de uma denncia da condio de vida dos setores excludos do milagre o nome de maior destaque Joo Antnio. Seja pelo volume de

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sua obra, pelo vulto de sua fortuna crtica ou pelo papel de porta-voz do grupo, Joo Antnio figura como autor exemplar de um tipo de literatura que, nos dizeres de Flora Sssekind, opta por negar-se enquanto fico e afirmar-se como verdade(Sssekind, 2004, p. 99). A busca pela verdade surge como uma forma de resposta aos mecanismos repressivos vigentes no perodo. A prosa fica ancorada ao jornalismo e o utiliza como uma espcie de modelo, atribuindo literatura a funo de relatar e retratar sujeitos/personagens em condies inenarrveis grande imprensa. Na leitura de Srgius Gonzaga, a escolha dos protagonistas, situaes e cenrios que permite a denominao deste conjunto de textos enquanto marginais.Embora alguns dos autores dessa tendncia autodefinam-se como maditos, no pairam acima ou abaixo do organismo social, como queriam os malditos do romantismo europeu. Sua rebeldia d-se no momento em que tentam enquadrar, no corpus artstico, as fraes eliminadas do processo de produo capitalista.(Gonzada, op. cit., p. 151).

O conto-notcia de Joo Antnio ou o romance-reportagem de Jos Louzeiro, para citar outro escritor de destaque no perodo, podem ser acionados como os casos mais representativos desta busca pelo realismo. Nesses, o leitor passa a travar contato direto com temas emblemticos de uma realidade social marcada pela desigualdade. Crianas desvalidas, crimes chocantes, bandidos, malandros e prostitutas so os principais personagens de um cenrio que descortina um retrato que se quer prximo da realidade. O empenho destes autores em retratar certos aspectos da sociedade brasileira, oferecendo maior destaque a um conjunto invisvel de sujeitos da periferia urbana, resulta tambm na construo de um posicionamento poltico que lana mo da escrita como veculo de denncias. No entanto, para consolidar esta experincia literria foi necessrio tambm construir uma imagem prpria para o escritor, afirmar sua dupla proximidade com o tema, que parecia oscilar entre marginalidade semelhante dos personagens que representava e o herosmo de um Robin Hood de classe mdia que se imaginava sempre ao lado dos fracos e oprimidos(Sssekind, op. cit., p. 99). Leitura semelhante foi produzida por Ana Cristina Cesar, no ensaio Malditos marginais hereges, reunido no livro Escritos no Rio, acerca da postura dos escritores empenhados em retratar o povo marginalizado: A inteno construir a identidade

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de escritor com o povo a partir da prpria vida do escritor ( ou de dados bem selecionados dessa vida). De um escritor que, supostamente, no consagrado, que ganha concursos mas esnobado ou explorado pelas editoras.(Cesar, 1993, p.111). De forma sinttica, Ana Cristina Cesar alcana uma leitura possvel do ato performtico realizado pelos escritores que se empenham em operar enquanto representantes do povo, seus porta-vozes. O exame crtico produzido por Ana Cristina Cesar tem como objeto uma coletnea de contos publicada em formato de revista e comercializada em bancas de jornal. Coordenada por Joo Antnio, a coletnea congrega os ndices que podem ser tomados como caractersticos da produo literria da dcada de 1970 que narrava os marginais. Com uma apresentao grfica inspirada em revistas peridicas de notcias, a publicao traz no topo a expresso Extra, seguida da sentena: Realidade Brasileira. No centro, em letras garrafais, temos a adjetivao dos autores: Malditos escritores!. Para completar o jogo de inspirao com as revistas de notcias e alardear ainda mais a busca pelo realismo factual, na capa os escritores so retratados em fotografias 3x4 com expresses srias, remetendo claramente s imagens de presos fichados pela polcia. Na apreciao de Ana Cristina Cesar, o empenho em produzir tal efeito esttico revela o desejo destes autores de enfatizar sua proximidade com o objeto narrado. O escritor maldito apresentado enquanto um marginal, semelhante aos seus personagens, como observa a crtica:Num golpe de mestre, ficou construda a identidade de classe entre o nosso povo e o escritor tpico do misere cultural. Quem melhor para fazer literatura sobre este povo? Para narr-lo, represent-lo, express-lo, dar-lhe voz? Se defeitos h nessa literatura, a culpa ser do misere: a rapidez do trabalho, a angstia do momento, a exigidade geral, os dias que correm, a pobreza do nosso jornalismo, a censura, a ineficincia dos concursos, e at a falta de intimidade maior entre as pessoas e os lugares, o pouco perambular pelas ruas. So fraquezas contingentes. Haver talento e honestidade e busca sincera do povo. (Idem, p. 112)

A leitura desta publicao revela aspectos importantes acerca do projeto literrio proposto por estes escritores. visvel o uso de um tom messinico, no qual o exerccio da escrita ficcional abre espao para uma forma de interveno que se baseia na revelao de uma realidade social oculta. No entanto, como destacou Ana Cristina Cesar, tal realidade observada e desvelada por um olhar solidrio que busca

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na misria e na marginalidade fonte de inspirao, mas no a contesta. Em outras palavras, o escritor maldito que se quer marginal e semelhante aos personagens que povoam seus escritos alimenta-se da misria do outro, mas no lana um olhar crtico frente matria narrada. Nas palavras de Ana Cristina Cesar:Inteno do narrador: levar o leitor a compadecer-se das vtimas, revoltarse contra o inimigo e os carrascos. Comover o leitor, sacudi-lo, identificlo situao. Culpar e chocar, se necessrio. Arrancar o leitor de suas frescuras e introduzi-lo a este mundo mais real.(Idem, p. 115)

Mesmo que colada na leitura da j citada revista, os apontamentos da autora podem ser utilizados como ndices exploratrios desta vertente literria marginal. Contudo, a adoo do termo marginal para nomear parte da produo literria da dcada de 1970 resultante da observao da existncia de um eixo temtico predominante nas obras. Os autores proclamam a marginalidade enquanto identidade artstica, acionando uma postura crtica acerca do fazer literrio. No caso dos autores contemporneos, a utilizao do termo marginal assume nova nuances. importante notar que para os autores da periferia, a utilizao desta categoria condiciona o seu uso enquanto um importante lcus identitrio que possibilita a afirmao de uma postura poltica. No entanto, perceptvel que para estes sujeitos perifricos o termo marginal designa um fenmeno social urbano. Como observa Joo Camilo Penna, no artigo Estado de exceo:esta populao no de fato excluda ou pura e simplesmente marginalizada. Trata-se, em sua grande maioria, de cidados respeitadores da lei, que trabalham, que veem as mesmas novelas da TV, e que tm opinies e ambies semelhantes, seno idnticas, a toda a populao brasileira.(Penna, 2007, p. 191)

Compreender a marginalidade apenas na perspectiva socioeconmica se torna insuficiente. Posto que estes sujeitos, em diferentes graus, so consumidores e atuantes na esfera pblica. A marginalidade no apenas uma marca passiva que se fixa no sujeito, um desgnio social que nunca ser rompido ou obtliterado, mas, sim, uma posio que estabelece o sujeito fora de um centro, com o qual este mantm relaes orgnicas e dinmicas. Mesmo que, na perspectiva dos autores pertencentes ao movimento, ser marginal seja estar situado margem, residir na periferia e pertencer a um setor socioeconmico especfico que dificulta seu acesso aos direitos

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sociais mnimos, esta posio de distanciamento de um centro no impede o acesso ao centro. Dessa forma, antes de uma compreenso socioeconmica para o fenmeno da marginalidade, a definio utilizada pelos autores se baseia em critrios espaciais, localizando no prprio territrio as marcas de uma vivncia perifrica. possvel identificar alguns pontos de convergncia entre a definio de marginal proposta por esses autores perifricos e a compreenso que esse termo possui para o grupo de artistas que igualmente o utilizaram na dcada de 1960/70 como signo identitrio. H uma clara intencionalidade esttica no uso do termo marginal em artistas como Hlio Oiticica, conforme observa Frederico Oliveira Coelho, em seu estudo Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado. Cultura marginal no Brasil dos anos 60 e 70. De acordo com Coelho, na dcada de 1960 e 1970 o movimento artstico marginal que utiliza como veculo a literatura, o cinema, a arte e imprensa, relacionava o termo a sua forma de atuao, propondo uma relao marginalizada frente ao mercado consumidor e s prticas culturais dominantes. Ou seja, a marginalidade era utilizada no cenrio cultural como categoria que representava setores sociais desviantes ou no pertencentes aos grupos beneficiados pelo regime militar ps-64. O marginal, que poderia designar tanto os moradores de favelas, desempregados, retirantes nordestinos e bandidos, simbolizava para estes artistas o no pertencimento s estruturas sociais hegemnicas e autoritrias, representando a no integrao ao modelo de modernizao conservadora perpetrado pelo Estado de forma autoritria e excludente. A leitura produzida por Heloisa Buarque de Hollanda torna mais clara a intencionalidade do grupo de artistas da dcada de 1960 e 1970 ao adotar tal terminologia: A marginalidade tomada no como sada alternativa, mas no sentido de ameaa ao sistema; ela valorizada exatamente como opo de violncia, em suas possibilidades de agresso.(Hollanda, 1980, p. 68) Pensando-se no sentido atribudo ao termo marginal na contemporaneidade, possvel perceber uma possvel correlao com as atribuies produzidas na dcada de 1960-70. A maior distino entre os dois grupos se d na prpria origem social dos pertencentes. Hoje o sujeito pertencente margem que utiliza esse termo como referncia e no, como no passado, o artista oriundo de outro estrato social que busca

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nos setores marginalizados uma forma de atuao artstica e poltica que possibilite a criao de uma performance de contestao. No entanto, ainda que a constituio dos sujeitos discursivos seja distinta, o signo da marginalidade ainda permite a formao de um discurso de resistncia que se fixa no confronto a uma determinada norma estabelecida, seja ela esttica ou tica. O movimento contemporneo de autores oriundos de bairros populares, aqui denominado de Literatura Marginal, muitas vezes tambm denominado de Literatura Perifrica. Periferia termo amplamente utilizado pelos msicos do Hip Hop, como no belo RAP do grupo Racionais MCs: Periferia periferia em qualquer lugar apresenta, assim como margem, uma clara compreenso espacial para a definio do grupo. So perifricos e marginais aqueles no pertencentes ao centro, que esto fora do espao hegemnico. A adoo desses dois termos revela a feio poltica que esse movimento possui e a sua relao com esses territrios negligenciados e quase esquecidos: no centrais. Contudo, proponho a utilizao do conceito Marginal e Marginalidade para operar minhas leituras e anlises. Dessa forma, recuso a ideia de excluso social, identificando neste conceito uma perversa noo etnocntrica, que concebe os territrios perifricos como no pertencentes cidade e, principalmente, como detentores de uma populao no atuante na esfera pblica da cidade. A Literatura Marginal, e todo o movimento Hip-Hop que aglutina inmeros jovens da periferia, revelam justamente uma ideia contrria de excluso, afirmando o poder de articulao e contestao desses sujeitos. A opo por nomear tais sujeitos e territrios como marginais deriva, em primeiro lugar, da constatao de que este o conceito utilizado pelos prprios autores do movimento que pretendo analisar. Alm disso, a noo de marginalidade apresenta uma importante ambiguidade, amplamente trabalhada nos textos que sero analisados, significando tanto o sujeito que atua fora das grandes cadeias hegemnicas e centrais como, principalmente, os sujeitos em conflito com a lei. O marginal, nesse sentido, tanto o trabalhador assalariado que reside na periferia, quanto o jovem varejista do narcotrfico. Ao assumirem este termo como signo identitrio, os autores marginais instauram uma espcie de ciso na produo literria nacional, demarcando um

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terreno especfico de produo e de atuao. Cria-se, nesse sentido, um discurso minoritrio centrado na estruturao de aes que visam o estabelecimento de uma nova representao dos setores perifricos. A separao, que em princpio obedece a critrios de seleo dos autores pertencentes ao movimento literrio, descrita por Ferrz como um ato de apropriao, como podemos observar no trecho abaixo, recolhido do texto-manifesto Terrorismo Literrio, assinado por Ferrz e publicado na coletnea Literatura Marginal, talentos da escrita perifrica, organizada pelo mesmo autor e publicada pela Editora Agir:Cansei de ouvir: - Mas o que cs to fazendo separar a literatura, a do centro e a do gueto. E nunca cansarei de responder: - O barato j t separado h muito tempo, s que do lado de c ningum deu um grito, ningum chegou com a nossa parte, foi feito todo um mundo de teses e de estudos do lado de l, e do c mal terminamos o ensino dito bsico. Sabe o que mais louco? Neste pas voc tem que sofrer boicote de tudo que lado, mas nunca pode fazer o seu, o seu errado, por mais que voc tenha sofrido voc tem que fazer por todos, principalmente pela classe que quase conseguir te matar, fazendo voc nascer na favela e te dado a misria como herana. (Ferrz, 2005, p. 13)

A argumentao apresentada por Ferrz como resposta recorrente crtica da separao entre literatura do centro e do gueto, busca amparo em uma temporalidade no demarcada, mas suficientemente representativa de sua existncia: j t separado h muito tempo. A estratgia adotada pelo autor afirmar esta separao. No so criadas formas de incluso, mas, ao contrrio, so estabelecidos espaos de aglutinao de vozes que possam delimitar uma produo literria deste grupo silenciado. Cria-se, nesse sentido, um discurso minoritrio que se ergue no interstcio social originado pela desigualdade. Para compreender a especificidade deste desejo de diferenciao da margem, se faz necessrio formar um referencial terico que possibilite lanar novas luzes sobre esta disputa discursiva. Os conceitos pedaggico e performtico, formulados por Homi K. Bhabha a partir de sua anlise sobre a formao das naes modernas, so teis para vislumbrar a particularidade destes discursos marginais frente pretensa fala hegemnica da nao. A leitura produzida por Bhabha est amparada nas formulaes de Benedict Anderson e Ernest Renan que destacam a

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nao enquanto um aparato discursivo, cujo objetivo construir uma comunidade imaginada, para citar a expresso de Anderson. No entanto, no se trata de lanar esta proposta de leitura da nao enquanto uma perspectiva terica que substitui as clssicas anlises baseadas em categorias polticas especficas e anlises centradas na historiografia, mas, sim, ler tais aparatos discursivos da nao comoestratgias complexas de identificao cultural e de interpelao discursiva que funcionam em nome do povo ou da nao e tomam sujeitos imanentes e objetos de uma srie de narrativas sociais e literrias.(Bhabha, 1998, p. 199)

Seguindo os passos de Bhabha, possvel observar que estes autores, ao formularem um discurso estruturado a partir do signo da diferena, instauram uma rasura na escrita homogeizante da nao. O ato performtico, nesse sentido, observado na existncia deste discurso contrrio e, principalmente, na ecloso de uma escrita que rompe com a homogeneidade proposta pelos discursos pedaggicos. Como teoriza Homi K. Bhabha:O pedaggico funda sua autoridade narrativa em uma tradio do povo, descrita por Poulantzas como um momento de vir a ser designado por si prprio, encapsulado numa sucesso de momentos histricos que representa uma eternidade produzida por autogerao. O performativo intervm na soberania da autogerao da nao ao lanar uma sombra entre o povo como imagem e sua significao como um signo diferenciador do Eu, distinto do Outro ou Exterior.(Bhabha, 1998, p. 209)

Na conceituao proposta pelo crtico, as naes modernas so fundadas por uma autoridade narrativa que almeja produzir um discurso homogeneizante e conciliador das diferenas internas. O resultado deste recurso baseado na narrao a adoo de uma proposta pedaggica nacionalista que consiste na absoro e esvaziamento dos elementos antagnicos presentes no interior da nao. Contudo, o pressuposto apresentado por Bhabha tambm busca identificar as performances narrativas que incidem no movimento oposto, ou seja, os discursos formados no desejo de rasurar a pretensa fala pedaggica e lanar uma sombra no discurso hegemnico. Tais operaes discursivas so nomeadas pelo autor como performticas ou performativas. Pois so discursos em ato que interrompem a noo de tempo empregada pela estrutura pedaggica da nao, que se baseia na autogerao, e

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apontam para um significado de povo no heterogneo. Estes plos discursivos surgem como elementos conflitantes e sera tenso entre o pedaggico e o performativo (...) na interpelao narrativa da nao converte a referncia a um povo a partir de qualquer que seja a posio poltica ou cultural em um problema de conhecimento que assombra a formao simblica da autoridade nacional. (idem, p.207)

Por este turno, a simples existncia de um discurso performativo produz um abalo na produo narrativa pedaggica, instaurando uma instabilidade na estrutura discursiva que objetiva a conciliao dos opostos, como avalia Homi K. Bhabha:As contra-narrativas da nao que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras tanto reais quanto conceituais perturbam aquelas manobras ideolgicas atravs das quais comunidades imaginadas recm identidades essencialistas. (idem, p. 209)

Estes sujeitos perifricos, empenhados em produzir um discurso prprio, mais do que produzir uma fala que entre em conflito com a narrativa pedaggica, esto primeiramente empenhados em consolidar uma proposta discursiva especfica sobre a margem. Nesse sentido, possvel constatar no apenas o empenho destes autores em afirmar a diferena da periferia frente a outros setores da sociedade atravs do texto literrio, mas, igualmente, a partir de um complexo empreendimento cultural que utiliza linguagem, msica, arte, vestimentas, etc. literatura so acrescidas outras manifestaes culturais e sociais que tambm objetivam uma imagem prpria baseada na diferena social. Ou seja, o movimento/grife 1 da Sul, criado por Ferrz; a realizao da Semana de Arte Moderna da Periferia, organizada por Srgio Vaz e outros poetas da Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa; a criao da Edies Tor, idealizada por Allan Santos da Rosa, so alguns dos muitos exemplos de articulao destes autores perifricos no desejo de constituio de espaos prprios voltados exclusivamente para a reflexo sobre os setores marginalizados. Tais elementos ressoam como um mecanismo de interveno social que almeja a criao de uma identidade prpria em oposio aos grupos sociais pertencentes ao centro. A leitura produzida por Homi K. Bhabha oferece novas luzes a esta questo:Cada vez mais, o tema da diferena social emerge em momentos de crise social, e as questes de identidade que ele traz tona so agonsticas; a identidade reinvindicada a partir de uma posio de marginalidade ou em

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uma tentativa de ganha o centro: em ambos os sentidos, ex-cntrica. (Idem, p. 247)

No caso especfico da Literatura Marginal, e das diferentes aes desencadeadas pelos autores pertencentes a este movimento, percebemos a reivindicao de uma cultura prpria e cerceada aos espaos marginais. A noo que orienta tal perspectiva cultural se baseia em uma ideia de cultura essencialista e definidora dos sujeitos residentes em favelas e bairros perifricos, como destaca rica Peanha, em Vozes marginais na literatura: A ideia essencialista de uma cultura da periferia, defendida pelos escritores estudados, e exclusiva dos moradores das periferias, pressupe um mundo parte.(Peanha, 2009, p. 56) Tal concepo de cultura, mesmo que equivocada e ultrapassada, recebe uma conotao poltica agonstica ao propor uma hierarquizao entre culturas, almejando o estabelecimento de uma rgida separao entre a cultura perifrica leia-se tambm de rua e a cultura do centro leia-se tambm burguesa. Os signos criados para conformar essa identidade cultural perifrica agonstica revelam o intento em realar a diferena social destes setores marginalizados. Favelas, conjunto habitacionais e bairros de subrbio surgem como espaos exteriores urbe, no dialgicos e antagnicos ao centro. Tal rigidez do discurso busca fundamentar um movimento de oposio configurao social estabelecida atravs de reunio de posturas e falas que buscam romper com a conciliao. Com o objetivo de localizar a operao destes mecanismos discursivos necessrio propor um modo de leitura que no se baseie apenas no texto literrio e que possibilite colocar em relevo o prprio movimento que o discurso opera, tratando a literatura como um veculo de interveno social. Dessa forma, os pressupostos tericos dos Estudos Culturais sero acionados com este intuito. Alm disso, atravs deste referencial terico ser possvel ler e analisar as diferentes produes culturais marginais sem recorrer a instrumentais hierrquicos e excludentes. Tendo como ponto de partida o desejo de apresentar um olhar crtico sobre as representaes da margem e, principalmente, acerca da periferia enquanto produtora de signos culturais e discursivos, fundamental para a realizao deste exame utilizar um corpus terico que auxilie a anlise de discursos to heterogneos e contrastantes do ponto de vista

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formal. No se trata de formular um novo conceito de literatura, mas, sim, de utilizar novas ferramentas para empreender um olhar que revele a especificidade de cada manifestao cultural analisada, abandonando assim uma percepo que se baseie apenas nos valores estticos das obras. Ao optar por no realizar apenas uma leitura esttica destes discursos, coloco em destaque uma compreenso tica destas manifestaes. Certamente, para o pleno resultado deste empreendimento crtico se faz necessrio recorrer a uma noo mais ampla de cultura, objetivando no somente dar voz a estes sujeitos, mas utilizar um mtodo de anlise desses discursos que possibilite a emergncia destas vozes outrora silenciadas. Alm disso, ao utilizar as definies e teorias formuladas por pesquisadores dos Estudos Culturais irei compreender as produes discursivas dos autores marginais em uma relao mais ampla com a sociedade, identificando os dilogos que tais textos possuem no apenas com a produo literria contempornea, mas, igualmente em uma perspectiva poltica e social. Posto que, conforme observa Douglas Kellner, em A cultura da mdia,Os Estudos Culturais britnicos situam a cultura no mbito de uma teoria da produo e reproduo social, especificando os modos como as formas culturais serviam para aumentar a dominao social ou para possibilitar a resistncia e a luta contra a dominao. A sociedade concebida como um conjunto hierrquico e antagonista de relaes sociais caracterizadas pela opresso das classes sociais, sexos, raas, etnias e estratos sociais subalternos. Baseando-se no modelo gramsciano de hegemonia e contrahegemonia, os estudos culturais analisam as formas sociais e culturais hegemnicas de dominao, e procura foras contra-hegemnicas de resistncia e luta. (Kellner, 2001, p. 47-48)

Nessa perspectiva, os produtos discursivos marginais sero analisados como manifestaes contra-hegemnicas, resultantes de um esforo em produzir uma imagem prpria sobre a vivncia marginalizada. O modelo terico adotado, nesse sentido, busca um relacionamento direto entre as manifestaes culturais, Estado, economia, sociedade e vida diria. O principal desafio no tocante elaborao das anlises foi estabelecer qual corpos que seria acionado para compor minha leitura. Mesmo que o principal objetivo seja ler a constituio deste grupo de autores da periferia, buscando estabelecer os

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possveis contornos estticos e ticos destes escritos formados a partir da gide Literatura Marginal, necessrio definir quais autores e obras sero selecionadas. A principal dificuldade foi propor uma relao de autores que fosse representativa dentro de um grande volume de publicaes. Afinal, no breve perodo de uma dcada, despontaram diferentes autores marginais no cenrio literrio brasileiro. Os nomes so muitos e propor uma apresentao de todos aqui, nesta introduo, seria exaustivo e pouco auxiliaria o desenvolvimento de minha reflexo. Importa dizer que a Literatura Marginal ganhou as ruas e becos da periferia e rene um considervel nmero de sujeitos perifricos. O nome mais conhecido e de maior destaque Ferrz, a este podemos adensar Allan Santos da Rosa e Srgio Vaz. Os trs autores sero objeto de uma leitura especfica desta Tese. Mas, ao selecionar estes autores como referncia, estou igualmente excluindo outros, como Ademiro Alvez de Sousa, mais conhecido pelo pseudnimo de Sacolinha e Alessandro Buzo. Graduado em Letras e morador da periferia paulistana, Sacolinha autor de Graduado em marginalidade (2005) e 85 letras e um disparo (2007). Atravs de sua atuao no Projeto Cultural Literatura no Brasil, o autor participa de diferentes eventos com o objetivo de difundir a leitura nas periferias. Alessandro Buzo, ativista do movimento Hip-Hop e morador do Itaim Paulista, autor de quatro livros de forma independente. Guerreira (2007), recm publicado pela Global Editora, sua ltima produo, narra a trajetria de uma jovem no submundo das drogas e prostituio. Alm de exame centrado na obra de Srgio Vaz, Ferrz e Allan Santos da Rosa, tambm sero criadas propostas de leitura dos trs volumes do suplemento literrio Literatura Marginal A cultura da periferia, assim como dos textos que posteriormente foram compilados na antologia Literatura Marginal talentos da escrita perifrica. Soma-se a estes produtos, outras publicaes lanadas por editoras independentes, como a Edies Tor, e o acompanhamento dos blogs mantidos pelos autores. importante ressaltar que paralelo a este movimento de articulao cultural da periferia atravs da literatura temos observado a proliferao de obras literrias e flmicas, no produzidas por sujeitos da periferia, que buscam examinar estes espaos marginalizados. A margem, este territrio quase esquecido e muitas vezes invisvel da

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cidade, surge na contemporaneidade como um precioso territrio a ser explorado. Seja pelo olhar do prprio marginal, que agora abandona a posio de objeto para figurar como sujeito do prprio discurso; ou por autores no pertencentes margem que, movidos pelo crescente interesse do mercado editorial, repetem as ideias e os preceitos formados pela Literatura Marginal, inegvel que a periferia urbana ocupa hoje, paradoxalmente, um espao central na produo discursiva brasileira. Vale lembrar que processo semelhante ocorreu com a chamada Literatura de Crcere. Joo Camillo Penna, no artigo Estado de exceo, identifica as implicaes do boom da Literatura do Crcere:(...) a literatura carcerria em particular, e a antes insipiente literatura de testemunho em geral, no Brasil, surge na seqncia da abertura do espao de visibilidade que o problema carcerrio obteve a partir do massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992. O nefando episdio da crnica paulistana, quando 111 presos, segundo dados oficiais, foram executados em selvagem carnificina pela polcia militar, com suas terrveis implicaes de violncia policial sistmica, demonstrou claramente que a populao carcerria brasileira vive de fato sob um estado de stio permanente, completamente fora do regime regular de cidadania que seu direito constitucional.(Penna, 2007, p. 184)

Na leitura de Joo Camillo Penna, o Massacre do Carandiru tem uma funo ontolgica, constitutiva, de produzir sujeitos(Idem, p. 188). Dessa forma, os textos produzidos em decorrncia do Massacre so instrumentos de subjetivao, favorecendo a constituio de sujeitos. No entanto, alm do claro intento tico destes discursos, igualmente perceptvel um sentido mercadolgico. O boom da Literatura do Crcere foi resultante da incessante busca das editoras por presidirios que testemunharam o Massacre do Carandiru que pudessem oferecer seus testemunhos aos leitores. Esses produtores, nesse sentido, ambicionavam repetir o sucesso mercadolgico de Estao Carandiru, de Drazio Varela. Dessa forma, exame semelhante pode ser realizado no tocante ao empenho de casas editoriais em publicar escritos de autores da periferia, sendo perceptvel o interesse de grupos editoriais nesses autores, observando nesse tipo de produo literria um importante nicho mercadolgico. Exemplar, nesse sentido, a criao do selo Literatura Perifrica da Global Editora, responsvel pela publicao dos livros de Alessandro Buzo, Sacolinha, Allan Santos da Rosa e Srgio Vaz. Alm do inegvel

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empenho da Editora Aeroplano em se constituir enquanto espao de veiculao de obras produzidas sobre a periferia urbana e por sujeitos pertencentes a este espao, destacando para estas obras o selo Tramas Urbanas. Selo responsvel pela publicao da autobiografia de Alessandro Buzo, Favela toma conta, em 2008; e pelo lanamento de Cooperifa, antropofagia perifrica, de Srgio Vaz, em 2007. Revela-se, assim, no apenas uma orientao tica na publicao destes textos e na produo de obras cinematogrficas e televisivas sobre estes setores da sociedade, mas, sobretudo, mercadolgica. No se trata de elaborar uma exasperada crtica dos meios de comunicao de massa e das grandes corporaes editoriais que promovem tais discursos, mas compreender tal fenmeno cultural e comercial como um substrato da prpria sociedade brasileira. Dessa forma, vale questionar: o que move esse olhar da Literatura Marginal em direo periferia? Responder este breve e inquietante questionamento um dos meus objetivos. Mesmo que este questionamento seja um possvel elemento norteador de minhas anlises, o resultado de minhas observaes no se destina a configurar um rgido estudo sobre a Literatura Marginal. Meu objetivo no compor um tratado acerca do tema e muito menos desejo construir um modelo de leitura que esgote o tema. Ao contrrio, minhas leituras e anlises so direcionadas a ensaiar formas de contato com este objeto, utilizando para isso diferentes propostas tericas e possibilidades de leitura. Os captulos podem ser vistos como pontos de ancoragem ao objeto, resultando em uma viso prismtica sobre a Literatura Marginal. Os captulos, dessa forma, podem ser lidos de forma autnoma, e quando colocados em conjunto, na articulao das teorias utilizadas, oferecem uma perspectiva mais ampla sobre o tema.

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2. Literatura Marginal, uma literatura feita por minorias.

A Literatura Marginal, sempre bom frisar, uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou scio-econmicas. Ferrz, Literatura Marginal: talentos da escrita perifrica.

Na primeira edio de Capo pecado, publicada em 2000, em um texto de abertura do romance uma espcie de epgrafe Ferrz traa um movimento de aproximao ao bairro em que reside:Universo Galxias Via-lctea Sistema solar Planeta Terra Continente americano Amrica do Sul Brasil So Paulo So Paulo Zona Sul Santo Amaro Capo Redondo Bem-vindos ao fundo do mundo (Ferrz, 2000, p13)

O ponto de partida para alcanar o fundo do mundo o mais geral possvel, o universo. O objetivo no , definitivamente, ser universal; busca-se algo especfico. A trajetria traada abre diferentes camadas, rompendo territrios. O percurso semelhante a um jogo de escalas, com um movimento em abismo, buscando seu fim. Lendo o texto facilmente relacionamos o movimento do autor s conhecidas

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matrioshkas - bonecas russas que so colocadas uma dentro da outra, da maior at a menor, todas com o mesmo ornamento e cores. Mas a semelhana com o tradicional brinquedo russo restrita ao movimento operado pelo texto, posto que no encontramos dentro da srie menor uma reduplicao reduzida. A cada nova descoberta realizada pelo autor, ao romper as camadas territoriais, nos deparamos com um territrio em diferena. Ser o fundo do mundo, como o autor denominou o bairro em que reside e que serve de palco para a narrativa que ser iniciada, no simplesmente o ponto de chegada, mas, sim, a representao material de uma condio de extrema marginalizao. O exerccio de busca por uma profundidade, tal qual um fenmeno de mise en abyme realizado por Ferrz afirma a territorialidade do texto em duas perspectivas: primeiro enquanto cenrio do romance, focando o Capo Redondo, bairro da periferia da Zona Sul de So Paulo, como espao em que ser representado o texto ficcional; e, na segunda possibilidade de anlise, afirma o territrio em um sentido poltico, apresentando o romance enquanto produto discursivo originrio do fundo do mundo espao marginalizado por excelncia, na leitura do autor. Capo Redondo: este o elemento final a ser descortinado por um olhar em profundidade lanado por um sujeito marginal. A verticalidade apresentada no texto, centrando um olhar sobre a periferia urbana, pode ser tomada como uma caracterstica fundadora da Literatura Marginal. A afirmao da territorialidade do texto, seja em uma perspectiva ficcional utilizando-o como cenrio da narrativa ou enquanto lcus identitrio apresentando o autor enquanto residente da periferia ficcionalizada um dos principais elementos que possibilita o estabelecimento de contornos mais ntidos para a identificao desse movimento literrio que rene na contemporaneidade inmeros autores de periferia. A Literatura Marginal, com o seu acentuado discurso baseado em um princpio socioeconmico e territorial, instaura em nossa srie literria um novo molde para a apreenso de obras literrias. Ao cobrar para si um exame fundado em estruturas sociais, expressando como principal diferenciao a origem perifrica de seus produtores discursivos, o grupo de autores que se agrupam sob o ttulo de Marginal no utilizam como primeiro elemento catalisador um pacto esttico. Ao

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contrrio de outros movimentos, o topos da linguagem, ou outros elementos e recursos literrios, no surge como ndice de aproximao dos autores. No presenciamos neste movimento a formao de um grupo que almeja defender, ou rechaar, determinado elemento esttico, como possvel observar nas vanguardas modernistas das primeiras dcadas do Sculo XX. Na estruturao desse novo grupo, o esttico foi colocado em segundo plano, no negligenciado, mas suprimido pela importncia conferida tica. A tica passa a nortear a seleo dos autores que podero compor o movimento, tendo como principal premissa a origem marginal. Ser residente de um dos inmeros bairros de periferia que circundam os poucos bairros centrais dos grandes centros urbanos do pas o primeiro elemento que conta. Se inovador o critrio de formao do movimento, o mesmo no pode ser dito em relao a seu modus operandi. A Literatura Feminina, ou Feminista, assim como a Literatura Negra, ou Afrobrasileira, podem ser tomadas como exemplos de estruturao discursiva que busca a valorizao do sujeito da enunciao amparado no princpio tico. Tais movimentos literrios possuem como fundamento identificar o sujeito na situao que descreve, como objeto do conhecimento que prope recortar, a partir de sua particularidade, seja de gnero (gen der) ou raa. Um exame das estratgias discursivas fundadas por estes dois grupos, ambos minorias em consonncia com os autores marginais auxilia na construo de uma leitura mais ampla da Literatura Marginal. Marginal, Feminista ou Afrobrasileira, na perspectiva que almejo oferecer a estes movimentos, no so apenas adjetivos alocados palavra Literatura, so, em seu sentido mais amplo, a demarcao de uma territorialidade no mbito da produo discursiva. A adjetivao, nesse sentido, perpassa pela busca de uma esfera de legitimao, delimitando os espaos fronteirios entre a produo discursiva que exprime os desejos de um sujeito opressor que pode ter a feio do gnero masculino, ou do branco, e em alguns casos de ambos e a produzida por um grupo minoritrio. Construir tal fronteira na esfera literria apenas transplantar os confrontos de gnero e racial para o discurso literrio, transformando-o tambm em espao de contestao e disputa poltica. As vozes que criticam o estatuto homogneo

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do discurso literrio buscam alargar conquistas que garantam espaos para as diferenas e para a autonomia. Ao fixarem um hfen aps o termo Literatura, impresso na visvel separao de um discurso hegemnico, sentenciando a pretensa igualdade do discurso utpico-romntico que a poca moderna forjou, estes grupos atuam em favor de uma igualdade em diferena, nas especificidades de gnero, raa e classe. Na Literatura Feminista, identificada como uma produo literria gendrada, a prtica literria transformada em um espao de construo simblica, estruturando um discurso sobre e do gnero minoritrio. O feminino passa a ser concebido como uma construo cultural, e no um dado ofertado pela natureza. Os discursos sobre o feminino, em uma lgica feminista, perpassam por uma discusso sobre a sua posio na sociedade e, principalmente, na utilizao dessa estrutura como referncia em sua atuao social. Do ponto de vista terico, a Literatura Feminina busca a formao de um espao prprio dentro do universo da literatura mundial mais ampla, em que a mulher seja o sujeito do discurso e possa a partir de um ponto de vista e de um sujeito de representao prprios, que sempre constituem um olhar da diferena, construir sua prpria representao. No se trata de oferecer uma percepo mais afetiva, delicada, sutil, reservada, frgil ou domstica no mbito da literatura, mas, sim, de constituir-se enquanto sujeito discursivo, livrando-se da silenciosa posio de objeto. A Literatura Negra possui como fundamento a defesa por um discurso que possibilite a assuno do negro enquanto sujeito histrico, rompendo com a representao produzida pelo branco, concebida em alguns casos como opressora e baseada apenas no exotismo comparatista racista. Maria Conceio Evaristo de Brito, em Literatura Negra: uma potica de nossa afro-brasilidade, identifica a produo literria de autores negros como a construo de um discurso capaz de explicitar o negro, sua insero no mundo, os seus sentimentos, as suas particularidades como sujeito da histria(Brito, 1996, p. 41). A defesa pela emergncia de uma voz negra na literatura possui como referncia a possibilidade de produzir um discurso que representa um sistema de pensamento especfico. Na leitura de Conceio Evaristo, em consonncia com os principais movimentos que buscam consolidar a literatura negra no Brasil, o exerccio da escritura negra resulta no afloramento de uma

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cosmogonia prpria, negra, atravs da representao. A linguagem, smbolos, memrias e interpretao do mundo, seriam os vetores que confluem para a consolidao de um corpus negro, conflitante com a viso branca sobre o negro. No entanto, mesmo estabelecendo um recorte racial para a apreenso de obras literrias, a Literatura Negra no se baseia apenas em uma referncia tnica, mas busca construirum conceito mais abrangente, a uma implicao mais profunda, que a de ser, a de se situar conscientemente negro na escritura. Estamos falando de uma literatura em que seus produtores se propem consciente e politicamente criar um discurso, uma escrita que parta do eu negro, sujeito que se inscreve e escreve negro e no que represente o negro.(Idem, Ibidem).

No se trata apenas de estabelecer uma fronteira racial na produo literria nacional, mas, sim, de consolidar um espao de representao dentro de uma srie hegemnica. O discurso literrio passa a ser concebido como uma prtica que favorece a construo cultural de um grupo marginalizado. Valoriza-se a voz negra, mas, sobretudo, a voz negra em contato com a sua cultura e histria, livrando-a do papel de objeto. Seja atravs de um recorte de gnero ou de raa, os grupos minoritrios que instauram um elemento de distino no seio da srie literria hegemnica buscam pensar o Outro sob o prisma da diferena. No so mais sujeitos desviantes de uma norma, de um modelo universal, mas como indicador de outras posturas possveis, como revelador do princpio da diversidade. Vera Queiroz, em Crtica literria e estratgias de gnero, amparada nas concepes tericas de Michel Foucault e Jacques Derrida, apresenta de forma clara a mudana epistemolgica realizada na segunda metade do sculo XX que favoreceu a emergncia de vozes outrora sulcadas por uma concepo iluminista de sujeito universal que impossibilitava a constituio desses sujeitos marginalizados:O estudo sobre as relaes entre poder e saber, entre o conhecimento, o sujeito e a verdade na passagem da episteme clssica para a moderna [ realizada por Michel Foucault a partir da leitura de Marx, Nietzsche e Freud] fundou um novo paradigma na compreenso do sujeito das cincias humanas, a partir do qual as noes de profundidade (quanto ao saber) e de origem (com relao verdade) esto abaladas; a descontinuidade e a disperso, ao invs da linearidade e da homogeneidade, so as foras motrizes dos acontecimentos e da histria; a concepo de sujeito, a partir da poca moderna na verdade, esse seria um trao distintivo capital na

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passagem do sujeito clssico ao moderno passa a estar relacionada s formaes discursivas que regulam saberes e os poderes, de modo a inscrever-se tambm como objeto de prticas interpretativas plurais que, longe de conferir-lhe essncia, inserem-no na cadeia discursiva reguladora dos objetos e das coisas, de que se torna doravante parte. (Queiroz, 1997, p. 104)

A conquista do poder discursivo reflete no apenas os resultados das lutas empreendidas por um grupo especfico, mas, igualmente, uma importante mudana terica no pensamento moderno. Atrelada nova compreenso do sujeito, concebido agora em sua pluralidade rizomtica, em contraposio ao sujeito detentor de uma raiz cultural nica e no contraditria, empreendida uma sutil modificao dos sistemas de pensamento e, principalmente, de valorizao dos objetos discursivos e de arte. Tal modificao terica, sobretudo no campo dos estudos literrios, estruturou uma nova concepo acerca do texto literrio, analisando-o a partir de um suporte que faa emergir um debate sobre a sua natureza. Vera Queiroz, tomando como referncia a anlise de Heidrun K. Olinto acerca do itinerrio da crtica literria ao longo do sculo XX e a reavaliao sistemtica dos modelos tericos e crticos que conferem ao literrio sua legitimidade, observa queno multifacetado espectro de vises ( e de verses) que configuram hoje os diversos modelos e as diferentes teorias, o que parece consensual a perda de privilgio da imanncia do(s) sentido(s) no prprio texto, compreendido na perspectiva de um conjunto amplo de relaes dialgicas e contextuais, em que se problematizam tanto o leitor (em suas diversas personae de leitor fictcio, real, implcito, histrico, crtico), como plo constitutivo de significaes, quanto as rgidas configuraes do objeto literrio, na medida em que esse estatuto o literrio ser definido como tal na perspectiva do recorte que o fundamenta. (Queiroz, op. cit., p. 12-13)

Na leitura de Vera Queiroz no apenas a obra literria passou a ser analisada enquanto parte de um sistema mais amplo e complexo de prticas textuais, avaliando a funo e o valor da obra em relao a contextos culturais historicamente especficos, como a prpria reavaliao da figura do leitor e o estatuto ideolgico das posies dos sujeitos envolvidos nas prticas avaliativas e judiativas inerentes s atividades interpretativas tambm foram, igualmente, analisadas fora de um circuito autotlico. Tais mudanas operaram uma nova interrogao ao campo dos estudos literrios, levando substituio da eterna pergunta o que literatura? Por outra

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o que considerado literrio, quando, em que circunstncias, por quem e por qu?(Olinto, 1993, p. 09) como observou como grande pertinncia Heidrun K. Olinto, no ensaio Letras na pgina/palavras no mundo. Novos conceitos sobre estudos de literatura. Nessa leitura vemos o progressivo abandono de uma crtica literria ancorada em teorias de cunho formalistas, centradas unicamente no texto literrio, e o sucessivo avano de formulaes tericas que utilizam extratos de abordagem do discurso literrio baseadas em reflexes pragmticas, colocando em voga exames centrados em esferas extraliterrias. No entanto, mesmo com o fortalecimento de um horizonte terico que fundamenta a leitura crtica na busca por uma relao entre texto e seu entorno social, poltico e cultural, os crticos literrios que se debruaram sobre os textos da Literatura Marginal de forma recorrente expressaram a insuficincia dos estudos literrios frente ao objeto, como demonstra a leitura de Fernando Villaraga Eslava, no artigo Literatura marginal:Enfim, a visita panormica ao salo da tmida e polmica recepo crtica da literatura marginal indica que ainda no se achou as chaves necessrias para uma leitura capaz de reconhecer as especificidades e os sentidos de suas expresses, que falta (re)definir os itens fundamentais que ainda devem orientar a indagao hermenutica de suas heterogneas escritas. (Eslava, 2004, p. 49).

Segundo Fernando V. Eslava, necessrio criar formas de abordagem dos textos da Literatura Marginal que possam alinhavar um exame que coloque em relevo as especificidades dessa produo, relacionando o aspecto literrio e esttico a sua forma de enunciao poltica e tica. O desafio, seguindo esse raciocnio, empreender uma leitura crtica do objeto literrio a partir de experincias estticas distintas dentro de um mesmo movimento. A leitura de ngela Maria Dias apresenta questionamentos semelhantes ao avaliar quemuito se tem discutido sobre a perplexidade da crtica diante [da Literatura Marginal e de] seu estatuto indefinido entre testemunho de uma condio social, biografia de uma experincia subjetiva e criao intencionalmente ficcional e/ou literria, bem como sobre o estranhamento causado pelo seu acento de lngua coletiva, arrebanhando vozes e verses de uma comunidade, no intuito de formar o mosaico de uma lngua geral. (Idem, p. 14)

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Os apontamentos apresentados por ngela Dias, formados a partir de sua anlise da coletnea Literatura Marginal: talentos da escrita perifrica, so precisos ao perceber o carter multifacetado da escrita produzida pelos autores reunidos sob o ttulo de marginais. Ampliando o foco de anlise e debruando-se sobre os trs suplementos Literatura Marginal A cultura da periferia, publicados pela Revista Caros Amigos, que apresentam os textos que posteriormente foram selecionados e reunidos na coletnea supracitada, possvel observar com mais fora a constituio de um amplo espectro de linguagens e estilos que clamam uma origem comum. Se estabelecermos uma leitura das trs edies em conjunto, alm de percebermos a ampliao do conceito Literatura Marginal, ser possvel observarmos uma sutil mudana de estilo e manejo da linguagem por parte dos autores. No Ato I primeira edio do suplemento lanado em 2001 - os textos publicados so explicitamente formados a partir de um desejo de denncia e exame crtico da realidade da periferia urbana. exceo de Erton Moraes, com a fbula A peregrinao da mosca varejeira, os textos possuem como foco as margens urbanas e os problemas sociais que assolam estes territrios. Alm disso, perceptvel a presena de autores que mantm estreitas relaes com a cultura Hip-Hop, utilizando a escrita como veculo de divulgao dos seus principais conceitos norteadores, como operam: Casco, em A conscientizao e Conscincia; Ferrz, em Os inimigos no levam flores; ATrs, em A.C. em qualquer lugar e Garret, em Sonhos de um menino de rua. Nos exemplos citados possvel observar a presena de um discurso prprio da cultura Hip-Hop no texto literrio. Nestes a escrita construda com o claro intento do engajamento e da denncia, alm da explicita referncia ao movimento, como ocorre em A conscientizao. Alm disso, outro claro elemento de unio dos contos e crnicas publicados no Ato-I a utilizao do aparato literrio como mecanismo de reflexo sobre o prprio entorno, utilizando bairros populares, favelas e conjunto habitacionais como palco preferencial das narrativas ficcionais. Seja no conto de Paulo Lins, que se faz presente com Destino de artista, ou na poesia de Srgio Vaz, presenciamos a construo de uma literatura engajada. Nos Atos II e III, a segunda e terceira edio do suplemento lanadas em 2002 e 2004 respectivamente, os textos literrios, em sua grande maioria, continuam

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recebendo uma potencialidade poltica baseada na denncia, demarcando territrios e sujeitos da periferia com o desejo de formar uma reflexo acerca de uma condio social baseada na vulnerabilidade. No entanto, ao lado deste engajamento vemos tambm a presena de uma escrita sem a produo de apelos claros a uma tomada de conscincia por parte do leitor. Exemplo disto so os textos produzidos por alunos de uma escola pblica nas cercanias da favela da Vila Flrida, em Garulhos, com destaque para Olhar, de autoria de Vilma: No te vejo/ Pois com teu olhar/ Desapareo/ No te sinto/ Pois no teu tocar/ Desfaleo, e Lgrimas, de Silmara Carvalho, No meu rosto correm/ lgrimas de um desespero/ sem fim como um grito/ intil de folhas secas no/ jardim., ambos publicados no Ato II. Alm destes exemplos, igualmente possvel observar que os textos poticos de Marco Antnio, morador da Cidade de Deus, favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro, tambm fogem a esta caracterizao. Nos poemas so apresentadas as angstias de um eu lrico em contato com as desventuras de um amor no correspondido, como em Reverso e A ti, e sobre o ato de escrita potica, como em Manuscrito. Em seus cinco textos publicados, Marco Antnio apresenta uma viso sobre o homem, independente do seu lugar ou papel social, estabelecendo uma fissura no exerccio crtico que almeja ordenar de forma estanque os escritos produzidos pelo movimento a partir de uma leitura centrada em um eixo temtico marcadamente poltico. Alm disso, mesmo nos textos que possuem como cenrio e tema central os bairros da periferia, possvel observar a realizao de um tratamento do cenrio perifrico a partir de procedimentos literrios mais sofisticados e inspirados em formas cannicas da literatura. Dona Laura e Tico, autores que tiveram seus contos publicados pelo suplemento, so exemplares neste sentido. A primeira, apresentada como porta-voz da sua comunidade na colnia de pescadores Z-3, em Pelotas, RS, participou do Ato II com o conto Os olhos de Javair(2002) e do Ato III com o A vingana de Brech(2004), ambos posteriormente publicados na coletnea. Nos contos de Dona Laura visvel a busca por uma linguagem culta, com um manejo peculiar da escrita, utilizando procedimentos que apontam para um tratamento distinto dos personagens e situaes descritas. Em A vingana de Brech, para citar apenas um exemplo que ratifica o argumento apresentado, a narrao do assassinato

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de uma personagem torna clara a opo da autora por uma forma de representao distinta da maioria dos autores reunidos no suplemento:Rosa que nasceu no lodo tem vida curta, e nem pela lama existente, e sim pelos olhares cobiosos. Potira era uma semente rara, desviada da estufa. Aconteceu. O assassino, aps saciar os seus instintos malignos, deixou o corpo dela beira da cachoeira, para ser encontrado, e foi, ainda quente. (Dona Laura, L.M. III, p. 26)

Rompe-se com o realismo, no acompanhamos a ao do assassino, ocorre um movimento oposto, o ato apresentado em apenas um verbo: Aconteceu. Domina o trecho a utilizao de metforas, ofertando para o evento narrado uma compreenso distinta. Ao descrever a personagem como uma rosa que nasceu no lodo, a autora estabelece uma nova perspectiva para o tema que ser apresentado, afirmando que no ser o em torno que podar sua vida, mas, sim, os olhares cobiosos lanados sobre a rosa. Na leitura dos contos de Dona Laura possvel observar que os personagens e o prprio cenrio no so construdos atravs de um quadro realista, impregnado da referncia de um dado factual. Ao contrrio, so personagens construdos a partir de um exerccio de escrita ficcional ancorado em modelos consolidados da literatura. Leitura semelhante pode ser realizada do conto Uma noite com Neuzinha(2004), de Tico, autor que nasceu e mora no Jd. Umariza, periferia de So Paulo, anarquista, exerce a no-posse e faz de sua vida uma atividade sem fins lucrativos. Com uma clara referncia literatura beatnik, Tico apresenta uma narrativa em primeira pessoa que possui como enredo a relao entre o protagonista e Neuzinha. O conto aberto com o relato sobre a vista da cidade a partir de uma janela do hospital em que Neuzinha se encontra:Pela janela do corredor do hospital, eu observava os vitrais da igreja do outro lado da rua. Comeava a anoitecer e, medida que a luz cedia lugar ao brilho da lua e algumas lmpadas iam sendo acesas, elas iam ganhando matizes diferentes, ficando mais bonito. Neuzinha ia gostar. (Tico, L.M. III, p. 4).

Aps deixar o hospital, o personagem segue para casa, sem antes parar em um bar:Caminhei at a praa, peguei a rua da biblioteca desci um pouco mais e fui ao bar de dona Bina, famoso pelas alquimias etlicas, cujas frmulas ela

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no revela a ningum, onde h pingas e batidas feitas das misturas mais inslitas, birita para todos os gostos. A minha preferida e um dos grandes orgulhos de dona Bina o rabo-de-galo diet. Bebi quatro desses, pedi uma lata de cerveja, paguei e sa.(Idem, Idibem)

Em oposio frmula recorrente dos textos de outros autores marginais, o lcool e seu espao por excelncia, o bar, no so criticados ou denunciados como smbolos de uma vida alienada. Ao contrrio, o tom empregado pelo autor revela uma perspectiva apologtica. Leitura semelhante pode ser feita do encontro do narrador com um grupo que se aquece envolta de uma fogueira:Cinco homens e trs mulheres fumavam maconha e bebiam, aquecendo-se junto ao fogo, que ia sendo alimentado com os caixotes de feira, galhos secos e os destroos de um sof. Diga l, mano! Como que , maluco? T afim de d um doisinho? Banzaix, saravo! saudei meus companheiros. Bebi uns goles de pinga e dei trs ou quatro tapas no baseado. Arrastei um caco de bloco de cimento at onde pudesse sentir o calor das labaredas e me sentei. Mantive-me quase toda a noite calado. (Idem, Ibidem)

O relato do consumo das drogas e do lcool no deixa dvida, no h espao para o estabelecimento de uma moral. O texto, em um sentido claramente oposto aos outros escritos marginais, no visa orientar os leitores, o autor no um porta-voz, no deseja produzir um discurso capaz de formar um novo tipo de engajamento poltico. No obstante, o desfecho do conto torna mais evidente o sentido antagnico que a presena do conto realiza no suplemento. Aps avistarem um rato em meio ao entulho e lixo amontoado nas proximidades da fogueira, os homens e mulheres atiram incessantemente pedras em direo ao animal, tornando-o apenas uma massa, amarelada, cinza e vermelha. Com o amanhecer e a fome ganhando vulto nos corpos, o grupo, incentivado por uma ruivinha, decide reacender a fogueira e assar o animal:As tripas foram retiradas com um canivete e o que restou do cadver foi espetado numa vareta de guarda-chuva e suspenso ali por duas forquilhas improvisadas. Eu tambm estava com vontade de um trampo. Ningum tinha mais dinheiro. Enfiei novamente a mo no bolso e no encontrei nem ao menos uma moeda, apenas senti alguns gros um tanto melados se grudarem s pontas dos dedos.

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Olhei o sol que vinha surgindo atrs dos ps de mamona e das lajes das casas e fui arremessando as sementes de mexerica no crrego, pensando se Neuzinha gostaria de carne de rato. (Idem, Ibidem)

do prprio autor a melhor definio da funo de sua arte, conforme descrito na nota de apresentao de Tico: deseja com sua fico o que acredita ser a funo de toda a arte: deleitar, despertar, espantar, emocionar, subverter. Claramente inspirando em Charles Bukowski, Tico no deseja que sua literatura tenha uma funo alm da prpria experimentao artstica, no almeja, assim, criar uma estrutura discursiva que aponte um caminho a ser trilhado. Seu intuito, como o prprio Tico esclareceu, o deleite, o espanto, a subverso e a emoo. Aps ler Uma noite com Neuzinha e travar contato com a sua singular concepo de literatura e com seus experimentos literrios, podemos afirmar que o autor teve xito. Autores como Marco Antnio, Dona Laura e Tico so excees, recebe maior vulto a reincidncia do tratamento literrio da violncia por parte dos outros autores. Estes utilizam as ferramentas da literatura para o estabelecimento de uma compreenso das estruturas sociais desiguais e para denunciar as situaes de vulnerabilidades sofridas pelos residentes em favelas e bairros de periferia. Resulta disto a construo de uma imagem complexa para o movimento devido no apenas a diversidade de temas abordados, mas, sobretudo, ao modo como estes so abordados atravs de linguagens mltiplas e tratamentos distintos, deixando, como observou ngela Maria Dias no artigo j citado, a crtica literria que se ocupou destas obras perplexa. A fuga da perplexidade pode ser a tomada de um caminho de anlise que oriente um duplo exame, estruturando uma leitura dos textos literrios da Literatura Marginal ancorada na compreenso da dimenso poltica e social de sua interveno enquanto manifestao artstica e literria. Trata-se, nesse sentido, de compreender as heterogneas escritas a partir de um local de enunciao homogneo. Por este vis, ser operada uma forma de anlise de possibilite a ordenao de textos to dispares com um mesmo aparato crtico, buscando observar quais as possveis aproximaes e distanciamentos dentro de um mesmo conjunto.

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Mas, a tarefa do crtico no to simples assim. Por se tratar de um dado novo, smbolo da insurreio dos sujeitos silenciados para citar uma expresso empregada por Michel Foucault - necessrio criar uma estratgia de anlise que identifique a particularidade do movimento, oferecendo um recorte especfico para o sentido social e poltico da presena destes autores marginais em nossa literatura. Por este vis, digno de nota que os primeiros estudos acadmicos centrados na anlise especifica desses escritos tenham sido produzidos por pesquisadores da rea das Cincias Sociais, como as dissertaes: Literatura Marginal: os escritores da periferia entram em cena, de rica Peanha Rodrigues, defendida no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, e depois lanada em livro pela Editora Aeroplano, em 2009, sob o ttulo Vozes marginais na literatura; e Cultura e violncia: autores, polmicas e contribuies da Literatura Marginal, de Rogrio de Souza Silva, defendida no Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Faculdade de Cincias e Letras da Universidade Estadual Paulista em 2006. Em ambos estudos, a Literatura Marginal analisada no apenas enquanto movimento literrio, mas, sobretudo, social. Busca-se compreender o sentido poltico e social da insero destas vozes perifricas na srie literria e, igualmente, as relaes que tais textos e autores mantm com os bairros de origem. O foco da investigao, mesmo utilizando como objeto de anlise textos ficcionais e seus respectivos autores, no se restringe ao literrio, expande-se e passa a observar o seu sentido poltico, social e cultural. O percurso destes estudos reflete o movimento que os prprios textos literrios realizam, utilizando o discurso literrio, seja em prosa ou poesia, para a estruturao de uma complexa rede social e formao de uma poltica identitria prpria. Nessa perspectiva, os autores, sobretudo os detentores de uma enunciao marcada por um forte sentido poltico, passam a figurar tambm como objetos de anlise, uma vez que(...) digno de nota o empenho de um nmero considervel de jovens das periferias urbanas em elaborar sua experincia atravs da palavra e d-la a conhecer por meio de prticas discursivas associadas tradio literria. Em tempos de profundas dvidas e questionamentos quanto sobrevivncia das tradies literrias no futuro prximo, a opo destes jovens em construir identidades a partir da palavra escrita, (...) reclama uma reavaliao dos critrios e perspectivas com as quais ns mesmos,

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crticos literrios, tendemos a ler o lugar da literatura e de nossas prticas profissionais na sociedade (Rodrigues, 2003, p. 50)

No entanto, estabelecer o vis sociolgico como principal ferramenta de anlise impede a realizao de uma leitura do aparato literrio utilizado por estes autores, preterindo uma compreenso do discurso que veiculado nas obras. Desse exerccio tambm resulta a valorizao do papel social que os escritores marginais encenam em suas respectivas comunidades, vistos agora mais como objetos do que como sujeitos do processo simblico literrio. importante ressaltar que o enfoque sociolgico ofertado nos estudos sobre a Literatura Marginal no apresenta nenhum equvoco, mas insuficiente conceber os escritos produzidos no mbito desse movimento apenas enquanto um dado social. Paradoxalmente, o olhar do crtico, desejoso em valorizar o ato de rebelio protagonizado pelos sujeitos marginalizados ao utilizarem a literatura como veculo para a construo de sua identidade e apresentao de suas ideias, abandona o exame do discurso. Desse exerccio crtico deriva uma anlise que no valoriza tais autores enquanto sujeitos da enunciao, sendo concebidos apenas como portadores de uma voz outrora silenciada. Faze-se necessrio utilizar uma clave de leitura que possibilite uma anlise conjugada: ler no texto literrio a presena do sentido poltico e social do movimento. necessrio, portanto, buscar novas formas de anlise que coloquem em relevo as particularidades desses textos, observando a tnue fronteira entre fico e testemunho de uma condio de vida marginal, e as relaes que este ato de escrita mantm com os espaos perifricos. Uma possibilidade de anlise rentvel, para o caminho aqui estabelecido, a utilizao do conceito de literatura menor proposto por Gilles Deleuze e Flix Guattari, a partir da leitura da obra de Franz Kafka. De posse deste referencial, mesmo que o conceito tenha sido formado para a leitura da obra de um autor que em nada se assemelha aos escritos produzidos na periferia brasileira, torna-se possvel conjugar os aspectos extra-literrios com as singularidades prprias a cada texto. A utilizao do conceito literatura menor recorrente nas pesquisas da rea de literatura e cultura no Brasil, o caminho que aqui se abre no indito. Utilizam o conceito: Luiz Eduardo Franco do Amaral, em Vozes da favela, dissertao de

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mestrado que utiliza a expresso literatura de favela para designar as recentes produes literrias de autores oriundos destas localidades; Maria Conceio Evaristo de Brito, em Literatura negra: uma potica de nossa afro-brasilidade, para analisar a relao entre autor e comunidade negra no caso especfico de seu objeto; cio Salles, em Poesia revoltada, para observar a presena de uma voz coletiva nas composies de RAP, e Stefania Chiarelli, em Vidas em trnsito, para expor a condio peculiar da escrita em deslocamento de Sammuel Rawet, para citar alguns. O tratamento que pretendo oferecer ao conceito ser baseado na experimentao, promovendo o atrito entre o meu objeto e um conceito formulado para uma obra especfica. No desejo apenas a simples denominao da Literatura Marginal como uma literatura menor, emoldurando-a com este termo. Busco observar os limites e potencialidades do emprego desta referncia terica no tratamento das obras literrias selecionadas que compem este movimento literrio, concebendo-o como uma produo referencial de um setor especfico. igualmente importante destacar a percepo de um dos autores da Literatura Marginal sobre o conceito que pretendo utilizar. No prefcio do j citado volume Literatura Marginal: talentos da escrita perifrica, Ferrz, organizador da obra, apresenta uma clara oposio denominao de sua produo e de seus pares como literatura menor, como evidencia a passagem a seguir: Hoje no somos uma literatura menor, nem nos deixemos tachar assim, somos uma literatura maior, feita por maiorias, numa linguagem maior, pois temos as razes e as mantemos.(Ferrz, 2005, p. 13). Decerto, em primeiro momento causa espanto utilizar um termo com tamanha carga pejorativa para designar tais escritos e, ao menos creio eu, a crtica de Ferrz em relao ao termo baseada nessa apreciao. O autor, personagem fundamental na construo do movimento, conforme explicitei anteriormente, rechaa o uso de um conceito que em primeira leitura apresenta o estabelecimento de uma hierarquizao. De acordo com a compreenso de Ferrz, se h uma literatura menor, certamente h de existir a literatura maior uma equao correta. No entanto, importante esclarecer, o termo menor, no pensamento deleuziano, designa a construo de uma estrutura poltica prpria no seio de um grupo maior. Em outros termos, ser menor utilizar como estratgia de atuao um posicionamento de

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resistncia. Por este vis, seguindo os passos de Deleuze e Guattari, busco examinar a potencialidade de resistncia da Literatura Marginal dentro de uma srie maior. Na formulao de Deleuze e Guattari, uma literatura menor no , em primeira instncia, uma hierarquizao de certos procedimentos literrios que um grupo minoritrio realiza frente a uma srie hegemnica, mas as condies revolucionrias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)(Deleuze e Guattari, 1977, p. 28) Dessa forma, uma literatura menor , antes de tudo, uma proposta de agenciamento poltico atravs de uma escrita que rasura o estabelecido. Na caracterizao proposta pelos autores, uma literatura menor se constitui em trs aspectos. O primeiro a utilizao que uma minoria faz de uma lngua maior, alterando-a a partir de um procedimento marcado por forte coeficiente de desterritorializao(Idem, p.25). Devemos lembrar que a anlise de Deleuze e Guattari se baseia na relao que Kafka mantinha com a lngua alem e que o alemo de Praga uma lngua desterritorializada, prpria a estranhos usos menores(Idem, p. 26). O segundo aspecto apresentado se concentra na compreenso de que na literatura menor o enunciado adquire uma potencialidade poltica. Posto que, por se tratar de uma produo intimamente ligada a um grupo minoritrio, fator este que limita a emergncia de inmeras vozes, seu espao exguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado poltica(Idem, Ibidem). E, por conseguinte, o terceiro aspecto da literatura menor o seu valor coletivo, precisamente porque os talentos no abundam em uma literatura menor, as condies no so dados de uma enunciao individuada, que seria a de tal ou tal mestre, e poderia ser separada da enunciao coletiva(Idem, p. 27). Contudo, julgo necessrio estabelecer os limites para a utilizao do conceito de Deleuze e Guattari em minha anlise da Literatura Marginal, sobretudo em relao ao processo de desterritorializao da lngua. Minha resistncia terica advm da compreenso de que nos escritos dos autores marginais seja em Ferrz, Allan Santos da Rosa ou Sacolinha, para citar alguns no encontramos a realizao de um choque de linguagens tal qual definido por Deleuze e Guattari. possvel observar ao menos a utilizao de uma srie de expresses prprias das periferias dos grandes centros urbanos, produzindo assim uma escrita centrada na elaborao de

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neologismos. No entanto, estabelecer uma fronteira rgida entre os espaos centrais e as esferas marginalizadas a partir do tpico da linguagem resultaria em um procedimento analtico que (re)produziria uma compreenso estigmatizada acerca dessa populao. O estigma se d na busca por uma linguagem que seja prpria da periferia, esquecendo-se de que as falas produzidas nas margens so, antes de tudo, heterogneas e impulsionadas por grupos sociais especficos e dotados de cdigos culturais distintos. Alm disso, mesmo que possamos estabelecer as marcas de uma linguagem originada nos espaos perifricos, os cdigos lingsticos no obedecem fronteiras espaciais rgidas. Mesmo apresentando os limites e impossibilidades de utilizao do aspecto da linguagem que o conceito apresenta ao ser aplicado na Literatura Marginal, irei mant-lo. Observo apenas a existncia de uma outra tenso, esta se d no confronto entre uma expresso escrita formal e um imaginrio que se exprimiu, durantes sculos, atravs da oralidade. Por este vis, o conflito entre linguagens, que na leitura de Deleuze e Guattari acerca da obra de Kafka se baseia na oposio de lnguas nacionais, na produo discursiva da periferia brasileira se d na encenao da disputa por um espao de enunciao, como observa Ferrz no prefcio, Terrorismo literrio, do volume Literatura Marginal:Mas alguns dizem que sua principal caracterstica [da Literatura Marginal] a linguagem, o jeito como falamos, como contamos a histria, bom, isso fica para os estudiosos, o que a gen