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• HUMANIDADES URBANISMO Uma cidade para todos Projeto cria kit para ajudar a população a entender e manejar a legislação urbanística C abe à população cuidar da cidade, ajudar a pla- nejá-Ia, escolher para onde ela deve caminhar. Mas fica difícil tomar qualquer tipo de inicia- tiva num emaranhado de termos, como "opera- ção urbana consorciada': "direito de preempção" "outorga onerosa do direito de construir" ou "edificação compulsória" Até o conceito de Plano Diretor, tão comen- tado hoje em dia, é incompreensível para a maioria das pes- soas. Para ajudar a democratizar a linguagem urbanística, complicada até para quem tem contato com ela, e torná-Ia acessível à comunidade, a Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCamp), em parceria com o Instituto PÓ- lis (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais), criou o Kit das Cidades. Nele há até um jogo de RPG (role playing game, na sigla em inglês) que simula conflitos de interesses em cidades. Financiado no âmbito do Programa de Políticas Públicas da FAPESP, o projeto nasceu de uma pesquisa do Pólis, uma organização não-governamental (ONG), e da PUCCamp, que buscava elaborar um programa de capacitação para pessoas que lidassem com legislação urbanística. "O público-alvo do projeto abrange técnicos de prefeituras, membros de mo- vimentos de moradia, associações de moradores de bairro, mercado imobiliário, operadores de direito, urbanistas e universitários, entre outros", conta Paula Santoro, arquite- ta e urbanista do Pólis, Em 2001, o Estatuto da Cidade foi aprovado pelo Congres- so Nacional e a regulamentação urbanística entrou na ordem do dia. "Os municípios sempre tiveram a necessidade de co- nhecer as leis e entender para que elas servem, mas com a aprovação do estatuto, o projeto assumiu nova direção e ganhou novos apoios e parcerias, como do Lincoln Institu- te of Land Policye da Caixa Econômica Federal, que ajuda- ram a tornar viável a produção do kit com vários produtos que não estavam inicialmente previstos': conta a professora Raquel Rolnik, coordenadora do projeto. Com a lei federal, a participação do público é obrigatória em vários processos de elaboração, implementação e revisão de leis urbanísticas 84 • DEZEMBRO DE 2002 PESQUISA FAPESP 82

HUMANIDADES URBANISMO Uma cidade para todos · tiva num emaranhado de termos, como "opera-ção urbana consorciada': "direito de preempção" "outorga onerosa do direito de construir"

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Page 1: HUMANIDADES URBANISMO Uma cidade para todos · tiva num emaranhado de termos, como "opera-ção urbana consorciada': "direito de preempção" "outorga onerosa do direito de construir"

• HUMANIDADES

URBANISMO

Uma cidadepara todosProjeto cria kit para ajudara população a entendere manejar a legislação urbanística

Cabe à população cuidar da cidade, ajudar a pla-nejá-Ia, escolher para onde ela deve caminhar.Mas fica difícil tomar qualquer tipo de inicia-tiva num emaranhado de termos, como "opera-ção urbana consorciada': "direito de preempção"

"outorga onerosa do direito de construir" ou "edificaçãocompulsória" Até o conceito de Plano Diretor, tão comen-tado hoje em dia, é incompreensível para a maioria das pes-soas. Para ajudar a democratizar a linguagem urbanística,complicada até para quem tem contato com ela, e torná-Iaacessível à comunidade, a Pontifícia Universidade Católicade Campinas (PUCCamp), em parceria com o Instituto PÓ-lis (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em PolíticasSociais), criou o Kit das Cidades. Nele há até um jogo de RPG(role playing game, na sigla em inglês) que simula conflitosde interesses em cidades.

Financiado no âmbito do Programa de Políticas Públicasda FAPESP, o projeto nasceu de uma pesquisa do Pólis, umaorganização não-governamental (ONG), e da PUCCamp, quebuscava elaborar um programa de capacitação para pessoasque lidassem com legislação urbanística. "O público-alvo doprojeto abrange técnicos de prefeituras, membros de mo-vimentos de moradia, associações de moradores de bairro,mercado imobiliário, operadores de direito, urbanistas euniversitários, entre outros", conta Paula Santoro, arquite-ta e urbanista do Pólis,

Em 2001, o Estatuto da Cidade foi aprovado pelo Congres-so Nacional e a regulamentação urbanística entrou na ordemdo dia. "Os municípios sempre tiveram a necessidade de co-nhecer as leis e entender para que elas servem, mas com aaprovação do estatuto, o projeto assumiu nova direção eganhou novos apoios e parcerias, como do Lincoln Institu-te of Land Policye da Caixa Econômica Federal, que ajuda-ram a tornar viável a produção do kit com vários produtosque não estavam inicialmente previstos': conta a professoraRaquel Rolnik, coordenadora do projeto. Com a lei federal,a participação do público é obrigatória em vários processosde elaboração, implementação e revisão de leis urbanísticas

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e, com o estatuto em vigor, mais doque um programa de capacitação, oprojeto do Pólis e da PUCCamp vi-rou um instrumento de divulgação.O Estatuto da Cidade dá as diretrizesda política urbana do país, nos níveis fe-deral, estadual e municipal, e cria umanova concepção de planejamento do ter-ritório. Nele estão presentes uma sériede princípios sobre conceitosde cidadeegestãourbana e outro número de instru-mentos para se alcançar essesprincípios.

Ainovações da lei estão emdiversos campos, conta a ar-quiteta Paula Santoro. Elapossui instrumentos quepodem induzir as formas

de uso e de ocupação do solo; ao invésde simplesmente normatizar, delega pa-ra os municípios a definição do que sig-nifica cumprir a função social da cidadee da propriedade, estabelece uma novaestratégia de gestão que incorpora aidéia de participação direta do cidadãoem processos decisórios sobre o destinoda cidade e de parcerias para o desen-volvimento urbano. É mais fácil conhe-cer todas essas novidades por meio daelaboração de um Plano Diretor, quedeverá convocar a população para pen-

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Ilustrações de cidades-imaginárias:o Jogo da Cidade, nos moldes do RPG,serve para os coordenadoresavaliarem se o estatuto foi absorvido

sar uma cidade melhor para todos. "Aidéia é chegarmos a uma cidade em quetodos caibam", explica Raquel R~lnik.

Plano Diretor, ensinam os urbanistasdo Pólis, é a lei que define "a cidade quequeremos': Para chegar lá, é necessáriaa definição de três pontos: a destinaçãodos investimentos; a regulação, ou seja,todas as leis e normas, que determinamo zoneamento e o parcelamento, entreoutros; e a gestão, que significa como acomunidade vai se organizar. Pelas re-gras do estatuto, toda cidade com maisde 20 mil habitantes, ou que faz partede regiões metropolitanas, turísticas,ou ainda as que têm grandes obras quesão capazes de colocar em risco o meioambiente ou mudar demais a região,terá obrigatoriamente de elaborar seuPlano Diretor, num prazo máximo decinco anos.A maioria das cidades de SãoPaulo já tem o seu. Em 1997, esse mes-mo grupo de arquitetos fez uma pes-quisa sobre o impacto da aplicação denovos instrumentos urbanísticos em ci-dades do Estado de São Paulo. Ou seja,

eles queriam saber quem tinha equem não tinha Plano Diretor. Des-cobriram que 80% das cidades ti-nham alguma espécie de regulação,como Lei de Parcelamento e Código

de Obras. E 65% delas tinham PlanoDiretor. "O problema não é a falta deplano, mas que plano", diz Raquel.

Numa primeira fase do projeto decapa citação de agentes, foram feitasparcerias com três cidades do Estado -Limeira, Guarulhos e Caraguatatuba -para a elaboração e o desenvolvimen-to dos instrumentos de comunicação.A escolha dos municípios foi feita porproximidade com as instituições envol-vidas e por serem representativas de di-ferentes situações urbanas presentes noEstado de São Paulo.

Cidades escolhidas, o grupo partiupara identificar as pessoas que estavamenvolvidas com legislação nesses mu-nicípios. Assessores de comunicação,produtores de vídeo, publicitários e atéuma criadora de jogos, entre outros, fo-ram consultados para discutir qual pro-duto de comunicação deveria ser de-senvolvido, para qual público e em quemomento. As consultarias modifica-ram os instrumentos de comunicaçãoe todo o projeto anterior foi mudado.

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com base no estatuto, eles se familiar i-zam com a lei federal. Os pesquisado-res já apresentaram o RPG em diversasocasiões e para públicos diferentes. Osresultados têm sido ótimos, relatam.Os jogadores incorporam os persona-gens, falam com sotaque. "Já vi até re-presentantes de movimentos de mora-dia sofrerem para representar o papelde um empresário, por exemplo", afir-ma Paula Santoro.

O Jogo da Cidade deve ser o últi-mo instrumento do Kit da Cidade a

o PROJETO

Programa de Capacitaçãode Agentes Públicos e Sociaispara a Formulação de PolíticasLocais de Regulação Urbanística

MODALIDADEPrograma de Políticas Públicas

INSTITUIÇÃO PARCEIRAInstituto Pól is

COORDENADORARAQUEL ROLNII( - PUCCamp

INVESTIMENTOR$ 146.444,78

Esses profissionais, em conjunto comos autores do projeto, ajudaram a ela-borar um guia do Estatuto da Cidade,um vídeo, um curso a distância emCD-ROM, um jogo, um Banco de Ex-periências e vinhetas de rádio. "Enten-demos que nenhum meio de comu-nicação funciona sozinho", analisa ourbanista Renato Cymbalista, tambémdo Instituto Pólis.

Simulação de negociação - O Jogo do·Estatuto da Cidade, nos moldes do RPG,é uma simulação de uma mesa de ne-gociação envolvendo diversos persona-gens de uma determinada localidade.Há três cidades "quase-imaginárias': ba-seadas em histórias verídicas, mas cominformações e personagens fictícios.Para atuar nessas cidades, cada partici-pante assume um papel. Os jogadoresdevem usar os instrumentos urbanís-ticos previstos no Estatuto das Cidadespara negociar e resolver as questões.

Um dos objetivos do jogo é o exer-cício de alteridade. Diferentes agentesda comunidade trocam de papel, en-tendem melhor como e por que o outropensa de determinada forma e apren-dem a negociar. O outro ponto impor-tante é que discutindo os conflitos

ser utilizado. Serve também como ava-liador, para os orientadores observa-rem se o estatuto foi absorvido. O pri-meiro instrumento de comunicaçãodo kit a ser usado deve ser o vídeo, quetem um impacto emocional, sem pre-tensões didáticas, e é usado para atrairo interesse do público. O CD com vi-nhetas de rádio é um apoio à implan-tação do Plano Diretor, mas trata dequestões genéricas. A cartilha usa umalinguagem popular, tratando o estatu-to a partir dos problemas da cidade.Há também o Banco de Experiências,com iniciativas de política urbana quejá estão sendo utilizadas por algunsmunicípios.

O kit é gratuito e está sendo requi-sitado por cidades de todo o país. Elesó é fornecido a pessoas jurídicas (uni-versidades, ONGs, prefeituras, escolas,associações de moradores, movimen-tos populares). Atualmente, o grupode urbanistas está concentrado na di-vulgação do material e na realizaçãode oficinas para multiplicadores desseconteúdo em todo o Brasil. Tambémcriaram um site (www.estatutodacidade.org.br, em construção) que conterá to-do o material e será um local de encon-tro para troca de experiências. •

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