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nº 19 • outubro 2015 • distribuição gratuita • Periodicidade: mensal www.facebook.com/fepianojornal DANIEL BESSA EM ENTREVISTA “Chegar à FEP e ver tanques do exército não é uma experiência agradável”

Fepiano XIX

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DANIEL BESSA EM ENTREVISTA

“Chegar à FEP e ver tanques do exército não é uma experiência agradável”

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2

Start me up

“Os senhores já alguma vez considera-ram a questão da verdadeira natureza da universidade?” pergunta Masters

em Stoner, de John Williams. A resposta pode parecer óbvia, mas Masters escarne-ce das respostas pueris dos seus colegas. A universidade existe para os desalojados do mundo, afirma. Vejamos.

À entrada na FEP, a maioria dos alunos parece certo do que quer do seu futuro. Aprender os truques e manhas necessários para poderem ser os Gordon Gekkos de amanhã, criar a própria empresa e crescer com ela. Ser empreendedores. Como se empreendedorismo e star-tups fossem sinónimos. E como se a economia fosse a arte do cifrão.

Passado um ano, por vezes menos, por vezes mais (por vezes nun-ca), apercebemo-nos de que talvez não seja assim tão linear. A ideia de ir para uma Big Four durante dois anos, perceber as dinâmicas internas do meio empresarial e arrancar com um projecto próprio já não é tão apelativa. Falta qualquer coisa. Talvez um mestrado, alargar as bases nunca fez mal a ninguém. Mas este regresso ao abri-go que é a vida académica raramente se faz em busca do conheci-mento. Não parcas vezes, faz-se por medo. Pela ânsia de recuperar o tempo para pensar, mesmo que não se faça uso dele. Porque tempo para pensar é uma coisa que jamais será recuperada mais à frente. E a dúvida alastra. Uma dúvida boa, se estivermos dispostos a ouvi-la. Se a incerteza com que encaramos o futuro não se traduza em inse-gurança mas em adaptabilidade.

Assumamo-nos assim como desalojados. Desalojados a quem po-derá não faltar casa, mas a quem faltará propósito se formos lan-çados ao mundo sem alguma vez pensar nele; se abandonarmos o conforto que negamos a nós próprios, mas que sabemos que não voltaremos a encontrar fora destas paredes de betão. Desalojados no sentido em que não sabemos ainda o que queremos fazer dos próximos quarenta, cinquenta, sessenta anos que (esperemos) nos serão oferecidos nem, quiçá mais importante, como o queremos fa-zer. Ou pelo menos não deveríamos.

“É para nós que existe a universidade, para os desalojados do mundo”, retoma Masters. “Tal como a Igreja na Idade Média, que se estava nas tintas para a laicidade ou inclusive para Deus, também nós temos as nossas pretensões para podermos sobreviver. E sobre-viveremos…porque temos de o fazer.” n

Coordenação: Manuel Lança e Pedro GonzálezRedação: Carolina Fernandes; Catarina João Vieira; Gil Flores; Gonçalo Salazar; Guilherme Sousa; Hélder Ferreira; Inês Lagoutte; Jorge Lobo; José Pedro Sousa; Maria Inês Ribeiro; Raquel Meneses; Regina Capela; Rita Figueiredo; Rui Maciel; Rui Pedro Ribeiro; Sara Ribeiro; Tiago Ferreira; Tiago Huet Rocha

Paginação: Célia César - Grupo Editorial Vida Económica, S.A. Impressão: UnicópiaMorada: Rua Dr. Roberto Frias, 4200-464 (Porto, Portugal) Contacto: [email protected] Facebook: www.facebook.com/fepianojornal Issuu: www.issuu.com/fepiano

FEPIANOJuntos fazemos notícia

OPINIÃO

Número um? ....................................... 3

ATUALIDADE

Whiplash or good job? ................... 4-5

Os Banqueiros Anarquistas ............ 6-7

Tahrir ................................................. 8-9

ECONOMIA

Locomotiva mundial a perder

vapor ............................................ 10-11

ENTREVISTA

Daniel Bessa ................................. 12-15

CRÓNICA

Retorno Abensonhado. .................... 17

CULTURA

Vintajante ..................................... 18-19

INVESTIGAÇÃO

Iconoclastas ................................. 20-21

O conto do escravo ..................... 22-23

Índice

PEDRO GONZÁLEZ

Page 3: Fepiano XIX

3

Sempre foi improvável que a éti-ca fosse o pilar dos valores ine-rentes às sociedades modernas

que são essencialmente capitalistas. Cresce-se, hoje, com valores de am-bição desmedida e inconsequente, de triunfo pessoal, de consumo gra-tuito e frívolo. Isto sucede porque as sociedades evoluíram – e não con-sideremos evolução como sinónimo de progresso – ao ritmo paralelo dos mercados e de todas as idiossincra-sias complexas das novas economias que refinam cada vez mais o consu-mo e a produção sem limites.

Por outro lado, há, surpreendente-mente, uma transposição deste com-portamento para a atitude governa-tiva. Existe uma subordinação quase absoluta do poder executivo peran-te o capital, independentemente do preço que este tem que pagar para existir o, por vezes, subversivo cres-cimento económico.

Vejamos o caso que sucede atual-mente em Angola: os direitos funda-mentais de um (são quinze, mas este exemplo concreto e mediático serve melhor o contexto deste escrito) ci-dadão luso-angolano, Luaty Beirão, foram severamente vilipendiados e, como consequência, o Estado Por-tuguês corporizado por Rui Machete desresponsabiliza-se da necessidade de tomar uma posição concreta con-tra o facto de existirem portugueses na situação de presos políticos na di-tadura travestida de Angola («Nós estamos a acompanhar do ponto de vista humanitário, visto que se trata de uma matéria interna de Angola, no que diz respeito ao problema da averiguação se existe, ou não existe, uma infração de caráter penal. Nis-so não nos imiscuíamos», 12 Out.

tvi24). Há uma tremenda hipocrisia em torno deste assunto, é óbvio que esta posição completamente vergo-nhosa (da maioria dos atores políti-cos), acontece devido aos interesses económicos que existem com o Esta-do Angolano.

Nunca foi tão irrefutável que, em Portugal, existe uma clara sobrepo-sição do capital face à ética. Quan-do é pensável que existe uma espé-cie de bom senso comparativo dado ao nosso grau de desenvolvimento, aparece esta insólita sobrevalorização abjecta da importância de negócios com a família do déspota angolano em detrimento de salvar, sublinho salvar, alguém que luta por uma cau-sa indissociável da plena liberdade, isto é, a liberdade de expressão ou li-berdade de opinião. Por conseguinte, dado o contexto político-ideológico, atribui-se uma relevância maior aos aspectos económico-financeiros em oposição àquilo que seria, em situa-ções normais, de bom senso, isto é, às questões sociais, éticas e humani-tárias.

Nos últimos quatro anos desta go-vernação observamos a tal sobreposi-ção suprarreferida: o ajustamento do défice, a descida da dívida, a estabili-dade financeira, o acesso aos ‘’merca-dos’’, et cetera, foram as manchetes deste executivo, que, consequen-temente, deixou desabar no esque-cimento os danos colaterais destas medidas. Efetivamente, nesta últi-ma legislatura observamos um me-nosprezo muito expressivo pelos tais ‘’danos colaterais’’, quero eu dizer, pelo aumento do número de crian-ças no limiar da pobreza, a banaliza-ção da precariedade laboral, etc., que nos foram apresentados como sendo

meramente estatísticos inevitáveis e insignificantes.

Lamentavelmente, nos dias de hoje as pessoas são olhadas com uma neu-tralidade execrável e com uma abs-tracção surpreendente; há uma des-personalização do indivíduo que passa a ser um peão num jogo de xa-drez: às vezes é necessário sacrificar muitos peões para ganhar o jogo.

Atento ao país e a toda esta sua en-volvente, observo que esquecemos – enquanto país – de que se devem hierarquizar prioridades, que an-tes de pensar em problemas abstra-tos (como dividas, défices, cotações em bolsas, juros, investimento, etc.), temos que agir no sentido de abolir a fome e não, como tem sucedido, agravá-la. Depois da fome, a saúde e a higiene. Depois da saúde e da hi-giene, a educação. É entristecedor constatar que no modelo de socieda-de em que nos inserimos as priorida-des não sejam estas, mas sim a acu-mulação de capital per si.

Talvez fosse aconselhável tentar combater esta despersonalização do indivíduo assim como a crescente indiferença e conivência com pro-blemáticas sociais e humanitárias. Talvez tenha sido sempre assim, o Homem ou o Estado a querer mais para si – oferecendo aos mais abne-gados somente interstícios de espe-rança que depressa desvanecem –, não tendo o seu egoísmo aliado à conveniência politica em nada desa-parecido com o escorrer das décadas.

Ainda assim, não consigo conceber uma ideia de progresso que não con-sista num aprimorar da cordialidade nas relações sociais – sustentado pela ética – e da convergência harmonio-sa de todas as classes sociais. n

OPINIÃO

Número umTIAGO HUET ROCHA

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Horas e horas passadas nos es-critórios a ultimar relatórios de contas, ultrapassando o

normal horário de trabalho e provan-do, contrariamente ao que sempre nos disseram em jovens, que depressa e bem tem de haver muito quem.

Os empregos dos recém-licenciados exigem o cumprimento dos prazos para ontem, implicando um ritmo de trabalho frenético, como se tivéssemos sido treinados para uma corrida. No fundo, a necessidade da simbiose entre perfeição e fast tempo.

As ditas soft skills têm, nos últimos anos, vindo a ganhar um cada vez maior destaque nos perfis de recruta-mento por parte das empresas. Com efeito, as competências técnicas, em-bora sempre evidentemente importan-tes, perderam alguma preponderância relativa, especialmente num mundo

cada vez mais global e interligado, onde a cooperação entre países, em-presas e trabalhadores ganha cada vez mais importância.

Efetivamente, as faculdades procu-ram oferecer aos recém-licenciados um leque de competências técnicas uni-forme consoante as áreas de estudos. Porém, torna-se claro que esta aborda-gem clássica revela algum conservado-rismo e desajuste face à realidade atual do mundo, onde são necessários indi-víduos não só capazes de cumprir o seu trabalho individual, como também de conseguir cooperar com os seus cole-gas. É neste ponto que, pelo menos na Faculdade de Economia do Porto, ca-bem as inúmeras organizações de estu-dantes que visam precisamente a su-pressão dessa lacuna.

Por melhores que sejamos, teremos sempre uma vantagem comparativa

HELDER FERREIRARAQUEL MENESES

RUI PEDRO RIBEIRO

ATUALIDADE

Whiplash or good job?

Há um Homem que se deteriora porque se comprometeu e parece

fazer tudo por não quebrar o compromisso.

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em determinada área, ao passo que um colega terá noutra. Uma equipa é a soma das individualidades, das vanta-gens comparativas individuais e caberá a um líder (que poderá não ser o mais capaz a nível técnico) saber alocá-las consoante os objetivos. É fulcral saber tirar o melhor de cada individualida-de. Seja através do “som do chicote”, seja através da recompensa sob forma de elogio. Isto é ser um líder.

Porém, nem sempre o indíviduo mais alto na hierarquia é um líder na verdadeira aceção da palavra, isto é, a principal força motriz que puxa por todos os outros, mas sim um chefe, ditando as leis a seu bel prazer, pres-sionando e criticando tudo e todos, sem, contudo, dar o vital beneplácito à sua banda. Os funcionários tentam manter a inoquidade do seu trabalho, acrescentando-lhe um ritmo frenéti-co!

É bom!? O double time swing ace-lera, cada vez mais rápido. O seu som parece exprimir verdadeiramente o tempo. Sente-se nervosismo, escorrem gotas, nem sempre só de suor…

Em que medida é preciso morrer para alcançar o objetivo? Há limites? Quem quiser que o decida.

Em momentos em que o silêncio já lidera pelo cansaço, ou temos explosão ou implosão. O suor persegue! Pode-mos medir a obsessão?

Não há tempo a perder para quem

não tem tempo, mas há tempo a ga-nhar para a mesma pessoa. O que é que será mais legítimo? Será que exis-tem as duas hipóteses?

O Homem de 2015, maioritaria-mente urbano e cosmopolita, defronta os seus próprios medos, como nunca, a uma velocidade que o impede de não desesperar pela espera num semáforo. Todos querem uma luz verde, todos querem avançar, porque há coisas a fa-zer e não há tempo.

Há um Homem que se deteriora porque se comprometeu e parece fazer tudo por não quebrar o compromisso. O seu superior mantém-no sobre o seu olhar a tempo e a cada compasso em falso, pode surgir um “Not quite my tempo”. Deve isso fazer parar? Creio que não!

Parece-me hoje, mais do que nunca, que poucas coisas nos fazem parar. To-dos querem alcançar! Mas, vale tudo? A perfeição não deixa em paz o cére-bro humano, assim como o poder ou a força, que transportam cada vez mais a humanidade para uma selva de fatos e gravatas onde toda a gente quer rasgar burocracias e alcançar o seu objetivo. Muitos cães a um osso, muito pouco “estrelato” para tão poucos, e o double time swing que não parou de acelerar, deixa meio mundo ansioso pelo Grand Finale.

Para uns apenas se muda de música, para outros acaba o disco! O objetivo primordial não alimentou todos. Uns passam agora a engravatar-se melhor, outros não perdem tempo e partem para outra, outros apertam ainda mais o nó e pifam!

Até que ponto a nossa miragem nos pode levar à exaustão? Quanto vale a obsessão?

Whiplash, uma aprendizagem no sentido em que a busca à perfeição não é um caminho sem saída, é uma pro-cura quase infinita em que o sangue, as lágrimas e o suor são o sinónimo dos resultados. Quando aquilo que mais desejamos parece estar, ilusoriamen-

te ou não, ao nosso alcance, são fracas as forças que nos puxam para trás, e a lucidez necessária para saber encontrar os limites é ausente.

Nós, estudantes, estamos constante-mente pressionados. Acreditando que vale a pena dar tudo para melhores re-sultados académicos e movidos pela expectativa de ser os melhores, chegará o dia em que somos considerados os melhores? É tão dificíl e tão subjetivo saber o que é ser o melhor, que prova-velmente nunca ninguém o será, pelo menos em pleno. Tratar-se-á de uma luta eternamente desigual? Esta espe-rança na glória leva a que se cometam suicídios emocionais, irreversíveis e possivelmente trágicos.

Tal como no Whiplash, há sempre um impulsionador, um responsável, alguém que inicia a fogueira, e vai lan-çando achas, até a vítima morrer estur-ricada. Essa pessoa, ou essa influência, é o nosso amigo assassino, a nossa bóia de salvação furada.

Podemos ser implacáveis? Que nin-guém é perfeito já todos sabemos, mas também se acredita que prática leva à perfeição, isso significa que devemos tentar indefinidamente?

Uma coisa é certa, a vitória vale a pena. A vitória faz-nos sacrificar tudo aquilo que temos, por algo que não te-mos, acreditando firmemente que essa troca é favorável.

Quanto Vale ouvir “Good Job”? n

Quando aquilo que mais desejamos parece estar ao nosso alcance, são fracas as forças que

nos puxam para trás, e a lucidez necessária para

saber encontrar os limites é ausente.

“Contrariamente ao que sempre nos disseram

em jovens, depressa e bem tem de haver muito

quem”

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Vivemos numa sociedade de banqueiros. Todos nós no fundo somos banqueiros,

não haveria sempre a nossa decisão de se resumir aos nossos bolsos. A sociedade tornou-se refém do di-nheiro que tem na algibeira e tudo é economia.

A nossa sociedade é uma ficção, vivemos sob pressupostos que são pilares de areia quando os achamos de ouro, e a liberdade na socieda-de ocidental não passa de um paraí-so imaginado por Deus. O homem trabalha com um único objetivo, ga-nhar dinheiro para depois poder es-colher onde o gastar. O único pro-blema é nunca ter sequer hipótese de escolher, porque o tempo que gastou a ganhar dinheiro engoliu o tempo para escolher. Toda a nossa socie-dade tornou-se um mero refém de nós mesmos. Criámos uma entidade chamada dinheiro, que fora chama-

da de Deus antigamente, algo abs-trato e suficientemente justo para dizer o que nós valemos. A alegoria da caverna já não se trata de ideias, senão de sombras que são meramen-te representações de unidades mone-tárias. Onde está a luz do conheci-mento aos olhos da nota verde? Só se for numa start up tecnológica que vai ser lançada numa Oferta Públi-ca Inicial. O valor do conhecimento foi trocado pelo preço que o investi-dor está disposto a pagar, porque na sociedade ocidental o termo valor e preço sobrepuseram-se. O Homem afoga-se no cofre do Tio Patinhas.

Tudo é uma ficção no momento em que não é natural. Nós decompusemo--nos em meros círculos metálicos que contêm uma inscrição da altura que vi-vemos. Quando vivemos na sociedade dos dias de hoje, a maior maneira de avaliar uma pessoa é através do salário dela. Só existe um objetivo, ganhar di-nheiro, viver confortalmente. Prova-velmente porque existe uma conceção do mundo a priori de que o Homem, independentemente da sua ação vai cair porque na sua conceção está “ser feito para cair no precípio que ele pró-prio sempre foi”.

Porque críamos ficções então? Qual é o seu papel? Tudo é menti-ra no momento em que rejeitamos a nossa própria forma de estar perante o mundo. Um ser absurdo que nas-

ce para morrer e que está completa-mente condicionado a morrer. Por-quê existir então? Ainda não se sabe. O mundo roda lá fora e homem tra-balha todos os dias no seu escritório.

A própria fraqueza do Homem é não aceitar esta condição. “Como é que se vence o inimigo em qualquer guerra? De uma de duas maneiras: ou matando-o, isto é, destruindo-o; ou aprisionando-o, isto é, subjugando-o, reduzindo-o à inatividade.”, e aqui venceu-se o próprio Homem. Em vez de matar o inimigo e de mudar a conceção do Homem, fez o típico, reduziu-se à sua própria inatividade fechando-se num escritório insignifi-cante e iludindo-se através da ficções sociais. Uma nota de quinhentos eu-ros é um papel, quem lhe atribui o va-lor se não o próprio que o usa e acei-ta?

Que é o Homem se não a própria insanidade? Onde está a insanidade na Sociedade Ocidental? Tudo fic-ções, tudo o que não é natural que condiciona a nossa ação. “O mal verdadeiro, o único mal, são as con-venções e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais — tudo, desde a famí1ia ao dinheiro, desde a religião ao Estado.”. Vive-mos capturados numa metafísica louca onde esquecemos do que so-mos feitos, carne e osso. Citando Al-berto Caeiro:

ATUALIDADE

Os Banqueiros AnarquistasRUI MACIEL

“Falaram-me os homens em humanidade, Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. Cada um separado do outro por um espaço sem homens.”

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A única opção é então ser o Ban-queiro Anarquista. O Homem que sempre foi e continua a ser anarquis-ta. “O que quer o anarquista? A li-berdade — a liberdade para si e para os outros, para a humanidade intei-ra. Quer estar livre da influência ou da pressão das ficções sociais; quer ser livre tal qual nasceu e apareceu no mundo, que é como em justiça deve ser; e quer essa liberdade para si e para todas os mais. Nem todos podem ser iguais perante a Nature-za: uns nascem altos, outros baixos, uns fortes, outros fracos, uns mais inteligentes, outros menos... Mas todos podem ser iguais daí em dian-te; só as ficções sociais o evitam. Es-sas ficções sociais é que era preciso destruir.”

Quero desmitificar a noção de anarquista para o leitor des-te artigo, não falo de anarquia a nível político, mas de anarquia a nível individual no sentido etimo-lógico da palavra. “An” que provém do grego e significa, neste contex-to, sem e “árkos” que significa so-berano. Aqui apelo a uma retoma de nós mesmo e de não aceitar um soberano sobre o próprio indívi-duo. É preciso derrotar as ficções sociais.

“Mas eu já lhe disse que, pelo pro-cesso que descobri que era o único processo anarquista, cada um tem de libertar-se a si-próprio. Eu liber-tei-me a mim; fiz o meu dever si-multaneamente para comigo e para com a liberdade. Porque é que os outros, os meus camaradas, não fize-

ram o mesmo? Eu não os impedi. Esse é que teria sido o crime, se eu os tivesse impedido.” Todos nós te-mos que ser banqueiros anarquistas. A conversa jaz morta entre nós e eu pergunto, o que falta para ser o ban-queiro anarquista. n

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Mexo o café enquanto dou uma vista de olhos no jor-nal. O impresso é fresco e

a tinta borrata-me os dedos, por isso folheio devagar.

Todos os dias, diferentes notícias, mesmo tema: refugiados. O tema está na moda, e como acontece com qualquer tema em voga, raro é aque-le que não tem uma palavra ou uma opinião a acrescentar. Será que todos sabem como a atual crise surgiu?

2010. 17 de dezembro. Tunísia.Mohamed Bouazizi vendia vege-

tais como vendedor de rua fazia já sete anos. Frequentemente eram--lhe confiscados os seus bens e ins-

trumentos de trabalho e, constante-mente humilhado pelas autoridades locais, Bouazizi, ganha-pão de uma família de oito, pouco ou nada con-seguia fazer. Porém, dia 17 foi dife-rente, Mohamed tomou uma atitu-de. Neste dia, Mohamed ateou fogo ao seu próprio corpo, autoimolou--se. Este dia marca a história, ini-ciando assim a chamada e tão falada Primavera Árabe.

Apesar da sua morte menos de um mês depois, Mohamed foi tomado como um mártir perante os tunisi-nos, reunindo mais de 5000 pessoas no seu funeral. O povo revolta-se. Este episódio tem demasiada força.

TahrirMARIA INÊS RIBEIRO

SARA RIBEIROATUALIDADE

“Porém, dia 17 foi diferente, Mohamed

tomou uma atitude. Neste dia, Mohamed ateou fogo

ao seu próprio corpo, autoimolou-se.”

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Dez dias após a morte de Mohamed Bouazizi, o regime ditador de Ben Ali, que vigorava há 23 anos, cai.

Iniciam-se, então, os protestos. No Egito, milhares reúnem-se na praça Tahrir contra o regime do di-tador Hosni Mubarak. Pouco tem-po depois, Mubarak é obrigado a renunciar ao cargo que ocupava há 30 anos. A praça Tahrir, a praça da libertação, passa, assim, a símbolo desta revolta.

Na vizinha Líbia, cresce o movi-mento contra o ditador e corrupto Muammar al-Gaddafi. Uma guer-ra civil começa. Gaddafi condena à morte milhares de civis sob reprova-ção da ONU. A OTAN (Organiza-ção do Tratado Atlântico Norte) in-tervém com o objetivo de criar uma zona exclusiva do espaço aéreo líbio para que forças aéreas da Líbia não ataquem os insurgentes. A interven-ção culmina com a morte de Ga-ddafi. Com esta, cai um governo de mais de quatro décadas.

Muitos dos regimes repressivos que pareciam perpetuar-se assistem, então, à sua queda como dominós em fila.

Mas não na Síria. A Família al--Assad governa e não está disposta a abdicar do seu poder. Uma guer-ra sem limites é despoletada. Uma guerra com recurso a armas quími-cas, execuções em massa, tortura e inúmeros ataques a cidadãos. Uma guerra entre apoiantes do regime, o Exército Árabe Sírio, e vários grupos

de rebeldes entre os quais um gru-po de civis e desertores do exército oficial que formam uma ação con-junta e criam o Exército Livre da Sí-ria. O Conselho Nacional da Síria é criado, assume-se como a principal oposição.

O país desliga-se da Liga Árabe, que reprova a atitude e violência do governo, assim como a ONU, a União Europeia e os Estados Unidos. E Bashar al-Assad, apesar de todos os esforços, continua com poder e os cidadãos, para além da guerra civil, lidam também com grupos do Esta-do Islâmico. Na verdade, os sírios ar-rostam uma guerra de várias frentes. Uma guerra que parece não ter fim.

A alternativa do povo é fugir. A es-colha é simples. Entre morrer ou so-breviver.

E eis que chegamos ao presente. 4 milhões de refugiados sírios. 4 mi-lhões de pessoas que fogem da guer-ra. 4 milhões de seres humanos que lutam para sobreviver.

Todos os dias, diferentes notícias, mesmo tema. Refugiados: Eslovénia mobiliza militares e pede ajuda à EU (Euronews), Mais de 500 mil refu-giados chegaram este ano à Grécia (JN), violência policial na fronteira cria tensão entre a Sérvia e a Hun-gria (RTP).

E ao ler as notícias, pensamos. Pensamos em como se conseguirá resolver este problema. Um proble-ma que envolve milhões de pessoas, tantos países. Pensamos nos cida-dãos que ainda se encontram nos países em guerra civil. E no cidadão comum de qualquer capital europeia que, por um lado, ajuda, por outro teme.

A violência será a única maneira? Numa guerra que dura há quatro anos, que apenas resultou em mor-tes, tantas vezes inocentes. Como será possível terminá-la? Se durar mais dois, três anos, quantos mais prejuízos é possível prever?

Como é que a União Europeia não antecipou este fluxo de refugiados? O porquê de tantas medidas não eficazes. Será que a Europa, com a atual crise económica, controlada pela confiança e pelos mercados, conseguirá (quererá) receber todos os refugiados que necessitam de aju-da? Tentamos continuamente quan-tificar todas as consequências e pre-juízos causados. Atribuímos culpas. Mas quem culpar?

Os refugiados não são migran-tes. Não estão em busca de melhor emprego e remuneração. Fogem do conflito a que estão sujeitos.

Mas apesar de todos os constrangi-mentos pensamos: “não somos todos iguais?”, “não merecemos todos as melhores condições para trabalhar, para estudar, para viver?”. Afinal, “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos (...) -art. 1º” (De-claração dos Direitos do Homem e do Cidadão – 1789).

Talvez a própria condição de liber-dade seja intrínseca à sua busca, e o que designamos de fuga pode ser um meio para atingi-la.

Bebo a última golada no café. Saio. Está na hora de ir para a facul-dade. n

“Tentamos continuamente

quantificar todas as consequências e prejuízos

causados. Atribuímos culpas. Mas quem

culpar?”

“Na verdade, os sírios arrostam uma guerra de

várias frentes. Uma guerra que parece não ter fim.”

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No rescaldo da 2ª Guerra Mundial, a China encon-tra-se envolvida num con-

flito interno: a guerra civil. Em con-tínuo desde o início do séc. XIX, o conflito assume novas dimensões, dividindo a população entre nacio-nalistas e comunistas, naquilo que ficou registado como a Guerra da Libertação. Os nacionalistas, no po-der desde a queda da dinastia Qing, estavam a ser financiados pelos Es-tados Unidos, tendo acesso ilimita-do a suprimentos, armas e munições para suportar um exército crescente ao passo que os comunistas se encon-travam apenas apoiados pela URSS. No entanto, a desmoralização das tropas, a corrupção desenfreada do governo, o caos político e económi-co, acompanhado por uma hiperin-flação, tornaram a permanência do sistema nacionalista algo de insus-tentável. Pequim é então tomada em 1949, sem qualquer tipo de contes-tação, ficando o Partido Comunista no poder.

À cabeça do Partido Comunista figura Mao Tsé-Tung, que imedia-tamente coloca em vigor uma refor-ma agrária: as grandes propriedades são divididas pelos camponeses, au-mentando a superfície cultivada e, consequentemente, a produção agrí-cola nacional seguindo-se uma refor-ma do setor industrial. No entanto, o Grande Salto, como ficou conhe-cido, revelou-se um fracasso, ten-do submetido a população chine-sa a uma das maiores privações, em particular com uma inexistência de quantidade suficiente de alimento. A situação é apenas mitigada quando

Deng Xiaoping sobe ao poder, após a morte de Mao.

Com Deng Xiaoping à frente da locomotiva, a China começa final-mente a prosperar. Procurava-se a abertura da economia, através da criação das Zonas Económicas Es-peciais (ZEE). Tratavam-se de zonas que ofereciam infraestruturas e legis-lação especial de forma a atrair em-presas estrangeiras e canalizar Inves-timento Direto Estrangeiro (IDE), que se podiam fixar nestas zonas li-torais quando aliadas a uma empre-sa nacional. Procurou-se dar mais importância à indústria e à sua mo-dernização pela via tecnológica e às cidades, tendo sido então criadas as duas bolsas - Shenzhen e Shanghai, sendo esta a primeira ZEE criada.

Foram aplicadas mudanças estru-turais de baixo para cima - modelos aplicados em pequenos municípios ou províncias que se provaram pro-

veitosos foram instaurados a nível nacional. Gradualmente, verificou--se uma mudança no sistema eco-nómico: não se tratava mais de uma economia de planeamento central, mas ainda não era uma economia de mercado - a República Popular da China encontrava-se em transição, para uma economia social de mer-cado. Nesta, os fatores produtivos eram detidos em parte pelo Estado, ainda que os lucros daqui resultan-tes acabassem por ser acumulados de forma a criar uma almofada para fi-nanciamento público ao invés de se-rem canalizados para aumentar os sa-lários dos trabalhadores. Este sistema vigora até aos dias de hoje, assente na modernização dos quatro pilares da economia: agricultura, indústria, cultura e defesa.

Apesar de ter assumido um papel ativo na criação do GATT, em 1947, o país apenas voltaria a integrar a organização, agora denominada de OMC, em 2005, um processo bas-tante demorado devido às mudanças que teve que fazer de modo a aban-donar o modelo de planeamento central que vigorava, pautado pelas tarifas às importações, pela existên-cia de barreiras não-tarifárias, discri-minação dos produtos estrangeiros e a proteção desadequada da proprie-dade intelectual.

Tudo isto permitiu um crescimen-to económico sustentado até aos dias de hoje. Após décadas deste sis-tema, a China reclama o lugar de maior produtor de alimentos aten-dendo à mecanização da agricultura que conseguiu instaurar, de princi-pal importador de matérias-primas

ECONOMIA

Locomotiva mundial a perder vapor

JORGE LOBO REGINA CAPELA

TIAGO FERREIRA

Gradualmente, verificou-se uma mudança

no sistema económico: não se tratava mais

de uma economia de planeamento central,

mas ainda não era uma economia de mercado

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e maior exportador de bens. Mas a que custo? Até que ponto é que a maior abertura chinesa ao mundo está a conduzir à desumanização do trabalhador?

Esgotamento do modelo de crescimento?

No dia 24 de Outubro deste ano, a bolsa de Xangai teve a sua maior queda diária desde o apogeu da crise financeira em 2007, tendo apresenta-do um tombo de 8% numa só sessão.

Após anos de crescimento expo-nencial, os problemas estruturais nes-ta economia não conseguiram mais ser ignorados. Durante a crise finan-ceira, este país superestimou a esta-bilidade económica, não tendo sido aproveitada nessa altura a oportu-nidade de efetuar ajustes estruturais na economia e na indústria. A partir desse momento, um número consi-derável de indústrias deparou-se com um excesso de produção e com tec-nologia desatualizada que gerou pre-juízos pela necessidade, com o passar do tempo, da renovação de produtos. O regime chinês com este estímulo permitiu uma expansão do desfasa-mento da capacidade produtiva.

Importa saber, então, as razões que poderão explicar esta rápida desace-leração da China, cujas nefastas con-sequências originaram enormes preo-cupações a nível mundial.

Em primeiro lugar, destacam-se os problemas no sector imobiliário, assim como na construção. Após o auge da crise financeira internacional de 2007, a China implementou uma série de políticas baseadas em fortes investimentos, particularmente no setor da construção, como forma de atenuar os impactos da crescente ins-tabilidade financeira internacional. Neste sentido, verificam-se investi-mentos massivos não só por parte do Governo Central, mas também dos governos locais chineses. Estes úl-timos realizavam investimentos em

projetos que não apresentavam con-dições de viabilidade económica, des-respeitando os limites oficiais do en-dividamento; nomeadamente através da criação de empresas financeiras artificias que tinham como princi-pal propósito constituir veículos que permitiam os governos locais obter financiamento junto do sector finan-ceiro. O resultado cifrou-se em inú-meros apartamentos vazios em várias cidades chinesas, já que a oferta não acompanhou a procura, ao mesmo tempo que o risco de os bancos não recuperarem os créditos concedidos ter levado inclusivamente a agência Fitch a diminuir o outlook das dívi-das de longo prazo em moeda chine-sa para “negativo”. O jornal Financial Times assume uma posição pessimis-ta, afirmando que “a correção no mercado imobiliário chinês ainda nem sequer começou (…) pelo que quando o sector começar a contrair--se, que poderá ocorrer já este ano, a taxa de crescimento poderá baixar ainda mais”.

Outro problema que se coloca é a elevada dívida por parte dos gover-nos locais chineses, que, apesar das restrições ao endividamento impos-tas pelo Governo Central, aumentou 80% em apenas dois anos, através da criação das já mencionadas empresas financeiras. Apesar de ilegais, o Go-

verno Central tolerou esta forma de fuga ao endividamento, permitindo aos governos locais realizar investi-mentos que sustentaram as altas ta-xas de crescimento verificadas após a crise de 2007. O foco do problema prende-se com o facto de a prome-tida desalavancagem destes endivi-damentos ainda não ter começado e já se verificar uma redução no cres-cimento chinês, levando os analistas a afirmar que assim que a desalavan-cagem começar, o crescimento pode-rá tornar-se ainda menor. Para além disso, com os preços do imobiliário a começarem finalmente a diminuir (apresentaram uma variação homó-loga negativa de 4,3% em Dezembro último) e com as receitas da venda de propriedades dos governos locais a pesarem 35% das suas receitas, o crescimento económico chinês é con-siderado cada vez menos sustentável no longo prazo.

Este declínio da economia chinesa leva-nos também a especular se um dos motivos que leva a produção chi-nesa a ser de dimensão tão extensa é a desvalorização do ser humano como trabalhador. Até que ponto é que a maior abertura chinesa ao mundo está a tornar mais difícil esta desuma-nização do trabalhador? Até que pon-to é que a luta contra a corrupção, impulsionada pelo presidente Xi Jin-ping, teve um impacto na economia?

Apesar de todos estes constrangi-mentos serem vistos como naturais para alguns analistas, que afirmam que seria muito improvável manter taxas de crescimento acima de 10% para sempre, a verdade é que estes constituem os principais desafios para a liderança de Jinping. Alterar o modelo económico chinês baseado mais no consumo interno, em detri-mento do investimento e das expor-tações, considerado esgotado, obri-gará o Partido Comunista a efectuar as devidas reformas que há muito são esperadas no país. Será possível? n

Importa saber as razões que poderão explicar

esta rápida desaceleração da China, cujas nefastas

consequências originaram enormes preocupações a

nível mundial.

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Daniel Bessa, ex-professor da FEP, antigo diretor da Porto Business School, ministro da economia na legislatura de António Guterres e atual diretor da COTEC em entrevista ao FEPIANO.

O Dr. Daniel Bessa foi estudante e posteriormente lecionou na FEP. Na sua opinião, qual é a vantagem que os estudantes que não pretendem seguir a via académica, ou seja, as pessoas que pretendem ingressar no mercado de trabalho, podem re-tirar de um curso de economia ou gestão na FEP?

No meu caso, eu fiz uma carrei-ra muito académica, portanto qual é a vantagem para os outros. Vamos ver, eu penso que a frequência de uma licen-ciatura e a aprovação com êxito, e hoje já não é apenas uma licenciatura mas na grande maioria dos casos uma licencia-tura e um mestrado, é um instrumento, é um elemento de comunicação e um ativo. Entre outros. No meu tempo a licenciatura podia ser um ativo decisi-vo, mas hoje há outros elementos que são comunicados, experiências diversas, é muito valorizado o que foi fazendo na área circum-escolar, as atividades asso-ciativas e outras à volta da licenciatura; experiências pessoais, vivências, correu o mundo ou não correu o mundo, fez ERASMUS ou não fez ERASMUS, já teve alguma experiência profissio-nal não teve uma experiência profis-sional…Depois às licenciaturas estão

associadas imagens: a ir a extremos, di-gamos assim, se uma pessoa comunicar que é licenciada por Harvard, qualquer um que esteja do lado de lá sente-se se-guro e tira logo dali um conjunto de informações ou de implicações positi-vas. Se pelo contrário disser que vem da Universidade Independente e que foi colega do Engenheiro Sócrates, en-fim, não sabe o que está a dizer porque mais valia não dizer nada, porque isso transmite um conjunto de sinais extre-mamente negativos, de práticas pouco exigentes, enfim, para dizer o menos. A licenciatura como tal é um elemento e depois há licenciaturas melhores ou pio-res. Em Portugal, dizer que é licenciado pela FEP talvez tenha algum significado, e talvez as pessoas atribuam a isso algu-ma importância e talvez distingam entre FEP e ISEG, e ISCTE, e Nova, e Ca-tólica…se passarmos de Badajoz para lá, não tenho a certeza que FEP comu-nique grande coisa. Eu talvez preferisse dizer que era licenciado em Economia pela Universidade do Porto. Porque isso traz à cabeça de quem ouve uma série de informações e de conotações e portan-to eu tenho dito que não me envergo-nho de ser licenciado pela Universidade do Porto, digo isso com gosto, e com honra pelo mundo adiante, e cá dentro também não me envergonho de ser li-cenciado pela FEP, digo isso com gosto e com honra. Sendo certo que há me-lhores universidades que a UP por esse mundo adiante e talvez haja melhores escolas que a FEP em Portugal.

Depois de deixar a FEP continuou ligado a instituições de ensino su-perior.

Ora bem, eu aí tive uma experiência que hoje é considerada horrível e que não deveria acontecer, porque eu licen-ciei-me na FEP em junho ou julho de 1970, tinha 22 anos, acabei uma licen-ciatura de 5 anos, e como era um dos melhores alunos do meu curso uns dias depois o director da faculdade chamou--me e convidou-me a dar aulas. E por-tanto eu deixei de ser aluno em junho ou julho e em outubro estava a dar aulas. Na mesma escola. E isto hoje é conside-rado uma prática péssima porque eu não tinha mais experiência nenhuma, não fui posto à prova num ambiente agressivo.

Mas sente que a falta de expe-riência que naturalmente tinha ou sentiu poderá ter influenciado ne-gativamente o início?

Há quem fale nos melões que só se vê se são bons depois de abertos, ou dos bi-lhetes de lotaria que a pessoa só sabe se são premiados depois de feito o sorteio. Eu acho que às vezes as coisas correm bem e às vezes correm mal, e quando contratamos alguém rodeado de todos os cuidados também não é certo que corra bem, agora, a probabilidade de que no primeiro caso corra mal e no segun-do caso corra bem parece-me maior. Eu acho que desde cedo gostei de dar aulas, portanto revi-me nisso. Eu já tinha uma experiência desse tipo porque ganhei a minha vida como explicador, dava ex-

MANUEL LANÇARAQUEL MENESES

Daniel Bessa em entrevista

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plicações a partir dos 12 anos de ida-de. O meu primeiro aluno tinha eu 12 anos, ele tinha 11, foi assim que comecei a dar explicações. E dei explicações das matérias todas, portanto no ensino se-cundário eu tomava conta de um aluno e era português, era inglês, era francês, era ciências, era matemática, era geogra-fia, eu cuidava dele, era uma espécie de perceptor, quase como os bebés ingleses têm, era uma ama, ou um tutor, era um tipo a quem os pais pagavam e entrega-vam os miúdos e eu tinha que lhes ensi-nar, nalguns casos, as matérias todas. De-pois na FEP, durante a licenciatura, eu dei explicações das disciplinas todas. Do primeiro ao quinto ano, dei explicações na FEP enquanto aluno a alunos mais novos, contabilidade, economia, direi-to, matemática. Portanto, eu tinha mui-ta experiência, digamos assim, pelo que acho que não correu muito mal a ativi-dade letiva propriamente dita. Depois envolvi-me muito na gestão universitá-ria, na administração universitária, mas isso é uma outra questão. Na FEP, en-trei lá em 70, o 25 de abril foi em 74 e eu presidi ao Conselho Diretivo da FEP logo por aí. Deixei essa actividade de ad-ministração universitária na FEP em 80, já tinha sido presidente do conselho di-rectivo, portanto também tive essa expe-riência de administração universitária e depois há a terceira componente que é a componente da investigação onde eu tive um desempenho miserável. Douto-rei-me muito tarde, tinha 38 anos, acho eu, quando me doutorei no ISEG, e de-pois não fiz mais carreira. Ficou por ali, eu tinha uma curiosidade muito grande

pelo mundo exterior e passei a trabalhar noutras coisas. Mas mantive sempre a costela da administração universitária, portanto estive no Instituto Politécnico de Viana do Castelo, na criação da Es-cola de Tecnologia e Gestão, e aquela que acho que é a experiência da minha vida, de que eu talvez goste mais, é a ex-periência da Escola de Gestão do Por-to, chamava-se assim nessa altura, agora chama-se Porto Business School, e que eu dirigi durante 10 anos e correu real-mente muitíssimo bem. Mas nada disto era certo nem previsível quando fui re-crutado em 70 para dar aulas na FEP. O que eu quero dizer é que se correu bem foi muito por acaso porque com proces-sos como esses a probabilidade de correr mal é muito grande.

Como já referiu licenciou-se em 1970 e começou a dar aulas nesse mesmo ano. Durante os anos que se seguiram Portugal viu muitos processos a nível político e social que implicaram grandes mudan-ças, a começar com o 25 de abril em 1974. De que maneira é que estas mudanças influenciaram o ensino universitário e em particular a FEP?

Deixe-me precisar, eu estive realmen-te na FEP até 99, e até ao doutoramen-to fui um docente em exclusividade. Não era full-time era life-time como dizia lá o professor Rui Conceição Nu-nes que era um outro histórico da FEP. Depois em 86 com o doutoramento co-mecei a fazer outras coisas mas a FEP mantinha-se a minha atividade princi-pal. Em 95 deu-se a ida para o gover-no e no regresso eu voltei à FEP, já não seria a atividade principal, mas eu con-tinuava docente. Depois aí é que fui re-quisitado pela Escola de Gestão e aí dei-xei de dar aulas à FEP. Quis regressar, quando resolvi terminar a carreira eu transmiti à FEP que queria terminar a carreira na casa, na cadeira de primeiro ano de economia que foi onde eu sem-pre gostei mais de funcionar e onde tive

milhares de alunos…mas a FEP man-dou-me para o curso de jornalismo por-tanto não dei lá mais aulas, fui, diga-mos assim, terminar a carreira no curso de jornalismo. Bem, o que mudou…eu acho que mudou quase tudo, vamos lá ver, quando eu comecei a dar aulas um aluno inscrevia-se numa cadeira e comprava uma sebenta. Hoje já não há sebentas, mas o que era uma sebenta? Uma sebenta era uma publicação, nor-malmente em fascículos, onde se repro-duziam as palavras do professor. Nor-malmente o professor dava aulas um primeiro ano, nesse primeiro ano não havia nada, haveria muito pouco com que estudar, o professor chegava lá e di-zia o que tinha a dizer. Quando as coisas ganhavam alguma continuidade havia um aluno que tomava notas e nos anos a seguir começava a aparecer impresso o que o professor tinha dito. E que ia vol-tar a dizer. E tanto valia ir à aula como ler a sebenta, porque o que ele tinha para dizer estava lá. Havia uma biblio-teca, mas eu acho que 90% dos alunos da FEP não iam à biblioteca. Eu como aluno da FEP lembro-me de ir à biblio-teca no último ano. Aliás, havia figuras como o leitor. No limite o professor es-cusava de ir à aula porque alguém podia ler a sebenta por ele. E lia. E os alunos ouviam. E uma aula era assim. Com ex-ceção da parte da contabilidade, onde a FEP se destacou muito graças a pessoas que realmente eram os professores mais marcantes da FEP nessa época. E era aí que estava a maior reputação da FEP, um licenciado da FEP no meu tempo era alguém que tinha uma licenciatura em economia mas era basicamente um gestor ou tinha alguns conhecimentos de gestão, sobretudo na área financeira. Nada de recursos humanos, nada de co-municação, nada de marketing, pratica-mente zero em matéria de organização de empresas, mas sim, um conhecimen-to bastante razoável em contabilidade e finanças. As questões dos bancos ou do crédito, essa era a parte mais prática do curso da FEP, e a grande maioria dos

[Naquele tempo] o Capital do Marx podia

ser a sebenta das cadeiras todas.

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alunos que saíam da FEP iam trabalhar apara uma empresa em contas.

Ainda em relação às cadeiras, qual é que pensa ser o critério para definir as linhas de pensamento que as regem?

As grandes incubadoras do pensamen-to de esquerda ou mais revolucionário, como queiram chamar-lhe, são as esco-las. Onde é que está o Bloco em Portu-gal? Está na escola. Sejam os membros mais destacados seja a sua base militan-te. O Bloco sai da Universidade. Não sai das fábricas. Nem sai das ruas. O Podemos é liderado por um professor universitário. O debate mais ideológico e nesse debate mais ideológico o debate mais à esquerda, em certo sentido mais transgressor, e isto também está muito ligado à fase da vida em que as pessoas estão, está na escola. A FEP passou por isso por inteiro. Antes do 25 de abril a FEP era uma espécie de patinho feio da esquerda portuguesa, porque por causa daquela concentração nas contas e nas finanças e também muito no direito e alguma coisa na matemática a FEP era uma escola que era praticamente im-permeável ao debate político e tirou disso partido porque nós dizíamos que o Quelhas, o Instituto Superior de Eco-nomia, era, de todas as escolas de eco-nomia, a mais penetrada assim pelo debate político. Foi no Quelhas que a PIDE matou um aluno, o Ribeiro San-tos foi morto dentro da escola. Isto dá conta do confronto ideológico no seu interior. Coisa que, em Lisboa, aconte-cia menos, por exemplo, numa Nova. A

Nova foi criada para ser uma coisa mais limpa e menos contaminada pela políti-co, ou no ISCTE que sempre se apre-sentou como uma escola mais de gestão do que de economia e portanto também fugiu a essas questões um bocado mais. E portanto, nesse tempo, o grande argu-mento da FEP, quando nesse tempo se dizia “sou licenciado pela FEP”, o que se dava a entender é que era um menino ou uma menina que vinha de uma escola onde se trabalhava alguma coisa, sobre-tudo, em questões mais práticas e onde não se passava tempo a discutir política a ponto de se poder ser morto pela PIDE lá dentro. Essa era a situação da FEP até 74. Em 74 deu uma volta completa e cometeu, e eu lá dentro também, as as-neiras todas, a ponto de chegar a ser fe-chada: o ministro da educação, um dia, mandou lá a polícia e fechou a FEP e pôs tudo na rua, fechou e esteve fechada por volta de um mês. Foi tudo embora, pro-fessores, alunos, foi tudo embora, rea-briu aí um mês depois com um grupo de professores nomeado pelo ministério. Acabou a gestão democrática da escola e os professores foram todos submetidos a um concurso, todos, para ver se podiam lá continuar ou não. Isso deve ter sido

para aí, não sei, em 76, foi logo a seguir, portanto a coisa ganhou contornos de tal ordem e de tal agressividade lá den-tro que o ministro da educação um dia mandou lá uns tanques com a polícia lá dentro e o exército, e fechou aquilo. Depois, foi normalizando. Enfim, como tudo no país. Eu acho que a escola, a FEP, é hoje uma escola que nem 8 nem 80, que não será tão assética do ponto de vista político e ideológico como foi antes de 74, nem estará tão contaminada por esse tipo de problemas como se deixou contaminar naqueles dois ou três anos a seguir, e portanto foi normalizando. Eu já disse que nos anos 74, 76, 77, fiz todas as asneiras possíveis, mas gostei muito da controvérsia. Apesar de ter feito todas as asneiras possíveis eu fui o primeiro tipo que depois do 25 de abril deu aulas de sala cheia naqueles anfiteatros sobre Key-nes numa escola que era marxista dos pés à cabeça e regi a última cadeira de econo-mia marxista que houve na FEP.

Mas como diz as cadeiras eram mesmo influenciadas pelas ideolo-gias políticas.

Ah sim! O Capital do Marx podia ser a sebenta das cadeiras todas.

O debate mais ideológico, em certo

sentido mais transgressor, está na escola.

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Gostaria de partilhar connosco alguma peripécia ou algum acon-tecimento que tenha sido marcante para si na vivência na FEP?

A cena de um dia chegar à FEP às 8 da manhã e ver uns tanques do exército com os portões fechados é seguramente uma, não é assim uma experiência muito agradável. Depois eu disse que me meti muito na FEP, na luta lá dentro, e estive metido em eleições sobretudo no corpo de professores. Lembro-me de uma das eleições mais renhidas que tive, contra o Professor Conceição Nunes que era sem-pre o capitão da equipa adversária. É uma pessoa que, enfim, eu já não sou novo, ele tem mais alguns anos…e foi realmen-te a pessoa que estava do outro lado na-quelas guerras. Lembro-me de umas elei-ções onde a lista do Dr. Nunes tinha mais apoiantes que a nossa. Numa escola da-quelas as pessoas quase que não podiam ficar de fora, portanto era para um lado ou era para o outro, a pior situação era fi-car no meio. Eu achava que as pessoas es-tavam do lado de lá, porque era ali que estava o poder, e portanto, as pessoas não estariam ali com muita convicção, diga-mos, estavam mais ali por medo, e adotei como slogan da campanha que o voto é secreto. Secreto nós já sabemos que é, mas eu queria dizer “não faz mal, você apoia aquela lista mas na hora você vai votar di-reito”. E nós ganhámos.

Na sua perspectiva quais são as questões a que a economia deve dar resposta?

As questões das pessoas. Eu acho que 100% das pessoas querem ser felizes e a economia não pode responder a isso, isso é uma questão que transcende em muito a economia. Mas no meio da felicidade, para a maioria das pessoas, está ter um emprego minimamente estável, um sa-lário decente que permita viver minima-mente bem e com alguma estabilidade. Eu acho que a economia não pode dar a felicidade toda, mas essa dimensão da felicidade, do emprego e do salário, isso sim. E quando eu avalio se uma econo-

mia funciona bem, se merece aprovação ou reprovação, eu olho sobretudo para os empregos que cria e para os salários que são pagos através desses empregos. Desse ponto de vista a economia portu-guesa funciona muito mal, porque o de-semprego é muito alto, tem vindo a re-duzir, é verdade, têm sido criados alguns postos de trabalho embora muito gente também tenha saído, mas os salários são baixíssimos. Quando eu tenho que emi-tir um juízo sobre o desempenho de uma economia, de um país ou de uma região, emprego e salários. As empresas são ins-trumentais. A economia e a política não existem para resolver os problemas das empresas, existem para resolver proble-mas das pessoas, e as empresas estão no meio disso e podem ajudar.

E no que toca ao papel dos cien-tistas e da ciência económica neste sentido?

A ciência económica não sei bem o que é. É uma coisa relativamente recen-te, nascida lá no século XVIII em Ingla-terra. Sempre muito ligada ao Estado, e à política, e também à religião, pelo menos na fase inicial…mas claro, quan-do eu digo que é uma coisa recente isso não significa que não seja uma coisa ins-

tituída, tem um corpo profissional, tem escolas, tem publicações, mas para dizer a verdade eu com a economia não con-to muito. Um economista ou trabalha na esfera pública, e aproxima-se das po-líticas, ou trabalha na esfera empresarial e aproxima-se da gestão. Eu sou mui-to amigo de formações de banda larga, portanto eu se tivesse que escolher hoje talvez começasse pela economia e não ia logo para gestão, mas mais cedo ou mais tarde eu acho que os economistas terão que se aproximar da gestão. Por-que eu acho que é na gestão que um economista se cumpre. Não tem a di-mensão tecnológica, claro que não tem, isso é dos engenheiros, mas acho que os economistas são pessoas que trazem para a gestão uma formação de base mais alargada. Porque, digamos, o que é ser um bom economista? Quais são os indicadores de desempenho? Se eu esti-ver na academia são as publicações, mas já disse que não é o que me seduz mais. Se estiver na política ou na área pública, não sei, são as propostas que apresento e o seguimento que isso teve. Na área mais empresarial um economista é me-dido pelo seu desempenho como ges-tor. E eu acho que o mundo precisa de gestão. n

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Surgiu recentemente a oportu-nidade de conhecer aquele que foi o palco da infância de al-

guns familiares, a antiga Lourenço Marques. Ao fim de mais de qua-renta anos, vivi com eles o retorno a uma terra que nunca deixou de ser a deles. Também deles. Foi tanto o tempo para se fazer justiça...

Na altura dos acontecimentos (1974), quando o regresso à metró-pole (Portugal) se impôs, os pés da-quelas crianças nada mais tinham pisado além da agora Maputo. Uma cidade que fazia ver às nossas. E no regresso muito estranharam o atraso do nosso Portugal. Já sem as colónias africanas. Finalmente a sós. Também

o éramos orgulhosamente. Já sem a ditadura e mais em linha com os ape-los internacionais que, até então, nos exigiam a descolonização. Não mais voltamos a ser orgulhosamente sós.

E foi nesse Portugal virado para a Europa que aquelas crianças alimen-taram o sonho de retornar a África. Recuperar o cheiro dos dias de chu-va e o paladar da maçala, do coco e da manga. Chupar a cana do açú-car. Talvez somente revisitar as brin-cadeiras da infância com os amigos pretos. Ter as conversas saudosistas no palco que as alimentou. E assim foi. Eles foram os protagonistas. Eu paguei para ver.

Ainda assim, até partir, desde que sou português, Moçambique foi sempre parte do meu território. É tanto o nosso território nunca pisa-do. No entanto, o tempo avança e nós avançamos com ele. E, finalmen-te, aquela terra passava a ser territó-rio visitado. Como se sempre o fosse.

Esta viagem foi a busca da raíz, das estruturas que elevaram uma árvo-

re entre muitas. Mas, em parte de-feituosa, em parte virtuosa, é a úni-ca que me representa na floresta da vida. Creio que todos vivemos para conhecer a nossa. As suas tendên-cias e os seus instintos. O que lhe faz bem e o que não. E porquê. Quem somos.

Dizia eu que eles eram os protago-nistas. Aqueles que jamais voltarão a ser crianças. Aqueles que, quan-do eram crianças, tiveram que fugir e não mais puderam ser crianças no pátio da escola primária e na sombra das mangueiras do Xipamanine. Tic--tac, tic-tac e tic-tac. O tempo avan-çou e não mais o foram. A infância havia sido roubada. Mas, nesta via-gem, voltaram a sê-lo, naqueles mes-mos sítios. Fez-se justiça.

E foi feita em poucos dias. Tanto é que a viagem é contada numas pou-cas de frases. Foi pequena. Mas, cada período, cada pedacinho destes dias, foi saboreado assim. Pausadamente. Todos sabiam que aquilo não mais voltaria a acontecer. n

CRÓNICA

Retorno Abensonhado

JOSÉ GUILHERME SOUSA

Um plano de uma moradia aparece no ecrã e, não fosse o vento que bate ao de leve

num canteiro, não saberíamos que se trata afinal de uma filmagem. Uma família vê esta cassete, passando-a para frente, pausando-a, à procura de algo. Nada. O enredo gira exata-mente à volta desta e de outras cas-setes, enviadas anonimamente a uma típica família francesa: Anne e Geor-ges Laurent (Juliette Binoche; Da-niel Auteuil).

Caché é um thriller extremamente cativante. Intrigante mas não frenéti-co, em que as habituais cenas de ação e efeitos especiais são substituídos por longos e silenciosos planos que criam uma contínua e presente tensão ao longo do filme. Talvez influencia-dos pelo cinema comercial, passamos grande parte do tempo a tentar perce-ber quem é o culpado, quem é o autor das misteriosas cassetes.

Haneke aborda diferentes reali-dades e pontos de vista de uma for-

ma sublime, prendendo-nos ao ecrã. Sentimo-nos mais do que meros es-pectadores, sentimo-nos parte inte-grante do filme: hidden tal como a câmara.

Num filme sem heróis nem vilões, Michael Haneke, recorrendo a inú-meras referências políticas, desperta diversas questões. Expõe de forma peculiar um conflito em que qual-quer uma das personagens pode ser o culpado.

Se é que este existe. n

Caché (Hidden) CINECLUBE DE ECONOMIA

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“Um poeta está sentado na Holan-da. Pensa na tradição. Diz para si mesmo: eu sou alimentado pe-

los séculos, vivo afogado na história de outros homens.”1 Que o Homem seja criatura de ideias cíclicas e preocupa-ções constantes é ponto assente. Que a maneira como as expressa também não fuja à regra, já dá azo a acesa discussão.

A ideia do vintage é simples: hon-rar os mestres, mantê-los vivos relem-brando a vida que incutiram nas suas obras, apostar numa fórmula que não só se mostrou vencedora como tam-bém intemporal. E ao fazê-lo torná-la “um pouco mais intemporal”. Um mu-seu itinerante, se assim lhe pudermos chamar. Mas esta ânsia pelo que já foi

1 Herberto Helder, Os Passos em Volta

levanta claras questões acerca do que ainda será. Simplificando a questão, o que é o vintage? Homenagem ou falta de ideias? E sendo uma corrente que aposta tanto no imediatismo e nas im-pressões sensoriais, como se manifesta o vintage na arte (e no que a arte tem de mais sensorial, a música) e na moda, se é que moda não é também arte.

Modelos de antes

O Vintage faz com que façamos uma viagem numa máquina do tempo, recuan-do umas décadas atrás. O modo como nos apresentamos começa a contar uma nar-rativa, diferente daquelas que vemos nos manequins do shopping, e que ao mesmo tempo já foi vivida. Por outras palavras, es-

tamos a voltar ao passado permanecendo no presente, estamos a colocar a nossa indi-vidualidade em algo que já passou mas que pode ser revivido outra vez.

Partindo desta perspetiva, as peças Vintage são peças com padrões úni-cos e irrepetíveis, tecidos antigos, gan-gas rasgadas, ou seja, peças que podem ser adaptáveis a qualquer um. Um esti-lo baseado neste conceito resulta numa combinação entre o antes e o depois, uma ideia única e instável, um balan-ço que atinge proporções capazes de rei-vindicar o mundo da moda. Sendo as-sim, parte-se para uma antítese entre o que já foi usado e o que estamos a usar agora, ou seja, estamos a vestir algo que já tem história e ao fazer isso contamos a nossa própria.

CULTURA

VintajanteCATARINA JOÃO VIEIRA

GONÇALO OLIVEIRA SALAZARPEDRO GONZÁLEZ

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Por outro lado, o Vintage pode ser considerado arte por ser tão egoísta e único ao mesmo tempo. É egoísta pois as peças não estão em quantidades con-sideráveis, ou seja, não permite a cópia, não dá azo ao monótono, só se tem uma, e essa chega. Por ser assim é que é único, surgem novas ideias, novos conceitos ba-seados em velhos, e isso é arte, é a trans-formação de algo “morto” em vivo.

De facto, com o espírito Vintage esta-mos a criar algo novo ao incutir os anos 70, por exemplo, nos dias de hoje. Par-timos para a experiência de usar peças que outrora foram um ícone e que ago-ra ainda o são (como as 501 da Levi’s), e ao mesmo tempo já não somos nós que as vestimos mas sim elas que nos ves-tem a nós e é isso o que torna o Vintage tão fascinante. Para além do mais, aju-da nos a contar a nossa própria histó-ria pois somos nós os responsáveis por aquilo que queremos transmitir: a in-temporalidade das décadas anteriores, o carisma e acima de tudo a fuga ao mo-nótono.

Indo mais além, e subscrevendo as palavras de Walter Benjamin “A moda

irá saltar para o futuro com um olho no passado” e fá-lo através da recuperação das peças antigas conjugada com a indi-vidualidade atual de cada um, ou seja, diferentes pessoas, diferentes histórias, mas o mesmo espírito: Vintage.

A Primeira ArteO Vintage transforma gerações, vol-

tando como inovação e fazendo renas-cer os espíritos dos mestres de outrora em jovens corpos de agora, jovens cé-rebros com velhas mentes. Guitarras novas em folha, sintetizadores digitais, iPads, MacBooks, FruityLoops, Cubase e Pro Tools, inovações em sintonia para

fazer, muitas vezes, relembrar o som de décadas idas.

Fazemos viagens a séculos passados com algo tão novo como os nossos hea-dphones. Contactamos com os artistas de agora para com eles viajarmos até ao passado. Hoje em dia voltam a ouvir-se as guitarradas cheias de reverbe chorus, tão características dos finais dos anos 60 e inícios dos anos 70, as letras, os visuais e os “rockstars” que hoje em dia perten-cem maioritariamente à cena indie ten-tam trazer de volta aquelas décadas em que nunca viveram mas que sempre ad-miraram de longe.

Mesmo em Portugal, artistas como A Naifa e Dead Combo transmitem-nos os ensinamentos, e as influências de Fernando Tordo, Ary Dos Santos, José Mário Branco e Carlos Paredes.

A “moda” do Vintage trouxe-nos o tão precioso revivalismo e o renasci-mento da memória daqueles que tan-to marcaram o nosso passado. Não es-tando vivos ou ativos, são artistas que transcendem a época em que viveram e são homenageados na memória coletiva e na música da nossa geração. n

“Surgem novas ideias, novos conceitos baseados em velhos, e isso é arte, é a transformação de algo

“morto” em vivo

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“O silêncio dos vossos gritos é lami-nado, aleija!” - Ikonoklasta.

O rapper, mais conhecido como Luaty Beirão, foi preventivamente preso, juntamente com outros 15 jovens, por alegados “atos preparatórios para uma re-belião” e “atentado contra o Presidente”. O mediático ativista angolano considera que os seus direitos constitucionais de li-berdade de expressão estão a ser violados e acusa, assim, o Presidente José Eduardo dos Santos de suposta intromissão ilegal no sistema judicial e abuso de poder. A greve de fome, que durou 36 dias, tem suscitado polémica tanto a nível nacional como internacional no âmbito da crise democrática e de valores que se vai vi-vendo em Angola há 40 anos e que foi evidenciada pelos mais recentes proble-mas socioeconómicos que têm assolado o país.

Para além de ser uma democracia re-cente, é um estado soberano há apenas 40 anos, com vários problemas caracte-rísticos de países ditos do “terceiro mun-do”, como uma elevadíssima taxa de mortalidade infantil e de pobreza. Se-gundo Kofi Annan (antigo secretário-ge-ral da ONU), este país ilustra as “maiores diferenças entre riqueza natural e bem--estar social”. A verdade é que Angola é um dos países menos desenvolvidos e mais corruptos do mundo, apresentando um abismal fosso entre ricos e pobres. O aumento das manifestações de direitos ci-vis fizeram as luzes da comunidade inter-nacional ligar-se novamente sobre o país. Mas o debate em torno da situação do rapper não se prende unicamente com a situação angolana e relança, consequen-temente, toda a discussão em torno das (i)limitações da liberdade de expressão.

Somos iludidos a pensar que temos tanta liberdade como o sistema sugere. A nossa liberdade está limitada e de certo modo deturpada para que seja uma rea-

lidade “possível” para todos. Mas o que de facto acontece é que esta liberdade é moldada consoante as grandes forças e pressões socioeconómicas, onde, na ver-dade, reside o poder. Mas se em alguns países a liberdade é pontualmente (mas eficazmente) controlada, noutros o pró-prio conceito é manifestamente negado. E no que toca à opressão, há que inevita-velmente falar da Coreia do Norte, que é descrita pelo Human Ritghs Watch como um país onde “Todos os direitos básicos de liberdade foram severamente restrin-gidos” e em que a liberdade de expressão, qualquer que seja, é limitada ao ponto de não existir. Os norte coreanos vivem num regime difícil de descrever [estado de bloco central totalitário ultra-socialista e hereditário(?!)] e que se baseia num sur-preendentemente eficaz alheamento total ao mundo exterior, obtido através de um enorme mecanismo de propaganda, que resulta numa sociedade subdesenvolvida e absurdamente desinformada a todos os níveis. Mas se afinal esta população vive conformada com a situação em que vive e alheia a uma realidade melhor, será que o mesmo não se passa com a nossa socie-dade? Até que ponto a liberdade que te-mos se cruza com a que idealmente con-cebemos?

Mesmo entre os países mais desenvol-

vidos há um enorme fosso entre aqui-lo que se deveria poder fazer, de acordo com os direitos universais subjacentes a qualquer democracia, e aquilo que real-mente se pode fazer à luz de cada país. E, embora qualquer pessoa reconheça a importância da livre expressão num esta-do democrático, são poucas as que verda-deiramente compreendem as implicações de um exercício pleno desses direitos na sociedade. Entre os países que se dizem totalmente democráticos há um debate constante entre a liberdade que devemos ter e aquela que é suficiente para nos dei-xar satisfeitos e não ferir suscetibilidades. Todos os dias somos confrontados com situações em que a livre expressão de uma opinião num qualquer meio de divulga-ção social causa enorme furor, apenas por ser isso mesmo: uma opinião. Por isso, e ao longo de vários anos, foi-nos forma-tado um modelo de “liberdade” que é distante daquele idealizado, por exem-plo, nas ideias que levaram à Declara-ção dos Direitos do Homem. E mesmo dentro da nossa UE, que consideramos ser o expoente máximo da liberdade, há exemplos mais que suficientes para con-firmar que não somos tão livres quanto julgamos ser.

Em 1945, após a queda do regime Nazi e da subsequente dissolução total

INVESTIGAÇÃO

IconoclastasGIL FLORES

JOSÉ PEDRO SOUSA

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do partido, a prática do Neonazismo foi proibida constitucionalmente e variadas manifestações culturais deste movimen-to foram... “desencorajadas”. Desde en-tão, o nível de manifestações e ataques de ódio organizados por esses partidos di-minuiu significativamente, somando-se apenas alguns atos isolados entre 1950 e 2015. Contudo, apesar desta enorme violação de um dos direitos mais basilares da democracia que a Alemanha diz ser, há uma passividade e uma aceitação por parte da maioria dos alemães. Ao silen-ciar-se o assunto, muitos pensaram que ele seria esquecido, e por esta e outras ra-zões os alemães pactuaram com o que é, indiscutivelmente, uma enorme brecha no sistema de livre expressão.

A este caso soma-se um caso mais me-diático e igualmente perturbador. Em Setembro de 2010, o parlamento francês aprovou uma lei que proíbe a ocultação

do rosto em espaços públicos. Esta medi-da, que teve como principal alvo os mu-çulmanos residentes e que, inicialmente, foi alvo de algumas críticas, não demorou a perder mediatismo e cair no esqueci-mento da comunidade internacional. Há que relembrar que, entre vários fatores, o uso do véu é uma medida de expressão religiosa que, de uma ou de outra manei-ra, afeta uma substancial fatia da popula-ção de um país que é membro fundador da UE, com todas as respetivas implica-ções ao nível da liberdade de expressão.

Não faltam presságios à nossa volta de como, sem darmos por ela, a civi-lização ocidental está a mancar. Levou um pontapé no pé esquerdo há não-as-sim-tantas dezenas de anos atrás, tentou recuperar fôlego, mas está lentamente a ficar sem ar. Isto porque a recente glo-balização levou a uma convivência com gente torpe a que os queridos ocidentais

não estavam habituados. E assim como alguém que foi vítima dum qualquer ataque pessoal procura proteção e con-forto na família, os ocidentais fecham--se na sua jubilosa sociedade cristã. E a tolerância substitui-se pelo amor-pró-prio. Para caminhar com firmeza é pre-ciso o pé direito e o esquerdo, de outra forma o tombo vem certo, nunca nin-guém aguentou muito tempo a andar ao “pé coxinho”.

Apesar da lufada de extrema-direita que parte duma Europa dita “civilizada” tem soprado, ainda há algo capaz de re-confortar a alma: as ideias que têm na sua génese o primado individual tendem a ficar pela História, enquanto a elevação coletiva da sociedade tem vindo a perdu-rar como sinónimo da evolução. Viva as Revoluções Francesas, meu querido: “Li-berté, Égalité, Fraternité”. Onde te es-condeste? Volta! n

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No Ocidente, é praticamente consensual o desejo de um sistema democrático. São

inegáveis as suas virtudes enquanto garantia de liberdades básicas que só recentemente foram sendo alcan-çadas por todo o mundo. Mas há quem pareça entender a democracia como um fim e não um meio para prevenir abusos de poder.

A análise dos rácios de dívida pú-blica em relação ao PIB ou de dívi-da pública per capita permite cons-tatar que alguns dos mais elevados do mundo dizem respeito a países democráticos: Japão, Estados Uni-dos, Irlanda, Itália, Grécia e Portu-gal. A instabilidade económica pode ter um impacto demolidor sobre a liberdade individual. Milton e Rose Friedman escreveram, tratando o fe-nómeno da inflação, que «[esta] é uma doença perigosa e por vezes fa-tal, que se não for diagnosticada a tempo pode destruir uma sociedade. […] As hiperinflações da Rússia e da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial […] prepararam o terreno para o comunismo num destes paí-ses, para o nazismo no outro. […] A inflação no Brasil, que atingiu valo-res de cerca de 100 por cento ao ano em 1954, trouxe consigo a ditadura militar. Uma inflação de longe mais extrema contribuiu para a queda de Allende no Chile em 1973 e de Isa-bel Perón na Argentina em 1976, seguindo-se em ambos os países a ascensão ao poder de juntas milita-res.» Este excerto refere o fenóme-no da inflação, hoje mitigado, mas sem perda de generalidade para os desequilíbrios macroeconómicos e dívida pública excessiva que respei-

tam a várias democracias ocidentais. O menosprezo das consequências políticas e sociais da instabilidade económica pode ser fatal. O bem comum, interpretação prosaica da expressão democrática, quase tudo legitima, em particular a instabilida-de, por via do laxismo.

O respeito pela vontade da maio-ria, nodal ao sistema democrático, corre o risco de semear a sua auto-destruição. Robert Nozick escre-veu que, em democracia, um voto só conta se houver um empate. Mas nunca haverá um empate. O direito de voto restringe-se ao direito a par-ticipar no sufrágio, e a democracia chega a induzir o amante da liberda-de a votar em compensação do voto estulto, escolhendo o menor dos males. Mas todos sofrem as amargas consequências, e diz-nos a velha or-dem que é preciso respeitar a decisão da maioria. A democracia configura a liberdade para eleger os nossos pró-prios ditadores: eis o absurdo. Na re-gião de Hong Kong, não há eleições livres e a liberdade de expressão não é plena, constatando-se uma situa-ção inaceitável. No entanto, as ge-

rações vindouras não estão a prio-ri obrigadas a pagar divída pública que não contraíram. Existe uma de-sigualdade de rendimentos bastante elevada nesta cidade-estado e muitos cidadãos que vivem na pobreza, pelo que a realização de eleições livres po-deria conduzir, mais tarde ou mais cedo, a desequilíbrios semelhantes aos verificados em muitos países eu-ropeus. Mas é óbvio que o portu-guês é mais livre do que o cidadão de Hong Kong… ou não? Serão mu-tuamente exclusivas a liberdade de voto e a liberdade económica?

Em Portugal, o voto não é obri-gatório, mas no passado muitos lu-taram para o conseguir, incluindo as mulheres. Como Carolina Ângelo, a primeira mulher a votar em Portu-gal, afirmou: «Excluir a mulher [...] só por ser mulher [...] é simplesmen-te absurdo e iníquo e em oposição com as próprias ideias da democra-cia e justiça proclamadas pelo partido republicano». Para muitas pessoas, as crescentes taxas de abstenção ao voto representam o fracasso de uma luta. O mundo “ideal”, seja lá o que isso for, é inalcançável pelo simples fac-to de sermos humanos e procurarmos sempre algo diferente. Se existirão sistemas melhores que a democra-cia, esperemos todos que sim, para melhor toda a gente gosta, mas por agora é o método em que todos, por mais consequências que existirem, podemos usar a nossa voz. A deman-da pela liberdade é contínua. Cabe à geração de 1990’s, a nossa, reformar a democracia, criar regras que previ-nam o descalabro económico e a po-tencial ruína política e social que dele advêm. n

O conto do escravoCAROLINA FERNANDES

MANUEL LANÇAINVESTIGAÇÃO

Cada português “deve” mais de 20 000 euros aos

credores do Estado

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“Cidade socialista”, Le Monde Diplomatique

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