4
PRODUÇÃO MUSICAL 48 www.backstage.com.br Ticiano Paludo é produtor musical, publicitá- rio, músico, compositor e sound designer. Le- ciona Áudio Publicitário e Atendimento na FAMECOS - Faculdade de Comunicação Social (PUC/RS) - e Arranjo e Produção Musical Nível III no IGAP - Instituto Gaúcho de Áudio Profissional. http://www.pontowav.com.br/hotsite/ HARMONIA HARMONIA Uma das atividades mais importantes dentro da produção musical refere-se à elaboração de arranjos. Vou explicar a você como penso sobre esse tema tomando como base a música pop. No entanto, o modelo que apresentarei pode ser perfeitamente adaptado para qualquer estilo musical amos começar pensando sobre o que significa o termo “canção”. Uma canção deve conter basicamen- te três elementos: letra (o texto que é cantado), melodia (as notas musicais que são cantadas e que servirão de su- porte para a letra, ou seja, a letra será cantada “em cima” da melodia) e har- monia (a base sólida que funcionará como pano de fundo e sustentação para letra e melodia, no caso, conjunto de acordes). Sabemos que os acordes são derivados das escalas musicais e que as melodias são igualmente com- postas utilizando-se as escalas. Even- tuais fugas da escala podem ocorrer, porém isso irá gerar quase sempre uma dissonância musical. Existem sonori- dades que permitem esse desvio trans- gressor (principalmente na música ex- perimental). No caso da música pop, o melhor é ficar mais contido e dentro das regras, isto é, dentro das escalas e sua lógica funcional. Agora que você já sabe o que é uma canção, vamos partir para o tema central dessa coluna. Imaginemos um compositor/intérprete que compôs uma canção. Após o processo de com- posição, ele procura o produtor e mostra o seu trabalho, buscando con- tratar o serviço de produção musical e, conseqüentemente, via de regra, arranjo. Normalmente isso é feito de forma bem simples: ou o artista vai gravar uma demo caseira e enviar ao produtor (via correio comum, MP3, etc) ou tocará ao vivo na frente do produtor. Particularmente, prefiro o segundo caminho. Independente do caso, o que ouviremos? Basicamente, [voz + violão], ou, em algumas varia- ções, [voz + guitarra] ou [voz + piano e/ou teclado]. Nesse momento a com- posição está crua. Essa audição inicial é muito importante. Se a canção não funcionar nesse estado primitivo, isto é, se não emocionar, não convencer, não adiantará nada contratar o me- lhor arranjador do mundo. É como uma boa omelete: se os ovos estiverem podres, não adianta saber cozinhar. No dia-a-dia, produtores experientes conseguem distinguir uma canção efi- ciente de uma não tão boa em apenas uma audição básica preliminar. Por- tanto, essa etapa base é decisiva. Se não me convence de saída, a chance de não convencer em audições posterio- res é bem grande. Caso a canção apre- sente problemas, analisa-se o quão grave é, ou não, o ou os problemas (às vezes solúveis, noutras sem solução). Muitas vezes, pequenos ajustes resol- vem a questão. Como exemplo de “conserto”, podemos citar a mudança de palavras no texto (letra) em fun- ção de métricas erradas, deficiências V a ciência dos Ou’s

HARMONIA - backstage.com.br · Sabemos que os acordes são derivados das escalas musicais e ... ções, [voz + guitarra] ou [voz + piano e/ou teclado]. Nesse momento a com-posição

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: HARMONIA - backstage.com.br · Sabemos que os acordes são derivados das escalas musicais e ... ções, [voz + guitarra] ou [voz + piano e/ou teclado]. Nesse momento a com-posição

PRODUÇÃO MUSICAL

48 www.backstage.com.br

Ticiano Paludo é produtor musical, publicitá-

rio, músico, compositor e sound designer. Le-

ciona Áudio Publicitário e Atendimento na

FAMECOS - Faculdade de Comunicação Social

(PUC/RS) - e Arranjo e Produção Musical Nível III

no IGAP - Instituto Gaúcho de Áudio Profissional.

http://www.pontowav.com.br/hotsite/

HARMONIAHARMONIAUma das atividadesmais importantesdentro da produçãomusical refere-se àelaboração dearranjos. Vou explicara você como pensosobre esse tematomando como base amúsica pop. Noentanto, o modelo queapresentarei pode serperfeitamenteadaptado paraqualquer estilomusical

amos começar pensando sobre oque significa o termo “canção”.

Uma canção deve conter basicamen-te três elementos: letra (o texto que écantado), melodia (as notas musicaisque são cantadas e que servirão de su-porte para a letra, ou seja, a letra serácantada “em cima” da melodia) e har-monia (a base sólida que funcionarácomo pano de fundo e sustentaçãopara letra e melodia, no caso, conjuntode acordes). Sabemos que os acordessão derivados das escalas musicais eque as melodias são igualmente com-postas utilizando-se as escalas. Even-tuais fugas da escala podem ocorrer,porém isso irá gerar quase sempre umadissonância musical. Existem sonori-dades que permitem esse desvio trans-gressor (principalmente na música ex-perimental). No caso da música pop, omelhor é ficar mais contido e dentrodas regras, isto é, dentro das escalas esua lógica funcional.Agora que você já sabe o que é umacanção, vamos partir para o temacentral dessa coluna. Imaginemos umcompositor/intérprete que compôsuma canção. Após o processo de com-posição, ele procura o produtor emostra o seu trabalho, buscando con-tratar o serviço de produção musicale, conseqüentemente, via de regra,arranjo. Normalmente isso é feito de

forma bem simples: ou o artista vaigravar uma demo caseira e enviar aoprodutor (via correio comum, MP3,etc) ou tocará ao vivo na frente doprodutor. Particularmente, prefiro osegundo caminho. Independente docaso, o que ouviremos? Basicamente,[voz + violão], ou, em algumas varia-ções, [voz + guitarra] ou [voz + pianoe/ou teclado]. Nesse momento a com-posição está crua. Essa audição inicialé muito importante. Se a canção nãofuncionar nesse estado primitivo, istoé, se não emocionar, não convencer,não adiantará nada contratar o me-lhor arranjador do mundo. É comouma boa omelete: se os ovos estiverempodres, não adianta saber cozinhar.No dia-a-dia, produtores experientesconseguem distinguir uma canção efi-ciente de uma não tão boa em apenasuma audição básica preliminar. Por-tanto, essa etapa base é decisiva. Senão me convence de saída, a chance denão convencer em audições posterio-res é bem grande. Caso a canção apre-sente problemas, analisa-se o quãograve é, ou não, o ou os problemas (àsvezes solúveis, noutras sem solução).Muitas vezes, pequenos ajustes resol-vem a questão. Como exemplo de“conserto”, podemos citar a mudançade palavras no texto (letra) em fun-ção de métricas erradas, deficiências

V

a ciência dos Ou’s

Page 2: HARMONIA - backstage.com.br · Sabemos que os acordes são derivados das escalas musicais e ... ções, [voz + guitarra] ou [voz + piano e/ou teclado]. Nesse momento a com-posição

www.backstage.com.br 49

PRODUÇÃO MUSICAL

com rimas ou substituição de frases, palavras e idéias; pe-quenas alterações na linha melódica (melodia); ou, ainda,simplificação ou sofisticação da base harmônica (harmo-nia, que vai desde alterar uma progressão de acordes até ainserção ou supressão de acidentes musicais, inversões,etc). Veja quantos “ou’s” usei para a explicação! Isso se jus-tifica porque nunca existe um único caminho. É bom lem-brar que somos produtores e não deuses, videntes ou donosda verdade. Por isso, equacionamos possibilidades com sa-bedoria e conhecimento de causa. Assim sendo, nossa ex-periência permite que tenhamos condições de avaliar oscaminhos e sugerir alterações construtivas. Isso não signi-fica garantia absoluta de sucesso, apenas adequação segun-do critérios muitas vezes altamente subjetivos que sãocomplexos de se explicar, mas que podem fazer (e normal-mente fazem) toda a diferença no resultado final do traba-lho do artista. Sem definir claramente o exposto acima,não adianta nada pensar em arranjo.Uma vez definida a canção e superadas eventuais falhas, éhora de partir para o arranjo. E o que é um arranjo? Arranjoconsiste na escolha das tinturas que vão colorir o quadrosonoro de uma canção. Em outras palavras, definimosquais instrumentos serão utilizados e o que cada um fará(papel musical) dentro da composição. O arranjo pode sercomplexo (contendo muitos elementos, ou seja, uma vastagama de instrumentos e sonoridades) ou simples eminimalista (um ótimo exemplo são as canções que utili-zam apenas uma voz e um violão ou uma voz e um piano,ou, ainda, uma canção acapella, isto é, apenas vocal).Bem, se é assim, como eu me decido por um caminho ououtro? Isso vai depender fundamentalmente da propostaartística, não só da canção isolada, mas de como ela vai oudeve funcionar dentro do álbum no qual será inserida. Nocaso do rock, até Sgt. Peppers (dos Beatles) de 1967, basica-mente os arranjos gravados eram simplórios. Limitavam-se ao que a banda ou artista dispunha nos shows. Digamosque era um retrato absolutamente realista. Assim sendo, sea banda era de rock com formação clássica (um baixo, umaguitarra, uma bateria e um vocal), gravava-se apenas e exa-tamente isso. Às vezes essa solução funciona bem; em ou-tros casos, pode engessar ou empobrecer a proposta.Peppers, além de abusar criativamente dos recursos deoverdub (sobreposição de tracks), instaurou um novomodo de se pensar um álbum: em bom português, “show éshow, disco é disco”. Portanto, nada impede que eu utilize

Page 3: HARMONIA - backstage.com.br · Sabemos que os acordes são derivados das escalas musicais e ... ções, [voz + guitarra] ou [voz + piano e/ou teclado]. Nesse momento a com-posição

PRODUÇÃO MUSICAL

50 www.backstage.com.br

uma harpa em uma gravina (possochamar um músico de estúdio paraessa tarefa) mesmo que a minha ban-da não possua um harpista em sua for-mação original e mesmo que no mo-mento de um show este harpista nãoesteja presente. O show pode ser maiscru, mais visceral. O álbum será maisdetalhado e trabalhado.Vale uma ressalva importante: a ten-tação de poluir o arranjo é sempregrande. Um mundo de possibilidadesaparece e o artista acaba tentado emusar tudo ao mesmo tempo de uma sóvez (principalmente em tempos dehome estúdio e instrumentos virtu-ais). Se isso ocorre, teremos como re-sultado não um enriquecimento dacanção, mas um caos descabido que vaifuncionar de forma inversa, isto é, ne-gativa. Ou seja, um arranjo mal elabo-rado e conturbado pode destruir umaboa canção e passar do plano funcio-nal para o disfuncional. Isso não signi-fica que um álbum não possa apresen-tar variações entre as faixas, sendoumas mais complexas e outras maissimples. Como disse antes, dependebasicamente de proposta, intenção eclaro, da sensibilidade do produtormusical para saber a hora de parar ouavançar, incrementar ou reduzir.Um exercício interessante que pro-ponho é o seguinte: procure ouviruma faixa original e, posteriormente,procure ouvir uma releitura dessa fai-xa (de preferência executada por umartista diferente do original). Ál-buns-tributo são um bom ponto departida. Acústicos, embora sejamexecutados pelo artista original, tam-bém valem. Você notará como umacanção pode mudar (para melhor oupior) com alterações no arranjo. Sevocê achar difícil demais seguir o que

propus, existe outra dica: atualmenteé fácil encontrar versões alternate dediversos álbuns; essas versões apresen-tam mixagens diferentes do original e,em muitos casos, arranjos que foramalterados ou descartados em relação aomaterial que de fato foi lançado; vale apena ouvir para compreender.O bom arranjador deve ter pleno domí-nio sobre uma gama considerável de ins-trumentos, instrumentistas e sobre aexecução particular de cada instrumen-to. Como vou sugerir um french horn senão sei qual a sua tessitura, extensão esonoridade? Tomando outro exemplo

comum, no caso de se optar pela grava-ção de várias guitarras em uma track, elasdevem ser gravadas em dobra (isto é,uníssono) ou devem executar melodiase harmonias diferentes entre si? Toman-do uma boa ilustração, bandas de rockpesado costumam gravar várias dobraspara, posteriormente, distribuí-las den-tro da imagem estéreo do fonograma etimbrá-las de forma criativa. Isso faz comque o som ganhe peso, detalhamento deprofundidade musical e força, resultadoque a gravação de apenas uma ou duasguitarras não conseguiriam produzir. Éigualmente necessário conhecer os có-digos musicais que o ouvinte-alvo tem

aptidão para reconhecer (mesmo que elenão entenda de música, já está acostu-mado a estes artifícios construídos) eoferecer esses códigos facilitará o enten-dimento da proposta artística em ques-tão. Por isso, exemplificando, é tão co-mum a utilização de cordas (strings) embaladas para conferir um caráter dramá-tico convincente. Também é bom lem-brar que a voz humana é um instrumen-to assim como os demais. E como funci-ona o arranjo neste caso? Elaboram-searranjos vocais para vozes humanas adi-cionais vox-auxiliares e backing vocals.Ouvir muita música é um ótimo exercí-cio para aprender sobre arranjos. Refe-rências igualmente ajudam a definir ca-minhos e evitar equívocos.Normalmente, quando estou produ-zindo uma banda pop, a primeira coi-sa que faço é uma reunião no meu es-túdio para a audição inicial crua domaterial musical que se deseja produ-zir (vocalista cantando, guitarristatocando violão e nada mais). Apósisso, costumo ir aos ensaios da bandae ouvir o que produziram sozinhos(isto é, sem a minha intervenção).Trata-se, neste ponto, do arranjoproposto pelo artista. Assim como nocaso da canção em si (melodia + har-monia + letra), faço eventuais ajustesno arranjo predefinido pela banda, jápensando na gravação e projetando oresultado final. Isso é vital para poupartempo na hora de gravar (lembre-sede que embora muitos estúdios já este-jam trabalhando com o formato paco-te, isto é, cobrando valores fixos inde-pendente do número de horas gastaspara a gravina, a maioria dos estúdioscobra por hora, e ficar decidindo ar-ranjos nesse momento significa atirardinheiro do cliente/artista pela janeladesnecessariamente).

O bom arranjador deveter pleno domíniosobre uma gamaconsiderável deinstrumentos,

instrumentistas e sobrea execução particularde cada instrumento

Page 4: HARMONIA - backstage.com.br · Sabemos que os acordes são derivados das escalas musicais e ... ções, [voz + guitarra] ou [voz + piano e/ou teclado]. Nesse momento a com-posição

PRODUÇÃO MUSICAL

52 www.backstage.com.br

e-mail para esta coluna:

[email protected]

Uma vez definido o arranjo, vamospara o estúdio de gravação e gravamostudo. Mesmo que a banda faça algunsoverdubs, esta gravação soará comouma fotografia fiel e realista da can-ção e de seu arranjo primitivo (forma-to similar ao precedente de Peppers).De posse desse material, retorno aomeu estúdio e remonto a seção de gra-vação. Se for o caso, complementocom arranjos extras (com a inserçãode instrumentos virtuais, por exem-plo). Existe, ainda, o caso do artistaque me procura e não tem a menoridéia de que arranjo deve ser feito(isso é muito comum no caso de can-tores/autores que não possuem bandade apoio e/ou músicos acompanhan-tes). Então, é preciso elaborar toda aestrutura partindo do zero, criar, exe-cutar e sugerir tudo.Tomando um caso prático, recente-mente, produzi uma faixa para umacantora da seguinte forma: elaboreitodo o arranjo (que não existia previ-amente) utilizando instrumentosvirtuais, partindo da canção crua. Issoserviu como teste para visualizarmosa canção arranjada, o que denominopreview arrange. Então, passei essearranjo aos músicos de estúdio quecontratamos para o job. Eles tiraramde ouvido cada um a sua parte. Deixeique eles se sentissem livres para sugeri-rem alterações, desde que não compro-metessem a idéia-base proposta pormim (que já estava previamente apro-vada pela cantora). Fomos para o estú-dio e gravamos tudo. Nesse caso, utili-zei um baterista, um percussionista, umbaixista e eu mesmo executei os pianoselétricos e acústicos, violões de aço enylon e guitarras. Por fim, gravamos avoz. As seções foram realizadas em diasdiferentes, sendo uma para cada músi-

co. O resultado ficou ótimo. Por fim, éimportante lembrar que cada instru-mento dentro do arranjo deve serpensado de forma a contribuir com otodo, que é o fonograma final, isto é, acanção gravada, mixada e finalizada.Gravar uma gaita de boca “porque élegal”, ou um oboé “porque está namoda” não vai ajudar em nada. Osinstrumentos devem ser funcionais ecomplementares, isto é, auxiliar naconstrução da narrativa musical. Otrabalho de arranjo não é executadoúnica e exclusivamente por produto-res musicais. Existem profissionaisespecializados nesse tipo de atividade:são os chamados arranjadores. Aí seencontra mais uma das diversas fren-tes em que se pode atuar no mercadoda indústria fonográfica.

OUVINDO E APRENDENDOCOM OS BEATLES:ARRANJO ACAPELLA

“Because” (Beatles) – “Abbey Road”ARRANJO MINIMALISTA

“Julia” (Beatles) – “White Album”ARRANJO SIMPLES E EFICIENTE

“Love” (John Lennon)“Plastic Ono Band”ARRANJO COMPLEXO

“A Day In The Life” (Beatles)“Sgt. Peppers”

Desejo a todos um Natal repleto dealegrias e um Feliz Ano Novo. Agra-deço àqueles que acompanharam aminha coluna nesse ano. Volto em2009, sempre trazendo novidades etextos interessantes para vocês aquina Backstage.Abraços e até o ano que vem!