Gaia Ciencia

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A gaia cincia dos trovadores medievais*Jos DAssuno Barros1Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Resumo Entre os sculos XII e XIV no contexto do desenvolvimento do trovadorismo medieval prosperaram, em reinos que iam desde a Frana at os reinos ibricos de Portugal e Castela, movimentos trovadorescos que continham similitudes e contrastes. Frente a isso, este artigo delimita os principais traos desses movimentos, suas especificidades, bem como suas influncias obtidas por meio do dilogo com outros movimentos trovadorescos. As fontes utilizadas so as cantigas provenais, as cantigas do Carmina Burana e as cantigas satricas do Cancioneiro Galego-portugus, nesse ltimo caso, mediante suas trs coletneas principais: o Cancioneiro da ajuda (CA), o Cancioneiro da biblioteca nacional (CBN) e o Cancioneiro da Vaticana (CV). Palavras-chaves: Poesia e poder; trovadores medievais; tenses sociais. Abstract In XIII and XIV centuries in the historical context of the development of the troubadours movements there were in kingdoms as France and the Iberian kingdoms of Portugal and Castela troubadours movements that had in mutual comparison similitude and contrasts. The subject of this article will be to discuss and delimit the principal aspects from each one of these troubadours movement, its singularities and the influences captured in the reciprocal dialogue between the several troubadours movements. The utilized resources are the Provencal chants, the chants included in the Carmina Burana, and the satirical chants of the Cancioneiro Galego Portugus, in this last case through theirs three principal collections: the Cancioneiro da Ajuda (CA), the Cancioneiro da Biblioteca Nacional (CBN), and the Cancioneiro da Vaticana. Keywords: Poetry and power; medieval troubadors; social tensions.__________________________________________________* 1

The gaia sciense of the medieval troubadours Endereo para correspondncias: Rua Senador Vergueiro, 218, ap. 205, 20.230-001, Rio de Janeiro, RJ (E-mail: [email protected]).

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aia j foi o nome da deusa que, na mitologia dos antigos povos romanos, representava a Terra e se ligava fertilidade, portanto, vida. A palavra, transformada em adjetivo e no decorrer da histria das sociedades medievais, passaria a ter significados como mundano (no sentido de inserido no mundo), mas tambm alegre, intensamente vivo, plenamente livre. Um pouco de cada um desses sentidos aparece na incorporao do adjetivo gaia palavra cincia, para designar a arte potica dos trovadores europeus da Idade Mdia Central (sculos XII a XIV). A Gaia Cincia, portanto, aqui entendida como a alegre cincia ou o alegre saber dos trovadores medievais, que um saber inteiramente dedicado capacidade de viver intensamente, ao envolvimento amoroso, exaltao da natureza, experincia da verdadeira liberdade e, sobretudo, fina arte de tecer versos e fazer da prpria vida individual, ela mesma, uma obra de arte. A expresso encontra seus primeiros registros conhecidos no provenal, lngua medieval falada ao sul da Frana e que seria precisamente o idioma da mais influente corrente de trovadores medievais (os trovadores provenais).2 Aqui, gai saber (gaya scienza) corresponde simultaneamente habilidade tcnica e ao esprito livre que seriam requeridos para a criao e escrita dessa nova poesia que estava nascendo com os trovadores medievais.3 Quem eram esses trovadores medievais esses misteriosos cultuadores de uma nova forma de liberdade que os tornava capazes de se alegrar sinceramente com a natureza, mas tambm de sofrer intensamente com a prtica amorosa? Quem eram, enfim, esses magnficos poetas e msicos que criaram um sistema to novo de perceber e sentir o mundo, que se chega a dizer mesmo que eles inventaram um novo tipo de amor?4

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A palavra trobaire (poeta) tambm provm da lngua provenal, e origina-se do verbo trobar, que significava inventar ou encontrar. Em 1882, o filsofo alemo Friedrich Nietzsche utilizaria esta mesma expresso, Gaia cincia, como ttulo de um de seus principais livros uma obra estruturada em 383 aforismas partilhados em cinco volumes na qual, dentre outras audaciosas crticas, o filsofo opunha-se veementemente dogmtica e rancorosa cincia que teria se desenvolvido na modernidade ocidental, a partir de pesada restrio de perspectivas e de limitados modos de ver o mundo (NIETZSCHE, 2001). Nietzsche (1997, p.85), em Para alm do bem e do mal (1886), observa que o amor como paixo que a nossa especialidade europia foi inventado pelos poetas-cavaleiros provenais, esses seres humanos magnficos e inventivos do gai saber a quem a Europa deve tantas coisas e a quem quase inteiramente se deve ela prpria. Acerca dos modos de sensibilidade que surgira m com os trovadores e com os romances corteses, ver Rougemont (1988). Ainda sobre o amor corts, ver Lazar (1964).

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oportuno ressaltar que, desde os primrdios da Idade Mdia, tem-se notcia de poetas cantores que percorriam o ocidente europeu atuando como msicos, cantores, recitadores e que por vezes se ligavam a outras formas de espetculo. Menestris, jograis, trovadores so to diversas quanto imprecisas as designaes que surgiram para dar conta desse enorme conjunto de poetas cantores que esconde, na verdade, grande gama de possibilidades e tipos. Skops anglo-saxnicos desde o sculo IV, escaldos islandeses e noruegueses a partir do sculo X, trovadores cortesos do sculo XII em diante, goliardos desde o sculo IX, jograis por toda a Idade Mdia nem sempre fcil identificar as nuanas entre esses vrios tipos. A designao jogral, por exemplo, das mais vagas, j que por vezes se refere no s ao msico poeta, mas tambm ao artista saltimbanco, ao histrio, ao malabarista e a tantos outros profissionais do espetculo. Em face dessa diversidade, deve-se levar em conta que o movimento trovadoresco, como designao, pode ser entendido tanto em uma acepo mais ampla como em uma mais restrita. Em sua acepo mais ampla, ele indica aquele grande circuito de produo e circulao potica e musical que atingia diversas esferas, desde a palaciana e cortes at a popular, desde o ambiente rural at o urbano, desde as festas at as cruzadas, e que, por fim, enquadra-se em uma durao que se confunde com o prprio perodo medieval. Na acepo mais restrita, o movimento trovadoresco remete ao meio das cortes rgias e senhoriais a partir do sculo XI, quando a cultura aristocrtica assimilou a produo potico-musical como uma de suas atividades distintivas. Assim, essa acepo mais restrita representa uma espcie de recorte, no espao social e no tempo, dentro da produo trovadoresca mais ampla. Refere-se pois poesia, popular ou aristocrtica, que circulava no meio corteso note-se que dessa circulao participavam os mais diversos tipos sociais. Alm disso, remete a um perodo que vai do sculo XI ao XIV, e estende-se ao sculo XV em algumas cortes das regies da atual Alemanha. Caracterstica comum a boa parte dos trovadores medievais era sua itinerncia, ainda que no deva ser exagerada, j que muitos trovadores se estabeleciam a seu tempo em alguma corte ou regio. Ser um meio movente trazia efervescncia especial ao meio trovadoresco. O trovador ligava-se por essa afinidade s figuras do cavaleiro andante, do clrigo errante, do peregrino, do mercador e navegante cada qual foi um elemento importante no processo de transformao da sociedade medieval a partir do sculo XI.

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So atores sociais que anunciaram um novo cenrio na grande aventura medieval e que se contrapuseram quelas j conhecidas figuras do monge em clausura, do servo da gleba, do nobre encastelado e de outras que tradicionalmente remetem pesada estabilidade medieval. No por acaso, todas as novas figuras que, cada uma a seu modo, representam dinamismo e movimento surgem precisamente no contexto de uma poca inovadora que traria consigo a reintensificao do comrcio de longa distncia, a urbanizao, o surgimento de inusitadas formas de religiosidade.5 Ao mesmo tempo, essa itinerncia punha em contacto os trovadores, facilitava trocas culturais e criava uma grande malha que recobria o ocidente europeu com seu tecido de versos e sonoridades. O grande concerto dos poetas cantores tinha, contudo, seus timbres internos. Para efeito de simplificao, consideremos as cinco principais regies culturais em termos de produo trovadoresca. A Frana via-se dividida em norte e sul, gerando dois subconjuntos distintos e separados pela linguagem: no sul occitnico, o subconjunto provenal dos troubadours, da langue doc e da formao cultural ctara, bero do amor corts; no norte, os trouvres, cantando na langue doil as primeiras canes de gesta. Em torno do vale do P, foi mais tardio o movimento dos trovadores italianos, que depois daria origem ao dolce stil nuovo. Ao norte a Minnesang contribua com sua verso germnica para o amor corts (minne = amor sutil). Por fim, o subconjunto dos trovadores galego-portugueses unia mediante uma lngua potica comum boa parte da hispania crist (com exceo de Arago e Catalunha, ligados ao circuito provenal). Dos cinco subconjuntos destacados, o provenal pode ser tomado como o grande plo de irradiao que desencadeou o trovadorismo de corte. claro que, uma vez que o trovadorismo provenal j aparece nos primeiros registros de que podemos ter notcia como poesia amadurecida e refinada, possivelmente vinha de um desenvolvimento anterior. Esse desenvolvimento at agora desconhecido da histria, e deve-se notar que somente por essa poca comeou a surgir a anotao de uma msica trovadoresca em partituras que acompanhavam a poesia dos trovadores em manuscritos vrios.__________________________________________________5

O sculo XII, no por acaso, representa um momento de particular significao para a dinamizao da sociedade medieval. Por isso, Joseph Bdier (1988), estudioso que, em obras como O romance de Tristo e Isolda, sempre buscou compreender dentro de um singular contexto histrico o trovadorismo e outras expresses culturais da Idade Mdia, denominava o sculo XI como o sculo das gneses, ressaltando que nessa poca surgiram simultaneamente a primeira cano de gesta e a primeira poesia lrica; a primeira ogiva; o primeiro vitral; o primeiro drama litrgico; o primeiro torneio cavaleiresco; e a primeira carta de liberdade de uma comuna. Todas so criaes autenticamente francesas (SPINA, 1956).

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De todo modo, a grande novidade trazida por esses troubadours do sul occitnico (cortes da Provena, Toulouse, regio da Catalunha) foi sem sombra de dvida o amor corts. Explica a irresistvel difuso do amor corts por toda a Europa Feudal o fato de que esse novo modelo do sentir estava em imediata sintonia com os valores feudo-vasslicos de seu tempo, uma vez que, no amor corts, a mulher ocupa uma posio que remete do suserano no universo da homenagem vasslica.6 O amador corresponde naturalmente ao vassalo, e assume um conjunto de preceitos e obrigaes que formam o corpo de um novo cdigo cavalheiresco amoroso. Essa associao entre tica amorosa e cdigo cavalheiresco das instituies feudo-vasslicas recorrente nas cantigas provenais e em cantigas de amor cortess de outras regies, inclusive nas cantigas de amor galego-portuguesas. No lirismo occitnico, um dos poetas que levaram essa associao at as ltimas conseqncias foi Bernart de Ventadorn (1150-1180),7 autor de uma conhecida cantiga:Excelente senhora, nada vos peo, mas que to somente me tomeis como vassalo; e haverei de servir como (serviria) a um honrado suserano, por qualquer recompensa que fosse. Trazeis-me inteiramente sob vossas ordens, corao liberal e clemente, criatura graciosa e corts; nem urso nem leo sois para matarme, se a vs me rendo (apud SPINA, 1956, p.56-57).__________________________________________________6

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Sobre as relaes entre o amor corts e a sociedade que o contextualiza, ver Khler (1976), Lazar (1964) e Belperron (1948). Sobre o vocabulrio feudal na lrica trovadoresca, ver Pichel (1987). Ventadorn nasceu na regio de Limousin, no castelo de Ventadorn, e viveu na primeira metade do sculo XII. Sua vida foi escrita por Uc de Saint Circ. De origem social humilde, sua arte foi patrocinada pelo visconde Ebles II de Ventadorn, ele mesmo tambm era um grande troubadour. A certa altura seguiu para outra importante corte trovadoresca, a corte de Eleonor da Aquitnia, que alm de ser uma importante trovatriz era tambm filha do primeiro trovador provenal de quem se tem registro: Guillaume de Poitiers. Bernart de Ventadorn, que j havia migrado para a Aquitnia em vista do fato de seu antigo patrono, Ebles II, ter descoberto seu romance corts sua esposa, logo se envolveria amorosamente com a duquesa. O romance pouco duraria, uma vez que Eleonor terminou por se casar com o rei ingls Henrique Plantageneta. Os relatos sobre as vidas de trovadores, escritos na prpria poca, podem ser examinados em edies modernas, como a de Boutire e Schutz (1964).

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Rigorosamente falando, a mulher ocupa posio ainda mais alta do que a de um suserano. Afinal, enquanto o feudo-vasslico um sistema de mtuas obrigaes entre suserano e vassalo, o amor corts implica por vezes uma entrega total do amador. Isso remete a alguns primeiros pontos dessa nova maneira de expressar artisticamente o amor. A mulher plenamente idealizada, no corpo e no esprito, a mais bela de todas as criaturas. O amor intenso, mas inatingvel, o ideal do poeta morrer de amor, e dificilmente ele consegue concretizar, ao menos em tese, o amor carnal com sua amada. O amor corts provenal tem, portanto, um componente de sublimao que, em nossos dias, vulgarizou-se chamar de platnico e que, em alguns casos, pode ser experienciado at as ltimas conseqncias, atingindo mesmo certo masoquismo estilstico, como na seguinte cantiga do poeta provenal Cercamon (1135-1147):8Gosto quando me enlouqueo e me faz abstrair e esperar em vo; gosto tambm de quando ela me escarnece ou engana, minha frente ou pelas costas.

Convm no exagerar, porm, o carter de sublimao amorosa das cantigas de amor provenais. Por vezes, uma fina camada de ironia recobre um verso perfeitamente enquadrvel na imagstica do amor corts, mas cuja pronncia irnica certamente denunciaria o dilogo entre o amor entrega e o amor prprio do trovador. Guilherme de Poitiers (10711127), um dos primeiros trovadores conhecidos,9 traz uma cantiga na qual perpassa um inaudvel dilogo entre sua altssima situao social de poderoso conde e a vassalagem humilde que pretende oferecer a sua dama. Esto a prenunciados os preceitos fundamentais do amor corts,__________________________________________________8

Cercamon foi um jogral da Gasconha, freqentemente apodado pela expresso aquele que correu o mundo, que costumava explorar em suas poesias estados sentimentais contraditrios (SPINA, 1956, p.101). 9 Guilherme IV foi o VI Conde de Poitiers e o IX Duque da Aquitnia. Diz-se que chegou a possuir mais riquezas do que o prprio rei da Frana. Casou-se posteriormente com a filha do Conde de Toulouse e, em outro momento, intentou invadir as terras de seu sogro. Tambm organizou uma expedio Terra Santa, que no foi bem-sucedida. Possui onze peas trovadorescas conhecidas, bastante ricas e variadas em sua estrutura, e habitualmente creditada a ele a fixao dos cnones do nascente lirismo provenal. Alguns de seus poemas expressam uma franca sensualidade, mas ao mesmo tempo comps canes de amor refinadas e que, perfeitamente inseridas na tica amorosa do amor corts, trabalham a sublimao de uma figura feminina idealizada.

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como a concepo do amor como veculo de aperfeioamento moral do cavaleiro ou a entrega total de si mesmo. Porm, com a entonao apropriada, faz-se presente uma suave ironia em algumas estrofes da cantiga do trovador da Aquitnia:Pelo contrrio, entrego-me a ela a ponto de deixar que me inscreva no rol dos seus criados. E no me tenhais por brio se amo a minha boa senhora, pois sem ela no posso viver, tal o domnio que sobre mim exerce a esperana do seu amor e Que proveito tereis, graciosa dama, em que vosso amor de mim se distancie? Parece movervos a vontade de ser monja. E sabei que vos amo tanto, que chego a temer que a dor me fira, se no me reparardes as injustias de que vos acuso (SPINA, 1956, p.56).

Alm do dilogo entre o amor entrega e o amor cnico, que se estabelece sob a mediao do estilo levemente irnico do conde trovador, pode-se perceber nessa e outras cantigas de amor outro dilogo, entre o amor corts, com todos seus artifcios s vezes estereotipados, e um sensualismo que pulsa sob a cobertura do amor idealizado. Na penltima estrofe da cantiga antes citada, o trovador chega a explicitar: Que proveito tereis se me enclausuro e no me retiverdes como vosso? Todos os prazeres do mundo esto em nossas mos, senhora, se mutuamente nos amamos. Mesmo um trovador como Bernart de Ventadorn, que levou suprema idealizao a sua potica amorosa, pode surpreender com cantigas como esta: Bem nenhum me falta, contanto que tenha atrevimento para introduzir-me uma noite ali onde se despe, em lugar prprio, e me faa de seus braos um lao para o meu pescoo (apud SPINA, 1956, p.57). Versos como esses, quando entoados por um poeta que aparece na maior parte das vezes como um mestre do amor idealizado, parecem colocar em cena um torneio imaginrio no qual competem pelos menos duas concepes do amor. Entre esses dois amores oscilavam os trovadores, ora rendendo homenagens a um, ora se sacrificando ao outro, no mais das vezes, fazendo-os conviver como duas camadas sobrepostas ou ento como um amlgama no qual j no era possvel distinguir o que era sublimao amorosa de o que era sensualidade estilizada.Revista de Cincias Humanas, Florianpolis, EDUFSC, v. 41, n. 1 e 2, p. 83-110, Abril e Outubro de 2007

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O prprio Roman de la Rose (LORRIS, 2007), obra que influenciou profundamente seu tempo, foi produto explcito desse amlgama, desse dilogo imaginrio entre duas formas de amar. Iniciada em 1225 por Guillaume de Lorris e completada em 1278 por Jean de Meung, eis aqui uma obra de dois poetas de distintas tendncias de pensamento e, inclusive, de duas geraes que se sucedem.10 Nela, a concepo idealista do amor e o cinismo sensual travam seu secreto combate o mesmo que pulsa na polifonia do discurso trovadoresco. Passagem remarcvel aquela, j da lavra de Jean de Meung, em que a natureza lamenta que o homem seja a nica das criaturas a desobedecer ao preceito mximo da procriao e da sensualidade, com alguns de seus espcimes insistindo na castidade. Unidos ao gnio da natureza, o amor e todo seu exrcito de assaltantes tomam finalmente o castelo da rosa, expulsando a vergonha e o medo que l se haviam instalado. Antes, condenada ao inferno a castidade. Esses medo, vergonha e castidade, em outros momentos do preceitual corts, so positivados. Em algumas ocasies, a segunda parte do Roman de la Rose parece mesmo estabelecer um verdadeiro dilogo de confronto com a primeira parte, que uma espcie de codificao da ars amandi na perspectiva cavaleirosa. O amor medieval aparece aqui como polifonia de muitos amores, da mesma forma que na lrica trovadoresca, e essa polifonia se estende para fins do sculo XIV, culminando com um torneio polmico em torno das idias do Roman de la Rose, para o qual Christine de Pisan contribui com sua clebre Epistre au Dieu dAmours, em defesa da honra feminina e do antigo preceitual corts. Para completar o ruidoso concerto de ticas amorosas que o refinado cantar corts encobria, preciso citar ainda o contraponto entre essa literatura de sonho e evaso e o mundo concreto, s vezes rude, das relaes entre homens e mulheres. No estava muito longe aquele tempo em que, tal como observa Norbert Elias (1994) a partir de um texto de Luchaire, parecia haver o hbito tradicional do cavaleiro de, ao enraivecer-se, socar o nariz da esposa:__________________________________________________10

[...] brisa fagueira de Guillaume de Lorris seguiu-se o vento triste do frio ceticismo e do cruel cinismo do seu sucessor. O esprito vigoroso e contundente do segundo maculou o idealismo inocente e claro do primeiro. Joo de Meung um homem esclarecido que no acredita em espectros, nem em feiticeiras, nem na castidade da mulher, e inclinado aos problemas de patologia mental; pe na boca de Vnus, da Natureza, do Gnio, a mais ousada apologia da sensualidade (HUIZINGA, 1978, p.106).

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O rei ouviu isso e a raiva coloriu-lhe o rosto; erguendo o punho, atingiu-a no nariz com tal fora que tirou quatro gotas de sangue. E a senhora disse: Meus mais humildes agradecimentos. Quando lhe aprouver, pode fazer isso novamente (LUCHAIRE, 1909, p.235).

O confronto entre a tica amorosa corts e a tica do amor brutal representado no plano cultural pelo dilogo entre as cantigas de amor dos troubadours e minnesngers e as por vezes violentas chansons de geste dos primeiros trouvres. Alm disso, a tica corts tinha seu lugar que eram as grandes cortes feudais, para o caso da Frana e Germnia e da contrastava com as brutais atitudes dos homens para com as mulheres que predominavam nas pequenas cortes mais afastadas daqueles centros. Por fim, a discrepncia entre a cortesia literria e as relaes concretas entre homem e mulher correspondia, de certo modo, a um dilogo de registros que se dava por vezes no interior de um mesmo pblico. O mesmo pblico que se encantava com a cortesia amorosa dos trovadores, nos bastidores da vida concreta, apresentava maior ou menor grau de adversidade entre o masculino e o feminino. Esse intrigante contraponto, que nas cortes medievais se apresentava sob a forma de uma penumbra de ambivalncias entre o masculino e o feminino, nos tempos modernos uma regra, j que o processo civilizador cuidou aqui de dividir, cada vez mais, a vida dos seres humanos entre uma esfera ntima e uma pblica, entre comportamento secreto e pblico (ELIAS, 1994, p.188). Hoje em dia, j corriqueiro que um mesmo indivduo apresente comportamento pblico bem diferenciado, at antagnico, em relao a seu comportamento privado. As cortes trovadorescas, ilhas de civilizao, conforme Elias (1994) pr-ensaios de adestramento social dos instintos no mbito da vida pblica , j antecipam algo desse contraponto moderno, mas na verdade lhe acrescentam outro, oriundo dos fortes contrastes inerentes natureza do homem medieval, esse homem que se permitia rpida mudana de estado de nimo, e que do riso ia clera com facilidade legitimada socialmente. No difcil admitir a possibilidade de um ou outro poeta corts medieval que, na alcova de seu casamento concreto, espancasse a prpria mulher,

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nem, mais ainda, o contraste do poeta corts de tempo integral com alguns dos demais homens de seu tempo, admiradores dos poemas de amor no mbito pblico e brutalizadores da mulher em seu universo mais ntimo. A Idade Mdia um mundo de contrastes, todos eles vividos apaixonadamente. Esses contrastes, que tinham na vida uma orgulhosa ou cruel publicidade (HUIZINGA, 1978, p.13),11 tambm encontravam refgio no interior do indivduo. De forma similar ao contraponto entre a cortesia e a brutalidade, o contraponto entre o amor ideal e o amor concreto tambm encobria um dilogo de registros, por vezes dentro dos mesmos indivduos. Esses dialogismos dificilmente sero entendidos em sua plenitude, se no admitirmos que a pluralidade no existe apenas no plano macro, mas tambm no microcosmo de um mesmo sujeito individual, para onde se estende, transformando-o tambm em arena onde competem mltiplas vises de mundo. Mais ainda, devese ter em mente que dois registros em relao dialgica por exemplo, o amor corts e o amor concreto sempre estabelecem um nvel de interpenetrao ao final do qual um termina por transformar sensivelmente o outro.12 A literatura do amor corts, pode-se acrescentar, contribuiu para transformar de algum modo a realidade extraliterria, atua como componente de o que Elias (1994) chamou de processo civilizador. Ao mesmo tempo, a realidade extraliterria penetra processualmente nessa literatura que, em parte, nasceu como forma de sonho e de evaso. A Minnesang nos d exemplo notvel dessas flutuaes, no sentido de que o amor parcialmente concreto dos primrdios da Minnesang j comeava a ser gradualmente influenciado pela poesia provenal, at que,__________________________________________________11

Essa assertiva resume duas das teses centrais de Huizinga em O declnio da Idade Mdia. Para ele, dois dos traos mais tpicos da mentalidade feudal so a intensidade das emoes e uma vivncia plena de contrastes (Para o mundo, quando era quinhentos anos mais novo, os contornos de todas as coisas pareciam mais nitidamente traados do que em nossos dias. O contraste entre sofrimento e alegria, entre a adversidade e a felicidade, aparecia mais forte). Outro trao essencial do esprito da poca seria uma espcie de formalismo, uma tendncia para encontrar para tudo um smbolo ou formalidade (HUIZINGA, 1978, p.13). 12 A instituio da noo de Dialogismo deve ser atribuda a Bakhtin, que compreendia toda produo cultural, e inclusive o prprio ser humano de maneira geral, como mergulhados na intertextualidade. Nada existe isoladamente. E rigorosamente cada discurso ou cada repertrio cultural se entretece de outros. Em termos de cultura, todo texto, todo produto cultural e todo agente produtor de cultura esto freqentemente se entrecruzando e se interpenetrando com o outro. Deste modo, para a concepo dialgica proposta por Bakhtin, esboroa-se a idia de uma autoria individual e adquire especial destaque o carter coletivo e social da produo de textos e idias. Para uma referncia primeira do dialogismo nos processos lingsticos, ver Bakhtin (1978). Para uma viso geral deste conceito na obra de Bakhtin, ver Brait (1997).

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no perodo de apogeu da Minnesang, a Minne assumiu, por fim, a forma mais pura do amor sutil. Depois disso, a realidade extraliterria comeou a se projetar de maneira mais marcante na poesia dos minnesngers, no perodo final da Minnesang. Ento, a poesia corts j havia desempenhado seu papel de reelaborador das relaes entre o masculino e o feminino.13 O ltimo contraponto trovadoresco, por fim, corresponde quele que opunha a relao homem-mulher no casamento relao corts entre o amador e sua inacessvel dama. O verdadeiro amor, conforme o entendimento corts, nada tinha a ver com o casamento, chegava-se a dizer que, no ltimo, o amor no era sequer possvel (famoso dito da condessa de Champagne). Alm dessas perturbaes ntimas que agitaram o amor corts, a maneira provenal mais convencional sofre outras interferncias, que so as variedades estilsticas internas. O lirismo provenal apresenta pelo menos trs maneiras distintas, reconhecidas pelos prprios trovadores em suas cantigas e tratados poticos. Dentre elas, as duas escolas mais propriamente tpicas do amor corts eram o trobar leu e o trobar ric. A primeira preconizava uma versificao simples e a ausncia de rebuscamento estilstico. Decorre da uma mensagem bem inteligvel, tal como se verifica com a poesia de Jaufre Rudel ou de Bernart de Ventadorn. J o trobar ric buscava ornamentao sofisticada, na nsia de experimentar novas sonoridades e uma poesia imagtica, que se esmerava no refinamento da expresso. Era do estilo tornar o contedo menos acessvel e a linguagem enigmtica. Tal como entre os escaldos islandeses, o excesso de clareza era considerado deficincia tcnica. O maior representante dessa escola Arnaut Daniel (1180-1210). Havia ainda uma terceira escola, o trobar clus, que predominava entre os trovadores de origem no aristocrata e que, parte seu hermetismo e versificao complicada, tinha forte tnica realista. Afastava-se mais, dessa forma, do amor idealizado das outras duas escolas, e teve em Marcabru (1129-1150) seu principal representante. Alm do concerto interno de estilos provenais, em que os trobares ric, clus e leu se confrontam e geram combinaes diversas, h ainda de se considerar um segundo dilogo interno: o dos gneros trovadorescos. As cantigas de amor (canss), embora predominem amplamente, no so de fato o nico gnero provenal. Outros dois gneros fundamentais lhe fazem discreto contraponto: o sirvants e a ten. Afora esses, a pastorela,__________________________________________________13

Sobre os trovadores da Minnesang, ver Sayce (1982) e Taylor (1968).

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a alba e o planh merecem meno, mas o sirvants, certamente, o grande gnero satrico provenal, que pode assumir virulncia de cunho poltico ou repreenso moralizadora. Na escola realista do trobar clus, sobretudo com Marcabru, os sirvanteses polticos ou moralizadores adquiriram especial relevo. O trovadorismo galego-portugus produziu algo como uma grande sntese de o que se fez em termos de movimento trovadoresco europeu. Por isso, o sirvants poltico ou moral tambm tem aqui seu lugar. Os mais famosos so os de Martim Moxa, e esto includos no Cancioneiro da biblioteca nacional (CBNs 887, 888, 889, 896, 915).14 So evidncias claras do grande dilogo externo entre as zonas trovadorescas europias. No sirvants abaixo registrado, o clrigo Airas Nunes deprecia todas as ordens eclesisticas, afirmando que a verdade no pode ser achada entre eles:Por que no mundo mengou a verdade, punhei un dia de a ir buscar; e, u por ela [me] fui preguntar, disseron todos: Alhur la buscade, ca de tal guisa se foi a perder, que non podemos en novas aver nen j non anda na irmandade. Mos moesteiros dos frades regrados a demandei, e disseron-m assi: Non busquedes vs a verdad aqui, ca muitos anos avemos passados que non morou nosco, per ba f, [nen sabemos u ela agora x,] e dal avemos maiores coidados.__________________________________________________14

So adotadas aqui, para as cantigas do cancioneiro galego-portugus, as abreviaturas referentes s trs coletneas principais: o Cancioneiro da ajuda (CA), o Cancioneiro da biblioteca nacional (CBN), e o Cancioneiro da Vaticana (CV). Deste modo, entende-se por CBNs 887, 888, e outras, as cantigas que receberam este nmero nos manuscritos do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, e que conservaram esta mesma numerao em todas as edies posteriores deste cancioneiro. De igual maneira, CV 94 estar referenciando a cantiga n94 deste cancioneiro. Aps as transcries do texto de cantigas, adota-se o mesmo critrio, indicando-se o nome do trovador que comps a cantiga e o nmero da cantiga no cancioneiro em referncia. Tal critrio faz-se necessrio porque as pginas dos cancioneiros no so numeradas, de modo que mais conveniente localizar cada cantiga pelo seu nmero. So utilizadas as seguintes edies facsimiladas dos trs cancioneiros: (1) MACHADO, E. P. e MACHADO, J. P. (Orgs.). Cancioneiro da biblioteca nacional. Lisboa: Ocidente, 1949-1964; (2) BRAGA, T. (Org.).Cancioneiro portuguez da Vaticana. Edio de Tefilo Braga. Lisboa: 1878; e (3) VASCONCELOS, C. M. (Ed.). Cancioneiro da ajuda. Halle: 1904. 2.v.

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E en Cistel, u verdade soa sempre morar, disseron-me que non morava i avia gran sazon, nen frade di j a non conhocia, nen o abade outrossi no estar sol non queria que fossi pousar; e anda j fora da [a]badia. En Santiago, seend albergado en mia pousada, chegaron romeus. Preguntei-os e disseron: Par Deus, muito levade-lo caminh errado, ca, se verdade quiserdes achar, outro caminho conven a buscar, ca non saben aqui dela mandado. (Airas Nunes, CBN 871)

Pelo sirvants, so alvejados os frades regrantes, os monges de Cister e os religiosos de Santiago. Em outros dois (CBNs 885 e 1601), o alvo o Bispo de Tui, ainda que esses j sejam mais propriamente cantigas de maldizer, no sentido de serem personalizados (o sirvants era via de regra uma crtica mais generalizadora, social ou institucional no sentido amplo). O dilogo de Airas Nunes com a cultura provenal ainda atestado pela utilizao da langue doc em pelo menos duas cantigas de amor. Se bem que, dada sua condio de clrigo marginalizado, cuja vagncia atestada na prpria cantiga (sua peregrinao pelo mundo), e dado seu especial interesse pela stira anticlerical que no poupa autoridade religiosa, a obra do jogral clrigo compostelano est ainda em imediato dilogo com a poesia dos goliardos, da qual falaremos. J os sirvanteses de Martim Moxa tm cunho moralista, ao mesmo tempo em que sua obra no tem o toque dionisaco de exaltao ao amor e natureza que h em Airas Nunes (CBNs 818, 872). Em uma de suas cantigas, Moxa defende-se inclusive de acusaes de desregramento sexual, preocupao que dificilmente teria um goliardo (Martim Moxa, CBN 917). A ten era outro gnero fundamental. Tratava-se do debate (disputatio) trazido para o plano lrico. Dois contendores alternavam estrofes,

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conforme certas regras estabelecidas (por exemplo, o reptado devia obedecer s rimas do desafiante). Na poesia provenal, eram debatidos dessa forma temas de casustica amorosa, de controvrsias a respeito de estilo (a clareza do trobar leu ou a obscuridade dos trobares clus e ric) ou ainda opinies pessoais sobre a elaborao da poesia. Em uma ten entre os trovadores Ugo Catola e Marcabru, o tema do disputatio de natureza amatria. O segundo chega a invocar a teoria amatria ovidiana para sustentar seu ponto de vista: Catola, Ovdio ensina aqui, e o alcance dos fatos o demonstra: o Amor no menospreza ao moreno, nem ao loiro, porm se inclina mais para os decadentes (SPINA, 1956, p.64). Aparentados s tens, mas assumindo a forma de um jogo de perguntas e respostas, so os jeux-partis dos trouvres do norte. Adam de La Halle (1237-1287) e Jehan de Bretel (+1272) oferecem magnficos exemplos que giram em torno de questes de amatria, perfazendo dezesseis jeuxpartis disputados entre os dois.15 Continuando seu papel de elaborar uma grande sntese do trovadorismo europeu, o movimento galego-portugus incorporou tambm as tenes16. Conforme veremos mais adiante, aqui sobressai uma primeira originalidade do trovadorismo ibrico: as tenes abandonam as questes estilsticas ou amatrias e entram na esfera da poesia satrica. No raro, os ataques pessoais, conforme examinaremos oportunamente em um exemplo concreto, encobrem verdadeiros confrontos entre segmentos sociais, na pessoa dos poetas-cantores que os representam. Assim, fidalgo contra cavaleiro vilo; peo contra infano, rei contra desafeto poltico as combinaes se multiplicam. Isso permite que esse gnero potico se torne ento uma verdadeira arena social e poltica, onde as diferenas so ainda mais explicitadas do que nos demais subconjuntos trovadorescos. Os demais gneros provenais ensaiam tambm um discreto dilogo com os ibricos. Na pastorela, o amor tambm coloca frente a frente dois segmentos sociais, j que o cavaleiro palaciano solicita os favores amorosos da pastora rstica. Trata-se, contudo, muito mais de um espao de domnio dos nobres, j que eles escrevem a cantiga e por meio dela enaltecem a si mesmos. Na alba, o tema o descontentamento de dois amantes enamorados que,__________________________________________________15 16

Para acesso a estes jeux-partie, ver Halle (1872). A palavra teno (ou tenes) refere-se a um gnero trovadoresco que tinha este nome nos prprios documentos da poca. Nada tem a ver com a moderna palavra tenso (oriunda do verbo tensionar, no sentido de deixar tenso).

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com a chegada do amanhecer, enfrentam o momento de sua separao. No planh, constri-se um lamento fnebre pela morte de grandes senhores ou de pessoas queridas. Trata-se de um gnero mais antigo, verso profana dos planctus eclesisticos, em que, por vezes, a poesia pode vir entrecortada por soluos e secundada por expressivos gestos de desespero. Afora esses dilogos internos, o que mais singular no lirismo occitnico e se apresenta como a grande novidade que, em pouco tempo, difundida para os demais ambientes trovadorescos, mesmo o amor idealizado de boa parte das cantigas provenais. Essa idealizao amorosa, em que o erotismo estilisticamente sublimado ou ao menos levado a pulsar sutilmente sob uma tica corts dos sentidos , no deixa de ter como componente original o contexto do catarismo, que ento preponderava em todo o sul occitnico, at ser violentamente reprimido pela Cruzada Albigense em 1209.17 parte sua contestao do cristianismo oficial, que desencadeou contra si a fria papal e a cruzada vinda da Frana do Norte, o catarismo preconizava para seus perfeitos, mas no necessariamente para toda a comunidade ctara, uma espiritualizao plena que exclua a unio carnal. Parece procedente vincular o idealismo corts a um dilogo com essa espiritualizao albigense, j que a maioria dos trovadores provenais vivia no meio ctaro. Essa interao tem ressonncia naquele dilogo interno poesia corts provenal, j discutida, e que punha secreto erotismo a pulsar sob o manto etreo do amor espiritualizado. A poesia provenal mantm, de forma similar, uma relao de encantadora ambigidade para com a heresia ctara: ao mesmo tempo, uma suave tenso entre o desejo amoroso terreno e a espiritualidade ctara e, por outro lado, uma simptica assimilao da mstica ctara como inspirao para uma mstica profana. Isso no impediu que o amor corts rapidamente se difundisse para outros meios cortesos no ctaros, j que o favorecia seu componente associado ao circuito feudo-vasslico. Um componente carregou o outro, a vassalidade amorosa serviu de veculo ao amor idealizado. Quando o trovadorismo provenal entrou em declnio, aps a cruzada antictara, j tinha deixado razes da Alemanha pennsula Ibrica.__________________________________________________17

O catarismo correspondeu a um movimento religioso que comeou a divergir do tipo de cristianismo centralizado pelo papado, e logo foi considerado um movimento hertico, vindo a ser violentamente reprimido por uma cruzada contra as regies do sul da Frana, onde a religiosidade ctara havia se difundido de maneira significativa, tendo a sua frente senhores importantes. Sobre o catarismo, ver Nelli (1972) e Niel (1955).

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Por sua vez, o movimento italiano resultado de uma primeira migrao de trovadores ctaros refugiados da Cruzada Albigense. Ali logo floresceria o dolce stil nuovo.18 O amor se tornaria ainda mais puro e platnico, a dama adorada transmite-nos mais facilmente a impresso de que simboliza um ser sobrenatural ou equilibrado ou muito simplesmente a essncia feminina consagrada pela morte (NELLI, 1972, p.87).19 A ltima ponta dessa radicalizao da imagem da mulher ideal a Beatriz de Dante (ALIGHIERI, 2007, passim).20 Quanto a Minnesang, adapta a sua lrica os ideais do amor corts, conduzidos ao apogeu por Walter von Vogelweide (1165-1228). Mesmo a Frana do Norte, onde predominavam as canes de gesta, sofreria a influncia do lirismo provenal, sobretudo a partir do final do sculo XII. Ao trovadorismo galego-portugus, por fim, o lirismo provenal chega de forma estereotipada nas cantigas de amor,21 em que as frmulas se repetem exaustivamente, a ponto de os prprios trovadores escarnecerem de um jogral que delas abusava, morrendo de amor tantas vezes que j se perdera a conta:Roi Queimado morreu con amor en seus cantares, par Santa Maria, por ua dona que gran ben queria; e, por se meter por mais trobador, por que lh ela non quis[o] ben fazer, feze-sel en seus cantares morrer; mais ressurgiu depois ao tercer dia. (Pero Garcia Burgals, CV 988 )__________________________________________________18

As ligaes do dolce stil nuovo italiano com o catarismo so perceptveis por sinais diversos. Dante Alighieri, ponto de chegada potico do novo estilo, no menciona por exemplo a presena de ctaros no seu inferno (ALIGHIERI, 2004). 19 Do ponto de vista da forma, o dolce stil nuovo filia-se influncia do trovar clus (o trovar fechado, ou trovar em cdigo), um dos trs estilos poticos oriundos da poesia provenal. Sobre o dolce stil nuovo, ver Marti (1975, p.169-173). 20 Vale lembrar que Dante rende homenagens aos poetas do trovar clus provenal e aos fundadores do dolce stil nuovo na Itlia. Gerad de Borneil e Arnaud Daniel so apontados como os grandes trovadores, e esse ltimo elevado categoria de prncipe. Guido Guinnizelli apontado pelo poeta florentino como fundador do dolce stil nuovo no qual as canes de amor so envolvidas por conceitos metafsicos e que produz uma poesia de difcil compreenso para o ouvinte no iniciado, maneira do trovar clus. 21 Sobre as relaes entre o trovadorismo provenal e o trovadorismo galego-portugus, ver DHeur (1973).

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A crtica ao abuso de lugares-comuns procedente, no s nesse como em outros trovadores. Se j na poesia provenal mais convencional verificase certa recorrncia das mesmas situaes, cada cantiga sendo uma espcie de variao deste grande tema que o amor corts, nas cantigas de amor galego-portuguesas isso se acentua. Algumas qualidades da poesia provenal parecem mesmo se degradar: a nitidez descritiva se embota e o retrato da mulher amada se reduz a expresses demasiado vagas. Um simples rosto formoso descreve a mulher; um revoar de pssaros, a cena da natureza. A riqueza de analogias e imagens se desbota em singelos lugares-comuns, como nesta cantiga de Rui Paes Ribela: Com antras pedras bon rubi/sodes antre quantas eu vi (CA198). por essa pobreza de vocabulrio e situaes que, em comparao com as cantigas satricas e mesmo com as cantigas de amigo as cantigas de amor galego-portuguesas oferecem menos interesse histrico, parte, claro, as associaes com o imaginrio feudo-vasslico de suserania e vassalagem, que aqui como ali so de interesse para uma histria da cultura e das mentalidades. De qualquer maneira, o lirismo provenal torna-se o primeiro elemento na grande sntese elaborada pelo lirismo galego-portugus. O veculo do amor corts foi aqui a cantiga de amor, primeiro gnero potico citado no manual trecentista Arte de trovar. A influncia provenal nesse gnero reconhecida por todos os trovadores, inclusive o rei D. Dinis (1878, p.127): Quereu en maneira de proenal/fazer agora uu cantar damor. Outrossim, o mesmo rei-trovador a relativiza:Proenais soen mui ben trovar e dizen eles que con amor, mays os que troban no tempo da flor e non en outro sey eu ben que non am tam gran coyta no seu coraon qual meu por mha senhor vejo levar. (Dom Dinis,CV 127)

O rei portugus critica explicitamente os verdadeiros provenais por uma eventual ausncia de sentimentos verdadeiros. Insinua que suas trovas so feitas, por vezes, mais com a cabea do que com o corao. A indicao de que alguns dos poetas occitnicos s trovam em determinadas estaes (o tempo da flor) lhe parece um sinal de que seu trovar nem sempre espontneo.

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A cantiga tem especial valor por mostrar que, se h adaptao e assimilao da poesia provenal pennsula, h em outros momentos dilogo de confronto. Interessa ao rei e a outros trovadores afirmar e produzir uma identidade potica prpria. Isso est na raiz da assimilao pela corte das correntes jogralezas populares, que j estavam na pennsula antes de o lirismo provenal ser para ali importado. O gnero que vai se prestar como um veculo para essa lrica autctone o das cantigas de amigo. Outra peculiaridade distintiva entre a poesia provenal e a ibrica refere-se ao tipo de musas inspiradoras para quem ela se volta. Aqui, quase sempre as cantigas so direcionadas para donzelas solteiras. Na poesia provenal, como no resto da Europa, predomina amplamente a escolha de mulheres casadas para senhoras. Via de regra, conforme assinala Georges Duby (1990, p.60), esposas de senhores bem situados socialmente. Essa evidncia e a escolha de um corpus documental que privilegia a Frana e no considera o trovadorismo galego-portugus levaram o historiador francs a ver o amor corts como lugar exclusivamente do masculino. Segundo esse ponto de vista, o amor corts poderia ser comparado a uma justa, a um torneio que confronta dois homens e onde a mulher apenas instrumento para o fluir da disputa ou ainda a um ritual que se presta a uma educao dos sentidos (no caso, uma disciplina para o desejo sexual dos jovens solteiros) e uma vlvula de escape para as frustraes que surgem nos casamentos medievais. Sobretudo, Duby coloca o amor corts como um amor de homens, em que o amador, servia dama, mas pretendia servir a seu marido. Tais interpretaes foram construdas considerando-se o modelo francs. Generaliza-se o servio mulher casada como uma parte essencial e central do ritual corts. Essa generalizao, pelo menos para o circuito trovadoresco galego-portugus, seria um equvoco, j que at mesmo era excepcional no trovadorismo peninsular cortejar uma mulher casada, a no ser que se quisesse depreciar o marido.22 Para alm das cantigas de amor que se inspiram no trovadorismo provenal, deve-se registrar ainda que as grandes singularidades do lirismo galego-portugus so as cantigas de amigo e as cantigas satricas, dentre as quais podemos destacar as tenes e as cantigas de escrnio e de maldizer. As cantigas de amigo constituem o gnero popular por excelncia.__________________________________________________22

Para estudos mais aprofundados sobre o trovadorismo galego-portugus ver Tavani (2002), Oliveira (1994) e Oliveira (2001).

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Na verdade, elas so mais um espao de imbricamento de vrios extratos de cultura popular do que qualquer outra coisa, apesar de ocultarem essa pluralidade de ambientes populares sob essa nica designao que lhe foi atribuda por seus prprios contemporneos. Um rastreamento temtico revela de pronto isso, j que do ambiente rural ao urbano, das residncias no aristocrticas s cortess, multiplicam-se os ambientes internos das cantigas de amigo. Ao mesmo tempo, os personagens que a circulam so sensivelmente mais diversificados, revelam uma variedade de vises de mundo e modos de vida. Tal se constata imediatamente com a comparao entre as diversificadas personagens femininas das cantigas de amigo e aquelas das cantigas de amor. Nestas, as mulheres so na verdade uma nica e mesma mulher: pura, idealizada, absolutamente bela e distante. H um nico modelo feminino que se refrata nas composies poticas, apresentando variaes mnimas. Nas cantigas de amigo, ao contrrio, apresenta-se um verdadeiro mostrurio do universo feminino medieval, em que as mulheres ora so ingnuas, ora experimentadas; ora compassivas e inclinadas piedade, ora astutas e calculistas; ora indiferentes, ora susceptveis; ora se entregam, ora desfrutam os amigos (SARAIVA, 1985, p.56). assim que um interessante dilogo de pronto se estabelece entre as cantigas de amigo e as cantigas de amor. Esse dilogo tem como tema o confronto da variedade humana com a idealizao humana ou, ainda, da concretude da vida diria com sua transcendncia. A esses vm se juntar o dilogo entre o lirismo autctone e o de inspirao provenal. Trata-se de um dilogo no sentido pleno, ora por confronto ora por assimilao, estabelecendo tanto uma circularidade entre os dois campos como, em outros momentos, fixando a identidade de cada plo.23 Do ponto de vista da forma,__________________________________________________23

O conceito de circularidade foi elaborado por Ginzburg a partir de uma concepo de dinamismo cultural proposta por Bakhtin, lingista russo que se celebrizou por uma concepo dialgica dos textos literrios e da prpria cultura como um todo. Em uma obra que se tornaria um marco importante para essa discusso, Cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento o contexto de Franois Rabelais, Bakhtin d a perceber que na obra de Franois Rabelais expressa-se um intenso dilogo entre a cultura cmica popular e a oficial no perodo do Renascimento, esse momento histrico-cultural particularmente significativo em que as fronteiras entre essas duas culturas apresentam-se por vezes indefinidas e pouco precisas. Para Bakhtin, ao mesmo tempo em que a relao entre a cultura popular e a cultura erudita apresenta-se harmoniosa e mutuamente enriquecedora em alguns aspectos, tambm se mostra assinalada pelo conflito e por dissonncias vrias (BAKHTIN, 1999). A obra de referncia de Carlo Ginzburg para a questo da circularidade O queijo e os vermes o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela inquisio (GINZBURG, 1986).

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o imbricamento entre as cantigas de amor e de amigo pode ser observado na estrutura potica. Boa parte das cantigas de amor galego-portuguesas (ao contrrio das canes de amor provenais) tem refro, que um trao original das cantigas de amigo. Da mesma forma, o paralelismo de rimas tambm invadiu grande subconjunto das cantigas de amor. Para alm das cantigas de amor e das cantigas de amigo, a poesia satrica ganhou no trovadorismo das cortes ibricas extraordinrio relevo, bem menos comum nos demais ambientes trovadorescos da Europa. Por meio desses poemas satricos, estabeleceram-se verdadeiros confrontos lricos entre os vrios tipos sociais. Um vilo livre para se opor a um trovador nobre nessa arena dos trovadores. O vilo deve se defender do jogral assoldadado, da mais baixa extrao social, com as mesmas armas poticas. De igual maneira, nos grupos sociais mais elevados surgiram as tenes expressas pela lrica trovadoresca, e devemos lembrar que nessa poca Portugal e Castela viviam um embate entre o centralismo rgio e as tendncias senhoriais que apregoavam a autonomia de setores nobilirquicos. No prprio ambiente palaciano do rei, que era quem promovia nos reinos ibricos os maiores saraus trovadorescos, o nobre partidrio da descentralizao senhorial era tambm livre para se opor, desde que o fosse liricamente, ao monarca centralizador. At mesmo o rei trovador participava do disputatio lrico, convivendo com todos os demais tipos sociais e submetendo-se s mesmas normas que regiam o conjunto dos poetas cantores. Na arena dos trovadores, ele devia vencer pelo talento, e no por seus atributos rgios, mas, quando no estivesse poetando e estivesse desempenhando a funo de anfitrio maior do pao trovadoresco , o rei devia ocupar sua habitual posio de rbitro de conflitos. Nesse contexto e de acordo com essas motivaes sociopolticas, logo emergiria do universo satrico ibrico um gnero potico particularmente caro aos trovadores envolvidos na disputatio lrico.24 Trata-se das tenes,__________________________________________________24

As fontes de referncia para o chamado Cancioneiro Galego-portugus correspondem a trs documentos principais: O Cancioneiro da ajuda, o Cancioneiro da Vaticana e o Cancioneiro da biblioteca nacional foram postos por escrito entre a ltima dcada do sculo XIII e as primeiras dcadas do sculo XIV, e constituem grandes coletneas da poesia trovadoresca ibrica que, a sua poca, circulava nas cortes rgias de Portugal e Castela. Os manuscritos encontram-se atualmente nas bibliotecas que lhes emprestam seus nomes: Biblioteca da Ajuda (CA), Biblioteca da Vaticana (CV), Biblioteca Nacional (CBN). Os trs cancioneiros encontram-se atualmente impressos, contando com edies importantes das quais elegemos a de Carolina Michalis de Vasconcelos para o Cancioneiro da ajuda (1904), a de Tefilo Braga para o Cancioneiro da Vaticana (1878), e a de Elza Pacheco Machado para o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (1949-1964).

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que corresponderiam s j mencionadas ten da lrica provenal e tambm tinham gnero correspondente na minnesang. A forma, como foi ressaltado, constitua-se basicamente de uma alternncia de estrofes, em que um trovador respondia ao outro a maneira de um desafio. O dado fundamental que, nas cortes feudais europias, mesmo que essas disputatios lricas envolvessem trovadores aristocratas e menestris de categoria social inferior, o tema central da ten jamais costumava envolver uma questo de fundo social. Discutia-se em torno da amatria (questes relativas ao amor corts) ou ento sobre estilstica (um verso deveria ser transparente como as guas de um rio ou obscuro como as brumas de uma tarde de outono?). Ao contrrio, na teno ibrica, o contedo mais habitual claramente social, gerador de confrontos de todos os tipos. Nos paos trovadorescos de Portugal ou Castela, era comum que dois tipos sociais antagnicos, como um jogral assoldadado e um trovador fidalgo, duelassem liricamente com conotaes sociais, como se v nesse exemplo de dilogo entre Meen Rodrguez Tenoiro e Juio Bolseiro: Juio, quero tigo fazer, se tu quiseres, ua entenon: e querrei-te, na primeira razon, ua punhada mui grande poer eno rostro, e chamar-te rapaz mui mao; e creo que assi faz boa entenon quena quer fazer. Meen Rodriguez, mui sen meu prazer a farei vosc, assi Deus me perdon: ca vos averei de chamar cochon, pois que eu a punhada receber; des i trobar-vos-ei mui mal assaz, e atal entenon, se a vs praz, a farei vosco mui sen meu prazer. Juio, pois tigo comear fui, direi-t ora o que farei: ua punhada grande te darei, des i querrei-te muitos couces dar na garganta, por te ferir peor, que nunca vilo aja sabor doutra tenon comego comear.

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Meen Rodriguez, querrei-m en parar, se Deus me valha, como vos direi: coteife nojoso vos chamarei, pois que eu a punhada recadar; des i direi, pois so os couces for: Le[i]xade-m ora, por Nostro Senhor, ca assi se sol meu padr a en parar. Juio, pois que t eu [for] filhar pelos cabelos e que t arrastrar, que dos couces te ps eu creerei. Meen Rodrguez, se m eu estropiar, ou se me fano, ou se m entortar, ai, trobador, j vos non travarei. (Men Rodrigues Tenrio e Juio Bolseiro,CBN 403)

A estrutura de teno tpica: mediante ela, os dois trovadores se ocupam de depreciar um ao outro em estrofes alternadas. Dentro dessa estrutura, ao invs da teno girar em torno de uma questo genrica, o que se v uma sucesso de ataques pessoais que oculta um verdadeiro conflito de categorias sociais. Mem Rodrigues Tenrio pertencia a uma das mais ilustres famlias galegas e melhor nobreza da pennsula. Quanto a Juio Bolseiro, era um jogral que tambm atuava com sua margem de atrevimento, embora muito menos que Loureno outro jogral da poca que se celebrizou por afrontar trovadores fidalgos , mas que aqui aparece curiosamente comedido diante das ameaas de Tenrio. Estamos aqui diante de uma teno proposta em termos de rara agressividade. Quase toma a forma lrica de uma briga de rua, no fosse que total agressividade de Tenrio Juio Bolseiro replica com certo comedimento. Enquanto o fidalgo principia por dizer que sua primeira razo um murro no rosto (v.4 e 5), Juio no mximo lhe responde com alguns insultos (cochon, por exemplo, que uma expresso pejorativa normalmente dirigida por aristocratas a vilos). Talvez, sem querer partir para o que poderia descambar para um confronto fsico ou ento extrapolar a tenso trovadoresca apresentada liricamente, o jogral tenta responder com mais dignidade e astcia potica. Apropria-se ento das prprias palavras injuriosas que os nobres costumavam dirigir aos vilos e procura volt-las contra o fidalgo agressor,

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talvez a insinuar algo sobre quem se comporta como um verdadeiro cocho (v.10), ou ainda um coteife nojoso (v.24). Tenrio, por sua vez, continua ao longo de todas as estrofes a desfechar suas ameaas fsicas, como por exemplo na terceira estrofe, em que afirma que ir lhe dar muitos coices na garganta, para feri-lo tanto que desde ento nenhum vilo mais se atrever a entenoar com ele (v. 18-21). a demarcao social levada a seu extremo, com rara agressividade em uma teno trovadoresca nesse meio em que tudo parece se resolver liricamente. Significativo parece o contraste entre a agressividade do nobre e o relativo comedimento do jogral, pois mostra que os limites de um no so iguais aos limites do outro. De qualquer forma, deve-se ter em vista que essas tenses se davam habitualmente em um ambiente ldico, contraponteado pelo riso, de modo que no devemos entender a agressividade simblica desfiada por meio dos versos como afrontas em vias de se concretizarem. Em todo o caso, o exemplo acima fica como um registro extremo dessa oposio entre dois representantes de segmentos sociais que se antagonizam pela stira trovadoresca oposio que, na maior parte das vezes, concentra-se na disputa estritamente lrica, na desmoralizao pelo riso, no rebaixamento pela palavra. O combate corpo a corpo assume em quase todos esses casos a forma de um combate verso a verso, e se volta fundamentalmente para o campo da violncia simblica. Para alm das tenes, outro gnero do lirismo galego-portugus em que se expressavam diretamente as tenses sociais eram as cantigas de escrnio e de maldizer. Nestas, temos crticas frontalmente dirigidas contra outros trovadores ou ento contra personagens no presentes no meio trovadoresco, mas suficientemente conhecidos para capitalizar o interesse. H escrnios que se referem mesmo ao Papa, fora os escrnios ou cantigas satricas que se opem aos reis de Portugal ou Castela. As tenes e cantigas de escrnio e de maldizer, ao lado das cantigas de amigo, conferem ao circuito dos trovadores galego-portugueses uma posio nica no quadro do trovadorismo medieval.25 Afora os grandes conjuntos trovadorescos cortesos, que tiveram no lirismo provenal seu plo difusor, outro circuito que deve ser considerado no dialogismo trovadoresco o dos goliardos. Os Carmina Burana (CB 191) refletem de maneira exemplar a filosofia de vida desses clrigos errantes:__________________________________________________25

Para uma viso mais geral do trovadorismo galego-portugus, ver Seixas (2000).

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Sou coisa leve, Tal como a folha levada pelo furaco. [...] Tal como a neve vagando sem piloto, Como um pssaro errante pelos caminhos do ar, No me prendem nem ncoras nem cordas. [...] A beleza das raparigas atingiu-me o peito. As que no posso tocar, possuo-as com o corao. [...] Reprovam-me em segundo lugar o jogo. Mas ainda que o jogo Tenha me deixado nu e com o corpo frio, meu esprito se aquece. ento que minha musa compe as melhores canes. Em terceiro lugar, falemos do cabar. Quero morrer na taverna, Onde os vinhos estaro prximos da boca do moribundo. Descero depois os coros de anjos cantando: Que Deus seja clemente com este bom bebedor.

Eis aqui o modo de ser proposto pelos goliardos, desde sua eterna vagncia (folha levada pelo furaco e pssaro errante), at a trilogia fundamental: o jogo (4. e.), o vinho (5. e.) e o amor (3. e.). Essa entrega a um ambiente de liberalidade ter perfeita correspondncia no trovadorismo ibrico, conforme pode ser visto em alguns escrnios e cantigas obscenas. Para alm disso, a outra dimenso da poesia golirdica era a da crtica social pelo que j vimos se estabelecer mais uma zona de dilogo entre poetas ibricos como Airas Nunes e os clrigos vagantes que percorriam a Frana e a Alemanha. No que se refere ao componente crtico-social, os goliardos eram, para utilizar uma imagem de nosso tempo, uma espcie de metralhadora giratria, que no poupava ningum a sua volta. Se atacavam o clero, as instituies oficiais, a nobreza enfim, todas as foras sociais dominantes , tambm no poupavam, em seu desprezo citadino pelo mundo rural, o campons rstico (um dos mais clebres exemplos a Declinao do Rstico, cantiga do Carmina Burana). Assim, os goliardos promoveram uma crtica

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implacvel sociedade de seu tempo, mas no se engajaram propriamente em qualquer interesse de transformao social. Orgulhosos de sua marginalidade e independncia, eles se diferenciam de eventuais porta-vozes trovadorescos dos injustiados sociais. A crtica social dos goliardos no da mesma ordem da crtica moralizadora que vimos estampada em sirvanteses, como os de Marcabru. De fato, se unirmos sua componente sociocrtica componente dionisaca, j referida, veremos que os goliardos estavam pouqussimo interessados em algum tipo de moralizao dos costumes. Eles pretendiam combater a hipocrisia de seu tempo, no qual alguns dos altos dignitrios da igreja acobertavam sua devassido sob o discurso moralizador da sacristia ou no qual alguns aristocratas recobriam sua mediocridade com o pomposo manto da nobreza. Em uma palavra, os goliardos eram arrancadores de mscaras, destruidores de dolos que pretendiam restituir o mundo a sua verdadeira essncia. Completamos, assim, o grande concerto da Europa Trovadoresca. Uma ltima ao para mais bem compreender essa polifonia seria estender um olhar para outras influncias, mas isso j extrapolaria os limites deste artigo. Seria lcito opor ao lirismo europeu um retrato do trovador rabe da Espanha muulmana, principalmente porque o movimento de poetas cantores islmicos teve profunda influncia no lirismo galego-portugus ou mesmo no provenal, mas tanto uma como outra dessas discusses, certamente, necessitariam de um estudo parte.26 Referncias bibliogrficas ALIGHIERI, D. Da monarquia/vida nova. So Paulo: Martim Claret, 2007. ALIGHIERI, D. Divina comdia. Rio de Janeiro: Record, 2004. BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais. So Paulo-Braslia: Hucitec-Edunb, 1999. BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. So Paulo: Hucitec, 1978.__________________________________________________26

Para um panorama mais amplo dos vrios segmentos trovadorescos, e tambm para acesso s diversas fontes trovadorescas, ver Riquier (1975 e 2004) e Riquier e Riquier (2002). Para conhecer uma das mais geniais abordagens analticas da poesia medieval, ver Zumthor (1993).

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