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EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS NO CENÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM MATO GROSSO Este painel apresenta relatos de experiências didáticas e de reflexão sobre a prática docente no contexto da Educação Profissional e Tecnológica de nível médio. Evidencia as ações realizadas na rede de Escolas Técnicas Estaduais de Mato Grosso, a qual é mantida pela Secretaria de Estado, Ciência, Tecnologia e Inovação SECITECI/MT. Destaca os trabalhos de pesquisadores que integram o Núcleo de Estudos e Pesquisa, Interdisciplinar e Aplicada em Educação Profissional e Tecnológica do estado de Mato Grosso (NEPIA/EPT/SECITECI-MT), envolvendo alunos, professores e comunidade. Aborda, inicialmente, os resultados de uma pesquisa abrangendo os docentes em seu agir cotidiano e suas relações com os instrumentos materiais e simbólicos que permeiam sua prática em sala de aula. Também, apresenta um trabalho sobre os aspectos da prática profissional do Curso Técnico Profissionalizante de Nível Médio em Agropecuária, realizado no Centro de Treinamento Sindical Rural (CENTRESIR) em Várzea Grande - MT em parceria entre a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Mato Grosso (FETAGRI-MT) e a SECITECI-MT, via Escola Técnica Estadual de Educação Profissional e Tecnológica de Diamantino; e uma terceira pesquisa destacando as experiências pedagógicas na abordagem da temática racial como disciplina dos cursos técnicos e atividade de extensão, pelo viés cultural. Palavras-chave: Educação Profissional. Didática. Interdisciplinaridade. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 6954 ISSN 2177-336X

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EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS NO CENÁRIO DA EDUCAÇÃO

PROFISSIONAL EM MATO GROSSO

Este painel apresenta relatos de experiências didáticas e de reflexão sobre a prática

docente no contexto da Educação Profissional e Tecnológica de nível médio. Evidencia

as ações realizadas na rede de Escolas Técnicas Estaduais de Mato Grosso, a qual é

mantida pela Secretaria de Estado, Ciência, Tecnologia e Inovação – SECITECI/MT.

Destaca os trabalhos de pesquisadores que integram o Núcleo de Estudos e Pesquisa,

Interdisciplinar e Aplicada em Educação Profissional e Tecnológica do estado de Mato

Grosso (NEPIA/EPT/SECITECI-MT), envolvendo alunos, professores e comunidade.

Aborda, inicialmente, os resultados de uma pesquisa abrangendo os docentes em seu

agir cotidiano e suas relações com os instrumentos materiais e simbólicos que permeiam

sua prática em sala de aula. Também, apresenta um trabalho sobre os aspectos da prática

profissional do Curso Técnico Profissionalizante de Nível Médio em Agropecuária,

realizado no Centro de Treinamento Sindical Rural (CENTRESIR) em Várzea Grande -

MT em parceria entre a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Mato

Grosso (FETAGRI-MT) e a SECITECI-MT, via Escola Técnica Estadual de Educação

Profissional e Tecnológica de Diamantino; e uma terceira pesquisa destacando as

experiências pedagógicas na abordagem da temática racial como disciplina dos cursos

técnicos e atividade de extensão, pelo viés cultural.

Palavras-chave: Educação Profissional. Didática. Interdisciplinaridade.

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CONSTRUINDO IDENTIDADES SE “SER NEGRO” E SUPERANDO

RACISMO NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL PELO VIÉS CULTURAL

Autora:

Maria Luiza TROIAN

Escola Técnica Estadual de Sinop – SECITEC/MT

Coautora:

Gislaine Dias Florentino FERREIRA

Escola Técnica Estadual de Sinop – SECITEC/MT

A partir da Lei 10.639/03 que estabelece a inclusão no currículo escolar da história e

cultura afrobrasileira, surge a questão: como trabalhar o tema provocando a construção

de conhecimentos, com mudanças na afirmação e construção de identidades de ser

negro e a superação de comportamentos racistas. Neste sentido, esta pesquisa buscou

avaliar duas experiências pedagógicas, uma desenvolvida durante a disciplina de

‘Educação Afrobrasileira’ com os alunos dos cursos técnicos da Escola Técnica

Estadual, outra como atividade de extensão com alunos de uma escola do campo. Com

uma abordagem qualitativa, utilizou para coleta de dados à observação participante,

questionários e entrevista semiestruturada com os alunos envolvidos. As leituras que

fundamentaram os trabalhos consideraram autores que: no processo educativo considera

as relações humanas, o aluno como sujeito do processo, formação humana multilateral e

emancipatória (Freire); que trazem a história de lutas dos negros no Brasil (Gennari), o

racismo na constituição da sociedade brasileira (Schwarcz; Guimarães) e a cultura

afrobrasileira (Munanga; Gomes). Inicialmente os alunos rejeitaram discutir a temática

racial, mas com o encaminhamento das atividades, a participação ganha um perfil em

que os mesmos querem falar sobre o tema fazendo a leitura da sociedade, dos aspectos

culturais afrobrasileiros que estão presentes na nossa linguagem, culinária, danças,

musicas, cuidados e prevenção da saúde, agricultura, artesanato, religião. Refletem

sobre as histórias de vida e a organização da sociedade com o racismo e desigualdade

racial. Percebe-se que a pedagogia utilizada e os conhecimentos construídos provocam

mudanças de comportamentos, quando há a assunção dos alunos, assumindo-se como

ser social e histórico, pensante e transformador. Relatam identificar ações de racismo

que antes não percebiam, sua atual indignação e mobilização por coibir os tratamentos

racistas no seu meio social. Também, a afirmação de sua identidade de “ser negro”,

valorizando os aspectos físicos e culturais de sua origem.

Palavras-chave: Educação profissional. Etnicoracial. Cultural.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho discorre sobre uma pesquisa desenvolvida no cenário da Educação

Profissional na região do médio norte do Mato Grosso, município de Sinop, que avaliou

o resultado do trabalho pedagógico na implementação da Lei 10.639/03 que estabelece a

inclusão no currículo escolar da história e cultura afrobrasileira.

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A proposta do estudo foi avaliar o trabalho pedagógico da temática racial em

duas situações e espaços distintos, que teve como objetivo a construção de

conhecimentos e provocar mudanças na afirmação e construção de identidades de ser

negro e a superação de comportamentos racistas. Uma desenvolvida durante a disciplina

de ‘Educação afrobrasileira’ com os alunos dos cursos técnicos da Escola Técnica

Estadual, outra, como atividade de extensão com alunos da escola do Estadual do

Campo Florestan Fernandes.

A pesquisa de abordagem qualitativa utilizou para a coleta de dados a

observação participante, aplicação de questionário e perguntas pontuais aos

participantes, desenvolvida durante o trabalho pedagógico dos professores

pesquisadores no ano de 2014 e 2015. Na Escola Técnica a pesquisa foi desenvolvida

pela professora da escola, que trabalhou a disciplina de vinte horas de ‘Educação

afrobrasileira’ nos cursos técnicos de Eletrotécnica, Administração, Informática e

Floresta, envolvendo sessenta alunos. A atividade de extensão foi coordenada pela

pedagoga da SECITEC, na oficina de “africanidades e cultura do campo”, com cento e

dez horas, envolvendo trinta alunos e três professores da escola do Campo.

2. DESENVOLVIMENTO

As duas experiências, ao trabalhar a temática racial, consideram que o racismo

ainda está presente nas relações sociais, definindo racismo como “sendo um corpo de

atitudes, preferências e gostos instruídos pela ideia de raça e de superioridade racial,

seja no plano moral, estético, físico ou intelectual” (GUIMARÃES, 2004, p. 17). E, raça

na perspectiva sociológica da palavra, como:

Uma construção histórica e social [...] uma das formas de identificar pessoas

[...]. É uma categoria classificatória que deve ser compreendida como uma

construção local, histórica e cultural, que tanto pertence à ordem das

representações sociais – assim como são as fantasias, mitos e ideologias –

como exerce influencia real no mundo, por meio da produção e reprodução

de identidades coletivas e de hierarquias sociais politicamente poderosas

(SCHWARCZ, 2012, p. 33-34).

A pesquisa mencionada por Schwarcz (2012, p. 31) mostra que “ninguém nega

que existe racismo no Brasil, mas sua prática é sempre atribuída a ‘outro’. Seja da parte

de quem age de maneira preconceituosa, seja daquela de quem sofre com o preconceito,

o difícil é admitir a discriminação e não o ato de discriminar.” Se apresenta como algo

externo às nossas ações e relações sociais, impessoal. Aqui, faz-se importante

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mencionar Freire, quando escreve sobre a ‘assunção’, que é o sujeito que assim se

assume, como ser social, histórico, reflexivo, participante e transformador. Lembra que,

“Não é possível à assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem

a disponibilidade para mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente

sujeito também” (FREIRE, 2004, p.46).

O cenário em que foi desenvolvida a pesquisa, região médio norte do Mato

Grosso, é uma região politicamente direcionada para o agronegócio, com um histórico

de exploração dos trabalhadores e de racismo. No processo de colonização, nos anos 70,

divulgava-se a ideia que esta era uma terra de progresso, por receber pessoas brancas e

sulistas (SOUZA, 2004). No entanto, o município de Sinop tem um percentual de 51%

de negros (IBGE de 2010); na Escola Técnica, nos cursos técnicos do ano de 2004 até

2008, 42% alunos matriculados se autodeclaram negros (TROIAN, 2011); e na Escola

do campo Florestan Fernandes, 72% das 120 pessoas pesquisadas, se autodeclaram

negras (PAULA, 2015). Pessoas que são ‘invisibilizadas’ no processo de

desenvolvimento da região, estão excluídas dos bens construídos neste processo, sem

valorização de suas culturas.

Neste sentido, as propostas pedagógicas para trabalhar a temática racial, nas duas

situações pesquisadas, consideraram que:

Para chegarmos a ter uma sensibilidade pedagógica para com os conteúdos

da docência, ou para novas didáticas ou para com os tempos de formação e

socialização, teremos que começar por termos sensibilidade humana para

com os educandos(as) como sujeitos sociais e culturais, éticos e cognitivos

(ARROYO, 2004, p.61).

Também, seguindo os objetivos que, além de construir novos conhecimentos

sobre o tema, o aluno faça a leitura da realidade em que vive, e “a percepção de que a

realidade pode ser mudada, na medida em que, no ‘hoje’ em que se está verificando o

antagonismo entre mudança e permanência, este antagonismo começa a se fazer um

desafio” (FREIRE, 2001, p. 47). Que a construção de conhecimentos provoque

indignações e combate ao racismo e contribua para afirmações de identidades de “ser

negro”.

Ainda, segundo Paulo Freire (2001), a ação cultural para a libertação se

caracteriza pelo diálogo do ato do conhecimento, problematizar a realidade e considerar

os saberes dos educandos. Então, as duas experiências pedagógicas pesquisadas partem

da tática de encaminhar os trabalhos em que os alunos sejam sujeitos deste processo,

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que possibilite assumirem o papel de sujeitos, que não se reduz a conhecimentos

referentes às informações apresentadas pelo professor, e sim, uma relação com o

mundo, com sua realidade individual e social.

Experiência pedagógica como atividade de extensão

Esta experiência pedagógica resultou do desenvolvimento da Oficina de

‘Africanidades e cultura do campo’, pertencente ao Projeto Educação Científica,

Agroecológica e Cultural do Campo (Novos Talentos/CAPES/UNEMAT-MT/Escola

Estadual Florestan Fernandes). A escola Florestan Fernandes está inserida em um

assentamento de reforma agrária, organizado pelo Movimento Sem Terra (MST).

A oficina foi desenvolvida em duas etapas com turmas distintas, a primeira com

60 horas e a segunda com 50 horas. Como uma atividade extraclasse os alunos da escola

é que escolheram fazer parte da oficina. A maioria dos alunos que fiz a primeira etapa

escolhe fazer a segunda, envolvendo aproximadamente 30 alunos e três professores. Os

encontros tinham uma carga horária de três a quatro horas e aconteciam em média duas

vezes por mês.

As atividades desenvolvidas envolveram:

Rodas de conversa - que aconteceram em diferentes momentos, em que os

alunos, no coletivo, relacionavam a temática com suas trajetórias de vida, aspecto

históricos, econômico e cultural de sua comunidade e de suas famílias. Foram os

momentos em que, os alunos perceberam-se como sujeitos do processo, e despertaram-

se para a ‘assunção’ que percebe parte da história dos negros no Brasil, dos quem

sofrem o racismo e de quem é racista.

Estudos da história e cultura – O livro Em busca da liberdade foi uma das bases

para os estudos desenvolvidos pelos alunos desta pesquisa. O autor escreve que o

passado é muito mais do que um momento distante, e sim, é um passo fundamental para

entender a realidade atual, identificarem-se neste processo sustentar a mobilização

individual e coletiva por igualdade de direitos e oportunidades. É uma abordagem

histórica dos negros no Brasil contada na perspectiva dos sujeitos, que organizados,

lutaram pela liberdade, com valorosos exemplos de produção, solidariedade e gestão

(GENNARI, 2008). Um grande envolvimento dos alunos foi conhecer, a partir da luta

dos negros, a organização dos quilombos no estado do Mato Grosso que compararam

com a realidade da comunidade escolar, a cultura afro-brasileira, história dos negros no

Brasil e a desigualdade racial.

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Outro livro utilizado como base para os estudos foi “para entender o negro no

Brasil de hoje”, elaborado “com respeito à dignidade humana, à igualdade de direitos, à

participação e corresponsabilidade pela vida social” (KABENGELE; GOMES, 2006,

p.5) faz uma abordagem cultural afro brasileira, suas religiões, danças, vestuários e

apresenta os homens e mulheres negos(as) que fizeram história.

Os alunos percebem e relataram que a história do Brasil tem muitas outras

informações sobre os negros no Brasil, e não somente sobre o período da escravidão e

abolição pela Princesa Isabel, que os mesmo relataram que foi o que aprenderam na

escola.

Lendas e contos africanos – Trabalhamos com literaturas escritas e filmes.

Ambos possibilitaram conhecer heróis, reinados, que não fazem parte das tradicionais

lendas e contos que conheceram na escola. Cito aqui os filmes: Kirikou e a Feiticeira e,

Kirikou e os bichos da floresta. Identificaram-se com o herói Kirikou, sua vida no

campo e com outras pessoas da comunidade, com suas constantes lutas pelo direito da

terra e condições para trabalhar e viver no campo. Foi um despertar para as

possibilidades que o assentamento tem enquanto organização econômica para suas

famílias, considerando suas riquezas ambientais e conhecimentos das pessoas. As

observações feitas pelos alunos foram debatidas, e envolveu a produção familiar,

descobrimento do artesanato em argila, respeito aos anciãos, preservação da natureza,

uso das ervas medicinais e a mulher no trabalho do campo. Os filmes foram os

provocadores da temática, que resultou no olhar para seu mundo, perceber riquezas de

cultura, como também, possibilidade de intervenção no mundo, nos espaços da escola,

da comunidade e da região.

Documentários – Quesito cor foi o provocador para conversarmos sobre, qual

minha raça/cor? Fez parte do nosso primeiro encontro, e possibilitou debatermos sobre

o tema e mobilizar os alunos para os próximos estudos. Eles se identificaram com o

tema, perceberam que estaríamos estudando sobre suas histórias, perceberam-se sujeitos

do processo. Um segundo documentário foi Vista minha pele, que traz situações

pertinentes para percebermos como o racismo apresenta-se nos diferentes espaços,

como faz parte das nossas relações sociais e passa despercebido pela naturalidade que se

apresenta. Outro documentário foi, Viajando aos extremos, ‘viajamos’ para a África,

para conhecermos a origem e a cultura dos jogos Mancala, em específico, o KALAH,

que foi um dos recursos utilizado na oficina.

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Imagem 1: Roda conversa. Imagem 2: Elaboração dos jogos e conversas.

Fonte: E.E. Florestan Fernandes. Fonte: E.E. Florestan Fernandes.

Jogos africanos – Outro momento forte da oficina foi da confecção e o brincar

dos jogos africanos de origem mancala, que são praticados pelos povos africanos das

aldeias do campo e tem forte ligação com a mitologia, política e região. Trabalhamos

com três jogos: kakah da região do Norte da Africa; yoté dos países da África Ocidental

e; fanorona de Madagascar. O momento da confecção dos jogos e do jogar propiciou

um ambiente de lazer, arte, e conversas sobre a cultura africana a afrobrasileira.

Percebem que, mesmo sendo obrigatório estudar história e cultura afrobrasileira e

africana nas escolas, pouco acontece principalmente no aspecto cultural.

Musica e dança do siriri – A musica e dança do siriri é parte da cultura

matogrossense, muito presente nos quilombos do estado. Assim, para estudarmos a

história e cultura afrobrasileira do estado, utilizamos do siriri como viés para conhecer

mais a história, cultura e dados estatísticos dos negros no estado.

Imagem 3: Siriri. Imagem 4: beleza do cabelo negro.

Fonte: E.E. Florestan Fernandes. Fonte: E.E. Florestan Fernandes.

Beleza do cabelo negro – esta foi uma demanda que surgiu durante a oficina.

Com uma significativa representação de negros no grupo e na afirmação de identidades,

surgiu à necessidade de um momento específico para falarmos da beleza, cuidados e

adornos para o cabelo negro. A participação foi marcante, envolvendo diferentes idades

e gênero.

O viés cultural criou um ambiente propício e convidativo para abordarmos

vários aspectos relacionados à temática racial. No momento em que pesquisávamos e

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percebíamos a presença da cultura afrobrasileira nos costumes, culinária, danças,

adornos, vestes, palavras, tecnologias, religião, jogos, entre outros, surge também o

debate sobre a desigualdade racial, as diferentes manifestações de racismo, o racismo no

mercado de trabalho, com a religião de origem africana, o desconhecimento sobre os

jogos e outros aspectos culturais africanos, origem da maioria da população brasileira.

Apresentamos alguns relatos dos alunos: “A oficina me fez entender o que é ser negro, e

morar no assentamento, onde boa parte das pessoas que mora aqui e são negros,

conhecer o contexto histórico, as, características culturais e passei a me valorizar, não

aceitar ações de preconceito” (Aluna A).

Neste processo, os alunos negros que fizeram parte da oficina, reafirmam sua

identidade de ‘ser negro’, valorizando suas características físicas, a beleza do cabelo

negro. “Gostei de me conhecer as minhas origens, respeitar minha raça, antes eu achava

que cabelo liso e olhos azuis eram mais bonitos do que os meus. Aprendi isso desde

crianças, porém, era o que eu ouvia” (Aluna B).

Identificam às manifestações de racismo, e fazem intervenções nas relações da

comunidade escolar, conscientizando para romper com as ações provindas de racismo.

“Percebi que os colegas mudaram sua opinião sobre o que é ser negro. Hoje, na escola

essa relação com os colegas mudou, parou de chamar o outro com apelido e quando

chama nós falamos que não podemos tratar as pessoas com preconceito” (Aluna C).

Enfim, constituíram-se como provocadores para implementar a Lei 10.639/03 na

escola e para a superação do racismo nos seus espaços de convivência, como também,

reafirmam suas identidades de ‘ser negro’.

Experiência pedagógica nas disciplinas dos cursos técnicos

Em 2006, foram encaminhadas ações na Educação Profissional para

implementar a Lei 10.639/03, assim na proposta pedagógica dos cursos técnicos tem

uma disciplina de vinte horas, no curso denominada como eixo tecnológico, sobre a

educação afrobrasiliera. Observe parte da matriz curricular de um dos cursos técnico

revisado e aprovado em 2015 pelo Conselho Estadual de Educação do MT.

Quadro 01: Trecho da Proposta Curricular do Curso Técnico em Floresta, 2015.

Educação Afro-Brasileira

Competência: Habilidade: c/h Bases Tecnológicas:

Abordar o Analisar os dados que História da África

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desenvolvimento

do Brasil também a

partir das

influências da

cultura Africana e

Afro-brasileira e

considerar a

temática racial no

contexto de

segregação e

preconceito racial,

histórico, social e

econômico dos

afro-brasileiros.

apontam as desigualdades

entre “brancos” e “negros”

na educação e no mundo do

trabalho; refletir sobre os

aspectos de preconceito e

discriminação racial;

conhecer a cultura e a

história dos afro-brasileiros

e Africana no

desenvolvimento do Brasil;

20

h

História do Afro Latino

Brasileiro

Bases legais: Lei nº

10.639/03 e 11.645/08

Diretrizes Nacionais para

Educação das Relações

Étnico-Raciais e para o

ensino da História e Cultura

Afro-Brasileira e Africana

Parecer nº 234/2006 –

Conselho Estadual de

Educação de Mato Grosso

Dados estatísticos quanto aos

negros no Brasil;

Conceito de raça e racismo;

Tribos brasileiras e seus

aspectos culturais;

Influências na alimentação

brasileira pelo indígena e

africano. Fonte: Escola Técnica de Sinop/MT.

A matriz curricular sofreu algumas alterações desde a implantação, acrescentou

a obrigatoriedade de trabalhar a Lei 11.645/08, que acrescenta o estudo sobre os povos

indígenas, entretanto a quantidade de horas trabalhadas não alterou, permaneceram as

mesmas vinte horas. As atividades pedagógicas são distribuídas em dois momentos, o

primeiro estuda a história e cultura abrobrasileira e o segundo a identificação e cultura

indígena do Brasil. Para fins desse estudo o recorte para análise se ateve ao primeiro

momento.

Segue a descrição das atividades realizadas em sala nos cursos técnicos em

Floresta, em Informática, em Administração e em Eletrotécnica nos estudos realizados

da temática afrobrasileira, onde se buscou adotar a mesma estratégia didática. Que

ficaram distribuídas em:

Reconstruindo a história - Para provocar a reflexão sobre a história, foram

distribuídas imagens da cultura negra em diferentes contextos históricos, em seguida foi

solicitado aos alunos para fazerem uma reconstrução histórica a partir de seus

conhecimentos empíricos e narrar aos colegas. Momento em que se percebe que muitos

não se dão conta da marginalização que acontece no decorrer da história, nem percebem

que são herdeiros desse processo histórico. Discorrem como se fosse uma história longe

de sua realidade.

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Imagem 5: Reconstruindo a história. Imagem 6: Personalidade Afrobrasileiras.

Fonte: Própria. Fonte: Própria.

A prática pedagógica foi buscando fazer os estudantes fossem sujeitos de

reformulações de conceitos e acontecesse o aprendizado conforme Arroyo (2004, p.61)

defende “para chegarmos a ter uma sensibilidade pedagógica para com os conteúdos da

docência, ou para novas didáticas ou para com os tempos de formação e socialização,

teremos que começar por termos sensibilidade humana para com os educandos (as)

como sujeitos sociais e culturais, éticos e cognitivos”.

História da África - As discussões seguintes foram sobre a história da África,

onde se verificou a composição geográfica, que propiciou a divisão sociocultural, como

a escravidão se deu com a expansão marítima, a formação dos movimentos em busca da

independência. Nos debates, os alunos conseguiram perceber situações semelhantes a

nossa história, até perceberam que a “independência do Brasil” foi um acordo comercial

para atender os interesses do capitalismo, identificaram algumas personalidades negras

que buscaram a igualdade social, mas não conseguem romper o racismo e não constrói a

afirmação de ser negro, uma vez que discursavam ainda com distancia da realidade de

cada um.

Conhecendo Mato Grosso negro – ao estudar o Parecer 234/2006 do Conselho

Estadual de Educação de Mato Grosso, onde apontam dados sobre dados do IBGE da

população negra de Mato Grosso, os Quilombos existentes e regularização das terras,

informações discutidas fazendo reflexões sobre o racismo e preconceito e legislações

criadas para resgatar e valorizar aspectos culturais da cultura afro-brasileira e buscando

mostrar o quanto a herança cultural está em nosso cotidiano, em nossos hábitos e

postura como cidadão. O resultado desta discussão no curso de Floresta, sala que tem

dois alunos negros, pode ser percebido por meio de perceber maior participação nas

discussões e posicionamento com autoconfiança dos dois alunos, que perceberam a

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existência de atitudes racistas e preconceituosas, as quais não percebiam anteriormente.

Nesta sala houve maior união, despois dos debates.

Porém a construção cultural que motivava a mudança de postura e valorização

do ser negro, na escola, neste último recorte foi prejudicada, consequentemente a

participação de docentes e discentes desestimulada.

Ao implantar os estudos da Educação e cultura Afrobrasileira como parte da

grade curricular, realizadas em forma de disciplina, teve como proposta, e assim foi

desenvolvido até o ano de 2013, ações interdisciplinares em conjunto com coordenação

pedagógica que culminava na semana da consciência Negra, onde se realizavam

apresentações culturais, exposição artísticas, realização de jogos africanos, palestras,

danças e músicas afrobrasileiras e degustação de alimentos de origem africana, período

em que constatou que quase metade dos alunos se autodeclaravam negros. Assim

percebia-se uma mudança de postura do ‘ser negro’, tanto por parte dos alunos e

professores que atuavam na escola, naquele período. Foi tão significante que a

festividade passou a fazer parte do calendário escolar.

Entretanto, no ano de 2014 e 2015, período que representa o recorte para análise

desta pesquisa, não percebemos o mesmo resultado. A população de negros e

descendentes aparece em menor número, professores que atuavam na Educação

Profissional outrora, já não fazem parte da equipe de professores. Consequentemente as

ações pedagógicas foram isoladas como atividade de ensino em sala de aula, e o

momento Cultural, que culminaria de ações conjuntas, não aconteceu, nem a mudança

de postura que buscava a reafirmação do ser negro.

Freire (2004) diz que a prática pedagógica educativo-crítica proporciona

condições aos educando e professores para ensaiarem a experiência de assumir-se como

ser social e histórico, pensante e comunicativo que transforma, cria, realiza sonhos

capaz de amar e assumir a radicalidade do meu eu. Portanto prática pedagógica em sala,

sem ações conjuntas da coordenação pedagógica e professores, não atende ao principio

de formar cidadãos críticos, conscientes de sua história cultural e atuantes em sua

realidade capazes de transformar a sua realidade para melhor.

3. CONCLUSÃO

Após análise das duas experiências pedagógicas, com os diferentes grupos,

percebemos que, os objetivos de provocar mudanças na afirmação e construção de

identidades de ser negro e a superação de comportamentos racistas não aconteceram nas

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duas situações. Avaliamos que as diferenças envolvem muito mais que a carga horária

destinada à temática, mas também, o envolvimento da coordenação da escola para que

este trabalho seja uma proposta da escola, envolvendo os demais professores e

diferentes momentos. Ainda que a postura e autoconfiança de alguns alunos tenham

melhorado, não foi o suficiente para desejarem mudar o contexto social em que vivem.

Nas duas situações os conhecimentos foram construídos, os alunos se

envolveram com as atividades, porém, somente na atividade de extensão é que os alunos

relatam mudanças de atitudes. Eles querem a mudança do seu espaço social. Ocorre a

‘assunção’ segundo Freire.

O viés cultural foi fundamental para este processo. Por ser algo que

apresentamos na perspectiva da riqueza cultural, da beleza, sabedoria, organização,

entre outros, enfim, sempre na perspectiva positiva encorajou os alunos a identificarem-

se com este grupo, e a partir desta identificação, trazíamos as reflexões do racismo e

desigualdade racial, ainda, sempre enfatizando as lutas dos negros por liberdade e

superação do racismo. Porém, o trabalho com o viés cultural demandou da participação

da equipe pedagógica da escola e de encontros que foram distribuídos em vários

encontros distribuídos em longo período, o que deu abertura para o diálogo, estudos,

reflexões individuais e coletivas, possibilitando que os alunos percebessem-se como

seres sociais, históricos, e mobilizassem-se para a participação e transformação.

Ao mesmo tempo, avaliamos que se não fosse à disciplina nos cursos técnicos, o

estudo da temática racial poderia ser comprometido. A existência de uma disciplina é

uma garantia para acontecer os estudos, porém, não pode ser uma ação isolada de

disciplina, e sim, fazer parte da proposta pedagógica da escola, que considere os alunos

sujeitos da escola e possibilite um ambiente favorável a reflexões, mobilizações e

transformações.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel. Imagens quebradas: trajetórias e tempos de alunos e mestres.

Petrópolis,RJ: Ed. Vozes, 2004.

BRASIL. Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de

dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para

incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e

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Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 06 jul.

2011.

_______, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Racial

e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília-DF, 2005.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 25 Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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PRÁTICA PROFISSIONAL EM FORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO

PROFISSIONAL: VIVÊNCIAS E CONVIVÊNCIAS COM A AGRICULTURA

FAMILIAR

Jurandir Benedito de Arruda (SECITECI/MT)

Loraci Verdi Lamb (SECITECI/MT)

Resumo

Na forma de relato de vivências e convivências, este trabalho apresenta aspectos da

prática profissional do Curso Técnico Profissionalizante de Nível Médio em

Agropecuária, realizado no Centro de Treinamento Sindical Rural (CENTRESIR) em

Várzea Grande -MT no período de março de 2013 a dezembro de 2014, totalizando

1440 horas de aulas, uma parceria entre a Federação dos Trabalhadores na Agricultura

do Estado de Mato Grosso (FETAGRI-MT) e a Secretaria de Estado de Ciência,

Tecnologia e Inovação (SECITEC-MT) via a Escola Técnica Estadual de Educação

Profissional e Tecnológica de Diamantino. O currículo da formação foi estruturado em

módulos, competências e bases tecnológicas. A formação ocorreu seguindo os

princípios formativos freirianos e os preceitos da Pedagogia da Alternância, na qual o

educando provindo da Agricultura Familiar, obteve atividades teóricas e práticas no

CENTRESIR no decorrer dos 19 encontros mensais e presenciais de dez dias,

alternados com atividades práticas na unidade de produção familiar, outros 20 dias. Para

cada competência profissional, estabelecida na matriz curricular foi proposta, pelo

menos uma atividade de campo na unidade de produção familiar do educando. O

acompanhamento das atividades de campo, ou prática profissional foi realizada por

extensionistas da Empresa de Pesquisa e Extensão Rural do Estado de Mato Grosso

(EMPAER -MT). Estas, após a avaliação do docente ministrante da competência,

passou a fazer parte de um portfólio individualizado de cada educando. Ao final da

formação o educando, escolheu uma prática profissional e realizou um aprofundamento

teórico na forma de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). O portfólio de cada

discente consistiu na apresentação de 54 práticas de campo. De uma turma de 39

iniciantes, finalizaram a formação 27, com apresentação de TCC. O estudo interessa a

disseminação de experiências formativas do ensino médio profissionalizante, mais

especificamente ao jovem agricultor familiar.

Palavras Chave: Ensino Profissionalizante, Prática Profissional no Campo, Pedagogia da

Alternância.

1.Introdução

A formação em regime de alternância tem como base teórica e prática os

princípios da educação do campo. Esta é fruto das lutas dos movimentos sociais que

almejam pelo amplo acesso à educação dos sujeitos, como também por uma forma de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6967ISSN 2177-336X

15

ensino que possa contribuir na compreensão dos processos sociais, técnicos,

econômicos, políticos e ambientais da realidade vivenciada por esses sujeitos. Segundo

Molina (2010, p. 140), a Educação do Campo não é somente um projeto educativo, mas

perspectiva de transformação social, um horizonte de mudança nas relações sociais do

campo.

Para a maioria das competências trabalhadas na formação desta turma, foi

relacionada pelo menos uma prática profissional. Este estudo tem por finalidade

apresentar as vivências e convivências da prática profissional de uma turma do Curso

Técnico Nível Médio em Agropecuária, realizado no Centro de Treinamento Sindical

Rural (CENTRESIR) em Várzea Grande - MT, no decorrer dos anos de 2013 e 2014,

em uma parceria entre a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Mato

Grosso (FETAGRI-MT) e a Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação

(SECITEC-MT) via Escola Técnica Estadual de Educação Profissional e Tecnológica

de Diamantino.

2. O currículo por competências e a prática profissional

O Curso Técnico em Agropecuária, em foco, teve como principal meta a

formação integral para a promoção ser humano comprometido com o desenvolvimento

de suas comunidades e assentamentos, como também da região onde estão inseridos. A

ideologia que orienta a prática profissional nasceu da consideração do homem e da

mulher rural como ponto central e convergente da realidade que o circunda. Assim se

primou pela junção de forças sociais e parcerias, tendo em vista a realização de uma

formação o mais integral possível da pessoa, isto é, formar pessoas que se sintam

capazes de encontrar em si e em sua comunidade as forças necessárias para o

envolvimento em mudanças políticas, sociais, técnicas e econômicas.

A integração das competências da matriz curricular e a prática profissional,

estabelecendo para cada competência pelo menos uma prática profissional aproximou a

escola das vivências e convivências dos educandos. Desta forma foi imprescindível

estabelecer estratégias de configurassem um currículo fundamentado nos princípios da

integração, unitária, politécnica e unilateral, tendo o trabalho como princípio educativo.

Nesta concepção, o trabalho é considerado como produção de todas as dimensões da

vida humana (FRIGOTTO, et al., 2005).

A Resolução nº 06 do CNE/CEB, de 20/09/2012 define a organização curricular e

explicita a prática profissional intrínseca ao currículo, desenvolvida nos ambientes de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6968ISSN 2177-336X

16

aprendizagem, orientada pela pesquisa, como princípio pedagógico que possibilita ao

educando enfrentar o desafio do desenvolvimento. A prática na Educação Profissional

compreende diferentes situações de vivência, aprendizagem e trabalho, como

experimentos e atividades específicas em ambientes especiais, tais como laboratórios,

oficinas, empresas pedagógicas, ateliês e outros, bem como investigação sobre

atividades profissionais, projetos de pesquisa e/ou intervenção, visitas técnicas,

simulações, observações dentre outras.

Os docentes desta formação se envolveram com a prática profissional dos

educandos no sentido de planejar e acompanhar a execução de todas as atividades

relacionadas ao processo de ensino. No processo de concepção, acompanhamento e

avaliação das atividades de campo e elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso

(TCC), aqui tidas como a prática profissional, os professores constantemente se

deparavam com obstáculos, fragilidades e potencialidades. Uma situação natural do

processo de ensino os conduzia a todo o momento, assim, precisavam significar e

ressignificar a sua prática, no ambiente de trabalho. Acredita-se que os alunos devem

desenvolver a capacidade de utilizar, utilizar na prática e inovar conhecimentos a partir

da prática desenvolvida, para isto se faz necessário permitir que seus educandos

compreendam de forma reflexiva e crítica, o mundo do trabalho, dos objetos e dos

sistemas tecnológicos dentro dos quais estes evoluem (MACHADO, 2008 p.18).

Desta forma, é essencial o relacionamento dialógico entre o docente e o discente

para que o processo de ensino aprendizagem se consolide, com autonomia, emancipação

e independência dos educandos. Segundo Freire (2003, p. 22), a práxis é a integração

entre pensamento e ação. É preciso saber equilibrar a relação teoria/prática, pois quando

se desenvolve intervenções pedagógicas com o objetivo de o educando produzir ou

construir conhecimentos se faz necessária a participação e reflexão com os estudantes.

O docente que tem envolvimento com o educando, participa de sua caminhada, do

processo de aprendizagem, compreende melhor as fragilidades e potencialidades de

maneira individualizada, e assim consegue estimular a construção do saber com

melhores resultados. Desse modo, precisa estar atendo às particularidades de cada

educando, buscando o diálogo entre todos os envolvidos no processo. (MANTOAN,

2003).

Os discentes provindos da agricultura familiar precisam ter acesso a cursos de

educação profissional diferenciados, em termos de infraestrutura material (física, por

exemplo alojamentos no ensino por alternância), em termos de competência e

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6969ISSN 2177-336X

17

qualificação dos professores; e desenvolvimento nos mesmos de uma interação, afeto e

emoção (desenvolvimento de competências interpessoais e culturais). A aprendizagem

deve considerar as habilidades e potencialidades de cada educando. Percebe-se que o

ensino profissionalizando vem acontecendo com pouca expressividade no meio rural.

Esta situação apresenta a dificuldade dessa população acessar os cursos que possam lhe

dar uma qualificação profissional e que atenda aos seus interesses em termos de

desenvolvimento de suas unidades produtivas e ou as exigências do mundo do trabalho.

2.2. Registros da prática profissional

No processo de ensino aprendizagem da educação profissional a prática

profissional precisa ser registrada, pois este registro transforma o docente em autor de

sua teoria e assim mais capaz de agir satisfatoriamente em relação ao aprendizado de

sua turma, permite a este construir uma memória do processo, com suas dificuldades e

sucessos.

Lazzari (2013 s/p) expressa a necessidade de registros, os quais podem ser

realizados de várias formas e para diferentes funções. O mesmo visa guardar a memória

do processo de ensino-aprendizagem e possibilita retornar às práticas ocorridas no

passado. Este registro pode ocorrer na forma de diário de classe, de caderno de

reflexões, fichas avaliativas, portfólio e outras formas. Ao registrar o docente organiza o

seu fazer e documenta sua história, o processo em seus momentos e movimentos.

Segundo Hernández (1998, p.100), o portfólio consiste na reunião de diversas

classes de documentos (notas pessoais, experiências de aula, trabalhos pontuais,

controle de aprendizagem, conexões com outros temas fora da escola, representações

visuais, etc.) que apresentam indícios do processo de construção do conhecimento, das

ferramentas didáticas usadas e da motivação de quem o elabora em continuar seu

aprendizado. Para Hilzendeger (2013, p. 96) “é uma ferramenta diagnóstica e contínua

de acompanhamento e avaliação de um trabalho pedagógico”. Também o considera

como instrumento avaliativo transformador do cotidiano escolar por meio da reflexão

do fazer pedagógico em forma de relatos e registros.

3. Estratégias: vivências e convivências da formação

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6970ISSN 2177-336X

18

Para efetivar a matriz curricular, trabalharam-se nos encontros mensais as

competências previstas no plano de curso. Após estes encontros os discentes

executaram atividades de campo em suas unidades de produção familiares e ou em suas

comunidades.

As atividades de campo foram acompanhadas pelos técnicos e extensionistas

municipais da Empresa Mato-grossense de Pesquisa e Extensão Rural, a EMPAER -

MT do município de origem do educando. Este acompanhamento foi expresso via

preenchimento de fichas de avaliação da prática profissional, considerando 15 critérios,

com relação aos parâmetros: muito bom, bom, regular, suficiente e insuficiente. Dentre

os critérios pode-se exemplificar a capacidade de empreender do educando.

Os docentes acompanharam e avaliaram as práticas considerando os relatos dos

extensionistas e dos discentes, expressos na forma escrita ou sistematizada, que no

decorrer do processo se constituiu no portfólio para cada discente.

A maioria das competências e habilidades tiveram subsídios teóricos, sempre

acompanhadas da prática profissional ou atividades de campo, primando pelos

princípios agroecológicos. De um total de 66 competências da matriz curricular, 54

tiveram atividades de campo. A prática profissional, no decorrer da formação foi

registrada na forma de portfólio.

Figura 01 - Alunos em aula prática de topografia, CENTRESIR, Várzea Grande -MT, 2013.

A prática de ensino foi embasada no processo de construção do saber (método

construtivo de Paulo Freire) no qual os conceitos são construídos pelos educandos,

complementados pelo professor e suplementados pelos subsídios teóricos de outros

autores (apostilas, artigos científicos, internet, etc.). Sempre se considerou as vivências

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6971ISSN 2177-336X

19

e experiências dos educandos e, por isso, o relato das vivências e convivências da

turma. Também se trabalhou no decorrer das competências os temas instantâneos de

motivação, conforme interesses dos educandos.

Figura 02: Discentes selecionando sementes para plantio no jardim medicinal, aula prática com

Biólogo Claudemir Claudemir Clóvis de Campos do Horto Florestal, CENTRESIR, 2014.

No decorrer dos encontros, os educandos se envolveram em aulas teóricas e

práticas, palestras técnicas, montagem de coleção de folder, coleção de insetos, coleção

de inseticidas/fungicidas naturais, coleção de sementes crioulas, coleção artigos

científicos e também participaram de:

- Visitas técnicas: no Laticínio Piracanjuba em Santa Helena – GO; na

Minhocultura Estrela Maior 7 em Santo Antônio de Leverger –MT, entre outras;

- Participação em eventos: exposição de trabalhos na Semana Estadual de Ciência

e Tecnologia, edição 2013 e 2014 no Centro de Eventos do Pantanal, entre outros;

- Implementação de projetos: horta convencional e mandala, compostagem,

produção de mudas, preparo de biofertilizantes, inseticidas naturais, entre outras.

4. Resultados da formação: a prática profissional registrada

A matriz curricular do Curso Técnico em foco contém 66 competências, para as

quais se desenvolveu 54 atividades de campo, portando 81,8% das competências

tiveram atividades de campo registradas na forma de portfólio.

A prática profissional ou atividade de campo de cada competência trabalhada,

após a correção e avaliação pelo professor foi arquivada em uma pasta individualizada

de cada aluno (a). Ao final do curso, todas as atividades de campo realizadas por todos

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6972ISSN 2177-336X

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os professores da formação passaram por um processo de encadernação e foram

devolvidas aos educandos na forma de portfólio.

Outra forma de registrar a prática profissional desta formação foi a elaboração dos

Trabalhos de Conclusão do Curso. O Quadro 01 apresenta a lista dos Trabalhos de

Conclusão de Cursos dos alunos concluintes, bem como os locais onde foram

desenvolvidos. TCC).

QUADRO 01: Temas da Prática profissional expressa na forma de TCC da Turma 2013/2014 e

município de origem dos formandos, CENTRESIR, Várzea Grande - MT.

Temas do Trabalhos de Conclusão de Curso - TCC Origem dos

formandos 1 Utilização do plantio de refúgio e coexistência em área com milho

bt/safrinha em Ipiranga do Norte - MT

Ipiranga do

Norte 2 Avaliação da predominância da raça nelore na região de Nova

Bandeirantes (Comunidade São Jorge).

Nova

Bandeirantes

3 Qualidade de mudas cítricas em condições de viveiro- ênfase a enxertia Cuiabá 4 Viabilidade para implantação do confinamento de gado nelore Paranatinga 5 Manejo alimentar alternativo para o peixe pacu caranha (Piaractus

mesopotamicus) na unidade de produção familiar.

Bom Jesus

do Araguaia 6 Raspa integral da raiz de mandioca para frangos de corte Guarantã do

Norte 7 Processo e beneficiamento do mel na (APA) Associação Portence dos

Apicultores de Porto Esperidião-MT

Porto

Esperidião 8 Aspectos da ensilagem em uma unidade familiar Nova

Bandeirantes 9 Ocorrência de mastite bovina em três propriedades produtoras de leite em

Acorizal - MT

Acorizal

1

0

Aspectos agronômicos do plantio da mandioca na unidade de produção

familiar da Comunidade Santa Bárbara - município de Porto Esperidião -

Mato Grosso

Porto

Esperidião

11 Sistema de manejo rotacionado, uma proposta para o Sítio Luz Divina em

Brasnorte - Mato Grosso

Brasnorte

12 Reaproveitamento da cama aviária por meio de compostagem Cuiabá 13 Procedimentos de ordenha em uma propriedade leiteira na Comunidade

Sadia III

Várzea

Grande 14 Uso do extrato alcoólico de nim (Azadirachta indica a. Juss.) no controle

de insetos em couve.

Cláudia

15 Aspectos das instalações e equipamentos para frangos semi caipira na

Chácara São Miguel, Porto Esperidião - MT

Porto

Esperidião 16 Efeito do biofertilizante liquido no desenvolvimento da batata doce

(Brazlândia roxa batatas)

Brasnorte

17 Aspectos da criação de tabatinga e pintado na comunidade Cabeceira do

Mutum, Acorizal - MT

Acorizal

18 Aspectos da produção de banana na comunidade Chapada de Vacaria,

Acorizal - MT

Acorizal

19 Prestação de serviço de consultoria para minhocário Cuiabá 20 Aproveitamento da produção de cana de açúcar na agricultura familiar e o

desenvolvimento de novos sabores de rapadura

Jangada

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6973ISSN 2177-336X

21

21

Aspectos do desenvolvimento de duas novas cultivares de banana nanica na comunidade Chapada de Vacaria, em Acorizal - MT.

Acorizal

22 As principais perdas da silagem Brasnorte 23 Efeito da adição de mandioca ´in natura´´ na dieta alimentar de vacas

leiteiras

Nortelândia

24 Efeito do extrato de tiririca no enraizamento de estacas de acerola Cuiabá 25 Aspectos do controle da cigarrinha das pastagens na comunidade Novo

Brasil - Brasnorte- MT

Brasnorte

26 Confinamento bovino: Aspectos da destinação de dejetos, Fazenda

Arrossensal Agropecuária e Industrial S.A, Grupo Camargo Correa,

Nortelândia - MT.

Nortelândia

27 Aspectos da produção de silagem na Arrossensal Agropecuária e

Industrial S.A., Nortelândia - MT.

Nortelândia

Como se percebe no Quadro 01, os 27 Trabalhos de Conclusão de Curso tiveram

seus temas relacionados à unidade de produção familiar ou as comunidades dos

concluintes, fato que confirma uma integração entre a teoria e a prática vivencial dos

formandos, concordando com o referencial de Lazzari (2013 s/p), no qual a memória do

processo de ensino-aprendizagem pode ser registrada e, se necessário, avalizada e

pensada de forma diferenciada com projeções futuras modificadas e ou melhoradas.

A demonstração da localização da residência, também apresentada no Quadro 01,

apresenta a necessidade da metodologia de ensino em alternância, uma vez que os

educandos provindos de 13 municípios de Mato Grosso e residem a até 1055 km do

CENTRESIR, como ocorrer com o discente residente em Nova Bandeirantes - MT.

Neste caso o tempo deslocamento para escola chega ser de mais de dez horas.

Dos 39 alunos matriculados em 2013, receberam certificados no dia 12/12/2014,

27 novos Técnicos em Agropecuária. Percebe-se uma evasão de 30,7%.

5. Considerações finais:

As vivências e convivências apresentadas podem nos remeter a significância da

prática profissional integrada, como foco da desfragmentação curricular e o almejado

envolvimento do educando como sujeito de seu processo histórico, buscando respostas

às indagações de seu contexto sócio comunitário. O estudante no decorrer deste

processo se mostrou envolvido motivado. Pode-se perceber um aprofundamento cada

vez maior de conhecimentos em contato com a prática real de trabalho, constituindo a

unidade de produção familiar do educando como um espaço permanente de ação,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6974ISSN 2177-336X

22

reflexão e integração com a escola, o que converge para os referenciais de Frigotto

(2001), formando os sujeitos para a autonomia e o mundo do trabalho.

O portfólio pode ser uma ferramenta didática utilizada no ensino

profissionalizante para a agricultura familiar em regime de alternância.

A ampliação desta modalidade de ensino é um desafio para futuros gestores. A

política de educação profissional para a agricultura familiar carece e de fortalecimentos

e desconcentração ou interiorização. O relato das vivências e convivências no decorrer

desta formação é umas das iniciativas, ainda que modesta, para efetivação de ação

governamental concreta no sentido de empoderar o homem e a mulher do campo.

As vivências e convivências relatadas no decorrer desta formação contribuíram

para um almejar de um meio rural, dos envolvidos, mais autônomo e sustentável.

6. Referências bibliográficas

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6976ISSN 2177-336X

24

REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA E O AGIR DOCENTE NA

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DE MATO GROSSO

ALENCAR, Eliana M. de Almeida (UFMT)

RESUMO:

Este artigo aborda questões a respeito do agir docente no contexto da Educação

Profissional e Tecnológica (EPT) em Mato Grosso, considerando as relações entre os

professores e as prescrições institucionais, como também seu coletivo de trabalho, os

alunos, a organização curricular e os instrumentos incorporados em sua prática. Diante

disto, assume-se como pressuposto central a atividade de linguagem, sob o ponto de

vista que as “práticas linguageiras situadas (ou os textos-discursos)” constituem-se

instrumentos principais do desenvolvimento humano (BRONCKART, 2006). A

pesquisa apresenta a semiologia do agir do professor da EPT e as formas de agir

atribuídas a ele em sua prática (trabalho docente). O percurso fundamentou-se nos

aportes teóricos do Interacionismo Sociodiscursivo no campo das Ciências Humanas

(BRONCKART, 2004, 2006, 2009; BULEA, BRONCKART e FRISTALON, 2004;

MACHADO 2004, 2005, 2009), bem como as contribuições da Ergonomia da atividade

(AMIGUES 2002; 2004) e da Clínica da atividade (CLOT, 1999, 2001, 2007; CLOT e

FAÏTA, 2000). Foram selecionados quatro sujeitos dentre o quadro de professores,

sendo três destes contratados e um da classe dos efetivos, em duas escolas do interior do

estado. Entre os procedimentos de coleta de dados foi escolhida a Instrução ao Sósia,

concebida pela Psicologia do Trabalho e introduzida na França por Yves Clot no quadro

da Clínica da Atividade. Os resultados das análises evidenciaram as figuras

prefigurativas do agir desses docentes. A compreensão do trabalho educacional é

necessária, não somente pela via individual e subjetiva, pensando em suas

representações, mas também considerando os sistemas sociais e coletivos de

representações, compreendendo o agir na sua dimensão de temporalidade, seu processo

de desenvolvimento e os resultados que a intervenção humana pode produzir no mundo.

Palavras-chave: Trabalho docente, Educação Profissional, artefatos de ensino.

INTRODUÇÃO

A educação e a qualificação profissional foram eleitas como fatores

fundamentais do desenvolvimento de nações menos favorecidas, além de incentivar a

manutenção da hegemonia econômica e política dos países industrializados. A história

da educação profissional no Brasil passa por inúmeras questões de ordem especialmente

econômica e política (OLIVEIRA, 2003, p. 7).

Embora possuindo um imenso potencial econômico reconhecido

internacionalmente, o Estado de Mato Grosso não avançou muito em seus investimentos

na área da Educação Profissional e Tecnológica. Apenas recentemente novas

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6977ISSN 2177-336X

25

perspectivas apontam para transformações nas políticas e na construção desta área e

nível de ensino no estado.

A Educação Profissional do estado apresenta-se inicialmente na Lei

Complementar Nº 49, de 1º de outubro de 1998. O artigo 79 da seção V define a

Educação Profissional e a concepção adotada: trata-se de uma modalidade de ensino,

complementar à Educação Básica, que tem por finalidade qualificar, requalificar,

profissionalizar e reprofissionalizar jovens, adultos e trabalhadores.

A história das Escolas Técnicas Estaduais inicia-se com a criação dos Centros Públicos

de Formação Profissional – CENFORs, através da Lei N° 7.819, de 09 de dezembro de

2002, publicada no D.O. 11.12.2002, na estrutura da Secretaria Estadual de Ciência

Tecnologia e Educação Superior.

Em 09 de janeiro de 2004 foi criado o Centro Estadual de Educação Profissional

e Tecnológica – CEPROTEC, pela LC 153/2004, tendo por finalidade a implementação

das políticas do Estado para a Educação Profissional e Tecnológica. Em seu texto surge

a preocupação de conjugar no ensino a teoria com a prática.

O CEPROTEC/MT estava subordinado à SECITEC, consistindo-se em uma

autarquia dotada de autonomia administrativa, patrimonial, financeira, didática e

disciplinar, sendo regida, dessa forma, por um Estatuto e Regimento próprios. Em seu

escopo, surgem as Unidades de Ensino Descentralizadas (UNEDs), com quatro

unidades iniciais, localizadas nas cidades de Alta Floresta, Barra do Garças,

Rondonópolis e Sinop, sendo ainda prevista a criação de mais 5 unidades nas cidades de

Confresa, Diamantino, Matupá, Pontes e Lacerda, e Tangará da Serra.

Na época de sua criação houve ainda o primeiro e único concurso público para o

provimento de cargos nas unidades descentralizadas, configurando-se a carreira dos

profissionais da educação profissional do estado.

Atualmente, a rede estadual de escolas técnicas é formada pelas Escolas

Técnicas Estaduais de Educação Profissional e Tecnológica, sediadas nos municípios de

Alta Floresta, Barra do Garças, Rondonópolis, Sinop, as quais iniciaram suas atividades

em 2004, além de Diamantino e Tangará da Serra, inauguradas posteriormente. Outras

foram acrescentadas, criadas pela Lei Complementar nº374, de 15 de dezembro de

2009, publicada em D. O. de 15/12/2009: Água Boa, Cáceres, Campo Verde, Cuiabá,

Juara, Lucas do Rio Verde, Matupá, Primavera do Leste, Poxoréu, Sorriso e Várzea

Grande.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6978ISSN 2177-336X

26

Trabalho e trabalho docente: as diferentes dimensões do conceito de

trabalho

O conceito de trabalho tem variado muito de acordo com o contexto histórico e

as condições econômicas e sociais. Segundo Bronckart (2004) o senso comum

considera o trabalho como uma das formas de agir própria da espécie humana. As

definições inúmeras não são suficientes para abarcar as diversas formas de trabalho que

coexistem na atualidade, por isso há hoje um intenso debate sobre seu conceito nas

Ciências Humanas e Sociais.

Além disso, o ensino como atividade desenvolvida pelo professor passa a ser

considerado “verdadeiro trabalho”i (BRONCKART, 2006, p.203) e se torna objeto de

estudo. Porém, não se trata de retomar um objeto já dado apenas, mas de considerá-lo a

partir de um novo olhar, como um “novo objeto de estudo” (MACHADO, 2007, p.78).

Clot (2007) em suas reflexões a respeito do trabalho sob a perspectiva da

psicologia destaca que é preciso considerar o trabalhador não como mero executor de

uma tarefa prescrita. Enquanto realiza suas tarefas ele também busca a realização de

objetivos pessoais. Ele redefine sua tarefa levando em consideração a qualidade da vida

coletiva e influenciando na eficácia de suas ações. “A atividade de trabalho é dirigida

aos outros depois de ter sido destinatária da atividade destes e antes de o ser de novo.

Ela é sempre resposta a atividade dos outros, eco de outras atividades” (CLOT, 2007, p.

97).

No seio da tradição vygotskiana, Clot (2007, p. 24) destaca a constituição de

uma teoria da consciência que une, na atividade, o pensamento, a linguagem e as

emoções do sujeito. Ele parte de um referencial comum de conhecimentos operativos,

que fazem parte do gênero de atividades exigidas na situação.

O coletivo se constitui a partir da produção de regras que servem para estruturar

a relação obrigatória de cooperação para se realizar o trabalho. Essas regras são “não

escritas e não imutáveis” (CLOT, 2007, p.37). A formalização coletiva da ação

individual (de que o grupo profissional se torna o sujeito) ocorre enquanto os

trabalhadores colocam sua ação em ordem, na organização do trabalho real por parte

deles próprios. Essa “ordem” também comporta regras que organizam a relação dos

sujeitos entre si e que se apoia no que é considerado justo ou injusto, bom ou mau.

A noção de trabalho adotada nesta pesquisa é aquela apresentada no contexto

das pesquisas do grupo ALTERii, a qual se trata de uma atividade, realizada em um

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contexto específico socialmente marcado, num aspecto mais amplo bem como numa

ocorrência imediata. Por tais razões, conforme Machado (2009) caracteriza-se por

(...) ser pessoal e única; plenamente interacional; mediada por

instrumentos materiais ou simbólicos; interpessoal; impessoal na

medida em que se executam tarefas prescritas por instâncias externas e

transpessoal, pois é guiada por “modelos de agir” específicos de cada

métier. (MACHADO, 2009, p.36)

Entende-se, assim, que ao realizar sua tarefa, o professor como trabalhador

enfrenta conflitos diversos, com o outro, com o meio, com as regras (expressas ou

implícitas), com as prescrições e com os artefatos que dispõe. Sobretudo, acredita-se

que na produção dos textos sobre e no trabalho educacional, seja possível detectar as

figuras interpretativas desse agir, as quais podem explicitar seus motivos e intenções,

como também os recursos e as capacidades mobilizadas através desse agir pela e na

linguagem. (MACHADO, 2009, p.38)

Desse modo, por se constituírem elementos essenciais para a compreensão do

conceito de trabalho e, especialmente, do trabalho docente, torna-se necessário

compreender melhor os conceitos de artefato e instrumento.

Artefatos e instrumentos no trabalho docente

Em seus textos, Rabardel (1999; 2001) afirma que muito antes das áreas que se

dedicam ao ensino, campos como a psicologia e a filosofia já tinham demonstrado a não

neutralidade dos instrumentos. Contribuições de Kant, Piaget, Vygotsky e Leontiev,

bem como das abordagens histórico-culturais da psicologia, levam Rabardel a

considerar que os artefatos, ferramentas e sinais contribuem para a formação das

funções psíquicas e dos conhecimentos (RABARDEL, 1999, p.204). A natureza

mediadora dos artefatos é compartilhada nas obras de diversos autores. Nesse aspecto,

Rabardel (2001) destaca que artefatos são mediadores da ação de seus usuários e da

atividade “finalizada” (que tem um fim determinado).

Artefatos possuem um elemento social e cultural, eles são compartilhados dentro

das comunidades e contribuem para a acumulação e transmissão da cultura. Artefatos de

mediação passam por um processo de apropriação e desenvolvimento pelos usuários.

Assim, a atividade mediada por instrumentos é sempre situada e as situações têm uma

influência determinante na atividade. (RABARDEL, 2001, p.18)

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Os instrumentos constituem formas que estruturam e mediam nossa relação com

situações e conhecimentos, e, portanto, exercem uma influência considerável na

construção do conhecimento. Em resumo, a apropriação do instrumento por aqueles que

se utilizam dele, influenciando sobre a atividade cognitiva e de conceptualização,

resulta num processo que Rabardel denomina de gênese instrumental. (RABARDEL,

1999, p. 206). O instrumento pode ser definido como uma entidade mista, produto

simultâneo do sujeito e do objeto.

Finalmente, podemos inferir que ao realizar uma tarefa, o sujeito associa um

artefato (objeto) a sua ação, bem como recorre à utilização de esquemas que permitem a

introdução de um instrumento como um componente funcional na realização desta ação.

Isto significa que a constituição da entidade instrumental é produto da atividade do

sujeito. O instrumento não é meramente uma parte do mundo externo do sujeito ou algo

disponível para ser associado a uma ação, é, sobretudo, uma produção ou construção

deste sujeito, a apropriação do artefato. (Op. Cit. p.84)

Nesse sentido, Machado (2009) explica que o artefato

(...)designa, de modo neutro, toda coisa finalizada de origem humana, que

pode ser material (o objeto, o utensílio, a máquina), imaterial (o programa de

computador) ou simbólica (signos, regras, conceitos, metodologias, planos,

esquemas, etc.) sócio-historicamente construída, presente no processo

operatório e inscrita nos usos. O instrumento, por sua vez, sóexiste se o

artefato for apropriado pelo e para o sujeito, com a construção de esquemas

de utilização (Rabardel 1995 e 1999). Essa apropriação é resultado de um

duplo processo que é constitutivo das gêneses instrumentais: de um lado, são

atribuídas funções ao artefato e, de outro, há a acomodação de competências

do actante, que permite que ele se adapte ao objeto e que dele faça o melhor

uso, de acordo com seus próprios objetivos. (Op. Cit. 2009, p. 38)

Logo, no quadro das pesquisas empreendidas pelo Interacionismo

Sociodiscursivo (ISD), a autora propõe um esquema que sintetiza e orienta a noção de

trabalho educacional, agora considerando as múltiplas relações que o cercam, dentro de

um contexto: contexto socio-histórico, sistema educacional, sistema de ensino.

Machado (2007) define que o trabalho docente consiste, dessa maneira, em uma

mobilização que o professor realiza de seu ser integral, nas diversas situações (do

planejamento a avalição da aula) e contextos em que se insere. O objeto (objetivos) de

seu trabalho envolve a criação ou organização de um espaço que possibilite a

aprendizagem dos conteúdos disciplinares, bem como o desenvolvimento de

capacidades específicas dos alunos.

Nesse sentido, o professor é orientado pelas “instâncias superiores” de ensino e

seus projetos, mas também se utiliza de instrumentos “obtidos do meio social e na

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interação com diferentes outros que, de forma direta ou indireta, estão envolvidos na

situação”. (MACHADO, 2007, p. 93) Em sala de aula, o professor mobiliza diferentes

dimensões de seu trabalho (físicas, linguageira, de cognição, afetivas, entre outras) no

alcance de seu objeto. (Op. Cit. p. 39)

Assim, o trabalho comporta uma dimensão subjetiva e coletiva, sendo

reorganizado por aqueles que o realizam, ele comporta as prescrições indispensáveis à

realização do trabalho real, ao alcance dos próprios objetivos dos sujeitos. Por essa

razão, é importante também abordar essas dimensões de forma mais abrangente, como

será tratado a seguir.

Ao viver na coletividade, o indivíduo também se caracteriza por uma renúncia

pessoal, na medida em que se acha engajado em uma atividade, que é apenas um

segmento, uma parte do todo em que vive. É isso que lhe confere o caráter de

coletividade, esse “fazer” em sociedade (CLOT, 2007, p. 81).

Tipos de agir

No curso das pesquisas envolvendo a esfera praxiológica, especialmente a partir

dos estudos do grupo Langage, Action, Formation (Linguagem, Ação, Formação –LAF)

de Genebra, Bronckart (2004, 2006), Bronckart, Bulea e Fristalon (2004) e Bulea

(2010) ressaltam também algumas questões terminológicas importantes. Nesse sentido,

Bronckart (2006) considera relevante distinguir os termos agir, ação e atividade, além

dos diferentes tipos de agir. Essas noções são importantes para compreender os

procedimentos de análise do ISD.

O termo agir (também chamado de agir-referente) designa qualquer intervenção

orientada no mundo, por um ou vários indivíduos, podendo ser observado. De forma

genérica, é entendido “como conjunto de condutas individuais mediatizadas pela

atividade coletiva, concomitante com a atividade de trabalho.” (BULEA, 2010, p. 82)

A atividade designa uma leitura do agir que considera as “dimensões

motivacionais e intencionais e os recursos mobilizados por um coletivo organizado.” A

ação, então, designa “uma leitura do agir que implica as mesmas dimensões

mobilizadas por uma pessoa particular.” (BRONCKART, 2006, p.213)

Conforme observado por Mazzillo (2006), o agir não pode ser analisado somente

sob os pontos de vistas e abordagens destacadas, considerando sua temporalidade e sua

organização lógica ou cronológica. Em sua pesquisa a respeito do trabalho do professor

de língua estrangeira, ela analisou o agir docente considerando os predicados e verbos e

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suas diferentes representações, distinguindo três categorias: figuras do agir

linguageiro, figuras do agir com instrumentos e a figura do agir mental (cognitivo).

Para tanto, considerou a realização prática e as condutas observáveis dos sujeitos

pesquisados, isto é, o ponto de vista da práxis. Reforça o que Bronckart (2006, p. 137)

destaca a respeito da ênfase principal, central, do posicionamento assumido no ISD, o

que ele considera como a primazia das práticas. A tentativa de compreensão do

funcionamento do humano deve, necessariamente, implicar em uma análise das

características do agir coletivo, pois nesse âmbito “se constroem tanto o conjunto dos

fatos sociais, quanto as estruturas e os conteúdos do pensamento consciente das

pessoas”.

O agir linguageiro apresenta verbos de dizer que representam o caráter

interacional do agir, implicando ora uma ação imediata dos alunos ou não ora indicando

uma reação do professor ao agir dos alunos. O agir com instrumentos indica um agir

individual do professor com o uso de instrumentos simbólicos ou materiais. O agir

mental (cognitivo) envolve uma atividade mental ou alguma capacidade.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa em destaque vincula-se ao cenário da Linguística Aplicada,

desenvolvendo a análise dos textos-discursos sob a ótica do Interacionismo

Sociodiscursivo. O quadro de análise do ISD considera a problemática do agir a partir

dos textos. Essa perspectiva teórico-metodológica implica em uma interpretação das

ações humanas em relação às ações de linguagem e aos textos que as materializam.

Foram selecionados quatros sujeitos, do quadro de professores da rede de

Escolas Técnicas Estaduais de Mato Grosso, sendo dois homens e duas mulheres, três

em regime de trabalho com contrato temporário e uma servidora efetiva.

O método utilizado foi a Instrução ao Sósia, a qual consiste em uma interação

face-a-face entre o pesquisador e o trabalhador. Neste caso, o pesquisador solicita que o

trabalhador, imaginando ser substituído por outro no dia seguinte, instrua seu sósia,

transmitindo-lhe o que fazer da maneira mais fiel possível para que as pessoas no seu

contexto de trabalho não sintam a menor diferença. Esta interação é gravada em áudio

ou pode ser descrita em forma de texto escrito (LOUSADA, 2006).

Surgiu no quadro teórico da psicologia do trabalho, proposta por Oddone (1981

apud Clot 1999/2007). Bulea (2010, p.31) explica que, nos anos de 1970-1980, Ivar

Oddone utilizou este método dentro do contexto de formação de operários da empresa

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Fiat. Oddone concebeu o método, mas foi Yves Clot quem o introduziu na França,

dentro do quadro da Clínica da Atividade.

A instrução ao sósia é considerada um método mais leve, que outros métodos

como a autoconfrontação (simples e cruzada), mas que obedece aos mesmos objetivos,

isto é, a transformação do trabalho do sujeito mediante o deslocamento de suas

atividades (CLOT, 1999, p. 144).

Após a coleta dos dados, os vídeos foram transcritos e os registros analisados. A

análise incidiu sobre a infraestrutura global do texto, desde seu conteúdo temático até os

mecanismos linguísticos e enunciativos presentes nas sequências textuais.

O objetivo mais amplo dessa pesquisa é esboçar um novo cenário para a

compreensão do trabalho do professor, visto como um verdadeiro trabalho, no contexto

da Educação Profissional e Tecnológica. Trata-se de um olhar que surge no próprio

sujeito da pesquisa, o professor, o qual reconfigura e reflete sobre seu agir por meio de

sua atividade de linguagem.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Tipos de agir mobilizados pelo texto de IAS

Após a análise dos tipos de discursos e dos segmentos temáticos verificados nos

textos de instrução ao sósia, realizada de forma ampla em outras etapas da pesquisa, os

dados apontaram pelo menos as prefigurações de 3 tipos de agir: agir com instrumentos

simbólicos e materiais; agir linguageiro direcionado a outros e um agir cognitivo.

O recorte desta análise apresenta alguns exemplos, registrados nos textos. As

figuras de agir (MAZZILLO,2006) mais evidenciadas nos segmentos foram aquelas que

envolvem:

a) Um agir linguageiro dirigido a outros;

T1-S2: (...) você falar...que você vai falar sobre isso...mas também mostrar pra ele qual que é

o objetivo... em que ele vai usar aquele conteúdo no seu dia a dia...porque a pessoa só aprende o que

gosta...

T11- S3: Após isso você faz a correção na lousa e...perguntando (normalmente) pra eles qual

que é a palavra...pode ler a música e quando chegar na palavra...falar... ou pode colocar uma terceira

vez e pausar após a palavra e perguntar qual que é...ou na segunda vez você ver que já conseguiram

fazer ... com a segunda escucha que a gente fala...

T19-S4: Exatamente... Eles estão com dificuldade de reconhecer História do Brasil... que é

necessária e leitura também... de compreensão do que que é....então você precisa sentar com calma... você

precisa explicar de uma outra faz uma pequena avaliação pra ver o que que foi forma mais

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direcionada... Feito isso... você retoma como a turma novamente...... o que que ficou marcante pra ele

naquelas aulas... naquela aula...

P: A avaliação é exercício... pergunta oral?

T20-S4: Pergunta oral...pergunta oral...nessa aula específica...néh::::...éh:::.... E aí... até então

depois que você verifica isso... pede pra que eles providenciem uma atividade de pesquisa pra que

eles possam entrar na aula seguinte...

Nos exemplos expostos o objetivo sempre demanda uma resposta do aluno em

virtude da atividade abordada: responder a uma pergunta, ler com o professor, pesquisar

um assunto, ouvir uma explicação, etc. Isto quer dizer que este agir prefigurado no texto

de IAS implica uma ação de linguagem evidenciada nos verbos em destaque: explicar,

perguntar, falar, ler, etc. O professor, em sua prática tem a expectativa de que ao

direcionar seu discurso receberá uma resposta do interlocutor ao qual se dirige e diante

desta resposta ele pode prosseguir, parar ou modificar sua ação: uma atividade

triplamente dirigida – para si, para o outro e para a coletividade.

b) Um agir com instrumentos simbólicos e materiais;

T9-S3: Após falar sobre as línguas... éh:: você pode (também) usar o mapa que tem na

biblioteca ou então você pode desenhar na lousa o mapa da Espanha... ou trazer também um data

show... usar alguns recursos visuais... mostrando então onde táh as regiões que falam as quatro línguas

que a Espanha tem....

T11- S3: Certo? Então após mostrar as línguas da Espanha... er:::...com o auxílio do mapa

ilustrativo...você vai entregar a eles...então... uma música pra que eles tenham contato...néh::: com a

língua... ( ) possam ouvi-la...Essa música é Para tu amor de...

T11-S4: Não... As vezes tem aula a noite toda... então quando acontece isso é porque tem algum

vídeo que vai passar... néh:::...e como a gente programou pra amanhã... pra você dar aula de História do

MT... é só no segundo horário... então... você tem esse tempo... Mas... se fosse no primeiro horário ou as

duas aulas... ou normalmente tem uma dinâmica... ou um filme... ou alguma visita. Né:::...

T2-S1: A partir desse momento você já vai começar a ligar os equipamentos...

televisão::...data-show...colocar o pendrive... já selecionar {colocar} já preparar o material que

você já deixou... já pra abordar na aula...enquanto isso os alunos vão...vão chegando....

Nos segmentos anteriores é possível reconhecer o uso de instrumentos

simbólicos (o conteúdo da aula, o planejamento, a visita técnica), mas, sobretudo, dos

instrumentos materiais (equipamentos eletrônicos, mídias diversas, mapa, etc.). Isto

quer dizer que este agir prefigurado implica uma apropriação dos artefatos evidenciada

nos verbos em destaque: selecionar, preparar, ligar, programar, mostrar e entregar, etc.

c) Um agir cognitivo;

T2-S1: Você vai perceber que eles já estão quase todos em sala de aula....Geralmente:: no

primeiro momento néh: ... você vai cumprimentá-los e vai enfatizar a questão das faltas...(né...) que eles

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tem uma porcentagem de frequência e vai colocar éh:::: de repente um ponto que você percebeu

néh:::....chegar atrasado...

T1-S2: essa série de exercícios é possível fazer uma análise néh:: digamos que diagnóstica de

como está a situação de cada um...e...se::

T25-S3: Você pode preparar a sua aula... pode planejar o que vai fazer na aula seguinte...

além da tarefa que deixou...você tem liberdade de fazer qualquer outra coisa... acessar emails... planejar

aulas de OUTRAS unidades também...

T14-S4: Relembro... depois desse momento que eu registro... eu relembro... você tem que

relembrar...éh::::....o que que foi dado na aula passada... fala...porque a História de MT... eles estão com

uma dificuldade muito grande de memorização... então você faz o esquema da aula passada... pergunta

pra eles o que que eles lembram... aí você vê... faz uma avaliação... o que que eles conseguiram éh:::

compreender... Baseado nisso... você reforça ou não... Reforçando... você já parte pra aquilo que você já

programou... Néh::::...

Neste caso, o agir prefigurado mobiliza uma ação mental, um agir cognitivo

marcado pelos verbos: perceber, relembrar, memorizar, compreender, planejar, fazer

uma análise diagnóstica. Percebe-se a importância do estímulo cognitivo nas atividades

do e para o professor-aluno, principalmente considerando o caráter por vezes

equivocado de privilegiar a competência instrumental nos cursos profissionalizantes,

que exigem do aluno preparo para o mercado de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como argumentado, tomamos como pressuposto a defesa de uma análise dessa

semântica do agir de forma integral, ou seja, incorporando não somente as propriedades

psíquicas do agente e suas dimensões subjetivas, mas contemplando os diversos

sistemas de representações que se fundamentam no coletivo, visando compreender

também as dimensões sociais. É preciso também analisar a dimensão de temporalidade

e o processo de desenvolvimento desse agir e observar quais são os resultados

produzidos por ele no mundo.

Nosso interesse maior, retomando os autores em que ancoramos esta análise,

centra-se num debate que envolve os próprios trabalhadores, os professores da

Educação Profissional e Tecnológica, considerando quais são as representações e

concepções que se manifestam nos textos. Assim, podemos nos aproximar do trabalho

do professor: o trabalho prescrito e o trabalho realizado (ou pelo menos a prefiguração

desse realizado). Não é, portanto, um simples olhar do pesquisador sobre o trabalho e

nem o que pensa ser o trabalho do professor, mas é a prefiguração de um agir a partir do

olhar e da representação do próprio agente, do ponto de vista do profissional que atua

nesta modalidade de ensino e evidenciado na linguagem.

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Ora, neste sentido, trata-se de uma inovação ou, pelo menos, uma tentativa de

inovar, de possibilitar o desenvolvimento pela conscientização e no apreciar essa prática

docente, assim, consequentemente, intervir para transformar.

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i Em oposição ao termo “trabalho alienado”, refere-se àquele que engaja a totalidade do humano e

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PUC de São Paulo, sob a coordenação de Anna Rachel Machado, a qual infelizmente faleceu no ano de

2012.

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