In Illo Tempore

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Trindade Coelho In Illo Tempore

NDICE A Festa das Latas Resurrexit non est hic! O Saraiva das Foras Lopes ou Bettencourt? Poetas balneares O Orfeo Acadmico Baltasar, o letrgico! D. Felicidade A Niveleida O Lusitano e o Anda Roda A campanha do Z Pereira A sebenta Na aula do Chaves O Velho! As fogueiras do S. Joo A Casaqueida Um homem no de pau! A rcita dos quintanistas Alho, alho, alho! A Cabra! O Bolson das contas lisas tabua! Viu bem? Os voluntrios... da Economia! O grande Damsio Miserere nobis! Leo Rei dos Animais Sanches, o Comilo

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A FESTA DAS LATAS No tempo em que eu andava em Coimbra, andava l tambm a estudar Direito um rapaz chamado Pssaro. Ele no se chamava Pssaro. Pssaro pusemos-lhe ns, porque, alm de ser alegre como um pintassilgo e vivo como um pardal, usava o cabelo no sei de que modo, que parecia que lhe punha duas asas atrs das orelhas, e que a cabea lhe ia a voar! Ele no se zangava que lhe chamassem Pssaro e at gostava: e como alcunha que se ponha em Coimbra pega como se fosse visgo desde o Games, que era l em Coimbra o Trinca-Fortes, at ao falecido Alves da Fonseca, chamado o Chato Jos do Co por andar sempre com um co atrs dele e ter um nariz muito chato, ou ao outro a quem, por ter s metade do bigode, pegaram a chamar Gode, e ainda outro o Sete Falinhas, por se desfazer em ffias quando falava ningum lhe chamava de outra maneira: Pssaro, isto!, Pssaro, aquilo! A pontos que o rapaz adicionou a alcunha ao apelido, como fizeram outros (o Pirr, por exemplo, a quem chamavam assim por ser pequenino e que passou depois a assinar-se Pirrait); e, no contente em adicionar a alcunha ao apelido, arranjou no sei que firma ao lado do nome, que era um pssaro de asas abertas a levantar voo! Para a troa, era o que se chamava um vivo demnio! Piada que ele atirasse a um pobre caloiro, fazia o efeito de uma ventosa: repuxava logo cara do triste quanto sangue tinha no corpo! E como lhe no falhava nunca a inspirao, e tinha olho para adivinhar um peludo, era o terror dos novatos e dos caloiros, e no havia ningum que se batesse com ele Porta Frrea, nos Gerais, na rua ou em qualquer caf! Onde chegasse o Pssaro era pois risota pegada; e como

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a graa dele era comunicativa e ateava roda as gargalhadas de todos, novato que lhe casse diante ficava-lhe nas mos em carne viva! Mas como era um artista na chalaa e muito bom rapaz, a chalaa nunca lhe saa pesada, ao contrrio do que se dava com outros e por isso todos lhe queriam bem, incluindo at as prprias vtimas! Depois, era uma graa natural, essa graa do Pssaro, e parece que lhe espirrava dos olhos, dos gestos, das feies e tinha uma voz que era um regalo ouvila! S encavacou uma vez em toda a sua vida! Foi quando um novato que ele troava, no meio de uma roda que lhe fazia coro, lhe disse assim com a voz a tremer: Ora ainda bem! Ao menos o senhor sempre tem graa! Entupiu e foi-se embora! Nunca lhe passara pela cabea que tinha graa! Nas assembleias gerais, ento, fazia as delcias da Academia! Em vendo acalorada a discusso, daquelas discusses que se armavam no Teatro Acadmico, cheias de vento e de fogo de palha, ou metia um aparte que fazia rir todo o mundo e entupia s vezes o orador, ou pedia a palavra para um requerimento. E mesmo que no fosse para um requerimento, a ordem da inscrio alterava-se logo para ele ter a palavra porque a Academia, em peso, erguia-se nos bicos dos ps: Fale o Pssaro! Tem a palavra o Pssaro! Caluda, que vai falar o Pssaro! Na assembleia geral para se tratar do centenrio de Pombal, lembro-me que pediu a palavra quando os estudantes de Teologia, acaudilhados pelo Silvano da Ordem, e de rixa velha, faziam m cara obstrucionismo, para impedir a ideia de ir avante. Tem a palavra o Sr. Pinto Pssaro! diz do palco o presidente.

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Discurso do Pssaro: Eu s para isto, Sr. Presidente: para propor um padrenosso com uma ave-maria... por alma do Sr. Marqus de Pombal! Nas aulas era o demnio com ele! Bilhete que escrevesse, em prosa ou em verso, levando em cima o Passe do estilo, ou Leia e passe, era uma ccega pelas bancadas e tona das cabeas baixas dos rapazes que se perdiam de riso, s aflorava ento a cabea do Pssaro, muito srio, fitando o lente, que preleccionava... ...Ora foi na aula do Chaves, nem mais nem menos, que o Pssaro, rasgando uma folha em branco da Novssima Reforma Judiciria, fez no 4. ano o programa das latas, o clebre programa das latas, que hoje rarssimo, e uma das peas clssicas da bomia de Coimbra to afamado como o Palito Mtrico! Apanhado, o programa foi impresso; e impresso, no houve ningum que o no comprasse no dia seguinte, Porta Frrea, por um vintm pois que de mais a mais tinha oportunidade: as aulas de Direito fechavam-se nesse dia, e noite, como era da tradio, a rapaziada tinha de sair pelas ruas de Coimbra naquela extraordinria inferneira chamada a Festa das Latas, em que cada um, incluindo os novatos, que nesse dia ficam emancipados e j podem sair de noite sem proteco, arrasta atrs de si as latas que pde ir juntando durante o ano, ou as que comprou na feira das latas aos garotos, que vendem uma banheira velha por um pataco e trs cntaros de folha por um vintm! Essa a tremenda noite de Coimbra, em que ningum prega olho troa aos estudantes das outras Faculdades, que ainda tm aulas no dia seguinte , e que uma vez obrigou a fugir no sei que ingls touriste, que berrava, de mala na mo, a correr para o caminho-de-ferro: Doidos! Doidos! Doidos varridos!

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Mas eis aqui o tal programa das latas, copiado do exemplar pudo que ainda conservo, e que no daria por dinheiro nenhum:AUX LATES, CITOYENS! (EPISTOLA AD JURISTAS) EU, D. CHINFRIM-BANZ, por graa da rapaziada amiga e de Sua Majestade Imperial a Arruaa, inspector da Troa, chanceler-mor do Pagode, cavaleiro professo da nobilssima Ordem da Bolsa Vazia, Gr-Cruz da Piada Fina e do vinho do Pancada, scio de mrito e efectivo de vrias associaes de Prego e Dependura, tanto nacionais como estrangeiras, condecorado com medalha de ouro das campanhas do Canelo e Corte de Cabelo, admirador lamecha encartado do sopeirame da Alta e director sndico-emchefe da pantagrulica festividade das Latas, etc., etc., etc. Considerando que deve ser para ns de supremo, supino e desenfreado jbilo o glorioso dia de 20 de Maio, consagrado a ser o fecho, o ponto final, da nossa rdua peregrinao atravs dos livros e dos Gerais, podendo alfim descansar no osis suavssimo das frias; Considerando que para ns emudeceram os sons horrssono-agudos da Cabra, essa fria metlica que a mo grifenha do Demnio arrancou do mais profundo das profundas do Inferno para nossa constante tortura; Considerando que foi subjugada... por este ano, essa hidra de cem cabeas e quinze pginas, dolo querido do Pacheco1, espectro implacvel que nos persegue, filoxera que nos suga a sade e a bolsa comO Pacheco era um cego muito gordo, dono duma litografia da Rua das cozinhas, onde se imprimiam as sebentas.1

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sangrias de sete tostes mensais e que estamos emancipados da tutela dos maudos alfarrbios dos praxistas; Considerando que, na gnese funicular-proprica da humanidade e na evoluo histrico-calaica dos tempos, esta festividade teve sempre da parte dos nossos antepassados o preito respeitoso do barulho, entusiasmo e camoecas soberba trilogia que sintetiza todo o viver acadmico; Considerando que o mirfico instrumento estrdulo, o latofone, o ttulo irrefragvel do direito de precedncia de troa, que, segundo a mais apurada orientao moderna positiva, pertence unicamente aos juristas, que so, sem ofensa, a flor, a nata e o creme da juventude que suspira pelos louros viridentes de Minerva; Considerando que deve ser elevado dupla categoria de instituio social e de instrumento de suplcio o citado invento, por ser o mais adequado meio de transmisso do gudio jurdico-juvenil ao tmpano apoplctico-febril dos que labutam eternamente agrilhoados ao X e ao polinmio, e dos que estudam as qualidades soporferas, destilantes e custicas do ch de tlia e do sinapismo Rigollot; Atendendo ao que me foi representado, e ouvido o Conselho Supremo, hei por bem determinar o seguinte: Que no domingo 21, noite, se renam no Largo da Feira todas as corporaes, altos dignitrios, o povo da Academia, admitido solenidade, ornados das respectivas insgnias e vestidos a capricho pela tesoura mgico-diamantina do Paixo2 para formar o prstito latofnico, que percorrer as ruas do estilo e que serO Paixo era um alfaiate de bigode e pra, muito regenerador, que havia na Rua Larga, perto da Universidade, e que embirrava de morte que lhe pedissem o diamante: Paixo, d c o diamante! Quando ouvia isto, perdia a cabea!2

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organizado do seguinte teor, feitio, forma e jeito: Abriro a marcha quatro batedores, montados em jumentos ajaezados com luxo na forma prescrita nas Ordenaes do Reino; em seguida um arauto, empunhando uma bandeira vermelha, tendo no centro uma enorme esfera branca com o dstico Ad majorem ponti gloriam. E logo a filarmnica dos charameleiros e flautistas3 da Academia, atroando os ares com a fantasia marcial estrepitosa, sobre motivos do fado corrido, do maestro Reinao. Em segundo lugar, uma bandeira negra coberta de crepes com a legenda: Ai adeus acabaram-se os dias Que ditoso vivi a teu lado... guiando o carro alegrico da Sebenta, em figura de mulher desgrenhada e suja. Um grupo orfenico entoar o responsrio: Sic transit imperium Sebentarum! Em terceiro lugar, os personagens reais da Bomia e da Pndega Pacata, cercados dum troo de briosos, dedilhando maviosas guitarras, e, em seguida, o corpo cerrado, compacto, dos alabardeiros de Sua Majestade Imperial a Arruaa, sobraando mocas e arrastando latofones monumentais, atroadores. Em quarto lugar, o carro simblico da Cbula, vestida de escarlate, fazendo figas ao Estudo e Aplicao em forma de esqueletos mirrados; no primeiro plano, direita, as figuras graves, meditativas, carrancudas, do Cdigo Civil, do Processo, daChamam-se flautistas os estudantes que no so ursos. Ursos so os classificados com distino, accessit, prmio ou partido. O flautista passa nos actos Nemine discrepant e ainda com o seu R, isto , simpliciter.3

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Novssima Reforma, algemadas e guardadas vista por um grupo de caceteiros; e no segundo plano, esquerda, chorando o seu vergonhoso ostracismo, os vultos legendrios de Correia Teles, Pegas e Lobo, empunhando poeirentos in-flios. O prstito ser esclarecido pela luz candenteresinosa dos archotes; nas arcadas atmosfricas reboaro gritos sediciosos, vermelhos: Viva o ponto! Abaixo os livros!, e na lucidez estrelada do azul cerleo-indefinido curvetearo em danas macabras, doidas, os arabescos luminosos dos foguetes (estilo fino). O prstito, depois de serpentear pelas ruas da cidade, bem como quando uma descomunal bicha solitria, reverter ao ponto de partida e dispersar ao rufar de vibrantes tambores, flautas e obos. Por essa ocasio subir s regies da Lua um balo de bojo hidrpico, tendo em caracteres grados o dstico Sic itur ad ferias! Determino, por ltimo, que seja obrigatria a carraspana e que fique revogada a legislao em contrrio. Pelo que, mando a todos os juristas que este virem que tenham entendido e queiram executar to inteiramente como nele se contm as disposies deste pseudo-humorstico programa, sob pena de serem havidos, para todos os efeitos, rus confessos de sensaboria e mau gosto. Dada no Olimpo, na vspera do glorioso dia 21 de Maio do ano 1882. Lugar do selo grande armas latoidceas. D. CHINFRIM-BANZ (com rubrica e guarda).4Inteiramente gizado nos mesmos moldes, este programa, que tambm tem graa: AOS JURISTAS IRMOS DA CONFRARIA DAS LATADAS4

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E Reitor da irmandade das Latadas: Pra maior esplendor da procisso Mando que este ano sejam observadas As regras que em seguida escritas vo: Em primeiro lugar a Academia Cear mais cedinho neste dia. De modo que na Feira s nove em ponto Tudo esteja disposto, armado e pronto. Quando houver povilu suficiente Parte o prstito logo em-continente. As ruas que percorre no trajecto Vo em prosa no fundo do prospecto. E tudo muito srio, sem desordem. H-de ento desfilar por esta ordem: Vai na frente, com certo intervalo, O grJaime5 montado num cavalo. E uma audaz guarnio pretoriana Com broquis de cortia e armas de cana. Depois alguns irmos com barretinasA respeito da procisso das Latas no dia 27 de Maio de 1887 Eu, Estrondo Algazarra Borracheira, Com grau de bacharel na Bela Orgia, Mestre da filarmnica Z-Preira, Lente efectivo de cabulogia. 5 Era o Jaime guitarrista, um de Nisa, que tocava guitarra na perfeio.

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Vo tocando canudos e buzinas. Em seguida haver, de papelo, Um standarte com certa inscrio. Dos lados marcharo os guarda-costas Com as mocas direitas e bem postas. (Se aparcer pela rua algum caloiro Cortar-lhe-o o gentil cabelo loiro.) Vai um plio depois, de lenis feito. Levado por pessoas de respeito; E debaixo um rato de mitra e beca Empunhando com jeito uma caneca. O rgio pregador do primeiro ano Vai pregando um sermo a S. Magano: Leva ao lado o Chaguitas6 ou o Fogaa7 A tocar-lhe ao ouvido uma cabaa. Vo tambm com o traje dos anjinhos Os novatos mais belos e tenrinhos. Um conduz tbua velha ao peito Como emblema das aulas de Direito. Mais atrs como smblo da sebenta Leva um outro uma chave ferrugenta.

Mrio Pinheiro Chagas, agora advogado em Lisboa. Antnio Fogaa, o poeta das Oraes do Amor, que faleceu sendo estudante.7

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Pra levar a tesoura do Paixo8 Vai um anjo maior: vai o Simo. O Pap e a Mam, muito abraados. Vo falando dos seus amores passados, Segue ento toda a msica Z-Preira Disposta tal e qual desta maneira: Um msico no centro a tocar bombo Cuma croa e um manto rgio ao lombo. Em redor mais alguns de capacetes Com tambors, cornetins e clarinetes. (Tambm neste lugar tem cabimento O chocalho ou qualquer outro instrumento.) Outros dopas ou hbitos de frades Com matracas de vrias qualidades. E da msica para complemento Vai de latas no couce um regimento. Itinerrio: Feira dos Estudantes, Rua dos Penedos, Castelo, Ruas da Trindade, S. Joo, das Covas, Correio, Portagem, Calada, Sofia, Terreiro da Erva, Ruas Direita, da Loua, dos Sapateiros, Praa velha, Arco de Almedina, Ruas das Fangas, do Correio, dos Coutinhos, da Esperana, Couraa dos Apstolos, Beco das Flores, Rua da Matemtica e Feira dos Estudantes. O Reitor Estrondo Algazarra Borracheira8

O clebre alfaiate da Rua Larga, regenerador, de bigode e pra e grande falador.

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RESURREXIT NON EST HIC! No tempo em que Joo de Deus andava em Coimbra, havia na Lusa Atenas, que terra de mulheres bonitas, duas senhoras muito formosas, que eram irms uma chamada Raquel e a outra Cndida. A Raquel, principalmente, diz que era uma divindade; e a mocidade da Academia, sobretudo os poetas, bebiam os ares por ela! No era branca nem morena; tinha uma cor de bronze, de uma suavidade encantadora, nariz grego, e ento uns olhos extraordinrios, aveludados, muito brilhantes e pestanudos, que eram a perdio da rapaziada! Os pretendentes eram assim aos cardumes... E cabea de rapaz sobre a qual esses olhos admirveis pousassem por um instante, mesmo casualmente, era cabea perdida; porque entrava logo de andar roda, como se fosse uma ventoinha, e o menos que lhe acontecia era rebentar numa catadupa de versos que nem sempre, diga-se a verdade, eram condignos da inspiradora... Ora o Joo de Deus pertencia ala dos namorados dessa divindade, se bem que nunca lhe falasse; e tanto, que a majestosa Raquel ficou sendo para ele uma espcie de Musa, como para o Cames a Catarina, para o Dante a Beatriz, a Laura para o Petrarca, para Miguel ngelo Vitria Colonna, etc., etc. Fez-lhe muitos versos, e aquela poesia A Vida, que a no h mais linda em todo o mundo; e fez-lhe depois, quando ela morreu, aquela elegia que tem o seu nome Raquel , uma das melhores coisas que o gnio humano tem produzido, e que Joo de Deus, por sinal, improvisou numa tourada, alheio, vrio, absorto, estranho ao mais formidvel chinfrim que se tem desencadeado numa praa de touros! Soubera a notcia da morte quando ia para l; chegou e amodorrou-se a um canto: e quando se deu f que a praa de touros tinha desabado, revolvida, de baixo para cima, pelo furaco da rapaziada, foi

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dar com ele o Joo Vilhena, o seu fiel Achates, no mesmo lugar onde o deixara, e que por milagre tinha escapado! Pegou-lhe por um brao e levou-o dali, como se estivesse doido ou a dormir... Anda, Joo! Vamos... No vira nada; no ouvira coisa nenhuma; desabara a praa e ele a sonhar! Mas depois, chegado a casa, ditou dum jacto a soberba elegia, que o Joo Vilhena, absorto diante de tal maravilha, escreveu sem o perturbar, com os olhos vidrados de lgrimas... Despe o luto da tua soledade E vem junto de mim, lrio esquecido Do orvalho do cu! Tens nos meus olhos pranto de piedade, E se s, mulher, irm dos que ho sofrido, Mulher, sou irmo teu ............................................................. At ao fim! Ora, mas at me parece que foi por causa dessa mulher, da sublime e divina Raquel, que Joo de Deus nunca atremou com a vida de Coimbra, levando a formar-se dez anos tantos quantos durou o cerco de Tria, como ele dizia! Segundo a melhor verso, que era ainda a dele, Joo de Deus chegou de Messines a Coimbra em Maro de 1849. No levava exame nenhum, porque s tinha aprendido latim com um padre do Algarve, e no sabia mais nada! Mas, passado um ms, ei-lo que faz no liceu de Coimbra o seu exame de instruo primria, onde lhe perguntaram o padre-nosso, e, na primeira poca de exames, no est l com meias-medidas: faz duma assentada os preparatrios todos, e em Outubro entra para a Universidade matriculado no 1. ano de Direito! No

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fim do ano lectivo, em Junho, pouco mais ou menos, de 1850, foi a acto e ficou bem, e ps-se logo a andar para frias mas sem tenes de voltar para Coimbra! Aquilo aborrecia-o, a vida de Coimbra, e no sabia para que servia aquilo livros, lies, professores, actos, banalidades! No fim das frias disse ao pai que no queria voltar para a Universidade, e portanto ficou-se em Messines, na pnria, sem pensar em coisa nenhuma! O pai dizia-lhe assim s vezes: Ora esta vida no te aborrece, Joo?! Ele encolhia os ombros. Nem lhe aborrecia, nem deixava de lhe aborrecer. No reparava nisso. Entretinha-se a tomar o sol, ficava-se s vezes a ver o mar, e parece que j fazia o seu verso de quando em quando, mas nem aparava um lpis para os escrever! Vinha-lhe o pai com a mesma cantiga, de quando em quando: O Joo, mas tu no te aborreces disto?!... No senhor! Mas uma vez reparou que era a pergunta que j lhe aborrecia e como no tinha mais que fazer, ps-se uma noite a arranjar a mala... Tu para onde vais? perguntou-lhe o pai. Para Coimbra. E voltou para Coimbra! Sem saber como nem como no, fez o 2. ano e ficou bem! Fez o 3. ano e ficou bem! Mas ao chegar ao 4 esbarrou! Sem querer, deu quarenta e trs faltas, mais trs do que as precisas para perder o ano irremediavelmente!9Na Universidade, com uma dzia de faltas no justificadas j se perde o ano; mas com quarenta justificadas no se perde. Nunca entendi isto! E se as faltas so dadas pelo lente, pode no haver aulas um ano inteiro, que o ano no se perde! E chins, mas assim! Este sistema das faltas como o das lies. Se um estudante d duas lies boas, embora no saiba nada, tem a frequncia feita e o ano9

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Andava uma vez muito cabisbaixo para os lados de Santo Antnio dos Olivais, quando deu com ele um rapaz tambm estudante, sobrinho do visconde de Lordelo, que era lente dele. Tu que andas aqui a fazer, Joo? perguntou-lhe o rapaz. Perdeste alguma coisa? Perdi o ano. Ando a ver se o encontro respondeu-lhe o Joo. O outro ofereceu-se: Homem, se tu queres, eu digo a meu tio que te abone as faltas, quando se reunir a congregao! Como queiras. O ano foi o que sabes. O Rodrigo (era o Rodrigo da Fonseca, ento ministro do Reino) at mandou dizer para a Universidade que no apertassem nos actos este ano e eu assim talvez passasse! Mas o diabo so as faltas! Deixa! Eu falo a meu tio. Mas as coisas complicaram-se! Aquele visconde, que regia Direito Comercial, no exigia dos rapazes grande aplicao, mas queria-os muito srios dentro da aula, ou ao menos que fingissem de srios... Por desgraa, um dos discpulos do visconde, um Folhadela do Porto, era um cbula como no havia segundo! No estudava palavra, nem estava com cerimnias: entrava com o bedel quando o bedel ia marcar as faltas e saa logo atrs do bedel! Isto todos os dias, infalivelmente, sem falhar um! Oseguro: passa, porque o acto uma formalidade; mas se d uma lio m, embora saiba e tenha estudado to que depende s vezes do humor do lente e outras vezes do humor do rapaz, ou de qualquer tola banalidade!) j tem a frequncia tremida e o ano arriscado! Ora, tudo isto remediava-se bem: o lente no chamava lio, e nem se marcava faltas e, no fim do ano, quem soubesse passava e quem no soubesse ficava reprovado, e no acto que se veria isso. Mais nada, e, quando muito, durante o ano, dar-se a palavra a quem a pedisse. Acabava a tutela constante e deprimente do lente sobre o discpulo, e este havia de convencer-se de que s o estudo e o saber lhe podiam valer, e aprendia portanto a ser homem mais cedo e sem empenhos...

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visconde fazia vista grossa; mas, l por dentro, azoava com a histria, e tinha-a ferrada de no deixar ir o rapaz a acto no fim do ano! Chega-se, pois, o dia da congregao, e comea-se a discutir no douto sindrio se o Folhadela havia de ir a acto ou no havia de ir. Diz o visconde: No vai! Esse estudante no tem frequncia na minha aula! Objeco do Dr. Ruas, que protegia o rapaz: Isso, colega, no quer dizer nada! Pode o rapaz fazer bom acto! Mas o visconde, na sua: No vai! Voto contra! E votou contra e o Folhadela ficou excludo. Mas chega-se a vez do Joo de Deus Esse estudante acudiu logo o visconde tem quarenta e trs faltas, verdade, mas inteligente e h-de fazer bom acto. Voz do Ruas, que estava picado: Oponho-me! Quarenta e trs faltas: perdeu o ano! Mas... ia a insistir o visconde. No h mas nem meio mas! objectou o outro, muito casmurro. Quarenta e trs faltas: perdeu o ano! E pronto! L perdeu o ano o Joo de Deus, por causa do teimoso do Ruas!10 Mas embezerrou e no foi para Messines!10

Este Ruas o mesmo a quem o Joo Lobo de Moura fez esta No crebro de mestre Ruas Nem sombra de ideia medra: No , porm, de admirar Pois que as ruas so de pedra!

quadra:

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Embrulhado no balandrau, deixou-se ficar por Coimbra durante as frias, matroca. ...At que, no fim das frias, ei-lo outra vez na Universidade, repetindo o 4. ano, e em Junho seguinte deramlhe o grau! Quid petis? Gradum bachalauri.E o Joo de Deus, esse aludiu a ele nos seguintes versos, feitos contra um lente chamado D. Frederico, que tinha a mania de no dar feriados, ainda que lhos pedissem, para no sofrer descontos nos vencimentos (cada feriado, 16 tostes!): O nosso Ruas Inda no to roaz como parece, Porque se compadece C da rapaziada postulante; Mas o tratante Do Frederico Quer s feder de rico Juntando aos 16 tostes, aos trinta, Inda que nos engane, inda que nos minta! E a outro lente, o Nuno, que te ps a provar uma vez a existncia de Deus, tambm o Joo fez esta quadra: Ora a provar que h Deus, Nuno, isso teima! Pois h alguma ovelha no rebanho Que no saiba que s a mo supremo Criava um animal desse tamanho! Ainda a outro lente, o Dr. Hora, que ficou muito atrapalhado, ele e a sua pouca cincia, com um edital ou ordem da Reitoria, que obrigava os lentes a preleccionar uma hora, quando ele, coitado, s tinha corda para meia, e era fraco tambm do corpo; mas que meteu os ps pelas mos para explicar aos rapazes que, no obstante a ordem do reitor, continuaria a preleccionar s meia hora, e depois chamaria lio, e depois preleccionaria outra meia hora a esse fez Joo de Deus os seguintes versos, comentando a arengo ao homem:

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E l trepou o Joo de Deus ao plpito da presidncia, ajoelhou-se, ps as mos, e o doutor de capelo que era o Ruas! encaixou-lhe a borla pela cabea abaixo, dizendo-lhe como da praxe: Auctoritate qua fungor, ego confero tibi gradum bachalauri, in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. Amen. E o Joo de Deus, de cabeo de padre roda do pescoo, calo e meias pretas debaixo da capa e batina esfrangalhadas: Deinde restat mihi agere gratias per tot tantisque beneficiis erga me colactis... ou como quem diz: Muito obrigado por tantos favores! Bem! Mas estava enfim bacharel o Joo de Deus! Ora quem chegava a bacharel tambm se formava: mas este argumento, que para outro seria decisivo para o fazer andar para diante mais um ano, a ele deu-lhe para o contrrio! Agora, meu pai, que tolice voltar para Coimbra! C estou eu bacharel, e se me no formo porque no quero, e ningum dir que porque no posso! O pai ainda lhe objectou: Pois agora que , homem! Por mais um ano, no te vale a pena no ter as cartas! Ora, as cartas! Metia-lhe nojo isso das cartas! Para que diabo queria ele isso? Ora!11Diz que fraco e que s ora Como outrora, meia hora?! Homessa! Essa agora! Ele no diz que s ora Meia hora; O que ele diz que ora Como outrora, meia hora, Depois chama, depois ora Meia hora, e faz uma hora! 11 Do prprio capelo, e dos doutores de capelo, fazia ele o seu juzo:

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E sem mais qu nem pra qu, deixa-se ficar em casa... quatro anos! O pai j lhe no vinha com a cantiga: Ento, Joo, isto no te aborrece? Deixava-o! Mas uma irm que tinha e que ainda viva, essa que tais escarcus armava l em casa, que o pobre Joo, corrido, pegou em si e abalou para Coimbra! Mas para se formar?! Isso sim! Para tudo, menos para isso! E assim o disse, logo que chegou a Coimbra, ao seu ntimo Manuel Viana: Eu formar-me, Manuel? Deus me livre! Mas o Manuel Viana larga-lhe esta: Pois, amigo, se te formas, formo-me! Se te no formas, no me formo tambm! O qu?! perguntou-lhe, aterrado, o Joo de Deus. E o outro, secamente: Isto! Bem, pois ento arranja l isso! Isso era a matrcula! Matriculou-se o Manuel Viana, e matriculou-se tambm o Joo de Deus e ei-lo alfim no 5.Toca a capelo, vou v-lo E vejo de todo a cor No doutores de capelo, Mas capelos de doutor. As cores dos capelos so estas: branco, Teologia; vermelho, Direito; amarelo, Medicina; azul, Filosofia; e azul e bronco, Matemtica. Dantes ainda havia o capelo verde, que era da Faculdade de Cnones (Direito Cannico); e isto faz-me lembrar aquele livro de um classificado, sado h pouco, que tratando exclusivamente da Enfiteuse, e portanto do foro ou cnon, que prestao que o foreiro paga ao senhorio, diz assim, a p. 75, nota: Era tal a importncia do estudo do Direito Enfitutico outrora, que na nossa Universidade existiu por muito tempo a Faculdade chamada de Cnones. Parece inventado, mas o que l est!

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ano! Mas estudar que nem palavra, e os lentes bem o sabiam, porque o no chamavam! Uma vez o Barjona, que regia Direito Penal, ainda lhe disse porta da aula: O Joo, v l quando queres que te chame Deixa! Eu te direi. (Tinham sido condiscpulos.) Mas como nunca lho disse, nunca o chamou! At que, post tot tantosque labores, o Joo de Deus viuse um dia bacharel formado como eu e como toda a gente! Era no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1859! ptimo! Mas agora que vem a histria! Em certo ano, morava o Joo de Deus na Couraa dos Apstolos com o Joo Vilhena, que andava em Direito, um Correia, telogo do Alentejo, grande bebedor que j morreu, e uma criada velha e viva, a Jacinta, a quem chamavam, por ser muito viva e desembaraada, Madame Electricidade.12Desta repblica do Joo de Deus fazia tambm parte um brasileiro chamado Olinta, que era pelos modos um grande bomio, que tudo o que tinha metia-o no prego, fosse por que dinheiro fosse! Foi a este Olinta que Joo de Deus fez o seguinte soneto, que parece do Bocage! Baldo ao naipe o novato Lcio Olinta Bem quer matricular-se, mas que monta? Se aquela bola de cabea tonta Em estando ao jogo est na sua quinta! Raspe-me essas patetas, v, Jacinta, (Diz ele moa). Veja se se apronta, E empenhe o que a h. Lance-lhe a conta: Metade do valor, e o juro a trinta. Jacinta leva a trouxa a uma alma santa.,. Expe-lhe o caso... E como quem se esquenta Responde-lhe o agiota: Enrole o manta,12

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Ora defronte do Joo de Deus, entrada do Beco das Flores13, onde todas as manhs apareciam no cho boninas novas, como chamava o Camilo a certas indecncias que por ali se faziam, morava ento o Sanches da Gama, que era ainda estudante. Era j o bon vivant que sempre foi: beio sensual, ventre que tinha suas parecenas com o de Falstaff, um namorador de primeira ordem e um comedor ento de primeirssima! Poetava. Foi ele que fez a letra para o Hino Acadmico, em competncia briosa com outro estudante, um Zusarte, cuja letra foi rejeitada pelo autor da Msica, o clebre Medeiros, que toda a vida se matriculou no 2. ano por gostar muito da capa e batina e no se dar mal com a Qumica, tendoNo me convm a menos de sessenta. E isto que lhe digo, e se se espanta Faa-lhe a conta bem: perco quarenta. 13 Este Beco das Flores faz-me lembrar agora uma alcunha que o Jos Maria Rodrigues, hoje lente de Teologia e reitor do liceu de Lisboa, ps a um rapaz do Minho chamado Sousa, muito cascudo, que tem agora aougue nos Arcos, porque os dos Arcos chamam aougue ao escritrio dos advogados, e o Sousa formou-se em Direito, e agora advogado nos Arcos. Morava o minhoto no Beco das Flores, ainda era caloiro; e depois de jantar, todas as tardes, costumava aparecer pela repblica do Jos Maria Rodrigues, que era ento na Rua da Matemtica; e o Jos Maria, que por dizer alguma coisa lhe perguntava sempre: Ento? Que h de novo l pelo Beco?, entrou a notar que a pergunta afinava o caloiro, porque o caloiro envergonhava-se de morar num beco, e queria por fora que dissessem Rua! No foi preciso mais nada; o Jos Maria nunca mais lhe tornou a chamar seno Z do Beco, e atrs dele os outros todos e a alcunha pegou! Ainda me lembro que, uma vez, foi repblica do Jos Maria, por engano, um queijo muito bom que era para o Dr. Eduardo Nunes, ao tempo lente de Teologia e agora arcebispo de vora; e que o queijo, condenado a ser comido por se ter ido meter numa casa alheia, foi saboreado tambm pelo Z do Beco mas este debaixo de um chapu-de-chuva! O Jos Maria tivera artes de convencer o caloiro de que o queijo, paro saber bem (principalmente um queijo daqueles!), era assim que se devia comer como se fosse na rua e chovesse a potes!

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inventado tambm, nas Matemticas, uma trisseco do ngulo muito patusca! O Medeiros, que tocava rabeca na perfeio, preferiu a letra do Sanches da Gama, por parte de cunhados que j ento eram mas depois, era de ouvir o Zusarte, muito custico, dizer a todos que no entendia aquilo: Vejam vocs: Do trabalho sedento na lide Doce esprana nos vem afagar. E comentava: Que diabo quer dizer sedento?! E virava a pergunta pelo forro: Sedento, que diabo quer dizer?! E embirrava tambm com o segundo verso, por o Sanches lhe ter comido um e na palavra esperana, acrescentando que lhe no comera todas as letras porque, em suma, esperanas eram esperanas, e s chourios realidades! No mais da letra desfazia tambm o Zusarte, muito picado! Poetava, pois, tambm, o Sanches da Gama; e metera-selhe na cabea, porque poetava, render pelos produtos do estro a beldade da divina Raquel! Era a inspiradora daquele Falstaff, essa mulher etrea! Das relaes da famlia, ia muito l a casa, o Sanches da Gama, principalmente s vsperas de feriado. Mas gostava, para as intermitncias, de arranjar o seu p de por l aparecer um dia por outro. Arranjou-lhe um lbum, por conseguinte; e oferecido o lbum formosa Raquel, ei-lo de porta em porta a colher da Academia letrada versos, msica, desenhos, qualquer coisa; e cada coisa que arranjava, eram duas visitas: uma quando ia levar o lbum, outra quando ia outra vez por ele para o levar a outros! Estava como queria!... At que deixou o lbum, uma vez, em casa do Joo de

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Deus, para o Joo de Deus escrever nele tambm! Mas como o Joo no era para pressas, e o Sanches queria aquele p para ir ver a Raquel, no se passava uma hora que se lhe no pusesse a gritar l da janela: Joo?! Ento esse lbum?! Deixa! dizia-lhe o Joo de Deus. Mas o outro que o no deixava e dia e noite era a mesma perlenda: Joo! Ento vem o lbum, ou no vem?! At que tanto moeu, tanto maou, que o Joo de Deus disse-lhe uma vez: Olha! Vem por ele! Foi logo, de trs escanchadas! Mas isto no est acabado! exclamou o Sanches, mirando no lbum o esboo dum Cristo. Est bonito, mas falta acab-lo! A cavalo o Cristo! calemburizou o Joo de Deus, admirado de que o outro no percebesse que era de um esboo que se tratava, e de mais nada... Leva-o, anda! Isso que a est o que ! Mas passados dias, usufrudo em trs ou quatro visitas linda Raquel o esboo do Cristo morto, eis que o Sanches da Gama volta com o lbum ao Joo de Deus e depe-lho em cima da cama: pra o acabares, Joo! Aqui te fica! Mas v l agora se ainda o demoras No! Deixa. Mas ainda o Sanches da Gama no tinha atravessado a rua, j o Joo de Deus o chamava de cima: Ouves? Podes vir, que est pronto. Pronto o qu?! O desenho. Ento que h-de ser?! Atravessa outra vez a rua o Sanches da Gama, sobe as

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escadas do Joo de Deus, e entra-lhe no quarto. Toma; leva! Abre o lbum na folha do desenho o Sanches da Gama, e fica atnito! Em vez do esboo do Cristo, que o Joo de Deus apagara com uma borracha, leu o seguinte ao fundo da pgina e que a legenda do Santo Sepulcro, que diz que o Cristo j no est ali... porque ressuscitou: RESURREXIT NON EST HIC

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O SARAIVA DAS FORAS No tempo em que eu fui para Coimbra, andava j l a estudar Direito, ou pelo menos a frequent-lo, um rapaz do Minho chamado Saraiva, que era uma verdadeira celebridade! O Saraiva era mostrado aos novatos como se fosse um fenmeno, ou algum ente sobrenatural: Olha! L vai o Saraiva! Que Saraiva?!... Um que tem muita fora! O estudante de mais fora que anda em Coimbra! Oh!!! E vinham logo as faanhas umas atrs das outras, e j o demnio do Saraiva cheirava a lenda, como o Hrcules da Mitologia! Demais a mais, como passava o tempo a inventar pirraas e, depois de as inventar, a p-las em prtica, no fim do ano tinha j o costume de ficar reprovado, ou ento de no ir a acto; e por isso nem ele se lembrava j to longe isso ia! de quando tinha entrado para a Universidade! Andava ainda no 1 ano, mas era como se andasse no 4. ou no 5., porque j protegia! Ao lado dele ou adiante dele, os novatos entravam a Porta Frrea to seguros e afoitos como se levassem na cabea a pasta de um quintanista; e, nas vsperas de feriado, de noite, protegia-os aos cinco e aos seis ao mesmo tempo, e no havia trupe que o desacatasse! Esto protegidos! dizia Saraiva intrepidamente. E l passava com a caravana pelo meio da trupe, como um leo que metesse um rebanho por uma alcateia, de propsito para arreliar os lobos! Como tinha muito destas generosidades, era querido de todos; e no constava afinal que lhe desse a valentia para piores

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faanhas nem em Braga, onde lavara os preparatrios m cara, e passara j por valento, nem em Coimbra! Demais a mais, no alardeava foras nem contava proezas; e at quando se metia a proteger sem lhe competir, fazia-o porque se supunha com autoridade, e no por ostentao. L o andar no 1. ano no o impedia de ter j no 2., regendo cadeira como lentes, sujeitos que haviam sido no 1. seus condiscpulos e isso, entendia ele, alguns foros lhe havia de dar. E se lhos no dava, tomava-os ele! Alm disso, era muito alegre. s vezes estava a gente em casa a estudar, alta noite, e, de repente, quando menos se esperava, sentia na rua uma gargalhada, como se fosse um galo a cucuritar! Era o Saraiva que andava a fazer das suas, e que rematava alguma pirraa com essas casquinadas em falsete, muito agudas, que eram s dele e de mais ningum! Como alm de valente era muito gil, saltava de um pulo altura de uma janela, fincava uma das mos no parapeito, aguentava-se a peso muito firme, e com a outra abria a vidraa; depois, trepava e escoava-se l para dentro, muito subtil, e da a bocado l surdia outra vez porta da rua, trazendo debaixo do brao, como os outros, os livros da aula, algum tonel cheio de vinho, e nas mos, se calhava, o que topava na despensa: presunto, a meada dos chourios, a rstia de alhos e de cebolas e, s vezes, se os donos de casa andavam por fora, o bragal e a roupa das camas! Uma vez deu-lhe na cabea para levar da Rua da Trindade, onde eu morava, quanto calado apanhou mo s portas dos quartos, pela madrugada; e encanastrada a sapataria, foi-se com aquilo tudo para a Rua Larga, a formar em quadrado, roda do monumento a Cames, o seu grande regimento de solpedes, como ele dizia comandado, heroicamente, por um par de botas Frederico, armado das

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competentes esporas! Pela manh, est claro, cada um teve de ir descalo Rua Larga, pelo calado que lhe pertencia! Mas como estava tudo fora de ordem, uma bota aqui, outra em Cascos de Rolha, aqui um sapato e outro no se sabia onde, o Saraiva, que morava perto, no despegava de buzinar da varanda uma trompa de caa, arremedando a trombeta final, e fazendo, como ele dizia, o ensaio geral do Dia do Juzo! Outra vez, na sala de bilhar do Clube Acadmico, falavam os rapazes de valentias, e o Saraiva no dizia palavra... Seno quando, os dois que jogavam no bilhar monstro, um bilharo que l havia do tamanho de uma fragata, comearam, por desfastio, a debicar com ele: que qualquer dos Punas (dois pretalhes muito valentes que l havia, filhos dum rgulo, o Joo e o Vicente) o amarfanhavam s com um sopapo! O Saraiva largou uma risadinha das suas e encolheu os ombros. No?! desafiavam-no os dois. Pois aposta-se! Aposta-se o qu! fez o Saraiva com desprezo. E, enquanto o Diabo esfrega um olho, mete-se de joelhos debaixo do bilhar; levanta-o a peso com o costado; equilibra-o; e diz l debaixo com toda a frescata: Joguem, seus grandes asnos! Mas outra vez estava tambm no Clube Acadmico quando se ouve na rua o estrupido de dois cavalos, que pararam de repente defronte da porta. Saraiva! gritam ao mesmo tempo os dois cavaleiros, um dos quais era o Cara Fatal, um caloiro como umas casas, com grandes prospias de valento, e que, de um coice que apanhara em pequeno, tinha na cara um costuro enorme que lha arregoava de alto a baixo, e o outro um rapaz tambm pimpo, chamado Lousa, que era repetente de Matemtica. Correram uns poucos s janelas do Clube.

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Saraiva! desafiaram eles. Se est a, que salte pra c! Foi logo uma ovao estrondosa e correram uns poucos a chamar o Saraiva e a perguntar-lhe se no aceitava o repto. Chega o Saraiva janela com toda a frescata, e diz assim a rir-se para os dois: Olhai que, se l vou, vocs amargam-nas... Apuparam-no! Que se queria alguma coisa que sasse! Era agora! O Saraiva ainda se riu mais. Ai os diabos! Mas vocs falam a srio, ou isso a brincar? A srio! gritaram os dois do meio da rua. C fora que se tiram as chibanas! Ai ?! Ento esperem l vocs! Mas, palavras no eram ditas, como se lhe afuzilasse dos olhos algum corisco, e o corisco espantasse num repente os dois cavalos ah, pernas! , largam ambos numa carreira desapoderada, e tomam para os lados da Rua dos Estudos; da Rua dos Estudos sobre o Museu; do Museu, esquerda, por ali abaixo nem os dois sabiam para onde! D a fugir detrs deles o Saraiva; prev-lhes o itinerrio; corta por atalhos para lhes sair frente; e ao fundo da Couraa dos Apstolos, ao p do Arco do Colgio Novo, agarra pelo freio o cavalo do Lousa; prega com o rapaz no meio do cho; dum pulo salta para o selim; e, mais veloz do que um pampa, larga a correr no encalo do outro que tomara para os lados da Baixa! Corta a Baixa como um relmpago, e quando lobriga o Cara Fatal, j o v a atravesar a ponte, mais rpido do que uma lebre Ah! Co! Entesta para esse lado cada vez mais rpido, e como o Cara Fatal, passado o Mondego, lhe tomasse a dianteira sobre o Almengue, vai-lhe no encalo como se fora um galgo, e s

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duas por trs zs! , fila pelo rabo o cavalo do outro, que j no h esporas que o faam voar, e presto, sem se desmontar, agarra pela gola o Cara Fatal, e, cosendo ao dele o seu cavalo, e tomando-lhe as rdeas de um safano, saca da tesoira, de pontas aguadas, e ali mesmo, luz do Sol, diante do panorama atnito de Coimbra zec! zec! zec! , rapa, de trs tesoiradas, o cabelo ao Cara Fatal! Ora, com uma pertincia destas, o Saraiva est de ver que sempre se formou, e tomava at capelo, se quisesse! Mas no quis. Formado, foi para a terra, advogar. E uma vez que eu viajava no Minho, vi beira de uma estrada, sobre milharais espigados, um poste com uma tabuleta, e na tabuleta este letreiro, com uma mozinha a apontar para o norte: AQUI ADVOGA-SE Explicou-me o cocheiro que alm atrs duns cmoros ficava o escritrio do Sr. Dr. Saraiva advogado! E ele ganha as questes? perguntei eu. Todas! As partes contrrias tomam-lhe medo! Ora mas o caso que tenho para contar ainda outro, e foi tambm em Coimbra, numa festa da Rainha Santa. Para ver melhor a procisso, o Saraiva entendeu por bem trepar para cima dum carro, e ps-se de p no tejadilho, a um canto do Largo de Sanso; como via tudo muito bem, lobrigou um tipo qualquer, meio lapnio, que estava em baixo de chapu na cabea. Psiu! O seu lapo! Tire l o penante desse toutio! ordenou-lhe o Saraiva de cima do carro. O outro foi como se no ouvisse, e torna o Saraiva do tejadilho: J lhe disse que tire o chapu, seu urso!

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Mas o urso respondeu-lhe torto e carregou mais o penante pela cabea abaixo. Ai sim?! diz-lhe o Saraiva. Pois ento logo falaremos! Mas o tal, que era reponto, ps os braos em asa e desafiou-o de chapu s trs pancadas: j, se quer! O Saraiva no se fez rogado. Desceu-se com muito bons modos e do seu vagar; chegou-se ao patego muito pausado; e disse-lhe assim: V l adiante. E escolha o stio. O patego foi o que quis ouvir. Abre caminho pelo povilu; toma apressado por umas ruelas esconsas; e o Saraiva, sempre muito srio, l vai atrs do lapnio. Mas, j aborrecido da caminhada, eis que depara com um polcia no sei onde, e, segurando o patego por um brao, a pontos que lhe caiu de joelhos, vira-se para o polcia e diz-lhe assim, j o patego estando de mos postas: Olhe este urso, 33! Mas leve-mo l pr chilindr, ande, que quer por fora que lhe parta a cara! Outra vez, na aula do Pita, j no 5. ano, foi chamado lio e estava em branco! Tratava-se dos deveres dos procos, em Direito Eclesistico Portugus; e, porque no sabia nem patavina, desata numa grande berrata contra os padres do Minho dizendo que tinham todos amsias! O Pita, que tambm era padre, comeou a doer-se com a descomponenda; e como o Saraiva tinha um irmo que era abade no Minho, interrompe-o para lhe lembrar o irmo que era um sacerdote muito exemplar (diz o Pita), como ele, Saraiva, devia saber... Rplica do Saraiva, que tinha medo de se ver obrigado a entrar na matria e no queria largar o nariz-de-cera: Sim senhor! Sim senhor! Tudo isso muito bonito, mas

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a cantiga no a fiz eu: No h amor como o primeiro Nem lenha como a de azinho Nem filhos como os de padre Que chamam ao pai padrinho!14Este Pita, que ainda hoje lente do 5. ano, tinha muito o costume de estar sempre a ver as horas, provavelmente porque lhe pesava a carga. Mas uma vez, no meu 5. ano, passou uns dias sem tirar o relgio; e como isso fosse caso notvel, o Alfredo da Cunha fez-lhe estes versos, que passaram na aula de mo em mo: Do-se alvssaras, e boas, A quem descubra porque Que j as horas o Pita No seu relgio no v: Dizem muitos, e eu no nego Nem o vou tambm jurar, Que o relgio ps no prego, E que o Pita anda a apitar. Mas uma vez que ele o trouxe corda, isto , no o chamou lio durante muito tempo, e o mesmo, e ao mesmo tempo, lhe fez o Lopes Praa, que regia Prtica do Processo, o Alfredo da Cunha desabafou assim, perante os que estranhavam v-lo to magro, de ter de estudas para as duas cadeiras: Perguntais-me como passo?! Eu passo como uma passa Maada a martelo e mao Ou melhor, a Pita e Praa! E outra vez, que receava ser chamado a uma lio maadora, saiuse com esta versalhada de rimas difceis em aa, ea, ia, oa e ua: A Santo Antnio da Praa Fiz eu hoje uma promessa De lhe rezar uma missa,14

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LOPES OU BETTENCOURT? Num tempo que j vai muito longe, havia l em Coimbra uma repblica de trasmontanos, tudo rapaziada alegre: o padre Jos Lus Alves Feij, que foi depois bispo de Bragana; os dois Guerras, de Freixo de Espada Cinta: o Manuel e o Francisco; o Gomes Lajes, que era tambm de Freixo; o Bernardo Teixeira Leite Velho, de Mogadouro, que foi advogado para o Brasil, e l est ainda, e que era um pndego de marca; e ento o Jos Bernardino Teixeira de Abreu, que morreu, com perto de oitenta anos, a advogar em Mogadouro. Como era de muito longe, e naquele tempo s se Viajava em cima dum macho, uma bela manh largava a caravana para Coimbra, ficando a famlia a chorar de saudades! Adeus! Adeus! Tomai cuidado por esses caminhos! Vede l agora se vos meteis em perigos! Adeus! Adeus! Bem encaminhados! Mas como os alforges iam atacados de merenda e osOu de lhe dar uma coa Em mortal escaramua, Se, ou a srio, ou por chalaa, Lhe desse l na cabea, Cheia de leis e justia, Chamar-me hoje a esta troa Que a minha pacincia agua. Ao Lopes Praa, que preleccionava sem despegas com os olhos fechados; e parecia um fio de azeite, muito mole, sobre uma resma de mataborro, fez esta quadra o Francisco Bastos, um bomio, que era brasileiro e j morreu: O Lopes Praa a falar Em Direito, sem sabor, Parece um sino a dobrar Por alma dum maador!

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bolsos recheados de pintos, seguia entre gargalhadas a caravana enquanto os lenos das mes ficavam a acenar l das varandas, e os das irms, e os das primas: At pr ano! At pr ano! Chegados a Coimbra, depois duma semana de peripcias, e s vezes mais15, arranchavam na mesma casa; e a vida seguia em comum por esse ano fora at que vinham as frias grandes, e l iam eles outra vez de longada, por montes e vales, sem merenda e quase sem pintos para o remanso dos ptrios lares! Mas em Coimbra, pelos modos, os rapazes comiam mal: caro e mal cozinhado! O Jos Bernardino sobretudo, que foi sempre de bons petiscos, no aturava aquelas criadas, e muito menos os gaspachos que lhe serviam; e deliberou, por isso, levar da terra um cozinheiro! Feita a proposta aos maisEstas peripcias so o objecto do Palito Mtrico em latim macarrnico! L diz o Argumentum: Describitur jornata cujusdam Calouri venientis ad Coimbram, et inde regressus ad suum casalem e principia assim: Fort ad Coimbram venil de monte Novatus, Ut matriculetur. Nomen, si rit recordor, Jan-Fernandes erat. Patres misere, suorum Ut post formatus Doctor foret honra parentum. Partitur patris casa, valedicit amiguis; Et buscat stradam, nostram quae guiat ad urbem. Cumque ignota videt, passat quacumque, bisonhas Omnia miratur; montes, et flumina pasmat. Seque Arreiro virans, perguntat; at ille Contat inauditas, illum empulhando, patranhas, Encaixat quandoque petas, quandoque sucrem Monstrat, ut hic mediam mandet venire canadam. Este arneiro que embrulha o caloiro com patranhas, o tal que em certo ponto da jornada faz apear do macho o pobre-diabo e lhe diz, escarranchando-se na albarda muito regalado: Nos quoque gens sumus, et quoque cavalgare sabemus!15

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companheiros e aceita por todos, l vai um dia atrs da malta, arvorado em cozinheiro da trupe, o bom do Bernardino Lopes ainda rapaz, mas muito peludo! Ora naquele tempo, e ainda no meu, uma repblica no era s de quem l morava dentro. Mais ou menos, era de todos, e a toda a hora! Basta dizer que a porta de uma repblica nunca por l se fechou de dia ou de noite; nem l dentro, as portas dos quartos; nem dentro dos quartos, os bas; nem dentro dos bas, os mealheiros, se os havia! Aquela, demais a mais, era um modelo de franqueza, por ser de transmontanos autnticos! Chamavam da rua ou batiam escada? Entre quem ! E se estavam mesa, o cumprimento era logo este: Sente-se e coma! Tal e qual como na provncia! Ora o cozinheiro, est claro, era o Bernardino! E como em breve corresse prego de que para petiscos no havia segundo, s duas por trs era uma romaria l para casa, porque lhe queriam todos ver a cara e tirar-lhe a prova s habilidades! Mas, como tinha uma cara chapada de patego, e demais a mais era desconfiado, o verdadeiro petisco saiu-se ele! Fervia a troa! Uma Vez diz-lhe um assim: Tu como te chamas? Bernardino Lopes, um seu criado. Ora, Lopes! Isso pode l ser?! Isso nunca foi nome de gente! E preciso mudar esse nome, ouviste?! acudiu o outro, e os mais com ele. Mas j meu pai era Lopes alegou o rapaz com muito m sombra. Pior! tornaram em coro os outros todos. E o meu av, plos modos...

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Pior! Pior! tornou o coro. E os meus tios, que tambm se chamam Lopes! dizia o Bernardino j a remorder-se. Mau! diz-lhe ento um. Mas teu pai que barba tinha? Nenhuma. Barba rapada. E teus tios? Um, barba toda, e outro, suas. Ora a tens! Pois vai l tu agora rapar os queixos, e ao mesmo tempo deixar barbas, ou suas, se s capaz! Pode l ser?! Pois com o nome a mesma coisa: cada qual o nome que tem! E tanto porfiaram, tanto teimaram, que o rapaz condescendeu, e ficou a chamar-se... Bettencourt! (Bettencourt no lembra ao diabo!) E comearam logo as experincias: Lopes! O rapaz... moita! Lopes! Moita... O Bettencourt! Meu senhor! Pronto! Estava na conta! Mas dali por diante ningum passava porta que no chamasse da rua: Lopes! E se o Lopes, apanhado de surpresa, respondia chamada, eram logo da rua os improprios: animal! Ento s Lopes ou s Bettencourt?! E se, pelo contrrio, respondia crisma, ainda os da rua se no calavam: animal! Ento s Bettencourt ou s Lopes?! De modo que entrou o rapaz a afinar com o caso e a dar,

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como l se diz, um cascarro! Ao p do Teatro de D. Lus houve depois um burro que bastava que lhe batessem na aldrava da porta para zurrar como se estivesse danado e o Bernardino, esse, bastava tambm que lhe batessem porta para ir logo tudo da janela abaixo: calhaus de que se munira, os ladrilhos do fogo, os ossos, as colheres, as chocolateiras, e at uma vez a panela do caldo! Acabou-se! No estava mais na mo do rapaz! E to furioso ficou doutra vez, que meteu a fatiota num leno grande, enfiou o leno num grande pau, e foi sentar-se porta da rua esperando que os amos voltassem das aulas. Tu aqui?! Pra saber se querem alguma coisa, porque hoje mesmo abalo pra terra! Tu?! Sim senhor! de caminho! Bem, sobe! Vamos a contas. A mim bonda-me um pinto. Pois bem, sobe. Subiu o Bernardino, atrs dos amos a fungarem de riso. Mas tu ento no te afazes? ainda lhe perguntou o bolsa, que era o Feij. No no me avezar. Mas que eu... (hesitao, e depois desesperado) ou bem que sou Lopes, ou que sou Bettencourt! Fez-lhe o Feij um sermo e missa cantada, acolitado pelos outros todos: que se no importasse; que se risse; que deixasse l os rapazes; que at eram todos muito amigos dele; que no desse sorte, e j o largavam! Logo que no ds sorte, vers que te largam! insistiu o futuro bispo. Teimou o Bernardino; objectou; recalcitrou! Mas por fim resolveu-se a ficar com a promessa de esfolar um:

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Oh, se esfolo! E quero pra aqui um pinto, que pra mercar uma navalha! Homem! V l o que vais fazer! Isso agora muito srio! Se te hs-de meter em trabalhos, o melhor ento ires-te embora! disseram-lhe todos. Mas o Bernardino, limpando os olhos trouxa do fato, desafogou a sua grande mgoa: que no h maior desgraa, meus amos, do que no saber a gente como que se chama! bruto! inda lhe disse o Bernardo Teixeira. s Bettencourt, grande animal! Pois que dvida tens que s Bettencourt?! Bom, ficou. L o foram acomodando como puderam, e caso que da a meses j estava outro: chamassem-lhe Lopes ou Bettencourt, para ele era a mesma coisa! J no se importava! Ora mas o Bernardino era o rei dos criados! Alm de muito bom cozinheiro, era fiel como um co, e amigo dos amos pr vida e pr morte como ele dizia. No sabia ler nem escrever. Mas todas as noites, depois da ceia, apresentava-se no quarto do bolsa a dar contas, e davaas sempre por um papel como se tivesse ali diante, escrito com todas as letras, o rol das despesas: Uma galinha dizia ele , um cruzado. Ia-se a ver e tinha no papel uma galinha muito mal pintada; e logo adiante, numas garatujas que s ele entendia (mas que tinham sempre um valor certo), a quantia que tinha custado! O vinho era uma garrafa; o azeite uma azeiteira; as batatas no sei o qu; e a carne... dois grandes chifres! Tudo assim! Fez-se, pois, muito estimado, o Bernardino; e os rapazes, quando iam de frias, levavam-no sempre na companhia deles e j na terra lhe chamavam o Doutor, porque demais a mais

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aparecia sempre muito bem andaimado, com os fatos usados, as botas, e at os chapus de toda a trupe! Depois, dera-lhe para bem-falante, e estava sempre a meter patranhas! Doutor!, conta l aquela que vos aconteceu na serra do Maro, quando de noite vos saram os lobos! O Doutor no se fazia rogado; e, tela histria adiante, ia metendo a torto e a direito quantos palavres arrevesados apanhara a dente durante o ano, muito amolgados e estropiados! Mas este bom do Bernardino deu por ltimo num grande borracho! Hora vaga que apanhasse, l ia ele para o Lus Tom, que era um taberneiro que havia aos Arcos, e vinha de l sempre a cair! Os amos ralhavam-lhe; fazia-lhe prticas o futuro bispo mas era o mesmo que nada! Uma vez chegou a dizer ao Bernardo Teixeira, a cair de torto: O senhor no se forma em Direito?! Pois eu c formome em Torto! Passaram a guardar-lhe as soldadas, cautela, deixando-o sem vintm! Mas to bom fregus tinha sido do Lus Tom, que o Lus Tom entrou a dar-lhe de graa todo o vinho, porque o Bernardino era a alegria da taberna; e frequentadores havia que j no entravam se no estava l dentro o bom do rapaz: Est por c o Bettencourt? Se no est, ento vou-me embora! A ltima borracheira, a da formatura, essa ento foi de caixo cova! To cerrada, que tiveram de o levar em braos para a repblica, e, no dia seguinte, ainda tonto, l abalou com os amos para Trs-os-Montes todos formados!... Mas na terra, coitado, veio-lhe a nostalgia de Coimbra! E para que a nostalgia o no afogasse, afogava-a ele a toda a hora despejando-lhe em cima quartilhos de vinho!

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Quase no fez mais nada seno beber, e morreu velho e de borracho! Mas ainda hora da morte, como lhe perguntassem: Que lgica?, respondeu, j meio morto, lembrando-se ainda do Lus Tom: o direito natural, O do certo, certo , Quem quiser beber de balde V taberna do Tom.

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POETAS BALNEARES No tempo em que eu andava em Coimbra, j os rapazes que frequentavam a Universidade costumavam passar na Figueira, volta das frias grandes, os primeiros quinze dias do ms de Outubro. Iam a Coimbra matrcula geral, que logo no princpio do ms; e depois, uns de barco, outros na mala-posta, l seguiam todos para aquela praia, espera que se abrissem as aulas. A Figueira tinha suas vantagens sobre as outras praias. Alm de ficar perto de Coimbra, e ser muito animada, era uma ptima estao de aclimao para os que tinham de ir, como ns, invernar Lusa Atenas! Ali se encontrava j o verdadeiro futrica; ali se viam outra vez as caras dos lentes; ali se defrontava j com bedis e verdeais; ali, finalmente, comeavam as tricanas o seu ru-ru: Um vintenzinho, Sr. Doutor? D um vintenzinho pra caf? A bem dizer, portanto, aquilo era j Coimbra! Ou cheirava tanto a Coimbra, que como se fosse! Como trazamos todos dinheirinho fresco, eram quinze dias regaladssimos! Ia-se para o melhor hotel, que era ento o do Reis, borda do rio; passavam-se os dias nos cafs; ia-se caa ou pesca uma vez por outra; namorava-se grande, de dia e de noite; faziam-se burricadas monstros at Buarcos; l vinha s vezes o seu piquenique; botava-se crnica em algum jornal16 e de manh, na praia, era uma arruaa por aquelas16 Lembro-me que a minha primeira crnica foi escrita na Figueira para o Dirio Ilustrado; e que fiquei muito espantado quando tive uma carta do Pedro Correia, que era o director, a oferecer-me o jornal, que at hoje no deixou de me visitar um nico dia e a pedir-me com uma grande bondade, e com palavras que eu no merecia, que continuasse! Usei e

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barracas! noite Clube! Ora no Clube, por esse tempo, ainda havia a mania das recitaes! O romantismo j tinha passado de moda, verdade; mas l aparecia sempre um retardatrio poeta balnear caa de noiva , que alimentava o fogo sagrado das comoes, recitando com voz desgrenhada voz de comover sogras! os versos mais desgrenhados! Fervia a troa nas salas contnuas, claro, enquanto as velhas choramingavam; e, no fim, uma comisso de estudantes ia felicitar o bardo pelo se triunfo gabando-lhe muito a versalhada! Bravo, sim senhor! Isso que estro! As senhoras gostavam muito daquilo, e as meninas, principalmente as casadoiras; mas uma vez, como as meninas fisgassem, a troa, encheram-se de nimo no sei quantas, e vieram, por pirraa, ter connosco para que recitssemos! Cada um desculpou-se; alguns largaram a fugir no sei como, umas poucas agarraram-se a mim! H-de recitar! H-de recitar! Mas, minhas senhoras, nunca fiz versos... No sei... No sou poeta... Ora no fez! Ora no sabe! Ora no poeta! Hde recitar! H-de recitar! Pensando que me largariam, desculpei-me que s sabia... A Morte de D. Joo! Mas elas exultaram: A Morte de D. Joo! Pois h-de ser A Morte de D. Joo! Oh, minhas senhoras, mas... (Eu queria-lhes dizer queabusei da condescendncia do Pedro Correia, que eu conheci mais tarde e era o melhor e o mais gentil dos homens: de Coimbra escrevi no Ilustrado as Crnicas de Coimbra, e ainda do Alentejo, depois, as Cartas Alentejanas.

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era forte!) No h mas! Temos ouvido que muito bonita, essa Morte de D. Joo! E do Soares de Passos, no ? Sim, muito bonita... E do Junqueiro. Mas... quero dizer... porm... E desfechava-lhes as adversativas, a ver se me percebiam: mas... porm ... todavia... Qual?! Estava filado! Sem saber como, achei-me no varandim da orquestra, ao lado de um rabeco enorme! Eu suava! E agora? Esta s pelos demnios! J o director de sala, em casaca e gravata branca, batia as trs palmas fatdicas: Um cavalheiro que vai recitar! As senhoras assumiam, risonhas, um ar de galantaria e benevolncia, enquanto, ao p da porta, os homens cerravam grupo, com alguns tacos irrompendo do meio deles, dos que vinham a correr de jogar o bilhar. Silncio... Eu arredava, delicado, o rabeco... L dentro, numa sala afastada, ouviamse, carambolando; as vozes dos parceiros: ...Manuel! No durmas! Duas preta! Os da porta reclamavam silncio l para dentro: Psiu! Agora, outros acorriam de todos os lados, percebendo que se ia recitar: Quem ? Quem ? Silncio... Limpando as lunetas, lembrava-me aquele verso do D. Joo: Fechavam-se tremendo as ptalas da alma. A minha alma era uma sensitiva que fechava as ptalas! Esta s plo diabo! Entretanto, fincando sobre o nariz os meus dois vidros, tomei flego, e proferi, quase melfluo, carinhoso e compassivo, aqueles versos da Babilnia: ...E exposta sobre a rua! Agoniza chorando a criancinha nua!

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Era bonita! Era lrico! Saiu bem!... Atentas, as mulheres miravam-me. Prossegui. Mas da a instantes, mal rompo na apstrofe: ...Oh, miservel gente, A alma da mulher, sacrrio resplendente... e comeo, por ali abaixo, a despenhar-me, enrolado aos alexandrinos, os alexandrinos enrolados a mim, como serpentes, pregando sem querer um grande murro no rabeco Pum! , vejo os leques comearem a abrir-se, como flores de pudiccia, no ambiente iluminado, e logo a agitarem-se febris, enquanto, num hausto, enfio a toda a velocidade, silvando, por aquela charneca de vocativos: Devassos, histries, inteis, pretorianos, Ventres que resumis os Csares romanos e o resto por ali fora levitas do milho... graves bezerros doiro... espritos servis.., espritos de lama... Falstaff, Satans, Tartufo, Sganarello... conscincia preta... silenos de casaca e Brgias de roupeta... , vendo j nessa altura, de p e bufando, uma velha atordoada quando, aos ecos atnitos da sala, vibrei, convulso, a terrvel injuno: Vamos, despi o fraque, a mscara, a batina, Mostrai, desapertai a estupidez suna, Ponde-vos vontade! Foi como quem as enxota, com um tangante, para a saleta acanhada do toilette! Ouvi-as vociferar! Algumas, benzendo-se como sob uma trovoada bravia, imprecavam! Mas eu,

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espicaado, sentia dentro de mim as cleras de Jpiter! Hup! Vamos, fulminemos o rebanho! E furioso, enraivado, apocalptico, desfechava-lhes o resto queima-roupa, como quem despede, numa convulso, balas, ortigas, calhaus: A vida uma farsada! Por conseguinte rir... ............................... a vossa vida impura ............................... Tripudiai, sandeus! ................................................................... Vendei a opinio como vendeis as filhas: Quem d mais? Quem d mais? E p-las em leilo! Fogem as casadoiras, rebocadas, atrs das mes aflitas! Sigo! Prossigo: ............................... brutos, sem b maisculo! Corridos, desarvoram os conselheiros, fumegando, enquanto eu apostrofando-os, lhes grito, voltado para eles, soberbo de ironia feroz: A vossa conscincia! Ela que noite e dia Se anda a esponjar a na lama dos monturos, Ela que tinge a face e pe o corpo a juros, Ela a corar a vil! porta, os estudantes riem como uns perdidos! Tremem, arrepiados, os poetas balneares! Vejo no ar, em pelica branca, as mos do director de sala, desvairadas, enquanto eu, sem me importar, ameao as cadeiras desertas:

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Hei-de-vos arrancar a mscara postia, Ligar-vos com grilhes ao potro da justia, Expor-vos ignomnia! E para um criado, hirto, embasbacado, como quem lhe pede coisas: Dai-me versos febris, agudos como espadas, Dai-me energia, amor, estrelas, entusiasmos, Dai-me um jorro de luz, e um jorro de sarcasmos Com listres de sangue! Oh!, dai-me tudo isto! ...parecendo-me que o criado, um galego, me respondia em galego, - safando-se s gargalhadas: No hay! E foi j e apenas para o rabeco hiperblico e desmesurado no vasto salo deserto! que recitei os versos finais: minha lira.......................................................... ............................................................................... minha pobre lira! hei-de arrancar-te as cordas E unindo-as nesta mo vibr-las e torc-las... ...Mas, num fragor, rola pelas escadas do coreto, no sei como, o rabeco! Oio chiliques no toilette, gargalhadas na sala de espera, a voz do director desgrenhada, no meio dum coro de imprecaes! Gane um poeta lrico. Prossigo, ribombando, no vasto salo desolado; e agora, ao fundo, na superfcie atnita dum espelho, apenas dou com a minha figura ofegante Agarra! Cerca! Tem mo! metendo em gestos ferozes os ltimos versos convulsos:

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Prender uma grilheta vossa vil memria E mandar-vos depois para as gals da Histria Onde de nada vale a infmia e o dinheiro... ...rematando, como quem numa jaula de bronze aferrolha lees de fogo: O crcere de bronze e Deus o carcereiro!

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O ORFEO ACADMICO No tempo do Joo Arroio, organizou ele com a rapaziada l de Coimbra o clebre Orfeo Acadmico! A gente pode esquecer-se de que Joo Arroio j foi ministro, e creio mesmo que semelhante coisa no passar pela ideia aos filhos dos seus orfeonistas de outrora, a menos que em dia de finados no visitem.., o Dirio do Governo! Mas do que nunca mais ningum se esquece, o que todos, nascidos e por nascer, que prezem esta coisa aparentemente mais ftil do que a poltica, mas que na essncia lhe mil vezes superior, chamada a Arte, ho-de ter sempre bem presente ao esprito, que foi ele o fundador do primeiro orfeo que existiu em Portugal, graas, simplesmente, ao seu extraordinrio temperamento de artista que a poltica, desgraadamente, desnorteou! Aos doze anos, o Joo Arroio j compunha msica melodias, sonatas, berceuses, ronds, hinos corais, romanzas, peas para piano e canto, e fizera La fiance dAbydos. uma pera em dois actos mas, passando para Coimbra, nem j acabou a pera Martim Vaz, e apenas, nas suas horas vagas de classificado, fez em cinco anos o seguinte: dez romances para piano; Rita; morceau de concerto; os coros da Morena; as Flores sobre Um Tmulo; o Canto da Federao Acadmica, e outros; o Cames, a cantata Ins de Castro; um quarteto para piano; e enfim, para a rcita dos quintanistas do seu ano, a msica da opereta! E em vez de tomar capelo j que na sua vida essa fatalidade estava escrita! e de partir logo para a Alemanha, ou para a Itlia, donde viria, decerto, um grande compositor, e porventura um extraordinrio executante, o Arroio no fez isso: pegou em si e foi para So Bento e um belo dia apareceu ministro!

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...Ministro! Ora o Orfeo Acadmico fundou-o Joo Arroio em 29 de Outubro de 1980; e com tal gana lhe pegou, que da a quarenta dias, em 7 de Dezembro, apresentava em pblico os seus sessenta e quatro rapazes, cantando como rouxinis! E para que se no dissesse mal da sua trupe, ou que s cantava coisas fceis, mi-se e mi a pacincia dos rapazes, naquele palco do Teatro Acadmico, mas pe-os a cantar msica de Wagner, que ningum, ento, tinha ainda ouvido em Portugal! Em Fevereiro, j o Orfeo cantava a grande marcha do Tannhauser, com a orquestra regida por Joo Arroio a acompanh-lo! Chegaram em Maio as estrondosas festas a Cames, e a temos ns no grande parque da Universidade, arrebatando quantos o ouviam, o Orfeo! Foi uma ovao como no vi outra; e o Joo Arroio, de batina e empunhando a batuta, andou em charola mais de duas horas, levado pela rapaziada como num tufo! Os rapazes cantavam a seco, dirigido por ele, canes populares lindssimas do Minho, do Douro, do Alentejo e da Beira Ana s Tu s Ana; Toma Limo Verde; Cano da Lousa; outras canes e outras coisas e o Arroio, alm disso, regia maravilhosamente, com mestria de fazer inveja a grandes maestros, o seu grupo de executantes: uma orquestra de duzentas e cinquenta figuras nada menos! Foi um delrio! Fazia furor, o Orfeo! De Outubro de 81 a Maro de 82, a sala dos cantores ia crescendo: eram j oitenta! Joo Arroio foi-lhes sucessivamente ensinando mais coisas lindas: a Morena, de Guerra Junqueiro, com msica encantadora feita por ele; Flores sobre Um Tmulo, de Guilherme Braga, msica de Arroio tambm; o Ratapl dos Huguenotes; a Tirolesa; um soneto de Joo de Deus; o Canto da Federao, tambm dele;

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etc., etc. Isto, como disse, de 81 a 82. Mas a ltima exibio pblica do Orfeo fora a 21 de Maio de 81 porque depois comearam os enguios: primeiro, foram as eleies do Clube17, vencidas pelo partido adverso; depois, numa matine que estava marcada para o parque da Universidade, a chuva que se despenhou a potes; depois, as bexigas de Arroio, que o no deixaram ir a Lisboa com os rapazes, s festas pombalinas; depois, uma recada que o impediu de os levar ao Porto, a um concerto de caridade a favor de uma escola; depois, nova doena, que o no deixou festejar o ponto por aquela forma, como se tinha combinado... o demnio! O Arroio chorou de desespero, coisa que lhe no aconteceu, decerto, quando largou a pasta de ministro!... E dava-lhe com certeza um ataque de fria, se no tem a sorte de levar enfim os rapazes a um concerto que foi, se bem me recordo, no Grmio de Coimbra. Mas a, espichou de vez o Orfeo! Morreu! No entanto, o reportrio desse ltimo ano era j esta beleza: Ave-Maria, de Jos Arroio, pelo Orfeo e rgo; Chant de Nol, de Adam, pelo Orfeo e rgo; Coro de Caadores do Freychutz, de Weber, orquestra e coro; Marcha do Tannhauser, de Wagner, orquestra e coros; Canes, a seco, de Joo Arroio: do Minho, do Douro, do Alentejo e da Beira; Hino Acadmico, a orquestra e coros; o Coro Nupcial da pera Bianca de Mauleon, de Jos Arroio, pela orquestra eEstas eleies do Clube eram o diabo! E o que tinham de pior que constituam um curso prtico de chicana eleitoral, que aplicado depois na vida real deu o que se sabe! Um vizinho tive eu, grande influente, que no dia da eleio recebeu logo de manh um telegrama do pai, dizendo-lhe que a me tinha morrido; e partindo para a terra no primeiro comboio, chegou l e encontrou muito fresca a autora de seus dias e o pai muito admirado do tal telegrama que no passava de uma grande peta, para desviarem o influente das eleies! Como esta, aos centos!17

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pelos coros; finalmente, a orquestra e coros, o Remember, de Joo Arroio! O Arroio, est claro, que recrutava a rapaziada. Onde soubesse que havia um rapaz com boa voz, l estava o Joo Arroio, muito solcito, a ca-lo para o Orfeo! Depois, metiase com toda a malta no grande palco do Teatro Acadmico, acendia duas velazitas, e a festa comeava! Dali a um quarto de hora, o Arroio suava em bica por todos os poros, estava rouco de tanto gritar mas os rapazes iam entrando no compasso e desvelando, cada vez mais, o gosto e afinao! E ele, com a batuta em cima dos tampos do rgo, ferrando no cho sapatadas valentes, tudo era gritar, se desafinavam: Arre! No isso! Outra vez ao princpio! E depois de trautear, furioso, para os ensinar, intimava num golpe de batuta: uma!... ...Ora uma vez estava na litografia do Marco da Feira, espera da sebenta, quando entra por ali dentro o Arroio, que ia tambm pela dele. Eu estava alegre, como de costume, e trauteava, com o meu vozeiro de baixo profundo, no sei que coisa. Quando me diz de l o Joo Arroio: Trindade! Voc h-de entrar pr msica! Qual msica?! O Orfeo. Eu?!!! Sim! essa voz aproveita-se. Pois est ao seu dispor. A noite? Bom. noite. No palco do Acadmico. Bem, l vou. (E c para mim e para os meus botes: Ai, Arroio!, que nem tu sabes no que te meteste!) A minha

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voz no prestava para nada, e tenho um ouvido como uma pedra! Chego, pois, ao ensaio hora marcada, e que era pouco depois do toque da Cabra e manda-me dar o Arroio no sei que nota. Dei a nota, que era das minhas, e que saiu por sinal uma beleza! Bom! V voc para alm! Mandou-me prs baixos! Comea dali a bocado o ensaio dos baixos, e entro eu a dizer com os mais, mas os mais entram-se todos a rir!... De que demnio se riem vocs?! Reparo, e o Arroio ria-se tambm! A comeo eu a fazerme zangado! Cantam vocs melhor, talvez?! Canta melhor c a sua tropa?!... Homem!, uma voz que nem um trovo! E atirei um urro aos outros baixos, que atordoou a casa at aos alicerces! O Arroio veio para mim, a rir: Trindade!... Que ?! repontei, a fingir, plantado agora no meio do palco. Nada... (E ps-se a afagar-me o boto da batina.) que voc e o porco... ?!... ...s tm trs notas!

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BALTASAR, O LETRGICO No tempo do Alfredo da Cunha tnhamos ns l em Coimbra um condiscpulo de Benavente, chamado Baltasar Adriano de Freitas Brito. Chamvamos-lhe o Menino Jesus do curso porque nos apareceu no 1 ano um fedelhote e formouse no tendo ainda na cara sinais de barba! Era Alm disso muito branquinho, muito coradinho, muito tenrinho e um quase nada louro, e andava sempre com a sua capa e batina muito escovadas e a risquinha do cabelo muito bem feita! Na rcita do 5 ano fez at um papel de menina e era um mimo v-lo de saias! Nos primeiros tempos, de crer que Baltasar se lisonjeasse muito de se ver assim crianola e j na Universidade! Demais a mais, aconteceu algumas vezes gozar o privilgio de atravessar a Porta Frrea, quando era novato, no debaixo da pasta protectora dum quintanista, para se livrar dos caneles, mas sim ao colo dum quintanista, como se fosse um beb da mama.18 Mas quando um dia se apanhou formado,No meu tempo, ainda a praxe de no passar novato algum Porta Frrea sem ir protegido era absoluta, e livrasse-se algum de a transgredir, quer tentando entrar sem levar em cima da cabea a pasta de um quintanista, quer ofendendo um protegido! Ao primeiro davam-lhe cabo das canelas com caneles: ao segundo, o quintanista protector podia, impunemente, esfarrapar-lhe na cara a pasta e os livros, porque o transgressor nem se atrevia a tugir, e se se atrevesse esmigalhavam-no! Barca chamam em Coimbra ao quintanista que passa muitos novatos Porta Frrea: L vem a barca! No meu tempo tambm era necessria proteco de quintanista para passar a porta que comunica a Via Latina com os Gerais. Dentro da Universidade, e portanto nos Gerais e mesmo no parque, a troa era s de palavras e para essa no havia proteces! Eu fui um mrtir, porque me embirraram com uma medalha que trazia na cadeia do relgio, o que fez com que nunca mais na minha vida usasse medalha!18

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entrou com ele a nostalgia de Coimbra, por se sentir fedelho e j bacharel! O seu regalo seria brincar; mas o destino chamavao agora para Benavente a dar conselhos no seu escritrio! (O Baltasar a dar conselhos...) Por isso entrou de olhar para Coimbra como quem olha para uma linda gaiola que no havia remdio seno deixar, trocando-a pelo mau tempo l de fora!... E ento percorria a cidade de dia e de noite, estranho, desvairado, como se a alma do rei Lear habitasse no seu peito de adolescente! E chorava, coitado! Punha-se a mirar um choupo borda do rio, e o choupo era para ele um cipreste! Parecia que se lhe suicidara no Mondego, atirando-se da ponte abaixo, a linda fada da sua Alegria! Coitadinho do Baltasar! Mas nesses momentos era fugir dele! Se apanhava um condiscpulo, filava-se e dizia-lhe trenos: a sua mocidade to cedo extinta; a debilidade da sua cincia para as altas questes do foro; a debilidade da sua pacincia para as maadas; a incerteza do futuro... o Futuro! Metia-lhe medo o futuro como um grande fardo de mil arrobas pode meter medo a uma criana! Pobrezinho do Baltasar! Ora mas uma noite, quem havia ele de apanhar para lhe aparar as lgrimas? O Alfredo da Cunha! Eram condiscpulos: estavam na mesma situao, afinal! E depois, o Alfredo da Cunha, alm de ser dos ntimos, era poeta, e portanto saberiaPadre-nossos, obrigaram-me a rezar mais de mil, por quantas intenes patuscas eles se lembravam! V de explicao, pois que este livro ainda h-de ser o compndio de uma cadeira de Coimbralogia que indispensvel criar nos liceus: a proteco Porta Frrea e entrada dos Gerais era exclusiva dos quintanistas: privilgio da pasta; a proteco pela cidade, de noite, era dos quartanistas e dos quintanistas, indistintamente. Bastava esta voz, mesmo a distncia: Est protegido!, para que uma trupe largasse o caloiro ou o novato. Era voz -que vinha do Cu!

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consol-lo... Comeou, pois, a via-sacra! Atrelado ao Baltasar, o Alfredo da Cunha deixou-se ir por todas as ruas da Alta, ouvindo a lamria do amigo. Da Alta desceram Baixa; embrenharam-se naquele labirinto das ruas; deixaram-se andar, perdidos, por onde os ps os quiseram levar! Quando se viram no Cais, defronte do areal do Mondego, puseram-se a rememorar os passeios em barco; as caldeiradas na Lapa dos Poetas; a falar na lenda de Ins; na lenda da Rainha Santa; na beleza singular daquela paisagem! Como isto lindo, Alfredo!... Mas aqui, j o Alfredo da Cunha se ia sentindo muito maado, e propunha irem-se chegando... O Baltasar fazia que no ouvia, ou no ouvia realmente, e seguia pela estrada da Beira, levando a reboque o Alfredo da Cunha! E lamuriava, e lamuriava sem despegar, no meio do silncio das coisas e do silncio... do companheiro! Dera uma hora na torre da Universidade; haviam j batido as duas; iam a dar as trs... Deram as trs quando estavam c em baixo, no princpio da ladeira do Seminrio! E se nos fssemos chegando?! arriscou-se a dizer o Alfredo da Cunha. Que linda! Que linda noite! respondia potico o Baltasar. Onde haver noite assim, Alfredo?!... E, subida a enorme rampa, em vez de seguir para a frente, direito ao Jardim Botnico, o Baltasar emboca direita, para a azinhaga, e segue para o Penedo da Saudade! A, chorou ao lado do Alfredo da Cunha, quase a dormir! Isto faz-te mal, homem! E melhor irmo-nos embora! dizia o Alfredo. Mas qual?! O Baltasar no despegou dali seno quando a aurora j raiava, porque era tempo de irem seguindo... para o Penedo da Meditao da a mais duma lgua!

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No posso! desculpava-se o Alfredo. Amanh, queres? Demais a mais, olha, j andam a apagar os candeeiros! Ia rogar de mos postas o Baltasar Homem!... Mas o Alfredo, para o consolar: Ao Penedo da Meditao vamos tarde. Queres?! Vemos de l o pr do Sol! O Baltasar calou-se. Mas dali a bocado, quando j estavam perto do Seminrio, murmurou como quem aplaude: ...Sim! O pr do Sol!... No Penedo da Meditao o pr do Sol!... E como principiassem, logo adiante, as grades do Jardim Botnico, o Baltasar parou para falar ao eco... Adeus! gritou ele. Responde-lhe o eco, numa voz que vinha do infinito: ...Adeus! E, para no falhar a tradio, o Alfredo ainda fez das fraquezas foras, e disse num clamor aqueles dois versos: As armas e os bares assinalados Que da ocidental praia lusitana... E o eco repetiu dali a segundos: As armas e os bares assinalados Que da ocidental praia lusitana... O Baltasar ainda ficou mais triste! Com a voz a tremer de lgrimas, repetiu: Adeus! E o eco, a tremer de lgrimas como se chorasse nele a alma de Coimbra , respondeu de l ao Baltasar: ...Adeus!

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Cuidando que o distraa, quando passavam defronte da rvore do Ponto, o Alfredo da Cunha disse aqueles versos da sua lavra: Que alegria Temos ponto! Que em folia Vo sem conto Pelo ar Mil foguetes A estalar! Tu no metes Medo j A ningum, Cabra m! Inda bem! A alegria E a folia Que no faltem! Bombas saltem Pelo ar A estalar, Sem ter conto! Que alegria, Que folia, Temos ponto! Mas, se mal estava, pior ficou, o Baltasar! Oh, sim, o ponto! E agora para sempre! Para sempre!... Debaixo do S. Sebastio dos Arcos, ainda voltou ao Baltasar a gana de se ir dali a Celas; de Celas a Santo Antnio dos Olivais; de Santo Antnio dos Olivais at ao Penedo da Meditao! Mas o Alfredo tornou a lembrar que no prestava,

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visto de l, o nascer do Sol: Homem! A tarde!... Condescendeu o Baltasar, aniquilado; e quando chegaram ao Castelo, diz-lhe o Alfredo a cair de sono, morto por se ver livre do custico: Bem! Adeus! Vou para casa! ...Acompanho-te! desfechou-lhe ainda o Baltasar; Seguiram os dois, calados: Feira dos Estudantes; Arco do Bispo; Rua do Loureiro onde morava o Alfredo da Cunha... Uf! respirou o Alfredo, aliviado! Deram-se um abrao porta de casa despediram-se: Adeus. Adeus!! Mas o Baltasar a virar costas, e o Alfredo, escada acima, a improvisar j este soneto pardia ao Alma minha gentil que te partiste, do Cames: Letrgico doutor te safaste, Deixando-me em sossego finalmente, Maa todos e tudo em Benavente E viva eu sempre longe, grande traste! Se l, por entre os bois que tu criaste, Coimbra um dia te acudir mente, No te esqueas jamais desta valente Maada sem igual que me pregaste! E se vir que nem pode amedrontar-te Aquele dio que a ti se me arreigou De tantas horas ter que suportar-te, Eu pedirei a Deus que te formou Que to grande eu s torne a lobrigar-te,

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Quo tarde dos meus olhos te levou!

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D. FELICIDADE No tempo em que Antero de Quental andava em Coimbra, dissolvida a clebre Sociedade do Raio pela demisso do reitor Baslio Alberto (visto que a Sociedade do Raio, de que era pontfice mximo o Antero, no tinha outro fim seno demiti-lo), dissolvida a Sociedade do Raio, como ia dizendo, lembraram-se alguns, os mais esturrados, de fundar uma maonaria. Dito e feito! A maonaria no tinha nenhum fim especial, quanto mais urgente; mas os rapazes tinham tomado a embocadura quele pagode de conspiradores, e resolveram muitos continu-lo. Entre os que resolveram continuar o pagode das sesses secretas, dizem-me que Antero e vrios outros, entre os quais Anselmo de Andrade, alugaram uma casa no bairro de Celas, onde seria instalada a loja manica e alugada a casa como se fosse para a mais honesta repblica de estudantes que amassem viver num arrabalde, livres do bulcio da Lusa Atenas, a comearam eles, de noite, a carregar com a moblia simblica para a tal casa! Ora acontecia que, defronte da tal casa, morava um barbeiro linguarudo, como so em geral todos os barbeiros e apurado isso por trs ex-membros do Raio, que no tinham sido de opinio de que sobre as runas vitoriosas daquela sociedade outra se fundasse, manica ou no, a resolvem os trs intrigar a nova loja com o barbeiro. dizendo-lhe dela cobras e lagartos! Os trs eram o Eduardo Segurado, que foi governador civil de Lisboa e agora o juiz do Supremo Tribunal Administrativo; o visconde de Alenquer, que se chamava ento D. Toms de Noronha; e Joo Eduardo Lobo de Moura, agora

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juiz na Relao dos Aores. Tais coisas disseram os trs ao barbeiro de Celas, que o barbeiro fez uma bulha de sete lies em todo o bairro e seus arrabaldes; e, uma bela noite, Celas levanta-se em peso e resolve investir contra a maonaria! Viram o bom e o bonito os tais da loja; e o menos que lhes aconteceu foi estarem encurralados toda a noite dentro de casa e arvorarem de madrugada com os trastes s costas! Tiveram de abater as colunas, como se diz em linguagem manica, e ainda por cima correram para a cidade de madrugada, com os trastes todos da chafarica! Ficou, pois, devoluta a casa de Celas e, como era alegre e bem situada, lembraram-se os rapazes de uma repblica, instalada no Marco da Feira, esquina da Rua dos Lios, no segundo andar de uma casa onde morou e morreu, nos baixos, o clebre alfaiate conhecido pelo nome de S, d c o olho, lembraram-se os estudantes da tal repblica, digo, de arrendar a excomungada casa! Excomungada, digo eu, porque o menos que o barbeiro dizia dela era que l dentro se profanavam todas as noites as sagradas partculas e que os maes alvejavam a tiros um crucifixo! Mas, arrendada a casa, l se instalaram os tais da repblica e instalados e reunidos na primeira noite volta da mesa, para a ceia, no tardou que lhe entrasse pela porta dentro uma mulherzinha, a qual mulherzinha, portadora de um rico pires de marmelada, lhes disse assim: A Sr D. Felicidade, que manda aos senhores muitos cumprimentos e este pirezinho de marmelada para a sobremesa. A Sr D. Felicidade era vizinha de paredes-meias mas essa vizinha de paredes-meias, apuradas as contas logo ali, no passava de uma carcaa velhota, que tinha sido freira em

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Aveiro, no Convento de Jesus, e que em cheiro de freira ali vivia, no meio da gente de Celas! Agradeceram os rapazes portadora, claro, e por ela mandaram este recado a D. Felicidade: Que estava entregue; que lhe ficavam todos muito obrigados, e que pessoalmente lhe agradeceriam a sua ateno. Mas agradecer, como?! Sai a criada e ficam todos a pensar no problema, que, por se tratar de pessoa quase eclesistica, se afigurou a todos de alta etiqueta! E digo quase eclesistica porque D. Felicidade era freira sem voto, meiafreira e inclusivamente podia... casar! O caso era achar com quem! ...Mas, pelos modos, como se viu depois, ela bem sabia que podia casar e at procurava achar com quem! A marmelada era a isca! Deitadas as contas fortuna da repblica, achavam-se ao todo com um pinto redondo, ou fossem 480 ris, que convieram que no chegava para nada e a ideia de comprarem em Coimbra alguma coisa, e de fazerem presente dela a D. Felicidade, foi por isso posta de parte! Mas enfim, era preciso agradecer vizinha e por ser pessoa de qualidade, resolveram, por galanteio, agradecer-lhe em verso! Dito e feito! Cada comensal daria um verso! Comea de l o Antnio de Azevedo Castelo Branco: Este pires de marmelada, E retruca o Francisco de Azevedo Castelo Branco, que foi advogado e agora proprietrio em Portalegre: Sinal da vossa afeio,

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Continua o Lobo de Moura: Foi-nos grato a paladar E fecha a quadra o Porto Miguis, que j morreu: E mais ainda ao corao. Bravo! Mas uma quadra era pouco! V segunda! Saiu menos inspirada, porque enfim o dolo no era de arrebatar, mas saiu assim: torna o Antnio de Azevedo: Alma terna e bem formada Prossegue o outro Azevedo: Como a vossa, anjo do cu, (Ela era Felicidade Ermelinda do Cu; o anjo era favor...) E continua o Lobo de Moura: Por pouco que de si mostre, (Este achava pouco um pires de marmelada...) Fecha de l o Porto Miguis: A si logo outra prendeu! Bastava! Mas quem havia de agora levar as quadras?! Resolveram que as levaria o Antnio de Azevedo Castelo Branco, que tinha um ar de Manfredo, grande gaforina, quase imberbe, e olhar e olheiras romnticas! Deps os versos o Antnio de Azevedo em cima do pires

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da ex-marmelada, e a vai ele, romanticamente, rufar nos vidros da meiga vizinha... ...A qual meiga vizinha, que ele via pela primeira vez e ainda era mais velha do que todos pensavam, e desdentada, no tardou a aparecer janela dando-se ares de virgem, o que ao tempo no era favor, mas pudibunda, o que era algum E como assomasse atrs da ama a cara da criada e o Antnio de Azevedo apresentasse o pires e dentro do pires o bilhetinho, D. Felicidade recebeu o pires e escondeu o papelinho furtivamente Ora as Musas tm feito muitos milagres; mas desta vez no fizeram nenhum! Porque se as boas relaes entre as potncias vizinhas estavam no nimo de D. Felicidade, por uma razo de amor, embora serdio, no nimo dos rapazes estavam elas tambm, mas a por uma razo... de guloseima! O que eles queriam era marmelada! E aquilo, bem tratadinho, podia continuar e convinha, por esse motivo, alimentar o fogo sagrado! Fiel a esta ordem de princpios, que eram, sem excepo, os da comunidade, o Antnio de Azevedo chegou a levar de noite horas seguidas a gargarejar em verso com a D. Felicidade com os mais, escondidos, a morderem as mos para no rebentarem de riso. Dizia assim o Antnio de Azevedo, em toada romntica, para D. Felicidade em seu balco: Ando a cumprir o meu fadrio, Como rato em armrio! E logo a seguir: Deus com ningum se mete, Mas cavaqueia com Garrett?

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No sei qu, no sei qu... ...estava em cima dum penedo E depois veio o Azevedo. E ela muito enlevada, a ouvir a cantata e o Antnio de Azevedo sem despegar: Deus est coberto de arminhos Debaixo duma rvore de passarinhos! E os outros a morderem as mos e os dedos, para no estalarem s gargalhadas e o Antnio de Azevedo na lengalenga! E o criado, o Antnio, tambm coca! Veio a saber-se depois que este criado da repblica, o Antnio, namorava tambm D. Felicidade! O Antnio era casado com a criada, que se chamava Maria, e era o homem mais perigoso e calaceiro que Deus ao mundo deitou! Dizia-lhe s vezes o Lobo de Moura, grande fumador: Antnio, vai-me ali comprar cigarros. Respondia o Antnio, puxando pelos dele: Sr. Moura! Antes quero dar-lhe dos meus do que ir comprar-lhos! Antnio, pe l o jantar na mesa. O Antnio: Maria, pe l na mesa o jantar dos senhores. Era deste feitio e com este feitio foi aproveitado... pela poltica! Nem podia deixar de ser! O Azevedo de Portalegre foi encontr-lo, anos depois, em Condeixa, numas eleies muito renhidas que l houve com o duque de vila, depois da Janeirinha, arvorado em guarda-costas do candidato, que era o

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Quaresma! Antnio! Tu feito valento?! disse-lhe espantado o Azevedo. Que lhe quer, Sr. Doutor?! Do-me seis tostes, e isto a fingir! Pois, sabidas as contas, at o Antnio arrastava a asa a D. Felicidade! Aquilo dava para todos! Ao prprio Antnio de Azevedo, essa paixo pela D. Felicidade no o impedia de cortejar tambm outra vizinha, a Princesa dos Loureiros, tambm romntica e a essa tocavalhe flauta debaixo da varanda! O Francisco de Azevedo dava um tiro com um pistolo (era o sinal); o Antnio de Azevedo embocava a flauta, soprando-lhe com tal gana que faria andar vela uma esquadra e momentos depois, ao piano, a Princesa dos Loureiros, l dentro, dedilhava com sentimento coisas romnticas... Uma delcia! Mas vamos l indo com a histria da outra, que o melhor ainda est para vir! Quis Deus ou o Demnio que D. Felicidade acordasse um dia com muitas saudades do seu convento, e principalmente de certa amiga que l tinha, chamada Balbina! E prevendo que no podia mandar querida Balbina coisa mais tocante que uns doces versinhos, lembrou-se de pedir aos rapazes a versalhada e, podendo ser, que fosse uma dcima! No havia fugir incumbncia, porque lhes podia fugir a marmelada e resolveram, portanto, fazer a dcima! Mas, puxada e repuxada com alma a cordoveia do estro, a dcima no saa! At que o Benjamim da Chamusca, que fora o portador da incumbncia e estava a ares l na repblica, tira-se dos seus cuidados e faz a dcima ele s! A dificuldade estava em que o demnio da estrofe era obrigada a certos tpicos, fornecidos

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pela vizinha; e, desse por onde desse, tinha de dizer que no colo da tal Balbina se reclinava outrora, todas as tardes, D. Felicidade e que desses tempos (ai) tinha saudades! Sai-se com esta o Benjamim e impinge-a dama: Depois que deixei o convento, Meu desejado retiro, Dia e noite suspiro Em ti pondo o pensamento! J no tenho o teu alento que ameigava a triste sina Que me deu o triste fado! Sobre teu peito adorado Minha fronte se no reclina, Longe de ti, cara Balbina! Mas o demnio foi aquela palavra fado no stimo verso! Pareceu esquisita ao pudor de D. Felicidade e qui realista! Escandalizou-se! Os outros, que j receavam a concorrncia do Benjamim e temiam que quando ele voltasse para a sua repblica os pastis de D. Felicidade seguissem atrs dele, entraram todos a dar razo vizinha e a dizer com ela: Que sim! Que fado no era palavra que se escrevesse! Demais a mais, nuns versos para uma senhora! E para uma senhora em convento! Credo! E confidenciavam a D. Felicidade: Mas se ele um estroina! ?! um devasso! Ih!! Olharam roda, no fossem ouvi-los: J bateu no pai!

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Oh!! Benzeu-se trs vezes D. Felicidade, e eles ainda lhe largaram esta: Foi dos que roubaram as pratas do convento de Lorvo... Uh!!! exclamou ela, arrenegando-o! Ficou pronta a D. Felicidade! Rasgou os versos e dali arrumou! Ora, mas a fama da marmelada, mais dos pastis, circulou em Coimbra pela rapaziada! A prpria casa de Celas tinha