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Indivíduo e pessoa na experiência da saúdee da doença

The notions of the person and the individualin the experience of health and illness

1 Museu Nacional,Universidade Federal doRio de Janeiro. Quintada Boa Vista, 20940-040, Rio de Janeiro [email protected]

Luiz Fernando Dias Duarte 1

Abstract This is a review of a research linepresent in Brazilian social science studies abouthealth and illness, characterized by a method-ological emphasis in the cultural distinctionbetween relational models of the “person” andthe modern Western model of the “individual”(conceived as free, autonomous and equal).That distinction is particularly important forthe perception of different forms of the expe-rience of health and illness, mostly betweenworking classes in modern national societiesand the social segments responsible for bio-medical knowledge, as a learned, dominant orofficial ideology. This knowledge is funda-mentally related to the ideology of individual-ism, in its universalistic/rationalistic and phys-icalist/scientificist guises. The complex set ofrepresentations, practices and institutions de-rived from it are systematically opposed to theintegrated, embedded and relational conditionof the experience of illness (or of “physical-moral disturbances”, as I prefer) mostly with-in those groups where hierarchical, relational,models of the “person” prevail. I evoke the an-thropological grounds for this perspective ofanalysis and describe some of the aspects of theacademic production related to it, in compar-ison with other tendencies in the field. Key words Hierarchy, Culture, Health, Indi-vidualism, Personhood

Resumo Revisão de uma linha de pesquisa nocampo das ciências sociais em saúde no Brasilque se centra na hipótese metodológica de umadiferença cultural fundamental entre os mo-delos relacionais de “pessoa” e o modelo do “in-divíduo” ocidental moderno (pensado como li-vre, autônomo e igual). Essa diferença cultu-ral é de particular importância na caracteri-zação das formas diferenciais de experiênciada saúde e da doença entre as classes popularesdas sociedades nacionais modernas e os seg-mentos portadores dos saberes biomédicos eru-ditos, dominantes e oficiais. Estes últimos têmum compromisso originário com algumas ca-racterísticas da ideologia do individualismo,tais como o universalismo/racionalismo e ocientificismo/fisicalismo. As representações,práticas e instituições dela dependentes ocu-pam um espaço de oposição à forma integra-da, relacional, holista, como são pensadas e ex-perimentadas as “doenças” (ou, como prefiro,as “perturbações físico-morais”) mesmo nossegmentos “individualizados”, quanto mais nossegmentos regidos por representações hierár-quicas, relacionais, de “pessoa”. Apresentam-seos fundamentos antropológicos dessa perspec-tiva analítica e as diferentes dimensões da pro-dução acadêmica a ela associada, em compara-ção com as de outras tendências do campo. Palavras-chave Hierarquia, Cultura, Saúde,Indivíduo, Pessoa

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Entre os muitos aportes da antropologia socialao estudo dos fenômenos da saúde/doença fi-gura a relativização cultural da noção de “pes-soa”. Essa relativização advém do procedimen-to canônico da comparação entre as culturas,com a conseqüente generalização de modelosanalíticos que procuram fugir à determinaçãooriginária das representações da cultura oci-dental moderna – esta de onde emergem os sa-beres científicos que cultivamos.

A questão da determinação social ou cultu-ral das representações de “pessoa” já se podiaentrever no pensamento dos pais fundadoresdas ciências humanas no século 19. Em Marx,por exemplo, a localização histórica e a disse-cação analítica da ideologia liberal (como siste-ma de pensamento correspondente à afirma-ção da classe burguesa, agente da hegemoniado modo de produção capitalista) já permitiraentrever a relatividade histórica do valor da “li-berdade”, tão intrínseco à afirmação do modelode pessoa moderna. Em Tocqueville, o esforçode responder ao desafio de compreensão do no-vo estado de sociedade apresentado pela Revo-lução Francesa e pela organização dos EstadosUnidos da América resultou em uma concomi-tante relativização do outro elemento do binô-mio fundador da ideologia moderna da pessoa:a “igualdade”.

A nascente experiência etnológica, decor-rente da possibilidade de comparação contro-lada de informações sobre os sistemas de repre-sentação e organização das diferentes socieda-des, juntou-se à erudição dos estudos clássicose ao afiado sentido histórico dos românticospara produzir uma crescente inquietação e pes-quisa sobre os conceitos estruturantes de nos-sa cultura. O parentesco, a religião, o direito, aorganização política, a lógica abstrata, os siste-mas de conhecimento empírico, a economia;tudo foi pouco a pouco sendo submetido aocrivo de uma comparação crítica. Uma primei-ra solução para o enigma da pluralidade dasformas culturais (pela primeira vez observadascomo entes de identidade plena) garantiu, po-rém ainda, a preservação da crença na preemi-nência de nossos valores culturais através domodelo evolucionista. As outras formas de re-presentação e organização agora observadas edescritas consistiam em estágios inferiores doestado atingido pela “civilização” – pela nossa“civilização”. Embora o horizonte evolucionis-ta ainda paire por sob o pensamento dos gran-des mestres da passagem do século 19 ao 20 elejá vai cedendo ao peso de uma análise crítica

mais aguda e da ênfase crescente na compreen-são interna dos sistemas em sua singularidade(o historicismo, o organicismo e o método clí-nico oferecendo as imagens estruturantes dofuncionalismo e do estruturalismo).

O primeiro texto explícito sobre o que sepode chamar hoje de “construção social da pes-soa” é o de Marcel Mauss sobre a “noção de pes-soa”, publicado em 1938 (Mauss, 1973). Nes-se brilhante exercício de continuidade da tare-fa a que se tinha proposto a Escola SociológicaFrancesa de ancorar na análise sociológica as“categorias do pensamento humano” da tradi-ção kantiana e aristotélica, Mauss ampara-seainda num esquema evolucionista de revelaçãoe agregação progressiva dos componentes dapessoa moderna para projetar finalmente asombra da figura, em toda sua súbita especifi-cidade, contra o pano de fundo dos outros mo-delos culturais trazidos à comparação. Por essaépoca, treinados pelo culturalismo de Boas einfluenciados pelo descentramento do sujeitoda psicanálise de Freud, surgiam nos EUA osprimeiros trabalhos do que veio a se chamar aEscola de Cultura e Personalidade, que tam-bém contribuiu estrategicamente para o em-preendimento geral de análise comparada dasformas de pessoa.

Um pouco antes de Mauss produzir o textocitado, seu mestre Durkheim publicara um tex-to circunstancial de pouca ressonância na épo-ca, mas que pode ser hoje considerado um dosprimeiros a nomear em seu pleno sentido so-ciológico uma categoria analítica importantepara a compreensão das formas modernas dapessoa: o “individualismo” (Durkheim, 1970).Durkheim ressaltava como essa categoria oni-presente na caracterização da modernidadecarregava uma ambigüidade instauradora efundamental: designava uma categoria de acu-sação a tudo que parecia corroer a antiga soli-dariedade social, um “egoísmo” coletivo mo-derno, ao mesmo tempo em que abarcava osmelhores valores associados à cidadania re-publicana, como as preeminentes liberdade eigualdade. Desenhava-se assim com maior ni-tidez o retrato do que Louis Dumont chamariamais tarde a forma moderna da pessoa: o indi-víduo.

Radcliffe-Brown, um dos expoentes da an-tropologia social britânica, expôs com muitanitidez a forma mais simples da oposição entreas categorias “pessoa” e “indivíduo” em 1940,em um artigo sobre “a estrutura social”: Todoser humano vivendo em sociedade tem dois as-

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pectos: ele é indivíduo, mas também pessoa. Co-mo indivíduo, ele é um organismo biológico, umconjunto muito vasto de moléculas organizadasem uma estrutura complexa em que se manifes-tam, enquanto ele persiste, ações e reações fisioló-gicas e psicológicas, processos e mudanças. (...) Oser humano como pessoa é um complexo de rela-ções sociais (Radcliffe-Brown, 1973). Nessa fór-mula, o indivíduo se apresenta apenas em suacondição de instância “infra-social” (Duarte,1986b), como mero substrato concreto para aimposição do estatuto social. Já fica porém ab-solutamente claro que “pessoa” designa – comono texto de Mauss – uma unidade socialmen-te investida de significação. Essa fórmula ecoa,na verdade, a teoria do Homo duplex de Dur-kheim, ao mesmo tempo amarrado a sua cor-poralidade imediata e fechada – por um lado –e dedicado à busca da efetivação dos ideais mo-rais que lhe atribui sua cultura – por outro.

Uma outra frente de contribuição ao nossotema foi construída no âmbito da cultura ger-mânica, estruturada em torno da filosofia ro-mântica, com sua ênfase ontológica na “singu-laridade”. Entre as muitas contribuições funda-mentais desse movimento, avulta, para nossosfins, a formulação e utilização analítica do con-ceito de Bildung (autocultivo pessoal). Toda apsicologia e a sociologia românticas foram en-riquecedoras dessa pesquisa sobre indivíduo/pessoa, mas a obra de Georg Simmel tem aí pre-eminência pela clareza e explicitação de suaspropostas. A principal foi a da distinção entreum “individualismo quantitativo” e um “in-dividualismo qualitativo”. O primeiro se en-contraria no ideário universalista, iluminista,de afirmação da liberdade, igualdade e autono-mia dos sujeitos sociais – os “cidadãos” das de-mocracias modernas. O segundo, no ideárioromântico (ele não usava esse qualificativo) dasingularidade, interioridade, intensidade, au-tenticidade e criatividade dos sujeitos da cultu-ra. O conceito de “cultura subjetiva”, tambémpor ele formulado, permitia compreender osentido dinâmico e afirmativo da presença domodelo do “indivíduo qualitativo” em nossatradição cultural (Simmel, 1971).

A partir dos anos 1960, um antropólogofrancês dedicado ao estudo da sociedade india-na, Louis Dumont, começou a publicar umasérie de trabalhos voltados para a explicitaçãodos “embaraços sociológicos” decorrentes danossa “ideologia do individualismo” para acompreensão das demais experiências culturais(cf., sobretudo, Dumont, 1972, 1985). Ele veio

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a resumi-los na oposição entre as ordens tradi-cionais de construção da “pessoa” – definidascomo eminentemente relacionais e socialmen-te determinadas –, e o modelo moderno do“indivíduo” – com sua aspiração a liberdade,igualdade, autonomia, autodeterminação e sin-gularidade (“hiper-social”, portanto). Dedicou-se Dumont eventualmente à demonstração dahistória dessa configuração de valores, até suahegemonia na configuração contemporânea da“cultura ocidental moderna”. Paralelamente,ele procurou produzir uma teoria da “hierar-quia”, como princípio estruturador dos siste-mas sociais e visões de mundo em que prevale-cem representações de “pessoa”. Esses sistemasforam chamados por ele de “holistas” (ou seja,relativos à totalidade), para chamar a atençãopara o caráter apriorístico e totalizante de suascosmologias. Dumont preocupou-se bastantecom a possibilidade de confusão do seu esque-ma analítico com a oposição de senso comumentre “tradição” e “modernidade”. Para ele, em-bora os sistemas ditos “tradicionais” sejam efe-tivamente caracterizados pela preeminência doholismo e da hierarquia, e o sistema dito “mo-derno” pela hegemonia do “individualismo”,a proposta de uma conceptualização analíticamais rigorosa permite perceber tensões inter-nas a cada sistema concreto decorrentes da di-nâmica complexa do princípio da hierarquiaem confronto com tendências ou forças sociaisindividuantes ou individualizantes. Isso é tantomais verdadeiro nas sociedades ditas “moder-nas”, em que a vigência do princípio da hierar-quia – apesar de sofrer uma contínua desquali-ficação e oposição – não se interrompe, ense-jando uma série de efeitos ideológicos e histó-ricos fundamentais. As sociedades “modernas”não podem ser assim linearmente descritas co-mo “individualistas”, mas sim como referidas à“ideologia do individualismo”, em intensidadee formas que só a análise empírica pode deter-minar. Do mesmo modo, algumas sociedades“tradicionais” (aí incluída a cultura ocidentalpré-moderna) não podem ser compreendidassenão pela análise concreta das combinações etensões entre sua estrutura hierárquica funda-mental e a presença de disposições individuali-zantes. Outras, do tipo vulgarmente descritocomo “tribais”, obedecem a dinâmicas tão com-plexas quanto estranhas ao poder operatóriodesse modelo.

A noção de “hierarquia” em Dumont é mui-to precisa, afastando-se de algumas de suas co-notações contemporâneas de senso comum.

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Ele a entende como o princípio pelo qual toda aexperiência humana (intelectual ou prática)pressupõe uma distribuição diferencial (cultu-ralmente definida) do “valor” no mundo, quepermite justamente a orientação do sujeito emsituação. Podemos dizer que Dumont casa oprincípio das “formas de classificação” do fa-moso artigo de Durkheim & Mauss com o prin-cípio da marcação diferencial pelo “sagrado”(essencial ao argumento das Formas elemen-tares da vida religiosa de Durkheim) ou pelomana (base do ensaio sobre a magia de Mauss& Hubert). O argumento de Dumont não é po-rém mais tão pesadamente sociogenético quan-to o de Durkheim; sua proposta se aproximamais, pela abstração, do modelo da “significân-cia flutuante”, proposto por Lévi-Strauss em1949, como chave para a compreensão da vidasimbólica (Lévi-Strauss, 1973). Mais de umavez, Dumont evoca, como exemplo de sua pro-posta, o artigo de Robert Hertz sobre a “pree-minência da mão direita”, em que se demons-tra a necessidade universal de uma sobremar-cação simbólica, de uma adjudicação diferen-cial de valor cultural, para além de uma possí-vel tendência anatômica à dextralidade no serhumano. O último ponto mais abstrato dessaproposta teórica de Dumont é o da dissociaçãoentre “hierarquia” e “poder”. Como ele subli-nha, a distribuição diferencial de valor na so-ciedade não implica necessariamente “domi-nação” e “exploração” (categorias estruturantesdas idéias individualistas de “poder”, “Estado” e“classe social”). Seu exemplo predileto é o dascastas indianas, em que a preeminência hierár-quica (sustentada pela ideologia da pureza) in-cumbe aos brâmanes, enquanto o poder políti-co (da realeza, por exemplo) incumbe aos cha-trias – segundos, e não primeiros, na ordemcosmológica maior.

Um dos aspectos mais notáveis da propos-ta de Dumont é o da não linearidade da opo-sição entre os dois termos em questão. Comoressalta o autor, todas as sociedades são essen-cialmente holistas, na medida em que têm quepressupor um agenciamento de sentido, umacosmologia, a priori e que têm de se fundar emalgum tipo de ordem relacional nas suas for-mas societárias efetivas. As sociedades influen-ciadas pela ideologia individualista têm comoideal algum tipo de superação ou inversão des-se esquema universal. Mas, embora essa pre-tensão seja imensamente significativa, tanto emtermos simbólicos quanto políticos, ela nãoabole as condições referidas, apenas as atualiza

de modo paradoxal, afirmando como valor to-talizante a priori a negação e recusa da totalida-de e construindo sua dinâmica na relação entresujeitos que se desejam autônomos, indepen-dentes e originais.

Essa chave interpretativa foi apropriada noBrasil de forma bastante abrangente e original,em comparação com a fortuna quase exclusi-vamente etnológica das teorias de Dumont noexterior. Roberto Da Matta e Gilberto Velho in-cluíram seu esquema em interpretações hojeclássicas da dinâmica societária nacional (DaMatta, 1979; Velho 1981), assim como muitosoutros autores posteriores. Roberto Da Matta oexploraria de um ponto de vista juralista in-glês, enfatizando o potencial político das con-cepções conflitantes de “indivíduo” e de “pes-soa” numa sociedade como a brasileira, em quea preeminência da relacionalidade manteriasubordinada, limitada e praticamente negativa,a experiência da individualização. Gilberto Ve-lho leria o modelo dumontiano à luz das cita-das propostas de Georg Simmel e dos herdeirosnorte-americanos da sociologia romântica ger-mânica, explorando, pelo contrário, a constru-ção de carreiras e trajetórias individualizantesnos meios urbanos, “modernizados”, do Brasil.

Já em Gilberto Velho, mas, sobretudo, emSérvulo Figueira, viu-se a proposta dumontia-na aplicada à compreensão da difusão dos sabe-res psicológicos no mundo moderno (e parti-cularmente na sociedade brasileira) e, portan-to, também à área das perturbações ou doen-ças mentais (Velho, 1981; Figueira, 1981, 1985 e1987). Tratava-se certamente da primeira ex-ploração do esquema indivíduo/pessoa para acompreensão da experiência da saúde/doen-ça. Jane Russo logo viria a explorar também opotencial do modelo para a compreensão dadifusão diferencial das terapêuticas psicoló-gicas no Brasil (Russo 1993, 1994, 1997). Eupróprio procurei utilizar, nesse período, o po-tencial da história do individualismo e da teo-ria da hierarquia para o entendimento das for-mas da pessoa e da perturbação nas classes po-pulares brasileiras, sobretudo no tocante às re-presentações do nervoso (Duarte, 1982, 1986a,1992, 1993, 1994, 1995, 1997a, 1997b, 1998a e1998b). Consolidava-se assim no Brasil umalinha de trabalho que aproximava o esquema“indivíduo x pessoa” das discussões tradicio-nais sobre doença/saúde nas ciências sociais(para uma história e localização no campo in-telectual desse veio da antropologia brasileiracontemporânea) (Duarte, 2000a e 2000b).

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Essa linha de pesquisa dedicou-se porém –no amplo leque das experiências de saúde/do-ença – sobretudo ao que chamo de “perturba-ções físico-morais”, ou seja, às condições, situa-ções ou eventos de vida considerados irregula-res ou anormais pelos sujeitos sociais e que en-volvam ou afetem não apenas sua mais ime-diata corporalidade, mas também sua vida mo-ral, seus sentimentos e sua auto-representação.Assim, um acidente de trânsito, embora pos-sa afetar profundamente a vida moral de suasvítimas (além de seus corpos), não é visto emnossa cultura, em princípio, em si mesmo, co-mo “físico-moral”. A eventual experiência deseqüelas ou traumas – essa sim – será certa-mente expressiva dessa tensão. Não há, por ou-tro lado, em nossa cultura, praticamente ne-nhuma possibilidade de se vivenciar uma per-turbação exclusivamente “moral”. Alguma di-mensão da corporalidade acaba sempre com-prometida nessa vivência, mesmo que repre-sentada como um deslocamento ou afecção se-cundária. As doenças chamadas de “mentais”ocupam certamente um lugar preeminente nes-sa ordem de fenômenos, por se desenvolveremjustamente a cavaleiro da discutida fronteiraentre o “moral” ou “psicológico” (expressão na-tiva preferencial dos portadores das representa-ções modernas individualizantes). Certas con-dições corporais muito peculiares como as quese relacionam com a “reprodução” e a “contra-cepção” humanas participam igualmente dessehorizonte analítico, por suas óbvias e gravesconotações morais (Leal, 1994; Leal & Lewgoy,1995; Victora, 1995 e 1997; Paim, 1998; Luna1999; e Citeli et al., 1998). Muitas doenças “físi-cas” apresentam, por outro lado, característi-cas vivenciais suficientemente intensas ou pro-longadas para merecerem a atenção integrada aque se procura referir o conceito de “perturba-ção físico-moral” (Ferreira, 1998). Hoje em dia,a soropositividade e a Aids certamente ocupamum lugar de relevo nesse quadro, por colocaremem jogo dimensões vivenciais muito críticas,em função de sua associação com a sexualida-de, com a moralidade e com a responsabilidadeindividual sobre a Aids no Brasil, na perspec-tiva aqui resenhada (Guimarães, 2001; Schuch,1998; e Knauth, 1991, 1995 e 1996). Todas as do-enças venéreas, crônicas, degenerativas e infec-ciosas compartilham, também, de dimensõesmorais preeminentes – a par de suas implica-ções físicas (Borges, 1998; Gonçalves, 1998).

Uma outra dimensão estruturante dessa li-nha de trabalho tem sido a de testar a hipótese

defendida por mim desde 1986 de que as for-mas de construção da pessoa nas classes popu-lares brasileiras não obedecem aos princípiosda ideologia do individualismo. O fio centralda argumentação repousa justamente na de-monstração do nervoso como “perturbação fí-sico-moral” estruturante nesses meios cultu-rais, expressiva de uma ordem relacional, hie-rárquica, resistente ao diversos mecanismos deindução à adoção do modelo do “indivíduo”prevalecente nos meios letrados e dominantesde nossa sociedade. A representação do nervo-so popular ocuparia, de certa forma, o lugar de-marcado pela concepção de um “psiquismo”,de uma interioridade psicológica, naqueles ou-tros meios culturais. Essa hipótese se coaduna-va com a demonstração da afinidade entre omodelo do indivíduo moderno (como valor) eas representações psicologizadas, particular-mente as da psicanálise (Velho, 1981; Figueira,1985; Ropa & Duarte, 1985). A maior parte dostrabalhos aqui citados como exemplares de in-vestigação do potencial heurístico de indiví-duo/pessoa para a compreensão dos fenôme-nos da saúde/doença foi assim realizada emcontextos populares, tentando responder aosgraves desafios apresentados pela relação entreas representações individualizadas ou indivi-dualizantes dos agentes da biomedicina e as re-presentações holistas dos pacientes dos ambu-latórios, clínicas, hospitais e demais serviços desaúde públicos.

São numerosos hoje os trabalhos que pro-curam compreender a dinâmica das classifi-cações, instituições e serviços de saúde sob es-se prisma (por exemplo, Carrara, 1995; Bonet,1999; Oliveira, 1998; Menezes, 2000; Chazan,2000; Carvalho, 2001; Rohden, 2001; Rojo,2001; Caretta, 2002 e Azize 2002). Embora cu-bram um leque muito amplo de focos etnográ-ficos, todos têm em comum a disposição emesclarecer como se processa essa dinâmica deafirmação da racionalização biomédica em con-traste com as dimensões holistas da representa-ção ou vivência dos eventos de saúde/doença.Alguns se debruçam sobre situações imediatas,revelando confrontos de visão de mundo tãoinconvenientes para os pacientes quanto paraos profissionais comprometidos com sua fun-ção terapêutica. Em outros casos, esse trabalhopassa pela recuperação de uma história “racio-nalista” do desenvolvimento das ciências natu-rais que sustentam a criação da medicina mo-derna. E, com isso, passa a compreender a ten-são entre a definição segmentada das ordens de

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realidade observadas e descritas (cada nível darealidade material explicado por uma discipli-na e seus cânones específicos) e a expectativapermanentemente renovada de atendimento auma demanda terapêutica global ou integrada.O desenvolvimento do “método clínico” é o re-sultado de um engenhoso compromisso entrea segmentação dos domínios científicos e oolhar interpretativo sobre o corpo, seus sinais esintomas (o que Foucault chamou de “conheci-mento singular do indivíduo doente”) (Fou-cault, 1963). A segmentação dos domínios desaber é um dos estímulos originais ao que seveio a chamar de “especialização” médica, re-produzindo no nível das técnicas e da organi-zação da prática médica o mencionado efeitode dissolução da totalidade da experiência dasaúde/doença. Parte das críticas crescentes a es-se efeito se fundamenta justamente na lingua-gem de defesa da “pessoa” ou da “personaliza-ção” – ou seja, de uma atenção à totalidade ousingularidade do doente e de sua vivência.

Uma outra dimensão do “cientificismo” in-trínseco à constituição da biomedicina é a doseu irredutível “fisicalismo”. Todo o empreen-dimento científico de nossa cultura decorre dadenúncia das cosmologias holistas, totalizan-tes, e a própria emergência da racionalidademoderna se representa atrelada à superação das“superstições”, das representações “mágicas” ou“religiosas” que envolvem a experiência da per-turbação ou doença em todas as demais cultu-ras. O processo de constituição da identidadeda biomedicina é assim visto como uma longamarcha em direção à transparência da nature-za, perturbada aqui e ali pelas resistências da ig-norância ou do obscurantismo. Há toda umahistória específica do desenvolvimento de umsaber médico das “doenças mentais” – ela pró-pria uma categoria cultural muito significativa(Duarte, 1994). A psiquiatria (ou fenômenosassociados a sua presença social, como o Movi-mento dos Trabalhadores de Saúde Mental oua Reforma Psiquiátrica) tem merecido assimdiversos estudos contemporâneos, instruídospela perspectiva crítica aqui apresentada (porexemplo, Venâncio 1997, 1999, 2000, 2001; Lou-gon 1998; Leal 1999; Henning 1998; Verztman1995; Russo 1993, 1994, 1997, 1998). Essa pers-pectiva analítica tem hoje um particular inte-resse na tensão entre versões mais organicistasou fisicalistas do sujeito e de suas perturbaçõesfísico-morais e versões “psicogênicas”, ou seja,que postulam uma dinâmica e causalidade es-pecíficas para esses fenômenos. A psicanálise

representou freqüentemente o pólo mais típicodessa especificidade, pelo seu explícito distan-ciamento da cosmologia fisicalista e pela suaproposta de uma terapêutica simbólica e rela-cional.

Como todas as instituições públicas em nos-sa cultura, as que se ocupam da medicina e saú-de sofrem, além do mais, os efeitos da “racio-nalização” instrumental baseada na segmen-tação dos saberes e domínios de prática. Issotem implicado a criação de serviços cada vezmais especializados, em que prevalece a aten-ção a dimensões isoladas dos “doentes” ou das“doenças”. Se o “hospício” ou “asilo de loucos”encarnou na história de nossa cultura a separa-ção e segmentação médica em seu formato maisantiquado, duro, coletivo, o “hospital” moder-no atualiza essa tendência sob formas brandase tecnicamente irrepreensíveis. Os CTIs pare-cem representar a forma mais aguda da ten-dência, no radical isolamento a que submetemseus usuários, em circunstâncias e condiçõesfreqüentemente vividas ou representadas como“desumanas” ou “despersonalizantes” (Mene-zes, 2000).

É preciso ressaltar que, no Brasil, esses de-senvolvimentos implicaram associações doesquema analítico “indivíduo/pessoa” com al-guns aspectos da obra de Michel Foucault. Em-bora suas obras mais epistemológicas possamter muitos pontos de contato com a história doindividualismo e do universalismo, tal comoconcebida por Dumont, as apropriações dire-tas foram feitas com suas obras mais históricas.A história da loucura na era clássica já conti-nha uma reflexão sobre a emergência do sujeitomoderno e suas instituições dedicadas, associá-vel ao empreendimento de relativização do va-lor-indivíduo e particularmente esclarecedo-ra sobre a história das perturbações físico-mo-rais. Vigiar e punir e a História da sexualidadeI foram porém muito mais diretamente apro-priáveis, ao aprofundarem de modo radical edesafiador a investigação sobre os mecanismosideológicos e políticos da constituição dos su-jeitos modernos. Foucault deteve-se aí longa-mente sobre as instituintes propriedades de“individualização” dos mecanismos disciplina-res modernos e do “dispositivo de sexualidade”.Essa apropriação não se fez – é verdade – semalguma violência quanto aos pressupostos epis-temológicos maiores do pensamento foucaul-tiano, notoriamente avesso a uma atitude uni-versalista sistemática e comparada. O potencialde confluência explorado pareceu, porém, se

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autorizar mais explicitamente pelos dois volu-mes seguintes e finais de sua “história da sexua-lidade”, em que a distância cultural mesma dosmateriais analisados veio a permitir uma inter-pretação mais antropológica de sua pesquisa.Essa inflexão do pensamento de Foucault foiprenunciada em um importante artigo escri-to com Richard Sennett em 1981 (Foucault &Sennet, 1981). É possível ler aí uma explícitacontribuição ao conhecimento da complexida-de das formas da pessoa na tradição ocidental,numa verdadeira “genealogia” do ideal do indi-víduo.

Convém neste ponto esclarecer uma di-mensão mais abstrata do movimento de idéiasaqui resenhado, a da sua fundamentação epis-temológica abrangente, que a distingue de ou-tras tendências dos estudos sociais de saúde/do-ença no Brasil e no exterior. O primeiro pon-to a ressaltar é o do seu caráter fundamental-mente “universalista”, ou seja, voltado para aprodução de modelos de ambição abrangente,que procuram envolver os estudos empíricospontuais em malhas interpretativas maiores. Aaplicação dessa perspectiva em antropologia secaracteriza pelo método comparativo, isto é, abusca de aproximações e afastamentos entre osdiversos elementos das unidades de significa-ção (e os códigos de sua estruturação interna),com vistas a eventuais juízos de universalida-de. Esse “universalismo” se tinge de “romantis-mo”, porém, ao pressupor uma inescapável sin-gularização do pensamento e experiência hu-manos nessas “unidades de significação” a quechamamos habitualmente de “culturas”. O maisimportante corolário desse pressuposto é o daconsciência do caráter radicalmente relativo detodo esse empreendimento, justamente por serculturalmente localizado. Todas nossas ambi-ções universalistas – inclusive as científicas – seancoram nos pressupostos ideológicos de nos-sa cultura específica e jamais escapam dessa de-terminação original. Chamo a essa estranha in-junção um “universalismo romântico” e a con-sidero a via régia do conhecimento antropoló-gico (Duarte, 1999).

Uma segunda característica fundamentalé a da preeminência da significação sobre aprática na dinâmica da interpretação socioló-gica. Considera-se assim essa via herdeira datradição durkheimiana de ênfase no estudo das“representações sociais” como caminho privile-giado de compreensão de todos os fenômenossociais, de acesso mesmo aos dados de “morfo-logia” e “dinâmica”. Mas se nutre, sobretudo, da

versão “estruturalista” do universalismo fran-cês, ao pressupor a existência de uma ordemfundamental no pensamento humano subja-cente à diversificação cultural, de que nos po-demos aproximar tentativamente através dasistemática interpretação antropológica dosdados empíricos comparados. É assim possívele conveniente que a pesquisa e reflexão cientí-ficas proponham modelos interpretativos dessa“realidade”, por mais que infletidos pela cons-ciência das propriedades do intérprete/obser-vador. Isso implica o equilíbrio entre um “cons-trucionismo” e um “realismo”: todo ato huma-no é culturalmente “construído” e determina-do, mas nem por isso deixa de ser eficaz e “real”.Muito pelo contrário, sua “naturalização” sim-bólica lhe adjudica a mais veraz das materiali-dades.

A categoria “experiência” no título deste ar-tigo não deve fazer supor uma continuidadecom os estudos hoje explicitamente dedicadosà “experiência de saúde/doença”. A experiênciadas perturbações é – para mim – certamenteuma dimensão crucial de sua realidade, sem lheconceder, porém, privilégio ontológico ou gno-seológico sobre o “sentido” ou “significação”.Há hoje, todavia, uma amplamente dissemina-da disposição em privilegiar a “ação”, a “práti-ca” ou a “agência” no jogo social, em detrimen-to das análises que partem das idéias, represen-tações ou categorias de pensamento. Essa dis-posição faz parte de uma retomada muito ge-neralizada do “romantismo” em combinaçãocomplexa com o “empirismo”, em oposição àlonga preeminência do universalismo (sobre-tudo em sua versão estruturalista) no pensa-mento do século 20. Os conceitos oitocentistasromânticos de Erfahrung (experiência), Erleb-nis (vivência) ou Verstehen (compreender) res-surgem assim renovados pelas ambições de pro-dução de um conhecimento pontual, tópico,voltado para a “singularidade” mais do que pa-ra a “universalidade”, para a “intensidade” maisdo que para a “racionalidade” e para a “com-preensão” mais do que para a “explicação”.

Essa outra vertente dos estudos de saúde/doença tem oferecido importantes contribui-ções etnográficas ao tema, contribuindo, juntocom as perspectivas “estruturalistas”, para umdeslocamento dos horizontes – mais antigos nocampo – de interpretação desses fenômenoscomo reflexo das condições de “dominação po-lítica” e “exploração econômica”. Embora osefeitos da diferenciação social sejam uma partepreeminente das determinações culturais em

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que se reproduzem todos os segmentos sociaisnas sociedades complexas, eles são sempre me-diados por esses códigos e não podem aspirarassim a uma causalidade linear na interpreta-ção. A própria denúncia da dominação de clas-se é um efeito de uma versão da ideologia do in-dividualismo, primordialmente comprometi-da com a “igualdade” em oposição ao chamado“liberalismo”. É extremamente importante le-var em conta essa ideologia, pois ela não inspi-ra apenas uma linha de interpretação dos fenô-menos da saúde/doença, mas participa inten-samente da dinâmica institucional das cha-madas “políticas públicas”, buscando estender,intensificar ou qualificar os recursos de atendi-mento médico ou sanitário às populações ca-rentes. Têm assim um papel extremamente em-preendedor em muitos aspectos das complexasrelações entre os aparelhos de Estado e a vidasocial; em contrapeso às implicações excluden-tes das políticas “liberais”. Em muitos casos,porém, seu generoso impulso universalista levaà apologia linear da “individualização” no tratocom as classes populares e seus complexos mo-dos de ser “pessoa”, ensejando delicados emba-tes, desgastes e impasses (Caretta, 2002; paraum exemplo recente).

A aplicação de um esquema interpretati-vo linear associado à “dominação” é uma dastendências internas da Medical Anthropologynorte-americana – o que ali se chama de ten-dência critical. Trata-se de um dos muitos as-pectos de um movimento amplo e importan-te de análise dos fenômenos de saúde/doença,caracterizado – a meu ver – sobretudo pela ten-dência à reificação, seja ela do tipo “biomédi-co”, “culturalista” ou “marxista”. Minha crítica àliteratura produzida nesse âmbito sobre a “sín-drome dos nervos” resume as objeções que melevam a uma oposição sistemática a uma im-portação direta da categoria “antropologia mé-dica” para o interior do campo brasileiro de ci-ências sociais em saúde (Duarte, 1993). A in-sensibilidade à percepção dos múltiplos efeitosda ideologia do individualismo e do universa-lismo científico (particularmente biomédico)sobre as condições da apercepção sociológicageral, que é muito característica do pensamen-to universitário médio norte-americano, seriaparticularmente danosa para a compreensão deuma sociedade como a brasileira, em que avul-ta de tal modo a presença de modelos relacio-nais de pessoa.

A contribuição da linha de trabalho aquiresenhada no âmbito dos estudos sociológicos

e antropológicos sobre saúde/doença já me-receu referências em resenhas técnicas dessecampo. Lembro particularmente as de Canes-qui (1994), Diniz (1997) e Minayo (1998). Ovolume 12 de Curare, editado por Annette Lei-bing e dedicado à “antropologia médica no Bra-sil”, incorpora contribuições de diversos auto-res aqui citados. Minha contribuição à utiliza-ção analítica do esquema “indivíduo/pessoa”na compreensão da cultura das classes popula-res foi utilizada de maneira criativa e críticapor Pablo Semán em seu trabalho sobre reli-giosidade e perturbação na Argentina (Semán,2000a e 2000b).

Essa menção me sugere sublinhar final-mente a importância da confluência desta li-nha de pesquisa sobre doença/saúde com a dosestudos sobre “religião”. Efetivamente, essasduas dimensões da vida social mantêm íntimosentrelaçamentos, tanto pelo lado das estruturascosmológicas a que correspondem necessaria-mente, quanto pela integração prática em “sis-temas de cura” e “trajetórias terapêuticas”, emque fatos vividos ou classificados como religio-sos se misturam a fatos vividos ou classificadoscomo médicos, psicológicos ou psiquiátricos.Todos os estudos pioneiros sobre as condiçõesdo pensamento mágico colocam em cena aoposição pessoa/indivíduo; se não explicita-mente, pelo menos alguns dos traços compo-nentes desse modelo, como a “racionalidade”ou a “relacionalidade”. Vamos vê-los particu-larmente esclarecedores em Lévy-Brühl, MaxWeber ou Evans-Pritchard, por exemplo. Nãocabe aqui resenhar, porém, a herança total des-sa orientação. No Brasil, pode-se encontrar di-versos estudos de fenômenos religiosos explici-tamente influenciados pela linha de investiga-ção do “indivíduo/pessoa”, como os de Maués(1994), Rodrigues (1995), Rodrigues & Caroso(1998) ou Barroso (1999).

A experiência da saúde/doença interpela aintegralidade da identidade pessoal – comotodas as ocorrências a que os ingleses chamamde “afflictions” – impondo, portanto, ações ereações mobilizadoras de sentido. O fato de se-rem elas alternativamente peregrinações, pro-messas, conversões e sacrifícios ou consultas,exames, operações, dietas ou transplantes – ouainda tudo isso alternada ou concomitante-mente – põe em cena horizontes de significa-ção e princípios de ação complexos e diferen-ciados que o esquema analítico da “pessoa/in-divíduo” ajuda a compreender em nossa socie-dade.

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Artigo apresentado em 20/6/2002Aprovado em 12/8/2002Versão final apresentada em 9/9/2002