Guy-Debord - A Sociedade Do Espectaculo

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    Ttulo:A Sociedade do EspectculoAutor:Guy DebordTraduo: mobilis in mobile -Francisco Alves e Afonso MonteiroReviso e concepo grfica terminada em Novembro de 2005na Casa da Antipatia

    Tipo de letra: Filosofia (Emigre)Tiragem: 100 exemplaresImpresso: PublidisaDepsito legal:

    Edies AntipticasAp. 1141, 2750-801 [email protected]

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    Guy Debord

    a sociedade doespectculo

    Lisboaedies antipticas

    2005

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    ndice

    Capt ulo I - A Sepa rao Acabada...................................... 7

    Captulo II - A MercadoriaComo Espectcu lo......................................... 21

    Captu lo III - Unidade e Divisona Apa rncia................................................ 33

    Captulo IV - O Proletariado ComoSujeito e Como Representao..................... 47

    Capt ulo V - Tempo e Histri a.......................................... 91

    Captu lo V I - O Tempo Espectacular................................ 109

    Captu lo V II - A Ordenao do Territrio.......................... 119

    Captu lo VIII - A Negao e o Consumo na Cultu ra........... 129

    Captu lo IX - A Ideologia Materia lizada........................... 149

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    CAPTULO IA SEPAR AO ACABADA

    E sem dvida o nosso tempo... Prefere a imagem coisa, a cpiaao original, a representao realidade, a aparncia ao ser... Oque sagrado para ele, no seno a iluso, mas o que profano a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos medida quedecresce a verdade e que a iluso aumenta, de modo que para ele ocmulo da iluso tambm o cmulo do sagrado.

    Feuerbach - Prefcio segunda edio deA Essncia do Cristianis mo

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    1Toda a vida das sociedades nas quais reinam

    as condies modernas de produo se anuncia comouma imensa acumulao de espectculos. Tudo o que eradirectamente vivido se afastou numa representao.

    2As imagens que se desligaram de cada aspecto da

    vida fundem-se num curso comum, onde a unidade destavida j no pode ser restabelecida. A realidade consideradaparcialmente desdobra-se na sua prpria unidade geralenquanto pseudomundo parte, objecto de exclusivacontemplao. A especializao das imagens do mundoencontra-se realizada no mundo da imagem autonomizada,onde o mentiroso mentiu a si prprio. O espectculo emgeral, como inverso concreta da vida, o movimentoautnomo do no-vivo.

    3O espectculo apresenta-se ao mesmo tempo como

    a prpria sociedade, como uma parte da sociedade, e comoinstrumento de unificao. Enquanto parte da sociedade, ele

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    expressamente o sector que concentra todo o olhar e toda aconscincia. Pelo prprio facto de este sector ser separado,ele o lugar do olhar iludido e da falsa conscincia; e aunificao que realiza no outra coisa seno uma linguagemoficial da separao generalizada.

    4O espectculo no um conjunto de imagens, mas

    uma relao social entre pessoas, mediatizada por imagens.

    5O espectculo no pode ser compreendido como

    o abuso de um mundo da viso, o produto das tcnicasde difuso massiva de imagens. Ele bem mais umaWeltanschauungtornada efectiva, materialmente traduzida. uma viso do mundo que se objectivou.

    6O espectculo, compreendido na sua totalidade,

    ao mesmo tempo o resultado e o projecto do modo deproduo existente. Ele no um suplemento ao mundo real,a sua decorao readicionada. o corao da irrealidadeda sociedade real. Sob todas as suas formas particulares,informao ou propaganda, publicidade ou consumodirecto de divertimentos, o espectculo constitui o modelopresente da vida socialmente dominante. Ele a afirmaoomnipresente da escolha j feita na produo, e o seu

    corolrio o consumo. Forma e contedo do espectculo soidenticamente a justificao total das condies e dos fins

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    do sistema existente. O espectculo tambm a presenapermanente desta justificao, enquanto ocupao da parteprincipal do tempo vivido fora da produo moderna.

    7A prpria separao faz parte da unidade do mundo, da

    prxis social global que se cindiu em realidade e imagem. Aprtica social, perante a qual se pe o espectculo autnomo, tambm a totalidade real que contm o espectculo. Mas aciso nesta totalidade mutila-a ao ponto de fazer aparecer oespectculo como sua finalidade. A linguagem do espectculo constituda por signos da produo reinante, que so aomesmo tempo a finalidade ltima desta produo.

    8No se pode opor abstractamente o espectculo e

    a actividade social efectiva; este desdobramento est eleprprio desdobrado. O espectculo que inverte o real efectivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidadevivida materialmente invadida pela contemplao doespectculo, e retoma em si prpria a ordem espectaculardando-lhe uma adeso positiva. A realidade objectiva estpresente nos dois lados. Cada noo assim fixada no tempor fundamento seno a sua passagem ao oposto: a realidadesurge no espectculo, e o espectculo real. Esta alienaorecproca a essncia e o sustento da sociedade existente.

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    9No mundo realmente reinvertido, o verdadeiro um

    momento do falso.

    10O conceito de espectculo unifica e explica uma

    grande diversidade de fenmenos aparentes. As suasdiversidades e contrastes so as aparncias desta aparnciaorganizada socialmente, que deve, ela prpria, serreconhecida na sua verdade geral. Considerado segundoos seus prprios termos, o espectculo a afirmao daaparncia e a afirmao de toda a vida humana, isto ,social, como simples aparncia. Mas a crtica que atinge averdade do espectculo descobre-o como a negaovisvelda vida; como uma negao da vida que se tornou visvel .

    11Para descrever o espectculo, a sua formao, as suas

    funes e as foras que tendem para a sua dissoluo, preciso distinguir artificialmente elementos inseparveis.Ao analisaro espectculo, fala-se em certa medida a prprialinguagem do espectacular, no sentido em que se pisa oterreno metodolgico desta sociedade que se exprime noespectculo. Mas o espectculo no outra coisa seno o

    sentidoda prtica total de uma formao econmico-social,o seu emprego do tempo. o momento histrico que noscontm.

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    12O espectculo apresenta-se como uma enorme

    positividade indiscutvel e inacessvel. Ele nada mais dizseno que o que aparece bom, o que bom aparece. Aatitude que ele exige por princpio esta aceitao passivaque, na verdade, ele j obteve pela sua maneira de aparecer

    sem rplica, pelo seu monoplio da aparncia.

    13O carcter fundamentalmente tautolgico do

    espectculo decorre do simples facto de os seus meios serem aomesmo tempo a sua finalidade. Ele o sol que no tem poente,no imprio da passividade moderna. Recobre toda a superfciedo mundo e banha-se indefinidamente na sua prpria glria.

    14A sociedade que repousa sobre a indstria moderna

    no fortuitamente ou superficialmente espectacular,ela fundamentalmente espectaculista. No espectculo,imagem da economia reinante, o fim no nada, odesenvolvimento tudo. O espectculo no quer chegar aoutra coisa seno a si prprio.

    15Enquanto indispensvel adorno dos objectos hoje

    produzidos, enquanto exposio geral da racionalidade dosistema, e enquanto sector econmico avanado que modela

    directamente uma multido crescente de imagens-objectos, oespectculo aprincipal produoda sociedade actual.

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    16O espectculo submete a si os homens vivos, na

    medida em que a economia j os submeteu totalmente.Ele no nada mais do que a economia desenvolvendo-separa si prpria. o reflexo fiel da produo das coisas, e aobjectivao infiel dos produtores.

    17A primeira fase da dominao da economia sobre a

    vida social levou, na definio de toda a realizao humana,a uma evidente degradao do ser em ter. A fase presente daocupao total da vida social pelos resultados acumuladosda economia conduz a um deslizar generalizado do terem parecer, de que todo o ter efectivo deve tirar o seuprestgio imediato e a sua funo ltima. Ao mesmo tempo,toda a realidade individual se tornou social, directamentedependente do poderio social, por ele moldada. Somentenisto em que ela no , lhe permitido aparecer.

    18L onde o mundo real se converte em simples

    imagens, as simples imagens tornam-se seres reais emotivaes eficientes de um comportamento hipntico. Oespectculo, como tendncia para fazer ver por diferentesmediaes especializadas o mundo que j no directamenteapreensvel, encontra normalmente na vista o sentidohumano privilegiado que noutras pocas foi o tacto; o

    sentido mais abstracto, e o mais mistificvel, corresponde abstraco generalizada da sociedade actual. Mas o

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    espectculo no identificvel ao simples olhar, mesmocombinado com o ouvido. Ele o que escapa actividadedos homens, reconsiderao e correco da sua obra. ocontrrio do dilogo. Em toda a parte onde h representaoindependente, o espectculo reconstitui-se.

    19O espectculo o herdeiro de toda a fraqueza do

    projecto filosfico ocidental, que foi uma compreenso daactividade, dominada pelas categorias do ver; assim como sebaseia no incessante alargamento da racionalidade tcnicaprecisa, proveniente deste pensamento. Ele no realiza afilosofia, ele filosofa a realidade. a vida concreta de todosque se degradou em universo especulativo.

    20A filosofia, enquanto poder do pensamento separado,

    e pensamento do poder separado, nunca pde por si prpriasuperar a teologia. O espectculo a reconstruo materialda iluso religiosa. A tcnica espectacular no dissipou asnuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seusprprios poderes desligados de si: ela ligou-os somente auma base terrestre. Assim, a mais terrestre das vidas que setorna opaca e irrespirvel. Ela j no reenvia para o cu, masalberga em si a sua recusa absoluta, o seu falacioso paraso.O espectculo a realizao tcnica do exlio dos podereshumanos num alm; a ciso acabada no interior do homem.

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    21 medida que a necessidade se encontra socialmente

    sonhada, o sonho torna-se necessrio. O espectculo o mausonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmenteno exprime seno o seu desejo de dormir. O espectculo oguardio deste sono.

    22O facto de o poder prtico da sociedade moderna se ter

    desligado de si prprio, e ter edificado para si um imprioindependente no espectculo, no se pode explicar senopelo facto de esta prtica poderosa continuar a ter falta decoeso, e permanecer em contradio consigo prpria.

    23 a especializao do poder, a mais velha especializao

    social, que est na raiz do espectculo. O espectculo ,assim, uma actividade especializada que fala pelo conjuntodas outras. a representao diplomtica da sociedadehierrquica perante si prpria, onde qualquer outra palavra banida. O mais moderno tambm a o mais arcaico.

    24O espectculo o discurso ininterrupto que a ordem

    presente faz sobre si prpria, o seu monlogo elogioso. o auto-retrato do poder na poca da sua gesto totalitriadas condies de existncia. A aparncia fetichista de

    pura objectividade nas relaes espectaculares esconde oseu carcter de relao entre homens e entre classes: uma

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    segunda natureza parece dominar o nosso meio ambientecom as suas leis fatais. Mas o espectculo no esse produtonecessrio do desenvolvimento tcnico olhado como umdesenvolvimento natural. A sociedade do espectculo ,pelo contrrio, a forma que escolhe o seu prprio contedotcnico. Se o espectculo, considerado sob o aspecto restrito

    dos meios de comunicao de massa, que so a suamanifestao superficial mais esmagadora, pode parecerinvadir a sociedade como uma simples instrumentao,esta no de facto nada de neutro, mas a instrumentaomesmo que convm ao seu automovimento total. Se asnecessidades sociais da poca em que se desenvolvemtais tcnicas no podem encontrar satisfao seno pelasua mediao, se a administrao desta sociedade e todoo contacto entre os homens j no se podem exercer senopor intermdio deste poder de comunicao instantneo, porque esta comunicao essencialmente unilateral;de modo que a sua concentrao se traduz no acumular nasmos da administrao do sistema existente os meios quelhe permitem prosseguir esta administrao determinada.A ciso generalizada do espectculo inseparvel do Estadomoderno, isto , da forma geral da ciso na sociedade, produtoda diviso do trabalho social e rgo da dominao de classe.

    25A separao o alfa e o mega do espectculo. A

    institucionalizao da diviso social do trabalho, a formao

    das classes, tinha construdo uma primeira contemplaosagrada, a ordem mtica em que todo o poder se envolve

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    desde a origem. O sagrado justificou a ordenao csmica eontolgica que correspondia aos interesses dos Senhores,ele explicou e embelezou o que a sociedade no podia fazer.Todo o poder separado foi pois espectacular, mas a adesode todos a uma tal imagem imvel no significava seno oreconhecimento comum de um prolongamento imaginrio

    para a pobreza da actividade social real, ainda largamenteressentida como uma condio unitria. O espectculomoderno exprime, pelo contrrio, o que a sociedade pode

    fazer, mas nesta expresso opermitidoope-se absolutamenteao possvel. O espectculo a conservao da inconscinciana modificao prtica das condies de existncia. Ele o seu prprio produto, e ele prprio fez as suas regras: um pseudo-sagrado. Ele mostra o que : o poder separado,desenvolvendo-se em si mesmo no crescimento daprodutividade por intermdio do refinamento incessante dadiviso do trabalho na parcelarizao dos gestos, desde entodominados pelo movimento independente das mquinas; etrabalhando para um mercado cada vez mais vasto. Toda acomunidade e todo o sentido crtico se dissolveram ao longodeste movimento, no qual as foras que puderam crescer,separando-se, ainda no se reencontraram.

    26Com a separao generalizada do trabalhador e do

    seu produto perde-se todo o ponto de vista unitrio sobrea actividade realizada, toda a comunicao pessoal directa

    entre os produtores. Na senda do progresso da acumulaodos produtos separados, e da concentrao do processo

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    produtivo, a unidade e a comunicao tornam-se o atributoexclusivo da direco do sistema. O xito do sistemaeconmico da separao a proletarizao do mundo.

    27Pelo prprio xito da produo separada enquanto

    produo do separado, a experincia fundamental ligadanas sociedades primitivas a um trabalho principal est adeslocar-se, no plo do desenvolvimento do sistema, parao no-trabalho, a inactividade. Mas esta inactividade noest em nada liberta da actividade produtiva: dependedesta, a submisso inquieta e admirativa s necessidadese aos resultados da produo; ela prpria um produto dasua racionalidade. Nela no pode haver liberdade fora daactividade, e no quadro do espectculo toda a actividade negada, exactamente como a actividade real foi integralmentecaptada para a edificao global desse resultado. Assim, aactual libertao do trabalho, o aumento dos temposlivres, no de modo algum libertao no trabalho, nemlibertao de um mundo moldado por este trabalho. Nadada actividade roubada no trabalho pode reencontrar-se nasubmisso ao seu resultado.

    28O sistema econmico fundado no isolamento

    uma produ o circula r do isolamento. O isolamento fundaa tcnica, e, em retorno, o processo tcnico isola. Do

    automvel televiso, todos os bens seleccionados pelosistema espectacular so tambm as suas armas para

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    o reforo constante das condies de isolamento dasmultides solitrias. O espectculo reencontra cadavez mais concretamente os seus prprios pressupostos.

    29A origem do espectculo a perda da unidade do

    mundo, e a expanso gigantesca do espectculo modernoexprime a totalidade desta perda: a abstraco de todo otrabalho particular e a abstraco geral da produo doconjunto traduzem-se perfeitamente no espectculo, cujomodo de ser concreto justamente a abstraco. No espectculo,uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e -lhesuperior. O espectculo no mais do que a linguagemcomum desta separao. O que une os espectadores no mais do que uma relao irreversvel no prprio centro quemantm o seu isolamento. O espectculo rene o separado,mas rene-o enquanto separado.

    30A alienao do espectador em proveito do objecto

    contemplado (que o resultado da sua prpria actividadeinconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla,menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagensdominantes da necessidade, menos ele compreende a suaprpria existncia e o seu prprio desejo. A exterioridade doespectculo em relao ao homem que age aparece nisto, osseus prprios gestos j no so seus, mas de um outro que

    lhos apresenta. Eis porque o espectador no se sente em casaem nenhum lado, porque o espectculo est em toda a parte.

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    31O trabalhador no se produz a si prprio, ele produz

    um poder independente. O sucesso desta produo, a suaabundncia, regressa ao produtor como abundncia dadespossesso. Todo o tempo e o espao do seu mundo selhe tornam estranhos com a acumulao dos seus produtos

    alienados. O espectculo o mapa deste novo mundo, mapaque recobre exactamente o seu territrio. As prprias forasque nos escaparam mostram-se-nosem todo o seu poderio.

    32O espectculo na sociedade corresponde a um fabrico

    concreto de alienao. A expanso econmica principalmentea expanso desta produo industrial precisa. O que cresce coma economia, movendo-se para si prpria, no pode ser seno aalienao que estava justamente no seu ncleo original.

    33O homem separado do seu produto produz cada vez

    mais poderosamente todos os detalhes do seu mundo e, assim,encontra-se cada vez mais separado do seu mundo. Quanto maisa sua vida agora seu produto, tanto mais ele est separado dasua vida.

    34O espectculo o capitala um tal grau de acumulao que

    se torna imagem.

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    CAPTULO IIA MERCADORIA COMO ESPECTCULO

    Porque no seno como categoria universal do ser socialtotal que a mercadoria pode ser compreendida na sua essnciaautntica. No seno neste contexto que a reificao surgida darelao mercantil adquire uma significao decisiva, tanto pelaevoluo objectiva da sociedade como pela atitude dos homensem relao a ela, para a submisso da sua conscincia s formasnas quais esta reificao se exprime... Esta submisso acresce-seainda do facto de quanto mais a racionalizao e a mecanizaodo processo de trabalho aumentam, mais a actividade dotrabalhador perde o seu carcter de actividade, para se tornaruma atitude contemplativa.

    Lukcs -Histria e conscincia de classe

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    35Neste movimento essencial do espectculo, que

    consiste em retomar em si tudo o que existia na actividadehumanano estado fluido, para o possuir no estado coagulado,enquanto coisas que se tornaram o valor exclusivo pela sua

    formulao em negativo do valor vivido, ns reconhecemosa nossa velha inimiga que to bem sabe parecer primeiravista qualquer coisa de trivial e compreendendo-se por siprpria, quando, pelo contrrio, ela to complexa e tocheia de subtilezas metafsicas, a mercadoria.

    36 o princpio do fetichismo da mercadoria, a

    dominao da sociedade por coisas supra-sensveisembora sensveis que se realiza absolutamente noespectculo, onde o mundo sensvel se encontrasubstitudo por uma seleco de imagens que existemacima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer comoo sensvel por excelncia.

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    37O mundo ao mesmo tempo presente e ausente que

    o espectculo faz ver o mundo da mercadoria dominandotudo o que vivido. E o mundo da mercadoria assimmostrado como ele , pois o seu movimento idntico aoafastamento dos homens entre si e face ao seu produto

    global.

    38A perda da qualidade, to evidente a todos os nveis

    da linguagem espectacular, dos objectos que ela louvae das condutas que ela regula, no faz seno traduzir oscaracteres fundamentais da produo real que repudiaa realidade: a forma-mercadoria de uma ponta a outra aigualdade consigo prpria, a categoria do quantitativo. o quantitativo que ela desenvolve, e ela no se podedesenvolver seno nele.

    39Este desenvolvimento que exclui o qualitativo

    est ele prprio submetido, enquanto desenvolvimento, passagem qualitativa: o espectculo significa que eletransps o limiar da sua prpria abundncia; isto ainda no verdadeiro localmente seno em alguns pontos, mas jverdadei ro esca la universal, que a referncia orig inalda mercadoria, referncia que o seu movimento prticoconfirmou, ao reunir a terra como mercado mundial.

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    40O desenvolvimento das foras produtivas foi a histria

    real inconsciente que construiu e modificou as condiesde existncia dos grupos humanos, enquanto condiesde sobrevivncia, e alargamento destas condies: a baseeconmica de todos os seus empreendimentos. O sector

    da mercadoria foi, no interior de uma economia natural, aconstituio de um excedente de sobrevivncia. A produodas mercadorias, que implica a troca de produtos variadosentre produtores independentes, pde permanecerdurante muito tempo artesanal, contida numa funoeconmica marginal onde a sua verdade quantitativaest ainda encoberta. No entanto, l onde encontrou ascondies sociais do grande comrcio e da acumulao doscapitais, ela apoderou-se do domnio total da economia. Aeconomia inteira tornou-se ento o que a mercadoria tinhamostrado ser no decurso desta conquista: um processo dedesenvolvimento quantitativo. O alargamento incessantedo poderio econmico sob a forma da mercadoria, quetransfigurou o trabalho humano em trabalho-mercadoria,em salariado, conduz cumulativamente a uma abundnciana qual a questo primeira da sobrevivncia est semdvida resolvida, mas de um tal modo que ela deve semprereencontrar-se; ela , cada vez, colocada de novo a um grausuperior. O crescimento econmico liberta as sociedadesda presso natural que exigia a sua luta imediata pelasobrevivncia, mas ento do seu libertador que elas no

    esto libertas. A independnciada mercadoria estendeu-seao conjunto da economia sobre a qual ela reina. A economia

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    transforma o mundo, mas transforma-o somente em mundoda economia. A pseudonatureza na qual o trabalho humanose alienou exige prosseguir ao infinito o seu servio, e esteservio, no sendo julgado e absolvido seno por ele prprio,obtm, de facto, a totalidade dos esforos e dos projectossocialmente lcitos, como seus servidores. A abundncia das

    mercadorias, isto , da relao mercantil, no pode ser maisdo que asobrevivncia aumentada.

    41A dominao da mercadoria exerceu-se, antes do

    mais, de uma maneira oculta sobre a economia, que elaprpria, enquanto base material da vida social, permaneciadesapercebida e incompreendida, como o familiar queapesar de tal no conhecido. Numa sociedade em que amercadoria concreta permanece rara ou minoritria, adominao aparente do dinheiro que se apresenta como oemissrio munido de plenos poderes que fala em nome deuma potncia desconhecida. Com a revoluo industrial, adiviso manufactureira do trabalho e a produo macia parao mercado mundial, a mercadoria aparece efectivamentecomo uma potncia que vem realmente ocupara vida social. ento que se constitui a economia poltica, como cinciadominante e como cincia da dominao.

    42 O espectculo o momento em que a mercadoria

    chega ocupao total da vida social. No s a relao coma mercadoria visvel, como nada mais se v seno ela: o

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    mundo que se v o seu mundo. A produo econmicamoderna estende a sua ditadura extensiva e intensivamente.Nos lugares menos industrializados, o seu reino j estpresente com algumas mercadorias-vedetas e enquantodominao imperialista pelas zonas que esto cabea nodesenvolvimento da produtividade. Nestas zonas avanadas, o

    espao social est invadido por uma sobreposio contnua decamadas geolgicas de mercadorias. Neste ponto da segundarevoluo industrial, o consumo alienado torna-se para asmassas um dever suplementar produo alienada. todo otrabalhovendidode uma sociedade, que se torna globalmentea mercadoria total, cujo ciclo deve prosseguir. Para o fazer, preciso que esta mercadoria total regresse fragmentariamenteao indivduo fragmentrio, absolutamente separado dasforas produtivas operando como um conjunto. , portanto,aqui que a cincia especializada da dominao deve por suavez especializar-se: ela reduz-se a migalhas, em sociologia,psicotcnica, ciberntica, semiologia, etc., velando autoregulao de todos os nveis do processo.

    43Ainda que na fase primitiva da acumulao capitalista

    a economia poltica no veja no proletrioseno o operrioque deve receber o mnimo indispensvel para a conservaoda sua fora de trabalho, sem nunca o considerar nosseus lazeres, na sua humanidade, esta posio das ideiasda classe dominante reinverte-se assim que o grau de

    abundncia atingido na produo das mercadorias exigeum excedente de colaborao do operrio. Este operrio,

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    subitamente lavado do desprezo total que lhe claramentefeito saber por todas as modalidades de organizao evigilncia da produo, reencontra-se, cada dia, fora desta,aparentemente tratado como uma grande pessoa, com umadelicadeza obsequiosa, sob o disfarce do consumidor. Entoo humanismo da mercadoria toma a cargo os lazeres e

    humanidade do trabalhador, muito simplesmente porque aeconomia poltica pode e deve dominar, agora, estas esferas,enquanto economia poltica. Assim, o renegar acabado dohomem tomou a cargo a totalidade da existncia humana.

    44O espectculo uma permanente guerra do pio para

    fazer aceitar a identificao dos bens s mercadorias; e dasatisfao sobrevivncia, aumentando segundo as suasprprias leis. Mas se a sobrevivncia consumvel algo quedeve aumentar sempre, porque ela no cessa de conter a

    privao. Se no h nenhum alm para a sobrevivnciaaumentada, nenhum ponto onde ela poderia cessar o seucrescimento, porque ela prpria no est para alm daprivao, mas sim a privao tornada mais rica.

    45Com a automao, que ao mesmo tempo o sector mais

    avanado da indstria moderna e o modelo em que se resumeperfeitamente a sua prtica, necessrio que o mundoda mercadoria supere esta contradio: a instrumentao

    tcnica que suprime objectivamente o trabalho deve, aomesmo tempo, conservar o trabalho como mercadoria, e nico

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    lugar de nascimento da mercadoria. Para que a automao,ou qualquer outra forma menos extrema de aumento daprodutividade do trabalho, no diminua efectivamente otempo de trabalho social necessrio, escala da sociedade, indispensvel criar novos empregos. O sector tercirio- os servios - o imenso alongamento das linhas de etapas

    do exrcito da distribuio e do elogio das mercadoriasactuais; mobilizao de foras supletivas que encontraoportunamente na prpria facticidade das necessidadesrelativas a tais mercadorias a necessidade de uma talorganizao da retaguarda do trabalho.

    46O valor de troca no pde formar-se seno como

    agente do valor de uso, mas a sua vitria pelas suas prpriasarmas criou as condies da sua dominao autnoma.Mobilizando todo o uso humano e apoderando-se domonoplio da sua satisfao, ela acabou por dirigir o uso.O processo de troca identificou-se a todo o uso possvele reduziu-o sua merc. O valor de troca o condottieredo valor de uso, que acaba por conduzir a guerra por suaprpria conta.

    47Esta constante da economia capitalista, que a baixa

    tendencial do valor de uso, desenvolve uma nova forma deprivao no interior da sobrevivncia aumentada, a qual

    no est, por isso, mais liberta da antiga penria, vistoque exige a participao da grande maioria dos homens,

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    como trabalhadores assalariados, no prosseguimentoinfinito do seu esforo; e que cada qual sabe que necessrio submeter-se-lhe ou morrer. a realidadedesta chantagem, o facto de o uso sob a sua forma maispobre (comer, habitar) j no existir seno aprisionadona riqueza ilusria da sobrevivncia aumentada, que

    a base real da aceitao da iluso em geral no consumodas mercadorias modernas. O consumidor real torna-seum consumidor de iluses. A mercadoria esta ilusoefectivamente real, e o espectculo a sua manifestaogeral.

    48O valor de uso, que estava implicitamente

    compreendido no valor de troca, deve estar agoraexplicitamente proclamado na realidade invertida doespectculo, justamente porque a sua realidade efectiva corroda pela economia mercantil superdesenvolvida; eporque uma pseudojustificao se torna necessria falsavida.

    49O espectculo a outra face do dinheiro: o

    equivalente geral abstracto de todas as mercadorias. Mas seo dinheiro dominou a sociedade enquanto representaoda equivalncia central, isto , do carcter permutveldos bens mltiplos cujo uso permanecia incomparvel, o

    espectculo o seu complemento moderno desenvolvido,onde a totalidade do mundo mercantil aparece em bloco

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    como uma equivalncia geral ao que o conjunto dasociedade pode ser e fazer. O espectculo o dinheiroque se olha somente, pois nele j a totalidade do uso quese trocou com a totalidade da representao abstracta. Oespectculo no somente o servidor do pseudo-uso, j,em si prprio, o pseudo-uso da vida.

    50O resultado concentrado do trabalho social, no

    momento da abundncia econmica, torna-se aparentee submete toda a realidade aparncia, que agora seuproduto. O capital no j o centro invisvel que dirigeo modo de produo: a sua acumulao estende-o at periferia, sob a forma de objectos sensveis. Toda a vastidoda sociedade o seu retrato.

    51A vitria da economia autnoma deve ser, ao

    mesmo tempo, a sua perda. As foras que ela desencadeousuprimem a necessidade econmicaque foi a base imutveldas sociedades antigas. Quando ela a substitui pelanecessidade do desenvolvimento econmico infinito,ela no pode seno substituir a satisfao das primeirasnecessidades, sumariamente reconhecidas, por umafabricao ininterrupta de pseudonecessidades que sereduzem nica pseudonecessidade da manuteno do seureino. Mas a economia autnoma separa-se para sempre

    da necessidade profunda, na prpria medida em que sai doinconsciente socialque dela dependia sem o saber. Tudo o

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    que consciente se usa. O que inconsciente permaneceinaltervel. Mas uma vez liberto, no cai por sua vez emrunas? (Freud).

    52No momento em que a sociedade descobre que ela

    depende da economia, a economia, de facto, dependedela. Esta potncia subterrnea, que cresceu at aparecersoberanamente, tambm perdeu o seu poderio. L ondeestava o a* econmico deve vir o je*. O sujeito no podeemergir seno da sociedade, isto , da luta que est nelaprpria. A sua existncia possvel est suspensa nosresultados da luta das classes, que se revela como o produtoe o produtor da fundao econmica da histria.

    53A conscincia do desejo e o desejo da conscincia so

    identicamente este projecto que, sob a sua forma negativa,quer a abolio das classes, isto , a posse directa pelostrabalhadores de todos os momentos da sua actividade. Oseu contrrio a sociedade do espectculo onde a mercadoriase contempla a si mesma num mundo que ela criou.

    (*) Mantm-se o original para referenciar o conceitoutilizado por Freud [nt].

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    CAPTULO IIIUNIDADE E DIVISO NA APARNCIA

    Na frente filosfica, desenrola-se no pas uma nova e animadapolmica a propsito dos conceitos um divide-se em doise dois fundem-se num. Este debate uma luta entre os que

    so por e os que so contra a dialctica materialista, uma lutaentre duas concepes do mundo: a concepo proletria e aconcepo burguesa. Os que sustentam que um divide-se emdois a lei fundamental das coisas, mantm-se do lado dadialctica materialista; os que sustentam que a lei fundamentaldas coisas que dois fundem-se num, so contra a dialcticamaterialista. Os dois lados traaram uma ntida linha dedemarcao entre si e os seus argumentos so diametralmenteopostos. Esta polmica reflecte, no plano ideolgico, a luta declasse aguda e complexa que se desenrola na China e no mundo.

    A Bandeira Vermelha, Pequim,21 de Setembro de 1964

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    54O espectculo, como a sociedade moderna, est ao

    mesmo tempo unido e dividido. Como esta, ele edifica asua unidade sobre o dilaceramento. A contradio, quandoemerge no espectculo, por sua vez contradita por umareinverso do seu sentido; de modo que a diviso mostrada unitria, enquanto que a unidade mostrada est dividida.

    55 a luta de poderes, que se constituram para a gesto

    do mesmo sistema socioeconmico, que se desenrola comoa contradio oficial, pertencente de facto unidade real;isto, escala mundial assim como no interior de cadanao.

    56As falsas lutas espectaculares das formas rivais do

    poder separado so, ao mesmo tempo, reais naquilo emque traduzem o desenvolvimento desigual e conflitual dosistema, os interesses relativamente contraditrios das

    classes ou das subdivises de classes que reconhecemo sistema, e definem a sua prpria participao no seu

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    poder. Assim como o desenvolvimento da economia maisavanada o afrontamento de certas prioridades comoutras, a gesto totalitria da economia por uma burocraciade Estado e a condio dos pases que se encontraramcolocados na esfera de colonizao ou da semicolonizaoso definidas por particularidades considerveis nas

    modalidades da produo e do poder. Estas diversasoposies podem exprimir-se no espectculo, segundocritrios completamente diferentes, como formas desociedades absolutamente distintas. Mas segundo a suarealidade efectiva de sectores particulares, a verdade dasua particularidade reside no sistema universal que ascontm: no movimento nico que faz do planeta seu campo,o capitalismo.

    57No somente pela sua hegemonia econmica que

    a sociedade portadora do espectculo domina as regiessubdesenvolvidas. Domina-as enquanto sociedade doespectculo. L onde a base material ainda est ausente,a sociedade moderna j invadiu espectacularmente asuperfcie social de cada continente. Ela define o programade uma classe dirigente e preside sua constituio. Domesmo modo que apresenta os pseudobens a cobiar, elaoferece aos revolucionrios locais os falsos modelos derevoluo. O prprio espectculo do poder burocrtico,que detm alguns dos pases industriais, faz precisamente

    parte do espectculo total, como sua pseudonegao gerale seu suporte. Se o espectculo, olhado nas suas diversas

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    localizaes, mostra evidncia especializaes totalitriasda palavra e da administrao sociais, estas acabam porfundir-se, ao nvel do funcionamento global do sistema,numa diviso mundial das tarefas espectaculares.

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    A diviso das tarefas espectaculares, queconserva a generalidade da ordem existente, conservaprincipalmente o plo dominante do seu desenvolvimento. Araiz do espectculo est no terreno da economia tornadaabundante, e de l que vm os frutos que tendemfinalmente a dominar o mercado espectacular, apesar dasbarreiras proteccionistas ideolgico-policiais, qualquerque seja o espectculo local com pretenso autrquica.

    59O movimento de banalizaoque, sob as diverses

    cambiantes do espectculo, domina mundialmente asociedade moderna, domina-a tambm em cada um dospontos onde o consumo desenvolvido das mercadoriasmultiplicou na aparncia os papis a desempenhar e osobjectos a escolher. As sobrevivncias da religio e dafamlia - que permanece a forma principal da heranado poder de classe -, e, portanto, da represso moral queelas asseguram, podem combinar-se como uma mesmacoisa com a afirmao redundante do gozo deste mundo,este mundo no sendo justamente produzido seno como

    pseudogozo que conserva em si a represso. aceitaobeata daquilo que existe pode juntar-se como uma mesma

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    coisa a revolta puramente espectacular: isto traduz osimples facto de que a prpria insatisfao se tornou umamercadoria desde que a abundncia econmica se achoucapaz de alargar a sua produo ao tratamento de uma talmatria-prima.

    60Ao concentrar nela a imagem de um possvel papel

    a desempenhar, a vedeta, a representao espectacular dohomem vivo, concentra, pois, esta banalidade. A condiode vedeta a especializao do vivido aparente, o objectoda identificao vida aparente sem profundidade, quedeve compensar a reduo a migalhas das especializaesprodutivas efectivamente vividas. As vedetas existempara figurar tipos variados de estilos de vida e de estilosde compreenso da sociedade, livres de se exercerem

    globalmente. Elas encarnam o resultado inacessvel dotrabalhosocial, ao arremedar subprodutos deste trabalhoque so magicamente transferidos acima dele como suafinalidade: o podere as frias, a deciso e o consumo, queesto no comeo e no fim de um processo indiscutido.L, o poder governamental que se personaliza empseudovedeta; aqui, a vedeta do consumo que se fazplebiscitar enquanto pseudopoder sobre o vivido. Mas,assim como estas actividades da vedeta no so realmenteglobais, elas no so variadas.

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    61O agente do espectculo posto em cena como

    vedeta o contrrio do indivduo, o inimigo do indivduo,tanto em si prprio como, evidentemente, nos outros.Passando no espectculo como modelo de identificao,renunciou a toda a qualidade autnoma, para ele prprio

    se identificar com a lei geral da obedincia ao curso dascoisas. A vedeta do consumo, mesmo sendo exteriormentea representao de diferentes tipos de personalidade,mostra cada um destes tipos como tendo igualmenteacesso totalidade do consumo e encontrando a, de igualmodo, a sua felicidade. A vedeta da deciso deve possuir o

    stock* completo daquilo que foi admitido como qualidadeshumanas. Assim, entre estas, as divergncias oficiais soanuladas pela semelhana oficial, que o pressuposto dasua excelncia em tudo. Khruchtchev tinha-se tornadogeneral para decidir da batalha de Kursk, no no terreno,mas no vigsimo aniversrio, quando ele se achava senhordo Estado. Kennedy tinha permanecido orador, ao ponto depronunciar o seu elogio sobre o prprio tmulo, visto queThodore Sorensen continuava, nesse momento, a redigirpara o sucessor os discursos naquele estilo que tanto tinhaconcorrido para fazer reconhecer a personalidade dodesaparecido. As pessoas admirveis nas quais o sistemase personifica so bem conhecidas por no serem aquiloque so; tornaram-se grandes homens ao descer abaixo darealidade da mais pequena vida individual, e cada qual o

    sabe.

    (*) Em ingls no original [nt].

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    62A falsa escolha na abundncia espectacular, escolha

    que reside na justaposio de espectculos concorrenciaise solidrios, como na justaposio dos papis adesempenhar (principalmente significados e trazidos porobjectos), que so ao mesmo tempo exclusivos e imbricados,

    desenvolve-se numa luta de qualidades fantasmagricasdestinadas a apaixonar a adeso trivialidade quantitativa.Assim renascem falsas oposies arcaicas, regionalismos ouracismos encarregados de transfigurar em superioridadeontolgica fantstica a vulgaridade dos lugares hierrquicosno consumo. Deste modo, recompe-se a interminvel sriedos afrontamentos irrisrios, mobilizando um interessesubldico, do desporto de competio s eleies. L onde seinstalou o consumo abundante, uma oposio espectacularprincipal entre a juventude e os adultos vem no primeiroplano dos papis falaciosos: porque em nenhum lado existeo adulto, senhor da sua vida, e a juventude, a mudana doque existe, no de modo nenhum a propriedade desteshomens, que so agora jovens, mas a do sistema econmico,o dinamismo do capitalismo. So as coisasque reinam e queso jovens; que se deitam fora e se substituem a si prprias.

    63 a unidade da misriaque se esconde sob as oposies

    espectaculares. Se formas diversas da mesma alienaose combatem sob as mscaras da escolha total, porque

    elas so todas identificadas sobre as contradies reaisrecalcadas. Conforme as necessidades do estdio particular

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    da misria, que ele desmente e mantm, o espectculo existesob uma forma concentrada ou sob uma forma difusa. Nosdois casos, ele no mais do que uma imagem de unificaofeliz, cercada de desolao e de pavor, no centro tranquiloda infelicidade.

    64O espectacular concentrado pertence essencialmente

    ao capitalismo burocrtico, embora possa ser importadocomo tcnica do poder estatal sobre economias mistas maisatrasadas, ou em certos momentos de crise do capitalismoavanado. A prpria propriedade burocrtica efectivamenteconcentrada, no sentido em que o burocrata individual notem relaes com a posse da economia global seno porintermdio da comunidade burocrtica, seno enquantomembro desta comunidade. Alm disso, a produo menosdesenvolvida das mercadorias apresenta-se, tambm, sobuma forma concentrada: a mercadoria que a burocraciadetm o trabalho social total, e o que ela revende sociedade a sua sobrevivncia em bloco. A ditadura da economiaburocrtica no pode deixar s massas exploradas nenhumamargem notvel de escolha, visto que ela teve de escolhertudo por si prpria, e que toda outra escolha exterior, querdiga respeito alimentao ou msica, j a escolha dasua destruio completa. Ela deve acompanhar-se de umaviolncia permanente. A imagem imposta do bem, no seuespectculo, recolhe a totalidade do que existe oficialmente

    e concentra-se normalmente num nico homem, que agarantia da sua coeso totalitria. Com esta vedeta absoluta,

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    deve cada um identificar-se magicamente, ou desaparecer.Pois trata-se do senhor do seu no-consumo, e da imagemherica de um sentido aceitvel para a explorao absoluta,que na realidade a acumulao primitiva acelerada peloterror. Se cada chins deve aprender Mao, e assim serMao, que ele no tem mais nada para ser. L onde domina o

    espectacular concentrado domina tambm a polcia.

    65O espectacular difuso acompanha a abundncia

    das mercadorias, o desenvolvimento no perturbado docapitalismo moderno. Aqui, cada mercadoria consideradaisoladamente est justificada em nome da grandeza daproduo da totalidade dos objectos, de que o espectculo um catlogo apologtico. Afirmaes inconciliveisamontoam-se na cena do espectculo unificado daeconomia abundante; do mesmo modo que diferentesmercadorias-vedetas sustentam, simultaneamente, os seusprojectos contraditrios de ordenao da sociedade, onde oespectculo dos automveis implica uma circulao perfeita,que destri a parte velha da cidade, enquanto o espectculoda prpria cidade tem necessidade de bairros-museus.Portanto, a satisfao j problemtica, que reputada pertencerao consumo do conjunto, est imediatamente falsificada pelofacto de o consumidor real no poder receber directamentemais do que uma sucesso de fragmentos desta felicidademercantil, fragmentos dos quais a qualidade atribuda ao

    conjunto est evidentemente ausente.

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    66Cada mercadoria determinada luta para si prpria,

    no pode reconhecer as outras, pretende impor-seem toda a parte como se fosse a nica. O espectculo ,ento, o canto pico deste afrontamento, que a queda denenhuma lion poderia concluir. O espectculo no canta

    os homens e as suas armas, mas as mercadorias e as suaspaixes. nesta luta cega que cada mercadoria, ao seguir asua paixo, realiza, de facto, na inconscincia algo de maiselevado: o devir-mundo da mercadoria, que tambm odevir-mercadoria do mundo. Assim, por uma astcia darazo mercantil, o par ticular da mercadoria gasta-se aocombater, enquanto a forma-mercadoria tende para a suarealizao absoluta.

    67A satisfao, que a mercadoria abundante j no pode

    dar no uso, acaba por ser procurada no reconhecimentodo seu valor enquanto mercadoria: uso da mercadoriabastando-se a si prprio; e, para o consumidor, a efusoreligiosa para com a liberdade soberana da mercadoria.Vagas de entusiasmo para um dado produto, apoiado erelanado por todos os meios de formao, propagam-se,assim, a grande velocidade. Um estilo de roupa surge deum filme; uma revista lana clubes que lanam panpliasdiversas. O gadget* exprime este facto de, no momentoem que a massa das mercadorias cai na aberrao, o

    prprio aberrante se tornar uma mercadoria especial.Nos porta-chaves publicitrios, por exemplo, no mais

    (*) Em ingls no original [nt].

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    comprados, mas dons suplementares que acompanhamobjectos de prestigio vendidos, ou que provm da trocada sua prpria esfera, pode-se reconhecer a manifestaode um abandono mstico transcendncia da mercadoria.Aquele que colecciona os porta-chaves que acabam deser fabricados para serem coleccionados acumula as

    indulgncias da mercadoria, um sinal glorioso da suapresena real entre os seus fiis. O homem reificadoproclama a prova da sua intimidade com a mercadoria.Como nos arrebatamentos dos convulsionrios oumiraculados do velho fetichismo religioso, o fetichismoda mercadoria atinge momentos de excitao fervente. Onico uso que ainda se exprime aqui o uso fundamental dasubmisso.

    68Sem dvida, a pseudonecessidade imposta no

    consumo moderno no pode ser oposta a nenhumanecessidade ou desejo autntico, que no seja, eleprprio, modelado pela sociedade e sua histria. Mas amercadoria abundante est l como a ruptura absoluta deum desenvolvimento orgnico das necessidades sociais.A sua acumulao mecnica l iberta um artificial ilimitado,perante o qual o desejo vivo fica desarmado. A potnciacumulativa de um artificial independente conduz, em toda aparte, falsificao d a vida social.

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    69Na imagem da unificao feliz da sociedade pelo

    consumo, a diviso real est somente suspensaat prximano-completa realizao no consumvel. Cada produtoparticular que deve representar a esperana de um atalhofulgurante para aceder, enfim, terra prometida do consumo

    total, , por sua vez, apresentado cerimoniosamentecomo a singularidade decisiva. Mas como no caso dadifuso instantnea das modas de nomes aparentementearistocrticos que se vo encontrar usados por quase todos osindivduos da mesma idade, o objecto do qual se espera umpoder singular no pde ser proposto devoo das massasseno porque ele foi tirado num nmero de exemplaressuficientemente grande para ser consumido massivamente.O carcter prestigioso deste qualquer produto no lhe vemseno de ter sido colocado por um momento no centro da vidasocial, como o mistrio revelado da finalidade da produo. Oobjecto, que era prestigioso no espectculo, torna-se vulgarno instante em que entra em casa do consumidor ao mesmotempo que em casa de todos os outros. Ele revela demasiadotarde a sua pobreza essencial, que retira da misria da suaproduo. Mas j um outro objecto que traz a justificaodo sistema e a exigncia de ser reconhecido.

    70A prpria impostura da satisfao deve denunciar-se

    ao substituir-se, ao seguir a mudana dos produtos e das

    condies gerais da produo. Aquilo que afirmou, como mais perfeito descaramento, a sua prpria excelncia

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    definitiva muda no s no espectculo difuso, mas tambmno espectculo concentrado, e s o sistema que devecontinuar: Estaline, como a mercadoria fora de moda, denunciado por aqueles mesmos que o impuseram. Cadanova mentira da publicidade tambm a confisso da suamentira precedente. Cada derrocada de uma figura do

    poder totalitrio revela a comunidade ilusria que a aprovavaunanimemente e que no era mais do que um aglomeradode solides sem iluses.

    71O que o espectculo apresenta como perptuo

    fundado sobre a mudana, e deve mudar com a sua base. Oespectculo absolutamente dogmtico e, ao mesmo tempo,no pode levar a nenhum dogma slido. Para ele nada pra; o estado que lhe natural e, todavia, o mais contrrio suainclinao.

    72A unidade irreal que o espectculo proclama a

    mscara da diviso de classe sobre a qual repousa a unidadereal do modo de produo capitalista. O que obriga osprodutores a participar na edificao do mundo tambm oque disso os afasta. O que pe em relao os homens libertosdas suas limitaes locais e nacionais tambm o que osdistancia. O que obriga ao aprofundamento do racional tambm o que alimenta o racional da explorao hierrquica

    e da represso. O que faz o poder abstracto da sociedade faza sua no-liberdadeconcreta.

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    CAPTULO IVO PROLETARIADO COMO SUJEITO E COMO

    REPRESENTAO

    O direito igual a todos os bens e aos gozos deste mundo, adestruio de toda a autoridade, a negao de todo o freiomoral, eis, se descermos ao fundo das coisas, a razo de ser dainsurreio de 18 de Maro e a carta da temvel associao quelhe forneceu um exrcito.

    Inqurito parlamentar sobre a insurreio de18 de Maro

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    73O movimento real, que suprime as condies

    existentes, governa a sociedade a partir da vitria daburguesia na economia, e de forma visvel desde a traduopoltica dessa vitria. O desenvolvimento das forasprodutivas rebentou com as antigas relaes de produoe toda a ordem esttica se desfaz em p. Tudo o que eraabsoluto torna-se histrico.

    74 sendo lanados na histria, devendo participar no

    trabalho e nas lutas que a constituem, que os homens sevem obrigados a encarar as suas relaes de uma maneiradesiludida. Esta histria no tem um objecto distintodaquele que ela realiza sobre si prpria, se bem que altima viso metafsica inconsciente da poca histricapossa ver a progresso produtiva, atravs da qual a histriase desenrolou, como o objecto mesmo da histria. O sujeitoda histria no pode ser seno o vivo produzindo-se a siprprio, tornando-se senhor e possuidor do seu mundo que

    a histria, e existindo como conscincia do seu jogo.

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    75Como uma mesma corrente, desenvolvem-se as lutas

    de classes da longa poca revolucionria, inaugurada pelaascenso da burguesia, e o pensamento da histria, a dialctica,o pensamento que j no pra procura do sentido do sendo,mas que se eleva ao conhecimento da dissoluo de tudo o

    que ; e no movimento dissolve toda a separao.

    76Hegel j no tinha que interpretar o mundo, mas

    a transformao do mundo. Interpretando somente atransformao, Hegel no mais do que o acabamento

    filosfico da filosofia. Ele quer compreender um mundo que sefaz a si prprio. Este pensamento histrico ainda no seno aconscincia que chega sempre tarde de mais, e que enuncia ajustificaopost festum. Assim, ela no ultrapassou a separaoseno no pensamento. O paradoxo, que consiste em suspendero sentido de toda a realidade ao seu acabamento histrico, eem revelar ao mesmo tempo este sentido constituindo-se a siprprio em acabamento da histria, resulta do simples factode o pensador das revolues burguesas dos sculos XVII eXVIII no ter procurado na sua filosofia seno a reconciliaocom o seu resultado. Mesmo como filosofia da revoluoburguesa, ela no exprime todo o processo desta revoluo,mas somente a sua ltima concluso. Neste sentido, ela uma filosofia no da revoluo, mas da restaurao (KarlKorsch, Teses sobre Hegel e a revoluo). Hegel fez, pela ltima

    vez, o trabalho do filsofo, a glorificao do que existe,mas o que existia para ele j no podia ser seno a totalidade

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    do movimento histrico. A posio exterior do pensamento,sendo de facto mantida, no podia ser encoberta seno pelasua identificao a um projecto prvio do Esprito, heriabsoluto que fez o que quis e que quis o que fez, e cuja plenarealizao coincide com o presente. Assim, a filosofia quemorre no pensamento da histria j no pode glorificar o seu

    mundo seno renegando-o, porque para tomar a palavra -lhej necessrio supor acabada esta histria total, qual elatudo reduziu, e encerrada a sesso do nico tribunal ondepode ser pronunciada a sentena da verdade.

    77Quando o proletariado manifesta, pela sua prpria

    existncia em actos, que este pensamento da histria nofoi esquecido, o desmentido da concluso igualmente aconfirmao do mtodo.

    78O pensamento da histria no pode ser salvo seno

    tornando-se pensamento prtico; e a prtica do proletariadocomo classe revolucionria no pode ser menos que aconscincia histrica operando sobre a totalidade doseu mundo. Todas as correntes tericas do movimentooperrio revolucionrio saram de um afrontamento crticocom o pensamento hegeliano, em Marx como em Stirner eBakunine.

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    79O carcter inseparvel da teoria de Marx e do

    mtodo hegeliano ele prprio inseparvel do carcterrevolucionrio desta teoria, isto , da sua verdade. nistoque esta primeira relao foi geralmente ignorada ou malcompreendida, ou ainda denunciada como o fraco daquilo que

    se tornava falaciosamente uma doutrinamarxista. Bernstein,em Socialismo terico e Social-democracia prtica, revelaperfeitamente esta ligao do mtodo dialctico e da tomadade partidohistrico ao deplorar as previses pouco cientficasdoManifestode 1847 sobre a iminncia da revoluo proletriana Alemanha: Esta auto-sugesto histrica, to errada queo primeiro visionrio poltico aparecido nem sequer poderiaencontrar melhor, seria incompreensvel num Marx, que poca tinha j seriamente estudado a economia, se nose tivesse de ver nela o produto de um resto da dialcticaantittica hegeliana, de que Marx, no mais que Engels,nunca soube desfazer-se completamente. Nesses tempos deefervescncia geral, isso foi-lhe tanto mais fatal.

    80A reinverso que Marx efectua, atravs de um

    salvamento por transferncia do pensamento dasrevolues burguesas, no consiste em substituir trivialmentepelo desenvolvimento materialista das foras produtivas opercurso do Esprito hegeliano, indo ao seu prprio encontrono tempo, a sua objectivao sendo idntica sua alienao, e

    as suas feridas histricas no deixando cicatrizes. A histriatornada real j no temfim. Marx arruinou a posioseparada

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    de Hegel perante o que acontece, e a contemplaodum agentesupremo exterior, qualquer que ele seja. A teoria j no tem aconhecer seno o que ela faz. , pelo contrrio, a contemplaodo movimento da economia, no pensamento dominante dasociedade actual, que a herana no-reinvertida da parteno-dialcticana tentativa hegeliana de um sistema circular:

    uma aprovao que perdeu a dimenso do conceito, e quej no tem necessidade dum hegelianismo para se justificar,porque o movimento que se trata de louvar j no seno umsector sem pensamento do mundo, cujo desenvolvimentomecnico domina efectivamente o todo. O projecto de Marx o de uma histria consciente. O quantitativo que sobrevm aodesenvolvimento cego das foras produtivas simplesmenteeconmicas deve transformar-se em apropriao histricaqualitativa. A crtica da economia poltica o primeiroacto deste fim de pr-histria: De todos os instrumentosde produo, o maior poder produtivo a prpria classerevolucionria.

    81O que liga estreitamente a teoria de Marx ao

    pensamento cientfico a compreenso racional dasforas que se exercem realmente na sociedade. Mas ela fundamentalmente um alm do pensamento cientfico, ondeeste no conservado seno sendo superado: trata-se deuma compreenso da luta, e de nenhum modo da lei. Nss conhecemos uma cincia: a cincia da histria, diz A

    Ideologia Alem.

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    82A poca burguesa, que pretende fundar cientificamente

    a histria, negligencia o facto de que esta cincia disponvelteve, antes de mais, de ser ela prpria fundada historicamentecom a economia. Inversamente, a histria no dependeradicalmente deste conhecimento seno enquanto esta

    histria permanece histria econmica. Quanto do papel dahistria na prpria economia - o processo global que modificaos seus prprios dados cientficos de base - pde ser, alis,negligenciado pelo ponto de vista da observao cientfica, oque mostra a vaidade dos clculos socialistas que acreditavamter estabelecido a periodicidade exacta das crises; e desdeque a interveno constante do Estado logrou compensar oefeito das tendncias crise, o mesmo gnero de raciocniov neste equilbrio uma harmonia econmica definitiva. Oprojecto de superar a economia, o projecto de tomar posseda histria, se ele deve conhecer - e trazer a si - a cincia dasociedade, no pode, ele mesmo, ser cientfico. Nesse ltimomovimento, que cr dominar a histria presente atravs deum conhecimento cientfico, o ponto de vista revolucionriopermaneceu burgus.

    83As correntes utpicas do socialismo, embora elas

    prprias fundadas historicamente na crtica da organizaosocial existente, podem ser justamente qualificadas deutpicas na medida em que recusam a histria - isto , a luta

    real em curso, assim como o movimento do tempo para almda perfeio inaltervel da sua imagem de sociedade feliz -,

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    mas no porque eles recusassem a cincia. Os pensadoresutopistas so, pelo contrrio, inteiramente dominadospelo pensamento cientfico, tal como ele se tinha impostonos sculos precedentes. Eles procuram o acabamentodesse sistema racional geral: eles no se consideram denenhum modo profetas desarmados, porque crem no

    poder social da demonstraro cientfica, e mesmo, no casodo saint-simonismo, na tomada do poder pela cincia.Como, diz Sombart, quereriam eles arrancar pela luta,aquilo que deve ser provado?. Contudo, a concepocientfica dos utopistas no se alarga a este conhecimentode que os grupos sociais tm interesses numa situaoexistente, foras para a manter, e, igualmente, formas defalsa-conscincia correspondentes a tais posies. Elapermanece, portanto, muito aqum da realidade histricado desenvolvimento da prpria cincia, que se encontrouem grande parte orientada pela procura social resultante detais factores, que selecciona no s o que pode ser admitido,mas tambm o que pode ser procurado. Os socialistasutpicos, ao ficarem prisioneiros do modo de exposio daverdade cientfica, concebem esta verdade segundo a suapura imagem abstracta, tal como a tinha visto impor-se umestdio muito anterior da sociedade. Como o notava Sorel, segundo o modelo da astronomiaque os utopistas pensamdescobrir e demonstrar as leis da sociedade. A harmoniapor eles visada, hostil histria, decorre duma tentativade aplicao sociedade da cincia menos dependente

    da histria. Ela tenta fazer-se reconhecer com a mesmainocncia experimental do newtonismo, e o destino feliz,

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    constantemente postulado, desempenha na sua cinciasocial um papel anlogo ao que cabe inrcia na mecnicaracional (Materiais para uma teoria d o proletariado).

    84O lado determinista-cientfico no pensamento

    de Marx foi justamente a brecha pela qual penetrou oprocesso de ideologizao, enquanto vivo, e aindamais na herana terica deixada ao movimento operrio.A chegada do sujeito da histria aind a adiada, e acincia histrica por excelncia, a economia, que tendecada vez mais a garantir a necessidade da sua prprianegao futura. Mas, deste modo, repelida para forado campo da viso terica a prtica revolucionria que a nica verdade desta negao. Assim, importa estudarpacientemente o desenvolvimento econmico e neleadmitir ainda, com uma tranquilidade hegeliana, a dor,o que no seu resultado permanece cemitrio das boasintenes. Descobre-se que agora, segundo a cinciadas revolues, a conscincia chega sempre cedo de mais,e dever ser ensinada. A histria no nos deu razo, ans e a todos os que pensavam como ns. Ela mostrouclaramente que o estado do desenvolvimento econmicodo continente estava, ento, ainda bem longe de estaramadurecido..., dir Engels em 1895. Durante toda asua vida, Marx manteve o ponto de vista unitrio da suateoria, mas o enunciadoda sua teoria colocou-se no terreno

    do pensamento dominante ao precisar-se, sob a formade crticas de disciplinas particulares, principalmente a

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    crtica da cincia fundamental da sociedade burguesa, aeconomia poltica. esta mutilao, ulteriormente aceitecomo definitiva, que constitui o marxismo.

    85A carncia na teoria de Marx naturalmente a

    carncia da luta revolucionria do proletariado da suapoca. A classe operria no decretou a revoluo empermanncia, na Alemanha de 1848; a Comuna foi vencidano isolamento. A teoria revolucionria no pde, pois,atingir ainda a sua prpria existncia total. Ficar reduzidoa defend-la e a precis-la na separao do trabalho douto,no British Museum, implicava uma perda na prpria teoria.So precisamente as justificaes cientficas tiradas dofuturo do desenvolvimento da classe operria, e a prticaorganizacional combinada com estas justificaes, que setornaro obstculos conscincia proletria num estdiomais avanado.

    86Toda a insuficincia terica na defesa cientfica da

    revoluo proletria pode ser reduzida, quanto ao contedoassim como quanto forma do enunciado, a uma identificaodo proletariado com a burguesia, do ponto de vista da tomadarevolucionria do poder.

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    87A tendncia a fundar uma demonstrao da

    legalidade cientfica do poder proletrio, com o argumentode experimentaes repetidas do passado, obscurece,desde o Manifesto, o pensamento histrico de Marx, aofaz-lo sustentar uma imagem linear do desenvolvimento

    dos modos de produo, impulsionando lutas de classesque terminariam, de cada vez, por uma transformaorevolucionria da sociedade inteira ou pela destruiocomum das classes em luta. Mas na realidade observvelda histria, do mesmo modo que o modo de produoasitico, como Marx algures o constatava, conservoua sua imobilidade apesar de todos os afrontamentos declasses, tambm as jacquer ies de servos nunca venceramos bares, nem as revoltas de escravos da Antiguidadeos homens livres. O esquema linear perde de vista,antes de tudo, o facto de que a burguesia a nica classerevolucionria que jamais venceu; ao mesmo tempo queela a nica para a qual o desenvolvimento da economiafoi causa e consequncia do seu poder sobre a sociedade.A mesma simplificao conduziu Mar x a negligenciar opapel econmico do Estado na gesto de uma sociedadede classes. Se a burguesia ascendente pareceu franquear aeconomia do Estado, somente na medida em que o Estadoantigo se confundia com o instr umento de uma opresso declasse numa economia esttica. A burguesia desenvolveu oseu poderio econmico autnomo no perodo medieval de

    enfraquecimento do Estado, no momento de fragmentaofeudal de poderes equilibrados. Mas o Estado moderno que,

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    pelo mercantilismo, comeou a apoiar o desenvolvimentoda burguesia, e que finalmente se tornou o seu Estadona hora do laisser faire, laisser passer, vai revelar-seulteriormente dotado de um poder central na gestocalculada do processo econmico. Marx pde, no entanto,descrever no bonapartismoeste esboo da burocracia estatal

    moderna, fuso do capital e do Estado, constituio de umpoder nacional do capital sobre o trabalho, de uma forapblica organizada para a sujeio social, onde a burguesiarenuncia a toda a vida histrica que no seja a sua reduo histria econmica das coisas, e se presta a ser condenadaao mesmo nada poltico que as outras classes. Aqui,esto j colocadas as bases sociopolticas do espectculomoderno, que, negativamente, define o proletariado comonico pretendente vida histrica.

    88As duas nicas classes que correspondem

    efectivamente teoria de Marx, as duas classes puras s quaisleva toda a anlise no Capital, a burguesia e o proletariado,so igualmente as duas nicas classes revolucionrias dahistria, mas a ttulos diferentes: a revoluo burguesa estfeita; a revoluo proletria um projecto, nascido na base daprecedente revoluo, mas dela diferindo qualitativamente.Ao negligenciar a originalidade do papel histrico daburguesia encobre-se a originalidade concreta desteprojecto proletrio, que nada pode atingir seno ostentando

    as suas prprias cores e conhecendo a imensidade dassuas tarefas. A burguesia veio ao poder porque a classe da

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    economia em desenvolvimento. O proletariado no pode eleprprio ser o poder, seno tornando-se a classe da conscincia.O amadurecimento das foras produtivas no pode garantirum ta l poder, mesmo pelo desvio da despossesso crescenteque traz consigo. A tomada jacobina do Estado no pode serum instrumento seu. Nenhuma ideologia lhe pode servir

    para disfarar fins parciais em fins gerais, porque eleno pode conservar nenhuma realidade parcial que sejaefectivamente sua.

    89Se Marx, num perodo determinado da sua

    participao na luta do proletariado, esperou demasiadoda previso cientfica, ao ponto de criar a base intelectualdas iluses do economismo, sabe-se que a tal no sucumbiupessoalmente. Numa car ta bem conhecida, de 7 de Dezembrode 1867, acompanhando um artigo onde ele prprio criticaO Capital, artigo que Engels devia fazer passar na Imprensacomo se emanasse de um adversrio, Marx exps claramenteo limite da sua prpria cincia: ...A tendncia subjectivado autor (que lhe impunham talvez a sua posio polticae o seu passado), isto , a maneira como ele apresentaaos outros o resultado ltimo do movimento actual, doprocesso social actual, no tem nenhuma relao com asua anlise real. Assim Marx, ao denunciar ele prprioas concluses tendenciosas da sua anlise objectiva, epela ironia do talvez relativo s escolhas ex tracientficas

    que se lhe teriam imposto, mostra ao mesmo tempo a chavemetodolgica da fuso dos dois aspectos.

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    90 na prpria luta histrica que preciso realizar

    a fuso do conhecimento e da aco, de tal modo quecada um destes termos coloque no outro a garantia da suaverdade. A constituio da classe proletria em sujeito aorganizao das lutas revolucionrias e a organizao da

    sociedade no momento revolucionrio: aqui que devemexistir as condies prticas da conscincia, nas quais a teoriada prxis se confirma tornando-se teoria prtica. Contudo,esta questo central da organizao foi a menos consideradapela teoria revolucionria na poca em que se fundava omovimento operrio, isto , quando esta teoria possuaainda o carcter unitrio vindo do pensamento da histria(e que ela se tinha justamente dado por tarefa desenvolverat uma prtica histrica unitria). , pelo contrrio, o lugarda inconsequnciapara esta teoria, ao admitir o retomar demtodos de aplicao estatais e hierrquicos copiados darevoluo burguesa. As formas de organizao do movimentooperrio desenvolvidas sobre esta renncia da teoriatenderam por sua vez a interditar a manuteno de umateoria unitria, dissolvendo-a em diversos conhecimentosespecializados e parcelares. Esta alienao ideolgica dateoria j no pode, ento, reconhecer a verificao prticado pensamento histrico unitrio que ela traiu, quando umatal verificao surge na luta espontnea dos operrios; elapode somente concorrer para reprimir-lhe a manifestaoe a memria. Todavia, estas formas histricas aparecidas na

    luta so justamente o meio prtico que faltava teoria paraque ela fosse verdadeira. Elas so uma exigncia da teoria,

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    mas que no tinha sido formulada teoricamente. O sovieteno era uma descoberta da teoria. E a mais alta verdadeterica da Associao Internacional dos Trabalhadores, eraj a sua prpria existncia na prtica.

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    Os primeiros sucessos da luta da Internacionallevavam-na a libertar-se das influncias confusas daideologia dominante que nela subsistiam. Mas a derrotae a represso que ela cedo encontrar fizeram passar aoprimeiro plano um conflito entre duas concepes darevoluo proletria, ambas contendo uma dimensoautoritria, pela qual a auto-emancipao conscienteda classe abandonada. Com efeito, a querela tornadairreconcilivel entre os marxistas e os bakuninistas eradupla, tendo ao mesmo tempo por objecto o poder nasociedade revolucionria e a organizao presente domovimento, e ao passar dum ao outro destes aspectos, asposies dos adversrios invertem-se. Bakunine combatiaa iluso de uma abolio das classes pelo uso autoritriodo poder estatal, prevendo a reconstituio de uma classedominante burocrtica e a ditadura dos mais sbios, ou dosque sero reputados como tal. Marx, que acreditava que umamadurecimento inseparvel das contradies econmicase da educao democrtica dos operrios reduziria o papelde um Estado proletrio a uma simples fase de legalizaode novas relaes sociais, impondo-se objectivamente,

    denunciava em Bakunine e seus partidrios o autoritarismoduma elite conspirativa que se tinha deliberadamente

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    colocado acima da Internacional, e que formulava oextravagante desgnio de impor sociedade a ditadurairresponsvel dos mais revolucionrios, ou dos que seteriam a si prprios designado como tal. Bakunine recrutavaefectivamente os seus partidrios sob uma tal perspectiva:Pilotos invisveis no meio da tempestade popular, ns

    devemos dirigi-la, no por um poder ostensivo mas peladitadura colectiva de todos os aliados. Ditadura sem faixa,sem ttulo, sem direito oficial, e tanto mais poderosa quantoela no ter nenhuma das aparncias do poder. Assim seopuseram duas ideologias da revoluo operria, contendocada uma delas uma crtica parcialmente verdadeira,mas perdendo a unidade do pensamento da histria einstituindo-se, a si prprias, em autoridades ideolgicas.Organizaes poderosas, como a social-democracia aleme a Federao Anarquista Ibrica, serviram fielmente umae outra destas ideologias; e em toda a parte o resultado foigrandemente diferente do que era desejado.

    92O facto de olhar a finalidade da revoluo proletria

    como imediatamente presente constitui, ao mesmo tempo,a grandeza e a fraqueza da luta anarquista real (porque nassuas variantes individualistas, as pretenses do anarquismopermanecem irrisrias). Do pensamento histrico dasmodernas lutas de classes, o anarquismo colectivista retmunicamente a concluso, e a sua exigncia absoluta desta

    concluso traduz-se igualmente no seu desprezo deliberadodo mtodo. Assim, a sua crtica da luta poltica permaneceu

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    abstracta, enquanto a sua escolha da luta econmica nose afirmou, ela prpria, seno em funo da iluso de umasoluo definitiva arrancada de uma s vez nesse terreno, nodia da greve geral ou da insurreio. Os anarquistas tm umideal a realizar. O anarquismo a negao ainda ideolgicadoEstado e das classes, isto , das prprias condies sociais

    da ideologia separada. a ideologia da pura liberdade queiguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histrico. Esteponto de vista da fuso de todas as exigncias parciais deu aoanarquismo o mrito de representar a recusa das condiesexistentes no conjunto da vida, e no em torno de umaespecializao crtica privilegiada, mas esta fuso, ao serconsiderada no absoluto, segundo o capricho individual,antes da sua realizao efectiva condenou tambm oanarquismo a uma incoerncia demasiado fcil de constatar.O anarquismo no tem seno a redizer e a repor em jogo,em cada luta, a sua simples concluso total, porque estaprimeira concluso era desde a origem identificada com aconcretizao integral do movimento. Bakunine podia poisescrever em 1873, ao abandonar a Federao do Jura: Nosltimos nove anos desenvolvemos no seio da Internacionalmais ideias do que o necessrio para salvar o mundo, se spor si as ideias pudessem salv-lo, e desafio quem quer queseja a inventar uma nova. O tempo j no est para ideias, maspara factos e actos. Sem dvida, esta concepo conservado pensamento histrico do proletariado a certeza de que asideias devem tornar-se prticas, mas ela abandona o terreno

    histrico ao supor que as formas adequadas a esta passagem prtica j esto encontradas e no variaro mais.

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    93Os anarquistas, que se distinguem explicitamente

    do conjunto do movimento operrio pela sua convicoideolgica, vo reproduzir entre si esta separao dascompetncias, ao fornecer um terreno favorvel dominao informal, sobre toda a organizao ana rquista,

    dos propagandistas e defensores da sua prpria ideologia,especialistas, em regra geral, ta nto mais medocres quantoa sua actividade intelectual se reduz principalmente repetio de algumas verdades definitivas. O respeitoideolgico da unanimidade na deciso favoreceu antesa autoridade incontrolada, na prpria organizao, deespecialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionrioespera do povo libertado o mesmo gnero de unanimidade,obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa deconsiderar a oposio das condies entre uma minoriaagrupada na luta actual e a sociedade dos indivduos livresalimentou uma permanente separao dos anarquistas nomomento da deciso comum, como o mostra o exemplo deuma infinidade de insurreies anarquistas em Espanha,limitadas e esmagadas num plano local.

    94A iluso, sustentada mais ou menos explicitamente

    no anarquismo autntico, a iminncia permanente deuma revoluo que dever dar razo ideologia, e ao modode organizao prtico derivado da ideologia, ao realizar-se

    instantaneamente. O anarquismo conduziu realmente,em 1936, uma revoluo social e o esboo, o mais avanado

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    de sempre, de um poder proletrio. Nesta circunstncia, preciso ainda notar, por um lado, que o sinal de umainsurreio geral tinha sido imposto pelo pronunciamentodo exrcito. Por outro lado, na medida em que esta revoluono tinha sido concluda nos primeiros dias, pela existnciade um poder franquista em metade do pas, apoiado

    fortemente pelo estrangeiro no momento em que o resto domovimento proletrio internacional j estava vencido, e pelasobrevivncia das foras burguesas ou de outros partidosoperrios estatalistas no campo da Repblica, o movimentoanarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar asmeias-vitrias da revoluo, e at mesmo de as defender. Osseus chefes reconhecidos tornaram-se ministros e refns doEstado burgus que destrua a revoluo para perder a guerracivil.

    95O marxismo ortodoxo da II Internacional a

    ideologia cientfica da revoluo socialista, que identificatoda a sua verdade ao processo objectivo na economia eao progresso dum reconhecimento desta necessidade naclasse operria educada pela organizao. Esta ideologiareencontra a confiana na demonstrao pedaggica quetinha caracterizado o socialismo utpico, mas dotado deuma referncia contemplativa ao curso da histria: porm,uma tal atitude perdeu tanto a dimenso hegeliana de umahistria total como perdeu a imagem imvel da totalidade

    presente na crtica utopista (no mais alto grau, em Fourier). de uma tal atitude cientfica, que no podia fazer menos que

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    relanar simetricamente escolhas ticas, que procedem astolices de Hilferding quando este precisa que reconhecera necessidade do socialismo no d indicao sobre aatitude prtica a adoptar. Porque uma coisa reconheceruma necessidade, e uma outra pr-se ao servio destanecessidade (Capital financeiro). Aqueles que no

    reconheceram que o pensamento unitrio da histria, paraMarx e para o proletariado revolucionrio, no era nada dedistinto de uma atitude prtica a adoptar, deviam normalmenteser vtimas da prtica que tinham simultaneamenteadoptado.

    96A ideologia da organizao social-democrata

    submetia-a ao poder dos professores que educavam a classeoperria, e a forma de organizao adoptada era a formaadequada a esta aprendizagem passiva. A participaodos socialistas da II Internacional nas lutas polticas eeconmicas era certamente concreta, mas profundamenteno crtica. Ela era conduzida, em nome da ilusorevolucionria, segundo uma prtica manifestamentereformista. Assim, a ideologia revolucionria devia serdespedaada pelo prprio sucesso daqueles que consigoa traziam. A separao dos deputados e dos jornalistasno movimento arrastava para o modo de vida burgusaqueles mesmos que eram recrutados entre os intelectuaisburgueses. A burocracia sindical constitua em corretores

    da fora de trabalho, a vender como mercadoria ao seu justopreo, aqueles mesmos que eram recrutados a partir das

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    lutas dos operrios industriais e deles extrados. Para que aactividade de todos eles conservasse algo de revolucionrio,teria sido necessrio que o capitalismo se encontrasseoportunamente incapaz de suportar economicamente estereformismo que politicamente ele tolerava na sua agitaolegalista. uma tal incompatibilidade que a sua cincia

    garantia; e que a histria desmentia a cada instante.

    97Esta contradio, cuja realidade Bernstein, por ser

    o social-democrata mais afastado da ideologia poltica e omais francamente ligado metodologia da cincia burguesa,teve a honestidade de querer mostrar - e o movimentoreformista dos operrios ingleses, ao prescindir daideologia revolucionria, tinha-o mostrado tambm - nodevia, contudo, ser demonstrada sem rplica seno peloprprio desenvolvimento histrico. Bernstein, emboracheio de iluses quanto ao resto, tinha negado que umacrise da produo capitalista viesse miraculosamenteobrigar os socialistas ao poder que no queriam herdar darevoluo seno por esta legtima sagrao. O momento deprofunda perturbao social que surgiu com a primeiraguerra mundial, embora tivesse sido frtil em tomada deconscincia, demonstrou duplamente que a hierarquiasocial-democrata no tinha de modo algum tornado tericosos operrios alemes: de incio, quando a grande maioria dopartido aderiu guerra imperialista, em seguida, quando

    na derrota ela esmagou os revolucionrios spartakistas.O ex-operrio Ebert acreditava ainda no pecado, porque

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    confessava odiar a revoluo como o pecado. E o mesmodirigente mostrou-se bom precursor da representao

    socialista que devia, pouco depois, opor-se como inimigoabsoluto ao proletariado da Rssia e de algures, ao formularo programa exacto desta nova alienao: O socialismo querdizer trabalhar muito.

    98Lenine no foi, como pensador, marxista, seno

    Kautskista fiel e consequente, que aplicava a ideologiarevolucionria deste marxismo ortodoxo nas condiesrussas, condies que no permitiam a prtica reformistaque a II Internacional seguia em contrapartida. A direcoexteriordo proletariado, agindo por intermdio de um partidoclandestino disciplinado, submetido aos intelectuais que setornaram revolucionrios profissionais, constitui aquiuma profisso que no quer pactuar com nenhuma profissodirigente da sociedade capitalista (o regime czarista sendo,de resto, incapaz de oferecer uma tal abertura, cuja base umestdio avanado do poder da burguesia). Ela torna-se, pois,a profisso da direco absolutada sociedade.

    99O radicalismo ideolgico autoritrio dos bolcheviques

    estendeu-se, escala mundial, com a guerra e com odesmoronamento da social-democracia internacionalperante a guerra. O fim sangrento das iluses democrticas

    do movimento operrio tinha feito do mundo inteiro umaRssia, e o bolchevismo, reinando sobre a primeira ruptura

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    revolucionria que esta poca de crise tinha trazido, ofereciaao proletariado de todos os pases o seu modelo hierrquicoe ideolgico, para falar em russo classe dominante.Lenine no criticou ao marxismo da II Internacional o seruma ideologiarevolucionria, mas o ter deixado de o ser.

    100O mesmo momento histrico, em que o bolchevismo

    triunfoupara si mesmona Rssia, e onde a social-democraciacombateu vitoriosamente para o velho mundo, marca onascimento acabado de uma ordem de coisas que est nocorao da dominao do espectculo moderno: a representaooperriaops-se radicalmente classe.

    101Em todas as revolues anteriores, escrevia Rosa

    Luxemburgo na Rote Fahne de 21 de Dezembro de 1918, oscombatentes afrontavam-se de cara descoberta: classe contraclasse, programa contra programa. Na presente revoluo,as tropas de proteco da antiga ordem no intervm soba insgnia das classes dirigentes, mas sob a bandeira deum partido social-democrata. Se a questo central darevoluo estivesse posta aberta e honestamente, capitalismoou socialismo, nenhuma dvida, nenhuma hesitao seriamhoje possveis na grande massa do proletariado. Assim,alguns dias antes da sua destruio, a corrente radical doproletariado alemo descobria o segredo das novas condies

    que todo o processo anterior havia criado (para o qual arepresentao operria tinha grandemente contribudo):

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    a organizao espectacular da defesa da ordem existente,o reino central das aparncias onde nenhuma questocentral se pode j pr aberta e honestamente. Arepresentao revolucionria do proletariado neste estdiotinha-se tornado, ao mesmo tempo, o factor principal e oresultado central da falsificao geral da sociedade.

    102A organizao do proleta riado seg undo o modelo

    bolchevique, que tinha nascido do atraso russo e dademisso do movimento operrio dos pases avanadosquanto luta revolucionria, encontrou, tambm noatraso russo, todas as condies que levavam esta forma deorganizao a uma reinverso contra-revolucionria queela inconscientemente continha no seu germe original;a demisso reiterada da massa do movimento operrioeuropeu perante o Hic Rhodus, hic salta do perodo de1918-1920, demisso que inclua a destruio violenta dasua minoria radical, favoreceu o desenvolvimento completodo processo e dele deixou o resultado mentiroso, peranteo mundo, como a nica soluo proletria. O apoderar-sedo monoplio estatal da representao e da defesa dopoder dos operrios, que o partido bolchevique justificou,f-lo tornar-se o que ele era: o partido dos proprietrios do

    proletariado, eliminando no essencial as formas precedentesde propriedade.

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    103Todas as condies da liquidao do czarismo,

    encaradas no debate terico sempre insatisfatrio dasdiversas tendncias da social-democracia russa, haviavinte anos - fraqueza da burguesia, peso da maioriacamponesa, papel decisivo de um proletariado concentrado

    e combativo, mas extremamente minoritrio no pas -revelaram, afinal, na prtica a sua soluo, atravs de umdado que no estava presente nas hipteses: a burocraciarevolucionria que dirigia o proletariado, ao apoderar-se do Estado, deu sociedade uma nova dominao declasse. A revoluo estritamente burguesa era impossvel; aditadura democrtica dos operrios e dos camponeses eravazia de sentido; o poder proletrio dos sovietes no podiamanter-se, ao mesmo tempo, contra a classe dos camponesesproprietrios, a reaco branca nacional e internacional,e a sua prpria representao exteriorizada e alienada,em partido operrio dos senhores absolutos do Estado, daeconomia, da expresso, e dentro em breve do pensamento.A teoria da revoluo permanente de Trotsky e Parvus, qualLenine aderiu efectivamente em Abril de 1917, era a nicaa tornar-se verdadeira para os pases atrasados em relaoao desenvolvimento social da burguesia, mas s depois daintroduo deste factor desconhecido que era o poder declasse da burocracia. A concentrao da ditadura nas mos darepresentao suprema da ideologia foi defendida da maneiramais consequente por Lenine, nos numerosos afrontamentos

    da direco bolchevique. Lenine tinha cada vez mais razocontra os seus adversrios naquilo que ele sustentava ser

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    a soluo implicada pelas escolhas precedentes do poderabsoluto minoritrio: a democracia, recusada estatalmenteaos camponeses, devia s-lo aos operrios, o que levava arecus-la aos dirigentes comunistas dos sindicatos, em todoo partido, e finalmente at ao topo do partido hierrquico.No X Congresso, no momento em que o soviete de Kronstadt

    era abatido pelas armas e enterrado sob a calnia, Leninepronunciava contra os burocratas esquerdistas, organizadosem Oposio Operria, esta concluso, de que Estaline iriaalargar a lgica at uma perfeita diviso do mundo: Aqui oul com uma espingarda, mas no com a oposio... Estamosfartos da oposio.

    104A burocracia, ficando nica proprietria de um

    capitalismo de Estado, assegurou, antes do mais, o seupoder no interior atravs de uma aliana temporria como campesinato, aps Kronstadt, aquando da nova polticaeconmica, tal como o defendeu no exterior, utilizandoos operrios arregimentados nos partidos burocrticos daIII Internacional como fora de apoio da diplomacia russa,para sabotar todo o movimento revolucionrio e sustentargovernos burgueses de que ela esperava um apoio em polticainternacional (O poder do Kuo-Ming-Tang na China de1925-1927, a Frente Popular em Espanha e em Franca, etc.).Mas a sociedade burocrtica devia prosseguir o seu prprioacabamento pelo terror exercido sobre o campesinato para

    realizar a acumulao capitalista primitiva mais brutal dahistria. Esta industrializao da poca estalinista revela a

  • 5/24/2018 Guy-Debord - A Sociedade Do Espectaculo

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    realidade ltima da burocracia: ela a continuao do poderda economia, a salvao do essencial da sociedade mercantilmantendo o trabalho-mercadoria. prova da economiaindependente que domina a sociedade ao ponto de recriarpara os seus prprios fins a dominao de classe que lhe necessria: o que se resume em dizer que a burguesia

    criou um poder autnomo que, enquanto subsistir estaautonomia, pode ir at ao prescindir de uma burguesia. Aburocracia totalitria no a ltima classe proprietriada histria no sentido