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bans* magnus enzensberger C om pani iia Das L etras

Guerra Civil - Hans Magnus Enzensberger

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bans* magnus enzensberger

C om pa ni iia Das L etras

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osonho da paz mundial e da Europa unificada, harmónica, mais urna vez se esboroou, passado pouco tempo da queda do muro de Berlím e do fim da guerra fria. Nacionalismos e conflitos étnico-religiosos que pareciam soterrados ressurgem com brutalidade insuspeítada. Guerras regionais edodem por todo o mundo, e a ex-lugos- lávia é urna ¡mensa mancha de sangue no projeto europeu comunitario. Mas os odios e ressentimen- tos espalham-se também pelas grandes capitais do Primeiro Mundo, contra trabalhadores ¡migrantes e outros "perigosos invasores". É sobretudo dessa guerra civil cotidiana, nao declarada, "molecular", que nos fala o ensaísta e poeta H. M. Enzensberger, dando conta desse sinistro e gigantesco "ovo da serpente" que a Europa deste fim-de-século conti­nua a incubar.

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Ressentimentos seculares represados em potes de veneno que a historia destila nos fios de cada tragédia coletiva; ^racio­nalismos milenares que atravessam os tempos da razáo, desde as narrativas de Tucídides sobre as guerras do Peloponeso, há 2500 anos, até o sangue de Sarajevo jorrando na busca va de narradores que Ihe pudessem dar algum sentido, o mapa da ex-lugoslávia estracalhando a sorrir si- nistramente da retórica de urna Europa unitária: a voz do poeta, crítico e ensaísta Hans Magnus Enzensberger volta aos ce- nários da guerra, de um continente em rui­nas, para lembrar-nos de que o "ovo da serpente" continua a ser gestado, muito perto, talvez até dentro de nós.

Sarcasmo, dúvida e revolta: ante as ideologías bem-pensantes da civilizacao e do progresso, o estilo desse genial escritor alemao despoja-se de maneirismos inte- lectuais e certezas prontas para introduzir- nos no drama que sao as guerras nossas de cada dia, dos nacionalismos arcaicos redi­vivos aos preconceitos raciais, que atuali- zam brutalidades de tipo fascista em cada esquina das metrópoles do Primeiro Mun­do. Diante de um quadro gravemente im- previsível — o fim da guerra fria e a que­da do muro de Berlim, ao contrario das mais otimistas expectativas, só fizeram re- crudescer crises, odios e rivalidades, seja na economía, seja na política, seja na cul­tura — , a próxima virada de século (e do milenio) é como um cadinho de violencias manifestas e latentes que passeia á deriva,

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GUERRA CIVIL

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HANS MAGNUS ENZENSBERGER

GUERRA CIVILTradugao de “Visdes da guerra civil”:

MARCOS BRANDA LACERDA

Tradugao de “A Europa em ruinas” e “A grande migragao”:

SERGIO FLAKSMAN

^ 5*____C o m p a n h ia Das L etras

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Copyright © 1993 by Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main Copyright © 1990, 1992, 1993 by Hans Magnus Enzensberger

Títulos origináis: Aussichten auf den Bürgerkrieg

Europa in ruinen Die grosse Wanderung

Capa:Joäo Baptista da Costa Aguiar

Prepara cjäo:Márcia Copola

Revisäo:Beatriz de Cassia Mendes

Carmen S. da Costa

Dados Internacionais de C atalogad o na P u blicafäo (c ip) (Camara Brasileira do Livro, si», Brasil)

Enzensberger, Hans Magnus, 1929-Guerra civil / Hans Magnus Enzensberger; tradu^äo

M arcos Branda Lacerda e Sergio Flaskman — Säo Paulo : Companhia das Letras, 1995.

Títulos origináis: Aussichten auf den Bürgerkrieg ; Eu­ropa in ruinen ; Die grosse Wanderung.

ISBN 85-7164- 456-X

1. Guerra civil i. Título.

95-1614 cdd-303 64

índices para catálogo sistemático:1. Guerra C iv il: Sociología 303-64

1995

Todos os direitos desta ediyao reservados áEDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rúa Tupi, 522 01233-000 — Sao Paulo — s p

Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011)826-5523

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Visóes da guerra civil 7

A Europa em ruinas 69

A grande migra^áo 95

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VISÔES DA GUERRA CIVIL

Somente os bárbaros podem se defender.Nietzsche

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EXCEgÁO MONSTRUOSA, REGRA MONSTRUOSA

Os animais lutam, mas nao fazem guerra. O homem é o único primata que planeja o exterminio dentro de sua própria espécie e o executa entusiásticamente e em gran­des dimensóes. A guerra é urna de suas invenyóes mais im­portantes; a capacidade de estabelecer acordos de paz é provavelmente urna conquista posterior. As mais antigas tradic'óes da humanidade, seus mitos e lendas heroicas, fa- lam sobretudo da morte e do ato de matar. A luta travada em maior proximidade física nao se devia apenas á simpli- cidade da técnica de construfáo de armas. Tratava-se tam- bém da maior satisfa?ao psíquica obtida em extravasar o odio naqueles que se conhecem, nos vizinhos. Desta for­ma, a guerra civil nao seria apenas urna antiga tradi<jao, mas a forma original de todos os conflitos coletivos. Já se passa- ram 2500 anos desde que ela encontrou sua clássica repre­sentado literária na insuperável historia da guerra do Pelo- poneso.

Por outro lado, a guerra “cultivada” entre nayoes, tra­vada contra um Estado externo inimigo, é üma derivagáo relativamente tardia. Ela pressupóe a existencia de urna casta profissional de guerreiros, a formafáo de exércitos fi- xos e a distingáo entre militar e civil. Ela também conduz á formagao de complicados rituais, desde a declarado de guerra até a capitulado. No século xix a carnificina passou

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por urna racionalizado: por um lado foi expandida me­diante a in tro d u jo generalizada do servido militar obriga- tório e o desenvolvimento tecnológico; por outro, os Esta­dos buscaram submeter suas guerras a regulamenta^óes de ordem do direito internacional, fixadas por escrito pela pri- meira vez em 1907 na Segunda Convenfáo de Haia. A guer­ra civil torna-se sob esta perspectiva a excegáo á regra, urna forma irregular de conflito. Clausewitz ignora-a completa­mente em seu manual da arte da guerra. Até hoje inexiste qualquer teoría útil sobre a guerra civil.

A confusa realidade extrapola nao apenas as defini- fóes dos juristas. Também os planejamentos do generalato fracassam diante de urna nova desordem mundial gerada pelo impacto da guerra civil. Com ela, cria-se urna situa^ao antes desconhecida, cujo enfrentamento se choca frontal­mente com o atavismo das concepyóes predominantes. An­tigás questóes da antropología sao colocadas sob nova luz. O que é mais estranho: matar gente conhecida ou aniquilar um inimigo de quem nao se tem nenhuma idéia, nem mes- mo falsa? Para as tripula^oes dos bombardeiros da Segunda Guerra Mundial o inimigo nao passava de urna abstraía«; as equipes militares de hoje, herméticamente isoladas em posi^oes subterráneas, em alerta permanente e á espera de uma voz de comando, sao insensíveis á mínima percepgáo dos efeitos desencadeados por um eventual apertar de bo- tóes — uma situaf ao táo perversa que faz parecer normal a mais absurda das guerras civis. É provável que se trate nao de excefáo, mas de regra, o que leva o homem a extermi­nar o que odeia. Esse papel é representado habitualmente pelo rival no próprio território. Há uma correlagao nao es­clarecida entre o ódio ao próximo e o odio ao desconheci- do. O outro desprezado é originalmente o vizinho. Apenas com a forma^áo de coletividades maiores declara-se como inimigo o desconhecido além da fronteira.

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VELHAS DIVIDAS, NOVAS MASSAS

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Com o fim da Guerra Fria, assistimos também ao fim do idilio poderosamente protegido das nafóes ocidentais. O equilibrio aflitivo proporcionado pela p a x atóm ica nao existe mais. Até 1989, duas inconciliáveis superpoténcias nucleares opunham-se frontalmente, e a Alemanha dividi­da era o ponto de confluencia dessa confrontado. As an- gústias criadas por essa frágil situado já estáo meio esque- cidas. Em seu lugar surgiram outras. O sinal mais visível do fim da ordem mundial bipolar sao as cerca de quarenta guerras civis declaradas atualmente em curso em todo o mundo. Nem mesmo é possível precisar seu número, já que o caos nao se deixa quantificar. Tudo indica que no futuro esses conflitos tendem a multiplicar-se, nao a reduzir-se.

Ninguém estava preparado para essa transformado radical. Ninguém sabe o que fazer. É possível que esteja­mos diante de urna nova fase da política. Para compreen- dé-la, é necessária urna revisáo das guerras civis do passa- do. A Alemanha talvez nao tenha jamais se recuperado da mais longa e pesada guerra por que passou. A guerra dos Trinta Anos, que custou a vida de dois tercos de sua popu­lad o , foi urdida e conduzida pelos poderes de Estado. O mesmo vale para as grandes guerras civis da modernidade: a luta entre o Sul e o Norte dos Estados Unidos, dos Bran- cos e Vermelhos na Rússia, e da Falange espanhola e Repu-

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blicanos. Em todos esses casos havia exércitos organizados e frentes de combate; de seus quartéis-generais, as instan­cias centrais de comando buscavam conduzir suas tropas ri­gorosamente à execuçâo ordenada de suas intençôes estra­tégicas. Paralelamente ao comando militar existia o poder político, voltado a objetivos definidos com nitidez e habili­tado a atuar como parte negociadora.

Mas enquanto a guerra de Estado clássica tende à mo- nopolizaçâo do poder, fortalecendo o aparelho de Estado acima de todos os níveis, na guerra civil existe a ameaça permanente do colapso da disciplina e da desagregaçâo das milicias em bandos armados que operam segundo os próprios designios.

Warlords individuáis proclamam a própria indepen- dência; governo e quartel-general perdem respectivamente o controle político e militar sobre as turbas beligerantes. Ao contrário, a maneira como decorreram as guerras nos e u a ,

México, China e Rússia mostra que ambas as partes manti- nham-se em condiçôes de negociar, vencer ou capitular; tais guerras acabavam por consolidar um novo regime, um poder de Estado central que passava a controlar o territorio pelo qual se havia lutado. E urna questáo em aberto se as atuais guerras civis admitem essa perspectiva.

Na era do imperialismo náo houve um conflito sequer que nào tivesse alcançado imediatamente urna dimensao internacional. A chamada Realpolitik providenciava para que cada guerra civil fosse insuflada e instrumentada por forças externas. As partes confutantes serviam como figuras de um jogo mais abrangente. Para as grandes poténcias tra- tava-se da expansao de seu campo de influência e de seus impérios coloniais. Basta lembrar os múltiplos ataques americanos e europeus na China, as intervençôes que se seguiram ao Golpe de Outubro dos bolcheviques ou a Guerra Civil Espanhola, que nào sem razâo foi interpretada

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como ensaio geral para a Segunda Guerra Mundial. As su- perpoténcias insistiram nessa lógica ainda nos anos 70. Elas mantinham guerras por meio de agentes substitutos e intro- metiam-se em todo conflito que pudesse trazer-lhes as van- tagens de um jogo sem vencedores. Empenhavam-se para que tais conflitos atingissem quase o limiar de urna Tercei- ra Guerra Mundial.

Com o fim da Guerra Fria e o colapso da Uniáo Sovié­tica essa forma de política exterior perdeu o sentido. Nao apenas em Moscou e Beijng, mas também em Washington, comentava-se que a ajuda fraterna trazia mais prejuízos do que beneficios. Os vencedores económicos das últimas dé­cadas foram as nagóes que nao participaram desse jogo. A antiga Realpolitik encontra-se entre as ruinas de um pensa- mento imperial que pertence ao século xix e com o qual na­da mais poderá ser ganho no mercado mundial.

A guerra, o meio mais simples de enriquecimento no passado, passou a ser um mau negocio. O capitalismo re- conheceu que o massacre organizado oficialmente nao ge- ra lucro bastante. Obviamente, o entusiasmo pela política de paz manifestado pelos governos dos países industriali­zados nao se deve a urna súbita conversáo moral, mas a urna estratégia formulada com frieza. O capital como ins­trumento de paz passa a ser urna visao insólita. Sem dúvi- da, alguns ainda esperam da guerra prósperos índices de crescimento económico. Mas a exportado de armamentos movimenta apenas 0,006% de todo o mercado mundial. O comércio de armas decaiu para a condígáo de fonte secun- dária de receita, que ainda pode ser submetida a certas limitafóes. Países assolados pela guerra civil deixam de apresentar, com o tempo, crescimento económico. Eles sao punidos com a suspensáo de investimentos. As missóes de paz das Nagóes Unidas sao a expressáo política desse reco- nhecimento tardío. As guerras civis atuais surgem esponta-

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neamente, de dentro para fora. Nao necessitam mais da par­ticipado das potencias externas para assumir maiores pro- porgóes. Até há pouco, elas ainda continham o germe da lu- ta pela libertado nacional ou do levante revolucionário. Apenas com o término da Guerra Fria passaram a mostrar sua verdadeira face.

A guerra civil do Afeganistao é um exemplo disso. En- quanto o país era ocupado pelas tropas soviéticas, o confli- to podia ser interpretado segundo o modelo mundial da di- visáo em dois blocos. A guerra foi instrumentada pelas duas partes: Moscou apoiava seu lugar-tenente e Washington da- va sustentado aos mudschahedin anticomunistas. Parecía tratar-se de libertado nacional, de resistencia contra o es- trangeiro, o opressor, o incrédulo. Mas assim que os inva­sores se foram irrompeu a verdadeira guerra civil. Nada res- tou daquele verniz ideológico. A intromissáo estrangeira, a integridade nacional, a verdadeira crenfa — tudo isso se re- velou um mero pretexto. A guerra de todos contra todos to- mou seu curso.

Processos semelhantes podem ser observados em to­do o mundo: na África, na india, no Sudeste asiático, na América Latina. Nada restou da aparéncia heroica e sagra­da de partisans, rebeldes e guerrilheiros. Outrora, guerrilha e antiguerrilha tornavam-se independentes, altamente ar­madas em termos ideológicos e contavam com a retaguar­da de aliados estrangeiros. Restaram massas amorfas arma­das. Todos esses autodenominados exércitos de libertado, frentes e movimentos populares degeneraram em bandos doentios difícilmente diferenciáveis de seus adversários. O confuso alfabeto com que se omam ( f l n a o u a n l f , m p la ou m n f l) nao consegue esconder que existe um objetivo, um projeto, urna idéia que os unifica. A estratégia, pouco dig­na de tal denominado, é, de fato, o roubo, o assassinato e a pilhagem.

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3A GUERRA CIVIL MOLECULAR,

A PERDA DE CONVICTA O

Lancemos um olhar sobre o mapa-múndi. Podemos lo­calizar as guerras em regióes longínquas, principalmente no Terceiro Mundo. Falamos de subdesenvolvimento, ana­cronismo, fundamentalismo. Parece-nos que a incom- preensível luta transcorre a grande distancia. Mas isso é en- gano. Há muito que a guerra civil penetrou ñas metrópoles. Suas metástases pertencem ao cotidiano das grandes cida- des, nao só de Lima e Johannesburg, de Bombaim e Rio de Janeiro, mas de París e Berlim, Detroit e Birmingham, Milao e Hamburgo. Déla nao participam apenas terroristas e agentes secretos, mañosos e skinheads, traficantes de dro­gas e esquadróes da morte, neonazistas e seguranzas, mas também cidadáos discretos que á noite se transformam em hooligans, incendiários, dementes violentos e serial killers. Como ñas guerras africanas, esses seres mutantes sao cada vez mais jovens. Enganamo-nos em acreditar que vivemos em paz só porque podemos ir á padaria sem que sejamos atingidos pelos disparos de um franco-atirador.

A guerra civil nao vem de fora; nao é um virus adqui­rido, mas um processo endógeno. E sempre desencadeada por uma minoría; provavelmente, basta que um cidadáo em uma centena a deseje para tornar impossível a vida ci­vilizada em coletividade. Ainda prevalece nos países indus­trializados uma grande maioria que prefere a paz. Nossas

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guerras civis ainda nào chegaram a comover as massas: elas sao moleculares. Mas, como mostra o exemplo de Los An­geles, podem alastrar-se repentinamente.

Mas pode-se comparar o tchetnik ao dono de um bre­chó texano que, armado de urna pistola automática, sobe numa torre e dispara sobre a multidáo? Pode-se comparar o líder de urna quadrilha na Libéria a um sk in h ead que des- troça urna garrafa de cerveja na cabeça de um passivo apo­sentado, ou um membro dos autónom os de Berlim a um guerrilheiro das selvas do Cambodja? Ou, ainda, a máfia da Tchetchénia ao Sendero Luminoso? E, finalmente, pode-se comparar tudo isso à normalidade de urna cidadezinha da Alemanha, França ou Suécia? É o discurso sobre a guerra ci­vil urna generalizaçâo vazia, um mero disseminador de pá­nico?

Temo que, apesar das diferenças, haja um denomina­dor comum a essas manifestaçôes. O que nos chama a aten- çâo em todas elas é o caráter autista dos criminosos, assim como sua incapacidade de distinguir entre destruiçâo e au- todestruiçâo. Nas guerras civis do presente esvaiu-se a legi- timidade. A violéncia libertou-se completamente de funda­m e n ta le s ideológicas.

Comparados aos atuais, os combatentes do passado eram homens crédulos. Davam grande valor a matar ou morrer em nome de algum ideal; mantinham-se ligados “in- flexivelmente”, “férreamente”, “fanaticamente” etc. ao que se considerava outrora urna visao de mundo, ainda que fos­se a mais abjeta. Com os olhos reluzentes, os partidários de Hitler e Stalin seguiam o evangelho de seus guias e, quan- do se tratava de seus ideáis, nenhum crime lhes parecía de­masiado grande.

Os guerrilheiros e terroristas dos anos 60 e 70 reconhe- ciam, da mesma forma, a necessidade de se justificar. Utili­zando panfletos e proclamaçoes, catecismos pedantes ou

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confissôes formuladas burocráticamente, apresentavam as razóes ideológicas de seus atos. Para os criminosos de ho- je isso parece inocuo. O que chama a atençâo neles é a to­tal ausência de convicçâo.

Os guerrilheiros latino-americanos nao se incomodam em chacinar os mesmos camponeses em cuja luta por liber- taçào eles estariam supostamente engajados; conluios com os baróes da droga ou com agentes secretos nao lhes pare- cem problemáticos, mas naturais. O terrorista irlandés utili- za-se de aposentados como bombas vivas e manda para os ares carrinhos de bebés. As vítimas preferidas dos comba- tentes das guerras civis sâo mulheres e crianças. Nào é ex- clusividade de um tchetnik orgulhar-se do massacre dos ocupantes de um hospital: em todo o mundo ocorre o ex­terminio de indefesos. Quem nao possui uma pistola é con­siderado um verme.

Os protagonistas sâo quase exclusivamente jovens. Seu comportamento mostra a força do processo de degra- daçào do patriarcado. Entre suas tradiçôes estavam as con- frarias masculinas. Elas tinham a tarefa de canalizar me­diante rituais de iniciaçào a concentraçâo de energía própria à juventude, originada pelo excesso de testostero- na, e sua sede de crime e sangue. Exigia-se do macho emergente provas de coragem e exibiçôes de força física. Um código de honra era mantido estritamente. A regra fun­damental era de que o desafiante, fosse ele samurai ou mo- cinho de faroeste, bandido ou rebelde, se medisse com al- guém forte e perigoso ou, no mínimo, em relaçâo de igualdade. Essa concepçào é desconhecida dos criminosos de hoje. Revela-se um novo tipo de masculinidade. Poder- se-ia chamar sua honra de covardia, embora isso seja uma superestimaçâo. A mera distinçào entre coragem e covardia já lhes é incompreensível — um sinal de autismo e da per- da de convicçâo.

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Esses defeitos peculiares transparecem com maior niti­dez onde ainda subsistem restos das antigas justificativas ideológicas. É o caso das guerras civis desencadeadas sob o nome de conflitos étnicos, sejam eles quais forem. Trata­se nesses casos de meros trapos do guarda-roupa de costu- mes da historia, demonstrado já no d écor de opereta prefe­rido pelos novos detentores do poder. O discurso dos propagandistas é de segunda ou terceira mao. O lixo ideo­lógico produzido, por exemplo, pela academia sérvia de- veria simular convic^óes, mas mesmo uma visao fugaz da realidade mostra que as quadrilhas nao necessitam desses pretextos.

Talvez seja necessário lembrar que as lutas do século xix que levaram á formagáo dos Estados nacionais nao con- sistiam em brigas irracionais. Quem pensa apenas no re­pugnante patos chauvinista que lhes dava sustentado nao se dá conta das conquistas construtivas do nacionalismo europeu cunhado no passado. Apesar de tudo, ele deu ori- gem a constituid oes que aboliram as distingóes de ordem fí­sica, emanciparam os judeus e introduziram o Estado de di- reito e o direito de voto generalizado. Inovagóes desse tipo sao completamente estranhas á mentalidade dos membros de quadrilhas atuais. Os nacionalistas de longe interessam- se apenas pelo poder de destruido imánente as diferemjas étnicas. O direito de autodeterminagáo do qual falam nao passa do direito de determinar quem deve ou nao sobrevi- ver em determinado territorio; para eles trata-se do simples exterminio de vidas “sem valor”, e isso é tudo. Para os guer- rilheiros de Angola, Somália ou Cambodja nada poderia ser mais indiferente do que a sorte de seus pretensos irmáos de tribo; eles nao sentem nada ao arruiná-los, explodi-los ou submeté-los as maiores adversidades.

A substancia ideológica do fundamentalismo islámico é provavelmente muito mais pifia do que se acredita no Oci-

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dente. Pode-se ouvir de qualquer mugulmano inteligente que ele nada tem a ver com a alta religiáo da historia. Trata­se hoje de urna reafáo radical á pressáo pela modernizado, expressa na ultrajante caricatura de Saddam Hussein posan­do de mugulmano crédulo. Existem semelhan^as na maioria dos regimes de Magreb e do Oriente Próximo. Eles comba- tem o Ocidente, apesar de sonhar intensamente com suas conquistas mais mortais: mísseis, bombas atómicas e fábri­cas de gás tóxico. As diversas seitas, fac^óes e milicias fun- damentalistas ambicionam sobretudo o poder de exercer a opressáo sobre seus companheiros de credo. Também aqui o que se vé nao tem relado com convicfóes verdadeiras, mas com copias distorcidas de modelos passados.

A guerra civil molecular das metrópoles está igualmen­te esvaziada de fundamentos ideológicos. As guerras de quadrilhas nos guetos norte-americanos nao se encaixam no esquema das históricas lutas de classe. O modelo de in­terpretado baseado na oposigáo entre brancos e negros tornou-se do mesmo modo insuficiente. As vítimas de as- saltos, pilhagens e assassinatos sao sobretudo os próprios negros. Em Los Angeles, o alvo da revolta nao foram os bairros das requintadas vilas residenciáis; os criminosos atearam fogo principalmente as instalares de sua própria community, entre as quais a mais antiga livraria norte-ame­ricana, entáo de posse dos negros, e o escritório do políti­co local mais atuante. Na luta de gangues atiram por toda parte perdedores contra perdedores.

Passemos agora aos nossos próprios participantes da guerra molecular, chamados de radicais de direita ou neo- nazistas. Com tais títulos, acredita-se saber o que se pode esperar deles. Mas também aqui a ideología é urna másca­ra. O assassino juvenil que sai á cafa de indefesos, quando se indagam seus motivos, fornece as seguintes d eclarares: ‘Nao pensei em nada”; “Estava entediado”; “Nao sei por

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qué (!), mas os estrangeiros me davam urna sensa^áo desa- gradável”. Isso basta. Ele nao sabe nada sobre o nazismo. A historia nao lhe interessa. A suástica e a saudagáo a Hitler sao requisitos acessórios. A forma de vestir-se, sua música e seus vídeos sao quase exclusivamente americanos. A ban- deira de guerra do Reich é empunhada usando-se jeans e camiseta. Chamando-se a si próprio de skinhead, o delin­quiente utiliza-se orgulhosamente de urna expressáo ingle­sa. A animagáo dentro do movimento está a cargo de bands, com pactdiscs e fan zin es. “Deutschtum” [Germani- dade] nao passa de um slogan sem qualquer conteúdo, pa­ra ocupar apenas espatos vazios do cérebro do usuário. Esse tipo de criminoso dedica-se a esbofetear turcos e vietnamitas, mas também aleijados, mendigos, débeis men­táis, anciás e escolares, ou mesmo, se nao lhe faltasse cora- gem, alemáes ocidentais ou orientáis, conforme a posigáo geográfica do lugar onde vai levando sua vida ruidosa. A escolha entre germanidade e motocicleta, pátria e discote­ca nao lhe causaría constrangimento. Já que seu futuro nao possui valor algum, nao é de admirar que ele nao dé a mí­nima para as coisas de seu próprio país.

O mesmo se aplica ao radicalismo de direita em sua configurado política. Que o cántico da alegría sobre a fa- léncia do comunismo nao permita que se incorra no erro de pensar que o projeto da direita tenha se extinguido há pouco. Basta que um partido radical de direita chegue as proximidades do poder para que se caracterize o vazio de suas concep^óes políticas. O que se apresenta ai como pro­grama é um fantasma, cuja evanescéncia revela-se ante os mais simples fatos económicos. A totalidade dos países in­dustrializados está altamente integrada em um mercado mundial e é dependente dele por completo. Autarquía de cunho nacionalista, homogeneidade racial ou étnica, assim como a adogáo de rumos políticos isolados conduziriam

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populagóes á fome. Internacionalismo de direita é um con- tra-senso. Por isso, o que se denomina a “nova direita” nao é capaz de formular sequer urna política coerente para a Europa. “A Alemanha para os alemáes”, esse lema nao é apenas urna barbarie tendenciosa. Quem o leva a sério te- ria que desapropriar grandes empresas estrangeiras e fe­char o aeroporto de Frankfurt. Obviamente, nem mesmo os propagandistas da direita acreditam no próprio blefe. O de- saparecimento total de sua velha “visáo de mundo” deixou para tras apenas a ansia da agressáo vazia.

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ABNEGAÇÂO E A UTODESTRUIÇÂO

O autismo dos combatentes nào é a única particulari- dade que chama a atençâo em todas as guerras civis mo­leculares e regionais. Urna segunda característica é sua abnegaçâo. Com isso, essa palavra adquire um significado completamente novo. Em um livro imprescindivel de 1951, pode-se 1er o seguinte a esse respeito:

Provavelmente, jamais faltou ódio ao mundo; no entanto, ele [entâo] evoluiu ao ponto de tornar-se um fator políti­co decisivo em todos os assuntos públicos... O ódio nao pode concentrar-se realmente em nada e nao encontrou ninguém que pudesse justificá-lo, fosse o governo, a bur­guesía ou as respectivas forças estrangeiras. Desta forma, penetrou em cada poro da vida cotidiana e pode dissemi- nar-se em todas as direçôes e assumir as formas mais fan­tásticas e imprevisíveis... Cada um passou a ser contra ca­da um e, sobretudo, contra os vizinhos...

Mas o que distingue as massas modernas dos bandos [de tempos passados] é a abnegaçâo e o desinteresse no próprio bem-estar... Abnegaçâo interpretada nao como urna qualidade positiva, mas como um sentimento segun­do o quai nào se é afetado pelos acontecimentos e pode- se ser substituido por outro a qualquer momento e em qualquer lugar... Esse fenómeno de urna radical perda de si mesmo, essa indiferença cínica ou enfastiada com que

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as massas defrontavam-se com a própria destruigao, era completamente inesperado... As pessoas comegavam a sofrer de urna perda do senso comum normal, da capaci- dade de discernimento, assim como de um fracasso nao menos radical do mais elementar instinto de autopreser- vafáo.

Hannah Arendt analisava o período entre as duas guerras mundiais. Ela descrevia a base popular que levou ao surgimento dos sistemas totalitários. A atualidade de sua análise é evidente. Contudo, diferentemente dos anos 30, os criminosos de hoje nao necessitam de rituais, manifesta­r e s públicas, uniformes, programas, incitamento ou jura­mentos de fidelidade. Eles renunciam inclusive a um Füh- rer. O ódio é suficiente. Se o terror naquele tempo era um monopolio dos regimes totalitários, hoje ele reaparece de forma independente do Estado. Gestapo e g p u tornam-se entidades supérfluas quando seus clones infantis fazem o trabalho com as próprias máos.

Desta forma, qualquer trem de metro pode tornar-se urna Bosnia em miniatura. Para um novo pogrom nao se necessita mais de judeus e para uma nova purificado so­cial dispensa-se a presenta de indesejáveis contra-revolu- cionários. Basta que alguém torga para um outro time de futebol, que sua quitanda prospere mais que a do vizinho, que se vista melhor, que fale uma outra linguagem, que precise de uma cadeira de rodas ou que use um len<jo na cabera. A mínima diferen^a passa a significar um risco de vida. Todavía, a agressáo nao é dirigida somente ao outro, mas também á vida desprezível que se leva. Segundo as pa- lavras de Hannah Arendt, é como se para os criminosos vi- ver ou morrer, se tivessem nascido ou jamais tivessem vin- do á luz, fosse a mesma coisa.

Por maior que seja a carga genética responsável pela

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estupidez, ela nao é suficiente para explicar o impulso pa­ra a autodestruigáo em forma de violencia. O nexo existen­te entre causa e efeito é táo evidente que qualquer minoría pode entendé-lo.

As lamúrias sobre o aumento do desemprego sao acompanhadas de pogroms que fazem parecer absurdo a qualquer capitalista dotado de razáo investir onde ninguém pode estar certo da própria sobrevivéncia. O mais imbécil dos presidentes sérvios sabe tanto quanto o mais imbécil dos rambos que a guerra civil em que se envolveu pode transformar o país em um deserto económico. A única con- clusáo possível é que a automutilagáo coletiva nao é um subproduto inevitável, e sim o objetivo de fato.

Os combatentes sabem muito bem que a vitória é inal- cangável e que só a derrota os espera. Fazem todo o possí­vel para o recrudescimento de suas posigóes e almejam transformar nao apenas o adversário, mas também a si mes- mos, na mais pura podridáo. Um assistente social francés informa da periferia de París: “Eles já quebraram tudo, as caixas de correio, as portas, as escadarias. Saquearam e de- moliram o hospital em que seus pequeños irmáos e irmás sao tratados de graga. Eles ignoram qualquer regulamento. Arrasam simplesmente consultorios médicos e dentários e escolas. Basta que lhes construam um campo de futebol pa­ra que eles o destruam serrando as través”.

As imagens de guerras civis moleculares e macroscópi­cas igualam-se até nos detalhes. Urna testemunha relata o que viu em Mogadichu. Um jornalista estava presente á destruigao de um hospital por um bando armado. Nao se tratava de uma agao militar. Nada os ameagava; nao se ou- viam tiros na cidade. O hospital já estava drásticamente da- nificado e equipado apenas com recursos de emergéncia. Os criminosos agiram com extrema minúcia. Os colchóes foram rasgados, recipientes de sangue e medicamentos

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quebrados; depois disso, a quadrilha, em seus disfarces ro­tos e sujos, ocupou-se dos equipamentos remanescentes, dando-se por satisfeita somente depois de inutilizar o úni­co aparelho de raio X, o tubo de oxigénio e o esterilizador. Cada um desses zumbís sabia que nao havia previsáo para o término do conflito; todos sabiam que já no dia seguinte suas vidas poderiam depender dos remendos de um médi­co. O que os interessava era aniquilar qualquer perspectiva de sobrevivencia. A isso poder-se-ia chamar de reductio a d insanitatem. No estado de demencia coletiva, ao mesmo tempo assassina e suicida, desaparece a categoría do futu­ro. Persiste apenas o tempo presente. Conseqüéncias dei- xam de existir. Neutraliza-se a atividade reguladora do ins­tinto de preservará« da vida.

Isso nos remete á especulado de Freud, que no fim nao via outra saída senao postular um instinto de morte que visasse primariamente a aniquilado da própria vida e, se­cundariamente, da vida de um estranho — uma hipótese jamais demonstrada empíricamente e que permanece ne­bulosa. Mas já o conceito de instinto de preservado é pro­blemático, para nao se dizer ingenuo. É possível que ele explique o comportamento de plantas e bactérias, mas fra- cassa na observad0 de seres mais complexos. Ele nao acrescenta nada ao estudo da historia. Afinal, milhóes de pessoas morreram como mártires e santos, heróis e fanáti­cos, sem atender ao principio da autopreserva^áo. Pensa­dores pessimistas como De Maistre reconheceram o signifi­cado central do sacrificio e transformaram a repressáo em virtude. Pode ser que todas as religióes tenham origem no sacrificio humano e, mesmo depois da supressáo da con- cep d o de Deus, jamais tenham faltado ao homem objeti­vos relevantes pelos quais se deva matar ou morrer. Póde­se perguntar até se isso que se denomina cultura seria possível sem a capacidade de entrega da própria vida.

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Certamente, ainda hoje existem homens que atuam com abnegagáo, tomando-se esta palavra em seu sentido antigo: voluntarios dispostos a enfrentar qualquer risco pes- soal, oposicionistas que, como Jan Palach e os anónimos monges budistas da Indochina, defendem suas convicgóes até o ponto de atear fogo a si mesmos, mas também sacer­dotes sectários e fanáticos confusos, que vislumbram um além paradisíaco, alcangável mediante a extingáo de suas vidas.

Mas nao sao esses poucos que escrevem a historia na guerra, e sim os muitos aos quais nada restou que justificas- se o sacrificio realizado. O que confere á guerra civil de ho­je urna qualidade nova e sinistra é que ela se dá sem que haja qualquer necessidade de mobilizagáo; isto é, que nela nao se trata absolutam ente d e nada. Com isso, ela se torna um retrovírus da política, desde que vejamos na política náo apenas urna discussáo sobre interesses de poder e re­cursos materiais, mas também sobre perspectivas para o fu­turo e, portanto, sobre a realizagáo de ambigóes, projetos e ideáis. Embora esse intrincado jogo de interesses tenha transcorrido no passado sempre de forma imprevisível e ra­ramente sem derramamento de sangue, as intengóes dos participantes permaneciam mais ou menos calculáveis. Ao contrário, onde náo se atribuí valor algum á própria vida, ou á de outros, isso já náo é mais possível. Com isso, neu- traliza-se qualquer pensamento político, de Aristóteles a Maquiavel, de Marx a Weber. Em um mundo entrecortado por bombas errantes resta apenas urna utopia negativa — do mito primevo de Hobbes da luta de todos contra todos.

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5BECOS E LABIRINTOS DE INTERPRETA (24 O

Diante do incompreensível, é irresistível a tentado de buscar ex p licares simples. Ninguém se surpreende de que políticos e editorialistas déem preferencia as mais iracas das interpretares disponíveis. Eles seguem o esquema políti- co-partidário tradicional. Quem se refere a seus próprios esfor^os pode abreviar o discurso.

Oradores conservadores evocam incansáveis um an­d en régime imaginário pretensamente dominado pelos bi­nomios tradifáo-decéncia, honestidade-ordem. Eles su- póem que a origem da selvageria mundial localiza-se nos movimentos de emancipadlo dos últimos duzentos anos e na desintegrado do poder das velhas autoridades. Prome­terá a salva^ao por meio do retorno ás virtudes, cujas raízes estariam ñas sociedades patriarcais estratificadas. Com- preensivelmente, nao esclarecem como e com quais meios políticos tais idéias possam ser implantadas em uma fase posterior á civilizado industrial.

Por outro lado, na visáo da social-democracia, Rous­seau triunfou mais uma vez. Ela deixou de estatizar os meios de produfáo, mas instituiu a terapia social. A idéia de que o homem seja naturalmente bom encontra seu último reduto na assisténcia social. Estranhamente, motivos pasto- rais misturam-se a envelhecidas teorías da sociedade e a uma desnaturada versao da psicanálise. Em sua bondade

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ilimitada, esses tutores isentam os confusos militantes de qualquer responsabilidade sobre suas atitudes. A culpa ja- mais recai sobre o criminoso, e sim sobre o meio em que vive: a familia, a sociedade, o consumo, a mídia, os maus modelos. De certa maneira, a cada assassino estende-se um questionário de múltiplas alternativas, que ele pode preen- cher como melhor lhe aprouver:

Mamáe nao me quena; tive professores demasiadamente autoritários/antiautoritários; papai chegava bébado/nun- ca chegava em casa; o banco encerrou minha conta/ deu- me crédito demais; meus pais se separaram muito ce- do/muito tarde; onde vivi havia muito/pouco tempo de lazer.

Por isso nao me restou outra op^áo senáo cometer um atentado/ um roubo/ um assassinato/ dar inicio a um in­cendio.

(Assinale com um x a alternativa correta.)

Assim, o crime é abolido da face da térra. Já nao exis- tem mais criminosos, mas apenas casos clínicos. Hoss e Mengele também seriam vistos como vítimas necessitadas de cuidados, a quem deveríamos um tratamento psiquiátri­co adequado, devidameñte financiado pelo sistema público de saúde. Questóes moráis advindas dessa lógica estariam exclusivamente a cargo dos terapeutas, já que apenas eles dispóem da compreensáo sobre o drama de seus pacientes. E estes, táo alheios á possibilidade de contribuir sobretudo no que diz respeito a si mesmos, deixam de existir como pessoas e passam a ser apenas objeto de tutela do Estado.

Comparadas ao kitsch político desses lugares-comuns, tornam-se plausíveis mesmo as mais grosseiras teorías ma­terialistas da crise. No mínimo, elas se baseiam em fatos económicos e sao, portanto, verificáveis. Apenas os idiotas se satisfazem com o argumento de que a análise marxista

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teria perdido sua legitimidade por ter saído de moda. Nao há dúvida de que, desde que deixou de ser urna visáo do futuro e passou a ser urna realidade global, o mercado mundial vem produzindo mais perdedores do que ganha- dores. E isso nao se restringe apenas ao Segundo e Tercei- ro Mundos, mas se estende também aos países capitalistas centráis. Quando nos primeiros naufragam países e conti­nentes inteiros no sistema internacional de trocas, aqui sao atingidos contingentes crescentes da populado que nao conseguem acompanhar a acirrada disputa da qualificagao profissional.

Imaginando-se um atlas que mostré a distribuido geo­gráfica dessas massas “supérfluas” — isto é, por um lado as regióes subdesenvolvidas em suas diferentes gradagóes e, por outro, as zonas de subemprego ñas metrópoles — e comparando-se os lugares que abrigam essas massas á lo­calizado das hordas de guerras civis, pode-se notar nítida­mente urna correlagáo. Poder-se-ia concluir que violencia coletiva é apenas uma reafáo dos perdedores á sua deses- perangosa situad0 económica.

No entanto, as conseqüéncias políticas profetizadas pelos teóricos marxistas náo aconteceram. Neste sentido, suas teses mostraram-se falsas. A luta de classes náo se rea­liza em ámbito internacional. Ambas as partes da célebre “contradigáo fundamental” evitaram ainda mais uma con­frontado global. Os perdedores, muito distantes da idéia de se unirem, trabalham em sua autodestruifáo e o capital retira-se sempre que pode dos cenários de guerra.

Ainda que sem garantías de éxito, é necessário nesse contexto frear a crenga renitente de que as relagóes de ex­plorado se reduzem a um problema de distribuido, como se se tratasse da divisáo justa oü injusta de um bolo de uma dimensáo dada. Deixando-se de lado o fato de que esse cli­ché náo se fundamenta na teoria marxista, essa concepdo

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é simplesmente falsa. Ela se revela de preferencia em afir­m a r e s como: “Nós vivemos as custas do Terceiro Mundo”; nós, isto é, os países industrializados, somos táo ricos por­que os exploramos. Quem afirma isso com tanta convícgao mostra muita dificuldade em lidar com fatos concretos. Bas­ta relevamos um único indicador: a participado africana na exportado mundial é de 1,3%; a latino-americana, de 4,3%. Economistas que investigaram essa questao duvidam se a populado dos países ricos notaría se os continentes mais pobres desaparecessem do mapa. Esse desequilibrio catastrófico nao pode ser alterado nem mesmo pelas crises de endividamento, pela oscilado de presos de matéria-pri- ma, pela fuga de capitais e pelo protecionismo.

Teorías de que a pobreza se explica apenas por fatores externos sao alimento barato nao apenas á indignado mo­ral. Elas possuem urna vantagem a mais: servem para o de­sencargo de consciencia dos poderosos do mundo pobre e póem a responsabilidade da miséria exclusivamente sobre os ombros do Ocidente, que, aliás, foi há pouco rebatizado com o nome de “Norte”. Pode-se ouvir de africanos, que se deram conta desse truque, que pior do que ser explorado pelas multinacionais é nao ser explorado por elas. Eles re- conhecem o seu principal inimigo nao mais nos centros do capitalismo, mas naqueles gángsteres políticos que há dé­cadas arruinam sistemáticamente seus países. Urna pessoa racional nao pode acreditar que os grandes bancos teriam encenado a guerra civil de vinte anos no Tchad, que Idi Amim estaría a servido da c í a e que os tigres támeis seriam meras marionetes do Pentágono. Apesar disso, na Europa mantém-se firme a opiniáo de que nao existem criminosos de fato, mas apenas mentores á distancia. No que tange á guerra civil da Iugoslávia, nao se deveria, segundo esse ra­ciocinio, prender dirigentes sérvios ou croatas, e sim alguns

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secretários de Estado em Bonn, supostamente empenhados no renascimento do Grande Império Alemáo.

Ilafóes insanas desta ordem desempenham um papel importante também no caso das guerras civis moleculares, com a diferen^a de que elas sao ai dirigidas principalmen­te a estrangeiros, judeus, coreanos, latinos e ciganos — os responsáveis pela miséria, de acordo com a paranoia dos perdedores. Todas essas consp irares fantasiosas servem apenas para turvar a terrível verdade: tanto em Nova York como no Zaire, tanto ñas metrópoles como nos países po­bres, é cada vez maior o número de pessoas excluidas de­finitivamente da vida económica. Já nao vale mais a pena explorá-las.

Se isso é verdadeiro, uma pálida luz recai sobre as “teorías do anacronismo”. Tais teorías véem todos os con- flitos relevantes como crises de adequafáo. A moderniza- gao global é pensada como um processo linear irrefreável. Guerras civis, da mesma forma como outras m anifestares repudiáveis, sao definidas como contradirás inerentes ao progresso. Subdesenvolvimento, fundamentalismo, confli- tos tribais sao considerados táo-somente como manifesta­r e s de atraso cultural. A versáo vulgar desse ponto de vis­ta atinge seu ápice na afirmado de que outras sociedades estariam vivendo “na mais obscura Idade Média”. Traduces étnicas ficticias, como o folclórico baile carnavalesco, sao levadas a sério.

Essa concepfáo desenvolvimentista é fundamental­mente otimista. Superados os antigos e tradicionais modos de produfáo e mentalidades, nada mais obstruiría o cami- nho para um futuro feliz. As sociedades atrasadas precisa­rían! seguir apenas a trilha de seus precursores progressis- tas para alcangá-los. Mas, infelizmente, esse modelo his- tórico-filosófico está, ele próprio, defasado. Pois o projeto de modernizado fracassou; nao se apresenta solufáo algu-

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ma para aqueles “que ficaram para tras”, nao importa onde eles estejam. Por razóes ecológicas, demográficas e econó­micas, o desnivel de modernizado jamais poderá ser corri- gido; pelo contrário, ele aumenta a cada ano. Todos sabem disso, do trabalhador rural “sem-terra” e o metalúrgico de- sempregado ao apático delinqiiente e o confuso líder de gangue.

“Em seu íntimo, o colonizado náo reconhece nenhuma autoridade. Ele é humilhado, mas náo está convencido da humilhado.” Tomando como exemplo o dominio colonial europeu, Frantz Fanón demonstrou há mais de trinta anos que os C ondenados d a térra náo se rebelam apenas contra a privado e a fome, mas também contra a humilhado a que sao continuamente submetidos. Este pensamento náo é novo. Ele se originou na filosofía alemá. A célebre fábula de Hegel desenvolve-o da seguinte maneira: a condigáo primeva da sociedade humana é a luta nao apenas por re­cursos existentes, mas também pelo reconhecimento da parte de seu semelhante — urna luta de vida ou morte tra- vada até que o mais fraco seja arrasado ou tenha capitula­do. Nesse caso, ele se torna escravo do vencedor. Mas a dialética quer que o escravo, por meio de seu trabalho, e náo o senhor, transforme o mundo, e até o momento em que o senhor se torne dependente dele. Quando se chega a esse estágio, ele obtém seu reconhecimento. O momento histórico no qual isso acontece é a Revolugáo Francesa. Apenas a partir daí surge o Estado universal, constitucional e homogéneo que garante o reconhecimento a todos os ci- dadáos. Com isso, todos conquistam a liberdade, a emanci­pado; com Napoleáo, a historia chega a seu final e a igual- dade é consubstanciada.

Náo é necessário ser um hegeliano para concordar que o anseio por reconhecimento é um fato antropológico fun­damental. Mas é ilusorio pensar que esse anseio tenha sido

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alguma vez satisfeito. É até duvidoso que isso seja possivel. Ao certo, sabemos somente que a grande maioria dos seres humanos vivos pode apenas sonhar com isso. Provavel- mente, o poder de persuasáo dos regimes terroristas do sé- culo xx estaría ligado ao fato de terem prometido aos humi- lhados impor o reconhecimento à força, dando-lhes a forma de urna coletividade popular, urna sociedade sem classes, um templo da credulidade. Tais regimes renova- vam a promessa mediante a negaçâo sistemática e a todos desse mesmo reconhecimento.

Após a queda desses regimes a lu ta recomeça. A dife- rença agora é que, na terminología de Frantz Fanon, falta ao humilhado o senhor colonial: “O colonizador é um per­seguido, que sonha sempre em se tornar um perseguidor... Nos conflitos tribais ressuscitam os antigos ressentimentos sepultados na memoria coletiva. O colonizado entrega-se dos pés à cabeça aos atos de vingança... A autodestruiçâo física de urna coletividade é, portante, um dos estertores da tensáo do colonizado”.

Hegel formaliza objetivamente o conceito de reconhe­cimento. Quem se sente diminuido jamais estará satisfeito. Urna coisa é postular a igualdade perante a leí, que, aliás, chegou a ser obtida em maior ou menor grau em alguns países. Da mesma forma, o Estado de direito conseguiu ba- nir as mais crassas formas de opressáo, o Estado social con­seguiu garantir um mínimo existencial a todos os cidadaos etc. No entanto, o desejo de reconhecimento desenvolveu, primeiro ñas metrópoles, depois ao mundo inteiro, urna di­námica com a qual um filósofo de 1806 jamais poderia ter sonhado.

Qualquer coletividade, mesmo a mais rica e pacífica, produz continuamente perdas concretas de igualdade, me­lindres da auto-estima, injustiças, sobrecargas pessoais e frustraçôes de toda espécie. Ao mesmo tempo, com o au­

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mentó da igualdade formal e da liberdade, tendem a cres- cer as expectativas dos cidadáos. Quando tais expectativas nao sao satisfeitas, qualquer um pode sentir-se humilhado. O anseio de reconhecimento é insaciável. O noticiário nao se cansa de difundir as mesmas historias. No gueto, basta usar um tenis de urna determinada marca para se tornar ví- tima de um latrocinio, e um funcionario de escritório, cuja carreira como p op star nao deu certo, vinga-se da humilha- fáo assaltando um banco ou atirando as cegas na multidáo.

Urna última explicado, a mais deprimente de todas, refere-se ao crescimento vertiginoso da populado do pla­neta. Já em 1950, Hannah Arendt suspeitava que a levian- dade com que os regimes totalitários puderam impor sua lógica assassina origina-se nesse rápido crescimento e no desterro das massas, as quais, vistas segundo o modelo de categorías utilitaristas, tornam-se, de fato, “supérfluas”. É como se o valor atribuido á própria vida e á dos outros di- minuísse na proporfáo em que aumenta o número de ha­bitantes da térra.

Nao é fácil entender essa idéia. No entanto, nao ape­nas a estatística do fluxo de refugiados e os índices popu- lacionais e migratorios revelam como o planeta está se tor­nando escasso. Basta observar ao redor. O desemprego e a falta de moradia, a favelizafáo das grandes cidades, os na­vios e alojamentos abarrotados demonstram a todo mo­mento ao inconsciente que nós nos excedem os em termos numéricos. A reagáo cega a esse fato é um debater-se psi- cótico.

Essa tendencia manifesta-se em toda parte. Mesmo pessoas aparentemente normáis prontificam-se a eliminar os “seres supérfluos”, aos quais eles próprios pertencem se­cretamente. Diferem apenas o alcance de suas atitudes e os meios á sua disposifáo. Enquanto o incendiário possui ape­nas urna garrafa com gasolina, já o poderoso pode oferecer

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gás tóxico e mísseis. Os incitadores da guerra civil nao vi­sara apenas a chamada “purificagáo étnica”; em última ins­tancia, seus esforgos sao voltados ao completo despovoa- mento. O melhor recurso que lhes cabe depois de verem fracassar a carnificina total é a expulsáo em massa, empre- gada contra o mundo exterior como urna arma demográfi­ca. A pena imposta pela defesa dos restos de urna civiliza­d o é cumprida por terceiros, que vém ao socorro das vítimas. Os líderes dos bandos consideram a populado um lixo indesejável a ser eliminado.

Em digressóes dessa ordem, náo é fácil dizer onde ter­mina a exegese e onde comega o desprezo pelo ser huma­no. A fronteira é ultrapassada quando se vé proclamada a idéia de que a humanidade obedecería, sem saber, a um imperativo biológico segundo o qual a populado mundial busca reduzir-se a um nivel suportável pela biosfera. Náo falta quem faga afirmagóes como essa. Há cientistas argu­mentando dessa forma, devidamente apoiados por autono- meados advogados da natureza. Curiosamente, a ilustragáo dessa tese fica quase sempre a cargo de um experimento lendário, no qual se obriga um número cada vez maior de ratos a viver em espagos cada vez menores. Segundo esta lógica, guerras civis e outras formas de automutilagáo náo passam de mecanismos de sobrevivéncia da espécie ao prego de incontáveis vítimas.

Tais idéias expóem apenas a arrogáncia e a megaloma­nía de seus autores. Muitos biólogos trabalharam nos siste­mas totalitários desde seus primordios. O desempenho dos especialistas em eugenia e dos experimentadores em medi­cina é inesquecível. As conseqüéncias puderam ser vistas nos campos de concentragáo. A comparagáo com ratos náo é á toa. Mas, mesmo ignorando-se a vulnerabilidade moral da argumentagáo da biología, há em seus fundamentos um defeito intelectual.

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Quem argumenta dessa forma tem a pretensáo de ob­servar a humanidade de fora — urna perspectiva destituida de sentido já a partir de suas implicafóes epistemológicas. Nao é possível entender de que forma um observador hu­mano poderia colocar-se no lugar de um virus ou urna ga- láxia. Dessa maneira nao se pode chegar a urna visáo mais objetiva sobre o comportamento humano. Este truque nao pode tomar como base principalmente o pensamento de Hannah Arendt. A biologia nao colabora em nada para o conhecimento da guerra civil.

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INDICIOS E A UTO-EXPERIMENTA £ 4 O

No com eto nao há sangue, os indicios sao irrisorios. A guerra civil molecular inicia-se discretamente, sem que ha- ja urna mobilizafáo geral. Pouco a pouco, multiplica-se o li- xo ñas rúas. No parque, amontoam-se seringas e garrafas de cerveja quebradas. Ñas paredes surgem pichafóes mo­nótonas, cuja única mensagem é o autismo: elas exorcizam o eu que já nao mais existe. Na sala de aula os movéis sao destrocados, os jardins fedem a merda e urina. Trata-se de d eclarares de guerra mudas e diminutas, mas percebidas pelo experiente morador da cidade. Logo revela-se o an- seio por um gueto mediante sinais eloqüentes. Pneus sao furados, telefones de emergencia inutilizados, automóveis incendiados. Ñas agóes espontáneas expressa-se a raiva das coisas em bom estado, o odio por tudo o que funciona e que forma um amálgama indissolúvel com o ódio por si mesmo.

A atitude dos adolescentes antecipa a guerra civil. Isso nao se deve apenas á concentrado de energia física e emo­cional, mas também á perplexidade diante do legado com que se deparam, aos problemas insolúveis de urna riqueza infeliz. No entanto, o que leva os jovens á violencia está la­tente também em seus pais: um rancor destrutivo, que ape­nas em casos agudos é canalizado para formas toleradas socialmente, como a obsessáo por automóveis, comida e

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trabalho, alcoolismo, avareza, agressividade, racismo e vio- lência na familia.

É difícil precisar o foco do perigo nessa profusáo de agressôes. A percepçào oscila a todo instante como em urna ilusáo de ótica. Um cidadáo que nao tem carro narra sua historia:

Quando tomo o trem urbano, tarde da noite, acontece o seguinte: o vagáo está quase vazio e mal-iluminado. Um senhor de idade dorme em um canto e um grupo de bé- bados conversa na outra extremidade. As pessoas ao meu lado sao provavelmente funcionários que fizeram hora extra. O trem pára e sobem quatro rapazes de cerca de vinte anos; as mesmas jaquetas de couro de sempre, as mesmas botas. Falam bastante alto em uma língua que eu nào entendo, talvez árabe. A atitude é desafiadora. Eles se movimentam pelo vagáo como se estivessem à procu­ra de vítimas; se aproximam de mim, e ¿mediatamente me sinto ameaçado. Olham-me fixamente. Parece que váo me assaltar. Entâo eles se váo e meu olhar recai sobre o rosto dos outros passageiros. Estáo amargurados, ranco- rosos e sao de uma peculiar feiúra distorcida. As frases que pronunciam me sao bem conhecidas. Até o senhor que dormía desperta e murmura alguma coisa sobre en- forcar e fuzilar. Ai nao é mais dos estrangeiros que tenho medo, mas de' meus próprios compatriotas.

Diz uma outra pessoa: o passeio escolar de minha filha é cancelado, porque existem très crianças turcas na clas­se déla; os país proíbem a ida de seus filhos, porque pa­ra eles o risco é muito grande. Isso é um indicio de que existem lugares públicos offlimits-, nao se pode mais fre- qüentá-los sem que se sinta ameaçado. Isso nao é novo. Há anos, o bairro de Kreuzberg em Berlim foi tomado por duzentas pessoas que se denominavam autónomos. Nes- se contexto, a palavra autónomo significa o seguinte:

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urna sociedade humana nao existe para nós. O objetivo de calar o resto da populado foi amplamente alcanzado. Surgiu urna zona livre de direito dominada pela censura, pelo medo e pela chantagem. As instituicjóes se omitiram; os restos da vida civil foram sendo pouco a pouco elimi­nados.

Zonas semelhantes existem também na Europa Orien­tal e na antiga Alemanha Oriental. Nao deixa de ser urna ironia que as zonas militares de outrora voltaram a ser no- vamente setores especiáis. Em alguns bairros prevalece a lei do mais forte. A polícia, que se sente inferiorizada, nao ousa penetrar nesses lugares, tornando-se, veladamente, cúmplice. Pode-se falar aqui de regióes de libertado no sentido em que os criminosos conseguirán! livrar-se do dominio da civilizado e de seus fardos.

Essas circunstancias levam a uma migrado em duplo sentido: a ocupado por parte de gangues de delinqüen- tes em trajes de direita radical e a fuga dos que se sentem amea^ados, no inicio estrangeiros e grupos alternativos, mas depois todos os que se recusam a submeter-se ao re- gime de terror. A perspectiva para esses territórios é a de­cadencia. Da mesma forma como nos e u a , um fator es- sencial nesse processo é a desindustrializado. Diluem-se as condigóes medianas de vida. Surgem, de um lado, re­gióes protegidas com seus próprios servidos de seguran­za e, de outro, guetos e favelas. Nos bairros entregues aos delinqüentes, tribunais e patrulhas policiais nao tém mais o que fazer. A situado se torna incontrolável.

Um caso especial sao as zonas de fronteira com regras próprias e turbulencias. Contrabando, criminalidade e tráfico transformaran! de modo radical os padróes de convivencia. Colaboram para isso também os imigrantes ilegais, que na maioria das vezes foram socializados de forma completamente diversa e pouco sabeni das formas habituais de comportamento social. Mas também entre os

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nativos neutralizam-se rápidamente as normas da civiliza- gao. Em seu lugar aparecem as leis elementares da vio­lencia. Da mesma forma como Saddan Hussein ignora as regras do direito internacional, sao extintas todas as obri- gagóes entre os moradores, sejam elas normas escritas ou nao. No final, conta apenas o revólver.

Aos amentados restam apenas duas estratégias: fugir ou defender-se. Uma minoría privilegiada busca caminhos próprios de fuga; muda-se para um “paraíso de férias” qual- quer, entrincheira-se em uma segunda residencia ou um re­tiro, funda comunidades rurais ou seitas apartadas do meio social. A fuga dos milhóes que nao possuem meios mate- riais assume a forma da busca de asilo social e da migragáo de miseráveis.

Quem nao foge procura se proteger. Em nivel mundial trabalha-se no fortalecimento de fronteiras contra os bárba­ros. Mas no interior das metrópoles formam-se também ar- quipélagos de seguranza rigorosamente guardados. Ñas grandes cidades americanas, africanas e asiáticas já existem há tempos os bunkers dos felizardos, cercados por altos muros e arame farpado. As vezes sao bairros inteiros, nos quais se pode entrar apenas com permissóes especiáis. A passagem é controlada por barreiras, cameras eletrónicas e caes treinados. Guardas armados de metralhadoras com- plementam de suas torres a seguranza da regiáo. O parale­lo com os campos de concentrado é evidente, com apenas a diferenga de que aqui é o mundo exterior que é visto co­mo zona potencial de exterminio. Os privilegiados pagam pelo luxo com o total isolamento: eles se tornaram presas de sua própria seguranza.

A dinámica da guerra civil pertence o momento de se armar. Onde o Estado nao exerce mais o monopolio da vio­lencia, é necessário que cada um se ocupe da própria defe-

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sa. Mesmo Hobbes, que concede ao Estado um poder qua- se ilimitado, sustenta o seguinte: “A obriga^áo dos subordi­nados em rela^áo ao soberano dura apenas até o momento em que este, com base em seu poder, pode garantir-lhes protegáo. Pois o direito natural dos homens de se defender nao pode ser suspenso quando ninguém mais está em con- digóes de garanti-lo”. Os motivos para a retragáo do Estado sao diversos. No inicio, com freqüéncia, estáo a covardia e o cálculo tático, como na República de Weimar e, recente- mente, na Alemanha reunificada. Quando a guerra civil se achar em estado avanzado, a polícia e a justiga nao seráo mais senhoras da situagáo; enquanto se estiverem encarce- rando pessoas, as prisóes repletas tornam-se campos de treinamento para combatentes. Em outros casos, como na Uniáo Soviética, o poder do Estado perde sua legitimidade. Mais um passo adiante e chega-se á situagáo da Iugoslávia, em que o próprio regime fomenta a formagáo de quadri- lhas.

Quem possui os meios necessários, já em um estágio inicial sairá em busca de mercenários para substituir a polí­cia. Um sinal nítido dessa tendencia é o crescimento da in- dústria de seguranza. O guarda-costas passa a ser um sím­bolo de status. Firmas de seguranza sao contratadas até por órgáos oficiáis para a defesa da infra-estrutura. Onde os guardas de aluguel sao muito caros para os moradores, criam-se exércitos de cidadáos e vigilante groups. E onde isso nao é possível, mais cedo ou mais tarde as pessoas compraráo revólveres; nesse sentido, os Estados Unidos sao um modelo, pois lá o direito individual de posse de ar­mas faz parte da ideología nacional.

Guerras civis, sejam elas moleculares ou de grandes dimensóes, sao contagiosas. Enquanto decresce o número dos náo-participantes em razáo de morte, fuga ou mesmo por se alinharem a um ou outro grupo, os participantes sáo

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cada vez mais semelhantes entre si. Seu comportamento passa por um processo de assimilaçâo e adaptaçào, da mes- ma forma como suas concepçôes moráis. Nas regiôes beli­gerantes das cidades, polícia e exército atuam como se fos- sem mais urna quadrilha entre outras. Regimentos de combate ao terror praticam a pena de morte preventiva. Contra criminosos menos perigosos e viciados em drogas entram em açâo os esquadróes da morte, que reproduzem a imagem de seus adversários. Ao lumpemproletariado equivale urna burguesía de mesma qualificaçâo — urna lum penbourgeoisie — , que copia o inimigo na escolha dos meios de atuaçâo. De forma semelhante manifestam-se os combates na guerra. Agressâo e defesa tornam-se forças in- diferenciáveis. O mecanismo corresponde à vingança san­guinaria. Um número crescente de pessoas sao atraídas pa­ra o redemoinho de pánico e ódio, até chegar-se a um perfeito estado de associalidade.

“Nao sabemos o que acontece conosco.” Essa é a frase mais freqüente que se escuta dos sobreviventes de Sarajevo. Quando todas as explicaçôes fracassam, a auto-experimen- taçâo torna-se talvez urna das poucas possibilidades que restam de compreender a fundo a questáo. Bill Buford, um escritor americano, empreendeu esse experimento. Na re- portagem Entre os vándalos, ele narra como se transformou em membro de urna corja. A noticia trata da fase de laténcia da guerra civil, ambientada em um estádio de futebol.

Embora ainda nào pudesse gabar-me de uma relaçào ínti­ma com “eles”, eu notava que sentía pouco a pouco pra- zer com os acontecimentos... Hoje, tendo refletido me- lhor, nào me parece muito diferente do hábito da bebida ou do cigarro: no inicio, repugnante; entáo, com algum esforço, saboroso; com o tempo transforma-se em um vi­cio. No final chega a ser talvez um recurso autodestrutivo.

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Na cena seguinte, a assimila^áo da violencia atinge um ponto culminante:

Eles eram seis e comegaram a pisotear o garoto estirado no chao. O garoto protegía o rosto com as máos. Para mi- nha surpresa, me era possível reconhecer pelo som se um sapato errava seu alvo ou se atingía os dedos e nao a tes­ta ou o nariz da vítima. Fiquei paralisado. Refletindo ho- je sobre aquela cena, imagino ter estado próximo o sufi­ciente para pór um fim áquele acontecimento... Mas nao o fiz. Nem sequer pensei nisso. Foi como se o tempo ti- vesse ficado dramáticamente mais lento. O cometo e o fim de cada segundo eram marcados com tanta nitidez quanto a seqüéncia de fotogramas em um filme; eu esta- va hipnotizado diante de cada urna das imagens que via... Com esse primeiro choque foi como se tivesse ultrapas- sado um tipo de limiar, urna linha imaginária de separa- gao: de um lado prevalecía o senso do permitido, um pacto sobre o que se podia e o que nao se podia fazer, mesmo naquela desordem; mas agora havíamos alcanza­do algum lugar onde nao existiam limites, onde o senso de que havia coisas que nao podiam ser feitas deixava de atuar... Era uma excitagáo grandiosa, um sentimento transcendente — no mínimo um sentimento de alegría ou, antes, algo semelhante ao éxtase. Desprendia-se uma energía contagiante; impossível nao se emocionar pelo menos um pouco. A meu lado, alguém dizia estar feliz, muito feliz; nao podia lembrar-se de ter sido mais feliz em toda a sua vida.

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INOCENCIA TARDIA, CAMPOS MINADOS

O simples discurso sobre a guerra civil acaba por de­sembocar cedo ou tarde em um tipo de auto-experimenta- ?áo. Nenhum osso é quebrado; no entanto, a discussáo em si traz consigo traeos essenciais de seu objeto. Nao sou neu­tro. Estou contaminado. Sinto como estáo arraigados em mim o rancor, o medo e o odio. Estou profundamente en­volvido com aquilo que estou dizendo. Meu cerebro trans­borda de substancias químicas, produzindo mensagens so­bre as quais nada sei. Corro o perigo de perder o controle sobre meus pensamentos.

É impossível manter um discurso linear sobre esse te­ma. Quem apenas tenta afirmar sua própria posifáo está es­timulando o conflito. Nao existe um ponto de Arquimedes. Penetrei em um campo minado moral e intelectual. Movi- mento-me com cautela. Sei que conseguirei, no máximo, orientar-me melhor, mas nao ultrapassá-lo. Nao concordo com ninguém, nem mesmo comigo. Já que nasci por acaso aqui, na Alemanha, vejo-me ainda, depois de cinqüenta anos, agachado em um poráo, envolto em urna manta. Pos­so distinguir até hoje os gañidos da defesa antiaérea dos ui- vos de bombas lanzadas por avióes. Durante o sono assal- ta-me as vezes o glissando lento, crescente e decrescente, das sirenes de alerta, urna melodía repugnante. Lembro-me bem dos sobressaltos meio sufocados, meio apáticos causa-

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dos pelos bombardeios. E os adultos, á espreita, acocora­dos nos bancos do poráo e para quem os “ataques terroris­tas” destinavam-se aos Aliados, compunham a "inocente populafáo civil”. Fico perturbado cada vez que escuto essa expressáo.

Quando a guerra civil atinge seu ápice, verifica-se que a maioria nao a quería. A maioria é muda. Ninguém presta atengáo nela. Sempre que ve urna chance, ela dá as costas as lutas e desaparece. A maior parte das mulheres ocupa-se apenas em procurar ñas ruinas um punhado de farinha, car- váo, algumas batatas e em arrastar seus filhos para outro lu­gar. Velhos remexem os restos de cabanas incendiadas, ho- mens fatigados sepultam os mortos. Todos conhecem cenas como essas ou ainda piores. Essas pessoas nao ati- ram e nao torturam. Seus rostos nao estáo marcados pelo ódio ao próximo. Estáo pálidos de exaustáo.

Mas isso nao foi sempre assim. Urna estranha mudanza ocorreu com a “inocente populagáo civil” que se escondía no poráo enquanto as bombas de fósforo transformavam a cidade em um mar de fogo. Eu vi como os olhos deles relu- ziam a cada discurso do Führer. Ele nao ocultava ao povo suas verdadeiras inten^óes: um “gigantesco combate, jamais visto”, a luta definitiva até o último recurso. Pude ver tam- bém como a multidáo se comportara quando, poucos anos antes, as sinagogas ardiam. Sem o seu consentimento entu­siasta, os nazistas jamais teriam chegado ao poder.

Considero um idiota quem quer que acredite que isso se aplique apenas aos alemáes. Sem aquela eneigia envol­vente, aquele sentimento de “alegría”, o “éxtase” de que fa- la Bill Buford, nao se consegue detonar seja a guerra civil molecular diante dos portóes de nossas casas seja o inferno além de nossas fronteiras. No inicio reina sempre o júbilo histórico sobre as arquibancadas dos estádios ou ñas rúas de Rostock e Brixton, Bagdá e Belgrado. Com freqüéncia, os

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incitadores de guerras legitimaram-se por meio do voto po­pular. Eles conquistaram maiorias triunfáis e fortaleceram gradualmente suas posigóes sempre por meio das urnas.

Apenas mais tarde, muito mais tarde, o crime, de acor- do com um modelo que me parece familiar, seria imputado a este ou áquele personagem, entáo com o corpo já com­pletamente crivado de balas. Mas quem criou e alimentou os criminosos, quem rezou por eles e os aplaudiu, senáo a “inocente populado civil”? O combatente camuflado, o vi­gía do campo de concentrado, o assassino com slogans nazistas, caneces populares ou ora^óes incitantes na ponta da língua: estes nao sao seres de outro planeta e sim men- sageiros alimentados pelo rancor, pela crueldade e pela se­de de vingan^a de toda urna coletividade. Apenas quando sentem no próprio corpo as conseqüéncias letais de suas atitudes e omissóes, chega o momento da inocencia.

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A CULTURA DO ODIO, A MÍDIA EM TRANSE

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Sorte daquele que conseguiu iludir-se julgando que a cultura poderia criar urna sociedade imune á violencia. Já antes do inicio do século xx, artistas, poetas e teóricos da modernidade demonstravam o contrario. É inegável sua preferencia pelo crime, pelo satánico outsider, pela destrui­d o da civilizado. A intelligentsia do fin de siécle, de París a Sao Petersburgo, namorava o terror. Os primeiros expres- sionistas ansiavam pela guerra da mesma forma como os fu­turistas. Mesmo depois da Primeira Guerra Mundial conti- nuava a crescer a glorificado da violencia. Parte expressiva da cultura erudita exaltava o retorno á barbárie. Os escritos de Sade passaram a ser cultuados, e assim permanecem até hoje. Ernst Jünger propagava o poder purificador da tem- pestade de aqo, Céline flertava com a turba anti-semita e An- dré Bretón preconizava que “a mais simples atitude surrea­lista” consistía em “andar pela rúa com um revólver na máo e atirar na multidáo as cegas, pelo máximo de tempo possí- vel”. Questiona-se até que ponto a cultura da violencia da vanguarda européia pode ser levada a sério. Suas provoca­r e s revelam nao apenas o ódio profundo ao status quo, mas também a si mesma. Provavelmente, elas serviam de com pensado á própria impotencia e como meio de defesa contra o cerco da modernizado, que amea?ava sabotar-lhe as pretensóes de prestigio. Além disso, há que se ter em conta a tendencia á pose, á artificialidade, táo cara a seus re­presentantes. Finalmente, pode-se entendé-las como sinais

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de advertencia em cujo fascínio escondia-se urna premoni- gáo. Mas para o atributo de incitadores da guerra civil faltou aqueles artistas o poder da influencia.

Contudo, esse mesmo poder foi exercido pela lúmpen- intelectualidade fascista e comunista, que delirava com a li­quidado da burguesía, do campesinato, dos judeus, dos ci- ganos e de todos que fomentassem idéias divergentes das suas. Grande parte da intelligentsia iugoslava demonstrou que a produfáo do ódio e a preparado da guerra civil per- tencem, ainda hoje, as mais relevantes tarefas dos agentes culturáis.

Nos países mais importantes do mundo, o culto á vio­lencia e a nostalgie de la boue tornaram-se um bem comum por meio da industrializado e da massificagáo da cultura. O conceito de vanguarda assumiu com isso um significado in­fame, com o qual seus defensores nao podiam sequer so- nhar. Eles nao acreditavam na possibilidade de ver suas fan­tasías elitistas imitadas e interpretadas ao pé da letra por lumpesinato artístico.

O massacre torna-se diversáo de massa. Cinema e ví­deo disputam a transformado de assassinos profissionais, seqüestradores e serial killers em sucessos de público. Os teatros oficiáis pateiam desamparados, com suas encena- f oes de merda e sangue, no vácuo deixado pelos filmes de horror. A representado seca da realidade, que “nao pou- pa o espectador de nada”, é definida como uma “impiedo­sa confrontado”, como uma “provocado corajosa” e co­mo um “choque redentor” — uma hipocrisia crítica exposta á contem plado pública passiva. Enquanto isso, o velho e querido rock, em sua eterna juventude, mantém-se firme com grupos cujos nomes sao Public Enemy, Slayer, Kahlschlag [Zona Devastada], Endsieg [Vitria Final] e Bru­tal; um deles, com o nome de Guns N’ Roses, “debutou” com a venda de 15 milhóes de exemplares do álbum Ap- petitefor destruction.

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No mercado de artes, o vandalismo vem atingindo altas cotagóes. A tautológica turma dos grafiteiros é conduzida sem demora para os museus e galerías. O desejo de chocar é exposto abertamente no mercado de artes. Naturalmente, trata-se de um prazer mediado, cuja excitado resulta da re­confortante distancia da realidade. Seria ingenuo admitir o nexo entre causa e efeito onde se trata de pura intromissao interesseira do artista em um meio alheio ao seu.

Mesmo ocasionalmente ornados de emblemas, os cri­minosos há muito nao dependem dos modelos de uma es­tética decaída. O transe gerado pela assimilacáo da mídia nao é explicado por uma relado imitativa, mas pelo feed- back direto estabelecido entre a imagem e a realidade. Inú- meros criminosos tém a sensagáo de nao serem eles pró- prios participantes de suas a^óes. Parece-lhes que nao sao eles que surram outras pessoas até a morte, como se tudo nao passasse de uma “cena de televisao”. As teorías da si­m ulado terminam por obter uma confirmado absurda me­diante a incapacidade dos criminosos de distinguir entre fil­me e realidade.

Em certo sentido, a mídia fortalece a pessoa que se tor- nou irreal e lhe fornece uma espécie de prova de existen­cia. Isso é uma conseqüéncia daquela abnegado patológi­ca diagnosticada por Hannah Arendt. Todo cidadao meio maluco pode alimentar a esperanza de se ver estampado na primeira página do New York Times com uma garrafa de cerveja em uma das máos, enquanto a outra está levantada para a saudagáo a Hitler. E nos noticiários de televisao ele pode maravilhar-se com sua obra do dia anterior: casas em chamas, cadáveres mutilados, audiencias oficiáis de emer­gencia e reunióes de Estado para a discussáo da crise. As- sim atua a televisao: como uma pichado única e gigantes­ca, como uma prótese de com pensado para a atrofia autística do eu.

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9TENDA DOS MILAGRES, COMPLEXO DE CULPA

Nunca se falou tanto em direitos humanos como hoje; mas também nunca foi táo grande o número daqueles que, na melhor das hipóteses, sabem algo a esse respeito apenas de ouvir falar. A Declarafáo Universal dos Direitos Huma­nos, aprovada sem voto contrário na Assembléia Geral das Nagóes Unidas em 1948, postula em um preámbulo e trin- ta artigos um longo catálogo de direitos políticos e sociais. Entre eles estáo o direito á vida, á liberdade e á seguranza da pessoa, o direito á liberdade de credo e pensamento, o direito á liberdade de expressáo, á liberdade social e ao tra- balho, assim como o direito a um padráo de vida que ga­ranta saúde e bem-estar. Como se nao bastasse, lé-se ainda: “Todo ser humano tem direito a urna ordem social e inter­nacional, na qual todos os direitos e liberdades relaciona­dos acima possam ser realizados”.

Os países comunistas, a África do Sul e a Arábia Saudi­ta se abstiveram de votar, o que, ainda assim, deve-se inter­pretar como um pequeño tributo á verdade. Todos os de- mais, inclusive aqueles nos quais perseguifáo e censura, tortura e repressáo, estavam na ordem do dia, assinaram o documento sem hesitado. Até hoje conta-se na Assembléia Geral com urna maioria absoluta de ditaduras abertas e en- rustidas; as democracias representam urna pequeña mino­ría mas quase sempre sao culpadas pela participaijáo em

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inúmeras guerras coloniais desde 1948 e por terem apoia- do regimes terroristas em conveniencia própria.

Quatro quintos da populagáo mundial vivem em con- difóes incompatíveis com a retórica da declara<:áo; ano a ano, acrescentam-se a esse número quase 100 milhóes de pessoas, cujas perspectivas sao ainda piores que as de seus pais. Diante dessa situa^áo, as orgulhosas form ulares das Nagóes Unidas assumem uma aparéncia cínica. De forma semelhante, os súditos do Estado soviético poderiam sentir­se escarnecidos pela constituido stalinista de 1936, que ga­rantía a cada um todos os direitos fundamentáis possíveis.

Os europeus e os norte-americanos tém que responsa- bilizar-se a si mesmos quando sao hoje interpretados literal­mente; pois eles próprios alfaram os direitos humanos á condifáo de norma política pela primeira vez na Declara­d o de Independencia americana em 1776 e depois, em Pa­rís, no ano de 1789, na Déclaration des droits de l ’homme et du citoyen. Pouco tempo depois, durante o período do Terror, em 1793, proclamou-se le bonheur commun, isto é, a felicidade geral, como uma meta de Estado. Com certeza, o clamor por justicia, a vontade de ajudar o próximo e de ser solidário nao sao mais escassos naquelas regióes do planeta que nao produziram d eclarares sobre o bem e o desejável do que na Europa e na América do Norte. Os po­bres países africanos acolheram mais refugiados de guerras civis do que a Comunidade Européia; movimentos pró-de- mocracia existem em todos os continentes; mas, no que concerne á xenofobia e ao racismo, as sociedades ricas, do Japáo á California, nao sao superadas por ninguém.

A retórica do universalismo é uma característica espe­cífica do Ocidente. Os postulados dele decorrentes valem para todos sem exce^áo e distin^áo. O universalismo nao reconhece nenhuma diferen^a entre o que é próximo e o que é distante; ele é abstrato e incondicional. A idéia dos

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direitos humanos impóe a todos um dever que é, em prin­cipio, ilimitado. Nisso se revela um cerne teológico que so- breviveu a todos os processos de secularizado. Todos de- vem responsabilizar-se por todos. Nessa pretensáo está contido o dever de tornar-se semelhante a Deus; pois ape­nas ele atende ao pressuposto da onipresenga ou mesmo da onipoténcia. Mas, uma vez que nossas afóes sao finitas, o abismo entre intencáo e realidade expande-se cada vez mais. Logo penetra-se no campo da hipocrisia objetiva, quando o universalismo evidencia-se como uma armadilha moral.

É comum escutarmos acusafóes de culpa pelos massa- cres e atos de violencia realizados em toda parte, pela fome, o desterro e a tortura de seres humanos. Estaríamos assistin- do a tudo de bracos cruzados, impassíveis, preocupados apenas com nossas atividades cotidianas... Sem dúvida, sao acusafóes bastante persuasivas, dirigidas nao apenas aos governos e as grandes potencias, mas também áquela se- nhora no metro e as pessoas simples em geral.

É indiscutível que todos nos tornamos espectadores. Essa condigáo nos diferencia das pessoas do passado que, quando nao eram elas próprias vítimas, criminosos ou tes- temunhas, tomavam conhecimento dos acontecimentos por meio de boatos e lendas desta ou daquela colorado política. O que ocorria em qualquer outro lugar sabia-se apenas de ouvir falar. Mesmo até meados do século xx, a opiniáo pública sabia pouco ou nada a respeito dos maio- res crimes da época. Hitler e Stalin fizeram de tudo para acobertá-los. O genocidio era tratado no Reich como segre- do de Estado. Nos campos de exterminio nao havia came­ras de televisáo.

Hoje, ao contrário, os assassinos prestam-se com satis- fa d o a dar entrevistas e a mídia se orgulha de estar presen­te á hora e ao local do crime. A guerra civil torna-se uma sé-

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rie de televisáo. Os combatentes expóem seus crimes para a opiniáo pública, esperando com isso incrementar seu prestigio. Eles imitam os gángsteres e seqüestradores de avióes e de pessoas, em cujas exigencias inclui-se regular­mente a presenta de cámeras de televisáo; a mídia provi­dencia para que lhes seja garantido o reconhecimento almejado. Os repórteres reiteram que estáo apenas cum- prindo o dever; eles dizem que nos apresentam os fatos em sua simplicidade, os quais sáo seguidos da necessária ma­nifestado de indignado do comentarista.

Mas é inevitável que se misture á acusado urna mensa- gem adicional e subliminar. Esta diz que o terror é a norma e que o impensável pode ser realizado a qualquer momen­to e em qualquer lugar. E, poitanto, por que náo aqui tam- bém? Todo policial conhece a figura do criminoso imitativo, hoje um fato político. Nesse sentido, a mídia, intencional­mente ou náo, acaba promovendo o crime que noticia.

Se as imagens do terror náo nos transformam em ter­roristas, transformam-nos em voyeurs. Assim, cada um de nós se vé submetido a urna chantagem permanente. Pois apenas aquele que testemunha pode ser questionado sobre o que faria contra o que lhe está sendo exposto. Assim, a mais corrupta das mídias, a televisáo, eleva-se á condi^áo de autoridade moral.

A exigencia absurda de fazer alguma coisa (mas o qué?) e de agir (como?) dirigida a todos traz, veladamente, urna série de conseqüéncias. Essa exigéncia dirige-se áque- le “nós” aclamador dos direitos humanos e que instaurou a consciéncia pesada. Este “nós” refere-se ao Ocidente, isto é, áquela regiáo do mundo considerada rica e que ainda se define como civilizada. A moralidade é o último refugio do eurocentrismo.

Quem já procurou discutir com um tamil ou um curdo os problemas da Irlanda do Norte ou do País Basco sabe

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que provocará urna rea^áo de perplexidade. A réplica com a qual se deve contar é a seguinte: o que me importam as suas historias? E, na melhor das intengóes, o asiático lhe as- segurará que tem outras preocupares. Recomenda-se cau­tela antes de negar-lhe o direito a essa posifáo. Pois, da mesma forma, o cidadáo que mora em Ohio, no Piemonte e em Hessen se sentirá desanimado perante a sobrecarga dos incompreensíveis tiroteios que desfilam pelas telas de televisáo. Já a mera quantidade de in form ales com as quais ele é bombardeado opóe-se a qualquer possibilidade de elaboragáo mental consistente. Apenas os especialistas, que náo tém outra coisa a fazer, podem se dar conta das 150 nacionalidades liberadas com a derrocada da Uniáo So­viética.

A despeito disso, o noticiário das oito exige daquela vendedora do supermercado que diferencie entre inguches e tchetchenos, entre georgianos e adjarianos. Nagorno-Ka- rabakh permanece há anos na ordem do dia, e nós somos obligados a fazer urna imagem daquela regiáo com base em cadáveres mutilados. Devemos guardar os nomes de gángsteres, que nem sequer pronunciamos corretamente, e devemos nos preocupar também com seitas musulmanas, milicias africanas e grupos paramilitares cambodjanos cuja motivagáo política nos será sempre obscura. Quem náo for capaz disso é tachado de ignorante, insensível e um sub- produto egoísta da sociedade do bem-estar, para quem o sofrimento alheio é indiferente.

Os receptores dessas mensagens estáo inseguros. Al- guns deles sao tomados por sentimentos de culpa. Mas sua possibilidade de ajudar é muito limitada, a náo ser que se dediquem profissionalmente á assisténcia social. Muitos co­laboran! financeiramente e sáo acusados de comprar ape­nas um álibi moral. Caridade náo passaria de um paliativo, urna manobra barata para livrar-se da má consciencia. No

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entanto, os pregadores da virtude nao revelam jamais o que se deveria fazer.

É, no melhor dos casos, ingénua a pedagogía que acredita sensibilizar seu rebanho apenas aumentando-lhe a dose do remédio. Isso surtiría o efeito contrario, inmunizan­do o paciente contra a estimulado da consciencia; a sobre­carga psíquica e cognitiva acaba provocando o efeito con­trario. O espectador sente-se incompetente e impotente. Ele se fecha em urna redoma e se desliga. As mensagens re- cebidas passam a ser repelidas ou simplesmente negadas. Essa forma de defesa interior nao é apenas compreensível; ela é também inevitável. Ninguém saberia dizer como se deve reagir corretamente á diária carnificina em massa.

Mas isso ainda nao é tudo. O conceito de “reagao pa- radoxal” é conhecido da farmacología: urna substancia do- sada ou aplicada erróneamente pode produzir o efeito con­trario ao esperado. Da mesma forma, exigéncias moráis que excedam as possibilidades de a^ao conduzem os indi­viduos á passividade ou á pura negagáo de sua responsabi- lidade. Ai se localiza o germe do processo de brutalizagáo que pode evoluir para a agressividade furiosa.

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10PEDIDOS DE SOCORRO,

FORMAS DE TUTELA

Nao apenas os individuos em geral estáo sobrecarre- gados, mas também os sistemas políticos vigentes. Até o momento nao existe um mecanismo capaz de evitar o sur- gimento continuo de guerras civis. A forma clássica de po­lítica exterior, os organismos internacionais, para nao men­cionar a Comunidade Européia, nao estáo em condifóes de criá-lo. As autoridades sáo acusadas com a mesma intensi- dade de náo atuarem sempre que necessário. Os boinas azuis estáo estacionados hoje em mais de quinze países. O custo político dessas opera^óes é astronómico, as prerroga­tivas sáo contraditórias e de éxito duvidoso. Enquanto as causas dos conflitos forem racionalmente tangíveis, as mis- sóes de paz náo teráo sucesso.

A mediagáo pressupóe que cada urna das partes tenha a vontade e a capacidade de estabelecer acordos de paz. No entanto, prevalece habitualmente o desejo de prosse- guir com a guerra até a autodestruigao. O espirito apazigua- dor que desejar atirar-se nos bracos dos confitantes preci­sa estar consciente de que se colocará sob a mira dos bandos guerreiros indistintamente. O rganizares de auxilio sáo permanentemente ameafadas; comboios para o forne- cimento de meios de sobrevivencia sáo assaltados e sa­queados; mediadores sáo colocados sob suspeita e extor- quidos; voluntários sáo tomados como reféns, negocia^óes

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sabotadas; tropas de paz servem de alvo em pesados tiro- teios. Os governos que as despachan! para as regiôes amea- çadas privam-lhes do direito de autodefesa; imagine-se entâo se lhes será possível um dia impor seus objetivos militar­mente.

Sançôes e embargos sâo insinuados, mas jamais delibe­rados de fato. Nunca se realizou um bloqueio efetivo, ga­rantido pela atuaçào de forças armadas, embora esse recur­so pudesse ser extremamente eficaz. Qualquer guerra civil desaparecería dentro de meses, caso fossem obstruidas suas ligaçôes com o mundo exterior, caso bloqueassem o forne- cimento de energía e muniçào, os caminhos de comunica- çào, os meios de transferencia de dinheiro, de transporte e de alimentaçâo. Mas precisamente a eficácia dessa receita impede sua aplicaçâo. Pois já nos acanhados passos iniciáis vê-se a coalizáo interventora sentada no banco dos réus, acusada de causar danos inexoráveis à “inocente populaçâo civil” por meio do isolamento dos grupos beligerantes.

A conseqüéncia desse dilema é a crescente perda de credibilidade e autoridade daqueles que participam de tais intervençôes. Náo obstante, cada mobilizaçâo traz consigo a necessidade de novas mobilizaçôes. Por que se realizam operaçôes no país X, enquanto o país Y fica abandonado a sua própria sorte? As partes prejudicadas em guerras civis náo entendem por que o mundo exterior náo demonstra vontade de apressar-se em ir a seu auxilio. Quando a ajuda necessária náo vem, a esperança torna-se decepçào, a ex­pectativa torna-se indignaçào, râncor e sentimento de vin- gança. Para isso já existem exemplos das primeiras décadas do século, como o Diario de Sao Petersburgo, escrito em 1919:

Querem nos matar, querem arrasar a Rûssia, esses euro­peas ignorantes, insensatos... O comportamento crimino-

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so, absurdo da entente segue seu curso... Todos nos que vivemos na Rússia gostaríamos tanto de ver a Inglaterra sentir no próprio corpo o que ela nos faz... Jamais ocor- reu urna coisa assim em toda a historia mundial. Todas as analogias sao inúteis. Urna cidade gigantesca tornou-se suicida. E isso diante dos olhos da Europa, que nao me- xe um dedo sequer em nosso favor e que, afundada em tanto sangue, tornou-se idiota ou satánica... Essa é a for­mulado exata: se em um país da Europa, no século xx, pode existir uma escravidáo táo grande e a Europa a ig­nora, ou a aceita, entáo a Europa precisa ser arruinada. E isso acontecerá.

As acusagóes de culpa crescem na mesma proporfáo em que se multiplicam as guerras civis. Quem se recusa a agir militarmente é acusado de discriminado e barbárie. Com isso, até o discurso anticolonialista perde cada vez mais em consistencia. De um lado, ele sacraliza os concei- tos de soberanía, independencia e náo-intervengáo; de ou- tro, confere-se ás poténcias do Ocidente uma competencia universal, revertendo-se o papel de verdadeiro culpado pa­ra o de salvador em potencial e vice-versa. Isso chega ao ponto de já se estarem manifestando anseios por uma reco- lonizado na forma de mandatos.

Esse é o caso extremo de uma projedo que oferece aos protagonistas das guerras civis uma confortável cobertura. Jamais os criminosos locáis e a massa de seus correligioná- rios devem ser culpados dos conflitos. De preferencia, en- contram-se outros criminosos estabelecidos no exterior. Pa­rece náo incomodar a ninguém que, com isso, declara-se a menoridade de p opu lares de regióes inteiras do planeta. Tratam-nas como bonecas, incapacitadas para agóes pró- prias, colocando-as sempre na condido de objeto e nunca na de sujeito. Isso vai ao encontro dos sentimentos de supe- rioridade dos senhores coloniais de outrora, que tratavam

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os dominados como crianzas: nao se de ve deixá-los ter acesso a objetos perigosos; eles precisam de um tutor. A funcáo de vigilancia recairia sempre sobre o Ocidente, que passaria entáo a responder pelas conseqüéncias, indepen- dentemente do que se faz ou se deixa de fazer.

Na confusáo dos conceitos sobre os tipos de interven­g o corre-se o risco de ignorar urna distinfáo da ordem do direito internacional que diz respeito a guerras de invasáo territorial de um lado, e, de outro, conflitos internos. Essa doutrina, que pode estar baseada em bons fundamentos, levou recentemente a conseqüéncias práticas na medida em que o Iraque invadiu em primeiro lugar um Estado vizi- nho mais fraco e depois passou a lanzar mísseis sobre Is­rael, um país distante e completamente á parte do conflito.

A coalizáo contra Hitler jamais teria ocorrido caso ele se contentasse em matar cidadáos de seu próprio país. Da mesma forma, ninguém teria enfrentado Stalin enquanto ele aterrorizasse somente a populado soviética. A Guerra Fria surgiu apenas quando ele se empenhou em levar o ter­ror para além de suas fronteiras.

A ética universalista nao consegue mover-se no campo de d iferenciales elementares como essa. Ela reivindica a participado militar ilimitada, a qualquer momento e em qualquer lugar. Mas essa divida nao será quitada jamais. Há muito tempo ultrapassou-se o limite daquilo que os gover- nos dos poderes intervencionistas em potencial sáo capazes de explicar politicamente á sua própria populado. A guer­ra na Iugoslávia mostrou que os europeus náo tém nem vontade nem capacidade de impor a paz. Mesmo os e u a ,

urna superpoténcia mundial, estáo sobrecarregados com o papel de policiais do universo. O sentimento de culpa, o di- nheiro e os enormes contingentes de soldados sáo ainda in­suficientes para extinguir as guerras civis do mundo.

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PRIORIDADES E ANTINOMIAS

Em 1931, um pesquisador genial de nome Kurt Gödel demonstrou a impossibilidade de se chegar a urna matemá­tica completamente livre de contradiçôes. Com isso ele se- pultou de vez a convicçào extremamente enraizada entre matemáticos de que é possível retirar-se do pántano da in- consistência à custa das próprias pernas. Se esse objetivo náo pode ser alcançado nem pelos lógicos mais refinados, como deverá ser possível resolver as permanentes antino­mias da ética mediante um conjunto simples de axiomas?

E chegado o momento de se despedir de fantasias oni- potentes. Com o tempo, ninguém, seja uma coletividade ou um individuo, poderá escapar de avaliar o grau de sua pró- pria responsabilidade e de determinar prioridades. (Talvez seja necessário explicar o que significa uma prioridade. Muitas pessoas acreditam ser mais tolas do que de fato sáo quando se deparam com um argumento que náo cabe em sua visáo de mundo. Portante: a palavra prioridade náo sig­nifica simplesmente ou isso ou aquilo, isto é, uma opçâo excludente entre uma coisa e outra. O que é necessário que aconteça primeiro? Onde posso aplicar minhas forças de modo mais eficaz? Quais opçôes sao as mais importantes? Isso basta com relaçâo á semántica. Está claro? Aquí termi­na a digressáo dirigida ás mentes refratárias.)

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Esse questionamento implica decisôes dificeis e desa- gradáveis de serem tomadas, e que contradizem fortes tradi- çôes ideológicas. Aquele que fala da relatividade e da limi- taçâo temporal das nossas possibilidades de açào vê-se imediatamente na berlinda rotulado de “relativista”. Mas se­cretamente todos sabem que é necessário preocupar-se an­tes de tudo com seus filhos, seus vizinhos e com as coisas que nos circundam de imediato. Mesmo o cristianismo falou sempre das coisas mais próximas e nâo das mais distantes.

A busca por uma limitaçâo da responsabilidade pode levar a bons resultados. Para isso existem modelos antigos como a adoçâo e o apadrinhamento à distância. Esses mo­delos revelam que nào se trata incondicionalmente de pro- ximidade física, para nào mencionar o mero parentesco, mas sobretudo de estabelecer uma relaçâo estreita entre aquele que presta a ajuda e aquele que a recebe. Isso per­mite nâo apenas a concentraçào de energia material e emo­cional. No lugar da abstraçâo surge uma relaçâo concreta. Toda tentativa de ajudar ou de ser ajudado traz consigo ine- gâveis conflitos com os quais se pode conviver desde que as partes se conheçam.

Mas o estabelecimento de prioridades possui também um lado obscuro, e seria desonesto nào mencionâ-lo. A pa- lavra triagevem do francés e significa “escolher”, “separar”. Esse conceito aparece na medicina de guerra do século xix. Após as grandes batalhas, os médicos estavam diante da questáo de como deveria se dar o tratamento dos feridos em condiçôes dificeis e perigosas de transporte, capacida- de limitada de alojamentos médicos e recursos insuficientes de tratamento. Impós-se de forma mais ou menos explícita a regra da triagem, calcada em uma escolha a partir de très categorías. Feridos leves eram tratados apenas superficial­mente e precisavam contar com suas próprias forças para a recuperaçâo. Feridos irrecuperáveis eram deixados à sua

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própria sorte. Tratamento médico eficaz era garantido ape­nas aqueles cuja necessidade era aguda ou que tinham boa perspectiva de cura. O dilema dos médicos e voluntários é evidente. Eles tinham que viver com o risco moral contido em qualquer decisao entre vida e morte. Situagóes seme- lhantes sao comuns na medicina intensiva e de transplante. Seria uma perversidade comparar o principio da triagem ao principio de selegáo fascista; pois aqui se trata de salvar vi­das e nao de aniquilá-las. Nao estáo á vista soluyóes univer- sais que possibilitem o tratamento indiscriminado de todos os necessitados. Pelo contrário, previsíveis sao a prolifera- £áo e o agravamento futuro das situagóes de emergéncia.

Em casos extremos revela-se a perturbadora desorien­tad o , com a qual se debatem todas as éticas atuais da res- ponsabilidade. Trate-se de ajuda humanitária, intervengáo política ou militar, desterro ou m igrado em massa das zo­nas de miséria, todas as opgóes imagináveis, queira ou nao queira, terminam seguindo a lógica da triagem. Também o gradualismo, o estabelecimento de prioridades, a limitado das responsabilidades, mesmo plenamente fundamenta­das, nao oferecem a saída do campo minado e servem ape­nas como recursos precários e provisorios. Contrapostos as promessas do universalismo, tais recursos oferecem apenas a vantagem de sua utilidade imediata e de prevenir contra a ilusáo.

Ninguém nega que a solidariedade universal seja um objetivo nobre. É admirável aquele que quer e que pode praticá-la. No entanto, as condiyóes específicas de cada so- ciedade mostraráo quanto tempo sua pretensao de estar ao lado do bem ilimitado pode conviver com a barbárie coti­diana. Os alemáes, por exemplo, difícilmente poderiam apresentar-se como avalistas da paz e campeóes mundiais dos direitos humanos, quando bandos delinqüentes e in- cendiários propagam día e noite o medo e o terror.

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Nao podemos responder pelo problema de Kashmir; sabemos muito pouco sobre as desavengas entre sunitas e xiitas, támeis e singaleses; o que deverá tornar-se Angola é urna questáo a ser discutida em primeira linha pelos pró- prios angolanos. E, antes de cairmos nos bracos dos bos­nios beligerantes, é preciso que se esgote a guerra civil em nosso próprio país. Para os alemáes deveria prevalecer o seguinte pensamiento: nossa prioridade nao é a Somália, mas Hoyerswerda e Rostock, Mölln e Solingen. Para a reso­lu t o desses problemas basta o alcance de nossas agöes, com esse propósito pode-se exigir a participado de nossos concidadáos, por esses problemas somos os próprios res- ponsáveis.

Mas nao é necessário ser alemáo e, sobretudo, nao é necessário falar inglés ou latim para saber o que significa: Hic Rhodus, hic salta! First things first. O fogo está em to­da parte diante de nossas próprias casas.

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MI LA GR ES TEMPORARIOS12

Nem todos estáo acometidos da demencia assassina e suicida. Nem todos desejam o desaparecimento dos outros ou de si mesmo. No dia da exaustáo absoluta, quando se ti- ver atingido o objetivo dos combatentes, quando portanto o país estiver em ruinas e os mortos sepultados, ai sim apa- recem os verdadeiros heróis da guerra civil. Eles chegam tarde. Sua aparigáo nao é heroica. Eles nao chamam a aten- gao e nao sao vistos ñas telas de tevé.

Em urna oficina improvisada sao produzidas próteses para os aleijados. Urna mulher procura trapos para serem usados como fraldas. De pneus furados a bala sao feitos sa- patos. O primeiro encanamento é improvisado, o primeiro gerador cometa a funcionar. Contrabandistas se encarre- gam de fornecer combustível. Um carteiro aparece. A máe que perdeu seus filhos coloca urna placa feita á mao dian­te de urna cabana e inaugura o único café visível na imen- sidáo do lugar. O bispo atrai mercenarios perdidos para dentro da choupana ao lado da igreja e monta uma oficina mecánica. Inicia-se a vida civil. Náo há como evitar, até a próxima vez.

Mesmo a guerra civil de pequeñas dimensóes, a guer­ra civil molecular, náo dura eternamente. Após a batalha de rúa, vem o vidraceiro; após o saque aos bens públicos, dois homens com alicate e conectores ligam novamente o tele-

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fone na cabine devastada. Médicos de emergéncia traba- lham durante toda a noite ñas clínicas abarrotadas para sal­var a vida de sobreviventes.

A persistencia desses homens parece um milagre. Eles sabem que nao podem consertar o mundo. Apenas um pe­queño canto, um telhado, um ferimento. Sabem até que os assassinos retornaráo na semana seguinte ou em uma déca­da. A guerra civil nao dura para sempre, mas ameaga come- gar continuamente, a todo instante.

Tentou-se fazer de Sísifo um herói existencial, um out- sider e rebelde de dimensóes trágicas sobrenaturais, cir­cundado por um brilho diabólico. Talvez isso seja falso. Talvez Sísifo seja algo muito mais importante, uma figura do dia-a-dia. Os gregos interpretavam seu nome como um superlativo de sophos, “astuto”; Homero chama-o, inclusi­ve, de o mais astuto entre os homens. Ele náo era filósofo, mas um ser ardiloso. Conta-se que conseguiu encantar a Morte, pondo um fim á extingáo voluntária da vida, ao ato de matar. Até que Ares, o deus da guerra, libertou a Morte e entregou-lhe o próprio Sísifo. Mas este a enganou uma segunda vez e retornou á Terra. Imagina-se que viveu por muitos anos.

Mais tarde, como punigáo por sua compreensáo hu­mana, foi condenado a empurrar uma enorme pedra para o topo de uma montanha, continuamente. Essa pedra é a paz.

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REFERENCIAS E A GRADECIMENTOS

Os dados sobre participares no mercado mundial e expor­tado de armamentos foram extraídos das estatísticas do g a t t e do siPRi. Citei Hannah Arendt a partir da terceira parte de sua obra Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft ( The origins of totali­tarianism L4s origens do totalitarismo, Nova York, 1951, ed. ale­ma, 1955). O depoimento do assistente social francés foi publica­do por Stephan Wehowsky no Süddeutschen Zeitung, ed. de 21-22/11/1992; o artigo tem o título de “Lust an der Randale” [o prazer da vadiagem]. A expressäo reductio ad insanitatem é de Robert Hughes. Informales mais precisas sobre a questäo Auf Kosten der Dritten Welt? [Äs custas do Terceiro Mundo?] podem ser obtidas no ensaio de mesmo nome de Siegfried Kohlhammer (Göttingen, 1993). O livro injustamente esquecido de Frantz Fa­nón é Les damnés de la terre [Os condenados da terra] (Paris, 1961, ed. alemä: Die Verdammten dieser Erde, Frankfurt am Main, 1966). A mais importante interpretado recente da dialética en- contra-se em Alexandre Kojéve: Introduction ä la lecture de He­gel (Paris, 1947, ed. alemä: Hegel. Eine Vergegenwärtigung seines Denkens, Stuttgart, 1958). A citado do Leviathan de Thomas Hobbes está localizada no capítulo 21. Sobre a concepd° de for­taleza e de novas fronteiras há urna boa publicado de Jean-Chris- tophe Rufin: L’empire et les nouveaux barbares (Paris, 1991, ed. alemä: Das Reich und die neuen Barbaren, Berlim, 1992). Existe uma edido alemä da reportagem de Bill Buford Among the thugs (Londres, 1991) com o título de moda de Geil auf Gewalt [Tesäo

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pela violencia] (Munique, 1992). [A edigäo brasileira, Entre os vándalos, é de 1992, da Companhia das Letras.] A apología do he- rói de revólver de André Breton pode ser lida no Second manifes­te du surrealisme (Paris, 1930, ed. alemä: Manifeste des Surrealis­mus, Hamburgo, 1968). O Petersburger Tagebuch [O diario de Säo Petersburgo] de Sinaida Hippius foi publicado em alemäo com o título Im Reich des Antichrist [No império do Anticristo] (Munique, 1921, Berlim, 1993). Kurt Gödel publicou primeira- mente seu tratado “Über formal unentscheidbare Sätze der Princi­pia Mathematica” [Premissas formalmente diferenciáveis dos prin­cipios da matemática] no volume 38 do Monatshefte fü r Mathematik und Physik (1931). Hoje fala-se até de “matemáticas locáis” (cf. J. L. Bell, “From absolute to local mathematics”, Synthese, vol. 69, 1986). Agradego a Robert Nozick (Harvard) as- sim como a Gabriele Goettle e Karl Schlögel (Berlim) pelas essen- ciais sugestöes e reflexöes.

O presente texto foi exposto parcialmente em junho de 1993 em Osnabrück como agradecimento pelo Premio da Paz que re- cebi dessa cidade. Uma edifäo prévia foi publicada no Spiegel e em diversos jomáis europeus.

HME

t.

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A EUROPA EM RUÍNAS

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Poucos dias antes de deixar Luanda, amigos americanos me levaram para jantar num restaurante do mercado ne­gro. Comemos em mesas na calcada, numa pequeña área rodeada por uma cerca. Toda a clientela parecía compos­ta de gente que lucrava de algum modo com o mercado negro. Sentamo-nos bem perto da cerca que nos separa- va da rúa e, estando eu de costas e absorvido na conver­sa, nao percebi de inicio o grande grupo de pessoas que se tinha reunido atrás de nós e estendia as máos para ten­tar pegar coisas em nossos pratos. Mas a gerencia do res­taurante logo mandou um seguranza, que derrubou uma velha senhora com um soco na cabera e espantou a tur­ba. Alguns desapareceram, enquanto outros, sempre mantendo uma certa distancia, continuavam a olhar fixa- mente para os freqüentadores, em silencio.

Aquí em Beirute, há refugiados deitados em cada de- grau, e tem-se a impressáo de que nao ergueriam os olhos nem mesmo se um milagre ocorresse no meio da praga, táo certos estáo de que nenhum milagre há de acontecer. Se alguém lhes dissesse que algum outro país além do Lí­bano estava disposto a aceitá-los, comegariam a recolher seus caixotes, sem acreditar de verdade. A vida que le- vam é irreal, uma espera sem qualquer perspectiva, e nao se apegam mais a ela: a bem dizer, é a própria vida que

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se aferra a eles, urna vida fantasmagórica, um animal in- visivel que sente fome e os arrasta pelas estaçôes ferro- viárias em ruinas, dia e noite, chova ou faça sol; ela res­pira nas crianças que dormem estendidas no meio do entulho, com as mâos entre os braços ossudos, enrodi- lhadas feito embriôes no ventre materno, como se dese- jassem ansiosas voltar para là.

A guerra em El Salvador jà dura vários anos, sem qual- quer sinal de paz à vista. Em diversas ocasióes, pareceu que o governo conquistara urna vitória decisiva; mas os guerrilheiros sempre tomam a brotar, sem perder muito de sua força. Devemos ter em mente, com a máxima cla­reza, que a liderança do movimento contava com cerca de 8 mil homens quando a guerra começou; hoje, embo- ra as baixas tenham sido consideráveis entre mortos e capturados, eles somam mais de 20 mil.

O que é perturbador nesta área do Norte do Sri Lanka nâo é que tenhamos medo de ser molestados — pelo me­nos nâo à luz do dia — e sim a certeza de que pessoas co­mo nós, caso fossem submetidas a este tipo de vida, su- cumbiriam em no máximo très dias. Percebemos com muita clareza que até mesmo uma vida como esta tem suas próprias leis, e que levaríamos anos para aprendé- las. Um caminháb carregado de policiais: espalham-se imediatamente, alguns ficam parados e sorriem, enquan- to eu olho para eles sem a menor idéia do que esteja acon- tecendo. Quatro rapazes e très moças sào embarcados no caminhào, onde se acocoram entre jovens que já foram recolhidos em outros lugares. Indiferentes, impenetrá- veis. Os policiais portam capacetes, além de pistolas au­tomáticas, e portanto tém autoridade, mas nenhum co- nhecimento. Os jornais trazem uma coluna diária sobre ataques nas ruas, vez por outra sâo encontrados corpos nus e os assassinos geralmente vém do outro lado. Distri­tos inteiros sem uma única luz acesa. Uma paisagem de

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montanhas de tijolos, por baixo délas os soterrados e aci- ma délas as estrelas cintilantes; nada se move ali, além dos ratos.

Noticias sobre o Terceiro Mundo, do tipo que lemos todas as manhás na hora do café. No entanto, os nomes dos lugares sao falsos. As locacóes envolvidas nao sao Luanda e Beirute, El Salvador ou Trincomalee; sao Roma e Frank- furt, Atenas e Berlim. E apenas 45 anos nos separam de condigóes que nos acostumamos a considerar africanas, asiáticas ou latino-americanas.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a Europa estava reduzida a destrozos, e nao apenas no sentido físico; tam- bém parecia arruinada em termos políticos e moráis. E nao era apenas aos alemáes derrotados que a situagáo parecia sem saída. Quando Edmund Wilson esteve em Londres no mes de julho de 1945, encontrou os ingleses num estado de depressáo coletiva. A atmosfera da cidade lembrou-lhe o desalentó de Moscou: “Como tudo passa a parecer vazio, insalubre e sem sentido no momento em que a guerra aca­ba! Só o que nos sobra é a vida empobrecida e humilhan- te de que o avanzo contra o inimigo desviava nossos espí- ritos. Já que todos os nossos esforijos se voltavam para a destruifáo, nao pudemos construir em nosso país nenhum lugar onde possamos refugiar-nos em meio á nossa pró- pria ruina”.

Ninguém se atrevía a crer que o continente devastado ainda pudesse ter qualquer futuro. No que dizia respeito á Europa, tudo indicava que a história do continente tinha chegado ao fim com um ato absurdo de autodestruigáo, desencadeado e concluido pelos alemáes com urna energía selvagem: “Eis o que existe”, escreveu Max Frisch na pri­mavera de 1946, “a reiva crescendo no interior das casas e os dentes-de-leáo no interior das igrejas. Pode-se até ima­

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ginar que tudo isto poderia continuar a crescer, que urna floresta poderia desenvolver-se cobrindo nossas cidades, lenta e inexoravelmente, prosperando sem a ajuda de máos humanas, um silencio de cardos e musgo, urna térra sem historia, apenas o chilreio dos pássaros, a primavera, o verao e o outono, o sopro dos anos, que nao há mais nin- guém para contar”.

Se, na década de 40, alguém contasse aos habitantes das cavernas de Dresden ou de Varsóvia como seria sua vi­da em 1990, todos achariam que era louco. Para as pessoas de hoje, porém, seu próprio passado tornou-se igualmente inimaginável. Faz muito tempo que o reprimiram e esque- ceram, e falta aos mais jovens a imaginado e o conheci- mento que lhes permitiriam formar urna idéia de como fo- ram aqueles tempos distantes. A cada ano que passa, fica mais difícil imaginar as condifóes do nosso continente ao fim da Segunda Guerra Mundial. Os romancistas, com as excegóes de Heinrich Boíl, Primo Levi, Hans Werner Rich- ter, Louis-Ferdinand Céline, Curzio Malaparte e poucos ou- tros, capitularam diante do tema; a chamada Trümmerlite- ratur— a literatura das ruinas — nao cumpriu exatamente o que prometía.

Os velhos jomáis da tela exibem imagens monótonas de destruifáo, e a narragao é composta de frases ocas; os filmes nao nos dao qualquer indicagáo do estado interior dos homens e mulheres que atravessavam as cidades de­vastadas. A literatura de memorias produzida mais tarde ca­rece de autoridade, em parte porque os autores tendem quase sempre á autojustificagáo e auto-acusayáo. Mas há outra objegáo de maior peso: ela nao langa dúvidas sobre a integridade desses autores, e sim sobre sua perspectiva. Quando se voltam para o passado, eles perdem precisa­mente aquilo que mais deveria importar: a coincidencia do observador com aquilo que ele examina. As melhores fon-

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tes tendem a ser os relatos de testemunhas oculares con­temporáneas.

O estudo desses relatos é, contudo, urna experiencia estranha. Urna das peculiaridades do período pós-guerra é urna ignorancia desconcertante, um estreitamento dos ho­rizontes inevitável sob condigóes de vida extremas. Na me- lhor das hipóteses, o que se constata é urna clara falta de conhecimento do mundo, fácilmente explicável pelos anos de isolamento. John Gunther escreveu em Varsóvia sobre um jovem soldado com quem travou conversa numa noite de veráo de 1948: “Com ele nao havia rodeio. Sabia exata- mente o que a Polonia sofrera e o que ele próprio sofrera. Sua ignoráncia do mundo exterior, porém, era considerá- vel. Nunca tinha encontrado um americano antes. Quería saber se Nova York tinha sido táo kaputt pela guerra quan- to Varsóvia”.

Em outros lugares, os americanos eram encarados co­mo se fossem marcianos, e tudo o que traziam consigo era tratado com urna reverencia que lembrava os cargo cults da Polinésia. Naqueles anos, os europeus tinham atitudes se- melhantes as encontradas no Terceiro Mundo. Qualquer um que só pense na próxima refeifáo, que seja forjado a improvisar um teto sobre a cabera, geralmente carece da vontade e da energía necessárias para manter-se a par dos fatos e bem informado a seu respeito. Além do mais, havia a ausencia da liberdade de ir e vir. Milhóes de pessoas es- tavam em movimento, mas apenas para salvar a própria pe­le. As viagens, no sentido corrente da palavra, eram total­mente impossíveis.

A pobreza das fontes, porém, nao se deve apenas a causas externas. Nos primeiros anos depois da guerra, as conseqüéncias a longo prazo das ditaduras fascistas torna- vam-se evidentes em toda parte. Isso ocorreu sobretudo na Alemanha, mas também podia ser observado em outros lu­

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gares (houve colaboracionistas em todos os países ocupa­dos). E é exatamente por isso que os individuos diretamen- te envolvidos dáo os piores testemunhos. Os europeus se refugiaram numa amnésia coletiva. A realidade nao era apenas ignorada; era negada por completo. Com um misto de letargía, desprezo e autocomiserafáo, os europeus re- grediram a uma espécie de segunda infancia. Qualquer um que se deparasse pela primeira vez com esta síndrome fica- va atónito; parecía uma forma de insanidade moral. Quan- do visitou a Renánia em abril de 1945, a jornalista america­na Martha Gellhorn ficou enfurecida, na verdade chocada, com as afirmacóes dos alemáes que entrevistou:

Ninguém é nazista. Ninguém nunca foi. Pode ser que houvesse alguns nazistas no próximo povoado e, pen­sando bem, aquela cidade a vinte quilómetros daqui era um verdadeiro foco do nazismo. Aqui entre nós, para lhe dizer a verdade, havia muitos comunistas aqui. Sempre fomos conhecidos como vermelhos. Oh, os judeus? Bem, nao havia muitos judeus nessa vizinhanfa. Dois, talvez seis. Eles foram levados embora. Eu escondí um judeu por seis semanas. Eu escondí um judeu por oito semanas. (Eu escondí um judeu, ele escondeu um judeu, todo mundo aqui escondía judeus.) Nao temos nada contra os judeus; sempre nos demos muito bem com eles. Estamos faitos deste governo. Ah, como nós sofremos. As bom­bas. Semanas vivendo nos poróes. Bem-vindos sejam os americanos. Nao temos medo deles; nao temos nenhuma razáo para temer. Nao fizemos nada de errado; nao so­mos nazistas.

Achamos que estas palavras deviam ser musicadas. Ai os alemáes poderiam cantar este refráo, e ele ficaria aín­da melhor. Todos os alemáes falam assim. Ficamos sem saber como foi que o detestado governo nazista, a que ninguém obedecía, conseguiu sustentar-se por cinco

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anos e meio. É claro que nao existe na Alemanha ho- mem, mulher ou crianza que tenha sido favorável á guer­ra nem por um minuto sequer, segundo dizem. Nós, va- zios de expressáo e cheios de desprezo, escutamos essa historia sem qualquer simpatía e certamente sem respei- to. Ver uma nagáo inteira passando a culpa adiante nao é um espetáculo muito instrutivo.

Mais de dois anos depois, outra observadora estrangei- ra, a jornalista Janet Flanner, chegou a conclusóes seme- lhantes:

A nova Alemanha encara com amargor todos os outros habitantes da Terra e, curiosamente, está muito satisfeita consigo mesma. Explodindo em queixas sobre sua fome, seus lares perdidos e outros sofrimentos, contempla sem interesse ou compaixáo as dores e perdas que impós a outros. Ao mesmo tempo, espera e aceita, geralmente com reparos em lugar de agradecimentos, a caridade das na^óes que tentou destruir... A frase que mais se ouve ho- je em Berlim é: “Isso foi durante a guerra, mas agora esta­mos em paz”. Esta afirmativa críptica significa, em tradu- fáo livre, que ninguém se sente responsável pela guerra, a qual é vista como um ato da historia, e que para eles os problemas e as confusóes da paz sao culpa dos Aliados. Ninguém aqui menciona mais o nome de Hitler. Apenas dizem, sombríos: “Früber war es bessef (as coisas iam melhor antes), querendo dizer nos tempos de Hitler. Só poucos alemáes parecem lembrar que, depois das ocupa­r e s de 1940, alguns deles tiveram o bom senso de criar o slogan: “Aproveitem a guerra. A paz será terrível”. E é.

Isso basta para dar uma idéia do estado da consciencia dos alemáes. Mas outros europeus nao estavam menos en­gañados. Conta John Gunther: “Perguntei a um alto políti­co grego qual era a solugáo, se é que existia, e ele respon-

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cleu numa palavra: guerra’. De fato, muitos gregos conser­vadores acreditam que só podem ser salvos por urna guer­ra declarada entre os Estados Unidos e a Uniáo Soviética; desejam ativamente a guerra, por mais horrível que isso possa parecer, e nao fazem qualquer esforzó para escon- dé-lo. Perguntei ao meu amigo: ‘E o senhor acha que vai haver urna guerra?'. E ele respondeu: A Europa está viven- do na anarquia. Cem milhóes de pessoas foram escraviza- das. A guerra tem que acontecer. É preciso haver urna guer­ra, senáo perderemos tudo”.

Qualquer pessoa que recorra as opinióes publicadas na esperanza de obter um quadro mais claro da situayáo na Europa do pós-guerra ficará ainda mais frustrada. É virtual­mente impossível encontrar veredictos equilibrados, análi- ses inteligentes ou reportagens convincentes nos jornais e revistas dos anos de 1945 a 1948. E nao apenas por causa das restrifóes impostas pelas potencias de ocupa^áo. A dis- posi<jáo de espirito dos jornalistas, sua autocensura interna, teve um papel muito mais importante. Também neste pon­to os alemaes se destacavam. Em vez de transmitir um tes- temunho sereno dos fatos, os intelectuais em geral preferi- ram refugiar-se em abstragóes. É va a procura de urna grande reportagem. O que se pode encontrar, além de ge­neralizares filosóficas sobre o tema da culpa coletiva, sao infindáveis invoca^óes da tradigáo ocidental. É curioso o quanto se fala de Goethe, do humanismo, do descuido da existencia e da “idéia de liberdade”. Fica-se com a impres- sáo de que este idealismo desbotado nao passa de uma ou- tra forma de inconsciencia. É evidente que a devastagáo nao tinha afetado apenas o cenário físico, mas também as faculdades de observa gao. A Europa como um todo, póde­se dizer, “levara uma bela pancada na cabera”.

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Por todas essas razóes, nao se pode confiar muito no testemunho dos individuos diretamente afetados. Se al- guém quiser obter um quadro razoavelmente preciso das condifóes ¡mediatamente posteriores á guerra, precisa vol- tar-se para outras fontes. Tudo parece indicar que a fonte mais confiável que temos é o olhar de alguém de fora. E os relatos mais agujados foram produzidos pelos autores que acompanhavam os exércitos vitoriosos dos Aliados. Entre eles se destacam os melhores repórteres dos Estados Uni­dos, jornalistas como Janet Flanner e Martha Gellhorn, e es­critores como Edmund Wilson, que nao se achavam supe­riores demais para trabalhar na imprensa. Todos se filiam á grande tradi^áo anglo-saxá da reportagem literaria — na Europa continental, até hoje, nada foi produzido que se lhe compare. Outras fontes valiosas sao produto do acaso, co­mo os relatórios confidenciais de um editor americano que trabalhava para o servido secreto dos Estados Unidos ou as anota^óes de refugiados que tentaram o retorno para o Ve- lho Mundo. Mais tarde, escritores de países poupados pela guerra, como o suífo Max Frisch e o romancista sueco Stig Dagerman, também deram suas contribuiyóes.

Todos eles vinham de um mundo que era semelhante ao nosso: ordenado, regular, caracterizado pelas mil e urna coisas que consideramos normáis numa sociedade civil operante. Por isso mesmo, a sensa^áo de choque que tive- ram diante da catástrofe européia foi maior ainda. Mal con- seguiam acreditar em seus olhos ao se deparar com as ce­nas brutais, extravagantes, aterradoras e comoventes que encontraram em Paris e Nápoles, ñas aldeias de Creta e ñas catacumbas de Varsóvia. É o olhar do estrangeiro que pode nos fazer perceber o que ocorria na Europa; porque ele nao se concentra numa análise ideológica restritiva, e sim nos detalhes físicos mais reveladores. Enquanto os principáis artigos e polémicas do período apresentam sempre um es-

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tranho ranço, esses relatos de testemunhas oculares preser- vam seu frescor.

Os especialistas na percepçâo produzem melhor quan- do generalizam menos, quando nâo censuram as contradi- çôes fantásticas do mundo caótico em que ingressaram, apresentando-as da forma como as encontram. Max Frisch conclui suas anotaçôes sobre Berlim citadas acima com uma observaçâo lacónica que silencia qualquer debate acerca do estado da civilizaçâo: “Uma paisagem de monta- nhas de tijolos, por baixo délas os soterrados e acima délas as estrelas cintilantes; nada se move ali, além dos ratos. — Noite no teatro: ¡figénia".

Um grau francamente espantoso de antevisao emerge dos textos desses estrangeiros. Ñas capitais das poténcias vitoriosas da época, funcionavam comissóes de planeja- mento compostas de políticos, economistas e cientistas so- ciais com a finalidade de preparar relatónos sobre os futu­ros desenvolvimentos da Europa. É espantoso descobrir que os relatos dos melhores jornalistas, que perambulavam pelo continente com grande independéncia, confiando ape­nas em seus olhos e ouvidos, sao muito superiores ás aná- lises desses especialistas. Um bom exemplo é a reportagem escrita por Martha Gellhorn em julho de 1944, momento em que nao havia em Washington ninguém que já pensasse na Guerra Fría. Num povoado à beira do Adriático, no meio de um duelo de artilharia, Gellhorn travou conversa com sol­dados de uma unidade polonesa que combatía os alemáes:

Eles viajaram muito desde que deixaram a Polonia. Intitu- lam-se os Lanceiros dos Cárpatos porque, em sua maio- ria, fugiram da Polonia atravessando aquelas montanhas. Faz quase cinco anos que deixaram seu país. Por très anos e meio, este regimentó de cavalaria formado na Si­ria lutou no Oriente Médio e no Deserto Ocidental. Em ja-

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neiro passado, voltaram para seu continente europeu através da Italia, e foi o Corpo Polonés, em que este regi­mentó blindado lutou como infantaria, que finalmente to- mou Cassino em maio. Em junho come^aram seu grande avanzo ao longo do Adriático, e a presa, Ancona — em que este regimentó foi o primeiro a entrar — , ficou para trás de nós.

Ainda falta um longo caminho até a Polonia, até os grandes montes Cárpatos, e cada milha do caminho foi conquistada com grande bravura. Mas agora eles nao sa- bem o que váo encontrar quando chegarem em casa. Combatem o inimigo que tém na sua frente, e o fazem de maneira soberba. E temem de todo o coragáo um aliado que já está instalado em sua pátria, pois nao acreditam que a Rússia vá renunciar á Polonia depois da guerra-, te­mem acabar sendo sacrificados nesta paz, como ocorreu com a Tchecoslováquia em 1938. É preciso lembrar que praticamente todos esses homens, qualquer que seja sua patente, classe ou condifáo económica, cumpriram pena em alguma prisáo alema ou russa durante esta guerra. É preciso lembrar que, por cinco anos, nao tiveram qual­quer noticia de suas familias, das quais muitos membros ainda se encontram presos na Rússia ou na Alemanha. E preciso lembrar que a historia desses poloneses só co- nhece 21 anos de liberdade nacional, acumulando urna longa e dolorosa memoria de dominio estrangeiro.

Assim, conversamos sobre a Rússia e eu tentei dizer- lhes que seus medos tinham de ser infundados, ou entáo nao haveria paz no mundo. Que a Rússia haveria de apre- sentar na paz a mesma grandeza dos tempos de guerra, e que o mundo precisava reconhecer o valor e o sofrimen- to dos poloneses, dando-lhes a liberdade de reconstruir e melhorar a sua pátria. Tentei dizer que eu nao podia acre­ditar que esta guerra, travada para defender os direitos do homem, vá ignorar no final os direitos dos poloneses.

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Mas nao sou polonesa; venho de um grande país livre e falo com o otimismo dos que estáo sempre a salvo. E lem- bro do soldado alto e gentil de 22 anos que dirigía meu jipe um dia, explicando calmamente que seu pai morrera de fome num campo alemáo de prisioneiros, que sua máe e sua irmá estavam havia quatro anos sem dar noti­cias num campo de trabalho na Rússia, que seu irmáo es- tava desaparecido e que ele próprio nao tinha profissáo porque entrara para o exército aos dezessete anos e as- sim nao tivera tempo de aprender nada. Ao me lembrar desse rapaz e de todos os outros que conheci, com suas historias espantosas de provafao e exilio, pareceu-me que nenhum americano tinha o direito de falar com os poloneses, já que nunca sequer passamos perto de um sofrimento comparável.

Os editores da revista Collier’s, para a qual Martha Gel- lhorn trabalhava, recusaram-se a publicar esta reportagem porque as observagoes proféticas dos poloneses sobre a Uniáo Soviética, o mais importante aliado dos Estados Uni­dos á época, nao lhes eram convenientes.

O que torna o trabalho desses repórteres tao esclare- cedor nao é que eles dispusessem de urna objetividade su­perior, mas justamente o contrario: atinham-se a seu ponto de vista radicalmente subjetivo, mesmo — e sobretudo — quando se enganavam. Um dos custos da proximidade ¡mediata é que a pessoa acaba infectada pelo que a cerca, nao tendo como elevar-se acima dos acontecimentos. As questóes mais sensíveis no contexto dos anos do pós-guer- ra emergem assim com maior clareza: as fricfóes entre in­gleses e americanos, a fúria dos vitoriosos ante a impudén- cia pomposa dos italianos, e acima de tudo o ódio aos alemaes, que em alguns observadores chega a assumir a forma de asco e desejo de vinganga. Quem quer que tives- se procedido como os alemaes e continuasse a proceder

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como eles — ou seja, sem qualquer remorso — nao podía esperar um tratamento justo; quase todos os representantes das nagóes vitoriosas estavam convencidos disso, e nao é de modo algum supérfluo lembrar as expressóes extrema­das de sentimentos durante aqueles anos.

Nao admira que os observadores originários de países neutros apresentem avaliagóes mais sofisticadas. Nao que possam ser acusados de urna simpatía especial pelos ale- máes; conseguem, porém, mais que os vitoriosos, reconhe- cer as ambigüidades de seu próprio papel. Depois de urna visita á Alemanha no outono de 1946, o sueco Stig Dager- man escreveu:

Se pretendermos arriscar algum comentário sobre a dis- posi^áo amarga em relagáo aos Aliados, temperada de autodepreciagáo, apatía e com parares com as desvanta- gens do presente — todas evidentes para qualquer visi­tante naquele outono sombrío — é necessário ter em mente toda urna série de ocorréncias particulares e de condi<jóes físicas. É importante lembrar que as afirma- góes sugerindo a insatisfagáo ou até a desconfianza para com a boa vontade das democracias vitoriosas nao eram feitas num quarto sem ar ou num palco teatral ressonan- te de réplicas ideológicas, mas em poróes muito concre­tos das cidades de Essen, Hamburgo ou Frankfurt. Nosso quadro outonal da familia encerrada num poráo alagado também comporta um jornalista que, cuidadosamente equilibrado em cima de tábuas lanzadas por sobre a água, entrevista a familia para saber suas opinióes acerca da democracia recém-instalada em seu país, perguntan- do-lhes quais sao suas esperanzas e ilusóes e, acima de tudo, se a familia vivía melhor nos tempos de Hitler. A resposta que o visitante entáo recebe tem o seguinte re­sultado: curvado de raiva, náusea e desprezo, o jornalis­ta abre caminho as pressas para fora daquele tugúrio mal

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cheiroso, salta em seu carro inglés ou em seu jipe ameri­cano e meia hora depois, junto a uma dose de bebida ou a um bom copo da verdadeira cerveja alemà, no bar do hotel freqüentado pela imprensa, compóe um artigo so­bre o tema “O nazismo ainda vive na Alemanha”.

Cinqüenta anos depois da catástrofe, a Europa se en­tende mais do que nunca como um projeto comum, mas ainda está longe de ter formulado uma análise abrangente de seus primordios nos anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial. A memoria do período é incom­pleta e tacanha, nos casos em que nao cedeu totalmente à repressâo ou à nostalgia. E isso nào ocorre apenas porque as pessoas estivessem absorvidas em sua própria sobrevi- vência e mal se incomodassem com o que acontecía ao la­do délas; ocorre também porque relutam, hoje, em falar so­bre os esqueletos ocultos no armário. Preferimos tratar do futuro promissor da Comunidade Européia ou da abertura da Europa Oriental a lembrar aqueles tempos táo desagra- dáveis, em que ninguém se disporia a arriscar um níquel apostando no renascimento de nosso continente. Uma es- tratégia um tanto fatal, porque em retrospecto tudo indica que foi nos anos 1944-8 que, sem que os protagonistas sus- peitassem, plantaram-se as sementes nao só dos futuros su- cessos como também dos futuros conflitos.

Uma bomba de alto teor explosivo é uma bomba de al­to teor explosivo, o inchaço da fome nao faz distinçâo en­tre pretos e brancos ou justos e injustos, mas nem o poder de destruiçâo das forças aéreas e nem a miséria do pos­guerra foram capazes de homogeneizar a Europa e eliminar suas diferenças. Essas diferenças nao eram visíveis na terra queimada, mas permaneceram em hibernaçâo na cabeça das pessoas. As sociedades européias eram como cidades que foram destruidas, mas se preservaram plantas detalha-

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das de sua construgáo e todos os registros de imóveis; seus diagramas invisiveis de circuitos e instalares, os projetos de suas redes, sobreviveram á destruido, com toda a varie- dade original. As diferengas ñas tradigóes, ñas capacidades e ñas mentalidades tornaram a emergir. E as tentativas de ressurreigáo foram correspondentemente diversas.

Como escreveu Norman Lewis em sua reportagem de 1944 sobre Nápoles:

É espantoso testemunhar a luta desta cidade táo despeda­zada, táo faminta, táo desprovida de todas as coisas que justificam a existencia de urna cidade, para se adaptar ao colapso que a reduziu a condigoes que devem asseme- lhar-se á vida na Idade das Trevas. As pessoas vivem acampadas como beduinos em desertos de tijolo. Há pouca comida, pouca água, nada de sal e nem de sabáo. Muitos napolitanos perderam tudo o que possuíam, in­clusive quase todas as roupas, nos bombardeios, e vi es- tranhas combinagóes de vestimentas pelas rúas, inclusive um homem vestindo urna antiga casaca, calcas de caga e botas do exército, e várias mulheres usando trajes femini- nos que podem ter sido feitos de cortinas. Nao há auto- móveis, mas carrosas as centenas, e algumas carruagens antigas como caleches e faetontes puxadas por cavalos magros. Hoje, em Posilippo, parei para observar o des- membramento metódico dos destrozos de um trator ale- máo por jovens que se afastavam dele como formigas obreiras, carregando pedamos de metal de todas as for­mas e tamanhos. A cinqüenta metros dali, urna mulher bem vestida com urna pluma no chapéu agachava-se pa­ra ordenhar urna cabra. Á beira-mar, mais abaixo, dois pescadores amarraram com cordas várias portas recupe­radas das ruinas, empilhando seu equipamento sobre elas e preparando-se para zarpar. Inexplicavelmente, nao é permitido que barcos de pesca saiam ao mar, mas a

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proclamaçào nào diz nada sobre jangadas. Todos impro­visan! e adaptam.

As atitudes que Lewis descreve ainda sao característi­cas da populaçâo do Sul da Itália até os dias de hoje: urna inventividade que sabe como se aproveitar de qualquer abertura, um parasitismo de urna energía heroica, urna dis- posiçâo incansável de tirar partido de um mundo hostil. Mais ou menos na mesma ocasiáo, as prioridades dos fran­ceses eram muito diferentes. Em fevereiro de 1945, Janet Flanner escrevia:

A melhor noticia aquí é a resisténcia infinita dos france­ses enquanto seres humanos. Diante de suas dificulda- des, os parisienses sâo mais educados e pacientes do que eram em tempos de prosperidade. Embora nào tenham sabâo que faça espuma, tanto os homens quanto as mu- lheres emanam um cheiro civilizado quando os encontra­mos no metro, em que todos viajam pois nào há ônibus nem táxis. Tudo aqui é substituto de alguma outra coisa. As mulheres que nào sao arrumadas, magras e puídas tém urna aparéncia arrumada, magra e chique quando fa- zem estalar os saltos-plataforma de seus sapatos de ma- deira — substituta do couro — que soam como cascos de cavalo. Seus casacos de ombros largos e um tanto surra- dos de pele de carneiro — substituta dos tecidos de là que os nazistas preferiam para seu próprio consumo — foram comprados no mercado negro très invernos atrás. As midinettes de Paris, para cuja imutável alegría nào existe substituto na terra, ainda usam seus turbantes acol- choados modelo Carlos x, fantásticamente altos e feitos em casa. As calças dos homens sáo surradas, porque nào podem ser reformadas em casa. Os jovens intelectuais dos dois sexos andam pela rua de roupas de esqui. Sáo os trajes que a resisténcia usava quando combatía e se

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congelava ao ar livre nos maquis, e isso ditou a moda dos estudantes da Sorbonne.

As normalidades mais sérias da vida parisiense tradicio­nal seguem existindo em forma reajustada. As lojas de do­ces convidam a freguesia a entrar e se inscrever para re- ceber os pralinés de amêndoas, o doce convencional servido nos batizados franceses, mas é preciso exibir um certificado médico jurando que você e sua mulher estào realmente esperando um filho. Os alegres grupos de jo- vens convidados que podem pagar seguem para o ban­quete de casamento apertados dois a dois em vélo-taxis, carrinhos de aluguel puxados a bicicleta que custam cen­tenas de francos a hora. Outra noite, esta sua correspon­dente viu um casai de noivos mais modestos iniciando sua vida comum no metrô. Destacavam-se dentre os de- mais passageiros da plataforma de Odéon, o noivo em seu smoking alugado com urna flor na boutonnière, a noi- va toda de branco — isto é, urna capa de chuva branca, botas brancas de borracha, um suéter e urna saia brancos, um turbante branco e um grande ramalhete branco e fora de moda. Estavam de máos dadas. Soldados americanos do outro lado da linha gritavam-lhes votos de boa sorte.

É claro que estas descriçôes também refletem os pre- conceitos e idées reçues do observador. Mas esta interpre- taçào nâo basta para dar conta do que mais importa. E isso fica especialmente claro na matéria de John Gunther que apresento a seguir. Ela contraria praticamente todos os cli­chés sobre os poloneses.

Este vendaval concentrado de horror puramente inútil transformou Varsóvia em Pompéia. Ouvi um polonés sé- rio dizer: “Talvez alguns gatos possam ter sobrevivido, mas certamente nenhum cachorro”. Depois da libertaçào, no inicio de 1945, o governo polonés tomou a decisáo heroica de reconstruir.

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Todo polonés que eu encontrava exibia urna esperan­za quase violenta. “Está vendo aquilo?” Um ministro do gabinete me apontou algo que lembrava urna ravina atra- vancada. “Dentro de vinte anos, será nossos Champs Ely-sées.”

Particularmente impressionante é [o trabalho de re­construyo] na Cidade Velha, quase tao destrocada quan- to o gueto. Uma pilha rasa de tijolos é tudo o que resta do Hotel Angelski, onde Napoleáo costumava hospedar­se. Os tijolos velhos sao usados ñas novas estruturas, o que produz um efeito enlouquecido de colcha de reta- lhos. Centenas de casas só foram reconstruidas pela me- tade; assim que um único aposento da casa fica habitá- vel, as pessoas mudam-se para lá. Nunca vi coisa mais impressionante do que a maneira como algumas pe^as de madeira sao usadas para fechar uma pilha de pedras ou tijolos, criando um aposento ou nicho para uma fami­lia em cima dos destrozos. Uma das pontas de um pré- dio pode ser uma pilha de pó; na outra, véem-se cortinas ñas janelas.

Boa parte desta furiosa reconstrugáo se deve ao traba­lho voluntário; em sua maioria, ainda por cima, é feita á máo. Até mesmo os ministros saem e trabalham aos do­mingos. Em toda Varsóvia, nao há mais do que dois ou tres misturadores de concreto e tres ou quatro guindastes elétricos; em toda Varsóvia nao se encontra uma única es- cavadeira! Um bando de homens escala uma parede, prende no alto um gancho de ferro atado á ponta de uma corda, depois desee e puxa. Pronto — a parede cai. E en- táo alguns dos tijolos avariados sao usados no que está sendo construido. O efeito é quase o mesmo da dupla ex- posigáo num filme. Nao há tempo para um assentamento correto!

Assim, esta cidade catastróficamente estripada, quem sabe a ruina mais selvagem jamais produzida pela máo da

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maldade humana, vem sendo transformada numa nova metrópole que ferve e espuma de vigor. Tijolo a tijolo, minuto a minuto, máo após máo, Varsóvia está voltando à vida graças à energia criativa e à imaginaçào de um po- vo imensamente talentoso e dedicado.

Muito diferentes sao os sentimentos experimentados por outro visitante que observou o inicio da reconstruçâo alema numa viagem pelo Sul da Alemanha. E nao se pode exatamente dizer que os comentários de Alfred Dôblin te- nham perdido parte de sua força com o correr das últimas décadas.

A principal impressáo produzida pelo pais, e ela provoca o maior espanto em alguém que lá chegue no final de 1945, é que as pessoas correm de um lado para o outro em meio ás ruinas como formigas cujo ninho tenha sido destruido. Agitadas e ansiosas por trabalhar, sua principal queixa é nào poderem começar de imediato, por falta de materiais e de instruçôes.

A destruiçào nào os deixa deprimidos, atuando como um estímulo intenso para o trabalho. Estou convencido de que, caso tivessem os meios de que carecem, senti- riam urna satisfaçâo pura com a destruiçào de suas cida- des antigas, ultrapassadas e mal planejadas, e com o fato de terem agora a oportunidade de erguer algo de melhor qualidade, totalmente moderno.

Uma cidade populosa como Stuttgart: multidôes, com o número aumentado pelo influxo de refugiados de ou­tras cidades e regióes, caminhavam pelas ruas em meio aos destroços medonhos como se nada tivesse aconteci­do e a cidade sempre tivesse ostentado sua aparéncia atual. Seja como for, a visào das casas destruidas nào tem nenhum efeito sobre eles.

E se alguém acredita, ou já acreditou, que o infortunio de seu próprio país e a visào de tamanha devastaçào le-

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variam os individuos a pensar, tendo sobre eles um efei- to educativo, pode ver com facilidade que estava engaña­do. As pessoas se limitam a apontar para certos grupos de casas, dizendo: "Aquelas foram atingidas durante esse bombardeio, e as outras durante aquele outro”, e contam algumas anedotas. E só. Nao segue mensagem alguma, e com certeza nenhuma reflexáo posterior. As pessoas váo para o trabalho, entram em filas aqui, como em toda par­te, para receber comida.

Já há teatros, concertos e cinemas aqui e ali, e todos ao que parece sao muito freqüentados. Os bondes estáo cir­culando, horrivelmente lotados como em toda parte. As pessoas tém espirito prático e se ajudam mutuamente. Preocupam-se com o presente imediato de um modo que já vem perturbando os mais ponderados.

Aqui vive, como antes, um povo industrioso e ordeiro. Sempre obedeceram ao governo. Obedeceram a Hitler também, e de modo geral nao compreendem por que es- sa obediencia pode ter sido supostamente dañosa. Será muito mais fácil reconstruir suas cidades que fazé-los per- ceber o que vivenciaram e compreender como tudo isso aconteceu.

Pode parecer injusto que o veredicto sobre os esforgos de reconstruyo dos habitantes de Stuttgart soe táo mal-hu- morado em com parado com o elogio feito aos habitantes de Varsóvia. Mas nao temos como compreender a intrigan­te energia dos alemáes se virarmos as costas á idéia de que conseguiram transformar seus defeitos em virtudes. Ficou demonstrado que a insensibilidade foi a condi^áo de seu su- cesso futuro. A qualidade ambigua desta relagáo emerge da reportagem seguinte, escrita por Robert Thompson Pell, um agente do servido secreto americano que, na primavera de 1945, viu-se encarregado de examinar as atividades dos di­rigentes da empresa I. G. Farben durante o Terceiro Reich.

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De maneira gérai, fiquei com a impressâo de que os líde­res alemâes decidiram acomodar-se à necessidade — mas só até certo ponto. Enquanto isso, continuam a sondar nossos pontos fracos,. testando-nos a cada oportunidade, tentando descobrir se de fato vamos cumprir o prometi­do quando batemos na mesa, e apresentando o máximo de resistência que se atrevem a oferecer. Dizem quase abertamente que nâo conseguiremos dar conta da situa- çào, e que no final acabaremos tendo que apelar mais uma vez para eles. Têm certeza de que cometeremos tan­tos erros que lhes será inevitável reassumir o poder. Até entâo, tentarâo ganhar tempo e se preparar devidamente, enquanto deitamos tudo a perder. Além disso, exageram ao máximo o “perigo vermelho”. Assim que alguém se mostra ainda que só um pouco abordável — ou que acre- ditam perceber sinais disso — eles nos repetem incessan- temente: “Estamos muito satisfeitos por serem vocês aqui, e nâo os russos”, e em alguns casos chegam até a afirmar que o exército alemáo só se retirou para que nos pudéssemos salvar dos russos a maior parte possível da Alemanha Ocidental.

Os diretores que eu pegava em meu jipe todo dia mos- travam-se sempre prontos a declarar que o povo alemâo fora vitima de uma conspiraçâo internacional visando en­tregar este adorável país a forças desconhecidas; que a Alemanha travara uma guerra defensiva; que os violentos ataques aéreos dos Aliados uniram o povo alemáo, nao tiveram qualquer valor militar e foram um erro sério; e que eram eles os verdadeiros defensores da civilizaçâo ocidental contra as “hordas asiáticas”.

Em suma, o país vivia no caos e o povo numa condi- çào de histeria que evoluiu rápidamente, transformándo­se numa atitude de desafio e num sentimento de que re- cebiam um tratamento injusto, uma atitude imaculada por qualquer sinal de culpa. A maioria desses homens de al-

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ta posiçâo, às vezes as mais altas, na sociedade alemâ ad­mitía prontamente que a Alemanha perderá a guerra, mas se apressava em acrescentar que a razâo fora a superiori- dade dos Aliados em poderío e em materiais; e logo em seguida acrescentavam que, no futuro, tentariam levar es­te fato em consideraçào. A impressâo gérai era, em suma, inquietante. Até onde pude avaliar, a atitude do executi- vo médio era marcada pela autocomiseraçâo, pela auto- justificaçâo bajuladora e por um sentido de inocéncia ofendida, acompanhados de súplicas por piedade e pela ajuda para a reconstruçâo desse país devastado. Muitos deles, se nâo a maioria, esperam confiantes que o capital americano logo se comprometa com o trabalho de re- construçào, e declaram-se dispostos a pôr sua força de trabalho e seu intelecto a serviço desses senhores tempo­rarios; como conseqüência, nào escondem sua esperança de reconstruir uma Alemanha aínda mais poderosa e maior do que foi no passado.

Graças à ironía da historia ou, melhor, a seu escárnio, essas ilusoes de 1945 transformaram-se de certa forma em realidade. O fato de que os derrotados de entâo, os alemáes e os japoneses, sintam-se hoje vitoriosos é mais que um es­cándalo moral; é uma provocaçâo política. Nossos líderes, naturalmente, jamais se cansam de protestar que, nesse meio tempo, todos nos tornamos pacíficos, demócratas e moderados; numa palavra, bem-comportados. E o mais no- tável é que esta assertiva é verdadeira. Essa mutaçâo trans- formou os alemáes no que antes acusavam os outros de ser: uma naçâo de pequeños comerciantes. E nisso nào estâo de modo algum sozinhos. Todas as naçôes da Europa es­tâo, com graus variados de sucesso, tentando fazer o mes- mo. Desde o final do monopolio comunista do poder, o pri­mado da economía também parece estar se instalando na porçào oriental do continente. Cinqüenta anos depois da

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Segunda Guerra Mundial, uma coisa é certa: a tentativa de suicidio que fracassou nao foi só a alema, mas a da Europa como um todo. Contudo, quanto mais nosso continente torna a ocupar o centro da política mundial e do mercado mundial, mais tende a ganhar terreno um novo tipo de eu- rocentrismo. Um slogan registrado por ninguém menos que Joseph Goebbels tornou a aparecer no debate público: “A Fortaleza Europa”. Antes, tinha um sentido militar; volta co­mo um conceito económico e demográfico. Nessas circuns­tancias, a Europa cada vez mais próspera fará bem de lem- brar-se de uma Europa em ruinas, da qual apenas algumas décadas a separam.

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A GRANDE M1GRAÇÂO Trinta e très letreiros de sinalizaçâo

Seguidos de uma nota a respeito de “Certas peculiaridades da caçada humana ”

Já nao sabemos mais a quem devemos estimar e honrar. Nesteponto, passamos a ser como os bárbaros em retando uns aos outros. Poispor natureza somos todos iguais, se- jamos bárbaros ou gregos. E esta igualdade decorre da- quilo que, por natureza, é indispensável a todos os ho- mens. Respiramos todos pela boca e pelo nariz, e todos comemos com as máos.

Antífon, “Da verdade”, século v a. C.

Junto á Estátua da Liberdade fica a inscrigáo: “Nesta tér­ra republicana todos os homens nascem livres e iguais”. Mas logo abaixo, em letras menores, pode-se ler: “Com a excegáo da tribo de Hamo”. — Esta anula a outra. Ah, vós, os republicanos!

Hermán Melville, “Mardi e uma viagem até lá”, 1849

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Um mapa do mundo. Enxames de setas azuis e verme- lhas condensam-se em redemoinhos antes de se dispersar em direfóes opostas. Por baixo deste diagrama, há curvas que demarcam as zonas coloridas de diferenga de pressáo do ar, isóbaras e ventos. Esses mapas meteorológicos sao bonitos, mas nao podem ser devidamente interpretados sem conhecimento prévio. E esse conhecimento é abstrato. Precisa representar um processo dinámico por meios está­ticos. Só um filme poderia mostrar o que de fato está acon- tecendo. O estado normal da atmosfera é a turbulencia. E o mesmo se aplica á ocupafáo da térra pelos seres humanos.

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Mesmo depois de mais de um século de pesquisas so­bre o Paleolítico, a origem do Homo sapiens aínda náo foi estabelecida acima de qualquer dúvida. Parece certo, con- tudo, que a espécie surgiu no continente africano e se es- palhou por todo o planeta, em estágios complicados e cheios de perigo, por meio de urna longa cadeia de migra-

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çôes. Ficar no mesmo lugar nâo é urna das características genéticas fixas de nossa espécie; é um traço que sô se de- senvolveu relativamente tarde e está quem sabe ligado à in- vençâo da agricultura. Nossa existência primária é a de ca- çadores, coletores e pastores.

Certos traços atávicos de nosso comportamento que, vistos de outra maneira, parecem enigmáticos, como o tu­rismo de massa ou a paixâo pelo automóvel, podem ser ex­plicados por esse passado de nomadismo.

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O conflito entre as tribos nómades e as sedentárias ma- nifesta-se claramente no mito de Caim e Abel: “Abel era pastor de ovelhas, e Caim lavrador da térra”. O conflito ter­ritorial acaba em morte. E a historia vai além — o agricul­tor, depois de ter assassinado o nómade, é desalojado por sua vez: “Tu andarás vagabundo e fugitivo sobre a terra”.

A historia da humanidade pode ser lida como um des- dobramento desta parábola. Populaçôes estacionárias se formaram vezes sem conta ao longo dos milénios. No ge- ral, porém, sâo a exceçâo. A regra é a conquista e a pi- lhagem, a expulsào e o exilio, a escravidâo e o rapto, a co- lonizaçâo e o cativeiro. Urna proporçâo considerável da humanidade sempre esteve em movimento, migrando ou fugindo pelas razóes mais diversas, de maneira pacífica ou violenta — urna circulaçâo que só pode levar a urna turbu- lência perpétua. Trata-se de um processo caótico, que frus­tra qualquer tentativa de planejamento ou até mesmo de previsào a longo prazo.

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Dois passageiros num compartimento de trem. Nao sa­bemos nada sobre eles, nem sua origem e nem seu destino. Instalaram-se com o conforto possível e tomaram conta de todas as mesinhas, cabides e bagageiros. Jomáis, malas e sacólas se espalham pelos assentos vazios. A porta do com­partimento se abre e entram dois novos viajantes. Sua che- gada nao é bem-vinda. Urna distinta relutáncia em se levan­tar, limpar os assentos desocupados e abrir espado para os recém-chegados é evidente. Embora nao se conhegam, os passageiros origináis comportam-se com um notável grau de solidariedade. Apresentam urna frente unida contra os recém-chegados. O compartimento transformou-se em ter­ritorio deles, e encaram como intruso qualquer um que chegue. Sua consciencia é a dos nativos que reivindicam todo o espado para si. Esta visáo nao tem justificativa racio­nal. Ao que tudo indica, possui raízes mais profundas.

Ainda assim, a situafáo raramente chega ao ponto do conflito declarado. Os passageiros estao sujeitos a um siste­ma de regras que nao depende deles. Seu instinto territorial é sobrepujado tanto pelo código institucional da ferrovia quanto por outras normas implícitas de comportamento, como a cortesía. Assim, só olhares sao trocados e pretensas desculpas murmuradas por entre os dentes cerrados. Os novos passageiros acabam sendo tolerados, e os outros acabam se acostumando com eles. Ainda assim, permane- cem estigmatizados, embora em grau cada vez menor.

Este modelo anodino nao deixa de apresentar tragos absurdos. O compartimento do trem é, ele próprio, um do­micilio transitorio, urna locagáo que só serve para a troca de loca^óes. Sua natureza é a flutuagáo. O passageiro é a pró- pria negagáo da pessoa sedentaria. Ele trocou um territorio

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real por um virtual. Apesar disso, defende seu abrigo pas- sageiro com um ressentimento magoado.

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Toda migra gao — qualquer que tenha sido o fator a desencadeá-la ou sua motivagáo subjacente, seja ela volun- tária ou involuntária e seja qual for a escala que assume — leva a conflitos. A defesa dos interesses locáis e a xenofo­bia sao constantes antropológicas que precedem qualquer racionalizado. A distribuido universal desses tragos indica que sao mais antigos que todas as sociedades conhecidas.

Para manté-los sob controle, para evitar banhos de sangue e tornar possível pelo menos um mínimo de troca e com unicado entre os diferentes cías, tribos e grupos étni­cos, as sociedades antigas inventaram os tabus e os rituais da hospitalidade. Esses cuidados, porém, nao revogam o status do estrangeiro. Pelo contrario: eles o fixam. O hospe­de é sagrado, mas nao pode ficar para sempre.

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Dois novos passageiros abrem a porta do comparti­mento. A partir desse momento, a posigao dos que entra- ram antes muda. Pouco tempo atrás, eram elés os intrusos; de urna hora para outra, viraram nativos. Agora pertencem ao clá sedentário dos ocupantes do compartimento e rei- vindicam todos os privilégios a que estes acreditam ter di- reito. A defesa de um território “ancestral” ocupado apenas há pouco parece paradoxal. Os ocupantes nao sentem em­patia para com os recém-chegados, que se véem obrigados a enfrentar a mesma oposigáo e a mesma iniciado penosa

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que aqueles atravessaram há pouco. Curiosa a rapidez com que a origem das pessoas é escondida e negada.

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Clás e grupos tribais existem desde que a térra é habi­tada por seres humanos; as nagóes só existem há mais ou menos duzentos anos. Nao é difícil ver a el i fe renga. Os gru­pos étnicos surgem de maneira semi-espontánea; as nagóes sao criadas de forma consciente, e muitas vezes sao entida­des artificiáis, que nao podem prescindir de urna ideología específica. Esta base ideológica, com seus rituais e emble­mas (bandeiras, hinos), teve inicio no século xix. Da Euro­pa e da América do Norte, espalhou-se por todo o mundo.

Um país que deseje afirmar-se como nagáo precisa de uma consciéncia de si bem codificada, de um sistema pró- prio de instituigóes (exército, alfándega e fisco, polícia, cor- po diplomático) e de ¡números meios legáis de demarcar-se externamente (soberanía, cidadania, passaportes). Algumas nagóes, mas nem todas, conseguiram transferir para si for­mas mais antigas de identificagáo. Esta operagáo psicológi­ca é difícil, porque sentimentos poderosos que antes inspi- ravam associagóes menores precisam ser mobilizados em prol de formagóes estatais modernas, e raramente ocorre sem o apoio de lendas históricas. Em caso de necessidade, a prova de um passado glorioso é forjada, e tradigóes vene- ráveis sao simplesmente inventadas. A idéia abstrata de na­gáo, porém, só conseguiu adquirir uma vida independente quando o Estado foi capaz de desenvolver-se orgánicamen­te a partir de condigóes mais antigas. Quanto mais artificial é a génese de uma nagáo, mais precário e histérico é seu sentimento nacional. Isso se aplica ás "nagóes tardias” da Europa, porque os novos Estados emergiram do sistema

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colonial, bem como as unióes forjadas como a ex-Uniáo Soviética e a ex-Iugoslávia, que apresentam urna tendencia á desintegrado e á guerra civil.

É evidente que nenhuma n ad o tem urna populado absolutamente homogénea do ponto de vista étnico. Este fato está em conflito fundamental com o sentimento nacio­nal que acabou tomando forma na maioria dos Estados. Em geral, o grupo nacional hegemónico acha conseqüente- mente difícil conciliar-se com a existencia de minorías, e cada onda de ¡migrantes é considerada um problema polí­tico. As excegóes mais importantes a este padráo sao os Es­tados modernos que devem sua existencia á migra gao em grande escala; sobretudo os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália. Seu mito fundador é a tábula rasa. O reverso desta moeda é o exterminio da populad0 indígena, a cujos remanescentes só muito recentemente foram conce­didos direitos minoritários essenciais.

Quase todas as outras nagóes justificam sua existéncia por urna auto-imputad0 vigorosa. A distingáo entre a “nos- sa” gente e os “estrangeiros” lhes parece totalmente natural, aínda que seja questionável do ponto de vista histórico. Quem quiser se aferrar a essa clistingáo precisaría afirmar, nos termos de sua própria lógica, que sempre esteve lá — urna tese muito fácil de ser rebatida. Nessa medida, uma historia nacional adequada precisa presumir a capacidade de esquecer tudo o que nao se ajuste em sua descrido dos acontecimentos.

No entanto, o que se esquece nao é apenas a origem variegada dos individuos. Os movimentos migratórios em grande escala sempre levam á disputa pela distribuido dos recursos. O sentimento nacional prefere reinterpretar esses conflitos inevitáveis como se a disputa tivesse como objeto antes recursos imaginários que recursos materiais. As lutas se travariam entáo devido á diferencia entre a auto-imputa-

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gao e a imputagáo externa, um campo que abre possibili- dades ideáis de florescimento para a demagogia.

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A auto-imputagáo e a imputagáo externa jamais conse- guem coincidir. E isso é inevitável. A correspondencia har- moniosa entre as duas é sempre aparente. A frase: “Os fin­landeses sao espertos e beberróes” significará coisas muito diferentes se quem a pronunciar for um sueco ou um fin­landés. Basta pensar ñas diferentes reagóes que ela provo­ca. Entre os finlandeses, só um finlandés pode dizé-la; vin- da de um sueco, seria escandalosa.

Essas diferengas sempre encobrem uma longa historia de contatos e conflitos. A interagáo entre a auto-imputagáo e a imputagáo externa é complicada. A curiosidade e a in- tegragao, uma atitude defensiva e uma sensagáo de ofensa, o ressentimento e a projegáo desempenham um papel, bem como estratégias de autocrítica, de ironía e de apazi- guamento das suspeitas.

Originalmente, porém, as coisas eram muito simples:Os indios Nahua chamavam as tribos vizinhas de popo-

laca, que quer dizer “gagos”, e mazahua, “os que berram como cervos”.

Em russo, os alemáes sao chamados de nemets-, esta palavra é derivada de nemoi, que significa “mudo” — ou seja, alguém que nao sabe falar. A palavra grega barbaros, usada para os náo-gregos, tinha inicialmente o sentido de “gago” ou “balbucíante”, e adquiriu as conotagóes freqüen- tes de “deseducado”, “vulgar”, “covarde”, “cruel”, “inculto”, “violento”, “avarento” e “traigoeiro”.

Os hotentotes, palavra que em africáner quer dizer “gago”, chamam a si próprios de k’oi-n, “seres humanos”.

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Também no caso dos Ainu, o nome do grupo é idénti­co à palavra que significa “ser humano”, enquanto os japo­neses o chamam de emishi, “bárbaros”.

O mesmo ocorre com o povo nativo da península de Kamtchatka — que se designa itelmen, “os seres humanos” — , e só é superado pelos Chukchi, que afirmam serem luo- rovetlan, ou “os verdadeiros seres humanos”.

Esta consciéncia que os povos tém de si próprios é universalmente difundida, e foi descrita da seguinte manei- ra por Claude Lévi-Strauss:

É sabido que o conceito de “humanidade”, abrangendo todas as formas de vida da espécie humana, sem distin- çâo de raça ou civilizaçâo, só surgiu muito tarde e nào é muito difundido... A humanidade só vai até os limites da tribo ou do grupo lingüístico, nào passando as vezes da própria aldeia e, assim, um grande número dos chama­dos povos primitivos usam para designar-se um nome que significa “homens” (ou às vezes “os bons”, “os excelentes” ou “os perfeitos”), indicando ao mesmo tem­po que as outras tribos, os outros grupos ou as outras aldeias nao compartilham as boas qualidades — nem se- quer a natureza — do homem mas, no máximo, consis- tem nos “maus”, no's “macacos rasteiros” ou nos “ovos de piolho”. Há casos em que se nega aos estrangeiros até mesmo este último ponto de contato com a realidade, e eles sao chamados de “fantasmas” ou “apariçôes”. Vem daí a curiosa situaçâo de dois interlocutores que trocam impiedosamente seus epítetos depreciativos.

As migraçôes contemporáneas diferem dos movimen- tos anteriores de populaçôes em mais de um aspecto. Em

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primeiro lugar, a mobilidade aumentou muitíssimo nos últi­mos dois séculos. Foi o comércio oceánico europeu o pri­meiro a criar a capacidade que tornou possivel o movimento de milhôes de pessoas por grandes distâncias. O merca­do mundial desenvolvido requer a mobilizaçâo global e a impôe pela força sempre que necessário, como ocorreu no caso da abertura do Japâo e da China no século xix. O ca­pital derruba as barreiras nacionais. Pode fazer um uso táti- co dos impulsos patrióticos e racistas, mas estratégicamente nâo os leva em consideraçào, porque o intéressé comercial nao pode ter preocupaçôes particulares. O livre movimento do capital tende a arrastar atrás de si o livre movimento da força de trabalho, sem levar em conta sua raça ou sua nacio- nalidade. Com a globalizaçào do mercado mundial (que só se completou hà muito pouco tempo), os novos movimen- tos migratorios também vào adquirir uma nova qualidade. Os movimentos moleculares de massas devem tomar o lu­gar das guerras coloniais promovidas pelo Estado, das expe- diçôes de conquista e das expulsées. Enquanto o dinheiro eletrónico obedece apenas à sua própria lógica e vai derro­tando com facilidade todas as resisténcias, os seres huma­nos agem como se estivessem sujeitos a alguma compulsáo incompreensível. Seus embarques sao como movimentos de fuga, que seria cínico chamar de voluntários.

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Ninguém emigra sem a promessa de uma vida melhor. Antigamente, os veículos da esperança eram a lenda e os rumores. A Terra Prometida, Arabia Felix, a lendária Atlán- tida, Eldorado, o Novo Mundo; foram essas as historias má­gicas que motivaram muitos a partir. Hoje, sáo as imagens em alta freqüéncia que o sistema global dos meios de co-

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municagáo transmite até a última aldeia do mundo pobre. Seu teor de realidade é ainda menor que o das lendas ma- ravilhosas do inicio do período moderno; apesar disso, seus efeitos sao incomparavelmente mais poderosos. A pu- blicidade em especial, compreendida sem esforzó nos paí­ses ricos onde tem origem como um mero signo sem refe­rentes reais, é vista no Segundo e Terceiro Mundos como uma descrido fidedigna de um modo de vida possível. Em grande medida, é ela que determina o horizonte de expec­tativas associado com a emigrado.

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Ao longo de séculos, o deslocamento das popula^óes era quase um jogo de soma zero. A populado mundial exi- bia flutuafóes ao longo do espado e do tempo, mas o au­mento absoluto era táo insignificante que elas pouco im­porta vam. Contudo, depois que comegou a apresentar um crescimento exponencial, as regras do jogo mudaram. Mais cedo ou mais tarde, o inimaginável aumento quantitativo acabará tendo um efeito sobre a qualidade dos movimen- tos migratorios.

Que isso já esteja ocorrendo nao é certo. Hoje, esti- ma-se que mais de 20 milhóes de imigrantes oriundos de outras áreas vivam na Europa Ocidental. O fluxo de refu­giados da África e da Ásia tem uma escala semelhante. Sao números imensos. Mas se for considerado que entre 1810 e 1921 34 milhóes de pessoas, sobretudo da Europa, migra- ram apenas para os Estados Unidos, náo se pode afirmar que essas cifras estejam além de qualquer possibilidade de com parado histórica. De fato, a migrado tem sido, até ho­je, bastante limitada, especialmente se comparada ao cres­cimento absoluto da populado mundial (as Na^óes Unidas

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prevéem um aumento de quase 1 bilháo de pessoas entre 1990 e o ano 2000). Isso nos leva á conclusáo de que o des­tacamento efetivo mobilizou apenas urna fragao dos mi­grantes potenciáis: a verdadeira m igrado de populafóes ainda está por acontecer.

Os meios de com unicado antecipam esta perspectiva futura de maneira perigosa, e a descrevem em termos fan­tásticos. Um estranho gosto pelo medo emerge dos qua- dros apocalípticos que projetam. Todas as m anifestares atuais da crise — a condigno instável da economía mundial, os graves perigos tecnológicos, a desintegrado do império soviético, a amea^a ecológica — provocam cenários desta natureza. O pánico antecipatório pode até servir como imu- nizayáo, urna forma de inoculado psíquica. De qualquer maneira, porém, em vez de levar-nos a tentar encontrar so- lu^óes isso só leva, na melhor das hipóteses, a políticas que se alternam entre tímidas medidas de reforma e bloqueios ao pensamento e á a^áo.

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Um salva-vidas está apinhado de sobreviventes de um naufrágio. Espalhadas pelo mar agitado á sua volta, há ou- tras pessoas que correm o perigo de se afogar. Como de- vem se comportar os ocupantes do barco? Devem empur- rar ou cortar as máos da próxima pessoa que agarrar as bordas do bote? Seria assassinato. Puxá-la para dentro? Ai o barco afundaria, arrastando com ele todos os sobreviven- tes. O dilema faz parte do repertorio padráo da casuística. Os filósofos moráis e o resto das pessoas que costumam discuti-lo geralmente deixam de atentar para o fato de que eles próprios estáo seguros em térra firme. No entanto, to­das as reflexóes abstratas so^obram apenas neste faz-de-

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conta, seja qual for sua conclusáo. A melhor das intenfóes é frustrada pelo aconchego da sala de conferencias, porque ninguém é capaz de declarar de forma crível como se com­portaría numa emergencia.

A parábola do salva-vidas lembra o quadro do com­partimento do trem. É o mesmo modelo levado ao extremo. Aqui também os viajantes se comportam como se fossem proprietários, com a diferenga de que o territorio ancestral que defendem é urna casca de noz á deriva, e de que aqui se encontra em jogo náo mais um certo adicional de con­forto, mas urna questáo de vida e morte.

Evidentemente, náo é acidental que a imagem do sal­va-vidas seja recorrente no discurso político sobre a imigra- fáo, em geral na forma de urna assertiva: “O barco já está cheio”. E o mínimo que se pode dizer sobre esta frase é que, do ponto de vista factual, ela está incorreta. Basta olhar rápidamente em volta para contestá-la. E aqueles que a usam também sabem disso. Náo estáo interessados em sua precisáo, contudo, mas na ilusáo que ela evoca, que é assustadora. É evidente que muitos europeus ocidentais acreditam que suas vidas estáo em perigo. Comparam sua situagáo com a de sobreviventes de um naufrágio. E isso equivale a virar, por assim dizer, a metáfora de cabera para baixo. De urna hora para outra, sáo aqueles que tém um te­to sobre as caberas que se imaginam boat people fugitivos, emigrantes pilotando jangadas precárias, albaneses num navio-fantasma superlotado. As dificuldades em alto-mar que sáo fantasiadas desta forma tém a intenyáo presumível de justificar um comportamento que só é concebível em si- tuagóes extremas. Náo é grande a distancia que separa es­te ponto das máos decepadas da parábola.

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Há algo de reconfortante na analogía do compartimen­to do trem, simplesmente porque a cena da a<pao é restrita. Mesmo na imagem aterradora do bote salva-vidas, seres humanos individuáis ainda podem ser reconhecidos — co­mo no quadro de Géricault, A jangada da “Medusa ”, onde dezoito rostos, a?óes e destinos podem ser percebidos. As estatísticas contemporáneas, refiram-se aos famintos, aos desempregados ou aos refugiados, exprimem tudo em mi- lhóes. Sáo números que paralisam a imaginado. As organi­z a r e s de assisténcia e os dirigentes de suas campanhas sa- bem disso, e é por esta razáo que sempre mostram apenas uma crianza de olhos imensos e patéticos, para tornar a ca- lamidade comensurável á nossa compaixáo. Mas o terror do grande número náo tem olhos. A empatia náo suporta esta demanda excessiva, e a razáo toma consciéncia de sua própria impoténcia.

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Supérfluo, supérfluo... uma excelente palavra que encon- trei. Quanto mais profundamente mergulho em mim mes­mo e quanto mais examino de perto toda a minha vida passada, mais me convengo da dura verdade da expres- sáo. Supérfluo — exatamente. A palavra náo se aplica a outras pessoas... As pessoas sáo boas e más, inteligentes e idiotas, agradáveis e desagradáveis; mas supérfluas?

Náo teria ocorrido a Ivan Turgueniev considerar os camponeses de sua propriedade, e menos ainda todo um povoado, uma regiáo, um povo ou um continente como su- pérfluos. Embora seu herói Chulkaturin, no romance Diá-

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rio de um homem supérfluo (cuja situado parece quase idílica 150 anos após a sua morte), fale nesses termos de seu pai proprietário de térras com suas casas de campo e de si mesmo — seu tédio, sua solidáo e sua náusea — , a pala- vra “náo se aplica a outras pessoas”, pensa ele.

Mas o tempo encarregou-se de demonstrar que estava enganado. É claro que, em todas as épocas, houve grandes massacres e pobreza endémica. Os inimigos eram os inimi- gos, e os pobres eram os pobres; mas foi só depois que a historia se transformou na historia mundial que povos intei- ros se viram condenados á superfluidade, e por autores que permanecem estranhamente desprovidos de tema. Os juízes que proferem a senten^a sáo conhecidos pelos nomes de “colonialismo”, “industrializado”, “progresso tecnológico”, “revolufáo”, “coletivizafáo”, “solufáo final”, “Versalhes” ou “Yalta”, e seus decretos sáo pronunciados abertamente e executados de forma sistemática, de maneira que ninguém possa ter qualquer dúvida quanto ao destino que o aguar­da: a fuga ou a emigrado, a expulsáo ou o genocidio.

O crime organizado pelo Estado continua difundido. No entanto, o mercado mundial, abrangente e anónimo, aparece cada vez com mais clareza como a instancia que condena contingentes cada vez maiores da humanidade á superfluidade. Náo mediante a perseguido política, por or- dem do Führer ou por urna decisáo do partido, mas espon­táneamente, por sua própria lógica, de maneira que um nú­mero cada vez maior de pessoas vai sendo enquadrado. O resultado náo é menos homicida, mas é menor ainda do que antes a probabilidade de que os culpados sejam cha­mados a se explicar. Na linguagem económica, isso signifi­ca: urna oferta imensamente crescente de seres humanos se vé diante de urna demanda declinante. Mesmo ñas socieda­des afluentes, mais gente se torna supérflua a cada dia que passa. O que fazer com eles?

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O estatuto lógico das alu cinares é tal que duas fobias mutuamente excludentes acabam sendo capazes de encon­trar espado no mesmo cérebro sem qualquer problema. É assim que muitos partidários do modelo do bote salva-vi­das se mostram obcecados ao mesmo tempo com urna ilu- sáo que exprime precisamente o medo oposto. De novo, postula-se um fato: “Os alemaes (franceses, suecos, italia­nos) estáo desaparecendo”. Extrapolares a longo prazo de estatísticas demográficas atuais sáo produzidas para ser­vir de base a esses chavóes, muito embora previsóes como essas tenham sido repetidas vezes desmentidas no passado; extrapolares ilustram as terríveis conseqüéncias — urna populado cada vez mais idosa, a decadencia, o despovoa- mento — acompanhadas por urna atencáo inquieta para com o crescimento económico, a receita fiscal e o sistema previdenciário.

A idéia de que um excesso e urna escassez de pessoas possam existir simultáneamente no mesmo territorio causa pánico — um mal para o qual a expressáo “bulimia demo­gráfica ” pode ser apropriada.

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As análises dos tempos distantes em que se fez urna tentativa de formular urna economia política da migrado parecem reconfortantes em sua sobriedade, se comparadas com as fórmulas delirantes de hoje. Na virada do século, o economista americano Richmond Mayo Smith apresentou um exemplo modelar desta reflexáo ponderada:

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A quantidade de dinheiro trazida pelos ¿migrantes nâo é grande, e é provavelmente mais que anulada pelo dinhei­ro que os imigrantes enviam de volta para sustentar as fa­milias e os amigos na terra natal ou ajudá-los a emigrar por sua vez. O elemento valioso é o próprio imigrante saudável como fator de produçâo. Diz-se, por exemplo, que um escravo adulto valia entre oitocentos e mil dóla­res, e assim deve ser atribuido a cada imigrante adulto o mesmo valor para o país. Ou já se disse que um imigran­te adulto representa o que custaria criar urna criança do nascimento até, digamos, a idade de quinze anos. Emst Engel calcula que isso represente 550 dólares para urna criança alema. O procedimento mais científico, porém, é calcular os ganhos prováveis do imigrante durante o res­to de sua “vida”, e deduzir deles as despesas de seu sus­tento. O resto representa seus ganhos líquidos, com os quais ele contribuí para o bem-estar do novo país. W. Farr calcula que isso monte, no caso dos emigrantes ingleses nâo especializados, a cerca de 175 libras esterlinas. Mul­tiplicando este valor pelo número total de imigrantes adultos, chegamos ao valor anual da imigraçâo. Tais ten­tativas de atribuir um valor monetário preciso à imigraçâo sâo fúteis. Elas ignoram a questáo da qualidade e da oportunidade. O imigrante vale o que custou para criá-lo apenas se for saudável, honesto e disposto a trabalhar. Se estiver doente, for aleijado, indolente ou desonesto, po­de representar uma perda direta para a comunidade, e nao um ganho. Assim, também, o imigrante só vale seus ganhos líquidos futuros para a comunidade se houver de­manda para sua força de trabalho.

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Por muito tempo, a ansiedade com as conseqüéncias da emigrado era maior na Europa que o temor das conse­qüéncias da imigrafáo. Este debate remonta ao século xviii. O conceito da populado como riqueza deriva das teorías do mercantilismo. Naqueles dias, a em igrado era vista co­mo urna hemorragia, e tentava-se limitá-la, até mesmo proi- bi-la. A em igrado secreta, especialmente o recrutamento e o incitamento á emigrado, era sujeita a punifóes severas em muitos países, prática a que os Estados comunistas ade- riam até muito pouco tempo atrás. Luís xrv ordenou que as fronteiras francesas fossem cuidadosamente vigiadas a fim de manter seus súditos no país, e na Inglaterra a emigrado de artesáos qualificados era proibida até meados do século xix. O chamado Dinheiro da Libertado, ou Dinheiro da Partida, urna taxa sobre a em igrad0 imposta sobre as pro- priedades dos emigrantes, esteve em vigor na Alemanha até 1817, e os nazistas reverteram a esse processo de con­fisco quando ainda náo queriam exterminar os judeus, só expulsá-los.

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A Irlanda é o exemplo clássico de um país de emigra­d o - A explorad0 brutal pelos ingleses levou, na década de 1840, a urna fome catastrófica, de que o país nunca se recu- perou por completo. Em 1843, a Irlanda tinha 8,5 milhóes de habitantes; em 1961, esta cifra caira a menos de 3 mi­lhóes. No período de 1851 a 1901, a média de 72% de todo o povo irlandés emigrou. A Irlanda continua a ser um dos países mais pobres da Europa Ocidental. Pode-se discutir

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infindavelmente se cabe á em igrado a culpa por sua po­breza ou se, ao contrário, ela melhorou a situad0 dos ha­bitantes.

Urna conclusáo ingénua mas esclarecedora foi extraí­da pelo redator anónimo de urna enciclopédia datada de 1843: “A em igrado é um remedio fraco contra o pauperis­mo. Se, hoje, pudéssemos remover todos os pobres das tér­ras assoladas pelo pauperismo, aínda assim haveria, se suas causas continuarem ativas, a mesma quantidade novamen- te dentro de vinte anos, talvez de dez... Em geral, o Estado deveria esforcar-se para criar e manter, dentro de suas fron- teiras, condiyóes tais que pelo menos a destituido e a insa- tisfagáo nao expulsassem seus habitantes”.

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Os emigrantes nunca representam um corte da popu­lad o como um todo, fato que tem crucial importancia pa­ra qualquer avaliagáo das conseqüéncias. “É o homem do­tado de energía, de alguns recursos, de ambifáo, que arrisca o sucesso no novo país, deixando em casa os po­bres, os indolentes, os fracos e os aleijados”, escreveu Mayo Smith. “Afirmá-se que tal em igrado instituí um pro- cesso de selegao que nao é favorável para o país natal.”

Esta tese é sedutora. A evasáo de cérebros, urna espé- cie de fuga de capital demográfico, teve efeitos devastado­res em países como a China, a india e a ex-Uniáo Soviética. Teve urna importáncia considerável no colapso da Alema- nha Oriental. Grande proporgao da intelligentsia iraniana emigrou ñas décadas recentes. O número de médicos do Terceiro Mundo trabalhando na Europa Ocidental excede o número de trabalhadores assistenciais dos países da Co- munidade Européia enviados para a Ásia, a África e a Amé-

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rica Latina — onde há escassez de médicos treinados em toda parte.

Quanto mais qualificados os ¡migrantes, menos reser­vas eles encontram. O astrofísico indiano, o grande arqui- teto chinés, o negro africano ganhador do Prémio Nobel sao bem-vindos em todo o mundo. Os ricos também nun­ca sao mencionados neste contexto; ninguém questiona sua liberdade de movimento. Para os negociantes de Hong Kong, a aquisiçào de passaporte británico nâo enfrenta qualquer problema. Para imigrantes de qualquer pais, a ci- dadania suiça também é apenas uma questâo de preço. Ninguém jamais fez qualquer objeçào à cor da pele do sul- tâo de Brunei. Onde as contas bancárias sào saudáveis, a xenofobia desaparece como num passe de mágica. Mas os estrangeiros sào mais estrangeiros ainda se forem pobres.

Neste ponto, os traficantes de armas e drogas, junta­mente com os bancos que lavam seu dinheiro, ganham de qualquer um. Nâo reconhecem qualquer distinçâo de raça ou nacionalidade. Sào quem sabe as únicas pessoas no mundo praticamente desprovidas de preconceitos.

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É claro que os pobres também nâo formam uma socie- dade homogénea. Em todos os países ricos, há procedi- mentos complexos para o controle da imigraçào. Eles favo- recem, entre os pobres, aqueles com certas características muito peculiares que sâo valorizadas sob o capitalismo, co­mo o conhecimento do mundo, a determinaçâo, a flexibili- dade e as energías criminosas. Essas virtudes sào indispen- sâveis para a superaçào dos obstáculos burocráticos. Em outras situaçôes, porém, a força física também conta. SÓ os

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mais jovens e fortes dos albaneses foram capazes de resis­tir às autoridades italianas até o fim.

Novamente Mayo Smith: “Por outro lado, diz-se que os homens que prosperam na terra natal sao os menos inclina­dos a emigrar, porque tém menos a ganhar com isso. Sao portanto os inquietos, os malsucedidos, ou pelo menos os que nao sao muito aptos para a competiçâo exaustiva nos países mais velhos que sao tentados a partir”.

Que existe alguma verdade nesta idéia é demonstrado pelas crédulas vítimas das quadrilhas organizadas que con- trabandeiam gente da Ásia, da África e da Europa Oriental. Esses viajantes nâo tém a menor idéia do que os aguarda. Quando chegam a seu objetivo, parecem apáticos, como se tivessem há muito abandonado toda esperança.

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O mercado negro floresce em todos os lugares onde há restriçôes. Funcionando como vasos comunicantes, equili­bra a pressáo entre a oferta e a demanda sem precisar obe­decer às leis, aos regulamentos ou às normas éticas. Já que nâo existem no mundo sistemas completamente fechados, as transaçôes ilegais nunca podem ser evitadas de todo, mas só obstruidas. As forças do mercado sempre procuram e encontram as menores brechas, as fissuras mais minúscu­las, e acabam ultrapassando todas as barreiras.

Assim, desenvolveu-se um comércio ilegal de seres humanos em todos os países ricos. No entanto, enquanto nos mercados negros clássicos obtém-se preços sempre su­periores aos do comércio legal, o mercado negro da força de trabalho obedece à lógica inversa. Quem governa aqui nâo é a escassez, mas a superfluidade. Pessoas supérfluas

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sào baratas. A imigraçào clandestina reduz o preço da for­ça de trabalho.

Cada ¡migrante empregado ilegalmente pressupôe um empreendedor agindo na ilegalidade. A economía oculta em gérai funciona de par com as quadrilhas de criminosos e as redes que contrabandeiam seres humanos. Na indús- tria têxtil, partes do setor de serviços e, acima de tudo, na construçâo civil, predominam práticas que lembram os mercados de escravos do passado.

Em certas partes dos Estados Unidos e nos países medi­terráneos da Europa, é tamanho o poder político da econo­mía oculta que ela acaba exercendo uma pressáo considerá- vel sobre o governo. Também na Alemanha, as autoridades muitas vezes fecham os olhos diante do trabalho ilegal. As regras que supostamente deveriam controlar a imigraçào sào sabotadas de modo sub-reptício, e surgem curiosas for­mas de compromisso.

Inevitavelmente, o tamanho desses mercados de escra­vos é desconhecido. Ninguém tem intéressé em descobri- lo. A única coisa certa é que os números envolvidos sao muito grandes. Nos Estados Unidos, estimativas sugerem que existem vários milhóes de imigrantes ilegais, em sua maioria vindos do México; na Itália, a cifra deve ser bem maior que 1 milháo. E ao exame mais próximo fica eviden­te que a “política para estrangeiros” anunciada oficialmen­te baseia-se numa série de enganos deliberados.

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Será que a Grande Migraçâo representa uma soluçào, e, em caso positivo, para qual problema? Seria bom para a Albania, por exemplo, se a metade ativa de sua populaçào fosse admitida em outros países? “É evidente que náo se

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pode dar urna resposta geral para esta pergunta.” Foi a es­ta conclusáo que Richmond Mayo Smith chegou cem anos atrás. Hoje, pouco pode ser acrescentado.

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A divindade de Asylon concedía imunidade a qualquer inocente que estivesse sendo perseguido, especialmente os estrangeiros, mas também a qualquer pessoa que car- regasse a culpa por um crime de morte — anulando as- sim a continuidade da vinganga sangrenta. Sao essas as origens do desenvolvimento secundário político e social da idéia do asilo no sentido utilitário de um sistema de leis que nao é maís predominantemente controlado pela religiáo. Assim, nao se concedía maís asilo a todos, mas apenas a certas pessoas... como um privilégio ditado por interesses económicos e do Estado, exigindo um reco- nhecimento diplomático por decreto. Ele assegurava por­tante, no interesse do comércio internacional, a protefáo ao estrangeiro, que fora disso praticamente nao tinha di- reitos.

Der kleine Pauly, Munique, 1975, vol. i, p. 671

O asilo é uma antiga convengáo de origem sagrada. Deve seu nome aos gregos, embora a convengáo possa também ser demonstrada em outras sociedades tribais, por exemplo, entre os judeus. Também sobreviveu durante a Idade Média: os criminosos e devedores que se refugias- sem numa igreja só podiam ser entregues á justi<ja secular com o consentimento do bispo. Em tempos maís recentes, este costume sofreu restrifóes cada vez maiores, primeiro nos países protestantes, e com o código legal moderno de- sapareceu por completo.

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Na lei internacional, as embaixadas eram os primeiros lugares de asilo, urna tradigáo observada até hoje, notavel- mente na América Latina. Do conceito expandido de sobe­ranía, os Estados nacionais derivaram o direito de acolher estrangeiros que sofressem perseguido política em sua tér­ra natal e recusar-se a entregá-los. No entanto, o asilo nao é o direito individual do refugiado, mas do Estado que o admite. Entre os casos representativos desta prática estáo os poloneses rebeldes, além de revolucionários como Gari- baldi, Kossuth, Louis Blanc, Bakunin e Mazzini, vistos co­mo criminosos em seus países de origem mas muitas vezes festejados como heróis nos países que os acolheram.

Os refugiados, que na Alemanha chamamos de candi­datos a asilo ou Asylanten, “asilantes”, geralmente tém pou- co em comum com essas figuras históricas. O uso lingüísti­co contemporáneo é influenciado por um sentido que a palavra só assumiu no período vitoriano: “Os asilos que ocorrem com mais freqüéncia, e cuja necessidade se sente especialmente ñas grandes cidades, sao os seguintes: i) pa­ra bébados (casas de inebriados); ii) para prostitutas (mui­tas vezes chamadas de Fundagóes de Madalena); iii) para prisioneiros libertados que nao conseguem emprego; iv) para mulheres pobres depois do parto; v) asilos para os sem-teto”.

Sao essas as expressóes antiquadas de urna obra de re­ferencia do inicio do século.

Esses lugares de custodia nada tém a ver com o senti­do original de asilo. Náo se destinam a estrangeiros, mas a estigmatizados locáis. A única coisa que essas pessoas tém em comum é a pobreza.

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A idéia de asilo sempre foi ambigua. O utilitarismo e uma ética determinada pela religiáo fundiram-se a tal pon­to que é difícil separá-los. No inicio eram o roubo, o homi­cidio e a matanza. No interior dos clás, a única san^áo exis­tente era a cadeia interminável da vinganga de sangue, e quem nao pertencesse a eles nao tinha qualquer direito. O asilo — etimológicamente, “o lugar onde ninguém era rou- bado” — era uma improvisado, criada a fim de atender a uma necessidade e a tornar possíveis a com unicado e as trocas além das fronteiras tribais.

A imunidade do asilo era necessariamente observada tanto para culpados quanto para inocentes, tanto para os criminosos quanto para as vítimas, e a ambigüidade moral ainda é evidente nos dias que correm. Basta pensar em fi­guras como Pol Pot em Beijing, Idi Amim na Libia, Ferdi- nand Marcos no Havai ou Stroessner no Brasil, para nao fa- lar dos inúmeros nazistas que, com a ajuda do Vaticano, encontraram refúgio na América Latina. Originalmente, es­ta prática pode ter representado uma tentativa de dar aos governantes derrubados a o p d ° de se retirarem, reduzin- do o risco de guerra civil. Como demonstra o exemplo cam- bodjano, porém, a concessáo de asilo também pode servir á finalidade de manter vivos os conflitos. De qualquer for­ma, o “nobre” que procura asilo é uma idéia do século xix. Em perspectiva histórica, ele é a exced o.

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Confundir o direito de asilo com outras questóes de imigrado e em igrad0 tem conseqüéncias fatais. A expan-

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sao social e política do conceito de asilo tornou a confusáo ainda maior. Nao é claro por que os imigrantes devam ser considerados iguais a ditadores derrubados ou criminosos em fuga, e nem confundidos com alcoólatras ou vagabun­dos. O resultado é que “candidato a asilo” tornou-se urna expressáo discriminatória, carregada negativamente, uma batata quente política.

Esta confusáo deliberadamente engendrada, contudo, volta-se contra aqueles que a praticam, porque contradiz a idéia fundamental de asilo ao separar os bons dos maus se­gundo o lema: eu decido quem é um candidato a asilo “ge­nuino” e quem nao é. Isso é simplesmente impossível, mes- mo com a melhor boa vontade do mundo — o que nem se pode supor. A distingáo entre refugiados económicos e víti- mas de perseguido política tornou-se um anacronismo em muitos países. Um Estado legalmente constituido que tente estabelecer a distin<jáo sofrerá embarazos inevitáveis, já que é cada vez mais difícil negar que o empobrecimento de con­tinentes inteiros tenha causas políticas, e que fatores inter­nos e externos nao podem mais ser claramente separados.

Afinal, a guerra mundial difusa entre vencedores e der­rotados náo se trava apenas com bombas e armas automá­ticas. A corrupdo, a divida, a fuga de capitais, a hiperinfla- £áo, a explorado, as catástrofes ecológicas, o fanatismo religioso e a incompetencia pura e simples podem chegar a tal ponto que as razóes de fuga sejam táo sólidas quanto a ameaga de prisáo, tortura ou fuzilamento. Todos os proce- dimentos administrativos que visam a distinguir os candida­tos a asilo impecáveis dos improprios estáo condenados ao fracasso apenas por esta razáo.

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A Alemanha é um pais que deve sua populaçâo atual a grandes movimentos migratorios. Desde tempos remotos, há urna troca constante de grupos populacionais, pelas mais diversas razôes. A posiçâo geográfica já é motivo sufi­ciente para que os alemáes, como os austríacos, sejam um povo muito misturado. Que as ideologias da pureza do san- gue ou da raça tenham sido politicamente dominantes logo aqui deve ser entendido como urna forma de compensa- çào. Os arianos nunca foram mais que urna fábula risível. (Nessa medida, o racismo alemáo é diferente do racismo ja­ponés, que apela para o grau relativamente alto de homo- geneidade étnica da populaçâo da ilha.) Um exame rápido de um atlas histórico basta para mostrar que a idéia de urna populaçâo alema homogénea e compacta é infundada. Sua funçâo só pode ser a de tentar soerguer, por meio de urna ficçâo, urna identidade nacional especialmente frágil.

A historia recente do pais prova exatamente isso. A Se­gunda Guerra Mundial mobilizou os alemâes em mais de um sentido. Por um lado, a maioria da populaçâo masculi­na se espalhou até o cabo Norte e o Cáucaso (e, como pri­sioneros de guerra, áté a Sibéria e a Nova Inglaterra), e por outro o fascismo forçou elementos substanciáis da elite ale- mâ e quase toda a populaçâo judaica à emigraçâo ou à morte. Durante a guerra, quase 10 milhôes de trabalhado- res forçados, um terço dos quais eram mulheres, foram tra- zidos à força de toda a Europa para a Alemanha, de modo que 30% de todos os empregos, e na indústria de armamen­tos mais da metade, eram preenchidos por estrangeiros. Depois da guerra, estes foram seguidos por milhôes de pes- soas deslocadas; só muito poucas dessas pessoas, contudo, ficaram na Alemanha.

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Novas migragóes em grande escala comegaram ao fi­nal da guerra. O número de refugiados que, entre 1945 e 1950, ingressou ñas quatro zonas de ocupa^áo é estimado em 12 milhóes; além disso, houve mais de 3 milhóes de “reinstalares” de pessoas oriundas da Europa Oriental e da Uniáo Soviética que eram consideradas de origem ale­ma. Entre 1944 e 1989, 4,4 milhóes de individuos passaram para o Oeste vindos da ex-Alemanha Oriental. E entao, em meados dos anos 50, comeyou o recrutamento sistemático de migrantes para o trabalho, razáo principal para que mais de 5 milhóes de estrangeiros tenham residéncia legal na Alemanha. (A proporfáo de estrangeiros ainda se encontra bem abaixo do nivel de 10% que, se incluirmos os polone­ses das provincias orientáis da Prússia, foi registrado antes da Primeira Guerra Mundial.)

Até a década de 80, o direito de asilo era um fator infi­nitesimalmente menor nos movimentos populacionais. Mas entre 1955 e 1986, de 400 mil a 600 mil alemáes emigravam a cada ano, fato que, notavelmente, é ignorado ñas discus- sóes políticas.

É desconcertante que urna populagáo que tenha atra- vessado tempos como esses possa sofrer da ilusáo de que as migrafóes atuais sejam um fenómeno sem precedente. E como se os alemáes tivessem sido vitimados pela amnésia observada na fábula dos passageiros do trem. Em grande medida, sáo recém-chegados, que mal acabaram eles pró- prios de conquistar um assento, mas insistem em gozar dos direitos dos que aqui se encontram desde sempre. Como se sabe, as conseqüéncias váo além de uma relutáncia em se instalar com menos conforto, apertados no compartimento de primeira classe. Desde 1991, adquiriram os contornos de uma cacada humana organizada.

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Será a xenofobia um problema especificamente ale- máo? Se fosse assim, seria bom demais — e a solu^áo seria obvia: bastaría isolar a República Federal para o resto do mundo poder emitir um suspiro de alivio. Seria fácil apon- tar países vizinhos onde a imigrafáo é tratada com mais ri­gor e onde as cotas de admissáo sao ainda menores que na Alemanha. Mas essas com parares sáo improdutivas. A xe­nofobia é um fenómeno universal. A irracionalidade da controvérsia náo é especificamente alemá, porque o tema nao parece fácilmente acessível á razáo em parte alguma. O que, entáo, é táo especial assim no caso dos alemáes? Por que urna polarizado táo extrema terá surgido aqui?

A culpa histórica sentida pelos alemáes, tenha ou náo fundamento, náo é urna explicado suficiente. As causas sáo mais remotas. Estáo na consciencia precária que a na­d o tem de si mesma. E verdade que os alemáes náo gos- tam uns dos outros e nem de si mesmos; as emocóes que vieram á tona com a unificado da Alemanha náo deixam qualquer dúvida a respeito. Mas alguém que náo gosta de si mesmo vai achar difícil amar aqueles que nem seus vizi­nhos sáo.

Isso é evidente náo só na hostilidade em relado aos estrangeiros que, da negado de fatos obvios (“A Alemanha náo é um país de imigrayáo”) á mobilizagáo de quadrilhas de desordeiros, formou um continuum, mas também na oposigáo a ela.

Náo existe lugar onde a retórica universalista seja mais valorizada que na Alemanha. Os imigrantes sáo defendidos num tom moralizante de absoluta corregáo: lemas como: “Estrangeiros, náo nos deixem sozinhos com os alemáes!” ou: “Alemanha nunca mais!” demonstram urna inversáo hi-

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pócrita de sinais. O cliché racista aparece de forma negati­va. Os ¡migrantes sao idealizados de urna forma que lembra o filo-semitismo. Levada a extremo, a inversáo do precon- ceito pode se transformar em discriminado contra a maio- ria. O odio de si mesmo é projetado nos outros — especial­mente na afirmativa insidiosa: “Sou um estrangeiro” que inúmeras celebridades alemas adotaram.

Urna curiosa alianza entre os remanescentes da es- querda e o clero emergiu. (Alianzas semelhantes também podem ser observadas na Escandinávia, sugerindo que es­ta postura pode ter a ver com a cultura política do protes­tantismo.) Pregar o Sermao da Montanha é, sem dúvida, um dever da Igreja. A ineficácia nao pode ser urna objepáo no contexto religioso. Professá-la só se transforma em hipocri- sia quando isso pretende apresentar-se como solugao polí­tica. Qualquer um que conclame seus concidadáos para oferecer abrigo aos cansados e sofredores da Terra — umi­tas vezes com referéncias a crimes coletivos que váo da conquista da América ao Holocausto — sem considerar as conseqüéncias, sem levar em conta as media<jóes políticas e económicas ou se este projeto é realizável, perde toda credibilidade. Torna-se incapaz de agáo. Conflitos sociais fundamente enraizados nao podem ser abolidos por ser- móes.

Evidentemente, urna esquerda desorientada, desafian­do seus textos clássicos e a despeito das conseqüéncias desastrosas de anos de auto-ilusáo, aínda se aferra á su- perstifáo de que um ser recalcitrante acabará, no final, sub- metendo-se á consciéncia correta se ela for martelada ñas pessoas com freqüéncia suficiente. Que urna minoría auto- declarada dos justos deseje urna na^áo diferente pode cor­responder á sua ambigáo pedagógica. Mas urna mudanza de disposifáo náo pode ser conseguida por chantagem. Pa­

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rafraseando Brecht: “Nao seria mais fácil/ Neste caso para os pregadores/ Dissolver o povo/ E eleger um outro?”.

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O apego aos principios é urna fraqueza tradicional dos intelectuais alemáes. Ele leva a exigencias éticas constantes e excessivas sobre si mesmo e a urna perda recorrente de credibilidade. Existe, porém, outro aspecto desagradável. Já é difícil para os alemáes conseguir conviver consigo pró- prios e com seus vizinhos. Aínda assim, os mesmos mora­listas bem pensantes dispostos a acolher todos os necessi- tados da Terra ao mesmo tempo exigem que os vilóes de ontem se transformem num modelo de altruismo para to­dos os outros, de modo que os problemas do Segundo e do Terceiro Mundos possam ser resolvidos pela contrita alma germánica. Neste caso, também, a idéia sofre embarazos assim que entra em conflito com qualquer interesse concre­to; mas quando a política é conduzida desta forma, o em­barazo é o menos significativo dos problemas que surgem.

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E sempre impossível prever quantos imigrantes um país é capaz de acomodar, porque náo se trata apenas de urna questáo de números absolutos: há variáveis demais em jogo. O aprendizado social e psicológico, bem como processos de familiarizado, náo podem ser arbitrariamen­te acelerados. Com populafóes sem prática, aumentos abruptos de cotas podem produzir rea^óes semi-alérgicas.

A análise económica, porém, oferece as melhores dire- trizes objetivas. Os conflitos inevitáveis que decorrem da

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migrafáo em grande escala só se intensificaram quando o desemprego se tornou crónico nos países receptores. Em tempos de pleno emprego, que provavelmente nunca mais voltaráo, milhóes de migrantes foram recrutados para o tra- balho. Quase 10 milhóes de imigrantes entraram nos Esta­dos Unidos vindos do México; 3 milhóes trocaram o Ma- greb pela Franca; 5 milhóes vieram para a Alemanha, entre eles quase 2 milhóes de turcos. A mígrafáo nao era apenas tolerada, era bem-vinda. A disposigáo só mudou quando o desemprego come^ou a aumentar, apesar de um cresci- mento simultáneo na prosperidade. Desde entáo, as opor­tunidades para os imigrantes no mercado de trabalho redu- ziram-se de maneira dramática. Muitos estáo destinados a fazer carreira no seguro social. Diante de barreiras burocrá­ticas praticamente intransponíveis, outros precisam viver na ilegalidade. As únicas perspectivas que estáo abertas para eles sáo a economía oculta e a criminalidade: o pre- conceito se transforma numa profecía que se cumpre a si mesma.

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Outro obstáculo estrutural á imigragáo, cuja importan­cia é subestimada, é o welfare State. Em contraste com os Estados Unidos, onde nenhum recém-chegado pode contar com urna rede social para ampará-lo, os habitantes de mui­tos países europeus podem ao menos reivindicar salva­guardas mínimas, como auxílio-desemprego, seguro-saúde e seguro social. Em principio, esses direitos náo podem ser recusados a estrangeiros.

No entanto, em lugares onde a propriedade individual e coletiva é considerada sagrada, é limitada a disposi^áo de estender a solidariedade a estrangeiros. Os sindicatos e os

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partidos social-democratas também precisam ceder quando o ivelfare State é submetido a pressóes cada vez maiores. Os sistemas de previdencia existentes sao concebidos co­mo associagóes de membros pagantes; sua escala de tem­po é curta, e seu financiamento a longo prazo, incerto.

Nao existe muito sentido em demonstrar que os re- cém-chegados sao nao apenas usuários mas também con- tribuintes do welfare State, ou que a imigragáo também pode ter um efeito benéfico sobre a estrutura etária da popula- gao. A condifáo para tal seria um mercado de trabalho ca­paz de absorver os imigrantes. De qualquer forma, muitos demógrafos acreditam que a esperanza de urna harmoniza- gao desse tipo é uma ilusáo. A imigragáo teria que atingir proporgóes enormes para poder restaurar a pirámide de idades tradicional. Dependendo do modelo usado, já se calculou que os Estados Unidos precisariam de 4 a 10 mi- lhóes, e a Alemanha de pelo menos 1 milháo de imigrantes jovens a cada ano, para que este objetivo fosse alcanzado. Náo há nada que sugira que estes países pudessem lidar com tal influxo, nem política e nem económicamente.

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De um ponto de vista subjetivo, as coisas parecem aín­da piores. A disposigáo e a capacidade de integrado náo podem mais ser presumidas em qualquer país ou grupo. A idéia da sociedade multicultural continua a ser um slogan confuso, enquanto as dificuldades que ela coloca, e deixa de esclarecer, permanecem tabus. A disputa cansativa nun­ca será resolvida se ninguém souber, ou quiser saber, o que significa cultura — “Tudo o que os seres humanos fazem e náo fazem” parece ser a definigáo mais precisa. Apenas por esta razáo, a discussáo está condenada a reproduzir a con-

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tradigáo entre a subestimado deliberada e a denúncia, o idilio e o pánico.

As experiencias fornecidas pelas migragóes em larga escala do passado sáo ignoradas nessas discussóes. Os ad- versários da imigragáo negam os exemplos de sucesso que podiam ser encontrados em toda parte, dos suecos na Fin- lándia aos huguenotes na Prússia e em outras áreas, dos poloneses no Ruhr aos refugiados húngaros de 1956. Os defensores náo admitem falar nos riscos. Recusam-se a le­var em considerado as guerras civis no Líbano, na ex-Iu- goslávia e no Cáucaso, ou os conflitos ñas cidades ameri­canas. A idéia de um Estado multinacional raramente se mostrou durável. Talvez seja pedir demais que alguém lem- bre a desintegrado do Império Otomano ou a monarquía dos Habsburgo. Mas no que diz respeito á ex-Uniáo Sovié­tica, náo se precisa de qualquer conhecimento de historia; basta urna televisáo. A Uniáo Soviética envidou grandes es- forgos para instilar um sentido de identidade e de objetivos comuns numa “sociedade multicultural”. O resultado foi uma implosáo de conseqüéncias incalculáveis.

Perigos também podem ser observados nos países clás- sicos de imigrado. Tradicionalmente, os recém-chegados se mostravam dispostos em extremo a se adaptar, aínda que seja duvidoso que o célebre meltingpot tenha existido. Em sua maioria, eram perfeitamente capazes de distinguir a integrado da assimilagáo. Aceitavam as normas escritas e náo escritas da sociedade que os acolhia, mas tendiam a preservar sua tradifáo cultural — e muitas vezes também seus costumes lingüísticos e religiosos.

Hoje, é impossível contar com uma atitude semelhan- te entre as velhas minorías ou os novos imigrantes. Com freqüéncia cada vez maior, renuncia-se a lagos comuns. A pobreza e a discriminado levaram as minorías, especial­mente nos Estados Unidos, mas também na Grá-Bretanha e

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na Franga, a adotar ideologías políticas agressivas. Os ex­cluidos viraram a mesa e estáo se desconectando. Urna quantidade cada vez maior de grupos da populagáo insistem em afirmar sua “identidade”. Nao é nada claro o sentido disso. Porta-vozes militantes expóem exigencias separatis­tas. Ás vezes, os lemas recorrem aos legados do tribalismo. Fala-se de urna “nagáo” negra e de urna “nagáo” islámica. Na Inglaterra, os fundamentalistas paquistaneses criaram um “Parlamento mugulmano” argumentando que a popula- gáo islámica do país constituía um sistema político próprio. Teorías conspiratórias atraem seguidores em massa; muitos negros americanos acreditam que o tráfico de drogas é urna estratégia calculada dos brancos com a finalidade de exter­minar a minoría negra.

Há confrontos náo apenas com a maioria, mas também entre as diferentes minorías. Os afro-americanos combatem os judeus, os latinos combatem os coreanos, os haitianos lutam com os negros locáis e assim por diante. Os conflitos sociais tornam-se nacionalizados. Em alguns bairros, há vir- tuais guerras tribais. Nos casos extremos, o apartheid é de­fendido como um direito humano, e a conversáo do gueto num Estado independente é elevada a finalidade última. Ainda assim, os porta-vozes desses movimentos sáo dema­gogos sem qualquer legitimidade democrática, e náo pare­ce que as massas que supostamente representam estejam de fato dando-lhes apoio.

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Mesmo que a disposigáo dos imigrantes em se integrar esteja diminuindo, náo sáo eles que provocam o conflito, e sim aqueles que se consideram nativos. Se ainda fossem apenas os déclassés, os skinheads e os neonazistas! Mas es-

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ses bandos constituem apenas a vanguarda violenta e au- todesignada da xenofobia. A meta de integrado ainda nao foi aceita por grandes contingentes da populad0 européia. A maioria nao está pronta para ela, e hoje talvez nem seja capaz de levá-la a cabo.

Um argumento recente contra a imigragáo deriva do arsenal do anticolonialismo. A Argélia para os argelinos, Cuba para os cubanos, o Tibete para os tibetanos, a África para os africanos — palavras de ordem como essas, que ajudaram muitos movimentos de liberta?áo a chegar á vitó- ría, agora também estáo sendo adotadas pelos europeus, o que náo deixa de ter urna certa lógica insidiosa.

É possível ver o projeto de uma “política preventiva de migra^áo”, visando remover as causas da emigrado, como uma variante filantrópica desta idéia. Para que ele tenha su- cesso, seria necessário eliminar o abismo existente entre os países ricos e os pobres, ou pelo menos reduzi-lo conside- ravelmente. A tarefa está além da capacidade económica das nafóes industriáis, mesmo deixando de lado a questáo dos limites ecológicos para o crescimento. Além disso, náo se detecta em parte alguma a vontade política de promover uma redistribuido global. Meio século das chamadas polí­ticas de desenvolvimento fazem qualquer esperanza de tal meia-volta parecer utópica. Em 1925, Imre Frenczi, alto funcionário da Liga das Nagóes, perguntou como “pode ja- mais haver na Terra uma distribuido uniforme de pessoas cujas tradi^óes, cu jo padráo de vida e cuja raga diferem tan­to uns dos outros, sem pór em perigo a paz e o progresso da humanidade”. Ninguém ainda sabe responder.

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Que qualquer um possa dizer em voz alta o que pen- sa do governo ou do Estado ou do Senhor ñas alturas sem ser torturado e ser ameagado de morte; que os desentendi- mentos sejam resolvidos diante de um tribunal e nao por rixas de sangue; que as mulheres possam deslocar-se livre- mente e nao sejam forjadas a vender-se ou a ser circunci­dadas; que as pessoas possam atravessar as rúas sem serem acuadas por disparos de metralhadora ou pelo avanzo fu­rioso da soldadesca; tudo isso nao é apenas bom, é es- sencial. Em todo o mundo, há gente, presumivelmente a maioria, que deseja essas condi^óes e está disposta a defen- dé-las onde quer que elas existem. Sáo estes os pré-requi- sitos mínimos da civilizado.

Na história da humanidade, este mínimo só foi alean- fado excepcionalmente, e sempre de maneira temporária. Quem se dispóe a defendé-lo dos desafios externos vé-se diante de um dilema: quanto mais ferozmente a civilizado se defende de urna ameaga externa e ergue barreiras á sua volta, menos, no final, resta a defender. No entanto, no que tange aos bárbaros, náo precisamos ficar á sua espera nos portoes. Eles já estáo sempre entre nós.

CERTAS PECULIARIDADES DA CANADA HUMANA

Qualquer pessoa que intervenha nos discursos políti­cos da vida pública alemá o faz por seu próprio risco. Náo sáo tanto as acusag oes moráis costumeiras nessa esfera que funcionam como dissuasor (fundam-se numa tradicáo esta- belecida e sáo um trago familiar do jornalismo); mais sérios

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sao os riscos intelectuais corridos por alguém que participe do debate público. Será inevitavelmente ridicularizado as- sim que der sua contribuido. A razáo náo é difícil de en­contrar: todos os que se submetem ás premissas de um talk show já estáo perdidos, e só podem culpar a si mesmos. Náo é segredo de onde emanam as regras, ás quais os par­ticipantes se subordinara mais ou menos de bom grado.

Anos atrás, correu pelo quartel-general dos partidos a noticia de que a ocupado das idéias é, estratégicamente, táo importante quanto o controle do aparelho do poder. Só podemos admirar a pericia com que a classe política, para a qual nada é menos conveniente que as idéias, apossou-se dessa teoría. Urna conseqüéncia é que o debate político es­tá se tornando mais e mais um fantasma dos meios de co­municado; ele se evapora na televisáo, e especialmente no que a televisáo tem de pior: os jomáis diários sobre os acontecimentos políticos em Bonn. O discurso da oposigáo é restringido por essas condifóes: ele se contenta em virar de cabera para baixo os slogans de seus adversários.

Náo há lugar onde este padráo bruto se manifeste com mais clareza que na “política dos estrangeiros” e no “deba­te do asilo”. As próprias formulagóes sáo obviamente pro- dutos das estrumeiras de Bonn. Os políticos, porém, conse- guiram deslocar a discussáo para duas áreas que podem ser arbitrariamente intercambiadas na medida do necessário. Por um lado, é instigada urna discussáo abstrata e morali­zante sobre os principios; por outro, é possível, a qualquer momento, recorrer a minúcias do procedimento legal cada vez que é levantada a questáo de pór qualquer coisa em prática. Com esta dupla estratégia, questóes bastante ob­vias, que os promotores evidentemente náo estáo interes- sados em formular, acabam se perdendo no caminho.

Eu gostaria de levantar urna dessas questóes aqui. Em- bora náo seja central para o problema da Grande Migrado,

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ela é, ainda assim, uma questào de vida e morte para aque­les que já vivem na Alemanha — qualquer que seja seu passaporte, seu visto ou sua legitimidade. É a questào de saber se este pais é realmente habitável. Considero um lu­gar inabitável quando um bando de desordeiros tem a li- berdade de atacar pessoas no meio da rua ou atear fogo as suas casas.

Podemos ignorar a questào de quem é ou nào supos- tamente alemao, pelo menos na medida em que ela nào é decidida pela obrigaçào de um grupo usar roupas normáis enquanto o resto é forçado por lei a ostentar triángulos, cruzes ou estrelas. Já que ninguém ainda propos leis como esta, a distinçâo entre nativos e estrangeiros é irrelevante neste contexto. E também é supérfluo, neste contexto, dis- torcer sentimentalmente o estatuto do estrangeiro, por exemplo, com a afirmaçào popular que vem sendo procla­mada por todas as pretensas celebridades: “Eu sou um es­trangeiro”.

Até mesmo o mais breve dos olhares revela que vadios e chatos, cretinos e idiotas sáo encontrados em meio à po- pulaçâo nativa com a mesma freqüéncia estatística que ocorre entre os turcos, os tâmeis ou os poloneses. Ser força­do a viver junto com eles sem recorrer à violéncia é uma exigéncia nada razoável, que numa sociedade civilizada to­dos, sem exceçâo, sáo obrigados a aceitar. Mesmo os que náo querem aceitá-la devem, se necessário, ser obrigados a fazê-lo. Pois o que é intolerável é a presença de pessoas que empreendem caçadas humanas individuáis ou organizadas.

A simples distinçâo nào tem nada a ver com o chama­do problema dos estrangeiros. E nem tem nada a ver com as novas regras para os procedimentos de asilo, menos ain­da com a miséria do Terceiro Mundo ou com o racismo oni- presente. O que está em jogo é o monopolio da força bru­ta que o Estado reivindica para si.

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Podem-se acusar os varios governos desta república de todos os tipos de coisa, mas ninguém poderia dizer que jamais hesitaram em fazer uso desse monopolio sempre que ele lhes pareceu ameaçado. Ao contrário, o Executivo nunca demonstrou a menor falta de entusiasmo nessas si- tuaçôes. Os guardas federáis da fronteira, os serviços secre­tos, as forças especiáis de segurança, as unidades móveis de resposta rápida da policía, os departamentos de deteti- ves estaduais e federáis sempre estiveram à máo com todos os recursos e equipamentos, de computadores a esqua- dróes de helicópteros, de kits de identificaçâo a carros blindados de transporte de tropas. E o Legislativo também nunca se mostrou menos diligente. Chega ás raias da irres- ponsabilidade a abertura de novas figuras legáis, desde o conceito de “associaçâo criminosa” até a lei que proíbe vi­sitas e cartas aos prisioneiros que aguardam julgamento. Em decorréncia, o Estado alemâo tem acesso a um arsenal assustador de meios de autoproteçâo.

Nos últimos meses, porém, nem mesmo o mais insig­nificante dos usos foi dado a todos esses recursos. De fato, todo o aparato da repressáo, da policía aos tribunais, rea- giu ao surgimento de urna grande quantidade de bandos de desordeiros ñas duas partes da Alemanha com um grau de contençâo sem precedentes. A única exceçâo foram as de- tençôes; nos casos em que foram feitas, os acusados quase sempre acabaram postos em liberdade no día seguinte. O gabinete do procurador federal do Estado e da policía fede­ral, antes onipresentes nos meios de comunicaçâo, dedica­dos a repelir qualquer ameaça ao povo alemáo, guardaram siléncio, como se estivessem temporariamente aposenta­dos. Os guardas federáis da fronteira, que apenas poucos anos atrás ocupavam todas as estradas vicinais do país, pa- recem ter sumido da face da Terra.

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Quanto aos políticos, muitos deles subiram ao palco num papel pouco familiar: o de assistentes sociais. Seus es- forgos terapéuticos nao visavam as vítimas da cagada — lo­gradas com frases altissonantes — mas as pessoas que em- preenderam a cagada humana. Lamentáveis deficiencias do sistema educacional, especialmente na ex-Alemanha Orien­tal, foram mencionadas; súplicas se ouviam pedindo a com- preensáo para com a dura realidade do desemprego; além de sua imaturidade, a desorientagáo cultural dos matadores foi levada em consideragáo. No fim das contas, estávamos lidando com “pobres almas” que precisavam ser tratadas com a máxima paciéncia. Náo era mesmo possível esperar que essas pessoas táo desprivilegiadas fossem perceber que atear fogo a criangas é, no sentido estrito, uma ativida- de náo permissível. Precisamos chamar a atengáo o quanto antes para o suprimento insuficiente de atividades de lazer postas á disposigáo desses facínoras.

Esta compaixáo profunda é espantosa, quando nos lembramos das imagens de Brokdorf (uma usina que se transformou no foco dos protestos antinucleares) e da Start­bahn West (uma das pistas do aeroporto de Frankfurt, des­tinada inicialmente ao uso militar norte-americano, cuja construgáo foi adiada por anos de protesto). Naquela oca- siáo, os ocupantes do poder náo pareceram cogitar na cria- gáo acelerada de discotecas ou clubes de jovens como uma possível solugáo; evidentemente, nos anos 70, o acesso li- vre e inconteste ao paraíso da sociedade de lazer ainda náo se transformara num direito inalienável. Ao contrário, os pontapés, as porretadas e os tiros eram desferidos com vi­gor considerável e, se me lembro bem, o Estado chegou a se declarar pronto a produzir algumas vítimas fatais no cor­rer do processo.

Dever-se-á esta súbita mudanga de disposigáo a uma conversáo? Desde o Iluminismo, sempre surgiram humani-

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tários que nos asseguravam que a lei criminal é inadequada como solugáo para os problemas sociais. E isso nao pode ser negado, dadas as condifóes das prisóes e o alto índice de reincidencia, ainda que os reformadores continuem a nos dever urna alternativa convincente. No entanto, isso nao explica a intrigante mudanza de atitude da parte do apare- lho de Estado, assumindo urna leniéncia compassiva para com assassinos. Ladróes de lojas e assaltantes de bancos, vi- garistas e estelionatários, terroristas e extorsionistas conti- nuam a ser presos como sempre; nenhum partido político chegou a defender a abolido sumaria do código penal ou mesmo urna reforma geral do sistema penal. Precisamos portanto procurar outras exp licares Para compreender a discrepancia entre a perseguido entusiasmada de um lado e, do outro, o mais completo laissez-faire.

É possível que a intensidade do esforgo dependa dos interesses que a lei existe para proteger? Nos precedentes já citados, era uma questáo da propriedade privada de bens imóveis, do direito de ampliar aeroportos, construir estra­das e erguer instala^óes nucleares de todo tipo. Nos ata­ques e nos crimes dos últimos meses, contudo, as vidas de alguns milhares de habitantes do país correram risco. Evi­dentemente, as agencias do Estado devem considerar que o homicidio e a matanza sao uma simples contravendo, enquanto a rem odo de uma cerca é um crime sério.

As circunstancias também suscitam outras interpreta­r e s - É difícil acreditar nela, mas nao se pode excluir de to­do a hipótese de que haja políticos que simpatizem com os bandos homicidas que infestam o país. Talvez seja mais provável que muitos se limitem a assistir sentados e impas- síveis á cagada humana porque imaginem que esta atitude possa trazer-lhes mais vantagens políticas. Nao é agradável, é claro, acreditar em tamanho grau de idiotice, e só a au-

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sência de outras explicaçôes plausíveis justifica cogitarmos nesta hipótese.

Até mesmo a mais estúpida das pessoas compreende urna coisa: renunciar ao monopolio da força pelo Estado tem conseqüências que podem prejudicar a própria classe política. Um dos resultados é a necessidade de autodefesa. Se o Estado se recusa a protegé-los, os individuos ou gru­pos ameaçados precisarào armar-se. O comércio interna­cional se encarregará de atender à demanda corresponden­te. Assim que a resisténcia tiver sido organizada, haverá guerras de quadrilhas (um desdobramento que já pode ser observado ñas cidades maiores, como Berlim e Hambur- go). Politicamente, podem surgir condiçôes semelhantes as que a Alemanha viveu no período final da República de Weimar.

Além disso, se o terror de massa nas ruas nào conseguir os resultados que espera, acabará se voltando contra a clas­se política. Ninguém tem urna segurança pessoal perfeita, e seria urna ilusáo acreditar-se que essas tropas de choque do germanismo iráo continuar, a longo prazo, a retribuir a in- dulgéncia paternal com que sáo tratados em muitos lugares. Esta tolerancia, que sempre favorece os criminosos e nunca as vítimas, é um indicio de um gosto excessivo pela conti- nuidade. Certos políticos tém dificuldades obvias para rom­per com ela. Isso permite várias conclusses, entre as quais só urna é surpreendente: o sentido de autopreservaçâo des­sas pessoas é menos pronunciado do que pensávamos.

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aparentemente, da capacidade de inter­vengo racional dos estados, do direito in­ternacional ou da sociedade civil.

Ler este Guerra civil é tomar contato com um campo minado que aproxima, pelo lado mais tenebroso, os cotidianos do Primeiro e Terceiro Mundos. Se os países e continentes váo ficando mais parecidos no que a humanidade tem de pior, é o caso de nos perguntar como nossas limitadas facul- dades de seres pensantes e sensíveis po- dem contribuir para afastar o terror, pelo menos nos lugares e momentos que nos to- cam diretamente.

0 poeta e ensaísta alemäo Hans Magnus Enzensberger nasceu em 1929, na cidade de Kaufbeuren, em Allgäu, na Baviera. No Brasil, ¡á publicou, entre ou- tros, os livros Elementos para urna teoría dos meios de comunicado; Com raiva e paciencia, Eu falo dos que nao falanr, 0 curto veráo da anarquía e A outra Europa, os dois últimos pela Companhia das Letras.