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GRODEK Ao entardecer as armas da morte Ressoam nas florestas outonais, as planícies douradas E os lagos azuis, por cima, o sol rola, sombrio; A noite abraça os guerreiros moribundos, O lamento selvagem de suas bocas quebradas. Mas o sossego concentra nuvens vermelhas Entre os salgueiros, onde mora um deus feroz, O sangue derramado, a frescura lunar; Todos os caminhos acabam em podridão. Sob as ramagens douradas da noite e das estrelas A sombra da irmã cambaleia , através Do silencioso arvoredo , para saudar os espíritos dos heróis, As cabeças ensanguentadas; E, silenciosas, as escuras flautas do outono ressoam no juncal. Ó orgulhosa tristeza! E vós altares de bronze, A chama quente do espírito alimenta hoje uma grande Dor – os netos não nascidos. . ELIS 1 Perfeito é o sossego deste dia dourado .

Georg Trakl - alguns poemas

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Page 1: Georg Trakl - alguns poemas

GRODEK

Ao entardecer as armas da morteRessoam nas florestas outonais, as planícies douradasE os lagos azuis, por cima, o sol rola, sombrio;A noite abraça os guerreiros moribundos,O lamento selvagem de suas bocas quebradas.Mas o sossego concentra nuvens vermelhasEntre os salgueiros, onde mora um deus feroz,O sangue derramado, a frescura lunar;Todos os caminhos acabam em podridão.Sob as ramagens douradas da noite e das estrelasA sombra da irmã cambaleia , atravésDo silencioso arvoredo , para saudar os espíritos dos heróis,As cabeças ensanguentadas;E, silenciosas, as escuras flautas do outono ressoam no juncal.Ó orgulhosa tristeza! E vós altares de bronze, A chama quente do espírito alimenta hoje uma grande

Dor – os netos não nascidos.

.

ELIS

1

Perfeito é o sossego deste dia dourado .Debaixo dos antigos carvalhosTu apareces, Elis, tranquilo, com olhos redondos.

O seu azul reflecte o sonho dos amantes.Na tua boca Os seus róseos suspiros emudecem.

À noite o pescador recolhe as redes pesadas.Um bom pastor Conduz o rebanho até à orla do bosque.Oh! Como são justos todos os teus dias, Elis.

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Manso, o sossego azul da oliveiraCai junto aos muros escalvados,O negro cântico de um ancião morre.

Uma barca dourada Oscila, Elis, o teu coração no céu abandonado.

2

Um toque de sinos suaves ressoa no peito de Elis,À noite,Quando a sua fronte repousa nas negras almofadas.

Uma fera azulSangra, silenciosamente, no silvado.

Uma árvore castanha está ali, isolada.Os seus frutos azuis caiem.

Sinais e estrelasAfundam-se, silenciosamente, no tanque da noite.

Para lá da colina, é inverno.

Á noite, as pombas azuis Bebem o suor geladoQue escorre da testa cristalina de Elis.

Nos negros muros ressoa, sempre, o vento solitário de Deus.

.

melancolia

Sombras azuladas. Oh, olhos de

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mágoasQue me olham longamente ao deslizar.Guitarras nos jardins, a acompanharO Outono e a dissolver-se em escuras águas.Duras trevas da morte, construídasPor mãos nínficas, rubros seios sugadosPor lábios podres, e os cabelos molhadosDo jovem nas águas enegrecidas.

.

O SONO

2. Versão

Malditos venenos negros,sono branco!Este estranhíssimo jardimde árvores sombriascarregadas de serpentes, mariposas,aranhas, morcegos.Forasteiro! A tua sombra perdidano crepúsculo,um corsário obscurono mar salgado da melancolia.Aves brancas esvoaçando na orla da noitepor cima de cidades de açocaídas.

Georg TraklTrad.:Luis Costa

.O SOL

Todos os dias o sol amarelo aparece sobre a colina.Bela é a floresta, o animal escuro,

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O homem, caçador ou pastor.

Avermelhado, o peixe sobe no regato verde.Sob o céu redondoO pescador segue, silencioso, na canoa azul.

Lenta a uva amadurece , o grão,Quando calmo o dia se inclina,O mal e o bem estão preparados.

Quando anoitece,O peregrino ergue suavemente as pálpebras pesadas;O Sol ergue-se do desfiladeiro sombrio. 

 

CREPÚSCULO ESPIRITUAL

Silenciosa uma besta negravai ter à orla do bosque.Na colina acaba o vento calmo da tarde,

as queixas do melro emudeceme as suaves flautas do outonocalam no canavial.

Numa nuvem negra, ébrio de papoilas, percorreso tanque nocturno,

o céu estrelado.A voz lunar da irmã ainda ressoaatravés da noite espiritual.

Georg Trakl

NASCIMENTO

Montanhas: negridão, silêncio, neve.Vermelha, a caça sai da floresta;Oh! O musgoso olhar do animal.

O silêncio da mãe; debaixo dos abetos negrosAbrem-se as mãos adormecidas,Quando, em ruínas, a lua aparece, fria.

Oh! O nascimento do Homem. Nocturna, a água azulRumoreja no fundo do rochedo.Suspirando, o anjo caído observa o seu rosto.

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Uma palidez acorda no quarto embotado.Duas luasIluminam os olhos da velha empedernida.

Ó aflição! O grito do parto. Com asas negrasAs têmporas do menino agitam a noite,Neve que cai suavemente da nuvem purpúrea.

George Trakl(Versão portuguesa por Luís Costa)

PAISAGEM

Noitesetembrina. Tristes, os gritos obscuros dos pastoresentoam atravésda aldeia que escurece.  O fogo faísca naforja.Enorme, umcavalo negro empina-se; as tranças jacintinas da moçaperseguem ofervor das suas ventas purpúreas. Silencioso, ogrito da corça congela na orla do bosquee as floresamarelas do outonoinclinam-se ,mudas, sobre as faces azuis do lago.Na chamavermelha arde uma árvore; os morcegos esvoaçam com rostos sombrios.

Georg Trakl( Versãoportuguesa por Luís Costa )

DECLÍNIO

( 4. Versão ) *

Sob o arco obscuro da nossa melancoliaBrincam , à noite,  as sombras dos  anjos mortos.Sobre o regato  brancoAs aves selvagens partiram.Absortos , debaixo dos salgueiros brancos,As nossas faces acariciam estrelas amareladas.A testa das noites passadas inclina-se sobre nós .

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O rosto dos túmulos brancos fita-nos sempre.Suavemente, o céu  desaba sobre a colina desértica,Os muros escalvados do bosque outonal.Sob o arco de espinhosÓ meu irmão , descemos,  ponteiros cegos, em direcção à meia-noite.

*este poema (  há quatro versões )  faz parte da obra póstuma   ( espólio ) do poeta.

Canção Noturna

Alento do inerte. Um vulto de animalespantado ante a santidade do azul.Prestigioso é o silêncio do seixo.

O disfarce da noturna ave. Três docessons sonhadas numa. Heila! Teu rostoinclinar-te mudo sobre à água azulada.

Oh silenciados cristais da verdade.No sonho de marfim. o desertoAparece-te à imagem dos anjos caídos.

\

Uma noite de invernoTodavia cai a neve na janelavasto sonha a cabana vespertina.Para muitos a mesa servidaa casa ordenada.

Alguém em sua andança,chega à porta por lâmpadas brunas.Doirada medra a árvore da graçaabrolhando da seiva fresca terra.

Entra o viandante silenciosoa dor o petrificou-se no umbral.Mas fulge em puro fulgorsobre a mesa há o pão e o vinho.

Lamento

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Sonho e morte, a lúgubres águiasgrasnam toda à noite entorno da cabeça:A doirada ideia do homemarrebataria a onda cerradade além. Nas alarmantes penhasdestroça-se o púrpuro corpode uma voz tenebrosacurvar-se sobre o mar.Irmã de tempestuosa amarguraavisa quando fundisse à barca espantadadebaixo das estrelas,do rosto silencioso da ocaso.

George TraklTrad.:Eric Ponty

Helian

Nas horas solitárias do espíritoÉ bonito ir-se até ao solAo longo dos muros amarelos do verão.Sobre a erva, os passos retinem silenciosos; porémo filho de Pã dorme sempre no mármore cinzento.

À noite, no terraço, embriagávamo-nos com vinho castanho.Avermelhado, o pêssego arde na folhagem.Suave sonata. Riso alegre.

Lindo é o silêncio nocturno.No projecto obscuroNós encontramo-nos com pastores e estrelas brancas.

Quando já é OutonoUma sóbria claridade aparece no arvoredo.Sossegados, caminhamos ao longo de muros vermelhos.E os olhos redondos seguem o voo das aves.Ao anoitecer, a água branca desce às urnas funerárias.

Nas ramagens calvas, o céu festeja.Nas mãos puras, o lavrador traz o pão e o vinho.E tranquilos, os frutos amadurecem nos aposentos soalheiros.

Como é severo o rosto dos mortos mais queridos!Porém, o espírito alegra-se com uma justa contemplação.

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Salmo

Dedicado a Karl Kraus

Há uma luz que o vento apagou.Há uma taberna no campo, de onde à tarde sai um bêbado.Há um vinhedo queimado e negro com covas cheias de aranhas.Há uma sala que caiaram a leite.Morreu o louco. Há uma ilha no mar do sulPara receber o deus do sol. Rufam os tambores.Os homens executam danças guerreiras.As mulheres dão às ancas cingidas de trepadeiras e flores de fogo,Quando o mar canta. Oh, o nosso paraíso perdido.

As ninfas deixaram as florestas douradas.Enterra-se o forasteiro. Depois começa a cair uma chuva cintilante,Aparece o filho de Pã sob a forma de um trabalhador da terraQue passa o meio-dia a dormir no asfalto em brasa.Há rapariguinhas num pátio, com vestidinhos cheios de uma pobreza quetrespassa o coração!Há quartos cheios de acordes e sonatas.Há sombras que se abraçam frente a um espelho cego.Às janelas do hospital aquecem-se os convalescentes.Um paquete entra o canal trazendo sangrentas epidemias.

A estranha irmã volta a aparecer nos maus sonhos de alguém.Brinca tranquila nas avelaneiras com as estrelas dele.O estudante, talvez um sósia, olha-a longamente da janela.Atrás dele está o seu irmão morto, ou então desce a velha escada de caracol.No escuro dos castanheiros empalidece a figura do jovem noviço.O jardim está imerso no entardecer. No claustro esvoaçam os morcegos.Os filhos do porteiro deixam de brincar e buscam o oiro do céu.Acordes finais de um quarteto. A pequena cega atravessa a alamada a tremer,E mais tarde a sua sombra vai tacteando muros frios, envolta em contos defadas e lendas de santos.Anônimo - 30/03/2010

Há um barco vazio que ao cair da noite vai descendo o canal negro.Na obscuridade do velho asilo há ruínas humanas em decadência.Os órfãos mortos jazem junto aos muros do jardim.De quartos cinzentos saem anjos com asas sujas de excrementos.Gotejam-lhes vermes das asas amareladas.A praça da igreja está sombria e mergulhada no silêncio, como nos dias dainfância.Sobre solas de prata deslizam vidas passadasE as sombras dos condenados descem às águas soluçantes.No túmulo, o mago branco brinca com as suas serpentes.

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Em silêncio, abrem-se sobre o Calvário os olhos dourados de Deus.

Georg TraklOutono TransfiguradoAssírio e Alvim, 1992Tradução de João Barrento

Ao entardecer as armas da morteRessoam nas florestas outonais, as planícies douradasE os lagos azuis, por cima, o sol rola, sombrio;A noite abraça os guerreiros moribundos,O lamento selvagem de suas bocas quebradas.Mas o sossego concentra nuvens vermelhasEntre os salgueiros, onde mora um deus feroz,O sangue derramado, a frescura lunar;Todos os caminhos acabam em podridão.Sob as ramagens douradas da noite e das estrelasA sombra da irmã cambaleia atravésDo silencioso arvoredo para saudar os espíritos dos heróis,As cabeças ensanguentadas;E, baixas, as escuras flautas do outono ressoam no juncal.Ó orgulhosa tristeza! E vós altares de bronze,A chama quente do espírito alimenta hoje uma grandeDor - os netos não nascidos.

Georg TraklDas dichterische Werk ( Kritische Ausgabe )DTV, 1972Tradução de Luís Costa

Al atardecer cuando tocan a paz las campanas.Sigo de las aves el maravilloso vueloQue en largas bandadas como devotos peregrinosDesaparecen en las claras vastedades del otoño.

Deambulando a través de umbrosos patiosSueño yo en sus lúcidos presagiosY siento que de las sabias horas no podré apartarme.Así prosigo, por sobre nubes, tras sus viajes.

He aquí que un hálito me hace temblar ante las ruinas.El mirlo clama entre las ramas deshojadas.

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Oscilan las rojas vides entre rejas herrumbrosas.

Entretanto como un corro mortal de pálidos infantesEn torno al oscuro borde de pozos en descomposición.Se inclinan ante el viento, enteleridas, azules ramas.

Georg TraklTrad.:Walter Hoefler

TEMPOS HOUVE

Tempos houve em que o meu demónio ria,E eu era uma luz em jardins soalheiros,Tinha jogo e dança por companheirosE o vinho do amor que me inebria

Tempos houve em que o meu demónio chorava,E eu era uma luz em jardins de crueldade,Tinha por companheira a humildadeQue a casa da pobreza iluminava

Hoje o meu demónio não ri nem chora,Eu sou uma sombra num jardim perdido,E o meu companheiro, pela morte enegrecido,É o silêncio vazio de antes da aurora.

Georg Trakl (1887-1914)"Outono Transfigurado"(Tradução de João Barrento)

NASCIMENTO

Montanhas: negridão, silêncio, neve.Vermelha, a caçada sai da floresta;oh! O musgoso olhar do animal .

O silêncio das mães; debaixo dos abetos negrosabrem-se as mãos adormecidas,quando, em ruínas, a lua aparece.

Oh! O nascimento do Homem. Nocturna, a água azulrumoreja no fundo do penhasco.Suspirando, o anjo caído vê o seu rosto.

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Uma palidez acorda no quarto embotado.Duas luasiluminam os olhos da velha empedernida.

Ó aflição! O grito do parto. Com asas negrasa têmpora do rapaz encosta-se à noite,neve que suavemente cai das nuvens purpúreas.

Canção de Kaspar Hauser

P/ Bessie Loos.

Ele amava realmente o sol, púrpuro fixava-se à colina,o atalho do bosque, o negro pássaro sonoroe a alegria do verde.

Grave era habitar na sombra da árvorepuro o semblante.Deus falava doce chama em seu coração:Oh o homem!

Silencioso descobriu a cidade, passo ao entardecer;o escuro pedido da boca:Quero ser um cavaleiro.Porém seguiram-no matando como animalcasa e jardim de homens alvosdonde assassino procurava-o.

Primavera verão formoso é outonodo justo passo quedojunto ao aposento sombrio dos idealistas.De noite permanecia só com a estrela.

Viu cair à neve na despida ramagema penumbra do corredor à sombra do assassino.

Prateada demoveu-se à cabeça do nascido.

Sonho do mal.

Extinguiu-se o som funesto da campainha.Um amante desperto em sombrios quartosa bochecha apoiada às estrelas da janela centeia.No rio fulguram velas, hastes e cordas.

Um monge, uma mulher grávida fala à multidão.Sons de guitarra, vermelhas fraldas reluzentes.

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Com doirado esplendor mexem-se os castanheiros;Negra se fez à pompa melancólica da igreja.

Inferiores máscaras pálidas há no peito do mal.escurece a praça, tétrica e sinistra.Ao anoitecer, agitasse nas ilhas o murmulho.

Leprosos talvez se apoderarem da noiteleem confusos signos do véu das aves.No parque, irmão e irmã, comovidos,olharem-se nos olhos.

Melancolia.

Poderosos és tu, escura bocano profundo, encarnada figuradas nuvens outonais,de doirada quietação da tarde;uma verdejante queda-d'água crepuscularde consumidos pinhosnos confins da sombra;uma aldeia perece piedosa em imagens pardas.

Ali assaltam os sombrios cavalosem brumosa cobiça.Nós, os soldados!Desde colina onde cinge morrendo-se o solprecipita-se o sangue renteinferior encimaatônitas. Oh ardida maculadas armas. Um capacete reslumbrantecaiu fragoroso de uma frente púrpura.

A noite de Outono aborda tão friabrilhante de astrossobre os dilacerados ossos dos homens,as madres taciturnas.

O Sonho.

Malditos sejam venenos tenebrososalvejado sonho!Este jardim tão curiosode nuviosas árvorespovoadas de serpentes, noturnas borboletasaranhas e morcegos,estrangeiro! Tua sombra perdidanos arredores da tarde,um corsário escuro

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no saudável mar do martírio.

Pássaros alvos rebelam orelhas do entardecersobre cidade de açodesabam-se.Canto da Morte a Sete Vozes.

Azulada enoita a primavera; baixas árvores sorvidasalgo bruno falta pela tarde ao acasoatento choro suave do melro.Silente parece-se à noite, uma ventania sangralenta desvanecer-se na colina.

No úmido ar vibra á ramagem na flor da maçãsoltando o urdimento prateadomorrendo nos noturnos olhares, estrelas caemda doce canção da infância.

Mais visível curvar-se pelo negro bosque dormidoa fonte azul sussurrava profunda;suavemente eleva-se àquelas pálpebras pálidassobre o rosto da neve.

E a lua inchava-se em fera vermelhada guardamorriam os suspiros dos pedidos brunos das mulheres.Música para Mirabel.

Canto uma fonte. Estão às nuvensem intenso azul, alvas e leves.

Frouxos cursam os homens taciturnosno crepúsculo, pelo jardim antigo.

Encanecido está o mármore dos antepassados.Um bando de pássaros havia pausadamente.Um Fauno de olhos perecidos olha às sombrasdeslizam-se sobre à escuridão.

Rui roxo a folhagem do cedro velhoentrando enrolado pela porta aberta.acende-se à chama no recintopintando os lúgubres pavores fantasmas.

Um branco estrangeiro entra na casa.precipita-se um pouco por perigos ruinosos.Uma criada extingue uma lâmpada.Aos ouvidos avizinhar-se à sonata noturna.

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Para um álbum antigo

Sempre moço surge Melancolia,Oh ingenuidade da alma solitária.Brilho de um dia de ouro.

Modesto inclinasse ante á dor do resignadoressonantes harmonias suaves delírios,Olha! Enoitece já.

Volta outra vez à noite a ruir letíferae com ela um outro cai.

Abalados ajoelharem-se os astros de outonode ano em ano se anuem mais à cabeça.Sussurros da tarde

Sol outonal inerme desleixado,tombam os frutos das árvores.A calma jaza nos espaços azuisde resignada tarde.

Moribundos sonhos de metalde uma besta cândida depena-se.Agressivas canções pardas filhascobre a aptidão das horas.

Na frente de deus presume-se às cores,otélia os doces ares de desvario.retorcem-se sombras na cerrocircundadas sombrias podridões.

Crepúsculo recheado de paz e vinho;dimanam tristes guitarras.E a lâmpada amenaAbrigar-se, como num sonho.Crepúsculo do Inverno

Zeus escuros de metalNas vermelhas revoadaspassam gralhas esfaimadassobre um parque fantasmal

Rompe um raio glacialante pragas infernaisgiram gralhas vesperais;

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sete pousam no total.

Na carniça desigual,bicos ceifam em segredo.Casa mudas metem medo;brilha a sala teatral.

Ponte, igrejas, hospitalhórridos na luz exangue.Linhos grávidos de sangueincham velas no canal.Nascimento

Montanhas: negror, neblina e neve.Vermelha, a caça desce a floresta;Oh, os olhares de musgo da presa.

Silêncio da mãe; sob pinheiros negrosAbrem-se as mãos dormentesQuando, vencida, aparece a fria lua.

Oh, o nascimento do Homem. Noturna murmuraA água azul no fundo da rocha;O anjo decaído olha em suspiros sua imagem,

E pálido corpo desperta em câmara úmida.Duas luas

Iluminam os olhos da anciã pétrea.

Dor, grito que dá à luz. Com asa negraA noite toca a têmpora do menino,Neve que desce de nuvem purpúrea.

EM VENEZA

Silente no quarto noturnoTremula em prata o candelabroAnte o sopro canoroDo solitário;Rosa enfeitiçante nuvem.

Negra névoa de moscasEscurece o espaço pétreoE enrija-se da torturaDo dourado dia a fronteDo expatriado.

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Inerte anoitece o mar.Estrela e negra viagemEsvaneceram no canal.Criança, teu sorriso doentioSeguiu-me suave ao sono.

NOITE DE INVERNO

Caiu neve. Depois da meia-noite, bêbado de vinho purpúreo, deixas a zona sombria dos homens, a chama vermelha do seu lume. Ah, a escuridão!

Geada negra. A terra está dura, o ar tem um sabor amargo. As tuas estrelas juntam-se e formam sinais malignos.

Com passos duros caminhas ao longo da linha férrea, de olhos redondos, como um soldado que ataca uma trincheira negra. Avante!

Neve amarga e lua!

Um lobo vermelho a ser estrangulado por um anjo. As tuas pernas tilintam, a andar, como gelo azul, e um sorriso cheio de tristeza e arrogância cobriu-te o rosto, e a fronte empalidece com a volúpia da geada;

ou inclina-se em silencio sobre o sono de um guarda que se deixou cair na sua cabana de madeira.

Geada e fumo. Uma camisa branca de estrelas queima os ombros que a vestem e os abutres de Deus dilaceram o teu coração metálico.

Oh, a colina de pedra! O silêncio derrete, e esquecido jaz na neve prateada o frio corpo.

Negro é o sono. O ouvido segue longamente os atalhos das estrelas no gelo.

Ao despertar tocavam os sinos na aldeia. Da porta do levante nascia, prateado, o dia rosado.

Os Malditos

1.

Cai o dia. Vão as velhas à fonte.Vermelho a rir no escuro do castanheiro.O pão traz, a escorrer, da loja um cheiro,Na cerca os girassóis baixam a fronte.

Na taberna do rio o bulício não estanca.Tilintam as moedas, a guitarra trina.Há uma auréola a descer sobre a menina

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Esperando à porta de vidro, doce e branca.

Oh, o brilho azul, que em vidraças desperta,Envolto em espinhos, negro e enfeitiçado!Um escrivão torto sorri meio desvairadoPara a água que o temporal agita.Alguém Te Abandonou

... Alguém te abandonou na encruzilhada, e tu olhas longamente para trás. Passos argênteos na sombra de macieiras raquíticas. Purpúreo, o fruto resplandece nos ramos negros, e na erva a serpente está na muda de pele. Oh, a escuridão! O suor que aparece na fronte e os tristes sonhos no vinho, na taberna da aldeia sob traves negras de fumo. Tu, deserto ainda, que faz nascer por magia nuvens de rosas das nuvens castanhas do tabaco e lhes arranca do interior o grito selvagem de um grifo que caça, rondando falésias negras, por mares, tempestades e gelos...

Sino rosado da Páscoa na abóbada tumular da noiteE as vozes argênteas das estrelas,Que fazem descer sombria loucura da fronte aterrada do sonâmbulo

Oh, que silencioso o andar pelo rio azul abaixoMeditando sobre coisas esquecidas, quando nos ramos verdesO chamamento de um melro levava um ser desconhecido à decadência.

Ou quando, pela ossuda mão do ancião,Passava à noite pela muralha arruinada da cidadeE aquele levava no casaco negro uma criança rosada,E o espírito do mal aparecia na sombra da nogueira.

O tactear dos verdes degraus do verão. Oh, como o jardimCaiu suavemente no silêncio castanho do outono,Odor e melancolia do velho sabugueiro,Quando na sombra de Sebastião se extinguiu a voz argêntea do anjo.Élis (3ª Versão)

1.

Perfeito é o silêncio deste dia dourado.Sob velhos carvalhosApareces, Élis, imagem de paz com olhos redondos.

O seu azul espelha o sono dos amantes.Na tua bocaEmudeceram os seus suspiros rosados

À noitinha o pescador puxou as pesadas redes.

Page 18: Georg Trakl - alguns poemas

Um bom pastorLeva o rebanho pela orla da floresta.Oh, que justos são, Élis, todos os teus dias!

Leve descePor muros desolados o silêncio azul da oliveira,Morre o sombrio canto de um ancião.

Uma barca de ouroBaloiça, Élis, o teu coração na solidão do céu.

Revelação e Decadência

Estranhos são os caminhos nocturnos do homem. Quando eu, sonâmbulo, passava por quartos de pedra e em cada um ardia tranquila uma candeia, um candeeiro de cobre, e quando, cheio de frio, caí na cama, lá estava de novo à cabeceira a sombra negra da forasteira, e em silêncio escondi o rosto nas mãos lentas. À janela, o jacinto azul tinha também desabrochado, e aflorava aos lábios púrpura a velha oração no respirar do homem, caíam das pálpebras lágrimas de cristal, vertidas por este mundo amargo. Nessa hora eu era, na morte do meu pai, o filho branco. Com as chuvadas azuis vinha da colina o vento nocturno, o sombrio lamento da mãe, de novo a morrer, e eu vi o inferno negro no meu coração; minuto de silêncio reverberante. Silencioso, saiu de um muro caiado um rosto indizível - um jovem moribundo -, a beleza de uma estirpe que regressa a casa. Branca de lua, a frescura da pedra envolveu a fronte vigilante, foram morrendo os passos das sombras nos degraus em ruínas, no pequeno jardim uma dança de roda rosada.(...)

"Sono e morte, as tenebrosas águiasRodeiam a noite inteira essa cabeça:A imagem dourada do HomemEngolida pela onda friaDa eternidade. Em medonhos recifesDespedaça-se o corpo purpúreoE a voz escura lamentaSobre o mar.Irmã de tempestuosa melancoliaVê, um barco aflito afundaSob estrelas,Sob o rosto calado da noite."

SEBASTIÃO NO SONHO

Para Adolf Loos

Page 19: Georg Trakl - alguns poemas

A mãe teve a criança sob a lua branca,À sombra da nogueira, do sabugueiro secular,Embriagada pela seiva da papoula, do lamento do melro; .E silencioso

Sobre elas inclinava-se piedoso um rosto barbado,

Discreto, na escuridão da janela; e velhariasDos antepassadosJaziam podres. arnor e fantasia outonal.

Escuro o dia do ano, triste infância,Quando o rapaz desceu às águas frias, peixes prateados,Quietude e semblante;Quando petrificado jogou-se aos corcéis em disparada,E em noite cinzenta sua estrela vinha sobre ele.

Ou quando pela mão fria da mãeÀ tardinha passava pelo outonal cemitério de São Pedro;Um frágil cadàver jazia inerte no escuro da câmaraE erguia sobre este as pálpebras geladas

Mas ele era um pequeno pássaro em galhos nus,O sino ao longo do novembro da noite,O silêncio do pai, dorrnindo ao descer a espiral crepuscular.

Paz da alma. Noite de invemo solitário,As escuras sombras dos pastores no velho lago;Criança na cabana de palha; quão discretaBaixava o rosto em febre negra.

Noite sagrada.

Ou quando pela bruta mão do paiSubi em silêncio o sinistro Monte CalvárioE em crepusculares nichos dos rochedosA figura azul do Homem passava pela sua lenda,E da ferida sob o coração corria o sangue purpúreo.Oh, com que leveza erguia-se a cruz na alma sombria.

Amor; quando em recantos escuros derretia a neve,Uma brisa azul aninhava-se alegre no velho sabugueiro,Na abóbada de sombras da nogueira;E à criança aparecia devagar um anjo rosado. .

Alegria quando em quartos frios soava uma sonata noturnaNas vigas de madeira marrom '

Page 20: Georg Trakl - alguns poemas

Saía da crisálida prateada.

Oh, a proximidade da morte! Em muro de pedraInclinava-se uma cabeça amarela, a criança muda,Quando naquele mês de março caía a lua.

Róseo sino de Páscoa na abóbada tumular da noiteE as vozes prateadas das estrelasFizeram descer da fronte do adormecido uma sombria loucura[em calafrios.

Oh, tão silencioso um passeio pelo rio azul abaixoLembrandoo esquecido, quando nos galhos verdesO melro chamava ao ocaso um desconhecido.

Ou quando pela magra mão do anciãoPassava à noite ante o muro em ruínas da cidadeE aquele de casaco negro levava uma criança rosada,E à sombra da nogueira aparecia o espírito do mal.

Tatear os verdes degraus do verão. Oh, tão silenciosaRuína do jardim no silêncio marrom do outono,Odor e melancolia do velho sabugueiro,Quando na sombra de São Sebastião expirava a voz prateada do anjo.

CALMA E SILÊNCIO

Pastores enterraram o sol na floresta nua.Um pescador puxou a luaDo lago gelado em áspera rede.

No cristal azulMora o pálido Homem, o rosto apoiado nas suas estrelas;Ou curva a cabeça em sono purpúreo.

Mas sempre comove o vôo negro dos pássarosAo observador, santidade de flores azuis.O silêncio próximo pensa no esquecido, anjos apagados.

De novo a fronte anoitece em pedra lunar;Um rapaz irradianteSurge a irmã em outono e negra decomposição.

VENTO QUENTE

Lamento cego no vento, dias lunares de inverno,Infância, os passos se perdem discretos em negra sebe,Longo toque noturno.

Page 21: Georg Trakl - alguns poemas

Discreta vem a noite branca,

Transforma em sonhos purpúreos tormento e dorDa vida pedregosa,Para que nunca o espinho deixe o corpo em decomposição.

Profunda em sono suspira a alma angustiada,

Profundo o vento em árvores destruídas,E a figura de lamento da mãeVagueia pela floresta solitária

Desse luto silente; noitesRepletas de lágrimas, de anjos de fogo.Prateado, espatifa-se contra a parede nua um esqueleto de criança.

AOS EMUDECIDOS

Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecerÁrvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negroQue o espírito do mal observa com máscara prateada;A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.

A prostituta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.Oh, o terrífico riso do ouro.

Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,Constrói de duros metais a cabeça redentora.

CANTO DO DESTERRADO

A Karl Borromäus Heinrich

Pleno de harmonias é o voo das aves. As verdes florestasJuntaram-se à noitinha em cabanas mais tranquilas;E os pastos cristalinos da corça.O escuro acalma o murmúrio do regato, as sombras húmidas

E as flores do verão, que soam belas ao vento.Crepuscula já a fi.onte ao homem pensativo.

E uma luzinha, a da bondade, se acende no seu coraçãoE a paz da ceia; pois santificados estão o pão e o vinhoPelas mãos de Deus, com olhos de noite o irmãoContempla-te calmamente, para repousar da espinhosa

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caminhada.Oh, este viver no azul anímico da noite.

Com amor também, o silêncio envolve no quarto as sombrasdos velhos,Os martírios purpúreos, lamento de uma grande geração,Que aí vai agora, piedosa, no filho solitário.Porque, mais radiante sempre, acorda dos negros minutos daloucuraO sofredor em soleira petrificadaE poderosamente o envolve o frio azul e o declinar cintilantedo outono,

A casa tranqüila e as lendas da floresta,Lei e medida, e os atalhos lunares dos desterrados.

NO OUTONO

Junto à cerca, os girassóis e seu brilho,Doentes sentados ao sol, sem alento.No campo, as mulheres cantam no trabalho,Ouvem-se ao longe os sinos do convento.

Os pássaros contam lendas de encantar,Ouvem-se ao longe os sinos do convento.Há um violino no pátio a gemer.E já o vinho escuro vão recolhendo.

Todos parecem felizes, libertos,E já o vinho escuro vão recolhendo.Os jazigos dos mortos estão abertos,Pintados pelo sol que vai entrando.

O SONO

2. versão

Malditos sejam seus venenos,ó branco sono!Este alto e estranho jardimde sombrias árvorescarregadas de serpentes, mariposas,aranhas, morcegos.Forasteiro! A tua perdida sombrano crepúsculo,um obscuro corsáriono salgado mar da melancolia.

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Brancas aves esvoaçantes na orla da noitepor sobre férreas cidadesem ruínas.

DE PROFUNDIS

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.Há uma árvore marrom;ali solitária.Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.Como é triste o entardecer

Passando pela aldeiaA terra órfã recolhe ainda raras espigas.Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,E seu colo espera o noivo divino.

Na voltaOs pastores acharam o doce corpoApodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.O silêncio de DeusBebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frioAranhas procuram meu coração.Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano,Pleno de lixo e pó das estrelas.Na avelãzeiraSoaram de novo anjos cristalinos.

CANÇÕES DO ROSÁRIO

À IRMÃ

Para onde vais será outono e tarde,Veado azul que sob árvores soa,Solitário lago na tarde.

Baixo o vôo dos pássaros soa,Sobre teus olhos a melancolia dos arcos,Teu leve sorriso soa.

Das tuas pálpebras Deus fez arcos.Estrelas procuram à noite, filha de sexta-feira santa,

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Na tua fronte, os arcos.PROXIMIDADE DA MORTE

2ª versão

Oh, a tarde, que vai às sombrias aldeias da infância.O lago sob os salgueiros1. Enche-se de suspiros empestados de melancolia.

Oh, a floresta, que baixa discreta os olhos castanhos,Quando das mãos magras do solitárioCai a púrpura de seus dias extasiados.

Oh, a proximidade da morte. Oremos.Nesta noite em travesseiros momosE amarelados de incenso soltam-se os membros frágeis dosamantes.

AMÉM

Decomposição deslizando pelo quarto podre;Sombras no papel de parede amarelo; em escuros espelhos seCurva a tristeza ebúrnea de nossas mãos.Pérolas marrons correm pelos dedos falecidos.No silêncioAbrem-se azuis os olhos-papoula de um anjo.

Azul é também a tarde;O momento de nossa morte, a sombra de Azrael,Que escurece um jardinzinho marrom.

CANÇAO DE KASPARHAUSER

para Bessie Loos

Ele de fato amava o sol que descia a colina purpúreo,Os caminhos da floresta, o canto do pássaro negroE a alegria do verde. ,

Sisuda era sua morada à sombra da árvoreE puro o seu rosto.Deus disse ao seu coração uma doce chama:Homem!

Tranqüilo, o seu passo encontrou a cidade à noite;O lamento sombrio de sua boca:Quero tomar-me cavaleiro.

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Seguiram-no porém arbusto e animal,Casa e jardim crepuscular de gente branca,E procurava-o seu assassino.

Primavera, verão e belo o outonoDo justo, seu passo leve

Pelos quartos escuros de sonhadores.À noite ficava sozinho com sua estrela;

Viu que nevava em galhos nus,E a sombra do assassino no tenebroso vestíbulo da casa.

Prateada, tombou a cabeça do não-nascido.