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1 EXCELENTISSIMO SR. DR. JORGE MUSSI, MINISTRO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA “In the May 2006 cases, a number of resistance deaths were reported to the wrong precinct, suggesting collusion in impunity between specific Military Police battalions and Civil Police stations. [...] I received extensive evidence that crime scenes were routinely tampered with. [...] The policeman involved in the killing is often the only witness from whom a statement is taken”. 1 INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA Nº 9/SP (2016/0133526-7) Nº ÚNICO: 0133526-50.2016.3.00.0000 ASSOCIAÇÃO DIREITOS HUMANOS EM REDE - CONECTAS DIREITOS HUMANOS associação sem fins lucrativos, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), inscrita no CNPJ/MF sob o nº. 04.706.954/0001-75, com sede na Avenida Paulista, nº 575, 19º andar, São Paulo - SP –, aqui representada por sua diretora executiva, nos termos de seu Estatuto Social, Sra. Juana Magdalena Kweitel, através de seus procuradores (docs. 1 a 3), vem respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, com lastro no artigo 138 do novo Código de Processo Civil, requerer manifestação na qualidade de AMICUS CURIAE no INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA nº 9/SP, interposto pelo Procurador-Geral da República, o Sr. Rodrigo Janot, a respeito de chacina ocorrida em maio de 2006 na cidade de São Paulo, pelas razões a seguir apresentadas. 1 Relatório A/HRC/11/2/Add.2, ONU, p. 10: “Nos casos que ocorreram em maio de 2006, várias mortes por resistência foram registradas nas delegacias erradas, indicando um conluio para a impunidade entre alguns batalhões da Polícia Militar e algumas Delegacias de Polícia. [...]recebi provas cabais de que rotineiramente os locais de crimes são adulterados. [...] Os policiais envolvidos na morte muitas vezes são as únicas testemunhas que prestam declarações” (tradução livre).

EXCELENTISSIMO SR. DR. JORGE MUSSI, MINISTRO DO … amicus... · novo CPC –, o Ilustre Min. JORGE MUSSI, no Incidente de Deslocamento de Competência nº 3, explicitou a existência

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1

EXCELENTISSIMO SR. DR. JORGE MUSSI, MINISTRO DO SUPERIOR

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

“In the May 2006 cases, a number of resistance deaths were

reported to the wrong precinct, suggesting collusion in

impunity between specific Military Police battalions and

Civil Police stations. [...] I received extensive evidence that

crime scenes were routinely tampered with. [...] The

policeman involved in the killing is often the only witness

from whom a statement is taken”.1

INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA Nº 9/SP (2016/0133526-7)

Nº ÚNICO: 0133526-50.2016.3.00.0000

ASSOCIAÇÃO DIREITOS HUMANOS EM REDE - CONECTAS

DIREITOS HUMANOS – associação sem fins lucrativos, qualificada como Organização da

Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), inscrita no CNPJ/MF sob o nº.

04.706.954/0001-75, com sede na Avenida Paulista, nº 575, 19º andar, São Paulo - SP –, aqui

representada por sua diretora executiva, nos termos de seu Estatuto Social, Sra. Juana

Magdalena Kweitel, através de seus procuradores (docs. 1 a 3), vem respeitosamente, à

presença de Vossa Excelência, com lastro no artigo 138 do novo Código de Processo Civil,

requerer manifestação na qualidade de AMICUS CURIAE no INCIDENTE DE

DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA nº 9/SP, interposto pelo Procurador-Geral da

República, o Sr. Rodrigo Janot, a respeito de chacina ocorrida em maio de 2006 na cidade de

São Paulo, pelas razões a seguir apresentadas.

1 Relatório A/HRC/11/2/Add.2, ONU, p. 10: “Nos casos que ocorreram em maio de 2006, várias mortes por resistência foram registradas nas delegacias erradas, indicando um conluio para a impunidade entre alguns batalhões da Polícia Militar e algumas Delegacias de Polícia. [...]recebi provas cabais de que rotineiramente os locais de crimes são adulterados. [...] Os policiais envolvidos na morte muitas vezes são as únicas testemunhas que prestam declarações” (tradução livre).

2

I. DA LEGITIMIDADE DA ENTIDADE SUBSCRITORA COMO AMICUS CURIAE.

A princípio, o instituto do amicus curiae surge na legislação pátria pelas leis

9.868/99 e 9.882/99, que dispõem sobre o trâmite das Ações Diretas de

Inconstitucionalidade e das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental,

respectivamente. Na mesma linha, o art. 138 do novo Código de Processo Civil,

reconhecendo a importância das contribuições que a sociedade civil pode trazer ao judiciário

em temas de grande repercussão, implantou o amicus curiae como um novo sistema de

participação processual.2

Além da previsão legal, o Judiciário também vem sendo favorável à participação

de terceiros em casos de grande repercussão. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo,

consolidou entendimento que autoriza a manifestação da sociedade civil em determinadas

ações, democratizando e qualificando o processo judicial. É o que aduz a ementa de

julgamento da ADI 2130/SC:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INTERVENÇÃO

PROCESSUAL DO AMICUS CURIAE. POSSIBILIDADE. LEI Nº

9.868/99 (ART. 7º, § 2º). SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA

ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE NO SISTEMA DE CONTROLE

NORMATIVO ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO

DE ADMISSÃO DEFERIDO.

No estatuto que rege o sistema de controle normativo abstrato de

constitucionalidade, o ordenamento positivo brasileiro processualizou a figura

do amicus curiae (Lei nº 9.868/99, art. 7º, § 2º), permitindo que terceiros -

desde que investidos de representatividade adequada - possam ser admitidos

na relação processual, para efeito de manifestação sobre a questão de direito

subjacente à própria controvérsia constitucional.

2 BRASIL. Código de Processo Civil, art. 138: “O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação”

3

A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo

objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de

legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal

Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a

abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em

ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva

eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de

entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses

gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e

relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. (ADI 2130 MC, Relator:

Min. CELSO DE MELLO, julgado em 20/12/2000, publicado em DJ

02/02/2001 P - 00145)

Em decisão anterior ao novo CPC, o próprio E. Superior Tribunal de Justiça

se manifestou consciente da importância do instituto, permitindo o ingresso de amicus

curiae em Incidente de Deslocamento de Competência:

[...] 23. Nesta linha, mesmo que não haja expressa previsão normativa, parece

razoável que se aceite a participação das entidades requerentes,

DIGNITATIS - Assessoria Técnica Popular e JUSTIÇA GLOBAL (fls.

1326/1336), para ingressarem no presente IDC na qualidade de amicus

curiae, reconhecendo-se a representatividade de ambos os requerentes, tanto

na sua atuação no âmbito interno, quanto, no caso específico de MANOEL

MATTOS, o acompanhamento que realizam no âmbito da Corte

Interamericana de Direitos Humanos. (fl. 1572)

Diante da ausência de regramento infraconstitucional disciplinando o

processamento do Incidente de Deslocamento de Competência, cumpre a

este Superior Tribunal de Justiça a tarefa de delimitar suas nuanças até que o

legislador ordinário o faça.

[...] conforme bem anotado no parecer ministerial, se mostra bastante razoável

a admissão das organizações da sociedade civil Requerentes na condição de

amicus curiae, mormente tendo em conta sua efetiva atuação no caso em

apreço, inclusive como agentes provocadores dos organismos

responsáveis por garantir os direitos humanos.

Ante o exposto, [...] admito a participação das Requerentes como amicus

curiae, papel já desempenhado com os documentos e manifestações juntadas

aos autos.

4

(IDC 2/DF, nº único 0121262-13.2009.3.00.0000, Rel. Min. LAURITA VAZ,

3ª seção, julgado em 10/08/2010 e publicado em 17/08/2010) (Grifo nosso)

Demonstrada a possibilidade do amicus curiae ao caso em tela, passamos a

apresentar o preenchimento de seus requisitos.

Em perfeita harmonia com a regulamentação posterior – trazida pelo art. 138 do

novo CPC –, o Ilustre Min. JORGE MUSSI, no Incidente de Deslocamento de Competência

nº 3, explicitou a existência de duas condições para a admissão de terceiros interessados na

qualidade de amicus curiae: (i) a relevância da matéria em debate, bem como (ii) a demonstração

da representatividade da requerente.

A primeira condição, como já apontada nos autos e como mostraremos a seguir,

está presente numa série de fatores que exclamam a gravidade dos fatos: a chacina em si,

como ato premeditado de execução; a autoria do crime, atribuída pelas próprias autoridades

a grupos de extermínio; as suspeitas de participação de agentes públicos; e o contexto no

qual o crime está inserido, entre mais de quinhentas mortes decorrentes do conflito armado

que atravessou a cidade no período. Por seu turno, a segunda condição também está

plenamente satisfeita: tanto a representatividade da requerente quanto sua legitimidade material são

respaldadas por suas missões institucionais e pelos reconhecidos trabalhos na área de

proteção e garantia de direitos fundamentais, como os discutidos no caso em questão.

A CONECTAS DIREITOS HUMANOS foi fundada em 2001 com a missão de

fortalecer e promover o respeito aos direitos humanos no Brasil e no hemisfério Sul,

dedicando-se, para tanto, à educação em direitos humanos, à advocacia estratégica e à

promoção do diálogo entre sociedade civil, universidades e agências internacionais

envolvidas na defesa destes direitos. Desde janeiro de 2006, a Conectas tem status

consultivo junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e, desde maio de 2009,

dispõe de status de observador na Comissão Africana de Direitos Humanos e dos

Povos. Por meio de seu Programa de Justiça, a Conectas ainda promove advocacia

estratégica em âmbito nacional e internacional, com o objetivo de alterar as práticas

institucionais e sociais que desencadeiam sistemáticas violações de direitos humanos. Como

5

reflexo de sua atuação, a Conectas é, hoje, a organização da sociedade civil brasileira com

maior número de amicus curiae frente ao Supremo Tribunal Federal: 483.

Esses elementos já foram reconhecidos por inúmeras decisões judiciais,

admitindo a peticionária como amicus curiae em diversos casos que tratam de direitos

humanos, por exemplo: o Recurso Extraordinário n.º 635.659, a Proposta de Súmula

Vinculante nº 57, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4162 e nº 3943, o Habeas

Corpus nº 118.533 e a Ação Civil Pública nº 1016019-17.2014.8.26.0053 – em tramitação no

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Por fim, ainda que inexistissem todas as condições acima elencadas, que

permitem sua admissão no presente caso como amicus curiae, destacamos que a

CONECTAS foi a entidade responsável por requerer ao Procurador-Geral da República

a suscitação do presente incidente de deslocamento de competência, como consta

nos documentos juntados na inicial.

De tal sorte, considerando todo o exposto, fica devidamente comprovado o

preenchimento dos requisitos exigidos para a admissão da ora peticionária na qualidade de

amicus curiae, o que desde já se requer.

II. DOS FATOS. A LETALIDADE POLICIAL EM SÃO PAULO E AS EXECUÇÕES SUMÁRIAS NO

CASO DO PARQUE BRISTOL.

Para uma melhor compreensão do caso discutido, este capítulo abordará (1) os

números de letalidade policial em São Paulo, (2) o contexto dos chamados “crimes de maio

de 2006” e (3) os fatos específicos da chacina do Parque Bristol.

O primeiro item apresentará a Vossa Excelência o histórico tratamento leniente

dado às mortes causadas por policiais no estado de São Paulo, perpetuando nas instituições

de segurança uma cultura da impunidade. Em verdade, com base em dados estatísticos e

relatórios oficiais, há elementos concretos que apontam para o antigo e contínuo

3 Conectas Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/stf-em-foco>. Acesso em: 07.08.17.

6

envolvimento de agentes públicos com grupos de extermínio e para a omissão dos órgãos

de investigação e controle (interno e externo) nos homicídios praticados por policiais.

Também respaldado por dados estatísticos e relatórios, o segundo item pretende

reconstruir o cenário de violência que acometeu São Paulo entre os dias 12 e 20 de maio de

2006, e que ficou conhecido como “os crimes de maio”. Isso fornecerá o contexto no qual

se insere o terceiro item, a chacina do Parque Bristol, ora discutida, e permitirá enxergar que

os homicídios – na verdade, execuções sumárias – não foram um caso isolado. Isso nos levará

à grave violação de direitos humanos que evoca o presente deslocamento de competência,

com a descrição dos fatos que causaram a morte dos quatro jovens, bem como das principais

falhas da investigação – detalhadamente explicadas no Capítulo III.

1. Letalidade policial em São Paulo: cheque em branco para as mortes praticadas

pelos policiais4

A principal premissa da atividade policial, muitas vezes deixada de lado, é

prevenir e combater delitos, não executar suspeitos. A atividade policial que a ignora viola

uma série de garantias fundamentais e até mesmo o conceito de Estado Democrático de

Direito que sustenta as instituições e a organização política do país, o qual impõe o respeito

às leis não só por parte dos cidadãos mas também e principalmente pelo Poder Público.

Apesar desse postulado, diversas pesquisas denunciam a escalada da violência

policial no país e altas taxas de letalidade. Por causa de homicídios praticados diariamente, a

polícia brasileira se tornou uma das mais letais do mundo: em 5 anos, em todo o Brasil,

mais de 11 mil pessoas foram mortas por policiais, número superior ao do total

vitimado nos últimos 30 anos pela polícia dos EUA.5 6

4 ALSTON, Philip. Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias. Relatório A/HRC/11/2/Add.2, ONU, p. 11.

5 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2014. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 8. 2014.

6 A cidade de Nova Iorque, em 2011, com cerca de 8 mi de habitantes, teve apenas 8 pessoas mortas pela polícia; o município de São Paulo, com cerca de 11 mi de habitantes, no mesmo ano, teve 242 homicídios provocados por policiais. Ver: Idem, 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2013, p. 125.

7

Apenas no ano de 2014 as polícias brasileiras cometeram mais de 3 mil

homicídios, cerca de uma pessoa a cada três horas.7

De acordo com dados colhidos pela Anistia Internacional, o perfil das pessoas

vitimadas pela polícia é quase sempre o mesmo: homem, negro e jovem – tal qual o perfil

das vítimas nesse caso.8

Frente a parâmetros internacionais, a gravidade dos fatos é ainda mais explícita.

Foram desenvolvidos três indicadores básicos para se medir a letalidade de uma força policial:

(1) a razão entre civis feridos e civis mortos pela polícia;

(2) a relação entre civis mortos e policiais mortos; e

(3) a proporção de civis mortos pelas polícias em relação ao total de homicídios

dolosos.9

A partir deles, a pesquisa a pesquisa A letalidade da ação policial: parâmetro para

análise10 chegou a resultados preocupantes, concluindo que

Quando se analisa o conjunto de indicadores [...], chega-se a conclusão de que,

em São Paulo, a violência letal é utilizada como forma de controle social

coercitivo [...]. Pelos dados analisados pode-se afirmar que, no estado de

São Paulo, as polícias, em sua ação rotineira e em nome do estrito

cumprimento do dever, mais do que impedir a ocorrência do crime,

executam sumariamente pessoas [...].

Os indicadores, quando aplicados sob os números fornecidos pela Secretaria de

Segurança Pública do Estado de São Paulo, apresentam, se não o incentivo, ao menos o

descontrole das instituições policiais em relação aos homicídios cometidos.

7 Idem, 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2015. Ano 9.

8 Ver: Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Anistia Internacional. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015, pp. 34-35.

9 Idem, 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2013, p. 119.

10 LOCHE, A. A letalidade da ação policial: parâmetros para análise, p. 53.

8

O primeiro indicador mostra que a polícia paulista mata mais do que fere:

entre os anos de 2000 e 2009, a polícia de São Paulo vitimou cerca de 5 mil pessoas,

ferindo outras 4 mil; com a exceção de um ano apenas, 2005, a polícia sempre mata

mais do que feriu. Como comparação, em Nova York, entre os anos de 1993 e 2002,

a polícia da cidade matou 196 pessoas e feriu 390, apontando uma linha de atuação

que visa primeiro deter o suspeito, não o matar.

Por sua vez, enquanto o segundo indicador estabelece como parâmetro o

número de quatro civis mortos por cada agente de segurança11, no estado de São

Paulo o índice beira alarmantes 17 mortes de civis para cada policial, número quatro

vez maior.

Por fim, atualizando o terceiro indicador com os dados de 2014,12 verifica-

se que a polícia foi responsável por mais de 20% das mortes ocorridas no Estado de

São Paulo, ou seja, um de cada cinco homicídios. Para efeito de comparação, nos

Estados Unidos esse índice é de 3,6%13, i. e., entre 3 e 4 mortos a cada 100.

O excessivo número de mortes provocadas pela polícia brasileira, em especial a

paulista, foi alvo de preocupação até mesmo da ONU, como podemos observar no relatório

A/HRC/11/2/Add.2, de 23 de março de 2009, produzido pelo Relator Especial sobre

Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston. Após inspeção no país e

diante da confirmação dos dados sobre a altíssima letalidade policial no Brasil, o Relator

chegou à conclusão de que execuções são praticadas pela polícia não somente em

serviço, mas também fora dele, com grupos de extermínio.14

11 Ver: CANO, Ignacio. The use of lethal force by police in Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ISER, 1997.

12 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2015. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 9. 2015.

13 Id., 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2013, p. 119.

14 Relatório A/HRC/11/2/Add.2, ONU, p. 6: “In part, there is a significant problem with on-duty police using excessive force and committing extrajudicial executions in illegal and counterproductive efforts to combat crime. But there is also a problem with off-duty police themselves forming criminal organizations which also engage in killings”.

9

O Relatório se inicia com os preocupantes números oficiais dos chamados

“autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”: homicídios, causados por policiais,

que são registrados como decorrentes de resistência ou confronto – incluindo casos onde

claramente não houve reação, com elementos de execução sumária – por exemplo, tiros a

queima roupa nas costas.15 A figura dos “autos de resistência” apodera-se da função de aplicar

ou não a exclusão de ilicitude, partindo do (equivocado) pressuposto que a polícia somente age

em legítima defesa. Assim, enquanto a taxa de homicídios oficial de São Paulo diminuiu

drasticamente nos últimos anos, inversamente, o número de mortos pela polícia aumentou.

Para a ONU, é outro indício de que a polícia age executando suspeitos ao invés de

prendê-los.16

O abuso dessa classificação pelas polícias fica bastante evidente se observamos,

por exemplo, os números do Rio de Janeiro: entre 1997 e 2007, a quantidade de homicídios

registrados como “autos de resistência” pulou de 300 casos para mais de 1.300.17

E com a atenção da sociedade civil voltada para o alto índice oficial de letalidade

policial, o relatório também notou o aumento de desaparecimentos de pessoas: somente em

2006, no Rio de Janeiro, mais de 4 mil pessoas foram dadas como desaparecidas18. Segundo

a ONU, objetivando baixar seus índices oficiais de letalidade, a polícia teria começado a sumir

com os corpos de suas vítimas, tal como no caso Amarildo19 e como se tentou no assassinato

do menino Eduardo de Jesus, de 10 anos, morto pela polícia com um tiro na frente de casa,

no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro20.

15 Ver: 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2013, p. 120.

16 ONU, op. cit., pp. 8-9: “On-duty police are responsible for a significant proportion of all killings in Brazil. While São Paulo’s official homicide rate has reduced in recent years, the number of killings by police has actually increased over the last three years [...].Extrajudicial executions are committed by police who murder rather than arrest criminal suspects [...]”.

17 Ibid., p. 14.

18 Ibid., p. 7: “In Rio de Janeiro, 4,562 persons were recorded to have disappeared in 2006. While some of these people are doubtless alive, a significant proportion were presumably killed and their bodies disposed of”.

19 Neste caso, 12 policiais militares foram condenados por torturar, matar e ocultar o cadáver do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza. Disponível em: http://glo.bo/23GbFow. Acessado no dia 21/07/2016.

20 A mãe de Eduardo diz: “Eles chegaram perto do meu filho dizendo que iam levar o corpo. Eu disse que eles não iam tirar o meu filho de lá porque eu não ia deixar. Eles estão acostumados a fazer isso, carregar o corpo e dar sumiço. Eles dando sumiço, não acontece nada. Aí fica na imprensa que fulano desapareceu e nunca acham”. Ver: Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Anistia Internacional. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015, pp. 20-21.

10

Também constam no relatório da ONU depoimentos de Promotores de Justiça,

os quais afirmam que os conhecidos problemas que ocorrem nas investigações criminais

comuns se agravam seriamente nos casos em que um policial figura como possível autor do

delito. Os inquéritos não seriam corretamente registrados e não raro as únicas evidências

consistiriam na descrição do local e no depoimento da polícia. O uso de DNA e de laudos

de balística então, seriam raríssimos.21

O Relatório das Nações Unidas ainda alertou para outro fato: a existência, no

Brasil, de grupos de extermínio formados por agentes do Estado, que praticam, entre

outros delitos, execuções extrajudiciais.22 As execuções praticadas por esses grupos de

policiais teriam traços característicos que as distinguiriam das demais chacinas. Inicialmente,

as mortes seriam precedidas de ameaças, exigências ou toques de recolher; haveria uma

preferência por locais públicos para passar, aos moradores locais, a mensagem de que a

Polícia manda na região; e por fim, sem que houvesse tempo para se alertar a polícia, oficiais

apareceriam e adulterariam a cena do crime, recolhendo evidências, como cápsulas e

projéteis, ou os corpos das vítimas – exatamente como no caso do Pq. Bristol.23

Nessa linha, consta no relatório a intencional má condução das

investigações, que estaria acobertando os homicídios: observou-se que as mortes eram

direcionadas a delegacias diferentes das quais deveriam ser apresentadas, indicando, para o

Relator, uma atuação proposital da polícia para dificultar qualquer apuração dos fatos.

Ele, inclusive, afirma ter tido acesso a provas contundentes sobre a adulteração dos locais

das mortes, restando, nesses casos, apenas o testemunho dos policiais sobre o ocorrido.24

21 ONU, op. cit., p. 27.

22 ONU, op. cit., p. 19: “In addition to killings by on-duty police, there are a significant number of groups throughout Brazil, composed largely of off-duty government agents who engage in a range of criminal activities, including extrajudicial executions”.

23 Ver: Mapas do extermínio: execuções extrajudiciais e mortes pela omissão do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/DOSSIE_pena%20de%20morte%20final%20ACAT%20(1).pdf>. Acesso em: 1 ago. 2016.

24 Ibid., p. 10: “In the May 2006 cases, a number of resistance deaths were reported to the wrong precinct, suggesting collusion in impunity between specific Military Police battalions and Civil Police stations. [...]I received extensive evidence that crime scenes were routinely tampered with. [...] The policeman involved in the killing is often the only witness from whom a statement is taken”.

11

A conivência do alto escalão da polícia contribui para uma cultura de

impunidade, posto que os policiais sabem que podem operar à margem da lei não só

no serviço, com os “autos de resistência”, mas também fora dele.25 A situação de violência

era tamanha que o relatório afirma: “O sistema atual é um cheque em branco para as

mortes praticadas pelos policiais”.26

2. Os Crimes de maio de 2006

De acordo com a ONU, os crimes de maio de 2006, na cidade de São Paulo,

seriam um caso onde todas as irregularidades acima descritas estariam presentes. As duas

principais formas de letalidade policial, ora retratadas, teriam sido usadas ao mesmo tempo:

tanto os “autos de resistência” quanto a atuação de grupos de extermínio.

A violência transcorrida entre os dias 12 e 21 de maio começou quando a facção

criminosa “Primeiro Comando da Capital” (PCC), organizou rebeliões simultaneamente em

presídios de todo o estado de São Paulo, fazendo de reféns centenas de parentes de presos.

Fora dos presídios, a facção ainda gerou pânico na população paulista, protagonizando uma

série de ataques: incendiou ônibus, avançou contra prédios públicos e, principalmente,

realizou atentados contra a Polícia, como viaturas, postos, delegacias e batalhões.27

Os ataques organizados pelo Primeiro Comando da Capital teriam sido

motivados pelo “esquema de achaques (extorsão), praticados [pela polícia] contra familiares

de líderes do PCC em 2005”28 e pela repentina transferência de presídio imposta a alguns de

25 Ibid.. p. 11: “Corruption and second jobs cause harm in themselves, but high-level tolerance of them also contributes to a culture of impunity in which police know they can operate outside the law”.

26 Ibid., p. 11: “The present system constitutes a carte blanche for police killings”.

27 Folha de S.Paulo - Facção promove 63 atentados em 24 horas - 14/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1405200604.htm>. Acesso em: 08 set. 2016.

Folha de S.Paulo - Guerra urbana: Rebeliões em 24 prisões fazem 174 reféns - 14/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1405200603.htm>. Acesso em: 08 set. 2016.

Folha de S.Paulo - PCC ataca ônibus e fóruns, promove megarrebelião e amplia medo no Estado - 15/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1505200601.htm>. Acesso em: 08 set. 2016.

28 Delgado, Fernando R., Raquel Dodge & Sandra Carvalho. "Sao Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006", Harvard Law School International Human Rights Clinic & Justica Global (2011), p. 4.

12

seus líderes.29

Em resposta aos ataques, todo o efetivo policial paulista foi colocado em

prontidão, revogando-se as férias e as folgas dos soldados. Em números oficiais, a polícia do

Estado matou pelo menos 124 pessoas suspeitas de integrarem a facção,30 registrando todos

os casos como resistência seguida de morte.31 Ao final, contando agentes do estado e civis,

mais de 500 pessoas foram assassinadas.

Muitas mortes foram causadas por grupos de extermínio, dos quais suspeitava-

se a participação de policiais. Diante disso, a pedidos do Ministério Público Federal e da

Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o Conselho Regional de Medicina do Estado de

São Paulo (CREMESP) fiscalizou a realização de 493 laudos de exames necroscópicos de

ferimento por arma de fogo, feitos no período das 0h do dia 12 de maio de 2006 até as 13h30

do dia 20 de maio de 2006, em São Paulo. Através de um primoroso trabalho de cruzamento

de informações, o CREMESP sistematizou a localização dos ferimentos e constatou um

elevado número de tiros nas regiões posteriores do corpo, indicando um padrão de mortes

por execução: dos 2.359 tiros sofridos pelas vítimas, 893 foram disparados contra essa

região, o equivalente a 40% dos ferimentos.32

29 Crimes de Maio causaram 564 mortes em 2006; entenda o caso. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-05/crimes-de-maio-causaram-564-mortes-em-2006-entenda-o-caso>. Acesso em: 08 set. 2016.

30 Folha de S.Paulo - Familiares acusam policiais por mortes - 16/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1605200625.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.

Folha de S.Paulo - Guerra urbana/Vítimas: Testemunhas de chacina acusam policiais - 18/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1805200620.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.

Folha de S.Paulo - Guerra urbana/Confronto: Polícia matou 107 suspeitos em sete dias - 19/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1905200615.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.

Folha de S.Paulo - Guerra urbana: Ouvidoria aponta 40 mortes suspeitas - 23/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2305200611.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.

Folha de S.Paulo - Guerra Urbana: Laudos apontam indícios de abuso policial - 26/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2605200604.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.

31 ONU, op. cit., pp. 9-10: “The 124 killings were not registered and investigated as homicides, but each was instead registered by the police as a “resistance followed by death”.

32 Análise Quantitativa dos Laudos dos Institutos Médicos-Legais do Estado de São Paulo, in CONDEPE. Crimes de Maio. São Paulo, 2006, p.31-81. Também disponível em Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fls. 156-181.

13

Além das informações levantadas pelo CREMESP, a Conectas Direitos

Humanos e o Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade do Estado do Rio

de Janeiro (UERJ), coordenado pelo professor Inácio Cano, fizeram um estudo que consistia

na análise de 564 Boletins de Ocorrência e Laudos de Exames Necroscópicos relativos a

mortes causadas por arma de fogo, ocorridas entre os dias 12 e 21 de maio de 2006.33

O estudo ilumina alguns fatos importantes, como a alta mortalidade de civis

– população que teve ao todo 505 vítimas, a maioria nem mesmo envolvida nos conflitos –

e a forma como as mortes se distribuíram no período. No primeiro dia de conflitos,

enquanto a disparidade de mortos entre civis e policiais era de apenas duas pessoas, ao final

do período ela pulou para mais de 440, equivalendo a uma diferença de vítimas de

aproximadamente 856%. Ou seja, os dados demonstram que após os primeiros ataques,

a maioria dos assassinatos foi cometida contra a população civil, especialmente em

bairros periféricos, onde foi colocada em prática, basicamente, uma operação de

extermínio. Essa conclusão se evidencia quando observamos os fatos através de uma análise

progressiva do período, dividindo-o em três momentos.

33 O LAV-UERJ consolidou os dados na pesquisa “Análise dos impactos dos ataques do PCC em São Paulo em maio de 2006”, coordenada pelo Dr. Ignácio Cano (LAV-UERJ) e publicada pela Conectas no dia 12 de maio de 2009.

12 demaio

13 demaio

14 demaio

15 demaio

16 demaio

17 demaio

18 demaio

19 demaio

20 demaio

21 demaio

Semdata

Civis 12 39 107 84 75 65 22 13 6 2 80

Agentes Públicos 10 23 8 5 6 3 0 0 0 0 4

0

20

40

60

80

100

120

14

O primeiro período abarca o início e principal momento dos ataques, os dias

12 e 13 de maio. Houve 84 mortes, verificando-se o cenário de atentados a agentes públicos,

com estes correspondendo a quase 40% das vítimas – taxa de mortalidade que, comparada

ao todo do período, apresenta uma atuação reativa (e não homicida) da polícia. No segundo

período, entre os dias 14 e 17 de maio, há uma acentuada redução da mortalidade policial e

uma escalada gigantesca das mortes civis: das 353 mortes, quase 100% era civil; em relação

ao momento anterior, ocorre uma mudança no perfil das vítimas, com a execução sumária

de civis e a interrupção gradual de ataques a policiais. Em seguida, o terceiro período vai do

dia 18 ao dia 21 de maio, com o assassinato de 43 pessoas, todas civis, compreendendo o fim

da chamada “semana sangrenta”. 34

Esses dados, no entendimento dos pesquisadores, carregam indícios de que um

grande número de civis foi vítima de atos de represália contra os ataques perpetrados pela

facção, existindo também a possibilidade de que agentes do Estado tenham participado

dessas represálias, especialmente nos grupos de extermínio encapuzados. Diante das

informações, asseveram os pesquisadores:

Este quadro é compatível com o cenário de uma série de ataques contra

agentes nos dias iniciais, com muitas vítimas entre eles, e uma série de

operações de represália realizadas por policiais nos dias seguintes, com um

alto número de vítimas civis. A conclusão mais clara é que a letalidade dos

civis não acontece basicamente durante os ataques contra policiais ou agentes

penitenciários, mas num momento posterior, provavelmente em intervenções

realizadas policiais.35

Peça fundamental que realça a hipótese de ataques feitos por policiais é o

Inquérito Policial 1.136/06, conduzido pelo 39º Distrito Policial, na Vila Gustavo, na zona

norte da Capital. Nessa investigação, ficou comprovada a participação de dois policiais

militares na execução sumária de três jovens, no dia 17 de maio de 2006, período de

alta mortalidade civil. O fato foi, inclusive, reconhecido pela Secretaria de Segurança Pública

34 Ibidem.

35 Ibidem, p. 11.

15

do Estado de São Paulo.36

Todos esses dados comprovam um contexto extremamente violento, que

vitimou um considerável número de agentes do Estado e um número muito maior de civis.

Em apenas dez dias foram mortas quatro vezes mais pessoas do que o estatisticamente

projetado para o período, sendo a grande maioria vítima de execuções, com significativo

número de disparos contra a cabeça e as costas.

3. A chacina do Parque Bristol

Nesse contexto, na noite do dia 14 de maio de 2006, durante a chamada “semana

sangrenta”, em frente à sua casa na Rua Jorge de Morais, Parque Bristol, zona sul da cidade

de São Paulo, os irmãos EDIVALDO BARBOSA DE ANDRADE (24 anos) e EDUARDO

BARBOSA DE ANDRADE (23 anos) conversavam com os amigos FÁBIO DE LIMA

ANDRADE (24 anos), FERNANDO ELZA (21 anos) e ISRAEL ALVES DE SOUZA (25

anos). Por volta das 22h30, um carro modelo GM/Vectra verde escuro, com vidros

escurecidos, parou repentinamente na frente do grupo e três pessoas encapuzadas saíram do

veículo atirando contra os jovens. O patente ato de execução impediu qualquer oportunidade

de defesa e, após os disparos, os encapuzados fugiram rapidamente do local. As vítimas

foram socorridas por vizinhos e levadas ao hospital, mas apenas EDUARDO e

FERNANDO sobreviveram.

O senhor Israel Soares de Andrade, testemunha ocular da chacina e pai das

vítimas EDIVALDO e EDUARDO, informou que seus filhos conversavam em frente a sua

residência, como de costume, e que se encontrava deitado quando foi surpreendido pelo som

de tiros que o levaram a sair de casa. Ao tentar se aproximar dos filhos, foi impedido por um

dos atiradores, que também o ameaçou. Israel relatou que a precisão dos disparos e forma

como agiam era bastante peculiar, como se fossem policiais.37 O então sobrevivente

FERNANDO, por estar de costas, afirma não ter visto o veículo, nem quem atirou;38 o

36 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fl. 2923.

37 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fls. 291-293.

38 Ibid., e-STJ Fls. 273-275.

16

outro sobrevivente, EDUARDO, conseguiu identificar o carro e contar três atiradores, fora

o motorista.39

A Polícia Militar chegou ao local poucos minutos após o tiroteio. Os oficiais que

atenderam a ocorrência não preservaram o local, sob o argumento de que o lugar seria de

“grande periculosidade” (Boletim de Ocorrência nº 463/2006)40. Porém, não se

incomodaram em alterar a cena do crime recolhendo os projéteis e cápsulas usadas

no ataque – objetos que nunca foram apresentados no Inquérito Policial. Cinco horas

mais tarde, apesar da adulteração do local, a perícia conseguiu recuperar “diversos estojos vazios

e com as espoletas detonadas” (Laudo 0499/06)41.

Nos exames das vítimas fatais,42 constatou-se que FÁBIO (Laudo 2533/2006)

teve “morte violenta por choque hemorrágico”, após oito tiros, sendo um deles com

armamento de caça43; a mesma causa foi indicada para ISRAEL (Laudo 2534/2006),

atingido por doze disparos (sendo quatro pelas costas e um de grande impacto pela frente);

a última vítima fatal, EDIVALDO (Laudo 2531/2006) teve como causa da morte

“politraumatismo”, atingido por quatro disparos (dois pelas costas).

Seis meses e meio após a chacina, no dia 4 de dezembro de 2006, um dos

sobreviventes, FERNANDO ELZA, foi assassinado44 (Boletim de Ocorrência nº

1037/2006)45 nas mesmas circunstâncias, com indícios de execução. O fato deu ensejo à

instauração do Inquérito Policial nº 2831/2006 no Departamento de Homicídios e Proteção

à Pessoa (“Equipe C Sul”). Numa residência a poucos metros de onde havia sofrido a

tentativa de homicídio, FERNANDO participava de uma festa. No fim da noite, ao sair para

guardar sua moto em casa, foi atingido por vários tiros disparados do interior de um veículo

39 Ibid., e-STJ Fls. 309-311.

40 Ibid., e-STJ Fls. 264-265.

41 Ibid., e-STJ Fls. 313-317.

42 Ibid., e-STJ Fls. 332-343.

43 Foram recuperados sete projéteis (um 9mm e seis peças calibre 12) e uma bucha pneumática (calibre 18mm), sendo que os calibres 12 e 18mm “teriam feito parte de munição de para arma de fogo de ante carga, do tipo pica pau ou munição para arma de caça do calibre 12” segundo laudo 02-140-44.223/06 – fls. 84/86 do IP.

44 No exame perinecroscópico foram constatados oito ferimentos causados por arma de fogo.

45 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fls. 381-383.

17

modelo GM/Corsa azul escuro. Dois amigos tentaram socorrê-lo, porém, se acidentaram no

caminho para o hospital (Depoimentos de Eder Ferreira Grilo46 e Jefferson Guimarães dos

Santos47).

Como revelam os depoimentos, o homicídio também ocorreu numa emboscada,

pois o veículo utilizado no crime ficou estacionado em uma esquina próxima, aguardando

até o momento em que FERNANDO saiu à rua. O relatório final do Inquérito Policial que

investigou o homicídio de FERNANDO foi arquivado em 21 de agosto de 2007, sem que

qualquer autor tivesse sido identificado (conforme Relatório Final)48.

Apenas em novembro de 2007, um ano e meio após a chacina, foram ouvidas

as mães das vítimas. A senhora Maria José de Lima Andrade, mãe de FÁBIO, e a senhora

Francisca Evangelista Alvez de Souza, mãe de ISRAEL, reiteraram que era de

conhecimento geral a participação de policiais no crime, atuando em represália aos ataques

do PCC49.

Além dos familiares das vítimas, não foram ouvidas quaisquer outras

testemunhas. Nenhum vizinho do local dos fatos chegou a prestar depoimento.

Dois anos, cinco meses e 22 dias após a chacina a autoridade policial decidiu

encerrar as investigações. Em seu “Relatório Final” restringiu-se a resumir os depoimentos

e a elencar os laudos obrigatórios, concluindo que “não foi possível, até a presente data, identificar

os autores” do crime50. No dia 18 de novembro de 2008, o 4º Promotor de Justiça do I Tribunal

do Júri da Capital requereu o arquivamento do inquérito policial pois “não foi apurada a autoria

delitiva, inexistindo quaisquer outras diligências a serem efetivadas pela DD. Autoridade Policial”.51 O

pedido de arquivamento foi acolhido judicialmente no dia seguinte52.

46 Ibid., e-STJ Fls. 358-360.

47 Ibid., e-STJ Fls. 393-394.

48 Ibid., e-STJ Fls. 448-450.

49 Ibid., e-STJ Fls. 462-466

50 Ibid., e-STJ Fls. 507-512.

51 Ibid., e-STJ Fls. 514-515.

52 Ibid., e-STJ Fls. 516.

18

Inconformadas, legitimamente, com o resultado das investigações, as famílias

buscaram outros meios legais para encontrar respostas. Em maio de 2009, a Conectas

Direitos Humanos encaminhou ao então Procurador-Geral da República, um pedido de

suscitação de Incidente de Deslocamento de Competência dos Inquéritos Policiais nº

052.06.002082-4 (1.124/06) e 2.831/06, referentes às mortes do Pq. Bristol ora discutidas.

Ainda nesse espírito, no mesmo ano, foi apresentada junto à Comissão

Interamericana de Direitos Humanos uma Denúncia contra a República Federativa do Brasil,

na qual se apresentam os itens violados pelo Estado na apuração da chacina do Pq. Bristol e

se fez pedidos de: indenização das famílias; de legislação e implementação de protocolos de

atuação policial, adequados aos direitos humanos; encerramento da denominação

“resistência seguida de morte”; reabertura das investigações das mortes do Pq. Bristol;

criação de um banco de dados nacional e público onde se registre os delitos praticados por

membros das forças de segurança; e o efetivo controle da atividade policial.

III. O INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA.

A Constituição Federal de 88, em seu artigo 109, § 5º, prevê dois requisitos para

a suscitação do incidente de deslocamento de competência: (1) hipótese de grave violação de

direitos humanos e (2) o intuito de efetivar obrigações decorrentes de tratados internacionais

dos quais o Brasil seja parte.

Além deles, o E. Superior Tribunal de Justiça reconheceu, em todos os

julgamentos de Incidente de Deslocamento de Competência, a necessidade de um terceiro elemento:

(3) a subsidiariedade, isto é, quando os órgãos do Estado-membro não forem capazes de

tomar as devidas providências e diligências no caso.

A seguir, demonstraremos como a chacina do Pq. Bristol atende

plenamente às três condições para o deferimento do incidente de deslocamento de

competência como, aliás, já reconheceu a Procuradoria-Geral da República.

19

1. Grave Violação de Direitos Humanos

Propositalmente, a EC nº 45/2004 não introduziu na Constituição um rol

taxativo de “graves violações de direitos humanos”. Em primeiro lugar, porque o incidente

de deslocamento de competência é vinculado diretamente a tratados internacionais dos quais

o Brasil faça parte, dependendo, portanto, de positivações e entendimentos externos sobre

o assunto. Em segundo lugar, porque o tema é elástico o suficiente para ser verificado nas

mais diversas situações, exigindo uma interpretação sistemática da Constituição Federal face

ao caso concreto. Partindo desses dois pontos, e com a colaboração de doutrina e

jurisprudência, foi criada uma forma eficiente de se demonstrar inequivocamente ocorrências

de “graves violações de direitos humanos”.

Da perspectiva internacional, a expressão “graves violações de direitos

humanos” surge da Resolução 1503 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas53,

que a entende como “um padrão consistente de violações flagrantes e seguramente

comprovadas de direitos humanos e liberdades fundamentais”. Logo, para além de graves

violações explicitadas no rol das normas consuetudinárias internacionais, há também outras

possibilidades de violações de direitos humanos serem consideradas graves. Igualmente,

Louis Henkin contribui para a definição de “gross violations” afirmando que “uma violação é

grave se é particularmente chocante pela importância do direito ou pela gravidade da

violação”.54

Nesse ponto, não há dúvidas de que o presente caso trata de uma grave violação

aos direitos humanos. Ente os dias 12 e 21 de maio de 2006 foram mortas no estado de São

Paulo um total de 564 pessoas e um considerável número delas foi executado sumariamente

por grupos de extermínio dos quais participavam agentes do Estado – como atestam vários

relatórios, especialmente o apresentado pelo Relator Especial sobre Execuções Sumárias,

Arbitrárias e Ilegais da ONU, Dr. Philip Alston (Relatório A/HRC/11/2/Add.2) e os

relatórios São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de

53 HENKIN, Louis, International law – cases and materials, HENKIN, DAMROSCH, PUGH, SCHACHTER e

SMIT, Fourth Edition, West Group, St. Paul, 2001.

54 HENKIN, ob. cit, p. 604.

20

2006 55 e Análise dos Impactos dos Ataques do PCC em São Paulo em Maio de 2006 56.

Não obstante as graves violações de direitos humanos mencionadas, as

observações do Relator Especial da ONU mostram outra grave violação decorrente da

omissão dos órgãos policiais e judiciários. Ao deixar de proceder com as diligências devidas,

ignorando linhas de investigação e não levando em consideração o contexto no qual os

crimes ocorreram, foi violado o direito à proteção judicial, isto é, o direito de ver conduzida

uma investigação verdadeira e imparcial destinada à elucidação dos fatos e à

responsabilização dos autores.

Essa violação também é percebida pela Procuradoria-Geral da República, que na

peça inicial afirma:

[...] o arquivamento em si da investigação configura violação do dever estatal

de adequada e eficiente investigação, visto que a apuração pode ser acoimada

de insuficiente, por sua fragilidade, por não ter considerado o contexto em

que produzidos os fatos, por não ter ouvido os policiais militares em atuação

na região, por não se ter preocupado com a oitiva de testemunhas em linha

de investigação razoável.57

O Ilmo. Ministro JORGE MUSSI, Relator do IDC nº 3, inclusive, se

posicionou a favor do deslocamento de casos que, reunidas as demais condições,

tenham ficado, como aqui, à deriva da persecução penal.

A chacina ocorrida no Parque Bristol também é uma grave violação de direitos

humanos da perspectiva jurisprudencial elaborada pelo próprio STJ. Observando o

magistério de Pedro Lenza, o Min. JORGE MUSSI, ainda no IDC nº 3, afirmou que

tanto a tortura quanto o homicídio praticado por grupos de extermínio são exemplos

de espécies delitivas que ensejam a federalização. No mesmo sentido se pronunciou a

55 Delgado, Fernando R., Raquel Dodge & Sandra Carvalho. "São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006", Harvard Law School International Human Rights Clinic & Justica Global (2011).

56 CANO, I.. Análise dos Impactos dos Ataques do PCC em São Paulo em Maio de 2006. São Paulo: Conectas, 2009 (Relatório de Pesquisa).

57 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fl. 44.

21

Ministra LAURITA VAZ, Relatora do IDC nº 2:

Esse tipo de assassinato, pelas circunstâncias e motivação até aqui reveladas,

sem dúvida, expõe uma lesão que extrapola os limites de um crime de

homicídio ordinário, na medida em que fere, além do precioso bem da

vida, a própria base do Estado, que é desafiado por grupos de

criminosos que chamam para si as prerrogativas exclusivas dos órgãos e entes

públicos, abalando sobremaneira a ordem social. [...] E pior: há fundadas

notícias, que, evidentemente, precisam ser apuradas, de envolvimento de

autoridades públicas, o que pretensamente tem facilitado a perpetração de

crimes na região.

(Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 2/DF (2009/0121262-6), e-STJ Fl. 185)

Com estes elementos: (i) violação do direito à vida; (ii) atuação de grupos de

extermínio; (iii) fortes indícios do envolvimento policial nos crimes; (iv) persecução penal

desamparada; (v) e ausência de responsabilização, permitindo uma cultura da impunidade,

configura-se, por completo, uma grave violação de direitos humanos, na forma e alcance

do §5º do artigo 109 da Carta Magna.

2. Efetivar obrigações internacionais de Direitos Humanos

O Brasil é subscritor de vários tratados internacionais de direitos humanos, a

maioria ratificada após a Constituição Federal de 1988. Entre os compromissos assumidos,

o Brasil reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – cujas

decisões obrigam o Estado brasileiro58 – para julgamento de violações aos direitos humanos

ocorridas em nosso país, que tenham permanecido impunes, bem como aderiu ao Tribunal

Penal Internacional para o julgamento de crimes contra a humanidade.

As reprimendas internacionais contra a União estão condicionadas ao insucesso

dos mecanismos internos de proteção aos direitos humanos, englobando nisso a

responsabilização daqueles que cometeram graves violações. Logo, não só a ocorrência dos

delitos determina a censura internacional, mas também a falta ou a insuficiente

58 Decreto 4.463/2002.

22

repressão a essa espécie de violação.

Apesar de assumir vários compromissos em direitos humanos, o Brasil aparenta

encontrar imensa dificuldade em efetivá-los, fazendo com que seja personagem frequente

nos tribunais internacionais, especialmente frente à Comissão e a Corte Interamericanas de

Direitos Humanos. São casos em que a justiça estadual falhou, não oferecendo devidamente

a prestação jurisdicional, expondo o Brasil ao crivo da comunidade internacional, e que

poderiam ter sido resolvidos no âmbito interno a partir do deslocamento de competência de

forma subsidiária à justiça federal.

As mortes discutidas nesta ação e a ineficácia do Estado em identificar e

responsabilizar os responsáveis configuram mais uma situação da qual podem advir

repreensões das cortes internacionais. Foi violada uma série de dispositivos internacionais de

direitos humanos, entre os quais, o artigo 6º, item 1, do Pacto Internacional de Direitos Civis

e Políticos (promulgado pelo Decreto nº 592/92), e os artigos 4 (direito à vida), 5 (direito à

integridade pessoal) e 25 (direito à proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos

Humanos (promulgada pelo Decreto nº 678/92).

Importante lembrar que há iminente risco de responsabilização internacional,

posto que a chacina do Parque Bristol se encontra sob apreciação da Comissão

Interamericana de Direitos Humanos. Essa situação já se mostra suficiente para preencher o

presente requisito, conforme entendimento firmado no julgamento do IDC nº 2. Diante de

caso semelhante, a Ministra Relatora LAURITA VAZ reconheceu o direito da União,

representada aqui pelo Procurador-Geral da República, de se valer do incidente de

deslocamento de competência para assegurar a observância de princípios constitucionais,

ferramenta menos drástica que a intervenção federal prevista no art. 34 da Constituição. Sobre

o tema, afirma Pedro Lenza59:

Nos termos do art. 21, I, a União é quem se responsabiliza, em nome da

República Federativa do Brasil, pelas regras e preceitos fixados em tratados

internacionais. Assim, na hipótese de descumprimento e afronta a direitos

humanos no território brasileiro, a única e exclusiva responsável, no plano

59 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 8ª ed. rev. São Paulo: Método, 2005, pp. 497-498.

23

internacional, será a União, não podendo invocar a cláusula federativa, nem

mesmo "lavar as mãos" dizendo ser problema do Estado ou Município. Isto

não é aceito no âmbito internacional.

Ao fim, desde o IDC nº 1, de relatoria do Ministro ARNALDO ESTEVES DE

LIMA, o Superior Tribunal de Justiça manifesta o entendimento de que basta ameaça real ao

cumprimento das obrigações internacionais para ser preenchido esse requisito – ao mesmo

tempo em que demonstraria a adequação do caso ao princípio da proporcionalidade.

3. Da Incapacidade do Estado de São Paulo na resolução do caso

O terceiro requisito, por não estar previsto em norma, muitas vezes é alvo de

razoável controvérsia. E se aproveitando dessa liquidez conceitual, ocasionalmente, surgem

proposições retóricas que tentam enevoar o caso e obstar o deslocamento de competência.

Entretanto, observando-se os julgados anteriores do STJ e da Corte

Interamericana de Direitos Humanos, podemos qualificar a discussão o suficiente para evitar

tais embustes e manter o foco em seu cerne: verificar se houve uma resposta estatal

adequada à grave violação de direitos humanos. E uma resposta “adequada” nesses

casos é simples: trata-se daquela que intenta de todas as maneiras resolver o ocorrido,

reforçando, em cada ato, seu compromisso com valores constitucionais, garantias

fundamentais e os próprios direitos humanos. A partir disso, podemos concluir que uma

resposta adequada não trata com descaso mais de 500 homicídios evidentemente

relacionados e não deixa de lado perícias e investigações essenciais para solucioná-los.

Essa é a lente que deve guiar a análise da conduta do Estado frente as graves

violações de direitos humanos, adotada igualmente pelo STJ, como veremos agora.

No IDC nº 1, o Ministro Relator ARNALDO ESTEVES DE LIMA recordou

que o incidente de deslocamento de competência foi criado e inserido na Constituição em virtude da

famigerada ineficácia do poder público em resolver devidamente as graves violações de

direitos humanos. O Ministro também lembra que a incapacidade do Estado-membro – ou

de suas instituições e autoridades – pode se manifestar de várias formas, como inércia,

24

negligência, descaso, desinteresse ou ausência de vontade política em levar a cabo a

apuração e o julgamento dos envolvidos. No mesmo processo, o Ministro JOSÉ

ARNALDO DA FONSECA complementa com seu voto que “Se as instituições do Estado

federado se revelarem desidiosas, omissas, lenientes para a proteção dos direitos

humanos, tem cabimento, em tese, a federalização”.

O terceiro requisito também é discutido sabiamente no IDC nº 2. Em seu voto,

a Ministra Relatora LAURITA VAZ reconheceu a possibilidade de haver “deficiência da

atuação das autoridades na consecução de suas atividades institucionais, até mesmo para

averiguar e reprimir eventuais desvios de conduta dentro dos próprios órgãos”, posto

que, naquele caso, após anos de investigação não se conseguiu levantar provas

suficientes para uma adequada instrução processual.

Em seguida, o ilustre Min. CELSO LIMONGI saudou o julgado anterior e

afirmou ser possível o deslocamento de competência quando os órgãos do Estado-membro

atuam com “descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições

pessoais ou materiais etc. em levar a cabo a apuração e julgamento dos envolvidos”. E

ao final, O julgamento se encerra com a manifestação do Ministro HAROLDO

RODRIGUES, consentindo que “A Federalização é cabível, portanto, quando as

instituições do Estado se omitirem na proteção de direitos humanos e na repressão

aos respectivos criminosos”, visualizando naquele caso que “o Estado não tem conseguido

apresentar uma resposta efetiva no combate aos grupos de extermínio na região, que atuam

há mais de dez anos”.

No pedido de deslocamento posterior, o IDC nº 3, o Ministro Relator JORGE

MUSSI reconheceu no caso concreto que “As investigações foram insuficientes para que

pudesse ter sido oferecida uma denúncia, caracterizando incapacidade, ineficácia,

omissão e principalmente inércia”, demonstrando, sem deixar dúvidas, a “incapacidade

das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas às ocorrências de grave violação aos

direitos humanos”. Naquele caso, o ilustre Ministro também notou que não foi oferecida

denúncia e que as investigações se encerraram com várias diligências a serem

realizadas. Em suas palavras:

25

Mais uma vez nos deparamos com a negação das funções primárias do Estado

Democrático de Direito, na medida em que, à vista da possibilidade concreta

de vulneração ao direito à vida patrocinada por agentes do próprio Estado

contra cidadão, os órgãos competentes não conseguem minimamente

empregar os instrumentos legais para apuração da responsabilidade dos

pretensos autores de delitos de tortura e homicídio.60

E no último incidente de deslocamento de competência julgado pelo STJ, o IDC

nº 5, o Ministro Relator ROGERIO SCHIETTI CRUZ sedimenta todo o histórico

jurisprudencial, expondo que o deferimento de um IDC envolve uma atuação negligente,

desidiosa, descuidada ou excessivamente morosa da Justiça Estadual. Observando o

caso concreto, o Min. SCHIETTI constata que: não fora ofertada nenhuma denúncia;

que não havia suspeitos; que várias diligências imprescindíveis deixaram de ser

adotadas; que depoimentos não foram confrontados e que sequer fora identificado o

veículo usado no crime. Tais fatos bastaram para demonstrar ao Ministro “a falta de

empenho e o descomprometimento do Estado de Pernambuco, por algumas de suas

autoridades constituídas, na busca da verdade e da responsabilização dos culpados”.

Partindo dos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça, vemos que o

terceiro requisito do Incidente de Deslocamento de Competência se satisfaz quando:

1) For demonstrado que houve, por parte do Estado-membro, inércia,

negligência, descaso, descuido, desinteresse ou ausência de vontade

política em solucionar e prosseguir com as investigações;

2) Faltarem condições pessoais ou materiais para apurar os crimes;

3) As instituições responsáveis pela apuração forem desidiosas, omissas,

lenientes ou se furtarem na proteção de direitos humanos e na repressão

aos respectivos criminosos;

4) Houver demora excessiva na resposta do Estado;

5) Ou, se após anos de investigação, não se levantar provas suficientes para

instrução processual, caracterizando, inevitavelmente, a incapacidade,

ineficácia, omissão e principalmente inércia do Estado-membro.

60 Superior Tribunal de Justiça. IDC nº 3/GO (2013/0138069-0), Fl. 47. DJe: 02/02/2015.

26

E todas as observações feitas pelo STJ a respeito deste último requisito

encontram respaldo no entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte

IDH). Ela também condena inquéritos e ações policiais produzidos como meros expedientes

pro forma, que ao final perpetuarão a impunidade. Para a Corte IDH, as investigações devem

ser desenvolvidas por todos os meios legais para determinar a verdade e levar os envolvidos

a um processo e eventual punição; procedimentos conduzidos de forma falha ou

deficiente, sem a real intenção de esclarecer os fatos e punir os culpados, também

configuram graves violações de direitos humanos:

Em suma, qualquer deficiência ou erro na investigação que afete a

possibilidade de determinar a causa da morte ou de identificar os verdadeiros

autores ou mandantes de um crime constituem uma falha no cumprimento da

obrigação de garantir o direito à vida.61

Esta Corte já indicou que o direito de acesso à justiça deve assegurar o direito

de todas as supostas vítimas, ou seus familiares, a que sejam adotadas todas

as medidas necessárias para que, em um tempo razoável, seja determinada a

verdade dos fatos e os eventuais responsáveis sejam punidos.62

Ao implementar ou tolerar atos voltados à perpetração de execuções

extrajudiciais ou ao falhar na investigação ou punição daqueles responsáveis,

o Estado viola a obrigação de respeitar e garantir o pleno e livre exercício dos

direitos das supostas vítimas ou seus familiares como reconhecidos na

Convenção [Americana de Direitos Humanos]. Ademais, essas violações

impedem que a sociedade saiba a verdade dos fatos, encorajando a repetição

crônica de violações de direitos humanos e perpetuando a total

vulnerabilidade das vítimas e seus familiares. A investigação desses eventos

deve ser conduzida usando todos os meios legais disponíveis para determinar

a verdade do que ocorreu e para buscar, capturar, processar e condenar todos

61 Caso Montero-Aranguren et al. (Centro de Detenção de Catia) v. Venezuela. Julgamento de 5 de julho de 2006. (Preliminares, mérito, reparação e custas), parágrafo 83. Tradução livre do original em inglês. No mesmo sentido as decisões dos casos Zambrano Vélez (parágrafo 90); Mapiripán (parágrafo 219); Pueblo Bello (parágrafo 144) e Baldeón Garcia (parágrafo 97).

62 Caso Massacre Rochela v. Colômbia. Julgamento de 11 de maio de 2007 (Mérito, reparação e custas), parágrafo 146. Tradução livre do original em inglês. No mesmo sentido as decisões dos casos Vélez (parágrafo 115); Bulacio (parágrafo 114) e Miguel Castro (parágrafo 382).

27

os autores materiais e imateriais, especialmente quando agentes do Estado

estão ou possam estar envolvidos.63

Em particular, já que o pleno gozo do direito à vida é uma condição prévia

para o exercício de todos os outros direitos, a obrigação de investigar qualquer

violação desse direito é uma condição para que ele seja garantido

efetivamente. Portanto, em casos de execuções sumárias,

desaparecimentos forçados e outras graves violações de direitos

humanos, o Estado tem a obrigação de iniciar, ex officio e

imediatamente, uma investigação genuína, imparcial e efetiva, que não

seja conduzida como uma mera formalidade predestinada a ser

ineficaz. Essa investigação deve ser desenvolvida com todos os meios legais

disponíveis com o objetivo de determinar a verdade, buscar, capturar,

processar e punir os mandantes e autores dos fatos, especialmente quando

agentes do Estado estão ou possam estar envolvidos.64

Ademais, em tais casos, é especialmente importante que a autoridade

competente adote todas as medidas razoáveis para garantir o material

probatório necessário a uma investigação e que essa autoridade seja

independente, tanto de jure como de facto, dos oficiais envolvidos nos fatos.

Isso requer não apenas uma independência hierárquica ou institucional, mas

também uma independência real.65

Todas as facetas do terceiro requisito (a ausência de uma resposta adequada do

Estado à grave violação de direitos humanos), analisadas à exaustão pela jurisprudência

nacional e internacional, podem ser sobejamente encontradas na chacina do Parque Bristol.

Vejamos detidamente.

63 Idem, parágrafo 148. No mesmo sentido as decisões dos casos Montero-Aranguren et al (Detention Center of Catia) (parágrafo 81); Pueblo Bello Massacre (parágrafo 143) e Miguel Castro-Castro Prison (parágrafo 256).

64 Caso Massacre do Pueblo Bello v. Colômbia. Julgamento de 31 de janeiro de 2006 (Mérito, reparação e custas), parágrafo 143. Tradução livre do original em inglês. No mesmo sentido as decisões dos casos Zambrano Vélez (parágrafo 120); Miguel Castro-Castro Prison (parágrafo 255); Ximenes Lopes (parágrafo 148); Goiburu (parágrafo 117); Villagrán Morales (parágrafo 227); Gordinez-Cruz (parágrafo 188), Baldeón Garcia (parágrafo 94) e Moiwana Community (parágrafo 203).

65 Caso Zambrano Vélez et al. v. Equador. Julgamento de 4 de julho de 2007 (Mérito, reparação e custas), parágrafo 122. Tradução livre do original em inglês.

28

3.1) Falhas e omissões do Estado na apuração da chacina do Parque Bristol

Salta aos olhos que as mortes do Pq. Bristol não foram devidamente

investigadas. O inquérito policial limitou-se a poucas diligências – como a oitiva de

familiares e alguns ofícios que não tiveram continuidade –, deixando muitas outras em aberto.

Como exemplo, mesmo tendo sido registradas, apenas naquele dia, 115 ocorrências de morte

por arma de fogo, com um a cada cinco óbitos causado por grupos de extermínio, as

investigações trataram a chacina como fato isolado, abstendo-se de cruzar informações

a respeito de fatos, veículos, armas utilizadas, localização anatômica dos ferimentos ou

confronto balístico dos projéteis recuperados nos locais. Não houve qualquer tentativa de

relacionar ou comparar as mortes dos jovens de Bristol com os demais homicídios do

período todo. Também chama a atenção a ausência de exames detalhados sobre os mais de

vinte projéteis encontrados pela perícia: nenhum dos itens recolhidos foi comparado

com o armamento utilizado pela polícia e em nenhum deles foi feita uma busca por

impressões digitais.

Posteriormente, na morte de Fernando Elza – até então sobrevivente da chacina,

ou seja, tratou-se de “queima de arquivo” –, outra vez as investigações foram conduzidas

como se o homicídio fosse isolado e destacado de qualquer contexto. Não foram sobrepostas

as informações desse homicídio com as decorrentes do primeiro ataque sofrido pela vítima,

em maio de 2006, limitando-se o fato a uma breve menção no Relatório Final do Inquérito.

Os projéteis recolhidos do segundo ataque, que vitimou Fernando Elza, não foram nem

comparados com os apanhados da chacina. Ignorou-se a busca por agentes, método de

execução, tipo de armamento ou qualquer outro elemento semelhante. Ou seja, não se

procedeu qualquer apuração. O local do ataque a Fernando Elza sequer chegou a ser

periciado pelas autoridades (!!!), já que os peritos apenas conferiram o local da batida do

automóvel que o levava ao hospital.

Retornando à chacina de maio de 2006, outro relevante ponto desconsiderado

pelas investigações foi a ação dos Policiais Militares que prontamente chegaram ao

local, desnaturaram a cena do crime e ocultaram evidências mediante o recolhimento

de cartuchos e projéteis que nunca foram apresentados às autoridades. Essa maneira de agir

dos Policiais se assemelha muito ao modus operandi das chacinas praticadas por agentes de

29

públicos de segurança, descrito no capítulo anterior, o que levanta a dúvida: os policiais que

atenderam a ocorrência chegaram a ser comunicados do crime pela central? À época, mesmo

cientes dos fatos, tanto a Polícia Civil quanto o MP-SP desprezaram o ocorrido.

Questionado pelo Procurador-Geral da República no presente IDC, o Ministério Público

estadual apresentou uma resposta desconexa, enviesando a discussão para temas diferentes:

ela não explica por que os projéteis recolhidos nunca foram apresentados e nem

explica a ausência dos depoimentos destes policiais nos autos da investigação – ainda

que fosse para lhes proporcionar o direito de se defenderem das acusações.

Também se questiona: se, em Santos, como informado pela manifestação do

MP-SP, foi possível triangular a posição de viatura da Polícia Militar nas proximidades de

uma chacina praticada durante os crimes de maio de 2006 – fato que levou a se descobrir o

envolvimento dos policiais naquele crime –, por que razão não se verificou o local das

viaturas que atenderam a ocorrência do Parque Bristol, na hora do ataque? Se realizado o

mesmo procedimento, poder-se-ia, então, conferir a validade da hipótese levantada pelos

moradores locais: que os policiais estariam à espreita do local, apenas esperando a execução

do crime para ocultar evidências.

Ainda sobre a investigação da chacina, outra negligência visível é o abandono

das buscas pelo veículo utilizado no crime. As autoridades foram informadas que um carro

idêntico ao usado na chacina havia sido visto no Batalhão da Polícia Militar e iniciaram a

busca por policiais que possuíssem veículo semelhante. Após alguns ofícios encaminhados

ao Comando da corporação, soube-se que ao menos quatro policiais militares eram

proprietários de veículos GM/Vectra da cor verde escura. Contudo, nesse momento, cessou-

se qualquer apuração no sentido de identificar o veículo usado no crime. Não se colheu o

depoimento dos policiais, não se periciou os veículos e não se apurou nenhuma outra linha

de investigação.

30

Aqui se indaga a exclusão precoce da hipótese de envolvimento de agentes

de segurança pública. Somando-se a alta taxa de letalidade policial na cidade, os indícios

trazidos pelas pesquisas e relatórios dos crimes de maio de 2006 e elementos próprios do

caso, fica evidente que deveria ter havido uma sólida investigação quanto as suspeitas de

participação da polícia nas mortes, o que não ocorreu. Na prática, não houve investigação,

apenas se produziu relatórios protocolares, minimamente necessários para o arquivamento

do caso. Ainda que não se deva subverter o princípio da presunção de inocência,

principalmente na atuação policial, também não devemos lançar olhares ingênuos que se

furtem dos fatos acima apresentados. Há dúvida razoável que justificaria uma linha de

investigação sobre a participação policial.

3.2) Da omissão do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP)

A atuação do MP-SP, sob a luz dos critérios construídos pelo STJ, também

apresenta falhas que autorizam o deslocamento de competência. Porém, em princípio, antes

de avaliarmos o órgão pelos critérios jurisprudenciais, convém destacar a inobservância de

normativas próprias, ocorridas durante as investigações das mortes aqui discutidas.

O trabalho dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo é regulado pelo

Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo, que define as

incumbências e deveres do Promotor de Justiça em todos os âmbitos de sua atuação. À época

das investigações, vigorava aquele aprovado pelo Ato Normativo nº 168-PGJ-CGMP, de 21

de dezembro de 1998, com alterações dadas pelo Ato Normativo nº 236-PGJ-CGMP, de 20

de julho de 2000. Com base no manual e analisando a atuação do MP-SP sobre os homicídios

do Pq. Bristol, podemos constatar o não cumprimento das seguintes normas:

Art. 104 – O controle externo da atividade de Polícia Judiciária Civil e da

Polícia Militar será exercido pelos Promotores de Justiça, na forma dos Atos

próprios, sendo-lhes recomendado, em especial:

[...]

IV - exercer o controle da regularidade do inquérito policial;

V - receber representação ou petição de qualquer pessoa ou entidade, por

desrespeito, relacionado com o exercício da atividade policial, aos direitos

assegurados na Constituição Federal e na Constituição Estadual;

31

VIII - requisitar à autoridade competente a abertura de inquérito

policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorridos no exercício da

atividade Policial.

Art. 106 - O membro do Ministério Público que instaurar o procedimento

administrativo atentará aos seguintes fins:

III - a prevenção e a correção de irregularidades, ilegalidades ou abuso

de poder relacionados com a atividade de investigação criminal;

IV- a superação de falhas na produção da prova, inclusive técnica, para

fins de persecução penal.

O Ministério Público de São Paulo, responsável por garantir que as devidas

diligências sejam feitas durante uma investigação, não efetuou nenhum controle do inquérito

policial. No mesmo sentido, foi completamente infrutífero o esboço de investigação

suscitado pelo GECEP com o Procedimento Preparatório 02/06-GECEP, instaurado para

apurar, em teoria, excessos e violências policiais ocorridos entre 13 e 20 de maio.

Inicialmente, foram solicitadas às Polícias Civil e Militar cópias dos Boletins de

Ocorrência referentes as mortes ocorridas no período, bem como se solicitou ao IML cópias

dos laudos de exames de corpo delito das vítimas. Logo que os documentos foram recebidos,

o GECEP os encaminhou para a Assessoria de Gestão de Informações do MP-SP (AGI),

solicitando que fosse realizado o “cruzamento de informações”, visando identificar

similaridades e pistas, entre aquelas mortes, que apontassem para envolvimento de

agentes de segurança.

Entretanto, apesar da solicitação, não houve o cruzamento de

informações. O resultado foi tão-somente a montagem de uma lista de vítimas com dados

básicos – como nome, profissão e causa da morte – encaminhada a Promotores de Justiça

estranhos à investigação. Diante disso, em 29 de setembro de 2006, os promotores

designados do GECEP abandonaram o procedimento tendo em vista (i) a perda dos

elementos informativos, encaminhados à AGI sem que fossem conservadas cópias internas,

e (ii) uma eventual “afronta ao princípio institucional da unidade do Ministério Público”, em

razão do encaminhamento feito aos Promotores do Júri. Em 08 de fevereiro de 2007, sem

que qualquer apuração tivesse sido realizada, o referido procedimento foi encerrado.

32

Não houve cruzamento de dado e não houve supervisão alguma dos alegados

encaminhamentos, deixando um vazio de informações quanto as diligências promovidas (ou

não) pelos Promotores de Justiça. Além de não incidir especificamente sobre o caso em tela,

o Procedimento também não avançou nada em relação às mortes ocorridas em maio de 2006.

Além das incoerências de âmbito interno, e passando agora ao entendimento do

Superior Tribunal de Justiça sobre o terceiro requisito, vemos que na chacina do Pq. Bristol

as autoridades sequer foram capazes de levantar provas para uma instrução processual.

O próprio Ministério Público do Estado de São Paulo, nos presentes autos, reiterou diversas

vezes as dificuldades materiais para investigar o caso. Além da incapacidade material para

resolver o caso, contata-se aqui, como observou o Min. HAROLDO RODRIGUES no IDC

nº 2, a incapacidade das autoridades e do governo do estado em combater os grupos

de extermínio que, desde 2006, continuam atuando na cidade de São Paulo.66

Em terceiro lugar, também há o descaso, desinteresse e ausência de vontade

política do Ministério Público de São Paulo frente a chacina. No presente IDC, o MP-SP

diz que não há razoabilidade para se apreciar novamente o caso, afirmando que

“especialmente no âmbito penal, em que o transcurso do prazo apaga provas, fomenta a

prescrição e não raras vezes leva ao esquecimento dos crimes e à inutilidade das penas”67.

Ora, deixar de proceder investigações com base nas dificuldades materiais beira

a omissão quanto a função institucional do Ministério Público – por si só uma grave violação

de direitos humanos. E pior, alegar o “esquecimento dos crimes” como motivo para não os

investigar demonstra o desprezo pelo sofrimento diário dos familiares, que, diga-se, jamais

“esqueceram” os crimes e ainda esperam que a Justiça aponte os autores das execuções de

seus entes queridos.

66 Ver: Crimes de maio: 10 anos sem respostas - Conectas Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/45640-crimes-de-maio-10-anos-sem-respostas>. Acesso em: 17 ago. 2016.

67 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fl. 2409.

33

E encerrando qualquer interpretação divergente, lembramos que a

Constituição Federal de 88, em seu art. 5º, inciso XLIV, estabelece que constitui

crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares,

contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Defender a inutilidade das penas torna-se, como relatado pela ONU, um gesto

de anuência para com os assassinatos. E causa espanto que, linhas depois, na mesma

manifestação, o MP-SP defenda a manutenção de sua posição como titular exclusivo da

persecução penal no caso, alegando que “se alguma prova materialmente nova realmente

existisse a competência para eventual ação penal seria da Justiça Estadual, pois o Ministério

Público de São Paulo é o seu legítimo titular”. Ora, se abertamente se posiciona contra as

investigações, por que em momento seguinte deseja a responsabilidade exclusiva pela

condução delas?

Em verdade, as referidas alegações assemelham-se mais a uma peça de defesa

em ação criminal, opondo-se à responsabilização dos autores dos crimes. Há uma nítida

postura leniente e omissa do Estado-membro, que, prevista no julgamento do IDC nº 1,

também satisfaz aqui, mais uma vez, o terceiro requisito da federalização.

O desinteresse no caso também se revela quando o MP-SP escora o insucesso

das investigações na “falta” de informações prestadas pelas vítimas. O MP-SP alegou que “as

vítimas então sobreviventes, envolvidas no episódio criminoso, não forneceram dados

capazes de levar aos autores dos homicídios ou à identificação do veículo automotor por eles

utilizado”. Porém, investigações de crimes não podem se alicerçar exclusivamente sobre

dados fornecidos ou não pelas vítimas; caso contrário, nunca existiriam apurações nos crimes

sem sobreviventes.

Em segundo lugar, e mais importante, os sobreviventes auxiliaram sim as

investigações, através da descrição minuciosa do veículo utilizado pelos atiradores, um

automóvel GM/Vectra, de cor verde escura, sem as placas e ocupado por quatro pessoas.

34

Esboçou-se, inclusive, uma busca pelo referido veículo nos quadros da Polícia

Militar, que resultou na identificação de 4 veículos com as mesmas características. Seria

possível que um deles fosse o carro que levou os assassinos até o local. Mas, incrivelmente,

mesmo com a informação juntada ao inquérito, essa linha de investigação foi simplesmente

abandonada: os veículos encontrados não foram periciados, seus donos não foram ouvidos

e, por fim, não se prosseguiu com a busca para outros batalhões.

Em sua manifestação, o parquet paulista se furta à investigação do carro usado

na chacina, alegando que a PM paulista tem dezenas de milhares de agentes, o que tornaria

inviável a busca pelos proprietários do veículo, mas ignora que, anos atrás, hipóteses foram

levantadas, apenas não foram apuradas.

Como se vê, é inconteste que as investigações foram propositalmente tocadas

de modo burocrático, desinteressado e com o intuito claro de não identificar os verdadeiros

autores das mortes.

Outra alegação para se desobrigar da apuração, demonstrando sua ausência de

vontade, foi a de que não seria mais possível encontrar o veículo ou dele extrair evidências.

Todavia, tal conclusão só seria possível mediante exercício de futurologia, que, salvo engano,

não faz parte das habilidades dos promotores paulistas. Para se concluir que um veículo não

fornece evidências é necessário, antes, periciá-lo. Ademais, ainda que fosse impossível

recuperar provas do veículo utilizado no crime, restaria a possibilidade de se colher os

depoimentos daqueles que eram seus proprietários à época.

Por fim, o MP-SP alega a presunção de não envolvimento dos policiais como motivo

para não os investigar, o que merece três observações:

i) Diversamente do que induz o parquet, não se almeja a presunção de

culpa dos policiais, mas tão-somente uma investigação concreta

perante evidências de tamanha força;

35

ii) Em segundo lugar, como é sabido, a presunção de inocência é relativa

(iuris tantum), i. e., passível de contraditório. Logo, ela é inapta, por si

só, a obstar investigações, o meio legítimo para se confirmar ou

reverter a referida proteção;

iii) Em terceiro, como bem observou o Procurador-Geral da República

na exordial, à época dos crimes de maio de 2006, as autoridades já

sabiam do envolvimento de policiais militares em chacinas68.

Ao contrário da opinião (isolada) proferida pelo Procurador-Geral de Justiça,69

os fatos revelam ser crível, sim, o envolvimento de policiais com grupos de extermínio, como

se confirmou em dois crimes relatados anteriormente – apurados pelo Inquérito Policial

1.136/2006, conduzido no 39º DP da Capital, e pelo processo 125/10, da Vara do Júri da

comarca Santos/SP – e como atesta a Relatoria da ONU e os relatórios São Paulo sob Achaque:

Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006 70 e Análise dos Impactos dos

Ataques do PCC em São Paulo em Maio de 2006 71, documentos já citados na presente

manifestação.

Não houve persecução penal que apurasse essa grave violação de direitos

humanos. Assim, referenciando novamente o voto do Ministro JORGE MUSSI no IDC nº

3, o deslocamento de competência merece acolhida tendo em vista a marginalização judicial

que se sobrepôs ao caso.

68 A afirmação foi feita pelo então Direitor do DHPP, o senhor Domingos de Paula Neto, em entrevista realizada no dia 25 de outubro de 2006: “A maioria das chacinas em São Paulo são praticadas por Policiais Militares da ativa; foi este o comportamento no ano de 2005”. Ver: São Paulo sob achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006, Harvard Law School International Human Rights Clinic & Justica Global (2011), p. 100.

69 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fl. 2419.

70 Delgado, Fernando R., Raquel Dodge & Sandra Carvalho. "Sao Paulo sob Achaque: Corrupcao, Crime Organizado e Violencia Institucional em Maio de 2006", Harvard Law School International Human Rights Clinic & Justica Global (2011).

71 CANO, I.. Análise dos Impactos dos Ataques do PCC em São Paulo em Maio de 2006. São Paulo: Conectas, 2009 (Relatório de Pesquisa).

36

3.3) Da omissão do Poder Judiciário

É possível perceber, por último, outra omissão institucional com relação ao caso

do Parque Bristol: a leniência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que

descuidou da proteção aos direitos humanos quando autorizou prontamente o arquivamento

dos inquéritos.

Excetuadas as decisões atendendo pedidos de prazo formulados pela autoridade

policial, percebe-se que nos dois Inquéritos Policiais (IP nº 1.124/2006 – Parque Bristol e IP

nº 2.831/2006 – Fernando Elza), a atuação do TJSP limitou-se à determinação do

arquivamento dos Inquéritos por meio de decisões judiciais extremamente simples com base

nas manifestações do Ministério Público.

Em contrapartida, lembramos que o artigo 28 do Código de Processo Penal

assim dispõe:

Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia,

requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de

informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas,

fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este

oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para

oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o

juiz obrigado a atender.

O artigo 28 do CPP concede ao Juiz a prerrogativa de discordar do pedido de

arquivamento de inquérito policial formulado pelo Ministério Público, remetendo-o ao

Procurador-Geral de Justiça para nova manifestação. Porém, o que se observa nos dois

Inquéritos analisados no presente processo é a notória falta de interesse por parte do Poder

Judiciário na averiguação eficiente da autoria dos crimes. Se por um lado temos a ausência

de poderes investigatórios aos Juízes, como acertadamente define a Constituição Federal, por

outro, o Juiz tem o dever de agir com prudência e diligência, buscando da melhor forma

possível a verdade real dos fatos. Nesta lógica, veja-se o Código de Ética da Magistratura

Nacional:

37

Art. 24. O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e

decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após haver

meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponíveis, à luz

do Direito aplicável.

Nos dois inquéritos, as decisões de arquivamento proferidas pelas Juízas sequer

são fundamentadas. Em realidade, são manifestações idênticas proferidas por Juízas

diferentes, o que demonstra uma verdadeira padronização deste tipo de manifestação,

comprovando o tratamento meramente protocolar dispensado à essa grave violação de

direitos humanos.

Caso tivesse havido postura diligente por parte do TJSP, em consonância com

o dever funcional dos Magistrados, poder-se-ia ter questionado, no IP nº 1.124/2006, por

exemplo, a descontinuidade de investigação que buscava o veículo utilizado pelos autores do

crime (veículo GM/Vectra verde), como explicado anteriormente. Ou, ainda, uma

investigação conduzida isoladamente e que desconsiderou o contexto dos “crimes de maio”.

Já no IP nº 2.831/2006, poder-se-ia ter questionado a ausência de perícia policial no local em

que ocorreu o assassinato de Fernando Elza. Esses são alguns exemplos dentre diversos

outros pontos, melhor explorados nos parágrafos anteriores, que comprovam que os dois

casos eram hipóteses claras para uso da prerrogativa conferida pelo artigo 28 do CPP.

Em conclusão, evidente a omissão por parte do TJSP no que toca à eficiente

condução dos Inquéritos Policiais em análise. O Juiz, embora não investigue, tem o dever de

garantir a boa condução das investigações, e não apenas proferir decisões padronizadas e

carentes de fundamentação.

3.4) Considerações finais sobre as falhas do Estado

Apesar de demonstrada, de maneira inequívoca, a incapacidade dos órgãos

estaduais em responder adequadamente à grave violação de direitos humanos, ainda restam

algumas considerações a se fazer. Em sua manifestação no presente Incidente de

Deslocamento de Competência, o Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo

emitiu determinadas informações desencontradas que demandam reavaliação frente aos

fatos.

38

Sobre os “crimes de maio de 2006”, as poucas ações adotadas pelo MP-SP

tiveram um escopo genérico e superficial, não incidindo para a resolução específica do

caso aqui tratado. Foram atos meramente protocolares – cerca de meia dúzia de ofícios –,

“atuação” padrão que também bem esterilizou as investigações da chacina do Pq. Bristol.

A primeira informação equivocada é a respeito da criação do Grupo de Atuação

Especial de Controle Externo da Atividade Policial (GECEP). Ao contrário do que afirma o

Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, o Grupo não foi criado através do ato normativo

650/2010; na verdade, o GECEP foi criado pelo Ato Normativo MP-SP nº 324-

PGJ/CGMP/CPJ, de 29 de agosto de 200372, três anos antes dos crimes de maio de 2006.

O Ministério Público de São Paulo também afirmou ter “acompanhado” os

crimes de maio através da Procuradoria-Geral de Justiça e do Centro de Apoio Operacional Criminal

(CAO Criminal), com os protocolados nº 05/2009 e o nº 25/2010. Todavia, os referidos

procedimentos sequer averiguaram a chacina do Parque Bristol, consistindo,

basicamente, em respostas padronizadas a algumas solicitações. O Protocolado nº 05/2009

não apura nenhum fato; ele apenas cuida de um pedido de informações sobre os homicídios

de maio de 2006, feito pela ONG Justiça Global e pela Clínica Internacional de Direitos

Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Por sua vez, o Protocolado

nº 25/2010 corresponde a um ofício encaminhado pela Ouvidoria da Polícia do Estado de

São Paulo ao CAO Criminal, onde pede expressamente a reanálise de diversos procedimentos.

Mas, assim como outros pedidos de igual teor, tais como da Anistia Internacional, da Câmara

Municipal de São Paulo e do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana

(CONDEPE), o pedido da Ouvidoria da Polícia foi negado.

A justificativa do Coordenador do CAO Criminal (que coincidentemente, à

época, era o atual Procurador-Geral de Justiça, o sr. Gianpaolo Poggio Smanio) para o

indeferimento é escassa, alegando que os casos foram “arquivados por determinação do

Poder Judiciário”73 e que, assim, só poderiam ser reabertos com a presença de novas provas.

72 Este Ato foi posteriormente revogado pelo Ato Normativo nº 650/2010. À época das investigações, porém, vigia o Ato nº 324/2003.

73 Documento acostado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, e-STJ fls. 2814-2815

39

Importante ressaltar que o Ato Normativo MP-SP nº 409/2005 (Controle Externo da

Atividade da Polícia Judiciária) estabelece, em seu artigo 2º, algumas competências essenciais

aos promotores de justiça, especialmente em seus incisos IV e V. O então Coordenador do

CAO Criminal deixou de cumprir com a atribuição, já que, diante de um pedido fundamentado

de reanálise de casos e com indícios de omissão relacionadas às investigações penais, sequer

justificou sua negativa de modo satisfatório. Veja-se:

Art. 2º. O controle externo da atividade de polícia judiciária será exercido

pelos promotores de Justiça e materializado por meio de procedimentos

administrativos criminais e medidas judiciais de cunho preparatório, inerentes

à qualidade de destinatários dessa função, competindo-lhes, em especial:

(...)

IV - receber representação ou petição de qualquer pessoa ou entidade, por

desrespeito aos direitos assegurados na Constituição da República e na

Constituição do Estado de São Paulo, relacionados com o exercício da

atividade policial;

V - representar à autoridade competente para adoção de providências que

visem a sanar omissões ou prevenir ilegalidade ou abuso de poder

relacionados com a atividade de investigação penal. (Ato Normativo MP-SP

nº 409-PGJ/CPJ, de 04 de outubro de 2005)

Soma-se a essa lista o fato do parecer ter desconsiderado o entendimento do

Superior Tribunal de Justiça74 e tentado impor critérios processuais inexistentes para obstar

o presente pedido.

Já é pacificado pelo STJ que o Incidente de Deslocamento de Competência pode

ser suscitado após o arquivamento dos procedimentos investigatórios, sendo desnecessário

o pedido durante a tramitação destes. No IDC nº 3, idêntico apelo do parquet goiano foi

rejeitado pelo ilustre Min. Rel. JORGE MUSSI, que reconheceu a possibilidade de

deslocamento de competência apesar do arquivamento na esfera estadual. Longe do

alegado, intervir durante uma investigação ofenderia o trabalho das instituições locais, ainda

em busca da resolução do caso. O prudente, como nesse caso, seria suscitar o IDC somente

74 O Ministro Rogerio Schietti Cruz, em seu voto no IDC nº 5, diz: “[...] a ideia de excepcionalidade do incidente não pode ser de tal grandeza a ponto de criar requisitos por demais estritos que acabem por inviabilizar a própria utilização do instituto de deslocamento”.

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após visualizada a incapacidade do Estado-membro em solucionar a grave violação de

direitos humanos, conforme demanda o elemento de subsidiariedade do instrumento. Nesse

sentido se posicionou o Ministro SCHIETTI CRUZ quando, no IDC nº 5, afirmou que o

procedimento deve ser adotado de forma subsidiária, demandando a negligência da unidade

federativa.

E de igual modo devemos ignorar a exigência de prazo, feita pelo MP-SP, para a

realização do pedido, restrição inexistente na Constituição Federal ou na jurisprudência.

Também se equivoca o ilustre Procurador-Geral de Justiça ao interpretar o

Incidente de Deslocamento de Competência como um “recurso processual”. Na discussão

sobre a criação desse instrumento, na doutrina e em todos os julgamentos já realizados pelo

E. Superior Tribunal de Justiça, sempre se frisou a excepcionalidade do IDC, como uma

ultima ratio do Estado Brasileiro para investigar e reparar graves violações de direitos

humanos. O IDC é uma figura constitucional e excepcional; tratá-lo como um “recurso

processual” é uma tentativa de impor-lhe as condições e restrições de espécie ordinária e

infraconstitucional.

Ainda nessa imprópria tentativa de criar condições ao IDC, o MP-SP comparou

o instrumento constitucional a um “desarquivamento”, aplicando-lhe indevidamente o

Código de Processo Penal e exigindo-lhe como requisito a apresentação de prova nova. Essa

demanda mostra-se irracional considerando que o presente pedido visa transferir a

responsabilidade do caso para a esfera federal justamente para tanto: buscar novos elementos

que permitam ao Estado brasileiro dar o adequado tratamento a grave violação de direitos

humanos. As provas surgirão no decorrer da deslocada investigação, sendo desconexo

invocá-las antes que se transfira a competência.

Diante de tantos elementos, resta perfeitamente delineada a necessidade de se

deslocar a competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, bem como também fica

demonstrada a harmonia do caso com a jurisprudência construída por esta E. Corte.

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IV. PEDIDOS

Quem cometeu os crimes? Quantas pessoas foram responsáveis pelos delitos? Qual foi a conduta

dos envolvidos? Quais os nomes dos autores e partícipes? Estas questões, levantadas pelo Ministério

Público do Estado de São Paulo em sua manifestação (curiosamente, a entidade responsável

por respondê-las), também atormentam as famílias das vítimas – conforme suas

manifestações em anexo.

Para além destas perguntas, questionamos: qual seria o prejuízo causado

pelo deslocamento de competência desse caso? Qual seria o prejuízo para a

sociedade brasileira? Por que a ânsia de se enterrar definitivamente esse grave

episódio da história paulista e que restou incógnito?

Comprovou-se, fartamente, o atendimento de todos os requisitos para o

deslocamento de competência, embasando-os cientifica e juridicamente. Todos os seus

elementos foram analisados, descritos e enquadrados nos requisitos conforme os critérios

estabelecidos por este Egrégio Superior Tribunal de Justiça.

Diante de todo o exposto, requer-se respeitosamente:

1) Seja a autora admitida como amicus curiae, ou,

subsidiariamente, caso seja indeferido o pedido, que a

presente manifestação seja admitida como Memoriais;

2) Seja conferia a possibilidade de sustentação oral dos

argumentos de amicus curiae em plenário, e que os

advogados desta sejam intimados previamente para a

realização do ato; e

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3) No mérito, seja deferido o presente Incidente de

Deslocamento de Competência para a Justiça Federal

dos inquéritos policiais nº 1.124/06 (052.06.002082-4) e

2.831/06 do Departamento de Homicídios e Proteção à

Pessoa de São Paulo.

Nesses termos,

Pede deferimento.

De São Paulo/SP para Brasília/DF, em 7 de agosto de 2017.

João Paulo de Godoy

OAB/SP 365.922

Henrique H. Apolinario de

Souza

OAB/SP 388.267

Rafael Carlsson Custódio

OAB/SP 262.284

Marcos Roberto Fuchs

OAB/SP 101.663