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HH o PRÓPRIO E O ALHEIO l Iá, 110 entanto, um outro elemento a realçar: o rc.. gat das tradições, que se traduziu pela evocaçãc : história dos Jogos Olímpicos e na sua produção 111 ( atro de sombras (possivelmente a mais bela par(' I espetáculo). Tradições conhecidas de todos. Além disso, o que era "novo" para o telespectador di tante (e, principalmente, não-norte-americano) ra "conhecido" para os espectadores sulistas: as tra- dições do Sul dos Estados Unidos expressas por meio dos ritmos musicais, dos cantos religiosos, da visão retrospectiva de Atlanta em etapas importan- tes, dos carros iluminando a pista corno hábito con- sagrado na vida americana, a homenagem a Martin Luther King. O particular, portanto, se expressava ao lado do universal e com ele se relacionava na con- tinuidade de urna tradição transformada. Além dis- o, a variada origem étnica dos regentes da orques- tra expressava ali o multiculturalismo norte-ameri- ano. Corno um texto no qual não apenas o enredo ou a figuração plástica têm interesse, os Jogos de /\( lanta ilustraram para nós as articulações que o fi- lia I do século XX propôs. Poder-se-ia dizer com rela- ·fio à literatura comparada, corno fez Earl Miner com r speito aos ganhos dos estudos interculturais no final de seu livro Comparative Poetics, que na tran- sj(,"fío do milênio se deve evitar tornar o local pelo uuiv .rsal, o momentâneo pelo constante e, acima de (lido, ) familiar pelo inevitável. . . - o de um conceito 1111111' '(IlíIl1dade: A migraça EscribiT es un intento inútil de olvidaT lo que está escnto, Ricardo Pig1i.a I . /. ue precedem e fun- Nos comentános cntiCOSq . S/Z , leitura de Sarrasine, de Balzac, em .\.\11\ .ntam a h bserva. le texte unique vaut ( \ 1)7 I) Roland Bart es o· "lles re- , dI Iiué ature non en ce qu i IHlI/.'/' ious les e aI l, erl' ) mais en ce que Ia uus. 1 1/ ('sente (les nhstrai; et es e~a lS~ , I t 1 ~ 't 'amats qu un seu tex e . /(I/.-nreelle-m:n: e n es J ~ 1 d nesta passagem, a O cnUCO frances au e, .," _ '1 ao comparativismo hterano ea lima noçao essenCla . a. a idéia de comu- r 'Oexão teórica sobre a hteratur . -, -- 'Iidade textual. d há nos textos literários ele- A crença e que omuns que identificam sua naturez:, se~ mentos c .c . e e' que ampara a atuaçao nao . o os unl10rmlZ , d q~~ ISS oria literária como da literatura c~mpara ~ so a te .' abstração de conceitos a par quando ambas VIsam a B h R Op, cit. Paris, Seuil, 1971, r- 18/19, art es, '

HH o PRÓPRIO EO ALHEIO · PDF fileHH oPRÓPRIO EO ALHEIO lIá, 110 entanto, um outro elemento a realçar: o rc.. gat das tradições, que se traduziu pela evocaçãc : história dos

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HH o PRÓPRIO E O ALHEIO

l Iá, 110 entanto, um outro elemento a realçar: o rc..gat das tradições, que se traduziu pela evocaçãc :história dos Jogos Olímpicos e na sua produção 111

( atro de sombras (possivelmente a mais bela par('I espetáculo). Tradições conhecidas de todos.

Além disso, o que era "novo" para o telespectadordi tante (e, principalmente, não-norte-americano)ra "conhecido" para os espectadores sulistas: as tra-

dições do Sul dos Estados Unidos expressas pormeio dos ritmos musicais, dos cantos religiosos, davisão retrospectiva de Atlanta em etapas importan-tes, dos carros iluminando a pista corno hábito con-sagrado na vida americana, a homenagem a MartinLuther King. O particular, portanto, se expressavaao lado do universal e com ele se relacionava na con-tinuidade de urna tradição transformada. Além dis-o, a variada origem étnica dos regentes da orques-

tra expressava ali o multiculturalismo norte-ameri-ano.

Corno um texto no qual não apenas o enredoou a figuração plástica têm interesse, os Jogos de/\( lanta ilustraram para nós as articulações que o fi-lia Ido século XX propôs. Poder-se-ia dizer com rela-·fio à literatura comparada, corno fez Earl Miner

com r speito aos ganhos dos estudos interculturaisno final de seu livro Comparative Poetics, que na tran-sj(,"fío do milênio se deve evitar tornar o local pelouuiv .rsal, o momentâneo pelo constante e, acima de(lido, ) familiar pelo inevitável.

. . - o de um conceito1111111' '(IlíIl1dade: A migraça

EscribiT es un intento inútil de olvidaTlo que está escnto,

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O cnUCO frances a u e, .,"_ ' 1ao comparativismo hterano e a

lima noçao essenCla . a. a idéia de comu-r 'Oexão teórica sobre a hteratur . -, --

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omuns que identificam sua naturez:, se~mentos c .c . e e' que ampara a atuaçao nao. o os unl10rmlZ , dq~~ ISS oria literária como da literatura c~mpara ~so a te .' abstração de conceitos a parquando ambas VIsam a

B h R Op, cit. Paris, Seuil, 1971, r- 18/19,art es, '

o PRÓPRIO E O ALHEIO

Iir <"I análise textual, orientando-se para aspectossupra-individuais das obras. Assumem, no caso,como finalidade última, a aproximação global da li-t cratura, na qual cabe dar conta da complexidade deI' .laçôes interliterárias e de como, por força desses1rocessos, se estabelece a tradição.

Esse procedimento, que afirma a vinculaçãoda literatura comparada com a teoria literária, recu-pera para os estudos comparativistas a noção deWeltliteratur em novas bases, sem as marcas da incli-nação cosmopolita de inícios do século XIX ou da vi-são utópica de Goethe, quando empregou e difun-diu o termo em 1827. Na perspectiva goethiana, anoção de "literatura mundial" pressupunha a exis-tência de nações com identidade própria e com co-municação no plano literário. A construção lógica.do conceito remete à sua origem eurocêntrica, poisdeve seu surgimento à pulverização progressiva dalíngua latina como código universal, que durante sé-culos constituiu um meio de produção e de comuni-cação literária na Europa." Foi com certeza o apare-cimento de várias formas de expressão literária emlatim vulgar, transmutado em línguas vulgares, quedepois configuraram as diversas literaturas nacio-nais, o motivo provocador da reflexão sobre rela-ções recíprocas e liames entre elas e além delas.

2 Veja-se a respeito, Manfred Naumann, "Entre réalité et utopie:Coethe et sa notion de Ia Weltliteratur". In: Liüérature compa-rée/Liuêrature mondiale, Actes du Xlêrne Congrês de IaAILC, Pa-ris, 1985, Peter Lang, 1991.

INTERTEXTUAUOAOE: 71

Hoje, sua utópica compreensão do fenômeno háque ser necessariamente revista, a partir de umaconcepção de uma perspectiva "planetária", na qualtem insistido René Etiernble."

Mas se Goethe ambicionou a criação de umaliteratura mundial para a qual todos os escritores co-laborariam, a concepção da literatura como uma to-talidade, dinâmica e interativa, perpassa a obra demuitos escritores modernos. Na de Jorge Luís Bor-ges, por exemplo, essa idéia configura-se como umabiblioteca interminável que, ao ser percorrida porum eterno viajante em qualquer direção, comprova-ria, no final dos séculos, que os mesmos volumes serepetem em igual desordem.

Na noção do literário como globalidade estãopresentes a de "comunidade" e a de "continuidade",sendo esta entendida como um processo que alternamemória e esquecimento. Vigora também aí, de for-ma subjacente, a perda do conceito de propriedadeprivada, pois nesse grande conjunto tudo se tornapropriedade de todos, patrimônio comum a que oescritores recorrem consciente ou inconscientemen-te. A tradição se faz por um efeito de memória. Oucomo diz Ricardo Piglia: "Para um escritor a memó-ria é a tradição. Uma memória impessoal, feita de i-tações, na qual se falam todas as línguas. Os frag-

3 Etiemble, René. Es~aisde liuérature (vraiment)générale. Paris, (::11limard, 1974 [1975] e Quelques essais de liüérature nniV('I~I'I'III', 1',1ris, Gallimard, 1982. Ver ainda Ouoertureis) sU?o '1/.1'1 COlllfl(/l(/I/I/lI/'planétaire. Paris, C. Bourgois, 1988,

7'J. o PRÓPRIO E O ALHEIO

Il1 ntos e os tons de outras escrituras voltam comor .cordaçóes pessoais. Com mais nitidez, às vezes,que nas recordações vividas'>.

11

É nesse contexto que a noção de intertextuali-dade se torna muito importante. S~ndo um dosprincípios básicos da teoria textual, é útil ao com a-ratista no estudo das relações literárias. Àssi~, o ter-mo migrou nos estudos literários desde seu empre-go por Júlia Kristeva em 1966 para caracterizar aprodutividade textual a partir do conceito de dialo-gismo de M. Bakhtine. No ensaio "Le mot, le dialo-gue et le rornan", a intertextualidade, cunhada e di-[u~dida por Kristeva, é explicada como uma pro-pnedade do texto literário, que "se constrói comoum mosaico de citações, como absorção e transfor-mação de outro texto". Para ela, "em lugar da noçãod intersubjetividade se instala a de intertextualida-I a linguagem poética se lê, ao menos, como du-

pla". A teoria do texto se fundamenta logo em trêsgran:Ies premissas: a primeirq, "que a linguagempo .uca é a única infinitude do código", depois, que

I'igli;!, Ricardo. "Memoria y tradieión". In: Atas do 2° Congressodo IIIIR/lLlC, Belo Horizonte, 1990.

INTEln'EXTUALIDADE: 73

11 II', to literário é duplo: escrita/leitura" e, ,final-1111'1I1t', que o texto literário é "um feixe de cone-

III'S". I to posto, temos o texto como "diálogo de.1I1:IS scrituras", e o que era antes entendido numa

I1 I.I<;flo individual (intersubjetiva) passa a ser coleti-Itoldo, ou seja, as relações são estabelecidas no con-

ptllto dos textos. Desse modo, o texto ressalta su.au.uureza heterotextual, sendo penetrado de alten-d"cI " constituído de outras palavras além das I?!Ó-111 ias. Põr ISSO,mãIs tarae,MIcIi~1 Rif:'~ter:e, "" Lal'nuluction du Texte (1979), falara de indireção se-111. ntica", isto é, a obra não significa apenas o quediz/' Ela absorve as significa-dos aós Textos com os !(" lai dialoga num sentiêlõ amplo de; termo: o diálo- ;110 \ aqui estilieleciao entre três linguagens, a do.es- ••ril r, a do destinatário (que pode estar fora ou im-

plr .ito na obra) e a o contexto cultural, atual ou an-u-rior.

Desse modo, a palavra, que é "dupla", perten-c t' ao texto em questão e a outros, precedentes e di-li'rentes, pertencendo também ao sujeito da escritac' ao destinatário.

Não por acaso Roland Barthes, ainda em 5/Z,t'S reveria que "este eu (moi) que se aproxima do tex-t () é já em si rpesmo uma plura~idade de outros te~-tos, de códigos infinitos, ou mais exatamente perdi-dos (cuja origem se perde)'".

!íli

Riffaterre, M. Op. cit. Paris, Seuil, 1979.Banhes, R. Op. cit. Paris, Seuil, 1971, p.16.

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Ainstrumentalização do conceito teórico foirápida. Foi tal sua difusão nos anos 1970 que Marc~genot observou, com razão, que seria possívelIlustrar aprópria noção de intertextualidade com an:igração do termo "intertexto" e de seu campo no-cional.?

A idéia varia segundo os contextos teóricos:por vezesintegra a poética genética, outras, a estéti-ca da recepção; em alguns autores ela ocupa umaposição central; em outros, é termo ocasionalmenteempregado. O fato é que a noção fez "fortuna críti-ca", não surpreendendo, pois, que se transladasseao domínio compara tista, fortalecendo a solidarie-dade existente entre as formas de investigação do li-terário. Desde o número 27 da revista Poétique,"Intertextualités", dirigido por Laurent Jenny, vá-rias publicações são dedicadas ao tema.

A intertextualidade, como propriedade des-crita, passou a significar um procedimento indis-pensável à investigação das relações entre os diver-sos textos. Tornou-se chave para a leitura e ummodo de problematizá-Ia. Como sinônimo das rela-ções que um texto mantém com um corpus textualpré ou coexistente, a intertextualidade passou a ori-.n tar a interpretação, que não pode mais desconhe-. r os desdobramentos de significados e vai entrela-

~'<Í-Iosçorn., a própria origem etimológica da pala-

7 t\ng nOl, M. "Intertextualité, interdiscursivité, discours social".111: Texte. Les Editions Trintexte, 1984.

INTERTEXTUALIDADE: 75

vra esclarece: texere, isto é, tecer, tramar. Daí "int r-.texto", que significa "tecer no, misturar tecendo" e,de forma figurada, entrelaçar, reunir, combinar."

O texto permite a leitura de intertextos, ouseja, do "conjunto de textos que se pode aproximardaquele que temos sob os olhos, o conjunto de tex-tos que encontramos na memória de uma dada pas-sagem", como definiu Riffaterre.?

É, portanto, na trama do que se perde e doque se recupera, na alternância de esquecimento ememória do que se lê que se organiza a continuida-de literária, tal como ela se manifesta em cada texto.A intertextualidade, ao operacionalizar-se, possibili-ta que se recomponham os fios internos dessa vastacontinuidade em seus prolongamentos e rupturas.Mas se a intertextualidade como propriedade textu-al é seletiva, pois a absorção de elementos alheiosresponde a uma necessidade particular, o procedi-mento nos leva a pensar na constituição de uma"tradição" não-ilimitada, como queria T. S. Eliot,mas num conjunto de dimensões formais e temáti-cas que certos grupos de textos têm em comum.

8 Cf. Ruprecht, H-C. "Intertextualité". In: Texte. Les Ed. Trintex-te, 1984.

9 Riffaterre, M. Op. cit. Paris, Seuil, 1979. Sobre "intertextualida-de" há uma vasta bibliografia teórica. Cabe aqui registrar ape-nas os números especiais de revistas literárias dedicados à ques-tão. Trata-se de Poétique n.27 (dirigido por Laurent Jenny),1976; Sémiotique et Bible, n.15, 1979; Littérature n.41, 1981 e Tex-te, 1984. Veja-se também o livro de Nathalie Piégay-Cros, Intro-duction à l'Iniertextualüé, Paris, DUNOD, 1996.

o PRÓPRIO E O ALHEIO

Nesse contexto, a convenção e Importante.orno elemento que assegura a comunicabilidade, otrânsito do literário. A apropriação significa sempreo conhecimento e domínio das peculiaridades docódigo. Assim é possível entender como a intertex-tualidade aponta para a sociabilidade da escrita lite-rária, cuja individualidade se afirma no cruzamentode escritas anteriores.

Já nos distanciamos do sentido restrito comque o termo foi inicialmente empregado e se podeexplicitar o conceito como "todas as interações pos-síveis entre todos os fenômenos culturais". Tomadanum sentido largo, a intertextualidade nos permiteentender que ler um texto é lançá-l o num espaço in-terdiscursivo e na relação de vários códigos, que sãoconstituídos pelo "diálogo entre textos e leitura".Por isso a intertextualidade é igualmente entendidacomo um dado da percepção textual. Já nos Ensaiosde Estilística Estrutural, de 1971, M. Riffaterre enca-minhava a reflexão nesse sentido, mostrando que oprocedimento intertextual possibilita que se descre-vam as convenções interpretativas, dando-nos umverdadeiro "traçado" de leituras.

A contribuição do conceito para os estudos deliteratura comparada é visível e essencial, pois modi-fi ou as leituras dos modos de apropriação, de ab-s irções e de transformações textuais, alterou o en-t .ndimento da "migração" de elementos literários,r v rt ndo as tradicionais noções de "fontes" e "in-Iluên "ias". A alteração é substantiva: se a noção de

--+)jnfluên "ia tendia a individualizar a obra, sobrepon-

INTERTEXTUALlDADE: 77

~gráfico a_otextual e .mp_ondo_umª-..c'ill.§lida-de determinista na rodução literá,ria, a de intertex-tualidade, ao desig;a~ ·sistemas impesso-;is de in-ter;ção textual, coletiviza a_obra. Por outro lado, seas fon~o, por d~finição, exteriores ao texw:OS Itraços da existência de intertextos são intratextuais, .formadores e~onstituintes da obra. Se a influência" li'pare~ia deixar passiv~~ receptõ;, minimizando sua'importância e privilegiando a noção de originalida-d~mpreensão da intertextualidade como pro- .. ~priedade textua elide o sentido negativo e dá ênfase_à natureza criativa do processo de produção textual.

- -Nessa perspectiva, o dado absorvido por umtexto é considerado "um formante intertextual",entendido numa relação de "performance" produ-tora e "competência" receptora do sujeito, seja eleindividual ou coletivo.

Do mesmo modo, se a noção de intertextuali-dade nos permite incluir as anônimas práticas dis-cursivas da cultura como elementos que permitem auma obra produzir efeitos de sentido, a noção con-tribui também para que o comparatista menosprezeas "relações de fato" (os tradicionais rapports de faits,que deveriam ser comprovados concretamente) por"relações de valor" (rapports de valeur), cuja compro-vação será textual e não histórica.

Graças à reflexão teórica sobre o conceito deintertextualidade, a noção de influência aos moldestradicionais se tornou inoperante como também atese da dependência dela decorrente. Ao investigaras "fontes" na forma convencional, sem atentar para

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sua funcionalidade na obra que as incorpora ou naliteratura a que esta pertence, o comparatismo tra-dicio~al ~a-:"a de consid@-Fa.~ mais im~ortante,ou seja,e~~e.em,que medida' a apr.~pnaçã~ deuma fonte côntribufa para a configuração pes~aldaquela obra e parasua-inserção- no co~junto maiordo literário, ao aderir-a m;;a tópica que integr~ a lin-guagem convencional, a temática ou ós proce 1-

mentos técnicos comuns aos escritõie;--Em estudo -sob-r~-Cláudro Manuel da Costa,

difundido graças à organização de Antonio Candidosob o título geral de Capítulos de Literatura Colonial(1991), Sergio Buarque de Holanda comprova lar-gamente a utilidade dessa leitura renovada de fon-tes, ao estudar nossa literatura colonial em suas rela-ções com as literaturas das metrópoles, para mos-trar, como diz Antonio Candido, "como o tecido daobra literária é uma encruzilhada secular na qualvem bater toda a aventura espiritual do Ocidente" 10.

No corpo do ensaio, no qual pela colação direta dostextos explicita como Cláudio se aproxima e se dis-tancia, discrepando do modelo italiano de Pietro 'Metastasio, Sergio B. de Holanda manifesta comclareza o andamento de sua leitura crítica ao dizer:"Se aplicada a épocas como a nossa,já saturadas doindividualismo romântico, essa determinação dosantepassados espirituais de um autor, tão do gosto

10 Buarque de Holanda, S. Op. cit. São Paulo, Ed. Brasiliense,1991, p. 22.

INTERTEXTUALIDADE: 79

cl s historiadores positivistas, redunda geralmentnuma pesquisa de fontes estéril e inconseqüente; omesmo não se dirá com relação aos tempos em que aimitação dos grandes modelos do passado se apre-1\ ntava como virtude e quase como dever. Nesseaso - é o caso, em particular, de Cláudio Manuel daosta e dos nossos árcades -, a presença de tais mo-

lelos pode fornecer-nos, ao contrário, pontos de re-ferência estáveis que serão singularmente úteis paraqualquer esforço de inteligência crítica e históricado mesmo autor" I I.

Além de esclarecer quando e por que as pes-quisas de fontes se justificam, Sergio Buarque deHolanda se preocupa em comentar as repercussõesdesse tipo de estudo de forma ampla e diz: "Não sãoas 'influências' recebidas,_ através desua e~õluçã~.'por um eterminado escritor, o que importa verifi-car num esforço essa natureza, nem saber as razõespartICulares que o teriam levado a escolher este oü-aque e'ãntecedente' literário - pois a ver~ade é q~tais esêõlnas se prendja2P tanto qua~ ossível, na-queres iêmpos, a convenções e - àdrões comul!lente -.aceitos e dependiam, errl muito menQr grau.9.~ uehoje, de um critério pessoal -, nem ainda chegar aum julga2E~tojneguívoco de valor. Masjust~m~pelo fato de nos apres~~a exis§I1fjã quase o n-gatória dagueles 'antecedentes' "G.rna_escala de refe-rências m:-aisou menos fixa, temos maiores probabi-

11 Buarque de Holanda, S. Op. cit., p. 268/269.

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lidades de, partindo dela, ganhar acesso ao queconstitui mais propriamente a parte do autor em suaobra e ao que haja, nesta, de verdadeiramente orgâ-nico e intrínseco". A seguir, ilustra suas afirmações,completando: "Para Cláudio Manuel da Costa,aquele encontro do Metastasio fornece-lhe, numaprimeira e inevitável etapa, o modelo ideal que oajudará a livrar-se, na medida de suas possibilida-des, das cadeias que ainda o prendem a uma estéticatransacta: a do Seiscentismo. A seguir, porém, omestre antes absorvente irá transformar-se em efi-caz estímulo. A esse estímulo deveu o brasileiro a ini-ciação e o vinco arcádicos que irão marcar toda a suaobra ulterior e sua ação no ambiente natal"!".

A transcrição dessa passagem do ensaio deBuarque de Holanda evidencia como e em ue me-dida a apropriação de determinados modelos é ne-cessária à constituição de uma certa obra e, por meiodela, alimenta a literatura a que pertence. Eviden-cia, também, como ojogo intertextuãI que se estabe-lece se faz por força de convenções cuja migraçãonoS1extos Tespon e pela continuidade literária. E-mais, como o ponto de vista comparativo pode escla-r r o intercâmbio literário e suas repercussões naconfiguração definitiva de cada literatura.

Aliás, foi esse processo de relações interliterá-rias, olj to central da literatura comparada desde

12 Buarqu . de I lolanda, S. Op. cit., p. 269.

INTERTEXTUALI DADE:

sua concepção, que René Wellek procurou reorien-lar em seu conhecido ensaio sobre a "Crise da litera-tura comparada". Já ali dizia: "A literatura compara-Ia tem o imenso mérito de combater o falso isola-mento das histórias literárias nacionais: está obvia-mente certa (e tem apresentado um acúmulo de pro-vas para apoiar isso) na sua concepção de uma tradiçãoocidental coerente de literatura entretecida numa rede de'inúmeras inter-relações" 13 (grifo meu).

Nesta passagem, Wellek pretendia desfazer adicotomia entre literatura geral e literatura compa-rada, estabelecida por Van Tieghem,julgando a dis-tinção desnecessária, pois, como disse: "Literaturaomparada tornou-se l)rp._!~rmo estabelecidô paia

qua quer estude;- de literatura que transcenda às li-mites-deurií"aliteratüra nacional". Contudo, erapreciso ressaltar que e;;e estudo não poderia de-l r-se no simples mapeamento de relações entre as

iversas literaturas, mas necessitava, sobretudo, ex-plicitar o que essas relaçõe~eviam indicar.

I Deve-se reconhece;:, em René Wellek, uma vi-são sistêmica da literatura e, nessa perspectiva, a"rede de inúmeras inter-relações" de que fala deve-ria abarcar as relações intertextuais, cuja análise nosajuda a perceber o andamento dos elementos literá-rios que configuram a tradição, mas também as rela-.ões entre as literaturas em sentido amplo, cuja or-

13 Wellek, R. artigo cit. in Conceitos de Crítica. São Paulo, Cultrix,s/d, p. 244.

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H2 o PRÓPRIO E O ALHEIO

ganização em conjuntos supranacionais prefigura oqu se poderia entender hoje como literatura mun-dial.

III

o alerta de René Wellek, como se sabe, foiprodutivo e pode ser lido, hoje, como um impulso àsorientações comparativistas que se ocupam com osmodos de apropriação literária e permitem enten-der melhor a constituição e o funcionamento das li-teraturas bem como suas inter-relações.

Para os estudos dos processos dessas in-ter-relações têm sido relevantes alguns princípiosteóricos estabelecidos e divulgados pelos formalistasrussos, particularmente R.Jakobson e Tynianov, pe-los estudiosos da escola de Praga, como J. Muka-rovsky e F. Vodicka, e por alguns semioticistas rus-sos, como J. Lotman e M. Bakhtine. São básicos osestudos sobre evolução literária e as noções de siste-ma e de dinamismo funcional. É o que se depreendedos trabalhos de Itamar Even Zohar, da Universida-d de Tel Aviv, que, detendo-se especialmente emstudos sobre a literatura hebraica e sobre as rel a-

çõ s desta com outras literaturas, desenvolveu a no-ção d polissistema, isto é.rla literatura como um sis-u-rna h terogêneo, um "sistema de sistemas"; ele ex-plora uma série de hipóteses interdependentes so-

INTERTEXTUALIDADE:

bre o literário e o comportamento de seus elernen-I s, definindo fenômenos de contato e de interfe-rências entre literaturas.

As investigações de Zohar facilitam o conheci-mento do funcionamento interno dos sistemas lite-rários bem como comprovam que esse funciona-mento depende de sua articulação com os demais. Aaplicação desse tipo de análise se tem revelado ren-Iável sobretudo no esclarecimento de relações quese constituem em fator de evolução literária. Querdizer, facilitam o entendimento de como e em deter-minadas situações e em distintos momentos as rela-.- es estabelecidas orientam o rumo de uma literatu-ra. É o caso das traduções, pois a atuação da "litera-Iuraemtradução" no contexto literário que a acolhepode determinar sua direção. A noção de polissiste-ma permite o estudo das relações literárias em di-v rsas dimensões, entre sistema canônico e nâo-ca-nônico, entre literatura tout court e literatura infantil, outras formas ditas populares, evidenciando "ten-

sões" no interior de uma dada literatura, capazes deoxplicar casos que, por vezes, permanecem enigmá-Ii os. Zohar ilustra-o com uma questão específica daliteratura hebraica, que sempre manteve estreitasI' lações com a literatura russa. São estas relaçõesque explicam por que, em 1880, no chamado revivalj)(wiod, não se encontra na literatura hebraica ne-nhum sistema não-canônico, pois os elementos não-ranônicos passavam através da literatura russa.

A ampliação e mesmo complementação daspr postas de Even Zohar, contidas em Papers for His-

83

84 o PRÓPRIO E O ALHEIO

torical Poetics (l 978/1 981), que reúne estudos dosanos 1?70, pode ser dada p~los estudiosos de Bratis-lava, liderados por Dionyz Durisin, que desenvolve-ram a noção de "comunidades interliterárias" vi-sando ao estabelecimento de um sistema teórico e~eto~ológico coerente para as relações literárias. AslI~vestIgações de Durisin e de seus colaboradoresnao que~em apenas identificar os conjuntos históri-cos das lIteraturas e das unidades literárias históri-cas : an~lógica~ do passado, como co~unt~s supra-nacionais, m~s .I?tentam definir conceitos e catego-nas que possibilitem interpretar melhor as relaçõesque ~ss~guram sua conformação e continuidade. AconstItUIção dessas comunidades interliterárias é denatureza múltipla, condicionada por fatores varia-dos, que podem ser geográficos, políticos, lingüísti-cos, de. proximidade, de parentesco ou mesmo de~nalogIa ~e proc:dim~ntos artísticos. Além disso,as comumdades mterhterárias não existem nem se

desenvolvem isoladamente, mas através de uma in-teração variável com seu contexto'v-. Por isso dr ,ca aIteratura .nacional pode tornar-se, ao longo de seu

~esenvolvlI~ento histórico, um componente de vá-na comumdades interliterárias, não se constituin-do sas em sistemas fechados ou invariáveis. Essaprop sta teórica nos permite reavaliar noções como

IIJ v1>1,"i in, ?'. In: Les Communautés Interlittéraires Spécifiques. Acadé-Illl(' d 'SS I nces Slovaque, Bratislava, 1991.

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a da literatura nacional, examinando-a em suas arti-culações com outras literaturas."

Os estudos mais recentes sobre comunidadesinterliterárias fogem ao esquematismo e ao determi-nismo mecânico que ainda pareciam persistir nosprimeiros textos. Isto se percebe, por exemplo, noestudo sobre "Retardement, déplacement de phase,développement accéléré", de István Fried, de Buda-peste, no qual há a preocupação em ultrapassar osconceitos fixados de "diferença cronológica" ou de"atraso", dizendo não ser possível reduzir o proces-so literário ao fator cronológico, pois ele tem cadên-cias próprias. Segundo ele, é preciso aceitar que emalgumas literaturas os estilos marcados pela épocaapareçam incompletos, fragmentários, enquantoem outras se aclimatam e fixam-se correntes dife-rentes. São vários os fatores que colaboram no pro-cesso, sendo impossível condensá-Ios em constru-ções simplificadas ou esquemáticas e menos aindaapriorísticas. Como dirá: "Nosso trabalho será maisrentável e nós compreenderemos mais exatamenteas transformações da literatura no espaço do tempo,se ao longo de nossas reconstruções nós não nos li-

15 Analisei essa questão em dois artigos: "Diálogo Intercultural naAmérica Latina: Machado de Assis e J. L. Borges". In: DialogoIntercultural: Migración de Discursos [Org. Narzena Adanczyk),Varsóvia, CESLA, Universidade de Varsóvia, 1993, p. 359-368,e "Comunidades interliterárias e relações entre literaturas defronteira". ln: Identidade e representação [Org. Raúl Antelo), Flo-rianópolis, UFSC, 1994, p. 93-102.

H(j o PRÓPRIO E O ALHEIO

mirarmos a observar et traiter processos reduzidos aum só pólo e esquematizados" 16.

Além de possibilitarem a revisão de conceitos,de objetos e de métodos da literatura comparadatradicional, as reflexões sobre comunidades interli-terárias permitem que se recupere a perspectiva daliteratura mundial sob um novo ângulo. E os estudosde literatura comparada encontram nas questões deintertextualidade e de comunidades interliterárias- ---......-um campo próprio de investigação no qual se conso-lida sua articulação com a teoria literária, que lhefornece o instrumental para fundamentar seus pro-cedimentos, enquanto dá a essa os elementos neces-sários para que formule conceitos específicos e pecu-li.ares aos problemas literários de que o compara ti-vismo se ocupa.

É nesse sentido que a comparação ou con-frontação textual, característica da literatura com-

.l parada e prática antes ocasional da crítica literária,)por meio da noção de intertextualidade, passou aocupar uma posição central nos estudos literáriosem geral, não apenas comparativistas.

Diante disso, o comparatista se depara com anecessidade de redefinir seus campos de atuação ede acentuar, em sua prática, a compreensão da lite-ratura como um todo. Com o embasamento teórico

I(j R firo-me, em particular, ao estudo de D. Durisin, intitulado"Sobre Ias regularidades dei proceso interliterario", publicadona Revista Casa de Ias Americas, n.160, 1987.

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'1111 I t .cb por sua aproximação à teoria literári~, a111"1 .uura comparada tende a acentuar a generahza-, lI) e-m detrimento da simples comparação entre, I, 111 'nl s e a ampliar os seus domínios numa pers-111'( Iiva interdiscursiva e interdisciplinar. Investe,1" 1'1anto, no amplo relacionamento dos t~xtos nai ultura. "A possibilidade de comparar a hteratura«1I1l1 qualquer coisa", como sugere Jo~athan Cullerf'llI "Comparative Literature and ~Iterary. T~e?-I "17 onde refere a comparação do discurso hterano, .10111 outros tipos de discursos, desde o maI~ corr~n:e,'sludo da presença na literatura e nos escntos histó-I ico de esquemas narrativos similares e mo~elos ,der ompreensão, passando pelos .textos, ~utoblOgrafi-(os até os textos filosóficos e psicanalíticos.

Se a noção de intertextualidade trouxe para alit fatura comparada uma revitalização, tambémIhe provocou um grande desafio: a sua permanenteI' definição como prática de leitura que remete(' nstantemente a outros textos, anteriores ou simul-t âneos, que estão presentes naquele que temos sobos nossos olhos.

17 Culler, J. ln: Michigan Germaruc Studies, 5,2 1979.