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Ines Pedrosa - Desamparo

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DESAMPARO

InêsPedrosa

D.Quixote

EdiçãodigitaldaBibliotecaMunicipaldeVianadoCastelowww.biblioteca.cm-viana-castelo.ptE-mail:[email protected]çãoerevisão:ServiçodeLeituraEspecialdaBiblioteca

MunicipaldeVianadoCastelo©2015,InêsPedrosaePublicaçõesDomQuixoteEdição:CecíliaAndradeRevisão:ClaraJoanaVitorino1ªedição:Fevereirode2015

Depósitolegalnº386022/14ISBN:978-972-20-5669-4

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SobreaAutora:InêsPedrosanasceuem1962.LicenciadaemCiênciasdaComunicaçãopelaUniversidadeNovade

Lisboa,trabalhounaimprensa,narádioenatelevisão.DirigiuarevistaMarieClaireentre1993e1996.Foi directora da Casa Fernando Pessoa entre 2008 e 2014. Mantém desde há 13 anos uma crónicasemanal, primeiro no semanárioExpresso e actualmente no semanário sol. Tem22 livros publicados,entreromances,contos,crónicas,biografiaseantologias.Asuaobraencontra-sepublicadanoBrasil,emEspanha,emItáliaenaAlemanha.

Romances (todospublicadospeladomquixote):AInstruçãodosamantes,NasTuasMãos (PrémioMáxima de literatura), Fazes-me Falta, A Eternidade e o Desejo, Os Íntimos (Prémio Máxima deLiteratura)eDentrodetiVeroMar.

Contracapa:A sagadeumamulher que foi levadado colo damãepara oBrasil aos três anosdeidadeeregressaparaaconhecermaisdecinquentaanosdepoiséopontodepartidadesteextraordinárioromancedeInêsPedrosa.

Numaescritainteligente,límpidaeplenadehumor,aautoracriaumuniversosingular,umaaldeiaemque se cruzampersonagens e histórias de vários continentes. Emigrações e imigrações de ontem e dehoje,seressolitárioseescorraçadosqueprocuramnovasformasdevida,enquantotentamsobreviveràmaiordepressãoeconómicadasúltimasdécadas.

Oamor,atraição,opoder,ainveja,ociúme,aamizade,ocrime,omedo,avingançaesobretudoamorteatravessamestelivroquefazaradiografiadoPortugalcontemporâneo,numenredocheiodeforçaeoriginalidade.

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ÀmemóriadeElisaLopesdosSantos

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Lagrandeurdel’artn’estpasdeplanerau-dessusdetout.Elleestaucontraired’êtremêléàtout.

ALBERTCAMUS,GARNETSIIIAgora eu conheço o grande susto de estar viva, tendo como único amparo exactamente o

desamparodeestarviva.CLARICELISPECTOR,ADESCOBERTADOMUNDO

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1-VistapanorâmicaUm silêncio em bruto, como se o torno domundo não tivesse ainda começado a rodar.Manchas

estáticas de verde, pomares interrompidos por casas brancas, amarelas, algumas— poucas— compórticosemferrolavrado,escadariasflanqueadasporleõesoujarrõesdepedra,doisandaresepátiosondeaofim-de-semanaestacionarãoautomóveisurbanos.Nemoscãesladramdebaixodacanícula.Ospássaros desistiram de voar. Na aldeia de Arrifes, concelho de Lagar, milenar dote de princesas erainhas,nadasemove.AcarrinhadoCentroSocial jáfezoseuturno,pelasnovedamanhã,comduasmulheresdebata azul, para ajudarosvelhosquevivemsós a levantarem-se, lavarem-se,vestirem-se,dar-lhesopequeno-almoçoeamedicaçãoedeixar-lhesoalmoço.Voltaráameiodatardecomojantar.HáoutracarrinhaqueoslevaparaoCentrodeDia,ondepodemvertelevisão,jogaràscartasoufazerginástica.Amaiorpartedelesnãoquerir.Dizemqueacompanhiadosoutrosvelhososcansa.

NoparqueexteriordaturísticaviladeLagar,osautocarroscontinuamadesaguarriosdeestrangeirosde chinelos e calções.Ocalornãoos incomoda, sentam-senas esplanadas a fotografar asmuralhas epedemsangriageladaouocelebradolicorlocal,depêra-rocha,commuitoscubosdegelo.Portugalvistodali é uma paisagemmedieval com água potável e confortos modernos, povoada por gente humilde,prestável,dedicadaàciênciadeserfelizcompouco.Apoucosquilómetrosencontrarãopraiasselvagensehotéis rodeadosdeaprazíveiscamposdegolfe.Preferemosolàschuvas inclementesqueporvezestambém assolam o simpático país, definido no início do séculoXX pelomais internacional dos seuspoetascomoorostoqueaEuropamostraaomar.

Umempregadodecafédizaumgrupodeturistasquetêmsorte,luck,veryluck,porquedeumcalordestesnãohámemória.Sebemqueele,exceptopormotivoscomerciais,atéprefiraachuva;ocaminhodachuvatrouxe-oaLagarháexactamentedozeanos.CaíraumapontenoNorte,láparaTrás-os-Montes,matandocinquentaenovepessoasquevinhamnacamionetadaJuntadeFreguesia, regressandodeumpasseiodedomingo às amendoeiras em flor. Joaquimmoravaperto dessa aldeola tornada símbolodetragédia.Comooscorposafundadosnãoapareciam,enãohaviamuitoquefazerporaquelasbandas,aspessoascomeçaramaorganizarpiqueniquesàbeiradorioaofim-desemana,paraverse,entreumpasteldebacalhaueumcopodetinto,alcançavamaboaacçãodedetectarumcorpoinchadoaboiar,porquenão há nada mais triste do que um funeral sem defuntos. Num desses piqueniques conhecera a suaConceição,quevieracomospaisvisitarunsparentesetentaraglóriadepescarummorto,jáqueopaiera bombeiro e especializado em mergulhos. A expedição não teve sucesso-, só vinte e três corposviriamaserencontrados,masJoaquimacabouporvirmorarparaLagar,aprendeualercomaajudadeConceição,entrouparaaescola,arranjoutrabalhonocafé,casouetornou-seumhomemfeliz,paideumrapazinhodecincoanos.Pensavamuitasvezesquesenãofosseaquelacatástrofeestariaaindaatratardasvinhaseacosersapatosànoite,longedosterritóriosférteisdoturismo.Tudotemoseupropósito.

Astragédiasindividuaisnãosãoassinaladasporplacas,homenagens,celebrações.Falta-nosotempoparaasacolheresãodemasiadopróximasdanossavida.Todososdiasmorregente.NaViladeLagarafuneráriachama-seZorro,porqueéesseonomedebaptismodoseuproprietário,eestáescondidanocotovelodeumadassinuosasruasquecircundamamuralha.Nãonecessitapropriamentedepropaganda,osclientesaparecemtodososdias.Asgrandesmultinacionaisdamorteaindanãoaportaramaestazonarural,porqueaclientelanãoteriadinheiroparapagarascarrinhasdeluxo,osbolossortidos,oslivrosdecondolênciasencadernadosacouro.

Háumamulhercaída,aunsoitoquilómetrosdapacíficaanimaçãodeLagar,nummíseropátiodeumadascasasmaispobresdaaldeiadeArrifes.Comoocalormantémoshabitantesrecolhidos,avizinhanãoveiovarreroalpendreenãochamouporela.Umagatitamalhadalambe-lheorosto,tentandodespertá-la.

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Sãoduashorasdatarde,eacarrinhadoCentrodeDiasóregressarápelasseis.Omiadodagatatemporúnicarespostaaquedadeumlimãogigantedolimoeiroqueficaaocantodopátio,antesdasescadasquedãoparaotelheirodotanquedelavararoupa.Amulhercaiupertodaporta,longedasduasárvoresdoquintal,sobrealajeardente,inundadadesol.

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2-AQuedadeJacintaEleviráantesqueosolmemate.Euseiqueelevirá.Poissemetelefonoufalandoqueviria.Falou:

«Minhamãe, essa semana sem falta eu vou visitar a senhora.»AvizinhaRosário achou que eu estavamaluca,que tinha inventadoo telefonema.Tantoeubrinqueiqueestavadoidona,queagorame tratamcomodoida,mesmo.Quemmemandougostardebrincarcomtodoomundo?Comessediaassimazulequente,éhojequeelevem.

Todaavidaameiapraiaeosol;demanhãcedinhocorriaatéàPraiadoFlamengoparanadarantesdeirparaotrabalho.Agoraessaluztodavaiacabarcomigo.Quevergonha,seomeufilhomeencontrarcaídanalaje,ovestidobrancodelinhoqueeumesmabordeifeitoumtrapovelho.Eissoqueelevaiencontrar, um farrapo de chão em vez de umamãe, na casa que foi da avó dele e que ele chama de«favelada».Aúnicacasaaquepudechamarminha,herançademinhamãe,quemerenegouduasvezesedepoismechamouparatomarcontadelanavelhice.Aminhacasadelaranjeiras,limoeiros,roseirasepássaros.Ondeseráqueandaaminhagatinha?

Queriaenxergá-losómaisumavez,aomeufilhomaisvelho,essequemerejeitou.Fazquinzeanosquenãotenhoessaalegria.Dizquedeprimiu,entrouemcriseexistencial,foipararaopsiquiatra,andouatomarremédioparaacabeça,caiudecamaeveiosecuraremPortugal,mechamouparacuidardeleláemLisboa,nacasadoirmão.Fizmuitobacalhaucozidocomgrão-de-bico,queeleadoradesdecriança,muitacabideladegalinha,parapuxarosangue,eelefoimelhorando.Sobretudodeiaelemuitoamordemãe,fiz-lhemuitocafuné.Aofimdetrêsmesesestavabom,acabouseempolgandoecomprandocasadefériasemSintra,voltouparaoBrasilenuncamaisquissaberdemim.

Não,nãovoupensarassim.Euqueroafelicidadedosmeusfilhos.Rafinhatemláasuamulher,asuafilha,os seusproblemas, as suasmágoasguardadascontramim.Apanhoumuitoquandoeramenino, éverdade.PapaidoCéuquemeperdoe,eunãosabiacomodareducaçãoàquelemeninoeaindatrabalhar,cuidardacasa,chefiaratelierdecosturaeatenderfreguesaaomesmotempo.Issosemaajudadopai,quenessaalturatrabalhavaànoitenojornaleapareciaemcasa,quandoaparecia.Rafinhaestavasempreaprontando.Mandavaoirmãopequenoenfiarogarfonapernadaempregada.

Aterrorizava os garotos na hora do almoço, botava arroz no copo de suco deles, quando não lhesesvaziavaumagarrafad’águageladanacabeça.Naruaeraobrigão,eramauparaoscolegasdofutebol.Chegavaameteropénafrenteparaoamiguinhocair.Naescola,adirectoraestavasempremechamando—«Minhasenhora,oRafaelestá suspenso»—eeusemsaberoque fazeroucomoexplicar.Eraummenino muito difícil, sempre acobertado pelo pai, que achava bonito o filho ser assim—manias demachão.Paraele,homemqueéhomemnãopodia levardesaforoparacasa.Nofundo,aquiloeraparachamaraminhaatenção.Eraciúme.Ciúmedosirmãosmaisnovos.Rafinhafoimuitoestragadopelopai,eueducavadeumladoeRamirodeseducavadooutro.

Como eu adorava aquele homem, Nossa Senhora. E tanto que ele andou atrás de mim para meconquistar.Essafoiaépocadouradadaminhavida:desquitada,independente.Desejada.Umpedaçodemulher, corpo de nadadora bem torneado, com tudo em cima. Bem firme na ideia de nuncamais sercontroladasejaporquemfosse:nempormãedecriação,nempelomeupai,pelomeuex-marido,porhomemnenhum.

Eutinhatalentoparaamoda,ah,setinha.Chegueiatertrêscostureirastrabalhandoemcasa,noiteedia, fazendo vestido de gala para as madames, tudo com pedras preciosas bordadas à mão. Fiz seisvestidosparaolendáriobailedoTheatroMunicipaldoRio,noCarnavalde1954.VestidosdeluxoquenememHollywood.Nãoesqueçooorgulhoquesenti,nomeiodamultidãodaCinelândia,vendodesfilaras minhas criações na entrada do Theatro. Nem tinha inveja dos grã-finos que podiam entrar ali-,

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bastava-mecomosbailesoficiaisdosclubesesociedades,erasempreamaisbemvestida.DemanhãcedinhoianadarnoFlamengo,eessebonitãodebigodemeseguia.RamiroLobo.FiscaldaPrefeitura,ternobranco,gravatacolorida,boafigura,comumsorrisofeitodegoiabada.Nosconhecemosporqueem1952 eu aluguei um quarto na casa damãe dele. Estava nomeu esplendor, com vinte emuitos anos,fazendonomeedinheirocomomodista,livredocasamentocomoÁlvaro,umminhotobruto,emquemelançaraaosdezoitoanossóparamelibertardavidadeescravaquemeimpunhaamulherdomeuavô.

TudoparecianovoecheiodefuturonaqueleprincípiodosanoscinquentanoRiodeJaneiro.LogologoarrumeiumapartamentonoFlamengo,maselecontinuoumeperseguindo,meesperandonaporta,meacompanhandonapraia.Eraumacoisa...chegavaasaircedodacasadamãeemCopacabanaparamevernadarnaPraiadoFlamengo.Ah,Ramiro,comoéquevocêpôdemetrairtanto?Não,nãovoupensarnisso,eujáoperdoeihámuitotempo.

Rosário,minhavizinha,minhasanta,meacode!Ninguémmeouve,meuDeus.Morrode sedeaquicaídaemfrentedaminhaprópriaporta.Como foiacontecer isso?Odiabodomeu joelhome traindo.Essejoelhonãogostademim,quermepunirportodasascoisasfeiasqueeufiz.Logoeu,quesempreviviembuscadaBeleza.Minhasrosasestãotãobonitas.Alaranjeira,carregada.Nãopossomorreraquisobreapedradomeuquintal.Bichaninha,ondevocêsemeteu?Andacáajudarasuadona,suasafadinha,vaichamaraRosário.TenhodemeconcentraremRafael,omeumeninosapecaquevemchegando.Olhaeleali.Evemcomminhaneta,minhaMariana,tãolindaqueestá,umamoçaperfeita.Rafinha,meufilho,perdoa o que tiveres de perdoar a tuamãe.Me tira desse chão tão quente,medá umpoucode água,Rafael,nãomedeixemaisaquisozinha.Euseiquevocêvemmesalvar,meufilho.Vocênãotelefonariasenãoviesse,nãoé?Sintoocoraçãoeospulmõeseoestômagoeapelemirrandodebaixodessesolcruel,nãodemore,porfavor,meufilho...Estoutevendo,vocêvemsorrindoparamimcomMariana,masos seus passos são tão vagarosos. Porque demora tanto, meu Rafael? Ouço carros na estrada, masninguémmevê,ninguémmeouve.Nemsequerumpassarinhoparaavisaralguémquevenhamesalvar.Ai,operfumedasminhasrosas.TenhoquecortarumasrosasparaMarianalevarcomela,assimelavailembrardavovó.

Onde estou? Que quarto é este, cheio de camas e cortinas sem cor? Quem é esse rapagão meabraçando?

Quemsãoestasvelhasdeitadasemcamas,umadecadalado?Quecheirohorrívelalixíviaeálcool.Porquenãoconsigoperguntar?Porquenãoconsigoentenderoquemedizem?Porqueinsistememvestir-meestabatahorrível?Soumodista,umamulhersofisticada,nãoqueroandarporaícomumpanoatadocomtiras.Ememexem,melavam,mebotamcremes,comoseeufosseumbebé.

Eununcafuiumbebé.Eufuiraptada.Amãedemeupaimorreunoparto,emeupaideterminouquetambémeuficasseórfãdemãe,comoele.AminhamãedeixouquemeupaimelevassecomeleparaoBrasilquandoeusequertinhacompletadoostrêsanosdeidade.Crieimuitosbebés.Melembrodecriarbebés.Oprimeironasceumorto.Meumaridomerejeitouporcausadisso,foiagotad’águaquepôsfimaomeucasamento;eueraumamulhersempréstimo,queaosvinteanosnemeracapazdeparirdireito.Fiz tanto tratamento, tomei tanto hormônio para engravidar. E agora estou aqui sendo abraçada pordesconhecidos.Ramiro.Esevocêviessemebuscar,Ramiro?Melargasteporumadanadaaquemfizestemaisfilhosdoqueamimedepoiselatelargou.EaLeidoRetorno,nãofalha.Vem-mebuscar,Ramiro,leva-meparaocéu.Ouparaqualquer lugarondeestejas, seja;nocéuébemcapazquenão te tenhamdeixadoentrar.

Quantos filhos tive?Alguémmediz?Não sei seme lembro.Tenhodeme lembrar.Nãovou ficarlouca,não.Forampartosdifíceis, ruins,muitador.OdoRafaeldurouhoras.Aminha filhaRita, essanasceu a ferros.ORaul, eu juro que foi de dezmeses; eu digo e ninguémacredita.Omédicoumdia

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decretou:«Vamosterhojeestacriança?»Tevedeserelemesmoasentaremcimadaminhabarrigaparaonenémsair,omeninonasceucomapelejáarebentar.Cadapartomaisatrozqueooutro.Ocorpoarasgar-se,asagulhasacoseremacarne.Osmédicosgarantiamquenãoiadoernadaporquedequalquermodo o buraco ainda estava dorido. O buraco, falavam assim. Achavam que se falassem a palavratécnicaasmulheresnãoiamentender.

Quantas vezes? Tenho sede. Agua. Agua. Não consigo dizer a palavra, mas parece que elasentenderam,essasmulheresdebataazul.Ah.Memolhamaboca.Eessehomemdemãosmansas,meafagandocomolhosdeamor.Serámeufilho?Quefilho?HaviaumacriançaqueseescondiaportrásdosofáquandoeubrigavacomRamiro—erauminfernoaosfins-de-semana.Umacriançadequatrooucinco anos: se enrolava como um ouriço e ficava ali a roer as unhas em silêncio até que os gritosterminassem.Comosechamavaessemenino?

As velhas das outras camas gemem. Felizmente não consigo escutá-las, só enxergo os esgareshorrendos.Espetam-meobraçoparameterumtubonele.Pelomenostiraram-meotubodonariz,devemter-secansadodeoreporvezessemcontaparaqueeuoarrancassedenovo.Eununcahei-deservelha;nemsequeraprendiasermoça.

Omeupaichamava-medefracaporqueeuvomitavacomosbalançosdonavioquenoslevavaparaoBrasil.Euacordavaameiodanoitechamandoporminhamãeeelemediziaqueeunãotinhamãe,queaminhamãepreferiraficarnumpaísmiseráveldegenteincultaavircomigoparaumaterraricaefeliz.Desembarquei no Rio em 1927; lembro que assim que cheguei levei um susto grande quando vi umhomempreto.DepoisomeupaimeentregouàmulherdomeuamadoavôAntónio—queDeusotenha,morreuacuspirpedaçosdopulmão,nuncameesqueço,coitado,chorei tanto—,umagalegacomduasfilhas jámoças de um primeiro casamento, que não gostava de crianças e desprezava os portuguesesacabadosdechegar.Paraportuguêsjálhebastavaomarido,queesseeraricoetinhacarro,oquenãoeraparaqualquerum.DiziaqueoRiojátinha«carroceirosquebaste».Comoeramesmoonomedela?DonaÁnxela.Nuncadeixouqueeuatratassepelonome,menosaindaporvovó;sempreesóporsenhora.Eraumamulhergrande,corpulenta,osseioscobriam-naatéàcintura.Batia-meportudoepornada,comumaréguanosdedossemprequemeenganavanospontos,masfoielaquemmeensinouacosturar,bordar,cortartecidos.Omeuavôtinhaumalojadefazendasmuitopopular,AImperial,numpontomuitobom,naesquinadaPraçaTiradentescomaAvenidaPassos.Naquele tempoaPraçaTiradentesnão tinhaamáfamaquedepoisveioater,erachique,atéacantoraBiduSayãotinhaumacasalá.ADonaÁnxelafaziavestidosparafora.Nósvivíamosnumamplosobradoporcimadaloja,tãograndequeomeuavôaindaalugavaquartos.Euqueriaestudarpiano, aprenderacantar,mas tivedeesperaraté sermulheradultaparafazerisso.Gostavadearte,música,desenho,letras.Sonhavacomummundodeharmonia.

OmeupaieraocélebreArturSousa,o«ArturPortuguês»,comolhechamavamnomeiojornalístico.Era tipógrafo de jornais, chefe de oficina muito amado pelos empregados, mesmo sendo exigente eseverocomeles.Aqueleeraotempodaimpressãoachumbo,eeuficavafascinadacomascaixasdasletras, comopodiam ser tão diferentes entre si.Cada tipo de letrame parecia uma pessoa com a suapersonalidadeprópria.NoBrasileusemprefuiaPortuguesa;emPortugal,passeiaseraBrasileira—estálánocaderninhodacontadamerceariadomeuprimoZéPaulo,quenãomedeixafaltarnadaporquesabe que eu pago: não está Jacinta Sousa, está escrito «Brasileira». Agorame dou conta de que, aocontráriodoquesemprepensei,issonãoéterfaltadepersonalidade,não—éantesterpersonalidadeadobrar.Descobertatardia;tudomeuétardio.Comoseeutivessedeaprenderaperderparapoderganharalgumacoisa.Asmulheresdebataazulqueremàforçameter-meumiogurteamargonaboca.Umiogurtesemumagracinha,umpedacinhodefruta,nada.Medêemleitecommuitochocolatequeeutomo.Masissoelasnãodão,dizemquedisparaaglicose.Eeunãoconsigopedir.Aminhalínguatransformou-seem

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pedra,umapedrapesadaeseca.Ouço-as,porémnãoconsigoabrirosolhos.Umavozdemulherexplicaqueavizinhameencontrou

desmaiadaenuanopátiodacasa,muitodesidratada.Nua?Como,sehaviadoisdiasqueeuesperavaomeufilhomaisvelho?EubotaraovestidobrancoquefizeraparaobaptizadodofilhodaDália,lembro-memuitobem.Vestidodemadrinha.Todoomundogostavademe tercomomadrinha,diziamqueporcausadomeualtoastral.Nuncativenadadealto,eissomefaziarir:semprefuipequenaedepequenosrendimentos. Tinha talento para desenhar vestidos e transformar asmulheres numa espécie de deusas,pelomenostemporariamente.Essaeraaminhaarte.Enãoéumtalentoqualquer,esse;nenhumtalento,aliás,éinsignificante.Muitagentenãotemasorteouabravuradeencontraroseu.

A mulher diz que eu estava sobremedicada, que o médico de família me pusera a tomar muitosremédiosqueinterferiamentresi,eque,comocalor,devoterdeixadodecomerebebereporissofiqueinesseestado,envenenadademedicamentos.Outravozdemulher,tremendo,dizquenuncamedeixaramosmedicamentos emcasa e que sómeministravamo estipulado.Outra diz queo princípio activodoansiolítico acumulou no tecido adiposo. Acho tanta graça a essa linguagem oficiosa: ministrar oestipulado.Diz tambémque àsvezes eradifícil convencer-mea comer, e acabavampormedeixar asrefeiçõesqueeuprometiacomerdepois,«massabecomoelessão,enganammuito,enós temos tantosidosos para visitar». Nos últimos anos perdi o apetite, fazer o quê? A empregada do Centro de Diadefende-se como pode, coitada, não vou censurá-la por isso, se a acusam de ter provocado o meupiripaqueé capazde sofrerumprocessodisciplinar,oquenos temposquecorreméumadesgraça,oGovernoandamortinhoporfazerdesaparecerumaboapartedosfuncionáriospúblicos.Conheço-lheavoz,éboamoça,apesardemechamarmentirosa.Tambéméverdadequecomocalorãodesses

diaseunãoeracapazdecomeraquelescarapauseaquelesempadõesquemetraziam.Jánemcomocopinhodetintoeuconseguiaempurraracomidagoelaabaixo.

NãoseiseoDr.Justinoabusavanosmedicamentos;seaspessoastêmdores,ejánãotêmidadeparaselivraremdasartritesedasartroses,devemospelomenosaliviá-las,nãoéverdade?Eudesconfiodemédicosquereceitampouco,médicoquenãopassareceitanãopresta.Cánaaldeiatodaagentepensacomoeu.PorissoéqueoDr.Justinoéummédicomuitorespeitado.Aprimeiramulher,quetemvozdedoutoradecidade—dessasqueduvidamdosmédicosdealdeia—dizqueéprecisoqueosenhorRaulprocurenaInternetunidadesdecuidadoscontinuados,porqueoshospitaisnãosãodepósitosdeidososeéprovávelquedentrodepoucotempoamãezinhaestejarecuperada,masnãocapazdeviverautónoma.

—Aliás,jáhámuitotempoqueasuamãenãodeviaviversozinha.Temoitentaenoveanos.O Raul. O meu Raul. Se ao menos eu conseguisse abrir os olhos e encontrar dentro da boca as

palavrasparadizeraessadoutorecacheiadeopiniõesque,senãofosseoRaul,eujámeteriafinadohámuitosemuitosanos,queécomestefilhoesócomelequetenhocontado,quehádécadasvivotodososmesesdaajudadele,porquecomapensãodesobrevivênciadeduzentosetrintaeurosmensaiseunãopagava as contas todas da casa. Aminha boa vizinha Rosário, coitada, ainda se admirava da minhapensão,eatéaentendo:elateveumadoençacrónica,aoscinquentaequatroanos,queaimpossibilitoudecontinuaratrabalharnafábricadeconservasondeestavadesdeajuventude,erecebeumapensãosóumpoucochinhomaiorqueaminha.Mastemasortedeteromarido,queébomserralheiro.

Eutivetrêsfilhos,porémsóummeajudou.Earquitecto,chegouatrabalharnumaempresagrande;agoraestásozinhoequasesemtrabalhoeaindaassimpõedoquenãotemparameajudar.Comopodiaelevivercomigoaquinaaldeia?Ecomopodialevar-meparaacidadeondemoranumquartodacasadeumamigo?Oquesabemestasdoutorasdavidadaspessoas?

—Játenteifalarcomaassistentesocialparaquemeajudasse,masdizquenãotemtempo—falaomeufilho.

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Adoutoralherespondequetemdemarcarcomantecedência.ORaulseesforçaporfazerentenderàmédicaquenãopodevir todososdiasdeLisboa,porqueprecisade trabalharenão temcomogastarcentoedezquilómetrosdegasóleo.

—Issosãoquestõesquemeultrapassam—falaadoutora.Aenfermeiradizqueeuestouagitada.Comonãohei-deestaragitadacomaindiferençadestagenteàs

dificuldadesdomeufilho,eaojeitocomobuscamcarregá-lodeculpa?Culpado,comoeu,de terduaspátriasenãoencontrarcompatriotasemnenhuma.Culpadodeestar

pobre,numpaísdepobres,ecomosotaqueerrado.«Obrasileiro»emPortugal.Umadasempresasdearquitectura em que tentou trabalhar respondeu-lhe que já tinham excesso de brasileiros. Eu sou «abrasileira» boa da aldeia, porque sou demasiado velha para evocar os fantasmas das brasileirassedutoras,eporqueme torneiaconfessoradospecadosqueasportuguesasnãoousamcontarumasàsoutras.Confessora-psicóloga.Alémdequegostodecantar,etodaagenteprecisa,nalgummomento,deumacanção.EssafoisempreaforçadoBrasil.

Experimentocantareasvelhasnascamasaomeu ladodizemque tenhoboavoz,pedemquecantemais.Gostodeaplausos,issosim.Em1968fuidestaquenodesfiledaEscoladeSambaUnidosdeVilaIsabel,porqueopaidosmeusfilhospertenciaàdirecçãodaEscola.RamirodesfilavanaComissãodeFrente,comasoutrasfigurasimportantes.EuestavaacostumadaafazerfantasiasdeCarnaval,adoravaaqueletrabalhodelantejoulasemuitaimaginação.FizmuitasfantasiasparaoClóvisBornay,ograndevencedordeinúmerosBailesdoMunicipal,umhomemmuitoespecialque,comoeu,veneravaaBelezaacimadetodasascoisas.Elemesmomedesafiouacriarumafantasiaparamim,eláfuieu,dePrincesaIsabel, acompanhadaporumséquitodeescravos libertados, toda rebrilhandodeplumase lantejoulas,comumasaiadearmaçãonumasedaazulcravejadadebrilhantes.Eocorpete,majestoso,todobordadoàmãoecomumbabadoderendasimperiais.Aperuca,faustosa,mefaziamaisalta.Otemadosamba-enredopareciafeitodepropósitoparamim:Quatroséculosdemodasecostumes.Aindamelembrodaletra:«AViladescecolorida/paramostrarOCarnaval/Quatroséculosdemodasecostumes/Omodernoe O tradicional.» Um samba lindo, do grande Martinho da Vila, que eu tive a alegria de conhecer.Infelizmente desabou um aguaceiro nesse ano; quando acabou o desfile as plumas haviam viradochuveiros.Mas isso não impediu que eu fossemuito aplaudida e aparecesse naManchete, naFatos eFotos,emtudooqueérevista.Tambémtiveosmeusquinzeminutosdefama.Ah,apesardetudo,vivimuitacoisaboa.QuesaudadeseutenhotidodomeuBrasil;nãoqueriamorrersemvisitarumaúltimavezaquelaterraondevivimaisdecinquentaanos.

Umadasvelhasmorreuontem.Pazàsuaalma,queseesforçavaporgemerbaixinho—nãoseisededoroudesolidão.Mesmoassim,ninguémconseguiadormir.Apertaramascamasparacabermaisuma;asenfermeirasfalamquecomestecalorosvelhoscaemcomotordos.Asfamíliasestãodeférias,nãoqueremsaber.HojeaminhaamigaAlice,umamulhermuitopopularnaaldeiadeArrifes,veiomevisitar;irrompeupelacamaratanumtumultodevermelho,comoqueprontaparaumafesta.Sabequeeugostoderoupasvistosas,fazpormeagradar.EstavaomeuRauleavizinhaRosário,eelesnãodeixamentrarmaisdoqueduasvisitasdecadavez,mesmoporquenãoháespaçoentreascamas,masAliceveiofurando,deasas abertas, uma arara piranga batucando seus saltos altos dourados e clamando: «Eu sou o anjo daguardadaDonaJacinta,têmdemedeixarentrar!»AvizinhaRosáriofoilogosaindo,queasduasnãosãofarinhadomesmosaco.Sãomulheresdeestilosmuitodiferentes.Rosárioéaamigadiscretaesemprepresente.Asuacasaficaacinquentametrosdaminha,eestásemprepreocupadaemsaberseeuestoubem.Nãotemconsciênciadequeébonita,comosseusgrandesolhoscinzentos,ocabeloquesetomoutodobrancoequeelajamaispintou,ocorpoelásticodenadadora.FrequentaumapiscinapúblicaaquiemTermasdoRei, eénestacidadequeescolheas suasamizades,nãoporpetulância,masporque se

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sentemaisseguravivendoarredadadas tricasdaaldeia.Tirandoapresençaassíduanocoroda igrejaaos domingos, é pessoa sóbria,muito afastada da vida social deArrifes. Alice é altiva e aparatosa;chegada de África após a revolução, traz sempre consigo a saudade dos espaços grandes, daespontaneidadedasgentes,daspossibilidadesinfinitas,efazporlevaravidaassimemPortugal.Eumamulher cuidada a quem ninguém dá os setenta anos que tem: cabelo vermelho, unha do pé e damãosemprefeita,emtonsgarridos,porteelegante,muitobemvestida.Afirmaqueoaprumoéumaquestãoderespeitopornósprópriosepelosoutros,que temosdepensarque,emúltima instância,Deusestánosolhando,eporissotemosdemostraromelhorquetemos,pordentroeporfora.AIgrejaajuda-amuito,eela ajuda a Igreja, também, que os padres são poucos e não chegampara tudo. Sofreu o seu bocado;chegouaPortugalsemnada—comoeu,afinal.Sempreestálembrandoaépocaemquetinhaummainatoao seu serviço. Os impérios custam a perder, nem que sejam do tamanho de uma pessoa. Gomo oscheiros.Seaomenoseupudessecheirarminhasrosas,descascarminhaslaranjas,sairdestecorredordemorteedesinfecção...

Rareiaoardentrodanoite.Tocoacampainhaeninguémvem.Tenhomedo.Certavezumhomemtentou entrar de noite pela janela do meu quarto que dava para o jardim. Papai do Céu ajudou-me.Mantive-mecalma,indagueioquebuscavaumhomemjovemnumavelhacomoeu,eledissequeapenasqueriaumabraçoeumbeijo,entãogriteieohomemfugiu.Meu filhoRaul sósoubedepois,nãoquispreocupá-lo.Meteu-se na estrada, chegou e contratouumdia doGilbertoPedreiro a quarenta e cincoeuros—uma fortuna—para que tapasse aquela janela. Coincidiu de nessa altura Raul resolver vivercomigo durante quase um ano. Muita gente estava a fazer isso, com o agravamento da crise ficouimpossívelocustodevidanacidade.Aspessoasdaquicomeçaramafazercomoosgregos,deramparavoltaraocampo.LongedeLisboaomeufilhoperdeumuitotrabalho,odinheirosumiu.AgoraachamquecomaInternetseresolvetudo,masnãoéamesmacoisa.Tratarcomaclientelaéolhosnosolhos,semprefoiassim,eu tive freguesas.NaCâmaradeLagar,Raulnãoconseguiunadinha.EmArrifesentão,comtodaessacrisedoimobiliárioecasasvazias,asempresasdeconstruçãoafalirumasatrásdasoutras,como se vê todos os dias nos telejornais, onde há trabalho para arquitectos?Tentou ser professor deartes, criar ateliersde tempos livrespara crianças,maso sotaqueatrapalha.Ninguémquer criançasafalarbrasileiro.Tentouatétrabalharnumcafé.Arrifestemtrêscafésedoisrestaurantes—todosforamabertosporgentedaterra,paradartrabalhoaosseusfamiliares.Aquinãohátrabalho,esemtrabalhoelenãopodiasequermeajudar.Opoucoqueherdeidaminhamãeacabou-sequandominhaRitatentouviveremPortugal, depois do divórcio, comos dois filhos.Não conseguiu nada e acabei tendode pagar aspassagensdevoltadostrês.Rafinhatemmuitodinheiromassópatrocinaosseuscompinchasgrã-finos.Comaajudadeamigospoderososdeumdosex-maridosda suamãe,Ramiroconseguiucolocá-lonoMinistériodaSaúde,nosectordecompras,aindanotempodaditaduramilitar.ImaginoquantospresentesomeuRafinhanãoteráganhodefarmacêuticasparaencomendarosremédioscertos-,derepente,asuacasaapareceutodamontada.Eporláficoumuitotempo.RafaelSousaLobovirougenteimportante,fezcarreiranaadministraçãopública,depoissaiuefoitrabalharnumamultinacionalderemédios.Temumapartamento lindérrimoemIpanema,naquadradapraia, eumacasade fériasemSintra,naPraiadasMaçãs,compiscina,porquedizqueaáguadomaraquiemPortugalémuitofria.

Foge-meoareninguémvem.SeeumorrerRaulficasozinho.Euseiquesouumfardonavidadele,massoutambémoúnicoamorqueeletem.Nãodeusortecomasmulheres.Gostoudasquenãoeramparagostar,nãogostoudasquegostavamdeleeaúnicacomqueacertoumorreunumacidentedeautomóvel.Nãomefalemquenãohásorteeazaredestinos felizeseoutrosdesofrimento.NãoseiporqueéquePapaidoCéufazassim.Eletemdeterassuasrazões.SemumDeusparaacertarascontasnaeternidade,avidanãofariasentidonenhum.Tenhocalor.Estáescuro,apertoobotãoeasenfermeirascontinuama

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dormir.Devemteresperançadeconseguiremvagaramanhãumaouduascamas.Umdiaumhomemveioassimnoescuro.Aminhamãedecriaçãoalugavaumquartoaumhomemde

certaidade,osenhorSamir,umlibanêsdefartacabeleirabranca,comumartímido,deóculos,semprecruzandoasmãos,quetrabalhavaseparandocartasnosCorreios.NessaépocaquasetodaagentealugavaquartosnoRiodeJaneiro-,eraummododeterrendafixa,eresolviaoproblemacrónicodehabitação,quejánaquelaalturaeragrave.Euteriaunstrezeanose,nãoseiporquerazão,fiqueiemcasasozinhacomessesenhor.DonaÁnxeladeveriatersaídocomasfilhasàscompras,imagino.Euestavaarrumandoa loiça na cozinha e o homemveio avançandoparamim, chegando-se cadavezmais, empurrando-mecontraapedrado lavatório,arfando.Eusentiaaquela respiraçãoassustadoracrescendo,aquelecorpoencurralando-me,asmãosapalpando-me,aquelabocacheirandoaálcoolelogiandoasminhas«carnesroliças»,de«portuguesinhalinda»,«tãobranquinha»,respirandonomeupescoço,eviumfuturomuitoturvo àminha frente. Deduzi que naquele diamais essa fatalidade ia marcar a minha vida: perder avirgindadeparauminquilinodacasaeficarsemorestodebrioqueaindamesobrava,aminhahonrademulherpura.Eujánãomedebatiaecomeçavaaceder.Derepentetomeiumagolfadadearegriteicomtodasasminhasforças:

—Senhor,nãofaçaisso!OlhequeEUNÃOTENHOMÃE!|Edesateinumsoluçoconvulsivo.Nãoseideondemeveioaquelafrase,massalvou-me.OsenhorSamirsaiucorrendo.Creioquegritei

agorinhaamesmafrase,porquefinalmenteaenfermeirachega,acendealuz,emepergunta:—Oquetemanossamenina?Sente-semal?

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3-AdamadavingançaÀquedadeJacintaSousaéamúsicadefundodasconversasdoCaféCentraldeArrifes.Todosse

penalizamejustificamporanãoteremencontradomaiscedo.Cadaumquerqueopróximosaibaqueavisitavaregularmente.Alicepuxapelosseusgalõesdeheroínadaamizade.-«MinharicaJacinta,queeuamoeadorocomoaumamãe!»Rosárioolha-adeviés,calada,enquantosorveabica.OZédasMurtascontaqueandavaháquetemposparalheirpodaromatoeajeitarasárvores,masqueosincêndiosdosarredoresnão lhe tinhamdadodescanso.Cesarina,amulherdele,pontua, semprequealguémentranocafé: «E de graça.Tudo o que nós fazíamos pelaDona Jacinta era por amizade. Só por amizade.»Aaldeiainteirasabeque,duranteumano,CesarinaroubaracemeurospormêsaDonaJacinta.Asenhorapedia-lhe que fosse ao banco levantar o depósito do filho Raul, e ela retirava cem euros da contacorrente,eoutroscemdacontaacrédito,queguardavaparasi.QuandoRaulSousadescobriuoroubo,Cesarinaalegouquesetratavadajustapagapeloscuidadosquedispensavaàvelhasenhora.EJacintanãoodeixoulevarocasoàpolícia,commedoderepresáliaseporconsideraçãocomoZédasMurtas,queapareciaespontaneamenteparalhecortaromatoouperguntarseprecisavadealgumserviço,semlhecobrarnada—emboraelasempreopresenteassecomumagarrafadevinhoouumanotadedezeuros,seacasoativesse.

Zé dasMurtas estava grato aDona Jacinta por ter conseguido tornarCesarinamais bonita emaisalegre;filhadeumalcoólicoquemataraamulheràpancadaedeixaraafilhacegadeumolho,Cesarinaera um feixe de raiva quando Jacinta a conheceu; casara com o Zé das Murtas — baixo, de carãodisformeeamancardeumapernaemconsequênciadeumadoençadeinfância—,pornãodescortinaralternativa.Jacintaensinou-aatalhartecidoseafazervestidos,colocou-acomoajudantequandoaindacosia para fora, e foi-lhe passando a clientela quando os seus dedos deixaram de funcionar. Ficouzangadacomelaquandotomouconsciênciadodesfalque,masquaseaindamaisirritadaconsigomesma;poliraaraparigaporfora,masnãosouberapoli-lapordentro.Issofrustrava-a.

Não acertara na educação dos filhos, excepto Raul; e mesmo sobre esse tinha dúvidas-, era umhomemdebomcoração,maspoucoadaptadoàsguerrasdomundocontemporâneo.Umsonhadortravadopelo excesso de orgulho e diminuído pela falta de ambição, como ela própria.Não tinha fé, o que otornavatriste.Jáquaseninguémtinhafé,eissotransformavaomundonumaespéciedeformigueirosemfundonemreservasondetodosseempurravamporumpoucodepão.Oterroreafestaviviam-secomamesma excitaçãodo efémero; sem fé, nãohavia comodistinguir o amigo e o inimigonemdetectar ossinais de fidelidade. Havia um novo êxodo da cidade para o campo; empresários na falência queentregavamascasaseoscarrosaosbancoseasseguravam,nascapasdasrevistas,queoregressoàterraera a solução da crise. Depois espantavam-se com o número de assassinatos entre tios e primos pormetrosde terreno,ouporquestõesdedivórciosepartilhas.As televisõescomandavamtantoocampocomoacidade;eapobrezanãocorrespondia,afinal,àquelaimagemdedespojamentovoluntárioqueosantigosricosgostavamdeimaginar.Otrabalhodocamponãoeralevecomonossonhosdosfugitivosdostressurbano.

Haviaacompensaçãodotempoentreumadecepçãoeoutra,aidentificaçãotoscadobemedomal,uma imunidade à humilhação possibilitada pela ausência de cosmopolitismo; a rudeza da descrençasubstituíaosveludosurbanosdahipocrisia.Haviaosilêncio,paraquemodesejasse.Osilêncioqueeraoprimitivobarrodaliberdade,contraaqualascidadesforamcrescendo,demodoacumpriremasuacartilhadefábricasdesucesso.

A competição pela amizade de Jacinta Sousa prosseguiu durante dias à mesa do café. Eulália, a

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mulherdopresidentedaJunta,juravaqueaiabuscarparalancharnohoteldapraiatodasassemanas.Naverdade, já hámuito tempo que esses passeios não aconteciam, porque a conta do lanche era sempreapresentadaaDonaJacinta,apretextodacarestiadagasolina,ea senhoradeixarade tercomopagaresses luxosàmedidaqueofilhoempobreciaeosseusdepósitosmensaisbaixavamdevalor.OpadreFrancisco jurava que ia rezar o terço com ela todas as terças-feiras, confiando que a contabilidadecelestedas semanas fossepoucoatenta; averdadeéque tinhade sedesdobrarpor tantas freguesiaseigrejinhas que já não encontrava modo de dar atenção individualizada a todos os elementos do seurebanho. As vocações estavam em crise, também elas; os rapazes preferiam varrer ruas e ter umaexistência erótica a limpar almas e não ter ninguém para abraçar na cama. E a vigilância aoscomportamentosdosreligiosostornara-sepolicial,comoderestoquasetudo.

QuemexultavacomahospitalizaçãodeDonaJacintaeraavedetadaterra,EmadeCastro.MasessanãofrequentavaoCaféCentral,nemnenhumoutro.Devezemquandoirrompiapelaaldeiaumaequipada RTP Memória para fazer um programa sobre ela. Tinha sido uma cantora célebre na década dequarenta. Depois casara com um diplomata e fora viver para Tóquio, vendo-se forçada a desistir dacarreira.Aosoitentaedoisanos,eraaindaumamulherbonita,enãooignorava.Oseusonhosecretoerafigurarnumatelenovela,mascomorepetiaemtodasasentrevistasqueastelenovelasactuaiseramumapouca-vergonhaequeasactrizesestavamreduzidasaprostitutasdealta-roda,osconvitestardavam.

DonaEmadesenvolveraumódioilimitadoaDonaJacintadesdeque,haviamaisdequinzeanos,agatadestaassassinaraoseuperiquito.DonaEmaamavaaqueleperiquito,denomeLingrinhas,comoseamaumfilho.Dedicava-setantoaopássaroqueconseguiraensiná-loafalar.Quandoabriaosolhoseseespreguiçava,obichocumprimentava-a, comquaseperfeitadicção:«Bomdia,minhamamãquerida!»Quando apagava a luz, o pássaro debitava: «Bons sonhos, minhamamã querida!» Quando alguém seaproximavadasuagaiola,operiquitogabava-se:«Ninguémtemumamamãtãolindacomoeu!»0prémiodestaloquacidadeconsistiaemautorizar-lhevooscontroladosdentrodacasa.

Certa vezDonaEma zangou-se com o filho biológico porque, ao entrar em casa, deu as costas àgaioladoLingrinhas,emvezdeocumprimentar:«Comoteatrevesasertãodescortêscomoteumanopassarinho?»Gonçalotentourelativizarosucedido,dizendoqueafinalumpássaroéumpássaro,equeamãeexagerava.DonaEmanãosuportavaqueaqualificassemcomoexagerada,nemaliáscomoqualqueroutra coisaabaixoda linhaornamentaldaperfeição.GritouqueoLingrinhasvaliamaisdoquemuitagente,aliásmaisdoquequasetodaagentedequeselembrava,eamuoucomofilho,atéqueeleveiobeijá-laeafirmar-lhe,comosempre,quetinharazão.

Dequalquermodo,Gonçalojáperderaoamordamãedoprópriofilhoparacumprirasordensdasuaadoradaprogenitora:DonaEmatantoinsistiraemqueelefizesseumtestedepaternidadeparaverificarsedefactoerapaidomenino,queacabaraporlheobedecer.Pensounoprazerquesentiriaobservandoolentoderramedodesapontamentonorostodasuaidolatradamãe,quandolhemostrasseoresultadodoteste.NãoeraapenasafidelidadedeBeatrizqueamãepunhaemcausacomaquelasuspeiçãosobreasua paternidade; Ema de Castro desconfiava da própria capacidade de sedução do filho. Sempre ocriticaraporserdemasiadogordooudemasiadotímido,poucointrépidooudesregradamentesentimental.Exibia-lheasgracinhascomalarde,quandoeracriança-,forçara-oaleraostrêsanos,eelepróprioseafadigaraaaprenderatocarpianosozinho,oufazercontascomplicadasdecabeça,ouaprenderlínguas,paraa impressionar.OpaimorreracedoeGonçalo,directordeumarepartiçãoestatal,viveraatéaostrintaecincoanoscomamãe;teriavividomuitosmaisseaavónãotivesseficadoentrevada,obrigandoEmaairparaaaldeiatomarcontadela.EntãoconheceraBeatriz,umaterapeutadafalajábalzaquiana,ruiva,sardenta,sorridente,deformasredondas,comaqualmorouunsanosnacasadamãe,emLisboa,chegandoaprojectarcasar-se.Projectogorado,porqueaamadatinhacomoprincípioapenasconcretizar

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o casamento com quem admitisse abrir uma conta conjunta para as despesas da casa, e Gonçaloconfessavaquejamaispoderiafazeressadesfeitaàmãe,comaqualdividiatudo.

As relações de Ema com a perseverante noiva do filho poderiam ser descritas como fuzilantes;quantomaisBeatrizprocuravamimá-laeser-lhesimpática,maiorsetornavaemEmaaraizdorancor.Onascimento dobebé nãomelhorou as coisas, antes pelo contrário; omeninopadecia de otites que lheprovocavamumchoro ininterrupto,eEmaacusavaBeatrizdeserumamãedesleixadae incompetente.Tudo se solucionou quando Beatriz, procurando na escrivaninha de Gonçalo umas contas para pagar,encontrouopapelcomoresultadodotestedepaternidade.Pegounofilhoenãovoltouapôrospésnamorada queGonçalo habitava comomarioneta da diva exilada.De novo entregue à taciturnidade queassociavaàideiadeumhoróscopoinvulgar,Gonçalotocavapianopelanoitefora,escreviadiárioseiaenchendoa casavaziadepilhasde livros, papéis e jornais.Cincoanosdepoisde se ter separadodeBeatriz, ninguém, além dele, voltara a entrar no apartamento, que acumulava pó, bichos-de-prata ebaratas.AgoraDonaEmaqueixava-seaquemaquisesseouvirdequeamãedoneto—nuncautilizaraaexpressão«amulherdeGonçalo»—lhevedavaoacessoàcriança,oquenãoeraverdade.Orapazinhoéquesóaceitavaveraavóatrocodelautospagamentosembrinquedosoudoces.Aavópunhadefeitosemtodososdesenhosqueomeninolheoferecia,naroupaquevestiaenomodocomofalava.

Gonçalo,artistanasimulaçãodeumalucidezcordialeplenadebomsenso,tentaraconvenceramãeateroutroperiquito,ouumcão,ouumgato.DonaEmaargumentavaqueosfilhosnãosesubstituemequeos cães são babosos, subservientes e dãomuito trabalho.De gatos, a senhora nem podia ouvir falar:lembrava-se sempre do seu Lingrinhas sangrando nos dentes da besta fera daquela bruxa brasileira.Deixaraajanelaabertaenquantooperiquitoandavasoltopelasala,eagatadeDonaJacintaaventurou-seasaltarparadentrodecasa.Afugentandoaintrusaaosgritos,EmadeCastroconseguiurecuperarocorpoaindapalpitantedofinadoefez-lheumfuneralqueficoumemorável,vistoque,atéàdata,nuncaninguémdaaldeiaforaconvidadoaentrarnamoradiadavedetadeoutrora.Comprouumvasolargoedoiradoondeenterrouoperiquito,numacerimóniaparaaqualforamconvocadosopresidentedaJuntadeArrifeseopresidentedaCâmaradeLagar—quenãopôdecomparecermassefezrepresentarpeloseuvereadordaCultura,atendendoàpersonalidadeemcausa—emuitagentedaaldeia,alémdetrêsamigasquevieramdeLisboadeboleiacomGonçaloparaoinfaustoevento.Encomendouumbolocomodesenhodomártiremplumadoeosdizeres«Pazàsuaalma»,alémdeumapequena lajeondemandouescreveremletrasdouradas:«EmmemóriadeLingrinhasdeCastro,comasaudadeeternadasuaqueridamamã e do seu mano». O acontecimento deu que falar ao longo de meses nos cafés de Arrifes; apopulaçãoentrou emalvoroçodiantedaumbilical salade estardeEmadeCastro, ondeum lustredecristaledoiscandeeirosdepé,ornadoscomfranjasdesedanumsuavetomdesol-poente,iluminavamquatroaparadoresenvidraçadosrepletosdemedalhasepresentesdeadmiradores?nasparedes,sobreopapel de motivos florais exibia-se uma profusão de molduras esculpidas em folha dourada contendocapas de revista com fotos da própria, do tempo em que fora uma estrela da canção, eleita «anamoradinhadePortugal».

Agora, Ema de Castro pensava que finalmente se faria justiça e a morte do seu Lingrinhas seriavingada.

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4-Raul,umanoantesMandaamoralquenãoseleiamcadernosdeoutraspessoassemautorizaçãoexpressadaspróprias.

Amoralouaestética?Nemsei.Achoquejáninguémtemnoção.Vivemosaeradafusãodaspalavras:sãoasnovasmultinacionais,odefinitivo requintedocapitalismoglobal.Porém,misturadonasminhascoisas,eisestecadernodeIsabel,amulhercomquemvivioitoanos—umafaçanhanaminhahistóriaderelaçõesfalhadas—chamandopelosmeusdedosimorais:«Atristezanovaarrastaconsigoavelhicedetodas as tristezas. A cintilação da alegria é uma estrela solitária; mas as tristezas agregam-se comomendigos.»TalvezIsabelnuncatenhaacreditadonomeuamorporela.Noprimeiroanoemquevivemosjuntos,eumantiveafotografiadeLaíssobrealareiradasala,comumaflorsemprefrescaaoseulado.Agoraquepensonisso,imaginooquantolhedevetercustadoconvivercomaquelemeufantasma.UmanoiteIsabelolhou-meedissequeafotografia tinhadedesaparecerdanossacasa; tireiafotografia—escondia numagaveta—mas considerei insensível a sua atitude.Vejo agora que o insensível era eu.Nesse tempo não tinha alma para o entender; a minha alma ficara trancafiada no caixão de Laís,embrulhadanumamortalhadeculpa.

Encaixotoumavezmaisoscomputadores.Cadagestomerecordaoutrogestoigual.Pesa-me.Jánãoseiporquantasmudançasdecasapassei.Daprimeiravezquasesóomeucorpomudoudesítio.Namãoumsaquinhodeplásticocomlápisdecor,meiadúziadebandasdesenhadas,umaminiaturadocarrodoBatman. Tive sempre poucos brinquedos. O meu irmão destroçou o melhor deles: uma pista deautomóveis. Deu cabo daquilo no próprio dia do meu aniversário: ultrapassava propositadamente oslimitesdevelocidadeeoscarrinhosespatifavam-secontraosmóveisdasala.Depoisaminhamãevoltouatentarmatar-seporcausadasamantesdopapai,eascoisasacalmaram:eufiqueicomela,oRafaelfoiviver o psicadelismo da época com os amigos, a Rita foi morar num pensionato de moças. Assimaconteceuaprimeiramudança.

Destavezvouviversozinho,numquartodeumacasadedesconhecidos.Informeiaminhamãequeiamorar com um amigo, ficamais fácil para ela. Silêncio.Não vou permitir que o silênciome torture.Afinal, sou um ser racional. Quando é que vivi sem angústia? Quando é que a presença dos outrossignificourealcompanhia?Quasenunca.ComaIsabel,noprincípio,talvez.Mas,quandonosseparámos,fazagoratrêsanos,hámuitotempoquenãoéramosmaisdoquehabitantesdomesmoespaço.Primeirodesapareceuosexo.Depoisasconversas.Jánãoestávamosdeacordosobrequasenada.Calávamo-nosparaevitarasdiscussões.Aindaassim,fiqueisurpreendidoquandoIsabelfalouquequeriaseparar-sedemim.Fuitãoestúpidoquelhepergunteiquemallhefizera.Arespostadelafoisimples:parecia-lhequenão fazia sentido continuarmos juntos. Eu pensei que nada fazia sentido,mas retorqui apenas: «Entãomuitobem.»Decidiquenuncamaismorariaemcasadenenhumamulher.Nuncamaisvoltariaaserpostonarua.

Umdia,aochegardaescola,encontreiaminhamãechorandosentadanaescada,rodeadadesacosdeplástico. Agora pelo menos arrumo tudo em malas de viagem; ultrapassei a sordidez dos sacos deplástico.A televisãoacesaabafa-meo ruídodaangústia.Avozdoprimeiro-ministro:«Paramimnãoexiste forma mais elevada de coragem do que aquela que tem sido demonstrada diariamente pelosportugueses.»DiadeNataldoanode2012.Aminhamãenohospital.Outropiripaque.Nosúltimosanostornaram-secadavezmaisfrequentes.Deixoudecomer,avizinhalevou-a.Fuidemanhãabraçá-la,nãomereconheceu.Eladivertia-secomojogodaamnésia,atazanava-mecomaideiadequeestavaloucaenão me reconhecia. Eu chegava e ela perguntava, muito séria: «Quem é o senhor? Não estou lhereconhecendo.» Era o seu jeito trocista de me fazer sentir culpado por não a visitar com maiorfrequência.MasesteNataloesquecimentoéreal.Segundoamédica,éumaconfusãopassageira.Aminha

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mãerecuperaráemdias.Temoque,esquecendo-sedemim,elapercaavontadedeviver.Esteéomaistriste dos Natais da minha vida. Ou talvez não. Melhor não começar a fazer listagens. As pessoasafastam-se sem malícia, A minha última discussão com Isabel girou em torno do anterior primeiro-ministro,queelaconsideravamentiroso.Deste jánemfalávamos.Tentomudardecanal,masavozdoprimeiro-ministroatravessatodososcanais,repisandoanecessidadedossacrifícios.Fechoatelevisão.Jánão tenhoondeouvirmúsica:está tudoempacotado.A televisãoédaIsabel.Quase tudonestacasapertenceaindaaIsabel.DeixeiamaiorpartedasminhascoisasàminhairmãRita,quandomeapaixoneipor Isabel.Não sei sepaixão será apalavra certa.Nãohápalavras certas.Rita eos seusdois filhosviviamentão comigo, e elaprotestoupor ter depassar apagar a renda sozinha.Recordei-lheque elanuncacontribuíraparaarenda,nemparaaágua,nemparaaluz,nemparaotelefone.Falouqueeueraavarentoemesquinho. Isabel lançava-se-menosbraços,dizendo:«Amor,amor,deixa-a, tununcamaisvaisprecisardenadadisso,vamosserfelizesparasempre.»Quandonosseparámos,Ritaexplicou-menoSkypequeestavaesperandoessedesfechodesdehámuitotempo,porquesabiaqueIsabel,dequemsetornaragrandeamiga,gostavadeoutrohomem.Sóeu,pelosvistos,nãosabianada.Passoavidasendosurpreendido.

—Nãosefaçadevítima.AIsabelfalouquehámaisdeumanoquevocêsnemtinhamsexo.Vocêachaissonormal?

Encolhi os ombros. O que será normal? Isabel começou a enxotar-me ao fim do primeiro ano.Trabalhavanum jornal, entravacedoe saía tarde,andavasemprecomsono.Avozdelaerauma faca:«Não tenho a tua vida, deixa-me descansar.» Cobrava-me assim o facto de ganhar mais do que eu.Folheava as férias de sonho das revistas, suspirando: «Um dia hei-de fazer um destes cruzeiros pelaGrécia.» Um dia, isto é, quando se livrasse do malsucedido arquitecto que eu era. Acabei por medesligar daquela melodia de frustração. Quando não tinha trabalhos de arquitectura ou ilustrações-alarvemente-mal-pagas,dedicava-meàpintura.Procuravagalerias,porémasminhasparcasexposiçõescomeçavameacabavamcomosenuncativessemexistido:nemumacrítica,nemumareportagem,nada.Isabelimpacientava-se:«Eunãopercebonadadearte,masoquevejoéqueapinturajánãoseusa.Sequeres ter visibilidade, faz umas instalações. Põe uma televisão velha no chão com um vídeo sobrebairros-de-lataouimagensdeguerraoudiscursosdepolíticos,seilá.Fazqualquercoisadeinteractivo.»ConheciIsabelnainauguraçãodeumaexposiçãominha,masnãopodiasequerretorquir-lhequedanteselagostavadosmeusquadros,porquenaverdadeelaapareceratrazidaporumaamigaquequeriacasá-la. Nunca fez um único comentário sobre o meu trabalho; botava um ar humilde e dizia que não seatreveria a falar do que não conhecia. E eu encantei-me como que nessa época seme afigurara umailuminaçãodesensatez.

Apolíticaunia-nos:amaioriadosnossosamigoscomunsderretia-sepelaesquerdaradical,enquantonósdefendíamosaesquerdamoderada,agovernabilidadeeumsocialismodetipo,digamos,sueco.Nãodizíamos social-democracia, porque isso nos parecia uma concessão à direita. Aos poucos Isabelcomeçouacriticarasminhasposiçõescomo«demasiadoburguesas».Quantomenosdinheiroeuganhava,mais burguês ela me considerava; quando criei uma empresa com um grupo de jovens arquitectosdesesperados como eu, deliberou que eume rendera aomonstro capitalista.Retruquei-lhe que é fácildesprezarocapitalismoquandosenasceunumafamíliaproprietáriadeumacadeiadehotéis.Acusou-mededesvalorizarascapacidadesdelacomojornalista.Apartirdaífoiumaespiraldeacusaçõesentreasquaisregisteiade«brasileirocomplexado».Maspenseiqueeraumafasequeiríamosultrapassar.Penseiassimporquenãoaguentavaaideiadeficardenovosemfamília.

Gostava da família da Isabel, um clã vasto e afectuoso. E precisava de acreditar que nãoexperimentaria de novo o inferno da solidão que se sucedera à morte trágica da Laís. Consolei me

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pensando que provavelmente com o tempo a relação com a Laís também fracassaria. O inevitáveldeclíniodasrelaçõesamorosaséumadasbasesconceptuaisdomundocontemporâneo.Temgentequededicaavidaaestudaraduraçãodaatracçãofísicaeacurvadecrescimentodotédioconjugal.Parecequeissoétãocientíficocomoacomposiçãodaatmosferaeaelaboraçãodasanestesias.

Édifícildecompordeformacientíficaoamorporumamortacomaqualnãochegámosaatingirosparâmetrosmínimosdetemporalidadepartilhada.Setemeses,apenas.UmdescontrolonoautomóvelnopisomolhadodaMarginal,eassimdesaparecedestemundoumajovempublicitáriadevinteeoitoanos.Fuiconhecerosmeuspotenciaissogros,emPortoAlegre,depoisde lhesenviarocaixãocomafilha.Vivi os dois meses seguintes jantando com a fotografia dela, conversando com ela através dessafotografia.Nãofalavacommaisninguém.Iaevinhadoatelierdearquitecturasemdizermaisdoquebomdiaouboatarde.Preparavaascomidasdequeelagostava—peixenoforno,spaghetticomcamarões—eimaginava que ela continuava ali. Embriagava-me para conseguir enfrentar a cama larga, fria.Depoiscomecei a substituir ovinhopor comprimidosdeZolpidemparadormir. Instintode sobrevivência. Jáhaviasobrevividoamuito.Talvezavidanãosejamaisdoquesobrevivência.Afastei-medosolharesdepena,dosconselheirosdecopos,dasmulheresmaisnovasembuscadeumhomemtristeparasalvare,sobretudo, das mulheres mais velhas rondando uma derradeira hipótese de caso, debitando os seuscurrículossoberbosdeamantescompergaminhos.

Quartocomserventiadecozinha,éesseagoraomeuterritório.Fizascontas:quarentaeurospormêspara alimentação, nemmais umcêntimo.Dez euros por semana, é um saco doSuperBarato cheio decomida.Seentendermosporcomidalatasdefeijão,salsicha,atum,massa,vinhodepacote.Arroz,muitoarroz.Sóassimpodereicontinuaradarcentoecinquentaeurospormêsaminhamãe.Omínimo.Temposhouveemquelhedavaquatrocentos,quinhentoseuros.Nãopossocontarcomosmeusirmãos.Ritafalaqueaamamuitomasquenãopode,temseusfilhosparacriar.Rafaelfalaquesecriousozinhoequetevedenoscriaranos:«Sevira,malandro.Sejahomem.Amãeétua.»Comoseeletivessenascidosomentedopaudopai.

Averdade é que todos nos criámos sozinhos, aos tombos, emmeio a umcasamentodespedaçado.PapaisaiudecasaparaviveremCamposcomoutramulher,recomeçardozerocriandoumanovafamíliaeselibertandodanossaexistência.Aminhamãenãoconseguiasustentar-noseerademasiadoorgulhosaparapediroquequerquefosseapapai;naverdadeamava-oenãooqueriaaborrecer.Lembro-mequeficámostrêsmesessemluznemágua,porquenãohaviacomopagarascontas.Cadaumfoiparaoseulado,aminhamãefoireconstruiravidasozinhaatrabalharcomomodistaechefedecosturaemfábricasderoupas,vivendoemcasadeumaamiga.NessaalturaRafaelpediuajudaaopapaieàvovóAugustaparamontaroseuapartamento;estavaestudandoAdministraçãoeopapaiarrumaraumacolocaçãoparaele noMinistério da Saúde. Rafa ofereceu-se para ficar comigo e comRita; eu tinha doze anos, elaquinze. A situação prestava-se a uma manchete apelativa: um pai e uma mãe dão um show deirresponsabilidade;doisadolescentesem idadeescolar ficamsobacustódiado irmãomaisvelho,umyuppiedevinteeumanos,funcionáriopúblico—comumavidadesexo,drogaserock’nrolldiantedosmanospequenos.

Umanoite,tinhaeujátrezeanos,acordeiaosomdeRaviShankarmisturadocomgemidosestranhosecheirodemaconha.Nãotenhoacerteza,masdesconfioatéhojeque,noquartoaolado,osmeusirmãosestavam transando. Acabei por contar esse episódio à minha mãe e ela convenceu Rita a afastar-sedaqueleambientenada recomendávele irvivernumpensionato.Quantoamim,emvirtudede jáestarcombinado que iria passar as festas de fim de ano e as férias escolares emCampos com omeu pai,mamãeacabouporaceitaromodernoconviteparameacompanharepassarunstemposcomeleecomIrene,asuajovemesempregrávidaesposa.

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Paraomeupaifoiumafesta;ovelhoRamiroemproava-secomasduasmulheressobomesmotecto,passando por grande macho patriarca. Na verdade, maternalizara a «Dona Jacinta» diante de Irene.Mamãe,porseulado,resolveuassumiropapel,fazendodeavósábiadosmeusmeios-irmãos,fingindoabençoaraquelecasamentoentrefaixasetáriastãodísparesepassandootempoaprepararascomidasqueo«SeuRamiro»todaavidalheelogiara.Eraumaformade,porumlado,terumaoportunidade,quejulgavasepultada,deexprimiro restodeamorqueaindasubsistiapelopaidos seus filhos.Poroutrolado,mostravaaIrenequeaindatinhacartasparadistribuirnoimagináriodosprazeresdaquelehomem,mesmoqueapenasnoplanodagastronomia.Ea jovemIrene,quenãodescansouenquantonãodeuaovelhoRamiroLobo—comquemcasounaigrejaenocivil,aocontráriodaminhamãeque,desquitadadaquelemaridocomquemcasaratãojovem,nuncapôde,porlei,casarcomomeupai—maisfilhosdoque a Dona Jacinta, mostrava à minha mãe que, apesar de ainda não dominar todo o conhecimentonecessáriopara satisfazeremplenoosprazeresdaquelecoroasedutor,eraelaquem iaànoiteparaoquarto com ele. Não demorou muito para que eu me arrependesse de termos ido lá parar-, aqueletriângulodemanipulaçãoparecia-mehumilhante.Sentiaumaenormevergonhaalheiaemnomedeminhamãe,demeupaiedeminhamadrasta.Mamãepareciater-seencontradonestenovoarranjoqueavidalhereservara-, juntou os tico-ticos que fora amealhando com as suas costuras e acabou por alugar umacasinhamesmoemCampos;volteiparaoRio,paracontinuarosestudos,destavezemcasadeRita,quejáarranjaraempregonumalojaeargumentavaqueeupodiaajudá-laapagararendaenquantotrabalhavaeestudava.

Arrumei um estágio num escritório de arquitectura. Longe das comidas de minha mãe, emagrecimuito.Nostemposdefaculdadepegavanamoradasmesmosemquerer,acumulandoasoficiaiscomasdeocasião.NoBrasil, quando não se temmuito, sempre temos como diversão o próprio corpo.Até emcasasdemassagemchegueiairumasduasvezes,empurradoporamigos.Alieueraumclichésentimentalque faziamá figura: tinhapenadasgarotas,conversavacomelas.Querianamorá-las.A ideiadosexopagomedeprimiaeembotava.

Gostomaisdoportugatesoquesouhojedoquedessegaranhãocariocamoldadopelascircunstâncias—erabonitoetinhacaradeitaliano,diziamelas.Nessadécadadeoitenta,comoqualqueroutrojovemcarioca de «classe média», eu vivia para festas, álcool, estudo, trabalho, praia e, episodicamente,cocaína.Mas tudomeentediava.SenamoravaLuciana, logocomeçavaadesejarFernanda—evice-versa; o Rio de Janeirome parecia demasiado sujo, demasiado quente, demasiado fútil e, sobretudo,demasiadodesigual.EuviviaesquadrinhandoasmemóriasdeumaEuropaquepovoaraaminhamentedesdepequeno,atravésdoslivroscomquemepresentearaaminhamãe,dosciclosdedesenhoanimadodaEuropadeLestenacinematecadoMuseudeArteModernaaqueRitamelevava,docinemaRoxyemCopacabana,ondemaistardeviosciclosdecinemaitaliano,oudocinemaPaissandunoFlamengo,ondeviaNouvelleVague.Nosúltimostemposerabombardeadoporimagensdacivilizaçãoeuropeia,quatroaulasporsemana,nocursodeHistóriadaArtedaFaculdadedeArquitectura.Percorriacomamáquinafotográfica a partemais antiga da cidade, as igrejas barrocas do centro doRio, os prédios art déco,neogóticosouneoclássicosdaeclécticaPraiadoFlamengo.

OpoucoquesabiadePortugalchegava-meatravésdascartasdaavóMargarida—nasquaistudoemArrifes e arredores era lindo e estava à nossa espera —, da literatura obrigatória da escola, doDicionárioPráticoIlustradoLelloemtrêsvolumes,quecaprichavanosverbetessobreanobreLusitânia,edarevistadequadrinhosVisão.Nãoseicomo,mas,nofinaldosanossetenta,algunsexemplaresdestapublicaçãoportuguesaaterravam,devezemquando,nasbancasdejornaiscariocas.Essepequeno,beloeinocentePortugalsemprehaviasidoparamimumapossibilidade,umajaneladeescape.Porissomefoitãofácilpermanecerdefinitivamentenopaís.Apósaformatura,decidivirpassaroNatalcomaminha

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mãe e com amítica «avó portuguesa»Margarida, a quem, até aos vinte e seis anos, só conhecia porcartaseportelefone.PortugalpassavaaserparamimoNovoMundo.Ummundoque,nãoseiporquê—ouantes,sei—,tinhatudoavercomigo.

Aminhamãerecuperaraenfimasuamãe;quandoaavóMargaridaenviuvou,pediuàfilhaqueviessemorar comela.E Jacintanemhesitou.Portugal é agoraomeucolo; aherança suave e formosaque aminhamãemeofertará quandomorrer.Morrerei na aldeia onde ela nasceu, ficarei sepultado na covaoitenta e oito do cemitério dessa aldeia que fazia parte do dote das princesas portuguesas, a oitoquilómetrosdamilenarviladeLagar.Eunascimilenar,talcomominhamãe.Erabugento,comoela.

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5-UmcorpoquedançaOsparesmovem-sedebaixodashipnóticasbolasdeespelhosdadanceteriaPrincesa,quefunciona

nasnoitesdequinta, sexta, sábadoedomingonas antigas instalaçõesdeuma sobredimensionada—elogofalida—fábricadedoces,adaptadaparaoefeito,situadanumdescampadoameiocaminhoentreLagareTermasdoRei.Aanimaçãoégarantidaporumsóhomem-orquestra,quetocatecladoscomcaixade ritmos, e possui um repertório para todos os gostos, das mornas cabo-verdianas às canções deRobertoCarloseaosclássicosdeSinatra.Oinglêssai-lhenumidiomainventado;emvezdeStrangersintheNightcantastangerin’nanai,masninguémseimporta.Oamplosalãorodeadodedoisandaresdemesasestásemprecheio.Hátambémduasoutrassalas,umbaraimitaroinglês,combalcãodemadeiraesofásvermelhosdeveludovelho,paraosfumadores,eumasaladebilhar,cercadaporenormesecrãsdetelevisãosintonizadosnaSportTVouemfilmesdepancadaria.

Asmulheressozinhasnãopagamaentrada,porissoVanessavaiasquatronoitesafio,semanaapóssemana.Nãoémuitobonitamastemasuagraça;osolhossãodemasiadoseparadoserasgados,atestacurta,umasubtilcicatrizdeummurroquelhemarcouanarina.Mantémtodaviaaesperançadequeasluzescirculantesecoloridasdisfarcemessespormenores.Nãousavestidosluzentes,mastemumcorpoesguio que faz bambolear no seu fato-macaco de lycra rosa-choque. E ali vê-se de tudo —jeans esapatilhas,vestidosdegalaesapatosdesaltosvertiginosos,T-shirtscomnomesdecervejas,gravatas,mini-saiasecalções,casaisdeidadeavançadaejovensdetodasasespécies.Hámulheresquedançamumascomasoutras,comonosbailesdeAgosto,emulheresquedançamumascomasoutrascomonosbares de lésbicas dos grandes centros urbanos.Há casais que rodopiam como se treinassem para umcampeonatodedançaslatinas,eoutrosqueseesfregamprovocatoriamentecomosequisessemanunciaràpopulação os seus dotes eróticos. Há famílias inteiras sentadas, bebendo cerveja e comentando oespectáculo.

Vanessasustentaumacertaesperançadequeobrasileirovolte.Conhecera-odepassagemnasfestasda aldeia, onde ela sempre está a fritar bifanas e assar chouriços.Vai trabalhando onde calha: limpaterrenos,apanhafruta,matafrangosecoelhos,oquehouver.Vivecomamãeeumafilhanumcasinhotonos arrabaldes. Tiveramais três filhos de Sérgio, o primeiro homem com quem vivera,mas ele quisemigrarparaaSuíçaeeladeixou-oircomascrianças,cansadadelevarpancadaquasetodososdias.Iaentãonosvinteeseisanos.Apreocupaçãoconstantecomformasdeganhardinheiroparasesustentar,asieàmãe,paralisadadeumapernaemconsequênciadumatareiadoseujádefuntopai,faziacomquenão lhe sobrasse muito tempo para pensar nos filhos. Na verdade, sentira-se aliviada com odesaparecimentodeles.Trêspartossucessivos,porqueSérgioserecusavaausarpreservativoediziaqueapílulafaziamalàsaúdeeeracoisaparamulheresdemávida.Umarotinadesovasefraldasnãoajudaacriaressaraizlíricachamadainstintomaternal.

Depois,VanessaconheceuGaspar,ummecânicodeautomóveisbemapetrechadodebíceps,quelhefez outra filha e também a espancava.Deixou-o, e ele nuncamais quis saber deCátia, a filha. EntãoconheceunaInternetManuel,umrapazemigradoemFrançaquelhepagouapassagemdecomboioparaquefossetercomele,levandoafilha.TrêsmesesbastaramparaqueseapercebessedequeManuelvianelaumacriadaparatodooserviço.Etambémlhebatia.Pareciasina-,Vanessapensavaquehavianelaqualquercoisaqueconduziaoshomensàviolência,enãopercebiaoquê.Amãedizia-lhequeoshomensnasciamjácomumafúriaquetinhamdedescarregarnasmulheres,amesmafúriaqueoslevavaparaasguerras; osmédicos até tinhamumnomepara dar àquilo: testa-não-sei-de-quê.MasVanessa conheciamuitasraparigasquenãoeramespancadaspeloscompanheiros.Oquehavianelaquefaziacomquelhebatessem?Sentiriamciúmes?Gostavadepensarqueeraisso:batiam-lhepormedodequeoutroshomens

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adesejassem.Nãotinhavergonhadequelhebatessem;contavaassuashistóriasdebrutalidaderepetidacomosefizessedesfilarumacolecçãodemedalhas.

Assim, quandoRaulmeteu conversa com ela, na danceteria, lembrando-lhe que já tinham trocadoumaspalavras entre umabifana e umcopode tinto, nas feiras,Vanessa esmiuçou-lhe, altaneira, a suahistóriadesgraçada,enquantodançavamaosomdeAnamoradaquesonhei.Classificou-omentalmentecomo simpático e bem-parecido, talvez demasiado bem-parecido, e comum excesso de perfume queatrapalhava o seu conceito do que devia ser um homem. Raul sentiu sobretudo pena dela, e algumaadmiraçãopelatenacidadecomqueaquelamulherfranzinaseagarravaàvida.Combinaramencontrar-separa umcafé no domingo seguinte, numa esplanada deLagar—mas chovia, e acabarampor ficar nacavaqueiradentrodacarrinhadele,noparque,foradasmuralhasdavila,oqueteveavantagemdelhessair barato, já que ambos viviam contando os cêntimos. Desembucharam os respectivos problemasfinanceiros;oprincipaldesgostodeVanessaeranãopoderirtrabalharnosupermercadoSuperBarato,porquenãotinhaononoano.Raulpropôs-seajudá-lanosestudos,masVanessaalegavaquelhefaltavapaciênciaecabeçaparaestudar.Desconfiavadeumhomemque,commaisdequarentaanos,aindanãotinhatidofilhos.Perguntou-lheváriasvezescomoéqueisso tinhaacontecido—ou,melhor,nãotinhaacontecido.Raul respondia simplesmentequenão tinha calhado,porque lheparecia impudicoexpor ainfertilidadedeIsabele,maisainda,opouco tempoquepuderapartilharcomLaís.Naverdadesofriapornãotergeradoumfilho,masconsolava-sepensandoque,nafrugalidadedasuavidaactual,afaltadedescendência era até umbambúrrio. Por outro lado, se tivesse tido um filho com Isabel, talvez aindacontinuassemjuntos,etalvez,unindoesforços,conseguissemmeiosparaocriar.Apaternidadeaguçaoengenho. Pensar assim empurrava-o para um estado melancólico que não se podia dar ao luxo dealimentar;oseutruqueparasemanteràtonaconsistiaemorganizaravidadeinstanteparainstante;nosdiasmaus,antecipavaoprazerdaalienantesériedaFoxqueveriaànoite,acompanhadoporumcopodevinho da terra e por uma pizza barata que aqueceria no forno, acrescentando-lhe uns orégãos e umasrodelasdetomate,numritualdelentadegustação.

Certoéquedepoisdoencontroàchuvanãovoltaramaver-se.RaultelefonouaVanessarequisitandoadevoluçãodocachecolquelheemprestaranaquelatarde,earaparigaretorquiuqueoperdera.Nemelaapreciou o pedido, nem ele a resposta, porque adorava aquele cachecol de caxemira que lhe foraoferecido por Isabel. Vanessa, por sua vez, julgou pouco máscula aquela afeição a um adereço, emesquinhoopedidodedevolução.Eramuitoboaaesquecergrandescanalhices,masintolerantecomospequenosdesajustes.Raul tentou telefonar-lhemaisumpardevezes,semresposta.Depoisesqueceu-aporcompleto.Vanessacomeçavaacogitarquetalveztivessesidoparva;estavafartadedançarsozinha,eosúnicoshomensqueaprocuravamparadesabafareramhomossexuaiscomtantoazaraoamorcomoela.Entretanto perdera o número de telemóvel de Raul, e ele nunca mais aparecera na danceteria. Seaparecesse, talvez acabassepor sedesgostardeleoutravez.Opaidos trêsprimeiros filhosvoltara achamá-la, da Suíça, mas Vanessa não podia suportar a ideia de rever os filhos crescidos de que sedesembaraçara quando bebés. Nem queria ser uma mulher metida em casa num país cuja línguadesconhecia.Haviadesurgiralguémparaela,umdia.Umhomemasério,quelhedesseumabofetadaououtra,comoprovadeamor,masquenãoamaltratasseacadainstante,comoosanteriores.Obrasileirotinhacaradenuncatersequerabanadoumamulher.Eeramuitodoutor.Decididamente,nãoerahomemparaela.

Vanessarodopiavasozinhanocentrodosalão, fechandoosolhosepensandoque todososhomenssentadoscomaslegítimasnasmesasaoredordapistaadesejavamcomintensidade.Enquantodançava,erafeliz.Emcertasnoites,arrastava-separaadanceteriasemsabercomo,tantolhedoíamaspernasdasmuitashorasdepéaassarchouriços,oualimparcasasalheias.Pensavaquenãoaguentariamaisdoque

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meiahora,masoritmodamúsicacurava-lheocansaço.SonhavaumdiaterumacasacomoadaDonaEmadeCastro,comsofásdeveludo,umpsychédemármorecomespelhoreclinável,mesasdecamilha,aparadores,umacamadedosselemmadeiraesculpidaeumjardimnastraseirasondepudessebronzearocorpoporinteiro,semninguémver.ADonaEmaeradifícildeaturar,sempreapersegui-laeacriticartudooqueelafazia(«aindavejopónestearmário;nãoficoubemlimpo»;«osvidrossãoparalimparpordentroeporfora,nãoseesqueça»;«cuidadocomessajarradecristal;seapartirtemdeapagar»;«orebordo interior da retrete também é para limpar; quero tudo num brinquinho»). Gostaria de ter sidocabeleireira, era essa a sua vocação; imaginava-se rodopiando num amplo salão aromático forrado aespelhos, entre cremes, tintas e champôs, transformando mulheres vulgares como ela em manequins,recebendoelogiosegorjetas,ouvindohistóriassecretasdegrandesvedetas,lendorevistascoloridasnosintervalos do trabalho. Já se daria por satisfeita na caixa de um supermercado; pelo menos estariasentada e veria muita gente. O que a salvava da vida desprezível a que se sentia destinada era adanceteriaPrincesa.Amúsicaoferecia-lheafantasiaquenãoencontravaemnenhumoutrolugar.

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6-AViagemdeJacintaRafinhavirámever.Raulvirácomele.Essanoite sonhei comRita, e elamedissequeosmanos

viriam.Ossonhossempreacabamacontecendo.Demoram,porquedeoutrojeitonemagentelhesdariavalor.VivodizendoissoaRaul,maseleteimaquenão;eessateimaéqueofazinfeliz,seencostandoamulhereszangadascomavida,comoele.Falaqueélúcido,comoseissofosseumagrandecoisa.Eralúcido,JesusCristo?Eralúcida,aVirgemMaria,obedecendoaanjoseapresságios?Ora,ora.Enquantomeus filhos não vêm, eu canto. Levanto-me da cama, com esse tripé atrás demim, e danço com ele,imaginandoqueestoudançandocomograndeescritorMalbaTahan,naquelebailedeCarnavaldoClubeMonteLíbano, em1952, ondemeu paime levou, parame animar depois domeu desquite. Tahan eratambémumcientistacélebre,einventouummododeensinarmatemáticaatravésderomances.Falavaqueoprofessordematemáticaemgeraléumsádico,quetemprazeremcomplicartudo.SeuverdadeironomeeraJúlioCésardeMeloeSousa,maselefezquestãodeprescindirdonomeimperialesubstituí-loporumheterónimoárabe,paraoqualcriouumabiografiacompleta,eescreviafábulasorientaiscomenigmasmatemáticos.MeupaimedeualerOHomemQueCalculam,umlivroquemeencantou.Malbatinhaumardepríncipepersa,olhoscavadosepenetrantes, testaalta,narizmuito recto;atéoseu rostopareciaumafórmula.Continuouapaquerar-mecompersistênciadepoisdessebaile,maseuachava-omuitovelhoparamim;eueraumamoçadevinteeoitoanos,eleumsenhordecinquentaesete,amigodemeupai.Morreu aos setenta e nove anos, deixando instruções para um funeral bem simples: caixão de quintaclasse,nadade coroasde flores, nenhum luto.Eunemprecisode tomarprovidênciasdessas;nemseicomoRaulvaiconseguirpagarumcaixão,mesmodosmaispobres,igualaoquelevouminhamãe.Quemeenterremsócomumlençol-,Deusnãovaiprestaratençãonessesdetalhes.

Porém, sempre que escuto o famoso samba-canção deAntónioMaria desse ano de 1953, lembroMalba Tahan, e como o seu derriço me fez bem. Era lindo, esse samba. Igualzinho à minha vida:«Ninguémmeamaninguémmequerninguémmechamademeuamor.Avidapassaeusemninguémequemmeabraçanãomequerbem.Vimpelanoitetãolongadefracassoemfracassoehojedescrentedetudomerestaocansaçocansaçodavidacansaçodemimvelhicechegandoeeuchegandoaofim.»Essacanção estava em todas as boites do Rio, nesse ano; certa vez António Maria entrou num bar ecomeçaramatocaramúsica,eentãoeleseparodiou,cantandodestejeito:«Ninguémmeamaninguémmequer/ninguémmechama/deBaudelaire.»Morreucedo,deinfarto,aosquarentaetrêsanos.DoloresDuranentregouaalmaaoCriadordomesmomodo,aosvinteenoveanos.ORiodessaépocaeraumafestapoderosa,masnãodavamuitasaúde,não.

Ora.Istoestavabomdemaisparaserverdade.Lávêmasfiscaisdaalegria.—DonaJacinta,asenhoranãopodeandarporaídessamaneira,aindarebentaocateter.Deixe-se

estarsossegadinha.Etemdesevestir,nãopodeandarporaquinua.—Possosim.Possotudo.Soubrasileira.Astontasriem.Atécnicaresideembotá-lasrindo.Ficamsemrespostaeacalmam-se.—Querqueosseusfilhosavejamnua?—Eentão?Nãofoidaminharoupaqueelesnasceram.Emulhernuaelesjávirammuita,minhafilha,

possolhegarantir.Aúnicavantagemdavelhiceéagentepoderfazer-sedesafadadirectamente,semcuidardoqueos

outrosvãopensar.Aspessoasestãosemprenosjulgando,nãoadiantafugirdisso.EeuestoupertinhoédojulgamentodePapaidoCéu,quepelomenosnãoéespecialistaemetiquetasocial.

SeráqueElevaimepunirpelaminhainfidelidadeaRamiro?Foisóuma—istoé,váriasvezesuma,masissonãoconta,pecadocomhomemépecadoparticular,queeununcafuiumaassanhada.Poissenem

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comessacelebridadevistosadoTahaneumedeslumbrei.Nemumbeijinho,nada.Ramiromehumilhavatanto, exibindo as amantes mesmo debaixo de meu nariz, chegando ao ponto de levar meus filhospequenosparapasseardecarrocomasqueridasdele...Muitalavagemdeestômagoeufiz.Jánemlembroquantas.Tomavacomprimidos, iapararnohospital,ascriançasempânico.Mãenão temdireitodesematar,eusei.Maseutambémnãotivemãe,ninguémmedeuliçõesdematernidade.Seissonascessecomagente,minhamãenãometeriarejeitadoduasvezes.

Preferia que papai não tivesse engendrado essa ideia de voltar comigo a Portugal para tentarconvencermamãeavircomagente.Elasabiaqueali,comSalazar,elenãoestariaseguro,eraanarco-sindicalista,coisaproibida.Achouque,vendo-meassimmaismocinha,aminhamãesecomoveria;eutinhaseisanos,epapaiembonecou-metodacomumvestidoderoda,laçonacabeça:«Olhatuafilhatãolinda,nãoaabandones.»Lembro-medechoraragarradanasaiagrossadela,tãogrossaqueaslágrimasnãopegavam,eelarepetindo:«Nãoenão,eunãosaiodaminhaterra.»Lembro-medesuplicarapapaiqueme deixasse então ficar ali com ela, e eleme puxando: «Não e não, que a tuamãe é um bichoselvagem e não nos quer.» Lembro oRossio. Lembro de estar sobre amesa de um café a cantar e adançar; quandodepois vi aShirleyTempleno cinemaparecia umdéjà vudemim, eu eramuitomaisexpressiva,meupaitinhaorgulhoemmostrar-meaosamigos,quemeaplaudiam.Elávoltámosdenavio,euvomitandoo tempo todo.Mais tarde, teriaeuunsdezasseteanos,papaipassou-meum jornal ládoRio,falando-.«Olha,tuamãeandaàtuaprocura.»MamãebotaraanúnciosemtodososjornaisdoRiodeJaneiro,pedindoqueeuentrasseemcontactocomela.Assimcomeçámosafalar-nospelotelefone.Maistarde,quandotiveosmeninos,marcávamosumdiaeumahora,umavezpormês,parafalarmosumacomaoutraeparaqueelaouvisseavozdosnetos.Cadaligaçãoeracaríssima.Elavoltouacasarcomumhomemdaaldeia,umfulanocomempregocertonafábricadeconservasdePeniche—nãoumboémioinveteradoerevolucionáriocomoomeupai—,elejátinhaumfilho,elanãotevemaiscrianças,mandoutirarosovários.

Quandomeusfilhosjáestavamcrescidosepapaimorreu,comavendadoapartamentodeleemSantaTeresa,compreiapassagemevimvisitá-la.MesmoassimeueofilhodaDonaAna,mulherdemeupai,levámosquatroanosaté fazero inventáriodosbens,apurarasheranças,evender.Tratardepapeladanuncafoiomeuforte.

«VooTAP370,horadepartida,vinteetrêsecinquentaecinco.»Eraaprimeiravezquefaziaumaviagemtãolongadeavião,atéentãosótinhaviajadopoucasvezesparaSãoPaulo,nosElectrasdaVarig,peloSantosDumont.NoGaleão,edeBoeing,eraumaestreia.LembroquelevavaValiumparaocasode0sononãovir.PartinomomentoemqueoBrasilatravessavaumrebuliçopolítico.Dentrodeummêshaveria eleições para governadores dos Estados, depois de tanto tempo de governadores biónicos,nomeadospeladitadura.Nessahora, ser estrangeira tornava-seumavantagem,não tinhaobrigaçãodevotar—aliásnempodia.Apolíticaapaixonaosmeusfilhos.Sãotodosdeesquerda,herdaramissodomeupaiedopaideles.RauleRafinhaandavamosdoisencantadoscomoBrizola,influênciadoRamiro.Ritaémaiscomoeu,sepreocupacomoqueestáaacontecer,acompanha,masnãopessoalizaaacçãogovernativa. Nos tempos duros, Rafinha andava envolvido com uns amigos perigosos, gente daclandestinidade,aresistênciaàditaduramilitarandavaemtodolado.TinhaumgrandeamigoquejogavabolacomelenaruaemquevivíamosnoFlamengoque,quandoatingiuamaioridade,semeteucomoscomunistas. Parece que foi apanhado, deve ter sido torturadoporque apareceu um tempodepoismeioabobalhado,semdizercoisacomcoisa,muitodeprimido.Dizemquedelatou.PapaidoCéuajudouaquenãoapanhassemRafinha.

«Check-innosectorC,àsvinteeduashoras.»Ascoisasqueumapessoamemoriza.Sentiamedodoavião.LembroaquelediadeJunhode1960,quandodavaasminhasbraçadasnaPraiadoFlamengoem

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direcção aBotafogo, demanhã, emque encontrei corpos a boiar, enquantoos helicópteros de resgatesobrevoavamabaíadeGuanabara.SódepoiseufuisaberqueduranteanoitehaviacaídoumaviãoquevinhadeMinasGeraisparaoSantosDumont.NaqueletempoeusótinhaRafinhaeRita,leveiumsustohorrível,interrompianataçãoevolteiacorrerparacasa.

Mas não aconteceu nada, Papai doCéu permitiu que eu conhecesse aminhamãe, finalmente, aoscinquenta e oito anos. Esperei uma vida inteira para poder voltar a Portugal. «Casa Piano. Câmbio,passagenseturismo.»JamaishaviapensadoentrarnaCasaPiano,emplenaAvenidaRioBranco,paracomprarumapassagemdeaviãoparaaEuropa?issoeracoisaparaaminhaamigaRaqueleomarido,quepassavamavida emviagenspelomundo.OsPiano eramuma famíliadeportuguesesque fizeramfortunanoBrasil.Nessaviagemfizmaisumaamiga.Deisorte,botaram-meaoladodeumamoçamuitobacana,Elisabete,médica,dePernambuco.Tambémiaencontrar-secomospais,queestavamvisitandoLisboa a passeio.Comoportuguesa eu tinhao dever de conhecer alguma coisa dopaís: expliquei-lhetudooquesabia, conteiaminhahistória, asdescriçõesqueaminhamãeme fizeraao longode todosessesanosdecartasetelefonemas.SabiaqueLisboaeramuitolimpa,minhamãediziaquenotempodeSalazarsealguémjogasseumpapelnochãoapanhavaumamulta.Receberamuitospostais,avenidascomamoreiras a comporos jardins.Aindapassavam rebanhosde carneiros, emalgumaspartesda cidade.Imaginavatudolindo,umpaísmimoso.

O abraço daminhamãe fechou uma chaga antiga.Não sei quantas horas ficámos abraçadas: esseabraçocontinuaaacontecer.Elacontava-mebrincadeirasdeinfânciaquenãorecordo:sómeresistiramnamemóriaasduasviagensdeidaearecusarepetidadela.Nãoseisealgumavezchegueiaperdoá-la,queocoraçãonãoétransparentenemparanósmesmos;masconseguigostardela,etiveorgulhoemqueprecisassedemim.

Seis anosmais tarde, depois damorte demeu padrasto, pediu-me que viesse viver com ela paraPortugal.Nãofoiumadecisãofácil;eugostavamesmodoBrasil,viviaentãoemCampos.EmCamposviviatambémRamirocomasuajovemmulhereosseusquatronovosfilhos,umasituaçãoquesempremecustaria a encarar.MeuRaul estava noRio, eRafael só queria saber do pai, o seu ídolo, comquempassavaavidaaotelefone.

Teriaafinalumamãesóparamim.Souumaave rara,umafilhaúnicaquenunca recebeumimo.Oamor dos homens e dos filhos não substitui o amor de uma mãe; custava-me ficar longe deles, mascaramba, jáestavamgrandes.Passeiavidaacuidardosoutros,nãoconstruínadaparamim,nemumafamília.Penseiquetalvezessachamadapudesseseroiníciodafamíliaqueaindanãotinhaconseguido.TalvezosmeusfilhosacabassemporsejuntaramimemPortugal.

Larguei amodesta casinha alugada emCampos, onde vivia perto daminhaRita, para ir viver namodestacasinhademinhamãe,emArrifes,aaldeiaondenasci.Umautênticoregressoaoútero.Passeiavidatodaarecomeçar;antesdessacasinhadeCampos,peneiadormiraquieali,hospedadaemcasadeamigas e sócias, nasminhas três tentativasde abrir uma fábricade confecçãoquedesse certo.Dormientrecaseadeiraseoverloques,nochão,usandoaminhamalacomotravesseiro—nadaquenãotivesseexperimentadonainfância,quandoaDonaÁnxelamandavaqueeudormissenochão,paramepunirporumafalhaqualquer.Enquantoisso,osmeusfilhosviviamjuntosemLaranjeiras,comRafinhaafazerdechefedefamília,apoiadopelopaiepelaavó.

No bojo desse segundo avião seguia comigo rumo aPortugal uma pequena arca com travessas deporcelana, baixelas chinesas, toalhas rendadas e talheres trabalhados, resquíciosdeum tempoemquepudeapreciarcoisasbelas.Tivepenadenãopoderlevarosmeuslustres;jánãovaliaapena,perderamuitospingentesnasinúmerasmudanças.Oacordeão, também,perdido.PensavaarranjarumpianoemPortugal e voltar a dedicar-me à música — mesmo já sem voz, os agudos sumidos no tempo. As

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enciclopédias acabaram sendo levadas por Ramiro; foram bem empregues, serviram para educar osfilhosdele.

AocontráriodeRamiro,Rafinhasoubefazerdinheiroeguardá-lo;Ramiroeraaquelefigurãomaiordoqueavida,comtantacapacidadeparaganhardinheirocomoparaojogarparaoaremautomóveistopodegama,sapatositalianos,boitesemulheres.Começaraemmeninoporengraxarsapatos;depoisdoserviçodefiscaldaPrefeitura—era«rapa»,ofiscalencarregadodeapreendermercadoriadecamelos—,papailevou-oparaatipografiadojornalANoite,dandoduronochumboquentedamáquinalinotipo.Nessaaltura,comavidadecasado,comasminhascomidasecomacachaça,paraaguentarocalordochumbo quente, ganhou corpo; os colegas puseram-lhe a alcunha de «Tonelada». Tentou ser patrão,comprouumacasade lotarias, fezmuitodinheiromas estourou tudo; emseguida abriuumnegóciodefrutase legumesnumpontoóptimo,emfrenteàEstaçãoCentraldoBrasil,mas,pormáadministração,nãodeucerto.

EntãocorreuoBrasilcomovendedordaEnciclopédiaBritânica,coisaprestigiada;depoiscomeçouvendendo livrosdeDireitoparaadvogados,e terminoucriandoasuaprópriaeditora,aquechamouoClubedoAdvogado.Foiumsucesso;nospaísesemqueajustiçaéumamiragemeasleismudamatodaahora, comonoBrasilouemPortugal,osadvogadosmultiplicam-secomocoelhos.Eno finalzinhoelemesmo jápareciaum juiz, discretas suíçasbrancas,debatendoos códigos e as alíneas, de ternoazul-celesteegravatavermelha,sapatobicofinorebrilhandoqueelemesmoengraxava.Sónãoserviuparapaidosmeusfilhos.Etereieuservidoparamãe?

Minha Rita não é filha de Ramiro,mas ele nunca soube disso.Morreu nessa ignorância santa demachãolatino?umdesgostoquelhepoupei,aelequenãomepoupounenhum.EsperoqueoPapaidoCéutome issoemconta.Eusentia-meum lixo,umagorda semgraça.Engordaramuitodepoisdoprimeiroparto,emaisaindacomastraiçõesconstantesdeRamiro,quecombatiaenchendo-mededocedeleiteebalas de chocolate. Perdera o ânimo para nadar, não suportava ver-me nua; então conheci umhomemcharmosonumbaileaquemelevouaminhaamigaRaquel,parameanimar.Eraumjudeucasado,diziaquecomumcasamentoinfeliz;amulherdele,queumavezenxergueiderelance,erabemmaisgordadoqueeu,umaobesaverdadeira,oquemeconfortou.Certoéquemeofereceusexocomternura,coisadeque eu já nem guardava lembrança; com Ramiro, o sexo tornara-se uma espécie de preceito dereconciliação, sempreque eu ameaçavamatarme.Toda amulher temdireito a sentir-sedesejadapelohomem com quem vai para a cama. Só a Raquel contei o caso; tive vaidade em lhe dizer que tinhaconquistadoalguémdasuaraçatãoespecial;etambémpenseiqueassimficaríamosaindamaisíntimas.Bobagens.Porém,anosmaistardepercebiqueelacontaraessahistóriaàsuafilhaSara,muitoamigadeRita,eRitaficoumuitoaborrecidacomigo,sobretudoporqueopaiverdadeirojátinhamorridoquandoela tomou conhecimento. Raul contou-me que ela ainda foi consultar-se com um médico filho desseSamuel seupai; falouqueera igualzinhoaela,masnunca lhe revelouqueera irmãdele. Imaginoquetenha raiva também por causa do dinheiro; Samuel era rico, coisa queRamiro nunca soube ser. Pelomenosparaosfilhos.AindaandoumetidacomSaraemsinagogas,aminhaRita,masládesistiudessasfantasias de ser especial por ser judia.Minha filha, dizia-lhe eu, todos somos especiais por estarmosvivos,oquenemsempreéfácil.Conselhosdemãecaemnopoçodotempo,nãotemcomo.

Certoéqueameiumhomemapenas,Ramiro;eraseisanosmaisnovodoqueeueaindaesperorevê-lo lánaeternidade:umcafajestecomasas.Asasele sempre teve,aliás.Ramirosofriade faltadepaicomoeudefaltademãe.Asfaltaspartilhadassãooquemaisconsolidaaintimidadeentreaspessoas.OpaideRamiromorreu loucoquandoele tinha cinco anos; a suamãeAugustapassou a adorá-lo comofilhoemarido,aomesmotempo.Fez-meumaguerrabrava;e,quandoRamiroseseparoudemim—anossaseparaçãofoiconsensual,eutambémestavafarta—,voltouparacasadela,deixando-mesemum

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tostãoecomastrêscrianças.Nacasadamãeconheceuafuturamulher;pareciaquesórabo-de-saiaquevivessedebaixodatelhadeDonaAugustapodiaservirparaele—mesmoqueamãezinhanãoquisesse.QuandoRamirosetomoudeamorespelaminhasucessora,eupasseiatervalorparaamãedele.

PerdoeimuitasfraquezasaRamiroporquelheconheciaumtraumaterrível.Emmenino,depoisdeopaimorrer,amãepassoudificuldades;lavavaroupaparafora,limpavacasasdemadames,massempreseviaemafliçãoparapagaroaluguel,aroupadomenino,essascoisas.Entãoiapedirdinheiroaopai.LevavaRamiropelamão;mandava-o esperar nas escadas enquanto ela subia ao apartamento.Ramiroinsistiaemveroavô,eDonaAugusta,nervosa,falavaquenãoerapossível.Ramiroesperavaumahoranasescadas,imaginandooqueestariaacontecendodetãosecretoentreasuamãeeopaidela.Easuaconclusãonãoeraboa;filhopressentequandoamãesofre.AjovemAugusta,mulhergarbosaedecinturafina,desciacomosolhosbaixos,asaiaamachucadaeocabelodesarrumado,botandoummaçodenotasnabolsa.

Comumaexperiênciadessasénaturalqueohomemsetornassedesconfiadodetudo;sempreestavaacocarasrelaçõesentrepaisefilhas,irmãseirmãos,suspeitandodasmaissórdidasperversidades.Paraapaziguaroespírito,frequentavaaUmbanda.RamiroeraumorgulhosofilhodeXangô;acendiavelaseoblatava garrafas de cerveja nas cachoeiras para o seu orixá. Eu ia com ele; emmatéria de religiãosemprefuicuriosaeexperimenteiquasetudo:ajaponesaPerfeitaLiberdade,asuíçaVahali,TestemunhasdeJeová,EspiritismoKardecista,Catolicismo.AUmbandafui levadaporRamiro.Eumareligiãoquenuncame convenceumuito,mexe com entidades demasiado telúricas.Nos cultos deUmbanda, amimbaixavaPretoVelho.ARamirobaixavaoCabocloSeteFlechas,umespíritobravoeguerreiro.

Procuroguardaramemóriadosmomentosbonseesqueceroresto.Avelhicejácustatantoaaguentarquedeveriapelomenostrazer-nosoesquecimentodamaldade.Masparecequeéaocontrário.TalvezDeusqueiraajudar-nosanãotermedodamorte.

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7-OfidalgoeasmusasUnsMetrosdeterrabastamparaquedoisparentescortemrelaçõeseasfamíliassedesintegrem.Na

maispacatadasaldeias,devezemquando,desaparecemhomenssósquemantinhamquezíliasterritoriaiscomosvizinhos.Nuncamaisninguémosvê;semirmãosouprimosqueosprocurem,ficamenterradosnosilêncio,porqueasvizinhançassãolestasavarrerproblemas.Mesmoquandohátirosecorpos,édifícilencontrar testemunhas;omedodaretaliaçãoé tantomaiorquantomenorforoespaço.Avaidadepodecriaralgumimpulsodeintrepidez;alguémprovidenciaráumdepoimentoparaatelevisão,narrandoqueapenas «ouviu», ou que chegou depois, ou que conhecia o presumível assassino,mas que sempre lhepareceraumhomemcalmoetrabalhador.

Enquanto Jacinta sedebatiaentreavidaeamortenohospitaldeTermasdoRei, sucedeuqueemBombarda,cidadezinhaequidistanteentreLagareArrifes,umaadvogadafoiassassinadapelomaridodeumaclientequeeladefendianumcasodedivórcio litigioso.Oescritóriodaadvogadasituava-senumprimeiro andar de uma rua movimentada, com lojas no rés-do-chão. Os comerciantes apareceram natelevisãonarrandoqueseouviaacabeçadamulherabaterrepetidamentenochão.Ninguémperguntouaestas testemunhas auditivas por que razão não haviam subido de imediato para salvar a advogada.Aideia,consagradanalei,dequequalquercidadãotemnãosóodeverdesalvaroutroemperigocomosetorna culpado de crime de omissão de auxílio ao não intervir, não entrava nos hábitos populares; odesígnio de passar ao lado dos dramas alheios era amáxima fundamental, e quem pensasse de outromodo seria parvo ou doido, porque estaria a colocar-se no lugar da próxima vítima.Umuniverso devítimas consentidas desenvolve uma engrenagem discricionária onde a circulação da impunidadedissolvehierarquiasevalores.Aideiadedemocraciaapagara-sedorostodapolíticaparasetornarumamáscarano topodocorpodançantedosmercados,omnívoro,ubíquoeassustador.Cadaumexistiaaomesmotempoporcontaprópriaenadependênciadaopiniãopública—umaopiniãonebulosa,esfíngica,desprovida da imagem de referência de um Outro visível, amigo ou inimigo. Com maior ou menorconsciência,osindivíduosagiamcomoosinvestidoresdaBolsa,quenãoapostamnovalorrealdeumaempresa,masnoquejulgamqueosoutrospensamserovalordela.Oregimeespeculativosubstituíra,naverdade, o regime democrático; a informação tornara-se cada vez mais insegura, sustentada emafirmações contraditórias, insinuações e ocultações estratégicas, e a figura da Justiça, desde temposimemoriaislentaeindiferenteàurgênciadadorhumana,esfumava-senocampodasinterpretações,quedistribuíam culpas e castigos consoante a pessoa e o lugar.Ninguémparecia interessado em criar umcorpodejurisprudênciaqueuniformizassecritériosegarantissealgumaprevisibilidadeaoresultadodosjulgamentos.Assim,emquestõeslaborais,astestemunhasviamoqueospatrõeslhesmandavamver,ouevitavamassinalarqualqueragitaçãoalheiaqueaspudessecomprometer.AInternetdesenterraraovelhohábito das denúncias anónimas, que prosperara desde a época da Inquisição; a profecia de GeorgeOrwellem1984encontraraasuaconcretizaçãosofisticada.

PedroGamaLousada,herdeirodeumafamíliadefidalgosarruinadosdeArrifes,rumaraaLisboanadécada de oitenta decidido a encontrar trabalho de amanuense e a lançar-se na redacção da sua obrafilosófica,quepropunhaumsistemamonárquicoporeleiçãodossábioseaerradicaçãodoconceitodebensmateriais.Decidira que nenhuma universidade lhe poderia ensinar nada de válido, porque todasestavam ideologicamente poluídas pela teoria capitalista do sucesso, da qual derivava a contínuadecadência do mundo. Apresentava-se nas marmoreadas instalações laborais da Lisboa dos novosestilistas e dos primeiros yuppies com o cabelo até à cintura, barba flutuando sobre o peito, óculosdesengonçados, calçasdeganga e camisa aosquadrados.Dormiumuitas noites na rua e passou fome.Teveoportunidadedeperceberqueapobrezatornaaspessoasegoístasquandofoicorridoapontapéde

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sucessivosrecantosdeprédiosecasasabandonadasporusufrutuáriosquereivindicavamoseudireitodeantiguidade.

Aguentouasexperiênciascomoapoiopericialàsuaobrafutura.Acertopontocansou-seefoibateràportadeumaprimaque,alémdeguaridaealimentação,lhearranjouumpostodepaquetenaagênciadepublicidadedeumamigo—pedindo-lheporamordeDeusquepelomenosaparasseabarbaeusasserabo-de-cavalo,preconceitosaque,emboracontrariado,Pedroacedeu.

NumatardeprimaverildenuvensclarasemqueescrevianaesplanadadeSantaCatarina,gozandoaportentosainspiraçãodoTejosalpicadodeveleirossonhadoreselaboriososcacilheiros,ouviuogritodesocorrodeumamulherdecapelinabranca,quepassavapertodesi,aquemtinhamacabadodepuxaramalaporesticão.Voouparacaçarolarápio:caçabreveebem-sucedida.Ogatunoadolescente,comumgorroenfiadoatéaonariz,tropeçounofioinvisívelquedelimitavaumazonadeobrasnaRuadeSantaCatarina,eestatelou-senacalçada,largandoamalaqueonossoprestimosopensadorrecuperou,e,entrevénias cavalheirescas, devolveu à respectiva proprietária. Debaixo do alvo chapéu de abas largasdeparou-se PedroGamaLousada com umpar de iridescentes olhos azuis e um sorriso luminoso comamplitudedetransatlântico,quetiveramsobreosseussentidosumefeitoarrebatador.Ocontrasteentreapelemuitomorenaeobrancodovestido,querealçavaoscontornosdeumcorpovoluptuoso,deixou-opasmado, quase emudecido— fenómeno estranho neste teórico de futuras racionalidades. A beldadechamava-se Simone, era umamulher de negócios brasileira dezasseis anosmais velha do que Pedro;herdaradopaiumaempresadeextracçãodepedraspreciosasquegeriacommãodeferro.Encantou-secomo jovem filósofo português, que por seu turno ficou rendido à vivacidade, à força e à cultura darecém-descoberta musa, que lhe citou A Tabacaria de Pessoa logo para início de conversa. PedrodesconheciaqueFernandoPessoaera,jánessaépoca,umaespéciedeestrelapopnoBrasil.AcabouporregressarcomSimoneaSãoPaulo,aofimdequinzediasemquepercorreramPortugal,semquePedrosetivesse sequer lembrado de informar a agência que já não trabalhava lá. Era o início de uma novaexistência, que prometia ser paradisíaca; e de facto foi-o, durante um infinito de dois anos. Simoneadoraraa ideiade terummaridoescritor,queficariaemcasacriandoagrandeobraqueconduziriaanovos cumes o pensamento universal, enquanto ela tratava dos negócios. E Pedro cumpriaescrupulosamente o papel de amante atento, perfeccionista nos lençóis e fora deles; levantava-se dezminutos antes de Simone para lhe trazer o sumo de laranja e a torrada à cama, providenciava-lhe owhisky comgelo e uns canapés quando ela chegava a casa, cansada, ao caboda jornadade trabalho,descalçava-aemassajava-lheospésenquantoaouviacontarasdificuldadesdoseudia,acompanhava-aaestreiasdeteatroeeventossociais,pormuitoqueosdetestasse—era,enfim,omaridoideal.Masnãoconseguiapensarnemescrever;nãosehabituavaaSãoPaulo,apaisagemdearranha-céuseaatmosferacarregadadegasolinadeprimiam-no.Escreviacartasàprimalisboetadizendoquesesentiaumaespéciedeanimaldomésticoaoqualadonajánãoprestavamuitaatenção.

Gastavaosdiasaler;quandoamulherlhepediaparaveralgumaspáginasdosseusescritos,alegavaestaraindanafaseinicial.Simonecomeçouaduvidardotalentodoseuamado;entretantoengravidou,epassouosprimeirostrêsmesescomenjoosterríveis,umnervosismoeumamádisposiçãopermanentes,porquedeixarade fumar.Ambospensaramque a situaçãomelhoraria comonascimentodo filho;masaconteceuprecisamenteocontrário.Discordavamquantoaométododecuidardacriançaeàdisciplinaquelhedeveriaserimposta;Pedroforamuitomimadopelamãeeacreditavanaeducaçãopelaternura;Simonedefendiaumadisciplina rígidaehorários fixosparacomeredormir, sematenderaochorodobebé.Onomedacriançafoioutrabatalha;Pedroqueriachamar-lheAgostinho,emhomenagemaSantoAgostinho e Agostinho da Silva, e Simone queria chamar-lhe Mateus. Na conclusão de diversasescaramuças, registou-se o infante como Mateus Agostinho. Quando a criança completou três anos,

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SimoneapresentouaPedroumultimatodesaídaimediata;osrogosdopaidoseufilho,semmeiosparase manter no Brasil, não a demoveram; disselhe até que a ausência dele seria favorável aodesenvolvimento equilibrado do garoto, já que era uma fraquíssima referência, como pai ou comohomem. Pedro sentiu-se um rematado estúpido por ter acreditado que alguma mulher gostaria de umhomem vocacionado para a casa e para a filosofia; isso não era mais do que conversa de revistasfemininas: na verdade, asmulheres continuavam interessadas nomacho histórico e indisponíveis paraapreciarotalhomemnovoacercadoqualelaboravamcomopurobrinquedoimaginário.

Simonepagou-lheapassagemderegressoaLisboa,edeLisboaPedroGamaLousadaseguiuparaArrifes,carregadodesaudadesdamimosamãe.MariaLuísanuncasouberadefenderofilhodosditamesimpreteríveis do marido, mas amava-o com todas as suas fracas forças. Pedro candidatou-se a umsubsídiodejovemagricultor—tinhaagoratrintaanos,eera-sejovemagricultoratéaosquarenta—paracriarumaproduçãodedoishectaresdepêra-rocha.Pensouqueassimconseguiriasustentar-see,porfim,escreverasuaobra.Fezdavacariadesactivadanofundodaherdadedospaisumminúsculoapartamento,paranãoterdesecruzarcomopai.Amãelevava-lhetodososdiasasrefeições,enquantofoiviva;masmorreutrêsanosdepois,deumaneurisma.EntãoopaidecidiualugarumplebeuapartamentonoAlgarve,edesapareceu.Porém,Pedropermaneceunavacaria,cadavezmaisaflitocomonegócio,quenãorendianemmetadedoquesupunha,atéporquedependiaapenasdosseusbraços.Carla,araparigaquefaziaaslimpezasnacasadospaisequeentretantoseempregaranumafábricadelicor,apiedou-sedasituaçãoeofereceu-separa trabalharcomelea trocode sociedade; tinhamãoparao licordepêra-rochae jeitoparaonegócio,efoiavendadolicorqueconduziuaproduçãoaosucesso.Carlajuntou-secomPedro,econvenceu-oatransferirem-separaamoradia;eofilósofotransformou-senumagricultoraburguesado,compretensõesintelectuais.Abandonaraasolenebarba,quesetornarabrancaeoenvelhecia.Demanhãeànoite,escovavacomvagara longacabeleira,dequecontinuavaorgulhoso;aquelamoldura forteebrilhantedava-lheailusãodequeotemponãopassava.CertavezpediuaCarlaqueseocupassedesseritual de escovagem, porque já só com a cabeça pendurada para o chão conseguia desembaraçar aspontasdoscabelos finos;masCarla,umamulherprática,depernasebraçosgrossos,queusavaoseuespesso cabelo muito curto e considerava uma fraqueza aquela fixação capilar, retorquiu-lherispidamentequenãoeraamãedeleequetinhamaisquefazer.

Umvizinhoaquemavidacorriamal,porqueassuasmacieirastinhamsidoatacadasporumapragadesconhecida,começouareivindicarpartedoterrenodePedroLousada;acoisaeraduvidosa,porquenãoseencontravamosregistosprediaiscomasextremasdosterrenos,ePedronãotinhanemqueriaterqualquercontactocomopai.Umanoite,Pedroapanhouovizinhoaroubar-lhecestosdepêras,e,sendoemboraopositorfigadaldousodasarmasdefogo,deu-lheumtironapernacomacaçadeiradopai.FoiofimdaguerrapelopedaçodeterraeoprincípiodoheroísmodePedroemArrifes,atéentãoencaradocomoumpreguiçoso comexcessiva tendênciapara abebida.Não significa istoque tivessempassadopropriamenteaamá-lo;aúnicapessoaquelhedavavaloreacreditavanoseutalentoeraEmadeCastro,pelaqualPedrotinhaumaadmiraçãodeinfância,dadoqueamãeoembalavacomosdiscosdafamosacantora.EmadeCastrochamava-oparatomarchácomela,oquepasmavaapopulação;DonaEmanuncasedavaaotrabalhodeconvidarquemquerquefosse,mesmoporque,naprática,nãotinhaempregada;apenas aquelaVanessaque jávos foi apresentada, uma topa-a-tudo aindamuito jovemque acumulavafilhosdeespancadoressortidos,quecobravabaratoelhefaziaalimpezamaiorumavezporsemana,sobcontroloapertado.Emaconsideravaaespéciehumana,deummodogeral,traiçoeiraeladra.Quandoofilho vinha visitá-la, iam jantar a uma modesta casa de pasto de Lagar. Ambos detestavam gastardinheiro.DonaEmachegavaaopontodenumerarosovoseasbatataspara teracertezadeque,casodescurasse a vigilância, a empregada nãometeria nada no bolso. Embora fossemuito católica, via a

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missapelatelevisão,paranãoterdepôrmoedasnocestodasofertasdaIgreja—etambémparanãoterdeconvivercomapopulaçadeArrifes,queconsiderava indignadoseuestatutodeestreladacanção.Aquelagentalhanãopercebianadadeescalassociaiseprioridadesnaordemdorespeito.Enervava-aanotoriedadedatalbrasileirasemeiranembeiraquetodasasmulheresvisitavameescutavam,comosefosseumoráculo.LamentavaadestruiçãodoPortugaldeSalazar,ondecadaumestavanoseu lugaresabiacomosecomportar.

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8-RauleadecepçãoPorqueinsistonestailusãodefamília?Meuirmãodescobriuagoraofado;foiouvirumaRosaCabral

queémuitoenaltecidapelassuascantoriaslúbricaseprocura-meatodaahoranochat.Estáprecisandode um compincha com o qual possa partilhar as suas entusiásticas teorias sobre a singularidadeportuguesa.Querimpressionar-me.Issoésaudadedopai;ovelhofoiemboraem2011.Hámuitosanosquecortámosrelações,porcausadoseudesprezopelaprópriamãe.Sóoaceitocomoamigovirtual.Aamizadevirtualvalezero,éumjogointelectual.Pelomenoséissoquefaloparamimmesmo.

Nas noites de solidão navego pelas redes sociais, crio um personagem cínico, crítico: provoco,insulto,insultam-me,vouprocurandofazerqueexistoassim.Jáquenãoconversocomninguém,mesmo,desistideacreditarnaamizade,vou-medivertindocomessarealidadevirtualeessaintimidadeforjada.Preciso de sentir que alguém me observa, que os olhos de alguém pairam sobre a minha vida. Édesesperanteimaginarqueanossavidanãoestáaserregistada.Sempresonheicomumafamília.QuandomesepareideIsabel,mãe,irmãosetiasconvidaram-meaaparecer—masnãofariasentido.Isabelrefezasuavida,arrumouumhomem,quelógicateriaqueaparecesseoexnasreuniõesdoclã?Eterrívelperderumafamília;foipenosoentender,derepente,quesetratavaapenasdeumafamíliadeempréstimo,apesardeeugostarmuitodeleseelesdemim.Sobretudoquandoafamíliaquenãoeradeempréstimonasceujádanificada,semreparaçãopossível.

Hámuito tempo que não troco ideias ou interajo com um amigo de carne e osso. Onde estarão?Emigraram?Comacriseparecequesumiram.Outalvez,cobardemente,tenhasumidoeu.Sempretenhoaimpressãodequeaminhapresençaosvaiincomodar.ConcedosairdomundovirtualeacaboporaceitaroconvitedeRafinhaparajantarnoToscano,naParede,umbelorobaloaosalregadoabomvinho.Atéporque é ele quem vai pagar. Finjo não guardar esperança de que algum dia ele se humanize,mas averdadeéquetenhoalgumafénessesúbitoamoraPortugalqueeledescobrepertodossessentaanos.

Paraminhasurpresa,declaraquevaivisitaramãe:atéjálhetelefonou,dizendoquevai.Revelouaosseusnovosamigosdomeiofadista—namaiorcrisedesempre,PortugalagoraéinparaoWashingtonPosteTheNewYorkTimes—quetem«passaporteportuguês»,ébrasileiromasdemãeportuguesacomquemnãofalaháanos.Imaginoqueessesnovosamigostenhampuxadoolustroaosentimentodeculpadele. Agora quer que eu o acompanhe; temmedo de enfrentar sozinho a visão do casebre e da mãeenvelhecida—não temestruturapara lidarcomo lado tristeque fogedo idealdevidanew richqueconstruiu.Recuso-, esse reencontro temde serpessoal, ficapor contadele.Alémdequeeu sópossovisitaramãeaofim-desemana,eaofim-de-semanaeletemprogramaçõesboémiasparaseexibircomoportuguêsdegemanaelitedafadistagem.QuerfazeressavisitaantesqueFláviaeMariana,asuamulherefilha,venhamtercomeleaPortugal;ésabidoqueFláviaatribuimuitododesequilíbriodeRafaàsuafamíliadesconjuntada,esempreprocuroumantê-loaumadistânciadesegurançadosfalhadosque,nasuaopinião,devemosser todos,daminhamãeàminhairmãRita.Fláviafoiamulherqueeleconheceunajuventude.Comoseujeitosereno,asuasabedoriaparafecharosolhosaoquenãoquerver,easuamãoparaosnegócios,ajudou-oaserohomemricoerespeitadoquehojeé.Fláviaéamobília,asegurança,oepitáfio.Amãeelegantequeelepôdeescolher.

Averdadeéque, talvez injustamente,sempreculpeiFláviadoafastamentodeRafaelemrelaçãoàminha mãe. Flávia vem da alta burguesia carioca, cheia de pretensões e de desdém pelas classespopulares.Comoseutemperamentosuave,foiafastandoRafaeldecadaumdenós.Pelomenosessaéaversãodaminhamãe,eeucomprei-a,porqueémaispráticoencontrarbodesexpiatóriosexteriores.AminhamãejamaisadmitiriaquenãosoubedarvaloresaRafael,empartepornegligência,empartepor

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nãoterconseguidofazerfrenteàinfluênciademeupai.Talvezaspessoasnasçammaisprontasdoquegostamosdeacreditar.

Rafael sempre foi brutal, competitivo— e insuperavelmente cativante, quando quer trazer alguémparaoseuredil.NumadassuasprimeirasvisitasaPortugal,nosanosoitenta,foirecebidoemLisboaporumaamigadaminhamãecasadacomumempresárioricoequelheprodigalizoutodasasatenções.Nadespedida,deixou-lheosseuscontactoseinsistiuemqueasenhoraoprocurasse,quandoumdiafosseaoRiodeJaneiro.Umanodepois,asenhorafoimesmoaoRioeprocurou-o;Rafinhamandoudizerquenãoestava, não lhe atendeu os telefonemas, ignorou-a por completo. Sem perceber o que se passava, asenhora continuou a insistir, até que omeu irmão atendeu o telefone, despachando-a com brusquidão.Rafaelreflectealgumafaltademaneiraseaespontaneidadedaminhamãe,umaamantedaBelezaquesefez a ela própria. Porém, a nossamãe Jacinta jamais cometeria semelhante grosseria.O egoísmo e oegocentrismonãolheforaminculcados,nasceramcomele.Recordacadaumadassurrasqueminhamãelhedeu,masnuncaevocaaqueleminutoemquemeupai,numassomodefúria,partiuumacadeiranasuacabeça. Ambos teriam as suas razões. Nenhum deles me bateu, uma única vez— e isso é algo queRafinhanuncameperdoará.

Tentoconvencê-loairvisitaramãecomosamigosdofado;sejálhesfalouqueamãeépobreevivenuma aldeia, que teme? Estamos em Junho, o jardim de minha mãe estará cheio de rosas, amores-perfeitos,alfazemaehortelã,perfumadoeverdejante.OmurodescascadoeaprecisarháanosderebocoprotegeumpedaçodeterraqueéopróprioesplendordaPrimavera.Nofundo,seiquemeenganoamimmesmoquandoapoioRafaelnessasuaideiasúbitadevisitaramãe.Precisodeacreditarqueaindatenhoum irmão,mesmoque eu às vezes sobreviva a atumcomarroz para sustentar amulher de que ambosnascemos.Umamãepelaqualomeuirmãomaisvelho,doaltodasuariquezaedosseusquasesessentaanos,nutrevergonhaeressentimentos.Tambémeutenhovergonhadacondiçãodela;apenasfaçooquepossoparaalterá-la.

Conheçotãobemavergonhaeoressentimentoquedeixeidetermedodeles.Quando,aosdozeanosdeidade,umafraquezapaternanosdecepcionaapontodetermosvergonhadeexistir,ficamosvacinados.Numdia quente deMarço,meupai pediu-mequeo acompanhasse a uma coisa qualquer que tinhaderesolveremDuquedeCaxias,umapobrecidadesatélitedoRio.

Estranheiessapropostadepasseioíntimoentrepaiefilho;issoeracoisareservadaaoRafinha,nãoamim.Alichegados,entrámosnumcaféeomeupaiperguntou-meseeuqueriaumrefrigerante.Comtantocalor,disselogoquesim;entãoapresentou-mesobreamesa,viradaparamim,umacadernetadechequesem branco para que eu copiasse num deles a assinatura que estava na cédula de identidade de umdesconhecido,quepousouaolado.Apeteceu-meumgoledosuco,achoqueparadisfarçarquesabiaqueestavaprestesatentarserusadopelomeuprópriopai.

—Não,pai.Issonão.Issoeunãofaço.—Masporquê,Raul?Fazissopròpai.Vocêéomeuartista,euseiquevocêécapaz.Vocêfazisso

numinstante.—Não,pai,issonão.Nãomepedeissonão.—Masfilho,issonãotemnadademais,édeumamigodopapai.Podefazer,nãotemproblemanão.

Fazissopròpai.Vai.Opaipedeumsorvete.—Nãofaço,pai,nãodánão...Ebaixeiacabeça.Negar a um pai o exercício de uma habilidade que era motivo de orgulho aos doze anos, é

angustiante.A insistência dele torturava-me,mas resisti. Então SeuRamiroLobo que, dependendo dasituação,davaparaoorgulhoso,saiudocaféemdirecçãoaoorelhãodooutroladodarua.Poucotempo

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depois apareceu um sujeito alto,magro,moreno, de camisa aberta, cabelos emdesalinho, coma caraderrubadapeloálcool,quefezaassinaturaqueeunãoquisfazer.Aindarecebidemeupaiumolharquemefezsentiruminútil.ApenasaRitaconteiesteepisódio.

MeupaifoisempreoheróideRafinha.Oheróidomeupai,porsuavez,asuafigurapaterna—seriao verdadeiro pai dele?—, era o tioVítor, irmão da avóAugusta, que levou a vida inteira vendendoloterianarua,boemiandopelossambasetombandomulheres.Umautênticomalandrocarioca,sempredetemoclaro,lençoamassadonobolsodocasaco,cabelomuitopenteadoparatráspejadodebrilhantina,bafo de bebida, uma penca adunca e pequenos e vivos olhos azuis, que acusavam a longínquaascendência franco - italiana dessa parte da família. Uma figura que na infância, não sei porquê,associavaaoBarãodeMünchhausen.Achoqueporcausadeumagravuranumlivro.

Ocarinhoeaalegriateimosadaminhamãesalvaram-medestemundodeheróis.Escolhiouniversolimpo das linhas arquitectónicas, da atenção à beleza inesperada, do sonho e da imaginação a fundoperdido. E da solidão da prancheta, provavelmente, também. Na dúvida, é sempremais seguro estarsozinho.

Tambémomeupaiacabousozinho,comumúnicofilho.QuandoRamiromorreu,jánãoviviacomsuasegundamulherhámuitotempo;cercadetrêsanosdepoisdasuaoperaçãodeponteaortocoronária,Irenetrocara-oporumhomemdaidadedela.OsfilhosdeIrene—duasraparigasedoisrapazes—apoiaramadecisãodamãe;entendiamadificuldadedeaturarovelhoRamiro,cheiodeidiossincrasias,maniaseditamesadquiridosnumavidaduradecaixeiro-viajantedaJustiça,vendendolivrosdeDireitoportodoopaís,comlongosperíodosdeausênciadecasa,passadosdentrodeautocarrosemviagensimensas.Aténa distante Rondónia Ramiro havia ido vender O Código do Processo Civil Anotado. A chegada daInterneteosmalditosficheirosemPDFforamdandocabodonegóciodeRamiroque,noentanto,possuíaumsuplemento financeiroque lhepermitia trabalharapenasno limitedonecessário.Recebia todososmeses uma aposentadoria razoável que lhe garantiu a educação dos filhosmais novos e algum juízo,conseguidocoma ajudadeumadvogadocomcontactosnaPrevidênciaSocial, que lhe catouanosdecontribuições desde o tempo de fiscal da Prefeitura, o período do jornal, e os muitos anos comonegocianteevendedor.MeupaihaviasidomuitoirregularnascontribuiçõesparaaPrevidência,masumbomadvogadobastouparacontornaressesburacos.

Naseparação,sóRonaldo,ofilhomaisvelhodeIrene,acompanhouomeupai;Ramiroensinara-lheoofício de vendedor e as enciclopédias de Direito foram dando lugar a fichas de cozinha e livros dereceitas.Ovelho limitava-seagoraa supervisionarasvendasàdistância.TrocaraCampos,a terradamulher, por Cabo Frio, cidade marítima que lhe lembrava o movimento do Rio e as águas deCopacabana, só quemais limpas. Voltar para o Rio, nem pensar, fazia-lhe confusão. Excepto quandoRafinhainsistiaepagavaaspassagensparaqueRamiro—acompanhadoporRonaldo,quenuncalargavaopaie imitavaas roupasecostumesdovelho,ospenteadosdeoutros tempos,ascalçasvincadas—fossecomeleaoMaracanãverumaououtrafinaldecampeonatocomogloriosoFlamengo.Oclubedefutebol servia de catalisador emocional entre aquele pai e aquele filho que agora já nada tinham emcomum. Pouco restava para dizerem um ao outro. Ramiro passava três quartos do tempo a falar dosquatrofilhosmaisnovos,louvandoesteouaquela;insistiasempreemfalarparaafrente,paraofuturo,eraumsobrevivente.Rafael,talcomoeu,criaralaçoseternoscomopassado.OsdoisfilhoshomensdeJacintapossuemessacaracterística idêntica.Ainfânciaconturbadaprecisasempredeserresgatada.Alembrançasilenciosadasnossasdiabrurasdecriançaencobertaspelopaiedascedênciasàsexigênciasda mãe, redundando em surras, brigas e discussões entre pai e mãe aos fins-de-semana é o laço denostalgiaquemeuneaRafa.

CreioqueRafaeleRonaldo,osdoisfilhosmaisvelhosdeRamirodediferentescasamentos,ficaram

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marcados pela figura apaixonante daquele pai carismático, com os seus bordões engraçados, as suasobservaçõessexistassobreasmulheres,osabsurdoscomentáriosviperinosacercadesteoudaquele,oseucepticismotocadopelaesperança.

Aos oitenta e um anos, omeu pai resolveu visitar Rita e os netos emCampos. Suponho que terásentidosaudadedaquelaoutrafasedasuavida.Sentadonapoltronadoautopullman,debraçoscruzadospara se defender do frio do ar condicionado, pensaria talvez que Rita, separada e com dois filhos,escolheraaproximidadedopaipararecomeçar,depoisdeumatentativamalogradadeviveremPortugal.Eraasuaprimeiramenina,talcomoRafinhaeraoseuprimeirovarão;nainfânciaforamuitoapegadaaele, como normalmente sucede entre filhas e pais.A separação abrupta de Jacinta e o inconformismocontestatárioprópriodapuberdadefizeramcomqueperdesseaconexãocomestafilha.OressentimentodeRitaeraevidente:maisdoqueperderopaizinhoparaoutrafamília,elasentia-setraída,deumaformamuitopessoal.

Ao chegar a casa deRita, um dos netos teve a ideia de fazer uma ligação através do Skype comPortugal, tentando falarcomigo,quehácercadedezanosnão falavacomomeupaienessemomentoviviaemArrifescomaminhamãe.Nofundo,eunãoperdoavaaatitudedisplicentecomqueomeupaisaíradanossavida,semnuncaterajudadoaminhamãeouqualquerumdenós.Ramirotinhafeitoumaopção:paraelesóexistiaanovafamília.Eusentia-mearrumadonumagavetadopassadodomeupai.

A ligação foi feita e aceite; euvia e falava comopai, comumoceanopelomeio,depoisdeumadécada de interregno. Sorrisos sinceros, conversa de circunstância, há quanto tempo, como vão osmeninos e asmeninas?—o assuntoque eu sabia agradar aomeupai.Masnãoodeixei terminar; fuichamar aminhamãe e espetei-a naminha cadeira ergonómica de arquitecto, em face do computador.Quandosoubedequemsetratava,aminhamãepenteouocabelocomosdedostrémulos.Ambosjásehaviam visto com muita idade e não houve surpresa de maior. Falaram como dois velhos amigos.Trocaramjurasdeamoreterno.FalarammaldeRafinha.Gabaramassuasvidasactuais,assuascasas,osseus amigos, as actividadesdodia-a-dia.FalaramdeRita, dosnetosmaravilhososque ela lheshaviadado.Tentavamconvencer-semutuamentedequeeramfelizes,dequenãohaviaressentimentos.JacintaconfessouassaudadesdoBrasil,RamiroprometeuviraPortugalembreve.Depoisdissemeque tinhamuitoorgulhonofilhoqueeuera,cuidandodamãe.

Mesesdepois,RamirodeuentradanoscuidadosintensivosdeumaclínicaprivadaemCaboFrio.Eusoube-o atravésdeRita e enviei umamensagemaRafinha, imaginandoqueo filhodilectodeRamiroquereria saber o que se passava. Porém, Rafinha não telefonou, não quis saber. Ramiro morreu umasemanadepois,eRafinhanãofoiaoenterro.Ronaldopassouaviversozinho.Deixoudeladoosapatobico fino, as camisas estampadas.Meteu-se nuns calções e nuns ténis e nuncamais quis vestir outracoisa.Podiaserjovemparasempre,depoisdetersidoumvelhodeimitação.

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9-SaudadesdamachambaAlice percorria diariamente os vinte quilómetros que separavam Arrifes da selvagem Praia das

Raposas. Quando era mais nova, fazia-o de bicicleta; agora ia no Peugeot prateado que ganhara noprograma televisivo Acerte no Preço. Alice inscrevia-se em todos os concursos televisivos. Querchovesse,trovejasseoufizessesol,ecomexcepçãodasvezesemquesedeslocavaaLisboaparatentaraparecernatelevisãoeganharalgumacoisa,nãohaviaumsódiaemquenãofosseveromar,quelhelembrava a felicidade da sua vida em Moçambique. Os pinheiros fustigados pelo vento não lhemitigavamasaudadedosembondeirosquietos;apaisagemsemeadadecasas,montesepomaresnãoafazia esquecer a terra larga e corde fogoda sua juventude africana,maso areal eomar revoltoquenamoriscava,numacoreografia insinuante,aságuasquevinhamdalagoadeLagar,consolavam-na.AlichoravaegritavaaocéunosdiasdeInverno,quandonãohavianinguémparaaouvir.Ofilhoforaestudarengenharia electrotécnica para Lisboa e acabara por emigrar para a Inglaterra; o marido morrera hámuitos anos. Estava enterrado no cemitério de Arrifes, e Alice gostava de se sentar na campa paradesafogardúvidasepesares.AsuaoutragrandeinterlocutoraeraJacinta,àqualtratavacarinhosamentepor«minhaPrincesa-Mãe»;tambémelaviveranummundomaisvasto,tambémelaperderaparasempreopaísdasuajuventude,tambémelaatravessaraperíodosdegrandesofrimentodecabeçaerguidaesorrisoaberto.

Agora pensava na tristeza que inundaria a sua vida se essa amiga, na qual revivia a mãe,desaparecesse.Quemcompreenderiaassuasmágoasepartilhariaosseussonhos?UltimamenteJacintatinha, além de grandes dificuldades para andar, uns longes de apatia, uns laivos de demência quedisfarçava com habilidade, como se a sua inteligência soubesse cobrir com um véu a derrocada queavançava, inexorável. No entanto, pensava agora Alice, mesmo quando parecia não dizer coisa comcoisa,Jacintafaziamaissentidoetinhamaisgraçadoqueamaioriadoshabitantesdaaldeia.Eraumamulherdomundo,observadoraearguta;nãojulgavaninguém,masnãodeixavaescaparnenhumpormenordosgestosedoscomportamentosdaspessoas.Alémdisso,tinhaumadisponibilidadepermanenteparasealegrarcomabelezadeumaflor,deumanimalrecém-nascido,deumentardecercheiodecambiantes.OfimdodiaapunhalavaAlicecomumaangústiafunda;naterraondecrescera,anoitedesabavacomoumpanodecenanofinaldoteatro;emPortugal,oanoitecereraumprocessolentoquelherecordavaamorteeaenchiademelancolia. Jacinta, regressada tambémdeumpaísdenoite súbita, aconselhava-aaqueolhasseparaessadiferençacomoumavantagem,umashorasdecontemplaçãodasimensastonalidadesde cor existentes no céu, e que agradecesse essa forma peculiar e gratuita de beleza. Jacinta estavaconvencidadequesevivêssemoscomosolhos fixosnobomenobelo,omalnãopoderia tocar-nos.Alicenãoatingirianuncaestedomdeaceitaçãoserena;eraunsbonsanosmaisnovadoqueJacinta,edeíndole fogosa. Nunca estava parada; lia enquanto o ferro aquecia e passava a roupa em frente datelevisão.Vestia-seemaquilhava-setodososdiascomosevivessenacidadeetivesseumpúblicoparaaadmirar. Jacinta, que outrora experimentara os gostos mundanos da urbe, gostava dessa garridice;comovia-aperceberqueaamigaseproduziaparalhedarprazer.

Nunca se curara da revolta contra o mundo que perdera, com a descolonização de 1975, queclassificavacomo«atabalhoadae injusta».AterraraemPortugalcomomaridoeo filhopequeno, trêsmalas de roupa e nadamais. Encaixara-se com a família na casa dos sogros, emArrifes; durante osprimeirosanos,ocasaldormiacomofilhonumquartoexíguo.Asograqueixava-sedefaltadeespaçoediziamaldanoraàvizinhança:queeraumapresumida,quenãoajudavanastarefasdomésticas,enfim,queo filhomereciamelhor.Acusava-a tambémde ter instigadoo filhoaestabelecer-seemAfrica,ou

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seja,acaminharparaatragédiaqueseestavamesmoaadivinhar.Alicedesdobraraseemactividadesparacomporasfinançasfamiliares:faziabolosparafora,vendiatupperwares,tricotavacamisolasdelãparaaslojasdeLagar.Oqueomaridoganhavacomofuncionáriodeumnotário,emTermasdoRei,nãobastariaparavoltarema ser independentes.Ao fimdeunsanos,conseguiramcomprarapequeníssimacasa ondeAlice aindamorava; era ummicromuseu de arte africana, composto pormuitos objectos jácompradosemPortugal,parasubstituirosmuitosoutrosquetinhamficadoparatrás,nalargamachambadafamília,emJoãoBelo,actualmenteXai-Xai.

NoVerão,entabulavaconversacomingleseseholandesesnobardapraia;falavamdoshábitosdosseuspaíses,dasviagensque faziam, eAlice sentia-semenosaprisionada.Esforçava-sepor semantersempre ocupada; ajudara com empenho a criar o coro da igreja e tornara-se a principal assessora dopadreFrancisco.Alémdisso,dinamizavaumgrupodeescuteiros,prolongandouma tradiçãocultivadapeloseudefuntomarido,faziaginásticanoCentrodeDiaefrequentavaumcursodepinturanumcentrodeartesemLagar.

Apercebia-se agora da importância central da amizade de Jacinta. Penalizava-se por ternegligenciadoumpoucoessaamizadenosúltimosanos;deixaradeirbuscarasuaPrincesaMãetodasasmanhãsparaalevaratéaocafé,eJacintajánãoconseguiadescerapéaladeiraatéaocentrodaaldeia,oquesignificavaque,semaboleiadeAlice,nãopoderia ir.Averdadeéque tambémAlicesesentiaenvelhecer,etinhaumadificuldadecrescenteemselevantarcedo.Noentanto,nuncadeixoudecumprirovotoqueumdiafizera,decuidardospésdasuaPrincesa-Mãeenquantofosseviva,comofariacomasuaprópriamãe.Umaouduasvezespormês,traziatesouras,limas,cremesevernizeselavavaearranjavaospéscadavezmaisinchadosedisformesdeJacinta.

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10-RauleaCulpaMinhamãenão reage.Digo-lhequeabraosolhos,nada.Não sei sequer semeouve.Adoenteda

camaaoladocontaqueaindaontemcantouodiainteiro.Procuroamédica,quemeampliaaculpa:—Osdoentessemvisitasdeprimem,osenhordevesaberisso.Respondo-lhequeasamigastêmvindovisitá-lacomregularidade,equenãovenhomaisporquenão

posso,trabalhoemLisboa,comhoráriofixo.Encolheosombroseacrescenta:—Pois, mas um filho é um filho, não é a mesma coisa. Aconselhame a que vá buscar-lhe umas

revistas cor-de-rosa, para a estimular. Afirma que uma pessoa acamada há quase ummês precisa deestímulos.Pensoqueoqueelaestáadizer-meéqueeudevialevarminhamãeparacasa.Mascomo,senemabreosolhos?

—Asuamãejáchegouateralta,comosabe.Sim, falaram-me já de noite, há cerca de dez dias, dizendo que ela tinha alta. Expliquei que só

poderiairbuscá-ladaíadoisdias,equandochegueinohospitalaaltajálhehaviasidoretirada,porquetivera umas convulsões cuja causa ainda não haviam entendido— e por isso teria de ser enviada deambulânciaaLeiriaparafazerumaressonânciamagnética.FaleicomTeresa,umaamigadeIsabelqueéenfermeira e queme aconselhou a não sair com aminhamãe para casa e a fazer pressão para que ohospital a encaminhasse para a tal rede de cuidados continuados, que supostamente existe, mas que,segundoaassistentesocial,napráticanãoexiste,porqueestásobrecarregada.Tentamsempreempurrar-meparaabuscanaInternet,ouseja,paraunidadesprivadas.Comovoupoderpagarosnovecentosoumilequinhentoseurosmensaisquecustamessescentrosprivados?

Voucomprarasrevistas—NovaGente,TVSeteDias,Superinteressante—quedeixoàcabeceiradaminhamãeadormecida,jásabendoquenãolhesvaideitarolho.DevolvonaportadaenfermariaocartãodevisitanteeponhoaOpelCombo,queoutroraserviaparaosmeusempregados,devoltaàestrada,parafazernuminstanteoscatorzequilómetrosqueseparamoHospitaldeTermasdoReidaaldeiadeArrifes.A meio do caminho, como sempre, enquanto conduzo, distraio-me na contemplação da silhueta damuralha medieval da vila de Lagar, com suas ameias que parecem dentes, formando uma enormecremalheiradevelhoacéuaberto.Respirofundooarsecodasplantaçõesdefrutas.Problemastinhamaquelestiposparadefenderestaviladosinimigos;euestoureclamandodequê?

ParonoCaféCentrale,buscandoaserenidadenumlicordepêra-rochacomgeloquebebocomsofre-guidão,indagoaospresentesporalguémdisponívelparaficarduranteanoitecomaminhamãe,atrocodeumsaláriodetrezentoseurosquenemsequerseiondevouinventar.Mulheresehomensdemoramadizer que não, não sabem de ninguém. Levam tempo a responder; primeiro desviam a atenção datelevisãoe,imóveis,olham-mefixamenteenquantosaboreiamnosouvidosamúsicadomeusotaquedeestrangeiro,parasódepoisprocessaremapergunta.Afilhadadonadocafé,minhaprimaafastada,sugerequeeucoleumanúncionaparede,cána terraéusualeamãedelanãose importanada.Explicoquebastaencontraralguémquefiqueduranteanoitecomaminhamãe.Dedia,vêmasmulheresdoCentro,epara as sessões de fisioterapia o hospital enviará ambulância de transporte.Não é o ideal,mas pelomenosaminhamãeficarianasuacasa,noseuambiente.Semprefalouquemorreriasefosseinternadanumlar.

Teresa,enfermeirasolícitaeexperiente,aconselhametambémaquenãoapareçademasiadasvezesno hospital porque, quando o pessoal começa a ver a família muito presente, dá alta aos doentes,qualquer que seja o seu estado de saúde, para libertar camas e não aumentar o número de óbitos nohospital.Pensoempedirumas fériasnocall-centerpara ficaracuidardeminhamãe,pelomenosnasprimeiras semanas. Teresa diz-me que isso é o pior que posso fazer, porque a recuperação demorará

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muitotempo.Ecorrooriscodequemorraassimquechegaracasa,oquemeaumentaráaculpaemeobrigaráaumainfinidadedeformalidadescomplicadas:viráapolícia,terádesefazerautópsia,enfim,umfilmedeterror.

Percorroaaldeiasondandoruaaruamas,apesardacrise,ninguémestádisponívelparadormirnacasadeumavelhotadoente.Alicedizque,seasuacasanãotivessetantosdegraus,alevariaparaláeficariacomela.Masalegaquejánãotemidadeparadormirforadecasa,eque,dequalquermodo,noestadoemqueminhamãeestá,édemasiadaresponsabilidade.Rosáriotemomaridoecincocãesquelhetomamtodootempo.AsmulheresdoCentrodizemquenãopodemabandonarasfamílias.ETeresa,aotelefone,continuaarepetir-mequeistoémáideia,queaminhamãenãoestáemcondiçõesparasairdohospital, e que, quando estiver, deve ser o próprio hospital a enviá-la para um dos tais centros derecuperação.TeresaacreditaqueoEstadoSocialaindafunciona;euvejoqueelesedesmoronadiantedosmeusolhos,aoredordocorpodeminhamãe.

Ésábado;durmonacamadela,depoisdecomerumalatadeatumcompão—oquemedáazia—edebeberunscoposdovinhodegarrafãoqueminhamãesempretem,paraempurraracomida.Emagreceuunsvintequilosnoúltimomês;apelesolta-se-lhesobreocorpocomoumvestidodemasiadolargo.Nodomingo,paraminhasurpresa,encontro-aacordadaelúcida.Abraço-aeabraço-aeabraço-aefaloqueaamomuitoemuitoemuitoequetemdereunirforçasparaserecuperar.

—Meufilho,vocêaindanãoencontrouasuamulher?Rio-me,respondoquenão,quenãoquerosaberdemulher,que,comodizaoutranatelevisão,«isso

agora não interessa nada». Sorri, abana a cabeça, fala que não é verdade, que o amor é a matériafundamentaldavida.

—Orestosempreacabaseresolvendo.Avidaémuitocurtaparadispensaroamor.Éissoquenosdáforçaparaaguentartudooqueéfeioenãopresta,acreditenasuamãe.

Acaricia-meorostoeocabelo,comumsorrisotriste.—Nãofiquesozinho,meufilho,sussurra.Semdentes,nãotemcomoterumsorrisoalegre,osorriso

quesemprefoidela.Pareceumbebétristonho.— Tenho um pressentimento de que você até já encontrou a sua mulher. Talvez não tenha tido

capacidadeparaaidentificar.Hoje,comaspressas,issoacontecedemais.PensoemJaciara,nopactoquefizemosdeficar juntosse,chegandoavelhos,nenhumdenósdois

tivesseencontradooseupar.ConheciaumanodepoisdaminhaseparaçãodeIsabel,numafestanumbarbrasileiro,oBossaBrasil,noEstoril,pertodoapartamentoondeeuentãomorava.Jaciara,umamulhernordestinadetrintaedoisanos,baixinha,morenaegraciosa,largarapai,mãeeirmãoemPernambucoeinterromperaumtardiocursodeLetrasnaUniversidadeFederal,aceitandoodesafiodeumaamigaparavir trabalharnumacasade alterne emPortugal.Aamiga,Giolene, jurara-lhequeo trabalhonão tinhanada de comprometedor: seria só fazer companhia aos homens que vinham para beber uns copos edesabafar. Porém, Jaci logo se apercebeu de que se esperava dela bemmais do que isso; os homensbotavamamãonassuaspernasgrossasefaziam-lhepropostassexuais.LargouacasaearranjoutrabalhonoBossaBrasil.Era simpática, bem-falante, olhos alegres—eeu, embaladoporumanode solidão,pedi-lheotelefonequeelamepassousorrindo.Telefonei lheváriasvezesenuncameatendeu.Deixeipassarummêsevolteiaobar,ondedenovomeatendeucomsimpatia.Indagueiporquerazãomederaotelefone se afinalnãoestava interessadaemsair comigo, e contou-me,meioencabulada,que tinhaumnamorado,umhomembemmaisvelho,pilotodaTAPaposentado,quenaquelemomentoestavaavisitarafilhanaÁfricadoSul,masdoqualelagostavamuito.

Ocertoéqueaceitousairumanoitecomigo;fomosaoSalamandraemCascais,comvistademarecervejaestrangeira,edesfiou-meosseusproblemas:vivianumapartamentodoBairroJotaPimentacom

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Gioleneeonamorado,ummotoristadetáxibrasileiroqueseapaixonarapelaamigaeatiraradacasadealterne,maselesestavaminsistindoparaqueelaarranjasseumlugarparamorarsozinha;ganhavamenosdoqueosaláriomínimoeprecisavadeumcontratodetrabalhoparaalcançaraautorizaçãoderesidênciaemPortugaleteracessoacuidadosmédicos.Umdiasentirauma«fisgadaforte,desdeacinturaànádegadireita»,nomomentoemqueoseucorpomiúdoinsistiaemlevantarumcolchão,fazendoacamadeumquartodehotelondetrabalharailegalmentenoEstoril.Adorque,conformeamudançadotempo,davadesi,impedia-adeseempregaratempointeironumaresidência,ondeteriadefazerpesadostrabalhosdelimpeza.OBossaBrasiljátinhaoseulimitedeempregadoscontratadosenãoapoderiamanterporalipormuitomaistempo;apenasaajudavamadesenrascar-seatéquelheaparecessealgumacoisa.Sugeri-lhequepedisseaonamoradopilotoquelhefizesseumcontratocomoempregadaemsuacasaequefosseviver com ele—quemelhor situação poderia desejar o homem, sozinho, viúvo e com a filha longe?Afinal,Jaciarajátinhafeitoessaproposta,masonamoradorecusara,dizendoquenãoerabommisturartrabalhoe relação.Naépoca,oatelierqueeu formaracommaisdois arquitectos já andavaparcoemtrabalho,eossócioshaviamsaído;mesmoassim,empreguei-a,fiz-lhecontrato,comosaláriomínimo,subsídioderefeiçãoetransporte.DemosentradadospapéisdeJaciaranoServiçodeEstrangeiros—evirámos namorados. Quando regressou das suas viagens, o ex-piloto da TAP foi surpreendido pelamudançade situação;percebeuque se lheescapavaentreosdedosa suabem-aventurança tropicaldesexagenárioviril.Entãoofereceu-separafazerotalcontratodemulher-a-diasqueanteriormenterecusara—ressalvando, todavia, que se manteriam cada um em sua residência; mas Jaciara despachou-o deimediato.

Eusentia-mecontenteporteralguémcomquemrepartireuforiaseproblemas;Jaciaraeraeficientenotrabalho,eajudou-meatéarecuperaralgunsclientes.Porém,apósosprimeirostrêsmesesbrigávamoscom alguma frequência, e sempre pelomesmomotivo: sexo. Jaciara eramais do que uma nordestinavulcânica; um incêndio. Apesar de pequenina, possuía um órgão sexual proeminente, do qual seorgulhava:«Eusoumuito"periquituda”»,brincava.Paraela,umarelaçãodeamorbaseava-seemtransartodososdias;euvinhadeumanodetotalabstinênciaesemprehaviasidomuitocerebral;nãoconseguiaresponderàinsaciedadequeaafligiaemeaborrecia.Nasprimeirassemanasnemconseguiaconcretizaroacto;achoquefoiumadasrazõespelasquaisJaciaraseapaixonoupormim.Umdia,comacabeçadeitada no travesseiro após mais uma noite de tentativas e falhanços, enquanto me fitava comcuriosidade,falou:«Euvouquerervocêparamim.»Passadaafasedeinsegurançanaqualtodamulhertemeser rejeitada,a incapacidadedeentregadeumhomemeoseufalhançosexualconvertem-senumgrandedesafioàsuafeminilidade.Quandoacerteicomo jeitodefazermosamor,easnossas relaçõessexuaissetornaram,domeupontodevista,muitoprazerosas,Jaciaracontinuouaacharpouco,acusando-medenãoadesejarosuficiente.Segundoela,oseupilotodeaviões,aossessentaequatroanos,estavasemprepronto,eerahomemparatermaisqueumorgasmopornoite.Eu,aosquarentaepoucos,sentia-menessashorasumincapaz,masnãomeabalavapropriamentecomisso.

Outracoisaquecomeçouaincomodar-mefoiodiscursoderevolta,aprincípiosubtil,masqueaospoucos começou a tomar proporções doentias, de Jaciara em relação a Portugal. Uma vez que seencontrava protegida e em ambiente seguro em minha casa, e tendo já metido os papéis para a tãocobiçada legalidade da sua existência em território europeu, Jaciara desenvolvera uma impaciênciairritante em relação aos portugueses em geral e revelava uma raiva profunda pelos dois anos dehumilhaçõesquesofreracalada,porcontadacondiçãoilegalquefaziacomquepudesseserexpatriadaaqualquermomento:bastariaumasimplesdenúnciaouumablitzdoServiçodeEstrangeiroseFronteirasnumbarzinhoounarua.OsimigrantesilegaisnaEuropasãoautênticoscidadãosdesegunda,vivemsobumpavorquenãodevesermuitodiferentedeoutrostemposemqueaspessoaseramperseguidaspela

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raçaepelareligião.De repentecomecei a temerqueela engravidassee eu ficassepresoaestamulher cujaalegriade

viverecoragemmeanimavam,mascomaqualnãoencontravaautênticospontosdecontacto.Defacto,creioqueanossaaproximaçãosedeuporqueeutinhaumaenormesaudadedeserfeliz.

Asituaçãoresolveu-sepertodoNatal,quandoanuncieiqueminhamãeviria,comosempre,passarummêsláemcasa.Nãogostoudaideia;dissequeummêseramuitotempoparaqueacasadelafosseassiminvadida.Éextraordináriocomoaspessoasquenãotêmnadaseapropriamdoterritórioalheio,logoquesesentemacolhidas.Oembatecomaminhamãedeu-senoprópriodiadasuachegada;mamãecriticouatoalha com que Jaci estava cobrindo a mesa de jantar, dizendo que sabia que eu preferia outra, aosquadrados,muitomaisbonita,eelapuxou-meparaoquarto falando:«Raulzinho, tenhomuito respeitopor suamainha,maséouela,oueu.»SaiuJaciara,quearrumouumamalinhae foiemboranamesmanoite,peranteofingidoespantodeminhamãe.Partiunumtáxique,pelajanela,fiqueivendodiminuirnarua,duplicadopelaáguadachuvanoasfalto,sabendoquesedirigiaparaacasadeGiolene.Sentiporelaadordaderrota; sabiaquechegariadestroçadaà casadaamigadeondepartiraparaviverumavidanormal.

Telefonei-lhenodiaseguinteparaacertarmosascoisas;combinámosencontrar-nosnoJonasBar,noparedãodoEstoril,aofimdatarde.ChegueiàpraiapelotúneldoTamarizenocaminhoenxerguei-adelonge na esplanada na mesa do canto, um pontinho de casaco vermelho com um lenço azul-turquesaenrolado ao pescoço, aquela mulher nordestina tão pequenina e tão grande ao mesmo tempo, umaautêntica filha doBrasil. Admiro a coragem destas pessoas que, com poucos recursos e sem nenhumexército, se lançam na vida diante de todas as adversidades. Porque hão-de ser obrigatoriamenteinfelizes? Enquanto caminhava, desfiz-me num incontrolável ataque de choro.Mais uma vez fora umcobardeenãomeentregaraàquelamulher.Sentei-meefiqueiparadodiantedeJaciaraaverterumriodelágrimas que, quando não eram absorvidas pela minha barba, caíam pela mesa, lágrimas de pura eabsolutapenadela—pena,osentimentohorrívelqueminhamãepassoutodaavidaaensinar-meanuncasentir por outro ser humano.Agoraquepensonisso, talvez chorasse tambémpormim: tinhapenadasdificuldadesdaminhavida,ondeseacumulavamdecadênciafinanceira,mobilidadesocialdescendente,sonhos desfeitos. Afinal, eu identificava-me com Jaciara em vários pontos. Chorava pelo nossodesencontro.Erasinaldequeofuturoseriafeitodemaissolidão.

Jaciarachoroucomigo.Aocontráriodemim,aslágrimasvinham-lheportudoepornada,viviaàflorda pele.Enxugou as lágrimas e procurou animar-me, disse que isso era apenas umpercalço na nossarelação,quecontinuavatudocomodantes,queeunãoficasse triste.Nãomedisse,massabiaquantoaminha mãe era importante para mim. Pedimos duas caipirinhas e acalmámo-nos; necessitávamos depensar.Ouantes,nãopensar.Quando,enfim,recuperámosarazão,contou-mequenãotinhaondemorar,porqueGiolene jánãoqueriaqueelavoltasse;aceitara-aapenasporumoudoisdias.Eu tambémnãotinhacomocontinuaraempregá-ladepoisdofimdoano;aeconomiavoltaraadespencare,comela,ofluxode trabalhos.Eraprecisoentãoalugarumquarto.Numasó semana, comaajudada sua rededecontactos, Jaciara encontrou, por cento e cinquenta euros, uma vaga num quartomuito decente e commobíliasnovasemCascais,nacasadeumcabeleireirobaianoquesublocavaquartosno«Brasuquinha»—umedifíciocomarquitecturadoEstadoNovo,deapartamentosgrandes,pertodoHotelCidadela.OcolegadequartoeraumrapazgayjáconhecidodeJaciaraquetrabalhavanaBrásTransfer,umaempresaderemessasdedinheirovocacionadaparaimigrantes.Derepente,asorteestavadoladodela:comumúnico telefonema, arranjei-lhe trabalho como recepcionista num clube de ginástica em Cascais, cujoproprietárioemtemposhaviasidomeuclientenoescritóriodearquitectura.

Éestranho?desdequechegueiaPortugal,conseguidarempregoparamuitagente,semprefuiboma

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conectarpessoas—sónãoseicomoserbomcomigomesmo.Um dia entrou pelo prédio onde Jaciara morava uma horda de policiais, arrombando portas:

procuravamdroganacasadeumvizinho,mascomonãosabiamexactamentequaleraoandareoprédioestavacheiodeimigrantes,gentepobreeassustadiça,foramviolandoascasasantesdeperguntar.Estascoisasnãovêmnasnotícias.Aprepotênciaquotidianaacontecenosilêncio.

Continuámosafalar-noseaencontrarmo-nosocasionalmente,apenascomoamigos.Houveaindaumaderradeiratardedesexo,bonitaetristecomosempresãoasdespedidas-,Jaciaraapaixonara-seporumamericanooficialdaNATO—comodecostume,umsexagenário.Conhecera-onoclubedeginásticaesaíra com ele pela primeira vez na véspera. A noite romântica deixara-a em brasa, mas não quiseraentregar-senoprimeiroencontro,paraqueelenãoatomasseporfácil.Continuavatãoexcitadaquemepediu que transasse com ela «para lembrarmos para sempre um do outro». E assim foi, a nossa«transadinhadedespedida»,comolhechamouJaciara.

Seismesesmaistarde,procurou-me,denovoaflita;ressurgira-lheemforçaadorquelhetornavaotrabalhodepé,atrásdarecepçãodoginásio,umsuplício.Nãoconseguiacontinuarafazerturnosdetrêsmeses seguidos, semuma folga - como afinal lhe havia sido exigido pelo dono do clube, que farejoufragilidade numa brasileira com o processo de legalização em andamento e ainda à espera do cartãodefinitivo de Autorização de Residência, para o qual um contrato de trabalho válido era condiçãofundamental.Apar disso, como agudizar da crise os clientes diminuíame o ginásio estava a reduzirpessoal. Por outro lado, o namorado americano declarava que a adorava mas jamais abandonaria amulhereosfilhos,lánaremotaChattanooga.Jaciaraestavamesmodoentedepaixão:dera-semuitobemsexualmente comogringo.Este, por seu lado,nãoqueria envolvimentodemaior, ocupadoque estavacomosseusafazeresnasededaNATOemOeiras,acuidarquenenhumBinLadenseaproximassedePortugal. Acompanhei-a numa verdadeira romaria a clínicas e Centros de Saúde — após duasressonânciasmagnéticas,ninguémdescobriaaocertoasrazõesdasdoresqueJaciarasentiaentreazonadacinturaeanádegadireita.Umavez foi sozinhaaumaclínicaparticularemAlcabidechequehaviasidoarrendadapeloServiçoNacionaldeSaúde,porqueosCentrosdeSaúdedaregiãonãoestavamadarconta domovimento de doentes.Veio sem tratamento e de lágrimas nos olhos, dizendoque um jovemmédicotentaraabusardela—efuieuquem,maisumavez,aacolheuelheresolveuosproblemas.Fizumaesperaaomédicoedisselheumasverdades,ameaçandodenunciá-lo—tãofulofiqueique,aodarrécomaCombo,amasseiumadasportastraseirasnumcontentordelixo.Aindahojeestáláoamassado,quenãopudemandarreparar.

Era preciso outro emprego para Jaciara, desta vez sem contrato, pois estava de baixamédica doginásio.O que recebia da baixa não chegava para sobreviver e simultaneamente comprar a passagemparavoltar aoBrasil.Encontrei-lhe trabalhonumapequenaeditorade livros científicos franceses, umprojecto louco de um velho editor, pai de uma amiga de Isabel, que ficou feliz com a eficiência e aamabilidadedeJaciara.Umhomemcompertodenoventaanosqueresolveaplicarasuareformanumaeditora dedicada à publicação de livros científicos nunca dantes traduzidos para o português: só emPortugalépossíveltestemunharumempreendimentomagnânimocomoeste.ArealidadeteimavaemnãodarrazãoaJaciaranoseuressentimentoacumuladocontraosportugueses.Nopoucotempoqueestevenaeditora,aminhaprotegidaorganizoutodososficheiros,arquivoseexistênciase,glóriamaior—aindafezrevisãodetexto,oseusonhodeestudantedeLetras.Masadornuncamaislhedeudescanso;jáusavacanadianasparasedeslocar.Achoqueoseupequenocorpoestavaadizer:«Oxente,chegadesseclimafrio, dessa gente trombuda, vai embora para o calor do Brasil, menina!» Renovou a baixa médica etrabalhounapequenaeditoraenquantopôde.Veiovivernosofá-camadaminhasaladurantetrêsmeses— sem que entre nós acontecesse nada excepto a mais pura amizade —, juntando o dinheiro das

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mensalidadesdaSegurançaSocialparaconseguircomprarapassagemderegressoaoBrasil.Fuilevá-laao avião— Jaciara voltava para a sua terra fisicamente derrotada, já quase não podia andar— e,enquantodemosum longoabraço,observadospelossegurançasdoaeroporto, fizemosessepacto, tolomassincero,denosprocurarmoseficarmosjuntosse,atéàvelhice,nãoencontrássemosmaisninguém.

Masnão;aminhamãenãopodiaestarareferir-seaJaciara;elasoubera,desdeoprimeirominuto,que não éramos feitos um para o outro.Menos ainda a Isabel; sabia que havíamos tentado tudo paraficarmosjuntos,equeaquelahistóriatinhaacabado—emboradeummodoafável,porquesemprenosrespeitámos, vivemosmuitosmomentos felizes ao longo desses oito anos, e não tínhamos razão paraficarmoszangados.

—Vocêaindavaiserfeliz,meuRaul.Penanãoestareucáparaver.Ofereçaomeufiodeouroàsuamulher,lindinho.Massóquandotiveracertezaqueéela.Euvouteajudaraenxergar,ládoCéu.

Eapontava-meamedalhadeNossaSenhoraqueamãeumdiahavia enviadodePortugal equeatinhaacompanhadotodaavida,escapando,pordiversasvezes,deficaremdefinitivonoprego.

Tomeiocorpofrágildeminhamãenosbraços,sussurrei-lhequenãofalasseessascoisas,quequeriatê-lacomigoaindamuitosanos,queseesforçasse.

Sorriu,falouqueestavamuitocansadaevoltouafecharosolhos.Quatro dias depois telefonaram-me do hospital às nove da noite, falando que aminhamãe estava

morta.

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11-FalênciageraldosórgãosMorremossempresozinhos.Mesmodemãodadacomapessoaquemaisamamos,osnossosdedos

tornam-se de repente objectos em arrefecimento progressivo, deixamos de estar ali. Raul acordariamuitasvezesameiodanoite,nosanosseguintes,ardendoemculpapornãoterestadoaoladodamãenoinstantedoseudesaparecimento.Ohospitalinformou-odequeJacintaSousamorreraduranteosono—masnãoéessaaresposta-tipodoshospitais?Jacintapoderiatertocadoacampainhasemqueninguémaouvisse; ou podia nem sequer ter conseguido chegar à campainha; todos os dias se ouvia falar dehospitaiselaresondeascampainhaseramestrategicamentecolocadasforadealcance,duranteanoite.

Aculpatemfamadenosatrapalharavida,imobilizando-noscomoumacamisa-de-forças,masserve-nostambémdetónicoderesistência.Osentimentodeculpaconduz-nosaumamaiortolerânciaparacomasfalhasalheias;todosclaudicamos,nummomentoououtro,eacertezaquantoàvocaçãoecuménicadaimperfeiçãotorna-nosmaislevesemaisdotadosparaenfrentarabelezaeohorror.Tudoétransitório;aculpamorreráconnosco;quantomaisnoscustaraarcarcomoseupeso,tantomaisfácilsenostornaráodesapego,emenosassustadorasenosrevelaráafacedamorte.

Acertidãodeóbitode JacintaSousa resumiria a suamortenuma linha: falênciageraldosórgãos.Parasabermaispormenoressobreoqueacontecera,Raulteriadepedirumacertidãodeóbitodetalhada,quecustavaparacimadecemeuros.Aindapensoufazê-lo,masdepressaconcluiuqueaexplicaçãoseriaou tecnicamente obscura ou claramente ficcional, porque nenhum hospital admitiria qualquer falha ouomissãodosseusprópriosserviçosoufuncionários.Agrandequalidadedasinstituiçõespúblicaseraaautodefesa:doshospitaisàpolícia,dasescolasaostribunais,sealgocorriamalaculpaerasempredocliente,enuncadosfuncionáriosoudaestruturainterna.Dequalquermodo,nenhumacertidãodevolveriaavidaàsuamãe.

Asvizinhasconsolaram-nodizendoquea tinhamsemprevistobem tratada,comocorpomaciodecremes, sem escaras nem mazelas, e que as enfermeiras eram muito meigas. Na opinião de Alice eRosário, Jacinta desistira de viver. Raul sentia esta frase como ummurro: a mãe desistira de viverporqueelenãolhederasuficienteapoio.Faltavam-lheamigosquelherecordassemqueninguémviveemfunçãodeoutrem;podemos,porexemplo,morreratentarsalvaralguém,masfazemo-loemfunçãodosvalores que estabelecemos para a nossa vida. Atiramo-nos ao mar para salvar um filho ou umdesconhecidodemorrerafogadoporquenãoseríamoscapazesdeviverempazsenãootivéssemosfeito.Nãosetratadeumaleigeral:háaquelesquesesacrificariamparasalvarosseustorturadores,eaquelesquenempela carneda sua carne se imolariam.Amoral pública interfere nestas decisõesmais doquegostamosdeacreditar,sobretudonesteséculoXXIemqueoindividualismosetornouocavaleiro-mordainteligênciaealiberdadeencheasbocascomoumanovaespeciariaàdisposiçãodetodos.AtémeadosdoséculoXIX,amortedeumacriançaeraumacontecimentobanal;aindahojeoé,aliás,namaiorpartedomundo.Aomnipresençadasimagenscriaumarotinadecompaixãodiferida,umaimitaçãodemágoaquealiviaasconsciênciasmodernas.

Jacintasonhoucomaúltimavezemqueviraoprimeiromarido,nofinaldosanossetenta,noRiodeJaneiro.Entrounumaretrosariaparacomprarlinhaseentretelaparaosseustrabalhosdecostura,efoiatendida por um homem velho, ventrudo, que não reconheceu, mas que a olhou por cima dos óculosdescaídos sobre a pontadonariz e lheperguntou, num sotaqueportuguês sacudidoque reconheceudeimediato:

—Então,oqueéqueandasafazeraqui?Otomdesdenhosodohomemaoqualagoracabiaatendê-laateou-lhearesposta:

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—Issoperguntoeu.EraÁlvaroCalvário—naverdade,oseuúnicomarido, jáquenadécadadecinquenta,quandose

separaram, apenas existia no Brasil o desquite, que impedia os ex-cônjuges de realizarem novoscasamentos.Ohomemcomquemcasaranaigrejadevéuegrinalda,ohomemaoladodoqualforaricaeinfeliz,naprimeirajuventude,ohomemqueconheceraenquantoempregadodoseuavô,eque,depoisdecasado,vieraapossuirumalojadefazendasmaiordoqueadopatrão,ohomemquelheproporcionaracursosdemúsicaedecanto,motoristapessoal,traiçõesetareias,eraagoraummerofuncionáriodeumasimplória lojadebairro.Osonhoarrastou-aparao iníciodonamoro,aosdezasseteanos,comaquelerapaznascidoemCalvário,pertodaPóvoadeVarzimque tinhaonomeda terrapornomede família.Jacintaviviacomoavô,asuamulhergalegaeassuasduasfilhas,BelmiraeLinda.Umdia,devaneandosobreonoivoecasamentoquealevariamdaqueleambientetristonho,errouporduasvezesopontodacostura.LevoucomaréguadecosturanamãoeumarepreensãoverbaldeDonaÁnxelaedecidiunãoreagir. Amãe de criação não lidou bem com a insolência e aplicou-lhe uma forte bofetada, urrando:«Olheparamimcandoeuesteafalando,Jacinta!»

Jacintaergueu-se,fitoudesafiadoramenteagalegaesaiu.TomouolotaçãoatéàRuadoRiachuelo,onde na época funcionavamas oficinas do JornalANoite, que se debatia contra uma fase decadente.Irrompeupeloúnicogabinetequehavianos fundosdaoficina, e encontrouopai como sempredepé,debruçadosobamesaareverumaprovadeprelodaediçãodatarde.Arturolhouparaafilhaepercebeutudo.

—Toma,vailáparacasa.Eestendeuamãocomumrolinhodenotas.JacintafoiapéatéaoLargodaCariocaeapanhouobondeparaSantaTeresa.Enquantopassavapor

cimadosArcosdaLapanaquelatardemornadeSetembro,odiadespedia-senumpôr-do-solcompostopelosmesmostonsavermelhadosearroxeadosquelhemarcavamorosto.Eraumtempodeincertezas—diasantesoBrasilentraranaGuerra—masdegrandesmudançasparaela.AgorapassariaaaturaraantipatiadeDonaAna,outramãedecriação,outrosotaqueespanhol—andaluz.Sóquedestavezseriaporpouco tempo.Embreve inaugurariaumanovavida comAlvaro.Casaramepartirampara JuizdeFora, onde juntos abriram A Imperatriz, uma casa de modas que prosperou, porque as senhoras daprovíncia combatiam o tédio através da competição entre figurinos. Durante dez anos a existênciadecorreu com suavidade: uma vivenda ampla, com criados e criadas, um Citroen preto, móveis emjacarandá, frescos jardins decorados commagníficas roseiras.Depois entrou em cena a comitiva dasamantesedosmaustratos,atéàseparação.

Jacinta comprou o que tinha a comprar e despediu-se secamente do fantasma domarido e grandeempresário,agorareduzidoabalconistapobre.Volvidaumasemana,airmãdeÁlvarotelefonou-lheparaa informar de que passara ao estado de viúva: Alvaro tinha morrido. Aparecera morto, numestacionamentodoParquedoFlamengo, sentadodentrodoseucarro,no lugardocondutor.Nãohaviasuspeitas de suicídio nem de homicídio; já estariamorto há dois ou três dias quando foi descoberto,porqueocorpoestavainchadoeeminíciodedecomposição.

NosonhodeJacintaapareciaentãoobebénado-mortoquetiveradeAlvaro,eavozdeleinsurgindo-secontraelapornemparaparideiraservir.Vieramdepoistrêsbebéssorridentes,orostofelizdeRamiroolhandocadaumdosfilhos,oúltimoolhardasuamãeantesdemorrer,apertando-lheosdedos.Nesseinstante,JacintaSousadeixoudesonhar.

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12-OúltimodesfileNo armazém branco com cheiro demadeira fresca, perto damuralhamedieval da vila de Lagar,

diante de pilhas de caixões de vários tamanhos, o cangalheiro daFuneráriaZorro explica-me emqueconsiste o funeral social.Uma bola perdida faz com que uma criança irrompa, gritando, nomeio dascaixaspararestosmortais,eatrásdelaumamulherlouradecercadecinquentaanos,pedindodesculpa.Acriançapegounabolaeamulherolhaparamim,enquantopassoodedopelocontraplacadofinodocaixãoditosocial:quinzecentímetrosdeespessuramínima.

ÉmuitopoucoparaumamulherquefoidestaquedaUnidosdeVilaIsabel—declaro.—Levaumlençolinho,paracompor,adianta,solícito,oagentefunerário.Elesabequenãovalea

penaargumentarqueosmortosnãoligamavaidadesterrenas.Sabemosláaqueligamounãoosmortos.Alémdequeaculpafazmelhoresnegócios.

—Mãeémãe,eucompreendoosenhor.Enóstemosfacilidadesdepagamento.Sempreéaúltimahomenagem.

Onde irei encontrar osmil setecentos e cinquenta euros para fazer um funeral digno para aminhamãe?Pensarqueeujáfizpartedasestatísticasdissoaqueossociólogoschamamdeclassemédia.Milsetecentos e cinquenta euros é o bicho, mesmo com facilidades de pagamento. Pagas as contas, sódisponhodequarentaeurosmensaisparacomer.

—Pensecomcalma,senhorarquitecto.Nestesmomentosoqueháéquetermuitacalma.Lembrei-me que aquelemodelo de caixão social era idêntico ao que fora utilizado no enterro da

minhaavóMargarida,velórioaquecompareci rapidamente, cheiodepressapara terminaroprojectoparaumconcursoemLisboa.EmJunhode1996,aminhamãeestavanaposiçãoemquemeencontroagora,tratandodofuneraldamãedela.Aescassezdeposseseaconcepçãoreligiosadequeamatérianadavalelevaram-naaoptarpelasimplicidadeespartana.MasaminhaDonaJacintamereciamais.Achoeueacharãoasamigasdaaldeia.Enãoésupostoqueumsenhorarquitectosoliciteumfuneralsocial.Mesmoque,narealidade,sejaoperadordecall-center.Éesseomeutrabalho,hoje.

Malditasituação.Amortedeminhamãetinhademeapanharnomeiodessaautênticaguerramundial?Mesmo que a defunta não se sentisse ofendida com a deselegância do contraplacado de quinzecentímetrosdeespessura,oquediriamasamigas?Queeusouumdesnaturado.Umingrato.Enaverdadeestariamcertas.Umenterroéumacontecimentoquenosmarcaparaorestodavida;eubemseiporquetrateidoserviço fúnebredaLaísedoenviodocaixãoparaoBrasil.Nãomeperdoarei senãopuderenterraraminhamãecomalgumadignidade.Sereieuumburguês,comodiziaIsabel?Claroquesim.Ofuneral social, trezentos e noventa euros, não inclui velório, nem café e chá, nem anúncio, nem umsantinhoderecordação.Talveznemincluaovestirdocorpo,oencerramentodaboca,olaborestéticodeum rosto sereno.Não tenhocoragemparaperguntar se incluiounão.E seosdentesdeminhamãe setivessemperdidonaenfermaria?Váriasvezesmeaconteceuchegaracasaaofim-desemanae,emvezdamamãe,encontrarumavelhabebéborrada.

—Desculpa,desculpa,lindinho,nãoseicomomeaconteceuisto.Ajudava-aentrarnabanheiratentandopensarquesetratavaapenasdeumbebéumbocadomaior—

emboranuncativessetidobebés,estaideiafacilitava-meotrabalho—,ligavaochuveiro,certificando-medequeovelhoaquecedoragásfuncionavaequeaáguaestavaquente.Entãoficavadoladodefora,àespera,enquantoelatomavabanho;sentia-semaissegurasealguémestivesseporperto.Masnãosereicapazdeavestir,agora,fria,rija.Quemmeajudaria,numahoradessas,seriaLaís.Elasabialidarcomqualquersituação.Nãopossodeixarqueaminhamãeváparadebaixodaterracomabatadohospital.

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Talvez nem o hospital deixasse. Nos tempos que correm, ainda cobravam. 0O hospital jamais mepreveniradequeamorteestivessearondar.

—Nãopodemosmanteraquiosdoentesacamadosparasempre;asuamãeprecisade irparaumaunidade de cuidados continuados.Umdia destes amédica dá-lhe alta, quando houver necessidade decamas,edepoiséconsigo.

A assistente social falava sempre olhando para o relógio, abanando as pulseiras e contando osminutosqueperdiacomestesseresqueseencostavamaosserviçosemvezdeolharempelosfamiliares.

—Masasenhoranãopodeajudar-meatratardessamudança?—OsenhortemdeiràInternetveralistadoscentrosdecuidadoscontinuadoseescolherum.Não

soueuquevouassumiressaresponsabilidade.NoEstadoháumagrandelistadeespera,ecomapensãoqueasuamãetemnãovaiserfácil.OsenhoréqueéOfilho.

O filho. Como se não existissemRita e Rafael. Rita também vive com dificuldades, eu sei.MasRafinha casou com a excelsa FláviaMello, uma estilista que desenha roupas para artistas e, além detrabalhar na multinacional farmacêutica, tem em sociedade com a mulher uma rede de lojas de altacostura por todo o Brasil. Porém, Rafinha não quer saber da mamãe. Está de férias em Portugal erespondeu-meaoemailemquelhecomuniqueiamortedamãecomestaspalavras:«Muitaforçanessahora,meuirmão.»

—DonaJacintasempregostousódevocê,ocaçula.Ojusto,meuirmão,ocerto,équesejaVOCÊatomarcontadela,disseele,emtomsardónico.Senteumcertoprazeremmeveraflito.

Sensibilizadacomasituaçãodaminhamãe,TeresaaindamefaloudeumnovoCentrodeCuidadosContinuadosdaMisericórdia,inauguradohácercadedoisanos,pertodeLisboa,queteriacontratocomaSegurançaSocial,eofereceu-separaircomigofalarcomasresponsáveis.Pareciaumhoteldecincoestrelas:salõesconfortáveis,quartosindividuaiscomlargastelevisões,banheirosesalasdefisioterapiasaídos de filmes de ficção científica— tudo vazio. Entendemos que estava ali amãe de um políticoafamado e o pai de uma apresentadora de televisão, mas foi-nos explicado que os preços especiaisseriam «uma excepção» e que o acordo com a Segurança Social ainda nem sequer entrara em vigor,«porque estas coisas levam o seu tempo». De qualquer forma, a pensão da minha mãe seria muitoreduzidapara«osparâmetrosemvigor»,doismileurosmensaisdosquaisestavaexcluídaalavagemdaroupadodoente,queafamíliateriadelevaretrazerdecasa.Teresabotousobreoseurostointeligenteetrigueiro a máscara de provinciana astuta e declarou que a rapariga da televisão, que por acaso elaconhecia, lhe contara queopaizinho estava em recuperaçãonum sítiomuitobomondenão chegava apagar trezentos euros pormês.A responsável peloCentro fechou a cara, sem conseguir disfarçar umruborinvoluntário,erespondeu,comardepoucosamigos,quenãocomentariaasituaçãodenenhumdosseus doentes. E despachou-nos com um tom nervoso, falando que tinha muito que fazer e não podiacontinuaraquelareunião.

Cheguei a telefonar a uma antiga amiga deputada para a qual desenhei gratuitamente uma piscina,perguntando-lhesenãopodiaconseguiruminternamentoparamamãeaumpreçorazoável.Tivededarumnóimensonomeuorgulhoparafazeressetelefonema.

—Meuquerido,otempodascunhasjálávai.Agoraquesoulíderdebancada,nãopossometer-meemcoisasdessas.Asmulheressãomuitomaisescrutinadasdoqueoshomens,esperoquecompreendas.Força,meuquerido.Pensoemti.

Estaéaépocadatelepatia.Todospensamemtodoseemtudo.Pessoasquenuncaseconheceramnemtencionamconhecer-seescrevemmensagenscarinhosasnas redes sociais, edormemmaisdescansadaspor se sentirem conectadas com o mundo e com os outros. Uma semana depois da conversa com aassistentesocial,telefonaram-medohospital,ànoite,dizendoquemamãetinhamorrido.Omeuprimeiro

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pensamento foi de alívio: tornava-se cada vez mais difícil encontrar um jeito de dar à mamãe osuplementomensalquelhepermitiasobreviver.Osegundo,maispersistente,foiodequedeagoraemdianteestariamesmosozinhonomundo.Equeseriaeuopróximoamorrer.

—Seamãezinhavaiparaa terra,estecaixãozinhoempinhochegabem.E temoutradignidade,éalmofadado.

Perguntei,numavozsumida,sepoderiapagaremprestações.Ocangalheiroexplicavaqueenfim,nãoeracostume,paraaquelesvalores,maspodiaserfeito.NaFuneráriaZorrotudoseremediava.

Ocorreu-mequeomelhorremédioseriacairmortoali,noarmazémcomcheirodemadeirafresca,edeixarquemeenterrassemcomamãe,umsobreooutro,notalcaixãosocial,semalmofadas,quecustavasótrezentosepoucoseuros.Ficavaoproblemaresolvido.

Acriançaafagavaumgatovadioàportadoarmazém,eamulher,comumrostovagamentefamiliar,examinava-medeummodointimidante.

—OsenhorédeArrifes,nãoé?ÉofilhodaDonaJacinta?—Conheciaaminhamãe?—Sim.HouveumtempoemqueelafrequentouoCentrodeDiadeArrifes.Eutrabalholá.Nãosabia

queelatinhamorrido.Eraumasenhoramuitoalegre.Osmeussentimentos.—Meajude.Nãoseideondemesaiuaquelepedido.Amulherlevantou-meoqueixocomamãoe,comessegesto,

limpouopânicodosmeusolhos.—Nãoestásozinho.Nãosepreocupe.Mais tardediriaqueelamesmaestranharaesta resposta, tãoseguraedistantede simesma.Oseu

nome eraClarisse, e deixara hámuito de ser o pronto-socorro dos aflitos. Pelomenos convencera-sedisso.Averdadeéquenegociou rapidamenteascondiçõesdo funeral, com toquede sino,cháecafé,santinhoecoroadeflores,conseguindoumaassinalávelreduçãodepreçoemrelaçãoàtabela.

Depoispuxou-meparaaruaearrastou-meparaumcafé.Atravessámosruasingremescomfieirasdecasasvazias,muitasdelascomfloreirasnasjanelas,masconservadas,comoconvémaumavilaturística.Haviamuitomaiscasasdoquegente,alicomoemtodoopaís.Oúnicocafédaquelaparteexteriordamuralhaficavalongedafunerária.

—Comoéqueconseguiu?—Comopoderdequem trabalhacomvelhoseportantoconhecevárias funerárias.Nestazona já

começa a haver mais cangalheiros do que mortos certos. A emigração e os progressos da medicinavieramperturbarestenegócio.Nemtudoémau.Ah,enãosó.Disseaorapazparaeliminardoorçamentooitemcoveiro,queéumserviçoprestadopelaCâmara,eportantonãopodesercobrado.

Clarisseabriuumsorriso. Jánãome lembravadeumsorrisodemulherassim tão largo.Osolhosverdesbrilhavamao sol.Mas aquelamulher nãome era estranha, já noshavíamos cruzado.Onde?Acriançaacabavaogeladoe,comasmãoscheiasdechocolate,reclamavaquequeriavoltarparacasa.

—Ésuafilha?—Não,não.Só tiveumfilho,mas foiparaaAméricacomopai.Seesperarumameiahora,vou

consigoaoHospitaldeTermasdoReietratamosdoresto.—Assimseja—respondi,espantadocomigomesmo.Deixei-meficarnocaféàespera,julgandoqueestavaadormireque,quandoacordasse,mamãeteria

morridoeeuteriadeaenterrarsozinho,escavandoumacovanoquintaldacasaarruinadaondeosdoisvivíamos.AondadecalorregistadaemPortugalentre2,3deJunhoe14deJulholevaraaumaumentodetrintaporcentononúmerodeóbitos.Tinhammorridomaismilseiscentaseoitentaequatropessoasdoqueohabitual.Numamesadecantodocafé,umjornalcommaisdeumano,deFevereirode2012,trazia

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estamanchete:«Portugal:oinvernodacrisemata»,noticiandoqueseassinalavammaismileseiscentasmortes do que a média do mesmo mês em anos anteriores. Estes novos mortos eram velhos, e osespecialistasemsaúdepúblicaassociavamoaumentodemortesàsubidaconjuntadocustodoscuidadosmédicos e da electricidade. Mamãe vivia a desligar os aquecedores. Eu chegava a meio da noite eencontrava-a embrulhada em cobertas, diante da televisão, na sala húmida e fria, onde as rachasdesenhavamárvoresnuas.

—Aparedepareceumdesenhoquesefazsozinho,comentavaela.Euxingava-apornãoacenderosaquecedores;mamãeretorquiaquetinhamedodoscurto-circuitos,masoqueaatemorizavaeranãoterdinheiro para pagar a conta da electricidade.Acabaria pormorrer emAgosto, ummês depois de serencontradanalajedopátio,desmaiadadecalor,numatardeemqueeunãoestava,porquenãoerafim-de-semana.Durante a semana, asmeninasdoCentroSocial vinhamduasvezespor dia, demanhã e àtarde. Nesse dia eu tivera mais uma entrevista em Lisboa por causa de um hipotético emprego queacabarapornãodaremnada.

—Oseucurrículoébom.Naverdadeédemasiadobom;procuramosprofissionaisemprincípiodevida.Semvíciosnemideiasfeitas,compreende?

Eucompreendia,sim.Aqualidadetornara-seumvícioaevitar;arranjavasarilhos,invejaseconflitosde poder. Telefonaram-me doCentro falando que aminhamãe tinha sido levada para o hospital, e avizinhacomentouquejáhámuitotempoeravisívelqueaDonaJacintanãopodiaviverabandonada.OhospitalficavaacemquilómetrosdeLisboa,eeuvisitavaamamãe,comosempre,aosfins-de-semana.Nãopodialargarocall-centerdaoperadoratelefónicaquemepagavaosaláriomínimo.Haviarumorescadavezmaisinsistentesdeque,dentrodeseismeses,nomáximo,ocall-centerseriadeslocalizadoparaa índia, porque saía mais barato. Avizinha Rosário deixava-me bilhetes à porta: «Boa noite senhorarquitecto,fuiveramãezinhacoitadinhaqueláestásemprecheiadesaudadessuas.»

—Calma,senhorarquitecto.Apressãosuavedeumamãodemulhernomeuombrofez-meestremecer.OsorrisodeClarisseera

agora tímido,contrastandocoma suaconversa rápida;cascatasdepalavrasdestinadasaprovocarumruídoquearredasseatimidezouoembaraçodasituação.

—Tenhoocarroaquimesmoàporta.Vamos.Segui-a em silêncio, atordoado. Ainda nem olhara bem para ela, e no entanto obedecia-lhe,

reconfortadocomasensaçãodeprotecçãoqueemanavadoseucorpo.Quandoforaaúltimavezquemesentira protegido? Já nem me lembrava. De resto, a dor dessa lembrança seria insuportável, porquepertencia a um tempo emque dinheiro, amigos e prazeres pareciam tão naturais comoo ar.Umoutromundo.

Fomosacasadaminhamãeescolheraroupaparaela.Seaalguémelativessefaladodaroupacomquegostariadeserenterrada,seriaaAlice.Telefonei-lhe.

—Querido,aminhaPrincesa-Mãenuncafalavadamorte,sódavida.ÀsvezesdiziaquejácánãoestavaafazernadaequeiaencontraresteeaquelenoCéu,masconversasdemortenãoeramcomela.Olhe,seiqueelagostavamuitodeumvestidobrancocomgoladerenda.Procurenoroupeiro.Leve-lheesse.

Clarissecomeçouarebuscarnoroupeiro,masotalvestidobrancoestavacheiodenódoas—comoaliásamaiorpartedaroupadaminhamãe.Elajáviamal,easempregadasdoCentro,quetambémlhelavavamaroupa,limitavam-seareceberoqueelalhesdesseparalavar.Acrescequeaminhamãenuncagostoudedartrabalhoaninguém.

—Eselhelevássemosestascalçasbrancascomestacamisaazul?Oazuléacordocéu,eobrancovaificarmuito...esbatido,nãolheparece?

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Clarisseenrubesceuquandopronunciouapalavra«esbatido».Percebiqueaprimeirapalavraquelheocorrerahaviasido«mortiço».Entãodesatouafalarmuitoemuitodepressa,argumentandoqueovestidobranco assim sujo não podia ser, ia notar-se, e que de qualquer modo tinha um decote demasiadopronunciado, pouco próprio para a ocasião, e que se a Dona Jacinta não deixara nada destinado eraporqueissonãoteriamuitaimportância,equeselembravadeatervistomuitasvezesdeazul,porissonãodesgostariadeircomaquelacamisa.Euapenasacenavacomacabeça,pensandoemcomoseriaveraminhamãemorta,debranco,azul,ouqualqueroutracor.Clarisseescolheuunssapatos,roupainterior,meteutudonumsacoevoltámosparaocarro,acaminhodamorguedohospital.

Quandochegámos,jáláestavaocarrofunerário.Clarissedecidiuqueomelhorseriairmosprimeiroàsecretariabuscarospertencesdasenhora.Entregaram-nosumsacodeplásticocomdoisanéis,ofiodeourocomamedalha,eumasroupasconfortáveisqueeulevaranaesperançadequemamãemelhorasseepudessedarumasvoltasatéaopátio.Nãonosdevolveramasrevistas,quecertamentemamãenemteráchegadoaver,equeentretantodevemterficadocomoalentoparaoutrasdesistentesdavida.

Ocangalheiroestavasaindodamorguequandonosaproximámos.Noimensopátiodecimentoquemediavaentreastraseirasdohospitaleamorgue,osolatacavacomoumferroembrasa.

—Amãezinhajáestápronta.Podeirreconhecê-la.—Queresquevácontigo?—perguntouClarisse,voandodocerimoniosovocêportuguêsaoíntimo

tu.—Claro—respondieu,comosealgumacoisapudesseterclarezaparamimnaquelemomento.—Nãotenhasmedo.Eujáteconheçohámuitotempo—declarouClarisse.—Tumeconheces?Deonde?—perguntei,estonteado.Sorrindo,Clarisse revelou-mequeestiverana inauguraçãodeumaexposiçãominhaemLisboa,há

unsdezanos.PrecisamenteaexposiçãoondeeuconheceraIsabel,masissonãolhecontei.—E ainda se lembra?Bom saber que aminha pintura dura pelomenos dez anos namemória de

alguém.Éumanovidade.Nãosabiaoquefalaresemprequeissoacontecetentotornar-meengraçado,petulante,ouambasas

coisas em simultâneo. Raramente dá bom resultado,mas nesta circunstância, de qualquermodo, tudoseriadesadequado.Clarissepegounaminhamãoedecidiu:«Vamos.»

Entrámosnasalaobscurecidaefriaondeorostodaminhamãe,branco,rígido,imaterial,cintilavacomoumalâmpadasemluzprópria.Nãopareciaela:magra,séria, indiferenteaomundoaoseuredor.Chorei em silêncio. Clarisse acariciou minha mão chorando também, como se, de facto, já meconhecesse.E,sobretudo,comosesoubessequemtinhasidoJacinta.

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13-NosesplendoresdaluzperpétuaCesarina chorou copiosamente no velório de Jacinta, excedendo emmuito as lágrimas pudicas de

Raul,quenãoeradadoaaparatossentimentais;eforamtantasascaríciaseossussurrossobreorostodamorta,queumestranhoquealientrassejulgariaverumafilhaestremecendoodesaparecimentoeternodesuamãe.Nem sequer andaria longedaverdade; o roubo antigopesava-lhe como se tivesse trocado aalmaporumsacodepedras,quearrastariaagoraatéaofimdavida.Opedidodeperdãoquenãofizeraprescreveraagoraemdefinitivo,esentiaquenãotornariaaencontraraquelaamizadegenerosaquenãosouberahonrar.Oprantonãocomovia apopulaçãodaaldeia,pornaturezadesconfiada-, as comadresmurmuravamentresiqueaquela raparigaera falsacomoJudas,equeeraprecisonão tervergonhanacaraparavirparaalicomaquelefoguetório.

Rosário e Alice rezavam, por uma vez lado a lado-, todos os habitantes vieram despedir-se daBrasileira,exceptoEmadeCastroePedroGamaLousada—esteúltimoporque,aoquedizia,adoeciaemfunerais,tantoquenemaodasuatãoamadamãecomparecera.VanessaveioabraçarRaul;eatéopaidasuafilhaCátiadeuumavoltapelacapela,benzendo-seaospésdafinada.

Teresa,que tantoampararaRaulduranteahospitalizaçãodamãe,veiodeLisboaepermaneceunovelórioatéànoite,obrigando-oabebermuitaáguaeaircomendoalgumacoisa.Contou-lhequeestavamais habilitada do que qualquer um a compreender o sofrimento dele, porque amãe lhemorrera nosbraçosaosnoveanosdeidade,numaaldeiadeTrás-osMontes.Tornara-serevoltadaesolitária;repeliaqualquerensaiodeaproximação,detestavaoscolegasdeescola—umaescolaminúsculaemistaondeaprofessora ensinava em conjunto os alunos da primeira à quarta classe— porque todos tinhammãe.Contou-lheque,umanomaistarde,opaiaobrigaraairdeanjonaprocissão,julgandoquedessemodoaempurraria para a vida comunitária e para as brincadeiras da sua idade.Mal lhe colocaram as asas,Teresafugiuparaarua,encostou-seàprimeiracasaecomeçouaandardelado,esfregandoaarmaçãodepenasbrancaspeloxistorugosodasparedes,atéficarcomosaramescaídossobreovestidorasgadoeascostasemsangue.«Noentanto,cáestouatéhoje;nãosounenhumanjomasaprendiagostardemimeaviver com alegria», rematou Teresa, com o braço sobre os ombros derrotados de Raul, que nessemomento,escutandoaspalavrasbalsâmicasdaquelaamigaherdadadeumamornaufragado,reconheceuparasimesmoqueIsabelopresentearacomessetesouroqueelaconsideravasuperioratodososoutros:aamizade.

Raulfotografouamãedetodososângulos.Explicavaaosvisitantesqueairmãlhepedirafotografiasdas cerimónias, já que não podia estar presente.Mentia; tratava-se apenas do seu impulsomórbido enostálgicoemfuncionamento.Nuncaseesqueciaderegistarasmemóriasdador.

Clarisse trataradapagelamemorial,paraaqualescolheuumacitaçãode JesusCristoextraídadoEvangelhodeSãoJoão:«Euvosdouummandamentonovo:amai-vosunsaosoutros.Comoeuvosamei,assimtambémvósdeveisamar-vosunsaosoutros.»Nãoeracatólica,aliásmenosprezava,deummodogeral, as religiões organizadas, às quais atribuía o estado de guerra permanente no mundo. MasreverenciavaaquelejudeudaGalileiacomoheróiparticular:umhomemquedividiaopoucoquetinha,afrontavaahipocrisia,expulsavaosvendilhõesdostemplosesalvaraumamulhersupostamenteadúlteraprestes a ser apedrejada, declarando que quem não tivesse pecados lhe atirasse a primeira pedra.Tambémelajáforaassim,umavalentelutadorapelosdireitoshumanos,bradandoeerguendovendavais.Foraassimatéàcompletaruína.Depoisoptaraporumgénerodelutamaismodesto,numaescalamenor,quelhepermitiavivercomserenidade.

Namissadecorpopresente,nabela igrejinhamaneiristadoséculoXVIIdeArrifes,Aliceevocou

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Jacinta como uma mulher que transfigurara a vida de todos aqueles que com ela se tinham cruzado,atravésdobomhumoredodomparaaescuta.Rosáriopreferiunãofalar;asuaformadehonrarJacintaeapoiaroúnicofilhoqueaacarinharaatéàmorteconsistiriaemconvidarRaulparaalmoçar,depoisdacerimónia.BateraàportadeJacintadurantetodososdiasdasuavida.Guardavaasensaçãodeter-lheditoefeitotudooquepodia:semuitasvezescalaraalgunspensamentos,sobretudosobreosseusdoisfilhosausentes,foraapenasparaevitarmagoá-la.OpadreFranciscoelogiouacuriosidadeeoimpulsoparaatranscendênciaquelevaraJacintaSousaapercorrerváriasexperiênciasreligiosasatéseentregar,nosúltimosanos,àIgrejaCatólica.Raulinterrogava-sesobreseamãeaindasofreriacomaausênciadofilhomais velho, algures na praia ali a uns oitenta quilómetros, nestemomento de última despedida.Aindaesperariaporele,oujáteriadesistido?

Jacintafoienterrada,sobumsolabrasadoreumcéuturquesaquesediriatransplantadodoRiodeJaneiro,nacovaondejaziamamãeeomaridoqueessamãeescolheradepoisdeporduasvezesrenegarasuafilhaeohomemcomoqualagerara.Enquantoocoveiroatiravapazadasdeterrasobreocaixão,Raul decidiu que não só seria enterrado naquela mesma cova, como ficaria a viver na aldeia parasempre.

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14-OSonhodeRaulDevem ser oito damanhã.Mas ninguém ligou, estará o telemóvel ligado? Está, ninguém ligou.O

senhorJorgeMaframarcoucomigoumareuniãodetrabalhonocafédosFerreiras,emLagar.Ponho-melá num instante, cinco ou seis minutos. É extraordinário que um cliente venha ter comigo a cemquilómetrosdeLisboa.Maselevem.Ésolidário,deveserparaeunãogastargasóleo.Assimcobromaisbaratoo serviço?Láestoueu sempreadesconfiardaspessoas.Eledissequenãose importavanada,quaseinsistiuparasereunircomigoaqui.Eupodia tê-loconvidadoparavircá,mascomacasanesteestadoenestabagunça...AsminhascoisastrazidasdeLisboaaindaemcaixasnasala,paraarrumar.Émelhornão, reunimosnocafé.Amulhervaiàscomprasnas lojinhasdeprodutos típicosdeLagar,elereúne-secomigoedepoisalmoçacomelaporcá.Essareuniãodetrabalhocomigodeveproporcionar-lhe um passeio romântico com a mulher. Tanto melhor. Este sítio é intemporal, uma manhã aquicorrespondeaumanoamaisdevida.Aluzdestaregião.Ocheirodoar;quearbomtemaqui.Hámuitopinhal,muitaculturadefruta,omarnãoestálonge.Amuralhamedieval,essaherançaémágica.Ondeéqueestáapastacomasplantas?Estáalinaestanteaopédaporta.Nãomepossoesquecer.Sãoumasalteraçõesafazeraoprojectodoturismodehabitação.Deus,esteprojectojálevaquinzeanos;ohomemnão desiste. Vai fazer alterações até a Câmara de Cascais aprovar. Tanto melhor, vou tendo algumtrabalhonaminhaárea.Aquantidadedearquitectosnestepaíssemnadadearquitecturapara fazer,euainda tenho esse projectinho queme impede de soçobrar;O investimento está parado há quatro anos.NinguémmaisquerpôrdinheiroemPortugal.Seaomenosunsrussosouunschinesesseinteressassem...OsenhorMafraperguntou-meseeuconheciaalguémdoBrasil.AúnicapessoaqueconheçoquepoderiaapostarnistoéoRafinha.Masnempensaremfalarcomele.Teriaprazeremmedizerquenão.Porqueaindamelembrodomeuirmão?Umdiaelefalou:«Raul,sesouberdealgumbusinessparafazeraquiemPortugal,diga-me.»EuaindalhesugeriqueabrisseumalojacomaRita,elaestavaaídisponívelparatrabalhar,eletemamarcaderoupanoBrasil.Desdenhou.Gozou.DissegrosseriassobreaRita,comofazsempre.

Paraeleafamílianãopresta;naverdadeéoquedevesentiracercadesimesmo.Tenhodeir.Ligooesquentadoretomoumbanhorápido.Deleito-meaespiaraquidajanela;olha:a

nuca da Jacinta com o chapeuzinho na cabeça.Amãe está sentada na varanda, já deve ter tomado opequeno-almoço e está aproveitando o sol, vendo a paisagem. Coisa boa tem esta casa, a vista.Consegue-severatéaserradeMontejunto,daqui.Amãeestáéacontrolarseeujáacordei.Oqueéissonomeupé?Éagata.Conseguiuentraremeteu-seaquiembaixo.DeixaveroiPod:oitograus.Estásol,masfrio.Tenhodeir.Voudeténis?Vou.Ésábado.Fui.

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15-ClarisseeapaixãoQue tem este homem que tantome peturba? Fixei-o desde a primeira vez que o vi, no dia 17 de

Setembro de 1998, na inauguração de uma exposição de pintura dele. Lembro-me bem de um dosquadros,deumabelezaaterradora,umarranha-céuscomtraçosmodernistasquedavaparaumabismo.Adoravançavasobreasuperfíciedatelacomoaságuasdeumlagoescuro,submergindotudoàsuavolta.Elenemdeupelaminhapresença;entroucomumaamiga,quelheapresentououtra,umamulheraltadecabeloscastanhosquevisivelmenteointeressou.Gosteidacaradele,ummorenobarbudobem-parecidocomqualquercoisadeitaliano.Eunemsequergostodebarbas,masaqueleolhar,compostodeumagamavariáveldedoçuraedesconfiança,tocou-me.Eosotaque;semsequerteridoaoBrasil,sempresonheicomumnamoradobrasileiro;alémdamusicalidadedapronúncia,fascina-meavariedadeeaexactidãovocabulardoportuguêsdoBrasil.

Éverdadequenessaépocaeuflutuavaàderiva;Vicente,omeufilhodedezanos,escolherairvivercom o pai para os Estados Unidos; a minha melhor amiga tinha dormido com o fotógrafo que eunamorava;vinhadojornalecaíanosofáavertelevisãoatéadormecer,muitasvezesnemchegavaairàcama:preferiaoembalodaluzdatelevisãoeodesconfortodosofáàescuridãodeumquartosilenciosoe ao conforto de uma cama larga onde navegava sozinha, empânico, através de noites insones.Tinhatrintaecincoanosesentiaqueaminhavidaeraumfalhanço.Assaudadesdomeufilhodestruíam-measentranhas; quase nem conseguia comer. Cumprimentei o artista, dei-lhe os parabéns e disselhe que iaescreversobreostrabalhosdeleparaosemanárioondeentãotrabalhava,oEspecial.Agradeceu-menumtomdesurpresatímida,evoltouàconversacomasduasamigas.Suponhoqueterálidoopequenotextoquedediqueiàexposição,porquenãoháartista,famosooudesconhecido,quenãoleiaoqueseescrevesobreele.Masnuncamaissoubedele.

Estranhamente, continuei a pensar nele. Sempre que acabava umahistória de amor—e acabaramtodas—voltava a pensar nele.Raul Sousa parecia uma espécie de arquétipo como qual comparavatodos os homens reais que me decepcionavam. Ria-me para mim mesma, pensando que a grandequalidade deRaul era que eu não o conhecia, de facto. Fiz dele uma espécie de horizonte, para nãodesesperarcomosenjoosdaviagem.

Nofimdasagadoprocessode tribunalquemeencaminhouparaa ruína—oquede início tomeicomotragédia,masquehojecreio ter-melibertado—,pelomeroacasodeumanúnciode jornal,vimparar à aldeia onde morava a mãe dele. Tomei esta coincidência como um sinal de que estávamosdestinadosaficarumcomooutro.0romantismotemsidotantoaminhaperdiçãocomoaminhasalvação,por issonãodesistode lheprestarculto.Ora.Averdadeéquenãodesistoporquenãosaberiacomo.Cadaumécomoé,eeu,sedeixassedesonhar,morreriademelancolia.Andeiaimaginarcenáriosparaonossoencontro,atéqueumanoiteentreinadanceteriaPrincesacomumaoutraraparigadoCentroeovimuitoanimadoadançarcomaVanessa,umavítimaprofissionalquevaiacumulandofilhoseagressores.Maisumavez,elenemmeviu.Eeutambémnãofiqueimuitotempo:emborqueiumacervejaevolteiparacasa,tristecomoumpensamentopreso.

Senãometivesseoferecidoparafazerbaby-sittingàprópriaVanessa,demodoaqueelapudesseirfazerumalimpezaextranacasadaDonaEma,queiareceberumatelevisãoqualquer,nãoteriatropeçadoemRaul,noexactomomentoemqueelemaisprecisavadealguém.Estehomeméparamim.Não seiquantotempodemoraráeleadescobririsso,masapaciência,quedurantetantosanosmefaltou,tornou-seumadasminhasmaioresvirtudes.Jánãosouajornalista-megafonequeiriafazertombaroscorruptose transformar a facedaTerra comadenúncia daGrande Injustiça.Abandonei a canduradavingança,

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energiaínvia,desperdiçada:serve-sefriaporqueéumcompostodemorte.Nuncaconheciumvingadoraquemavingançaserenasse.Aabnegadaarrogânciadepretendersalvarumacriançadeumasequênciadeabusoslevou-meaperdertudooquetinha.Afinal,oqueeutinhaeranada.OtrabalhocomosvelhosnoCentrodeDia—odeiooeufemismopaternalistadapalavraidosos—tem-meensinadoqueasúnicasmatériasqueimportamsãooamoreoriso.Passeimaisdemetadedavidaatrásdeficções:queriamudaromundoatravésdopapeldojornal,e,sepossível,construirumafamíliafeliz,comumcãoeumjardim.Sóencontrei algodeparecidocomessa felicidadenosprimeiros anos comVicente.Enas sessõesdeleitura,escrita,cinemaedançaquefaçocomosmeusvelhosamigos,aquiemArrifes.Estanoitesinto-medenovocomoumamiúdadedezasseis anos avistando a chegadada suaprimeirapaixão.Devia estartristecomamortedaDonaJacinta;eraumamulher forte,comumainteligência risonhaquecontribuíabastanteparaaharmoniadeArrifes.Umadaquelasfigurasquemarcamaoprimeiroolhar.Ofilhoherdouissodela.Porissoeunãopossoestartriste—etenhoacertezaque,lánoCéuquelheédevido,elameentende,esericomigo.AmanhãvouajudarRaulaarrumaracasadamãeedesfazer-sedasroupasdela.Omeucoraçãobatecomosedescobrissepelaprimeiravezasuaexistência.

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16-AgrandeinjustiçaNuma terreola recôndita donorte dopaís uma jornalista foi condenada a pagar uma indemnização

equivalenteaumanodoseusalárioaumhomemqueeraacusadopeloprópriofilhodeabusossexuais,eque fora condenado por espancar amãe desse filho. Essa condenação deixou a jornalista arruinada eobrigou-aamudardevida.

PortugalpodiaapresentarumcurrículoesplendenteenquantopioneirodamodernanoçãodeJustiça.ForaoprimeiroEstadodoMundoapreveraaboliçãodapenademortenaLeiConstitucional,apósareformapenalde1867.Haviasidotambémpioneironalutapelodireitoàigualdadedeoportunidades.Apesardacrise,aliásjácrónica,ouporcausadela,opequenopaísdoextremoocidentaldaEuropaeraapresentadocomoexemploaseguirnoscolóquiosdereflexãosobreofuturo,queserealizavamdesdeoinício donovomilénio.O futuro era o grande temadopresente—praticamente o único.Dopassadoninguémqueria saber desde que se concluíra que aHistória não eramais do que a ficção organizadapelosvencedores,eaficçãoperdiacadavezmaisaficionados.Vivia-seaeradaPresentificaçãopura:ninguémdevianadaaninguém,cadaumestavaentregueasipróprio,livredasgrilhetasdagratidãoedassujeições da História. Desvanecidas as ilusões de segurança, o amanhã seria um hoje incessante aconquistarpelosmaisrápidosemaisaudazes.

ClarisseGarcia tinha o pavio curto. Assim a definia, pelomenos, o seumaior amigo. Ela ria-se econtrapunhaqueantesumpaviocurtodoqueumpaviolongoeimprevisível,comoodele.Eduardoaguentavadosesindustriaisdetacanhezederepente,quandomenosseesperava,explodiaecortavarelaçõescomalguém.Diziaqueodesrespeitodosprotegidospelasorteeraopontodenãoretorno:aosdeserdadosdoespíritooudamatériaperdoavatudo.Defendiadeformaimplacávelumamoralmarxista.Porissonuncacumpriraalgoaquesepudessechamarcarreirajornalística:despedira-sedetantosjornaisque,emboralhereconhecessemotalento,ninguémoqueria contratar.Bradavaqueoproblemade fundodopaís erao analfabetismomoral.Afamado seumau feitioperseguia-o, eEduardoconsiderava-aumgalardãohonroso.Clarissedesistiradetentaramansá-lo,atéporqueocompreendia.Eladava-sebemcomtodaagentenojornaleprocuravanãoarranjarproblemas,porquetinhaumfilhoque,nosprimeirosanos,criarasozinha.

Reservavaaintransigênciaparaasuavidapessoal;entendiaoamorcomoterritóriodehonestidadeincondicional. O primeiro marido não gostou das observações dela sobre o seu hábito de palitar osdentes.Osegundobateucomaportaquandoelalhepediuquegargarejassecomoelixirdentário,parafazerdesapareceromaucheirodaboca.Este eraopai do seu filho.Entretanto,Clarissedesistiradoamorconjugal: seumcasalnãoeracapazdevivernumaatmosferadeverdade,não serviaparanada.Davamuitotrabalhoviveremestereofonia,encontraropontodocompromisso.Talvezfosseimpossível.Melhorentãoteramantesavulsos,atenciosos,falsos,queapenaslhedissessemcoisasagradáveisenãolheexigissemqualquerespéciedeperfeição.Clarisseprecisavadedesafioseojornalismodava-lhos;ofervilhardomundoafastava-adasolidão.

Ninguém a definiria como maternal; em cada pessoa via a matéria estatística da sociedade edesvalorizavaosproblemas individuais.Quandoofilhose lamuriavadealgumacoisa, repetia-lhequetinhamuitasorteemnãoternascidonumdessespaísesondeafomeeaguerrasãomaiscertosdoqueosolouachuva.Istogerounacriançaumaespéciededeterminaçãoindividualistaeumódiofirmecontraaschamadascausassociais.Parecia-lhequeamãeoamariamuitomaisse fosseumórfãomaltratado.Tentandodefenderumdessesórfãos,Clarisseacabariaporperderaspoupançasquefizeraparaofuturodofilho.

Umafundaçãodeapoioàinfânciapediu-lhequedenunciasseasituaçãodeumrapazinhodeseisanosqueforaretiradodacasadamãeeenfiadonumainstituiçãoporqueserecusavaairpassarosfins-de-semanacomopai,queacusavadeabusos sexuais.O tribunaldesconsiderouas acusaçõesdacriança,deliberando que se estava perante um caso de «alienação parental» e que a progenitora exercia umainfluêncianegativa sobreomenino,muitoemboraoprogenitor tivesse já sidopreviamentecondenado

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pormaustratosàmãedoseuprópriofilho,tendosidoessaacausadodivórcio.Clarisse escreveu uma crónica insurgindo-se contra a violência que consistia em arrancar uma

criançadosbraçosdapessoaqueelamaisamavaeprendê-la,sóporqueserecusavaaestarcomooutroprogenitor, fossem ou não verdade as acusações feitas pela criança. Ocultou todos os nomes dosintervenientesnahistória,masnãoonomedo lugarondeela transcorria.Ohomememcausaescreveuumacartaaojornal,alegandodireitoderesposta.Clarissetentouconvencerodirectordojornalanãopublicaressacarta,dadoquenenhumnometinhasidoreferidonotextoqueescrevera;publicaraquelacartaseriaadmitirqueovisadoeraaquelemesmo,vulnerabilizandoaposiçãodacronista.Odirectorfez-lheumdiscursosobrealiberdadedeexpressãoeofactodetodaagenteterdireitoàpalavra.

Eacartafoipublicada:aargumentaçãodosubscritoreraadeque,emboraoseunomenãotivessesidomencionado,todaagentenaterraestavaapardocasoesaberiaquesetratavadele,eafirmarqueeleteriaabusadodofilhoeraumadifamaçãoinsuportável.Clarissemanteveosilêncio,nãosóporqueodirector,nasuaestritaetimoratainterpretaçãodaleideImprensa,entendiaqueseriaumaprepotênciadojornalresponderaumleitorqueexigiarespostaetinhadireitoàúltimapalavra,comoporqueelamesmacogitouque,nãopactuandocomaauto-revelaçãodonomedafiguraemcausa,manteriaasuaatitudedesigilo em relação ao caso concreto, protegendo o menor e, em última instância, protegendo-se a siprópria.Odirectorconfortava-adizendoqueemregraaspessoasficamsatisfeitasquandoodireitoderespostalheséconcedido,enãoinsistemmais.

Decorrido quase um ano, num dia escaldante de Julho, Clarisse foi despertada às sete emeia damanhãporviolentostoquesdecampainha:eraaPolícia,notificando-adaacusaçãoquelhemoviaotalrespondente.Oadvogadodir-lhe-iadepoisquenuncadeviaterabertoaporta,porqueohomemdemoraramuitoaacusá-lae,seelanãosetivessedeixadonotificar,aintençãodeprocessoprescreveria.Daíemdiante,nuncamaisabriuaportasequeraocarteiro,quandovinhacomumacartaregistada:aprendeuque,paraevitarmosqueaJustiçaseabatasobrenós,bastaquenãonosdeixemosnotificarpessoalmente.Masnaépocanão sabianadadisso; e, tranquilaqueestavaquantoà suaconsciência, convenceu-sedequenadademallhepoderiaacontecer—anãosermaçadasburocráticaseesseluxotãoportuguêsdeperdertempo.

Emresultadodoinquéritoinicial,emLisboa,oMinistérioPúblicoacompanhouaacusaçãoquelheera feita, concordando com a tese de que a revelação do nome da terreola, só por si, incriminava asuposta vítima da sua difamação.Clarisse perguntava:mas se na aldeia todos sabiam do caso e comtodosospormenores,incluindoaqueixadacriança,eseforadaaldeianinguémficouasaberdequemsetratava,comosepoderiafalardedifamação?Acrescequeacríticadoseuartigosereportavaaofactodeteremtiradoumacriançadeseisanosàmãe, já traumatizadadediversasformas,paraaenfiaremnumorfanato;eraesseocentrodotexto,quetinhacomoobjectivoapelarparaobomsensodosdecisoreserecordar-lhes o decantado «superior interesse da criança» que, nomínimo, lhe parecia ser o de ter odireitoavivercomalguémqueaamavaequetentavaprotegê-la.

Assequências seguintesdecorreramno tribunaldavilória,paraondeClarisse tevede sedeslocarpor diversas vezes, às suas custas, emvão—ou porque faltava uma testemunha, ou porque qualquerimprevisto legal fazia com que a sessão fosse adiada, em cima da hora. Percebeu então que o seuacusadoreragerentedobancolocaletinhaumarelaçãomuitoíntimacomadonadomelhorrestaurantedosítio.OpaidoacusadoreraomaioramigodopresidentedaJuntadeFreguesia,tantoquefizeradelepadrinhodebaptismodofilho;porsuavez,ochefedapolícia localeraomaioramigodoabençoadoafilhado. Todos eles prestaram depoimentos emocionados sobre as excelsas qualidades humanas dosupostodifamado,queserianãosóomaisgenerosodosamigoscomoomaisafectuosodospais.Tantoassimque,notempoquemediaraentreaamaldiçoadacrónicaeoiníciodojulgamento,acriançajáfora

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retiradada instituição e devolvida, não àmãe,mas aoprópriopai, comquemagoravivia.Amãedorapazinho,oriundadeumaaldeialongínquaparaaqualregressara,sótinhaagorasobreofilhodireitodevisita,eumfim-de-semanadequinzeemquinzedias.Asituaçãoinvertera-seporcompletoafavordopai—e no entanto todas as testemunhas do assistente clamavamque o dito ficara deprimidíssimo comapublicaçãodo texto, tendoalterado todaasuavidasocial,evivendoagoracabisbaixoecarregadodemágoas.

Nodecursodasváriassessõesdetribunalfoi-setambémtornandotransparenteaexistênciadeumarelaçãodeextremafamiliaridadeentreajuízaeoadvogadodoacusador;àsvezeschegavamadistrair-seeatratar-seportu.Clarisseapresentoucomotestemunhaumadasresponsáveisdafundaçãodeapoioàcriançaquelhepediraquenoticiasseocaso.Amulherassumiu-seclaramentecomosuafonteeenumerouasváriasperíciaspediátricasepsiquiátricasquehaviamconduzidoàconvicçãodequeacriançadiziaaverdade e não teria sido «alienada» pelamãe. Levou também o director do jornal e o presidente doSindicatodosJornalistas,queatestaramsobreaintegridadedoseucaráctereexplicaramasdiferençasentre uma reportagem e um artigo de opinião, sublinhando uma vez mais esse pormenor essencial:Clarisse nunca mencionara o nome do suposto difamado. Vários outros jornalistas e escritores lheofereceramo seudepoimento.Era todavia visível que, quantomais figurõesda capital ali apareciam,maisajuízaseinclinavaparaasdoresdogerentedebancolocal.

Ouvidastodasastestemunhas,oMinistérioPúblicoanunciouasuamudançadeposição:estavaagoracomaarguida,ealegavaqueaacusaçãodedifamaçãonãofaziasentido,porqueforaopróprioacusadorquemdecidirarevelaroseunomenojornal.Alémdisso,nãoviadequemodootextoemcausaopudesseterprejudicado,umavezqueopoderpaternalatéacabaraporseratribuídoaoqueixoso.Aindaassim,ajuíza decidiu pela condenação— e por uma indemnização de quinzemil euros por danosmorais epsicológicos.

Clarisse resolveu recorrer para o Tribunal da Relação; o advogado avisou-a de que talvez nãoresultasse, porque esse tribunal era numa cidadezinha próxima, e era provável que nutrisse pelosjornalistas e escritoresdacapitalumaespéciede raiva semelhanteàque severificaranoTribunaldePrimeira Instância.Masquinzemil euros era, paraClarisse, uma fortuna; acrescequeo jornal não seresponsabilizavapelosprocessosmovidosporartigosdeopinião.Oresultadodorecurso,alémdeumacréscimodecustasjudiciais,foifavorávelaoqueixoso,aoqualClarisseficouobrigadaapagarvintemileuros.

Compreendeuentãoqueavidaestavaagritar-lhequetinhademudardeprofissão.Deresto,aquelaindemnização obrigava-a mesmo a sair de Lisboa. Descobriu num jornal um anúncio pedindo umanimadorparaumcentrodediaemArrifes,pertodeLagar,enempensouduasvezes:dequalquermodo,háonzeanosque jánão tinhao filho.Entretanto,Vicente tornara-seumadulto.Nuncamaisprecisariadela,seéquealgumavezprecisara.

A súbita partidadeVicentedeixara - a amachucada comoumpapel nasmãosdeumacriançaqueaindanãosabedesenhar.Acreditoucomfirmezaqueomeninomudariadeopinião,einventoudezenasdereportagensnosEstadosUnidosparaovisitar.Acadavisita encontravaVicentemais feliz, encantadocomajovemmadrastaamericanaecomasluzesdeNovaIorque.Moravanumapartamentoamplo,bege,requintado,noUpperEastSide,adoravaaescola,praticavaequitaçãoaosfins-de-semanaeopai,quenosprimeirosanosdevidanãotinhatempoparaele,tornara-se-lheumDeus.Fazia-lheumafestaquandoavia,masnãoqueria saberdavidadelanemdenadanemninguémemPortugal: narrava-lheos seusêxitos,osprémiosescolares,osprémiosnascompetiçõesequestres,osprémios,osprémios,osprémios.«Agoldenboy»,resumia,desvanecida,aafávelmadrasta.Clarissecomeçouaespaçarasvisitas,aindana esperança de que os ziguezagues da adolescência despertassem no filho umamemória saudosa, ou

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pelomenosgrata,dasuainfânciaportuguesa.Masissonãoaconteceu.Aprincípioaindavinhaummêspor ano a Portugal. Depois começou a desculpar-se com campeonatos disto e daquilo, obrigaçõesinadiáveisemNovaIorque,efugiaparaoaviãoaofimdequinzedias.Nosúltimosanosjásóacediaemvir,devezemquando,paraoNatal.Clarissetrabalhavadozehoraspordia,metia-seemvoluntariadosecausascívicas,procuravaocupar-seatéàexaustão.

Terminadoaqueleprocessodesgastantequeliquidaraassuaseconomias,apercebeu-sedequeestavaporcontaprópria.Sozinha.

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17-AressurreiçãodoamorA tarefade limparosarmáriosdaminhamãe, seleccionar lembrançasparaasamigasdelae fazer

sacoscomroupaparaacaridaderepresentouparamimumregressotraumáticoaoanode1998eàmortedeLaís.ApreciosaajudadeClarisseeosseusesforçospormostrarumatemaboadisposiçãonaquelasamargas horas de tristeza apenas avivaram aquela recordação, aproximando a imagem já desmaiadadessajovemmortaqueeutantoamaradoscontornosbemreaisdamulhermaduraqueagoraatravessavacomigoestasegundadespedidacruel.SemClarisse,euterialevadosemanasouatéanosadesfazer-medascoisasdaminhamãe.Tudonaquelavelhacasacheiravaamofo,atéporqueestiverafechadaduranteummêsemeio.Clarissecomeçouporabrirasjanelasdeparempar,varrerasteiasdearanhaelavaralguma louça, para que pudéssemos beber um copo de água e comer as sanduíches e a fruta que elaprópriatrouxera,demodoanãoperdermostempoe,comoelafalou:«despacharoassunto».

Euestavaapático,masiaobedecendoàsordens,mesmoquandomeirritavamligeiramente.Repetia:«nãohápressa»,acariciandotecidosetentandoprolongaravistoriadecadaobjecto.AstantasClarissesorriu, acendeu a televisão, mandou-me ver as notícias «para descontrair». Como se as notíciasdescontraíssemalguém.Sentei-menapoltronademinhamãeefiqueiolhandoparaoecrãsemvernada.

ConheciLaísnoChecker’s,emSetembrode1997.Resolveracontrariarovaziomoraldeumaquinta-feira de trabalho entre telefonemas a Senhores Engenheiros muito cheios de si e a irritação que meprovocava a nova versão do Autocad. Valia a pena vencer os quatro quilómetros de distância queseparavamomeuapartamento,entãonoEstoril—issoaconteceuaindanotempodasvacasgordas—docentro de Cascais. A decoração do Checker’s era exagerada, semelhante à de um pub inglês naDisneylândia,porémcomboaselecçãomusical,naalturafeitaporumempregadoiraniano.Doisquartosdehoradepois,jáestavanumadaspontasdoaconchegantebalcãoaflertarcomessamoçabrasileira,queconfraternizava com um casal de amigos na outra ponta. Pelomeio, o barmanCarlinhos, um paulistaredondoedeolharargutoquejátinhapercebidotudoe,deummodomaisoumenossubtil,estabeleciaumapontedeconversaentremimeeles.Eraumbarmandeclassemundial,umanimalurbanoretiradonapequenaebelaviladeCascais.EmCascais,Estorilearredores,comsuaspraiastranquilasecalçadõesàbeiramar,entramosnumamáquinadotempoquenostransportaaoBairrodaUrcadosanoscinquenta.

Carlinhos era um excelente profissional que conhecia como ninguém as missões de um barman:descontraircomarteoambiente,entreterossolitários, favorecerencontros,venderálcoolaosclientesmantendo-osforadolimitedaembriaguezesacargenerosasgorjetas.Funcionavacomoumaespéciedecaixa de conexão entre as diversas tribos de brasileiros, em geral profissionais liberais, que naqueletempo procuravam a Linha de Cascais para viver. Publicitários, informáticos, arquitectos, dentistas eagentesimobiliários,levasemaislevasde«brasucas»,entrehabilitados,curiosos,aventureiros,ounomínimoesforçados,entupiamoAeroportodaPorteladesdeofinaldosanosoitenta.Vinhamdispostosadescobrir se o epíteto ufanista e autolaudatório lançado no cartaz de propaganda de um demagogo,afixado pelo país de cabo a rabo em período eleitoral, no início dos anos noventa, seria mesmoverdadeiro: Portugal—uma democracia de sucesso.A economia estava em expansão e necessitava decérebros.Sópertodaviradadoséculodesovariaumaoutralevadebrasileiros,menosqualificados,paraalimentarogigantescocanteirodeobrasemqueopaíssehaviatornado.

MasestávamosnoChecker’s. JánãoerasóCarlinhos;ocasal fazia tudoparaqueaamigaqueosacompanhava,apublicitáriaLaís,metesseconversacomaquele tipoalgo retraídomassimpático,comcasaco quadriculado de português e sotaque abrasileirado, que trocava olhares com ela e, de vez emquando,provocadopelobarman,tentavafazerumcomentáriopertinenteouespirituoso.

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Acabámosporentabularconversae resolvemosesticaranoitenoapartamentoqueocasaldividiacomLaís em São Pedro do Estoril, onde havia uma varanda em frente aomar. O casal foi dormir eficámos os dois a beber na varanda, sorrindo à generosidade ocasional do destino. Trocámosinformações.Eueraumarquitectosolteirodetrintaequatroanos,sóciodedoisamigosportuguesesnumateliercomalgunsprojectos.ViveraquatroanosemPortugalcomFernanda,umaex-namoradadoBrasilque persuadira a vir ter comigo, pagando-lhe a passagem, um ano depois daminha chegada ao país.PreferiomitirqueFernanda,carentedopai,quelhemorreraaosseisanosdeidade,acaboupormetraircomopatrão,umbrasileirodezasseteanosmaisvelho,quelargaramulherequatrofilhosparavivercomela, declarando ter «finalmente encontrado a sua alma gémea». Omiti também que os dois mepresentearamcomumlivroqueexplicavaofenómenodaalmagémea,paraqueeupercebesse«aforça»doqueacontecera—eque,portanto,meencontravasozinhojáháalgumtempo.

LaísLucetinhavinteeoitoanoseeraumagaúchadefrancavivacidadeelínguaveloz.Empoucosminutos contou que ela e seus amigos eramdeCaxias doSul e estavam emPortugal há dois anos.Aamiga e omarido eram informáticos especializados emmainframes de bancos e ela era publicitária,redactora criativa numamultinacional importante. Ganhavamuito bem a trabalhar contas de shoppingcenterseemJaneiroiriaaVarsóviareceberumprémionumfestivaleuropeudepublicidade.Filhaúnica,acalentarao sonho remotode trazerospais paraPortugal e terminarahaviameses comumnamoradoportuguês, um rapaz de uma família tradicional, três anosmais novo.Disse que o ex-namorado tinhaloucura por ela e que o casamento chegara a estar marcado, mas a ex-futura sogra tudo fizera paradesmanchar o noivado. Segundo Laís, a senhora nunca aceitaria que o filho se casasse com umaestrangeira, ainda por cima com uma peculiaridade física: os dedos mindinho e anelar da sua mãoesquerda haviam nascido unidos. Brinquei, dizendo que assim era mais difícil casar: não tinha ondecolocaroanel.Laísriudapiadanegra;muitosjáahaviamfeitoesempresesaíacomamesmaresposta:tinhaentãode encontrarumgrego,depreferênciamuitovelho;parecequenaGrécia antigaosnoivospunhamoanelnodedomédiodamãoesquerda,acreditandoquedestededopartiaumaveiadirectaaocoração.

Meiga, divertida, sempre alegre, Laís era muito diferente de mim. Adorava dançar, revelava-seoptimista,despachadaepragmática.Estetipodemulhertemsidoumaconstantenaminhavida;creioqueaminhacalmaeomeutemperamentofalsamentecontroladoasatrai.OmalogradonoivadocomorapazportuguêsdecidiraLaísaregressarparaoBrasil.Játinhaplaneadoomomentodesedemitir,logoapósreceber o prémio. Tinha agendadas algumas datas, reservas de passagens — mas, agora que meconhecera,iadarmaisumachanceaPortugal.Acabouporresolverficar.

Osmesesseguintesforamdeinexplicávelfelicidade.Espanhaempolgava-a;assim,vintediasdepoisdenosconhecermosfomosaSevilha,epassámosoNatalnaserraNevada,experimentandoesquiar.EmJaneiro,acompanhei-aaVarsóviaparaarecepçãodoprémio;nohotel,antesdesubirmos,embebedámo-noscomumavodkacomprata.NaPáscoapasseámospelocentrodePortugal;naidaficámosemTomar,num hotel do centro cujo quarto tinha o número treze-, de manhã quisemos conhecer o Convento deCristo,mas estava fechadoparaobras.Resolvemos então seguir viagem, conhecera regiãodoLuso, ehospedámo-nosnofabulosoHoteldoBuçaco.

Aatmosferadestaúltimapartedaviagemfoiestranha.Pela lentedacâmarafotográficaencontravamuitasvezesumaLaíssoturna,sorumbática,entristecida.Recordoumafotografianaqualelaquisposarsozinhaaoladodeumenormecrucifixo,nosjardinsdoBuçaco.NasruínasdoCastelodeTorresNovas,fotografei-asemprecomoolharperdidonoinfinito.Otempotambémnãoajudava,nuncafezsol,océuestevesempremuitobrancoouacinzentado.

Morreu na segunda-feira, dia 13, logo a seguir à Páscoa.Na viagemde regresso, resolvemos que

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dormiríamosemminhacasa.Umanoitedeamor,demanhãumpequeno-almoço trivial,preparadopormim,despedimo-nos comumbeijo apressadoe, trintaminutosdepois,Laís estavamorta.RecebiumachamadadoHospitaldeCascaisapedirqueviessereconhecê-la;haviamencontradoosmeuscontactosnacarteira.OFordFiestaqueconduziaparaotrabalhoemLisboadespistou-senaMarginal,narectaqueladeiaaPraiadeCarcavelos,provavelmenteporcausadapistamolhadapelaschuvasdeAbril.Invadiua faixa contrária e uma camioneta cheia de operários embateu com força no lado direito do Fiesta,esmagandoporcompletoolugardopendura.OcorpodeLaísnãochegouasertocadopelacamioneta—morreuemconsequênciadoimpacto,porrupturadosórgãos.

Confirmeiasuaidentidadepelosdocumentos,nãoquisvê-lacomferimentosouluxações.Aamigafezoreconhecimento.Pergunteinohospitaloquedeviafazer;estavaemtranse,apático.Nuncatinhasidoconfrontado com a morte. Jamais havia sequer participado num enterro. Omesmo paramédico que atrouxeparaohospitalemeinformouqueamortehaviasidoinstantâneaequeLaísprovavelmentenãosofrera, aconselhou-me a procurar uma funerária; havia uma muito conhecida ali na Rua Direita, emCascais.Paralámedirigi,apé.Duranteotrajecto,sópensavaemduascoisas:queLaíserafilhaúnicaequehaviadesistidodevoltarparaoBrasilporminhacausa.

Na funerária tratei do translado do corpo paraCaxias do Sul.OBrasil exigia que fosse feita emPortugalumaautópsiaequeocorpoviesseembalsamado.OpassaportedeLaísdeveriaacompanharocaixão,queteriadeviajarlacradoejánãovoltariaaseraberto.Amãedelaescorava-senaideiadequetomariaaverafilhadentrodecincoanos,naexumação,crendoqueoembalsamamentolhemanteriaocorpo incólume.Conhecer os pais ao telefone foi pungente; prometi-lhes que dali a, nomáximo, doismeses, iriavisitá-losemPortoAlegre,ondeviviam,edeseguida iriaaCaxiasdoSul,acidadeonderesidia a numerosa família de Laís, de ascendência italiana — «nona», tios, primos — e em cujocemitérioseriaenterrada.Tomeime,porprocuraçãodospais,ofieldepositáriodosbensdeLaís;reuni-mecomopatrãoemLisboa,recebiosmontantesquelheeramdevidos,pagueiasdespesasdefuneraletransferi o que sobrou para o Brasil. Em Junho, como prometido, fui visitar os pais de Laís a PortoAlegre. Ofereceram-me hospedagem no quarto dela, ainda decorado com os seus colares, as suasfotografias, os livros da sua juventude, peluches, posters. O guarda-roupa estava cheio de blusas evestidos,asgavetasdecalcinhas,sutiãs,estojosdemaquilhagem.Passeiasnoitesemclaro,cheirandoaroupanoslençóisondeeladormira,esperandoemvãoqueasuavozviessemurmurar-meoperdãodequetantonecessitava.Todososdiashaviaumjantar,oucomafamília,oucomasamigasdeescoladeLaís,oucomoutrosparentes.Tudodecorreucomasuavidadeaque,deummodogeral,opovobrasileiroseaferraparacontornarosmomentosdetristeza.Aminhachegadacoincidiucomaimprovávelvitóriadocampeonato estadual pelo Juventude, a equipa local de futebol, o que serviu de pretexto paramuitasbrincadeiras:chamavam-me«anjo».

Visitei em Caxias do Sul a gaveta do cemitério onde Laís jazia e, apósmuitas juras de amizadeeterna, ficou prometido que no ano seguinte eu voltaria a visitá-los. Assim fiz, ficando de novohospedadonoquartoquepermaneciaintocado,comoseLaístivesseapenassaídoparaumpasseio.EoJuventudeem1999foicampeãobrasileiro.NuncamaisregresseiaoBrasil.

AlémdosbensfinanceirosdeLaís,cujacuradoriaosseuspaismehaviamdelegado,fiqueisobretudoresponsávelpeloque,nojargãodosseguros,édenominadopor«salvado»—abolademetaledestroçosresultantedocarroacidentado.Eraobemmenosimportanteedemenorvalor;combineicomospaisqueprocuraria vendê-lo ao ferro-velho que oferecessemais. Para isso,mandaria um reboque depositar osalvado num sítio sem custos de parqueamento e onde pudesse receber os representantes dos ferros-velhos.Nessaépoca,omeuescritórioficavanumasalinhaalugadanosegundopisodeunsarmazénsemAlcabideche,juntoàauto-estradaLisboa-Cascais.Comoumdosmeusvizinhoserabate-chapas,jáhavia

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ali,numaáreadeterrabatida,algunscarrosdanificados.Odito«salvado»destoava,pelaviolênciadoseuaspecto,dosoutroscarrosamolgadosàesperadeconserto.

Daminhajanela,tinhaavisãodirectaparaamassadedestroços.Leveidoislongosanosatratardasuavenda.Semprehaviaalgomaisimportanteafazer,aquilopodiaesperar,ovalorerabaixo.Eacadapausaparaumcafé,aquelemontedemetalatraíaaminhaatenção.Estavaprisioneirodalembrança,dapenaedocastigodeterdeolharparaoquetinhaacontecidocomLaís—elamorreranaqueleacidenteporquemeconhecera.CostumavaestacionaromeuCitroënBXaoladodo«salvado»,emposiçãode,àsaída, lançar um mórbido olhar de esguelha, de forma a que a certeza da minha culpa pudesse serrecarregada.

Olharparaaqueledestroçojásetornaraumaliviadordetensão.Nadaeramaisimportante,difíciloucomplicadoqueamorte.Nemmaisculpabilizante.Certavez,aosairànoitedoescritório,fuivisitardeperto os destroços. Abri a porta do motorista. Sentei-me ao volante. Olhei para o lado do pendura,deixaradeexistir—seLaísestivesseadar-meboleiaparaLisboa,iadartrabalhoretirarem-medali...UmaououtramanchasecadosanguedeLaís,novolante.Passeioindicadorcomoqueparatocá-laumaúltimavez.Olheientãoparaoleitordecassetes.Haviaalialgumacoisa.Acendiumfósforoedescobriuma cassete. Carreguei no botão, a cassete foi cuspida. Era o que ela estava a ouvir nomomento datragédia.Entreinomeucarroecoloqueinervosamenteacassetenoleitor.OuviavozdacantoraVanessaRangel.Reconheciacanção:

«Estou com saudade de você debaixo domeu cobertor/De te arrancar suspiros, fazer amor/EstoucomsaudadedevocênavarandaemnoitequenteEoarrepiofrioquedánagenteTruquedodesejo...GuardonabocaogostodobeijoEusintoafaltadevocê,mesintosó/Eaí...seráquevocêvolta,TudoàminhavoltaétristeEaí,oamorpodeacontecer/Denovopravocê/Palpite»

Converti amorbideznumaviciante formadeprazer.Quase enlouqueci a ouvir esta canção, dias enoites seguidos, durante meses. Parecia-me uma mensagem propositada de alguém que sabia que iamorrer. Tinha consciência de que este pensamento era irrealista e de uma lamechice que em estadonormalmepareceria insuportável.Alémdomais,pensardestemodosóampliariaomeumasoquismo.Laíseraromânticaesempreestavaouvindocançõesdeamor.Podiatersidoestaououtracanção.Eraassimqueeudeviapensar.Aliás,oqueeudeviafazereranãopensar.Porém,aculpaalastravadentrodemimcomoumadoençafatal.SeLaísnãometivesseconhecidoteriavoltadoparaoBrasileestariaaindaviva.Omelhorqueeutinhaafazereraevitarrelaçõesdeintimidade.Efoiissooquefiz,durantemuitotempo.Naverdade,foi issooquecontinueiafazermesmoquandomeempurraramparaforadaminhasolidãoevolteiatentaramar.

Procurei sacudiressespensamentos inoportunos, levantei-mee resolviajudarClarisseaarrumaraminhavida.Deixandoacesaatelevisão,comosemprefaziaaminhamãe.

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18-Vamosfazerumbusiness?Osilêncioregulamentarsobreteresehaveresnãoseprolongapormaisdoquedoisdiasdepoisdo

enterro,pelomenosnasfamíliasdeescassasposses.Suspirosereminiscênciasesfumavam-se;aaldeiarenasciaparaoseurame-ramehabitualdetrabalho,zangas,risosemaledicências.JacintaSousafizeraumtestamentoafavordeRaul,deixando-lheaquotadisponíveldaherança.Dissera-lhemuitasvezesqueacasadeArrifesnaverdadejálhepertencia,porqueacontribuiçãomensalquedavaàmãe,semfalharum sómês, desde que, há vinte e dois anos, aterrara emPortugal, já eramais do que suficiente paracompraratéduascasas.Issomesmolherepetiaagoratodaavizinhança,tentandoconvencê-loainstalar-senaaldeia.Aterraprecisavadesanguenovo,diziam-lhe—eRaulsorria,pensandocomosseusbotõesque só naquela terramaioritariamente habitada por velhos ele poderia ainda, aos cinquenta anos, serconsiderado jovem.De facto, o que estava a fazer emLisboa?Apenas a sobreviver.Talvez até fossemaisfácilsobreviveremArrifes.ClarissedisselhequepoderiavenderosseusquadrosemLagar,quetinhaváriaspequenasgaleriaseumnúmerocrescentedeturistas:«Aúnicaproduçãoquetemaumentadono país é essa, a dos estrangeiros», comentava, rindo.Mas que quadros?— interrogava-se Raul. Averdade era que não pintava desde há muitos anos. Clarisse parecia adivinhar-lhe os pensamentos:«Mesmo que não tenhas pinturas recentes, hás-de ter alguma coisa guardada, não?» Sim, tinha. NaarrecadaçãodacasadeIsabel,ainda.Váriasvezeselalhepediraquelhedesocupasseoespaço,aliás.Masalguémseinteressariaporaquelaspinturasdatadas,nestaeradeaceleração?

Entretanto,Ritacomeçouacontactá-lopelaInternet,pedindo-lhequefalassemporSkype.Informou-odequeamãelhedisseraqueofioeamedalhaquesempreusavaficariamparaela,quandomorresse.Raul ficou em silêncio, degustando a golpada.Nomeando-o sempre como «meu irmão querido», Ritaprosseguia o seudiscursode afecto e nostalgia, dizendoque estava certa de que ele nãonegaria umavontadedaamadamamãe,quenãosetratavadovalordamedalha,masdosímbolo.Dequalquermodo,aspoucascoisasdemuitovalor,queeramasjóiasdaavó,jáRafaelashavialevado,hámuitosanos,daúltimavezquevisitaraamãe.Raulrespondeuquesim,enjoadocomapropostaecomotimbre.Depoisperguntouàirmãseestariadispostaaabdicardapartedacasaquelhecabiaaseufavor,jáqueamãenão gostaria que se desfizessem da morada da mãe dela, e que, de qualquer modo, não tendo eledescendência,osherdeirosseriamsempreos filhosdelaedeRafael—ouseja,acasacontinuarianafamília.ArespostadeRitafoiimediataepositiva—salvaguardandoapenasquequeriagarantirabrigona casa na velhice. Apesar das reticências e medalhas, Raul sentiu descer sobre ele uma enormetranquilidade;afinal,tinhaumafamília.Despojara-sedeambiçõesdecarreira,sucessoouamor;agora,sonhavatão-somenteviverempaznaterradepartedosseusantepassadosenopaísquetomaracomoseu— e já nem ligava quando o definiam como «o brasileiro»; o sotaque carioca permanecia, mas novocabulário e na construção gramatical, insensivelmente, misturavam-se-lhe Portugal e Brasil. Acompreensão imediata da irmã teve sobre Raul o efeito de um mergulho no mar quente; não haviadistância que não fosse ultrapassável nemdor sem reverso.Rafael, que sempre adjectivara a casa deArrifescomo«favelada»equeerasuficientementericoparaexistiremitinerânciaentreVenezaseNovaIorques, decerto não colocaria nenhumaobjecção a este acordo.Emúltima instância, de resto, a casacontinuariaapertencer-lhe,jáqueasuafilhaherdariapartedela.

Bastaram três dias, porém, para que Raul compreendesse que se enganara quanto à pressupostaaceitaçãodeRafael:oirmãoacusou-odeagircomoumaldrabãoedepretenderdeserdarRita,queviviacomdificuldades,edeclarouqueeranecessário,antesdemais,apuraropreçodacasa.EstaatitudeteveocondãodetransfigurarRita,quecortararelaçõescomRafaelhámuitosanos,emamigaextremosado

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irmãomaisvelho;escreveuaRaultratando-oporquerido,numtomadocicadoesofrido,dizendoquenãotinha pensado bem e que Rafael tinha razão, ela vivia mal em Campos e gostaria de receber umafagozinho póstumo damamãe que tanto adorava. Alternando o tom entre a ameaça e a fraternidade,Rafael, que continuava em vilegiatura pela sua agradável Praia das Maçãs, propunha a Raul umajantarada onde bebessem uns copos e tratassem daquilo a que denominava como «business». Raulrespondeu secamente que não tinha tempo nem dinheiro para jantaradas e que ia apurar junto dasimobiliáriaslocaisovalordacasa.

EntretantoregressouaLisboa,paranãoperderoempregonocall-center;deixouaClarisseachaveda casa e a incumbência de averiguar o seu valor. Planeava voltar dentro de quinze dias, no fim-de-semana,masassaudadesdeArrifesapertavam-noatéàsufocação;nosestelaresolhosverdesdeClarisseliaumapazqueequivaliaàprópriavida.Nasexta-feiraseguinte,pelasnovedanoite,estavaabater-lheàporta.Clarissesorriuedissequechegaramesmoatempodesesentaràmesaejantar.Tinhacozinhadoumbacalhaunoforno,comcouvesebatatasassadas,quedavaesobravaparaambos.Comosetivesseprevistoqueeleviria.

A crise económica reduzira o valor das casas velhas a níveis miseráveis; as mansões luxuosascontinuavamavender-secomobolas-de-berlimnapraia,emboraasclássicasbolasde-berlimtivessemdesaparecido dos areais devido ao novo policiamento alimentar que proibira a venda de produtoscaseirosnãocertificados.Clarisseconcluíra,depoisdeconsultaàsduasimobiliáriasdazona,queacasapoderia ser vendida por quarenta mil euros, não mais. Ora vinte mil euros já eram de Raul, portestamento;umtestamentoqueRafaelanunciouestardispostoacontestarnostribunais,seoirmãosequertentassereclamarodireitoàcasautilizandooargumentodascontribuiçõesmensaisfeitasàmãe.Bradavaque,pelocontrário,Raulviveraaexpensasdamãe,enroladonassuassaias.

Clarissepediuaumamigoadvogado,deLagar,queajudasseRaulnaquele imbróglio.Oadvogadosugeriuumpagamentofaseadodosvintemileuros,desaconselhandoRaulareivindicarosseusdireitosna Justiça, onde o dinheiro de Rafael poderia fazer arrastar o caso por anos infindos; de resto, paraprovar os pagamentos feitos àmãe,Raul teria de levantar anosde extractos bancários, o que tambémrepresentaria um gasto avultado. A Justiça terminava inevitavelmente por se manifestar como umaprerrogativadericos.

Todavia,ameiodaquele jantardesexta-feira,RaulentendeuelogiarosentidopráticodeClarisse,dizendo-lhequeafriezaearapidezdasuaacçãoeramadmiráveis.Oenevoamentoautomáticodoolhardamulherfê-locompreenderquetinhaestragadooambiente,quandopretendiaoefeitocontrário.Asuacapacidade de diálogo estava enferrujada, e não só quanto a relações com o sexo oposto.Vivia numisolamentocadavezmaior;passavaosdiasaotelefone,usandofrasesestereotipadasetentandovenderprodutos a pessoas que nunca viria a conhecer. Falava muito para não dizer nada; fora do trabalho,praticamente não conversava com ninguém. Clarisse levantou-se de rompante e foi à casa de banho.Chorou,depoislimpouaslágrimas,lavouosdentes,olhou-seaoespelhoetomouumadecisão:entrounasala,agarrounacabeçadeRauledeu-lheumlongobeijonaboca,apósoquallheperguntou,olhosnosolhos:«Aindateparecequesoufria?»Raultitubeou:«Não.Masissoeraparaeufazer.»Clarissemudoudeassunto;informou-odequetodaaaldeiaficarachocadacomaganânciadosirmãosequemuitagenteseprontificaraatestemunharemtribunalnãosósobreaautenticidadedotestamentoeaplenacapacidadementalemqueDonaJacintaestavaquandoofizera,jáháquaseumadécada,comosobreospagamentosmensaisdeRaulàmãe.Raulsentiu-seconfortadocomaquelainformação,emborasoubessequedenadalheserviria,faceàraivadeRafaeleaodinheirodequeeledispunhaparaotorturarduranteorestodavida.Sugeriuumpasseiopelaaldeia.NacurvadeumaruadesertadeArrifes,RaulganhoucoragemetiroudasuamochilaarosaquecortaradojardimdamãeparaofereceraClarisse.Enquantoelapegava

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narosa,surpreendida,ebaixavaacabeçaparaacolocarnodecotedovestidoazul,Raulagarrou-lhenacaraebeijou-anaboca.Derepente,tudoficoucerto.

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19-RauleobeijoOntembeijeinaboca.Háquatroanosquenãobeijavanaboca.Agora,Clarissesurgiunaminhavida.

Quedocedemulher,quelínguafaminta.Nãoseioquemeconduziuàcasadelaontem.Númerotreze,onúmeroqueeutantoevito.Aprincípionãoeraparaterido,massejaoqueDeusquiser.Deus?AcreditoemDeus?Oquequerelacomigo?Deveseromesmoqueeuquerocomela:amor.Euestouumtraste.Brancoquenemumavela, raramenteapanhosol, sómevistodenegro.Eladeve tergostadodabarbabemaparada.Tenhovergonhadosmeusdentes,sintoqueestãoaficarumpoucomoles.Édaidade.Serádascigarrilhas?Eujáquasenãofumo.Tenhodevoltarabeberleiteparaverseseguroosdentes.Quehorror semecaiumdente, aí équeeupercoClarisse.Umaqui atrás eu jáperdi.Acrise faz agenteperderdente.Essedenteficouparaacrise,acrisecobranacarne.

Mas a Clarisse, que mulher fantástica. Forte e delicada ao mesmo tempo. Largou Lisboa e ojornalismoparavirparaaaldeiatratardevelhos.Eisumaloucuraqueeupossoentender.Deixouofilhoircomopai,comofezamãedeminhamãe.Nãovoujulgá-la,quemsoueuparafazerisso?Queseieu?Jáestoucomocoraçãotransformadonumsacodeboxe,comoatontadaVanessa,desconfiandodetudo.Senãotemoscuidado,aprovíncialimita-nosoentendimento.Entra-nospelacabeçacomoumacercadearamefarpado.MasestaClarisse,quebeijo.Jamaisumamulhermebeijouprimeiro.Fuiapanhadodesurpresa.Nahora,fiqueiaturdido.Reagimalàdeliciosasensação;umímpetodeultrajadocresceuemmimcomoumavozdiabólica,dizendoqueelamebeijaraparameacusarde inoperância.Queaquelebeijosignificavaapenasumatestadodaminhaincapacidadedesedução.Quehomemesperapelobeijoem vez de beijar?Omeumachismo falando.Omeu lado rufia— alguma coisa terei aprendido comRafinha.OuapenasoincurávelcomplexodeinferioridadequeRafinhamuitomeajudouaalimentar,comassuascríticasepalavrasduras,comosefosseeleomeupai.

Seiquenãodevopensardessemodo;oquetantasvezesrepiseiaRafaeléválidotambémparamim:depois damaioridade, condenar os pais ou os irmãos pelos nossos fracassos é cobardia.No entanto,estousempreàesperadomalquandoalguémmefazbem.Por issome fixei tantasvezesemmulheresdesprotegidas, atormentadas: o papel de salvador anestesiava-me e engrandecia me. Redimia-me.Quandomeviaexcessivamentepreocupadocomela,aminhamãeadmoestava-me:«Menino,vocêémeufilho,nãopretendafazerdemeupai,nemmefalecomoseeufosseumnenémdesamparado.Penseantesem você.» Também ela sofria do complexo de salvadora; nenhum salvador agradece que o queiramsalvar.Osdemóniosinterioresdospais—fraquezas,fobias,complexos—passamtodosparaosfilhos.Rafinhaherdoudanossamãeanarrativadoabandonodafiguramaterna.

Eramuitobeijoqueira,aminhamãe.Adoravabeijos,também.Muitasvezespenseicomoaguentariaela,quetantoamou,viversemosbeijosdeumhomemquasemetadedasuavida.TinhacinquentaeoitoanosquandoveioparaPortugal;nãoeraassimtãovelha.MasqueseieudosamoresdeDonaJacinta,naverdade?Apenas sei que veio para Portugal atrás do amor damãe que nunca teve.E talvez quisesseesquecerodesamordoshomensqueteve.

Osbeijosdelasãoaprimeiramemóriadaminhainfância.Fuiumacriançabeijada,acarinhada.Diziaque eu tinha nascido de uma tentativa de reconciliação com o meu pai. Costumava fazer-me dormirentoando um qualquer mantra de paz, da religião que seguia na altura. Muitas vezes pensei que acrueldadedeRafinhaeraumarespostaaessaatençãodecaçulaquerecebideDonaJacinta.MasminhamãejuravaquedavaamesmaatençãoaRafinha,quandoelenãoeraaindaacriançadifícilemquesetomou.Lembrodeladizendo:«ORafaelnãosabesefazeramar.»Disseissoavidatoda.

Nuncameesquecidacarnebrancaeespumosadapernadaempregada,vazandopelapeleatravésdos

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furosque,amandodeRafael,eufizeranela,espetando-lheumgarfo.NãomeocorreucontrariarRafinha.Foi uma surpresa para o garoto de seis anos que então eu era descobrir que a carne das pessoas erabrancapordentro.Essadescobertaaumentouaminhasensaçãodeculpa.Esse tipodebrincadeiraeracontraaminhanatureza.Achoquefizaquilo,nãopormedo,masporquenãoqueriadecepcionarRafinha;afinaleraomeuirmãomaisvelho.Sódepoisdeofazeréquepercebiamonstruosidade,easensaçãohorrível de ter sido manipulado. Aproveitei o ensinamento: mais tarde tive forças para recusar amanipulaçãodomeupai.

Omeu irmão idolatrava o pai, e no entanto, nem ao seu funeral foi. Na altura cogitei que a suaausênciasedeveriaafaltadepaciênciaparaaoutrafamíliadessehomemquenosabandonousemolharparatrás,ouaciúmesdosoutrosfilhos.Masédifícilcompreenderodesprezoaqueelevotouanossamãe.Outalveznão;maloubem,paieleteveatéaofim.Devezemquandoiamaofutebol,falavamaotelefone, partilhavam as suas vidas. Papai era o grande olho que o observava, que registava a suahistória,aquemeledeviasatisfações.Mamãemudaradepaís.Edepoiseufuiparapertodela;isso,elenãoperdoa. Sente-se subtraído.Daí a ganância deme arrancar uns euros na partilha da casa, quemefazemtantafaltaeparaelesãotrocos:querpunir-meporlheterroubadoamãe.QuandocomproucasaaquiemPortugal,jáperderaaligaçãocomessamãeque,sedependessedele,teriamorridodefomehámuitotempo.Nuncaachamouparasuacasa.Agoraarma-seemherói,alegandodefenderosinteressesdanossairmã.PorquenãocedeentãoasuaparteaRita,seestátãoinquietocomasnecessidadesdela?

AintençãodeRafinhaéamesmadesempre:castigar-me.Tenhodepagarcaroporlheter tiradoaatençãodaDonaJacinta,ouporqueasuapreocupaçãocentralfoiadebrilharparaRamiroLobo.Jogou-meváriasvezesnacaraofactodeterconseguidoficarrico.Umavez,emmeioaumadiscussão,disse:«Euacumuloriqueza,vocêacumuladívida.»Pretendiaincluir-menosjogosdecompetiçãoquesempreomoveramemrelaçãoaosseusamigos.Nãopercebequenãoquerojogarnocampeonatodele;nãoestánaminha natureza, o que também o irrita. Rafael perdeu a noção da realidade, julga que sou um doscamaradas com quem faz «business ». De vez em quando tenta ofender-me nas redes sociais; já obloqueei,masnãodesiste.Apósamortedemamãe,libertei-medanecessidadedequeograndeolhodeum Deus pairasse sobre a minha vida: provei o que tinha a provar, missão cumprida. Rafael, pelocontrário,viveaindaatormentado,àminhaprocura.

Tenhopenadomeuirmão.Nofundo,queriasertambémumartista,desenhar,pintarquadros,aquiemArrifes,comigo.Seeleouvisseestasreflexões,dariaumagrandegargalhada,diria:«Vocêpensaqueélivre?Nãoé.Nosistemacapitalista,sóodinheirotomaumhomemlivre.»

Compreendomasnãoaceitoa súbitamudançadeRita:viveemCampos,dooutro ladodomundo,comtantasdificuldadescomoeu.Agoraexige,namortedamãe,oquenãolhedeuemvida.Longedosolhos,longedocoração,rezaoditadopopular.Nadaaimpediadedarumpoucomaisdeatençãoàmãe.Avizinhacontou-mequeváriasvezeslhepediupelaInternetquetelefonasse,queconvenceuDonaJacintaamandar a companhia instalar uma extensão sobre a suamesinha-de-cabeceira, para que ela pudesseatender telefonemasdos filhos a qualquer hora.Rita ligava-lhe raramente, dizia quepodia «acordar amãe». Rita fala da suamãe querida, tratame por «meu irmão querido», agora atéRafinha, com quemdeixara de falar, é outro querido. Sempre que eu entrava num relacionamento, enviava-memensagenspedindoparaquenãodescurasseavelhota.AindatentouasorteemPortugal,masnãodeucerto;mamãegastoucomelaoque tinhaeoquenão tinhaeRitadesapareceu,voltouparaoBrasil.Osvelhos sãoencarados pormuitos filhos comoumproblema; se pudessemvarriam-nos para debaixo do tapete, oufaziam-nosdesaparecernumpassedemágica.Leioqueosíndicesdenatalidadenãoparamdebaixar:emPortugalaníveisalarmantes;noBrasil,comoaumentodaesperançadevida,adescidacomeçaagoraanotar-se.Nãoseiqualéasolução.Esquecermosqueosmaisvelhosexisteméquenãoosajudaaeles,

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nemanós.«Beijaréfácil.Amarémuitomaisdifícil.»AssimfalavaIsabel,renitenteamanifestaçõesdeafecto.

Comoéramosdiferentes!Amarsembeijostorna-seaindamaiscomplicado.Osbeijosproclamadoseaspalavrasdocesdaminhairmãsãocortinasatrásdasquaiselaescondeasuaculpa.Outalveznemisso:apenasumaformaeficazdemanipulação.Comonãoatenderaquemnoschamadequeridoenosbeija?Se eu desmontar a sua falsidade, dirá que sou insensível. Rafael, pelo menos, não brinca às almassensíveis.Mostraquemécommaiorfranqueza.

Nãoseicomofarei,talveztenhadealugaraosmeusirmãosacasaparapodermorarlá,atéporquenãotenhoalternativa.Voltaraemigrarestáforadequestão;jáofizumavez,estoucomcinquentaanos,nãofariasentidosairdePortugal.Surgiráalgumacoisa;ouumgrandetrabalhoemLisboa,outalvezarecuperação da casa de algum figurão local. Tenho demanter a esperança, não posso temer o futuro,apesardaevangelizaçãodosjornaisedatelevisão,repetindovezessemcontaqueopaístemdeviveremausteridade,queodesempregovaiaumentar,queocustodotrabalhotemdediminuirequeoconsumotemdebaixaratodocusto.DeclaramquesãoexigênciasdaTroika,quesomososbonsalunosdaEuropaenãopodemosser irresponsáveiscomoosgregos.Umaconversahorrível.Pareceque temosdepedirlicençaparaexistir.

Temoque, seporacasoconseguirarranjarosvintemileurosqueosmeus irmãosexigemparamevenderemapartedeles,Rafinhadecidamudardeopiniãodizendo,porexemplo,queprefereesperarpelofimdacriseparavalorizaracasa,ouquenãoestáparaseincomodareaguardequeotempocorraatéqueacasasejaleiloada.Nemquesejasóparasedivertircomaminhaaflição.Elesabequeeugostariadepreservarestacasa,emnomedetudooqueaminhamãe,aminhaavóeosqueaprecederamsofreramparaquechegássemosatéaqui.Enãotenhomaisondeviver;gostodessaterraesintoquevouficaremArrifespormuitotempo.Alguémtemderenderavigiaquedáparaabelavista.

No meio desta tempestade de amargura, sem fim à vista, surge a loura Clarisse— e eu sempredesejei ter uma namorada loura. Clarisse e os seus olhos verdes, tão profundos, tão tristes. Estamosquites,eutambémestoutriste.Encontro-mevazio.Nadatenhodentrodemimparalheoferecer,nãodevoseramelhorcompanhia,nestemomentodaminhavida.Achoqueaspessoasnotamisso.

Defacto,nemumaraparigadaaldeiaconseguiconquistar.AVanessapercebeu:vimo-nosduasvezes,umadançaapenas,umaconversanocarroenuncamaismeatendeuotelefone.Jánemligo;sintoessaspequenasdecepçõescomosefossemestalosparaacordar.AVanessafoiumestalo.TantoquedeixeideiràqueladanceteriaPrincesa.Eraumadiversãocaraparaomeuestadodepenúriafinanceira:seiseurosa entrada com direito apenas a duas bebidas; acabava por gastar mais. A vida na aldeia é umaexperiênciasociológicainteressante,masembrutece.

A vida. Será que vou perder tambémClarisse? Será que tenho alguma coisa para oferecer a umamulhercomaqueledomparaviraromundodoavesso?Seráquevaleapenaatirar-meparaestarelação?Masaquelesbeijosgulosos,aqueleencontrodeamor.Nãovouperder isso.Queroverestamulherdenovo.

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20-EstadodelevitaçãoOs vermelhos do outono, que antes me angustiavam, deslumbram-me. Fotografo árvores, folhas,

flores,gatos,guardanaposdepapelvoandopeloar,naesplanadadocafédeArrifes.Volteiaescrever.Andocomcaderninhosondeanototrechosdeconversas,ideias,sonhos.Esteestadodelevitaçãoparecetomar-secontagioso,alegrandoosvelhotesdoCentrodeDia.AminhaLupedizquepareçooutra:«Ameninaandacheiadecriatividade!Aíandamouro...»

Guadalupe Rodríguez, aos noventa e cinco anos, é a alma deste clube de corpos gastos. A suadimensãoanímicaéadamontanha-russadaadolescência;choraeri,rienquantochora:qualqueratitudeinjusta ou trapalhona a ofende, domesmomodo que omais ínfimomomento de simpatia ou beleza amaravilha.Aidadeapenaslheapurouaaptidãoparadescortinarointeriordosseresnumrelance;éumajovemcontestatária furiosacomomundoporque jánãopodecorrerequeimarasadversidadescomopuro lume da vontade. Foi radiosamente feliz com o seu marido José, entre os vinte e cinco e oscinquentaeseteanos;contouosmeses,diasehorasdessestrintaedoisanos,eaindahojeseperguntaquepecado terácometidoparaqueDeus lhe roubasse tãocedoaqueleamor, coma ferocidadedeumataquecardíaco.AféemDeusétambémacausadasuaalegriadeviver;estáseguradequeoseuJoséaaguarda,atrásdasnuvens,paraumaeternidadedepaixão.Entretanto,choraporqueainvejosadaDonaLurdesfoidizeraumadasraparigasdoCentroquequalquerdiaaindaadespedemcomjustacausapelosfavorzinhos especiais que faz à peneirenta daDona Lupe. Ora Lupe odeia «favorzinhos» e nunca foipeneirenta;apenaspedeàraparigaquelhevácomprarunsmorangos,unsfigosouunspêssegos,quandoéépocadeles,porque jánão tempernasparaqueopossafazerelamesma.Acalúnia indigna-a,oamortorna-a uma rapariguinha esfuziante.Desdequenos conhecemos, reza todas as noites aSantoAntónioparaque eu encontreohomemquemereço.Querver reproduzida emmima sua felicidade comJosé.Ofereceu-mehátemposumanelcomumapedrabrancadizendo-mequedavasorte.

OgrandedesgostodeLupeénãotertidofilhos;umabortomalfeito,noiníciodadécadadequarenta,tornou-a estéril. Fez o aborto porque, quando estava grávida, recebeu uma proposta de contrato paracantarnaMadeira,noBrasileemEspanha.Pediuàmãequelhetomassecontadofuturobebéduranteunsmesesdemodoaquepudesseaceitaratournée,eamãerespondeu-lhe:«Quemostemqueosembale.»Guadalupe Rodríguez era então uma cantora luso-espanhola em início de carreira, casara há poucotempo,eojovempianistaJosétambémnãopossuíagrandesrendimentos.Sozinhos,semqualquerapoiofamiliar, decidiram que seria mais razoável adiar o sonho da paternidade. Quando José morreu jámoravamemArrifes,aterradafamíliadele;Joséherdaraaserraçãodemadeirasdoseupai,egeriu-aatéàmorte.Lupeassumiraopapeldedinamizadoraculturaldapovoação,organizandorecitaisdemúsicaepoesia,sessõesdecinemaeteatroeateliersdetemposlivresparacrianças.Aindatentouatrairparaestasactividadesaoutravedetadolugar,EmadeCastro—quelheretorquiuquesemelhantesfrioleirasdenadaadiantavam,eapenasdeslustrariamasuabrilhantecarreira.

Com a idade e as dificuldades de deslocação, limita-se agora à acção no Centro de Dia, ondecontinua a tocar piano e a cantar.Comprouumcomputador e fezumcursode informática, paraque atristezanãoainvadapelanoitedentro,quandoestásozinhaemcasa.TemcentenasdeamigosvirtuaisnoFacebook,etrocasequênciasdeimagenssobreasmaravilhasdomundocominúmeraspessoasquenuncaviu.

Lupeéaminhamelhoramiga:compreende-memesmosempalavras.Revemo-nosumanaoutracomoespelhosdoTempo;elajáfoiigualamim,umdiaeusereiigualaela.Diz-sequenãoháduaspessoasiguaisàfacedaTerra,mastenhoasensaçãodequeháespíritosdeváriasépocasqueserepetemeàs

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vezessecruzamesereconhecem.ÉissoquesintoemLupe.Estou apaixonada, e nem preciso de lho dizer; Lupe vibra comigo, como se, através de mim,

ressuscitasse a sua paixão.Ambas trazemos connosco a ciência do amor duradouro; eu passei anos aenganar-menocaminho,ainsistiremamoresinviáveis,adiminuiraimportânciadojúbilo,aconvencer-me de que a salvação do mundo seria a minha prioridade, a querer ser o exemplo da bondade, dacompetênciaedasolidariedade.Atingifinalmenteaconsciênciadequeomaiorexemploquepodemosdaréodesermostudoaquiloquepodemosser.Semamor,nadasomos.Orestoéapenasisso:oresto.Osrestosmortais.

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21-AQuimeraRuíraumacasadoséculoXIII,emLagar;aCâmarapretendiareconstruiroexterioretransformaro

interior numa biblioteca moderna, porque as instalações existentes eram muito acanhadas — salasestreitas,semespaçoparaaspalestrasouHorasdoContoquejánenhumapovoaçãopareciadispensar.Clarisse costumava encontrar-se com Susana Santos, como ela ex jornalista da capital a quem odesempregoempurraraparaaprovíncia.NocasodeSusana,sucederaumauspiciosocruzamentoentreasvirtudesdodesemprego,oimprevistodoamoreaaragemdasorte;conheceraumprofessordeHistóriade Lagar que caíra no buraco educativo intitulado «horário zero» tendo sido resgatado pela novelempresa municipal de cultura Lagar do Futuro. O professor enamorado conseguiu meter Susana naempresa; Portugal continuava a ser um aconchego de famílias e vizinhos, das grandes urbes às maisínfimas povoações. Por isso mesmo, o investimento estrangeiro demorava a chegar; era necessárioconhecerosmeandrosdaburocraciaeasalíneasdosarranjosproveitosos,saberfurarcomopiolhoporcostura,enuncacometeroerrodecolocarointeressedoeráriopúblicoàfrentedolabirintocaseirodosinteresses instaladosnochamadoserviçopúblico.Quemviessedeforaanunciandoa intençãodefazermais, melhor e mais barato acabaria mansamente escorraçado dos salões políticos pela corte dosassessoreseapedrejadopelosmaisdistintosemaispobresmeiosdecomunicação,quesobreviviamdapublicidadeedasafinidadesqueacomandavam.

Asempresasmunicipais floresciamcomo solidáriopropósitodecriar receitaspara,dessa forma,lograrem alargar a qualidade e a variedade dos serviços ao munícipe, contornando a inamovível eimobilizadoraLeidasFinançasPúblicas,segundoaqual,eemresumo,asCâmarasestavamproibidasdegerar lucros.ALagardoFuturoeraadministradapelamulherdoanteriorpresidentedaCâmaraepelomaridodeumaadvogadadavila.Oadvogadodaempresaerasobrinhodestaadvogada,eagestoradeeventos culturais era prima direita do actual presidente daCâmara, que obviamente era alheio a estacontratação,decididaemplenaautonomiapelaadministraçãodaempresa.

SusanadisseaClarissequeestavamàprocuradeumarquitectocombomgostoedotesdeinovaçãopara a recuperaçãoda tal ruína, antesqueoprojecto fosse açambarcadopelos arquitectosdaCâmaraque,noseuentender,erampreguiçososeantiquados,pelomenosemsetratandodeprojectoscamarários.OnomedeRaulSousasaltoudabocadeClarisse,rodeadodeumaauréolabeatíficadeadjectivos,eacoisa ficou combinada logo ali, numa esplanada encostada à muralha de Lagar, entre dois sumos delaranja.Umasemanadepois,Raulreunia-secomaadministraçãodaLagardoFuturo,comumcadernodeesboçosquemuitoimpressionouoscontratantes:aliestavaumprojectobomebarato,quelhespermitiriamostrar serviço e recolher os louros da descoberta de um arquitecto talentoso, ainda por cimasimultaneamenteestrangeiroefilhodaterra.Umluxo.

A tagarelice deArrifes concentrava-se agora no romance entreClarisse eRaul; teciam-se apostassobreaprevisívelduraçãodaqueleenlevo.SóCesarinaeVanessadiziamqueaquiloeraumencontrodeluto, que se finaria emmenosmeses do que a cova deDona Jacinta demoraria a assentar; o resto daaldeiaviajá,nãoossinosdaigrejarepicando,masoparzinhosaindo,dealiançasnodedo,doregistocivil.Aliceencontrou-osdealiançanodedoemmeadosdeSetembro,eperguntou-lhessetinhamcasadoàsescondidas;riram-seeexplicaramquenão:apenashaviamdecididousarasaliançasdamãeedopaideRaul,que,emboranuncativessempodidocasar,usavamalianças.HáanosqueJacintaofereceraaofilhoessesdoisarosdeouro;brincando,RaulmostraraasaliançasaClarisse,everificaramqueambaslhesassentavamnosdedoscomosefeitasàmedida.Clarissedisse:«Euficojácomaminha»,eRaulnãovoltouatirardodedoaquepertenceraaoseupai.Nãofalaramsequeremcasamento;estavamdemasiado

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ocupados com os trâmites funcionários da sobrevivência ao estilo lusitano. Mas nenhum deles tinhadúvidas sobre aquele amor-, as quezílias esparsas das primeiras semanas, sacudindo a poeira daspaixõesantigasedemarcandoonovoterritórioconjunto,esboroavam-secomocorrerdotempo.

Outubro abria-se diante deClarisse eRaul como ummês inaugural, etéreo e empreendedor. Raulfaziacontaseacreditavaquepoderiapagaraosirmãososvintemileurosdeumasóvez,desfazendo-sedoziguezagueemocionaldaquelafamíliaimplodidaquelhecoubera.Depois,devagarinho,recuperariaacasa.Substituiria avelhabancadade linóleoda cozinhaporuma resistente e alvapedrademármore,arrancariaasportasejanelasdemadeiracomidaspelocaruncho,colocandonoseulugarportasejanelasdealumíniobranco,ejáestavaaverocantodasalacomumasalamandraqueaqueceriatambémoquartoseguinte. Deleitava-se com a antevisão do pátio remodelado, com relva, um empedrado de xistosgeométricos, uma churrasqueira, uma mesa e espreguiçadeiras diversas, onde se pudesse petiscar ecavaquearinfinitamente,muitoalémdopôr-do-sol,admirandoapaisagemonduladadepomares,casario,pinheiroseserraniasdistantes.Salvarialaranjeiraselimoeiros,quedavamsombra,corefruto;teriadesedesfazerdasrosasqueamãetantoamava—outalvez,depoisderefeitoomuroquecercavaacasaeretiradootenebrosoalgerozinventadopelomaridodaavópararecolheraságuasdaschuvas,pudesseencontrarumrecantoparaasplantar.

OentusiasmodeRaulnãoera,porém,acompanhadopeloengenheiroresponsávelpeloDepartamentodeObrasdomunicípio,queengonhava,enroscando-seemenigmas.Osprazosestabelecidoscaíamdocalendáriosemqueaobraavançasse,eoengenheirodeclarava,comumtimbrefilosófico,queRomaePavia não se fizeram num dia. Entretanto, sempre seguido pela subdirectora do Departamento, queassentiacomacabeçaatodososseuspareceres,lançavaremoquessobreoprojectodeRaul:oraumaescadalhepareciademasiado«esquinuda»,orademonstravaapreensãoquantoaorevestimentodosoalhoda sala de brinquedos, ora clamava que o ambiente ficaria excessivamente «frio». Raul pressentia aintenção de o afastarem do projecto. Clarisse aconselhava-lhe munições de calma e paciência,explicandoquetodosostrabalhoscamarárioslevavamodobroouotriplodoprazoestabelecido;haviasempre um ofício em falta ou uma especialidade à espera de aprovação. Acrescentava que só se aCâmara fosse governada por loucos rejeitaria um projecto tão imaginativo e acessível. Abraçando-o,anotava, em tomgalhofeiro, queoúnicodefeitodoprojecto eraprecisamenteopreço: «Devias ter-tefeitovalerumbocadomais.»Raulcontrapunhaque,setivessepuxadopeloscifrões,nãoocontratariam,porque não o conheciam de lado nenhum. Clarisse suspirava e repetia-lhe que tinha de parar de sedepreciar.Raulencostavaacabeçaaoombrodamulherloura,aspiravaoseuperfumefresco,acariciava-lheosdedos,osbraços,ocorpoflamejantededesejo,erendia-seporinteiroàfelicidade.

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22-LimitesedefeitosNunca me demorei a meditar sobre quem sou. Nem quando larguei Lisboa e os jornais; ajo por

impulso.Opreceitoconsensualdequeasdecisõesdevemsertomadasdepoisdemastigadasreflexõesépara mim ummito. Um jornalista tem de saber reagir com rapidez, fazer a pergunta certa nominutoexacto,desfibrarumacontecimentoemcimadahora.Asdecisõestomam-seporantecipação,atravésdaobservação da natureza humana, leituras, sensibilidade, inteligência pura. Muitas vezes me têmqualificado como ingénua: em jovem, isso feria-me; hoje, concluo que esse é talvez o meu melhoratributo.Seaingenuidademeescangalhouoolhareocoração,devo-lhetambémsucessivasreparações;osseusdedosinvisíveisimpediram-medecegare,sobretudo,deperderogostopeloamor,semoqualaalegriasetornaimpossível.

Quandocomeceiatrabalharemjornais,nadécadadeoitentadoséculopassado,osdedostremiam-mesobreasteclasrijasdasmáquinasdeescrever,temendoserincapazdeatingiraverdadeatravésdaescrita,porfaltadeexperiência.Fuiaprendendoàminhacusta,eàcustadecontemplaraquelesparaosquais a verdade e amentira são pares intermutáveis nas danças de salão, que a capacidade de voaratravésdanoitedadorimportabemmaisdoqueaexperiência.Éesseomeumétododeaproximaçãoàverdade;ummétodoincautoemuitasvezestrôpego,ummétodoquemeexpõeemeesfolaapeledaalma;masantesesfolar-mepormeatreveravoardoqueporexistirajoelhadadiantedaestatuáriadomedo.

Ontem omeu filho telefonou-me; fiquei boquiaberta, porque sou sempre eu a falar-lhe através doSkype.Falo-lheduasoutrêsvezesporsemana—estasemananãodeipelapassagemdotempo,eporissomefalouele.Queriaanunciar-mequepassoudapequenaempresade informáticaonde trabalhavaparaumadasmaioresdaAmérica;recebeuumconviteirrecusável:«NowI’mwiththebigsharks»,dizia,ufano.Omeufilhoéumtubarão,oqueprovaaquepontoanaturezaéadmirável:deumasardinhacomoeupodebrotarumimperadordosoceanos.Orapazinhoqueperguntavaquantotempoduraotempo,ouseo vento vem das asas dos anjos, já só existe dentro demim.Conta-me tambémque o pai pode vir atornar-seembrevepresidentedacompanhiadequeédirector-geral;opresidenteactualestáamorrerdecancro,eosenhordirectorcomparecediariamentenohospitalpara lheprestarhomenagem,esperandoqueomoribundosopreoseunomeantesdesertransferidoparaooutromundo.VejoquenadarestadosdezanosemquetenteieducarVicente;masécertoquenuncatereidemeinquietarporele.Aminhafaltade entusiasmo pela engenhosa estratégia do seu pai desilude-o, e a conversa desvanece-se. Prometofalar-lheembreve;nadalhedigodemim.Nadadoquepudessedizerlhefariasentidoparaomeufilho.

Não vou cair no pântano da culpa; criei um eficaz cidadão americano. Ninguém cria ninguém; ahereditariedadeeaatmosfera social sãoultrapassadaspelo fantasma intransmissívelquecadaum trazdentrodesi.Nãotivepropriamenteumafamília;omeupaieradiplomatadecarreiraenãoqueriafilhos;oprimeiro registoexistencialqueguardoéavozdaminhamãe:«Por favor, ficacomaClarisse.Nóspagamos-tebem.»Vima sabermais tardeque sedirigia aumaprima,quedeclinoua incumbência.Aminhamãearrastou-mepelamão,aosdoisanosdeidade,oferecendo-meatodaaparentela.Fuiaceiteporumatiadomeupai,nãoporquegostassedecrianças,masporqueamensalidadelheconvinha.Fiqueicomelaatéaosdezanos;depois,ameupedido,fuiparauminternato,nosarredoresdeLisboa.PassavaoNataleomêsdeAgostocomosmeuspais,equasenãorecordoessesperíodos.Elesviviamumparaooutro e ambos para festas, recepções e viagens. Eu parecer-lhes-ia uma mona, uma rapariga de arinsonso, sempre enfiada nos livros. Só recordo uma grande discussão com o meu pai, quando lhecomuniqueiaminhaintençãodeestudarComunicaçãoSocial:berrou-mequeeradoida,queessesnovoscursecos saídosda revoluçãonãoeramhabilitaçãoque seapresentasseequenãoarranjariaemprego.

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Bradou:«Nãopensesquetevousustentaratéàidadedareforma!»Esteavisoteveodomdemelançarem busca de trabalho e, ao contrário do que previa omeu pai, dentro de poucosmeses iniciava umestágionumjornaldiário,ondeacabeiporficarváriosanos.Vivia-seoboommediático:surgiamnovosjornais,rádioslocais,revistasfemininas,desenhavam-seosprimeirosprojectosdetelevisõesprivadas.Nadécadadenoventa,aconcorrênciacresceueossaláriosdosjornalistastornaram-seinvejáveis.Masdepressa o jornalismo se tornoumoda e a oferta superior à procura; no princípio do novomilénio, aInterneteacrise financeiraarrasaramcomoque restavada riqueza,dobrilhoeda independênciadaprofissão.Omeupaigostariademeralhar,sesoubesseondeestou;apenasseiqueelesmoramnaSuíça,espero que ainda apaixonados um pelo outro.Disselhes, hámuitos anos, que não contava com eles eesperavaquefossemfelizesenãocontassemcomigo.Nãolhesqueromal,nemsequerosjulgo.Cadaumdenósfazoquepode,emuitoscrescemcomaconvicçãodequeessefazerdependedoPodermaiúsculo.OméritodanossaeraéodenosatiraràcaraqueoPodermaiúsculoconsisteapenasnumaficção,umafraude.Nuncativequalquerdúvidasobreisso—e,seativessetido,aspatéticaslutasporprotagonismosepoderzinhosaqueassisti,nosbastidoresdosjornaisedapolítica,cedometeriamesclarecido.

O facto de não aspirar a nenhuma espécie de poder interno tornou-me incómoda: concentrei-mesempre e só na busca da pequena luz da verdade. Terei errado inúmeras vezes, por me faltarem aspalavrasexactasouacapacidadeparadetectaracintilaçãodoverdadeirosobosfocosdofingimento;maspelomenostentei.Continuoatentar.Exciteiinvejaspornãoinvejarninguémedependerapenasdosmeus actos. Procurei sempre não ficar adstrita a uma secção fixa do jornal; para mim, liberdadesignificava poder escrever sobre temas diversos. Os editores não gostavam desta minha vocaçãoperipatética;eradetodosenãoeradenenhum.Nahoradaspromoçõesoudosaumentossalariais,eueraaproscrita—escreviademasiado,parademasiadoschefes,nenhummecontrolava.Umasecretariazinhaque fora contratada por mim, num breve período em que fui editora do caderno de Reportagem doEspecial, envolveu me numa intriga malévola e conquistou o meu lugar. A certa altura, um hackerentreteve-se a enviar emails insultuosos ou provocatórios a vários colegas, em meu nome. Conseguidesfazeroequívoco,masnãodescobriroinfameladrãodeidentidades:apolíciaacabouporarquivarocaso. Hoje, analiso esse caso como mais uma oportunidade de conhecimento que me foi dada; osmomentosdecriserepresentamumaseparaçãodeáguas,demonstrando-noscirurgicamenteondeestãoosnossosamigoseosnossosinimigos.Oespectáculodavulnerabilidadeatraioataque.

Nuncaquiscultivar inimigos;pelocontrário,pensohojeque leveianosaarmar-meemartistadosconsensos,nainocenteconvicçãodequeamaldadesedissolveriaporacçãodoácidomedicamentosodasimpatia e da tolerância. Creio que pensava assim por ter crescido sem família, em camaratassucessivas-,necessitavadefazerdouniversoumacomunidadedeafectos.Precisavadeharmoniaepaz.Nãoqueria incomodar.Todavia,aescritaensinou-me,contramimmesma,aperturbarasuperfíciedascoisas. Agora escrevo para mim, para a Lupe, para o Eduardo, para muito poucos. Talvez até daspalavrasmetenhalibertado.OmeuamorpeloRaulnãoprecisadepalavras.Noentanto,penso:omeuamor,etudoseiluminaàminhavolta.

Este amor assusta-me; o seu poder de êxtase é tão forte quanto o de amargura.Há dias, enquantoapertavao fechodeumvestidodepássaros coloridosdequeRaul especialmentegosta, comenteiqueprecisavadecortarnoqueijoenovinho,porqueestavaaficarmaisgorda.Olhouparamimcomumarcríticoeconfirmou:«Engordaste, sim.Umaginasticazinha tambémnão te fariamal.»Amuei, ele ficouzangado e disse que era triste não poder dizer-me o que pensava. Eu que fazia discursos sobre ahonestidadeobrigatórianasrelaçõesdeintimidade,provoagoradomeupróprioveneno.Raultemumacapacidadedememagoarquenuncaconcedianinguém.Creioquenemelemesmoseapercebedisto—eainda bem. Não sei se esta vulnerabilidade absurda é um sinal de envelhecimento, ou do pavor de

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envelhecer.Osmeusrecursosvãodiminuindo;quasenãovejoaolongesemóculos,opesodaspessoaseopesodascoisascansam-memuitomaisdoquemecansavam,doupormimaoespelhoadetectarpregasqueontemnãoexistiamnomeucorpo.ALupedizqueavelhicenãosignificaumaumentodesabedoria,antespelocontrário,umrefinamentode limitesedefeitos:medo,mesquinhez, inveja,susceptibilidade,preguiçaeorgulhoadquirempreponderânciasobreasvirtudes inversas,naquelesqueas tivessem.Umregressoàprimeiraadolescência,será?

NosbraçosdoRaul tenhoquinzeanos.Naprimeiranoiteeledisseme, sorrindo,quemeentregavaquatro anos de virgindade. Não pude responder-lhe o mesmo; fui-me entretendo em relações a quechamavadeamizadecomprivilégios,paranãomeesquecerdequesoumulheremanterodevaneiodeumavidaíntima.Oerotismosurgedaentrega,descubroagora;orestosãobrincadeirasparaescaparaotédioouesconderopavordasolidão.OsbeijoseascaríciasdeRaulapagaramdomeucorpotodososoutrosregistosdeintimidade.Foiassimdesdeoprimeiromomento.

Juntos, somos inexpugnáveis—e, no entanto, trememos diante de uma frase fora do sítio, de ummomento de apatia ou lassidão. Estamos ainda a aprender quem somos; tanto ele como eu existimosmuitos anos sempensar nisso.Não nos considerávamos sequer tema; oumelhor, suspeitávamos que aintrospecçãonosdestruiria.Despimo-nosagoradasferidasqueusávamoscomocarapaças,corajososeaflitos.

Temo que estejam a armadilhar o Raul. O projecto da biblioteca não avança, o engenheiro põereticênciasatodasassuaspropostas,algumacoisasepassaali;suspeitoquealguminteressemaisaltoseinterporáparainviabilizaroseutrabalho.ASusanaouviuunszunzunslánaCâmara,segundoosquaisopresidenteestáaserpressionadopeloDepartamentodeObrasadaroprojectoaumarquitectodeumpartido daOposição, sob pena de que esse partido vete umas propostas urbanísticas que garantiriamrendimentos e votos ao partido maioritário do executivo municipal. Parece que os própriosadministradoresdaLagardoFuturoestãoarrependidospor teremaceitadooprojecto,porqueopreçocontratado é demasiado baixo em relação às tabelas habitualmente praticadas, e está a gerardescontentamentos perigosos. Não contei nada disto ao Raul, porque apenas aumentaria o seunervosismo,masreceioaconfirmaçãodestesrumores.Dequalquerforma,eletemumcontratoassinado.PensosevaleráapenadarumapalavraaopresidentedaJuntadeArrifes,quepertenceaopartidoqueestánoPodernaCâmara.Desisto;opresidentedaJuntadeArrifeséumjovemtimoratoeobediente,queexala ambição política por todos os poros.Muito diferente do anterior, um homem que punha o bemcomum à frente dos interesses partidários, e por isso não tornou a ser candidato, embora o povo oadorasseeestivessedispostoareelegê-lo,independentementedopartido.Osvideirinhosdapolíticatêmraiva a estas figuras que arregaçam as mangas e trabalham a favor da plebe, com discrição ecompetência.

Ascorporaçõesorganizadasentramemalertamáximoquandoseaproximaalguémdefora,sobretudosetemboasideiaseémaisbarato.Quantomaispolíticasforemessasestruturas,pior.Mastudoparecehoje rasteiramente político, talvez porque a Política maiúscula entregou a sua energia histórica aosprofetasdofimdaHistória.Vivemosaépocaemqueashistóriasforamdesligadasecatalogadascomopacotesautónomosde«conteúdos».Caixasvaziasdentrodecaixasvazias,comoasmatrioskasrussas.

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23-AemboscadaNuma tardesoalheirado iníciodedezembro,quandoasárvoresdespidaspareciamcrescerparao

azuldocéunumapressadesecobriremdenovodeverdeedeflores,RaulSousafoichamadoparaumareuniãocomaadministraçãodaLagardoFuturoecomoengenheiroresponsávelpeloDepartamentodeObras Municipais. Pensou que pretenderiam esclarecer os sucessivos entraves apresentados peloDepartamentodeObras,paraqueareconstruçãodoedifícioenfimavançasse.

Porém, mal acabara de pronunciar «boa tarde» leu nos rostos teatralmente fechados dos trêscabecilhas que aquela tarde não traria nada de bom. A presidente da Lagar do Futuro, uma mulherbaixinhadecercadesessentaanos,comumacabeleiraasa-de-corvolacadaaoestilodosanossessenta,traçossuaves,saia-e-casacocinzento,pérolasnasorelhasecrucifixoaopeito,informou-osemdelongasdequeohaviamchamadoparaprocederàrescisãoimediatadoseucontrato:osprazosdeconcretizaçãodaobraestavamtodosultrapassados,peloqueRaulterianãosódedevolveroavançodecincomileurosquelheforapagopeloprojecto,comodeindemnizaraLagardoFuturopelosdanoscausadosporesseatraso. Raul tentou explicar que o contínuo adiamento da obra se devia às objecções colocadas pelosenhorEngenheiroalipresente,masdepressapercebeuquesemprequeabriaabocaalargavaacovaqueaquelas três pessoas tinham escavado para o enterrar. O senhor Engenheiro, jovem, alto, e magro,protestoucomveemênciacontraaquiloquedefiniacomo«difamaçãointolerável».Ovice-presidente,umhomembaixo, de farto bigode castanho, interveio em tom firmepara dizer que seriamelhor queRaulmedisseassuaspalavras,demodoanãoagravaraquiloquejáconfigurava«umilícitograve».

Azamboado e incrédulo, Raul perguntou como poderia alguém que nem sequer era funcionário daCâmara impedir o andamento de uma obra. A presidente retorquiu-lhe que o senhor Engenheiroapresentaraumrelatórionoqualficaraprovado,semamenorsombradedúvida,queasuademoraemapresentarcontrapropostas realistas faceaosproblemasdeengenharia levantadospeloprojecto inicialimpedirao avançodaobra.Raul solicitouque lhe fosse apresentadoesse relatório, eo trio abanouacabeçaemconjunto,alegandotratar-sedeumdocumentointerno.QuandoRaulpropôsquediscutissem,alíneaaalínea,odossierdoprojecto,fazendomençãodeabrirapasta,ostrêsacusadoresremexeram-senossofás,eapresidenteolhouparaorelógio,comumarenfastiado,dizendoqueestavaaficaratrasadapara a abertura das comemorações natalícias na Igreja Paroquial de Lagar. Raul sugeriu então umapróximareunião,nodiaseguinte.PensavaquetinhadefalarcomClarisseecomumadvogado.Ovice-presidente disse quenãovalia a pena, porqueo caso fora amplamente analisado e nadamais havia afazer.Desesperado,Raul confessou que não tinha como devolver o avanço emenos ainda pagar umaindemnização;nesseinstante,apresidentedaLagardoFuturoergueu-sedosofáeavançouatéàsuamesadetrabalho,deonderetirouumafolhadactilografadaquelheapresentou,dizendo:«Compreendemosassuas dificuldades, pelo que lhe oferecemos esta alternativa: uma carta em que o senhor arquitectorescindedeformavoluntáriaeunilateraloseucontratoparaareconstruçãodoedifício.Destemodonãoterá de pagar nada e o assunto fica resolvido.» Raul pediu um dia, ou pelomenos umas horas, paraanalisar a missiva; em uníssono, como que ensaiadas, as três vozes responderam: «Impossível.» Erapegaroulargar—e,selargasse,oprocessocontraoarquitectoRaulSousaavançarianessamesmatarde.Raulpegounacartaeassinou-a.

Assinou a carta com a sensação de que estava a agir de ummodo estúpido; Clarisse decerto lheralhariapornãoterviradoascostasaotrioeterrespondidoquenodiaseguintedarianotícias.Todavia,um sentimento avassalador suplantava essa sensação: decididamente, Raul não queria trabalhar comgente daquele calibre.Não tinha dinheiro para processos judiciais,mas, ainda que o tivesse, preferia

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servircafésouacartarsacasdecimentoavivernaqueleuniversodetraiçõeseemboscadas.Pediucópiada carta que assinara, declarou que aquele processo era infundado e ultrajante, desejouBomNatal atodosesaiudogabinetedasenhorapresidentedaadministraçãodaLagardoFuturo,distintaesposadoanteriorpresidentedaCâmaraMunicipaldeLagar.

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24-FugaemrémenorNasciparaperder:pessoas,poder,países-nadaficacomigo.Clarissepartiuhátrêsmeses.Todosos

dias,noSkype,measseguraquehá-devoltar.Finjoqueacredito,precisodeacreditar.Ficámos juntosapenascincomeses;umavezmais,passeiofimdoanosozinho,comumagarrafadetinto,observandodopátiodacasadaminhamãeoslongínquosfogos-deartifícionasterrinhascircundantes.ClarisseemigrouparaaCalifórnia;maisumaportuguesaquetemdevoarparaoutromundoembuscadoquePortugallherecusou.

Deveserporandarcomigo.QuandosoubequeClarisseteriadeemigrar,recordeiumafrasedaminhaavóAugusta:«Pobrezapega!»Ficouaolharparamimsorrindo,fingindoquenãopercebia.Minhaavóqueria dizer que a pobreza é contagiosa, como uma doença. Assim que começou a namorar comigo,Clarissepassouaterproblemas.Bemaaviseidequeiaacabarporlheatrasaravida.Elariu,dissequeeuestavadisparatando,perguntoucomoexplicariaeuentãoaperdadoprocessojudicial,anterioramim.Tentoupsicanalisar-me:faloudaminhahabitualnecessidadedecarregarasculpasdomundo,decomoaminhabaixaauto-estimameconduziaa tentardesvalorizar-me,etc.,etc.MaséClarissequemestá emnegação:sintoquelhecrieiumfocodeproblemas.«Aspessoassalvam-seumasàsoutras»,disseela.Depoisperguntou-meemquecontextofizeraaminhaavóaquelaafirmação«tãoreaccionária».

Na minha já arcaica juventude no Rio, apresentei Fernanda à minha avó, que nos recebeu napretensiosasaladoseuapartamentoemCopacabana.Ograndelustredepingentesquecintilavanotectoprocurava competir com os lustres clássicos que minha mãe sempre apreciara. Os sofás de veludo,cobertosporplástico,apregoavamaorigemhumildedadonadacasa.Eraenternecedorobservaraquepontoaquelasenhora,sempretãocríticaedesdenhosaparacomasuaex-noraJacinta,forainfluenciada,aindaquedemodoarrevesado,pelosentidoestéticodadesdenhada.MasaavóAugustaeraperspicaz:mirouFernandadealtoabaixo,etopou-lhelogooperfilnosjeansjustosàperna,nosapatobrancodebicofinoenoscabelosmuitolisos,atéàcintura:viunelaumapobremasvistosasecretáriaacabadadechegar do interior deMinas Gerais, tentando açambarcar um promissor arquitecto da cidade grande.Incomodada coma fiscalização daquele olhar, amoça foi ao banheiro.Então a avó xingou-me: «Meuneto,comoéquevocê,umrapaztãoespecial,andacomisto?Seafastedessagentepobredointeriorquevemparaacidade.Pobrezapega,essameninaaindavailheempataravida.»Apanhadodesurpresapelopresságionegativoecontundentedavelha,respondicomum«Ora,ora»agastado,pensandoque,apesardenativadoRio,aminhaavófalavaporexperiênciaprópria,poissabiaatéondepodiairaambiçãodequem conjuga boa aparência e baixos recursos. Clarisse riu e fez-me notar que eu estava enganado.Segundoela,aminhaavóestavatentandoalertar-meparaoassaltodeumaarrivista.DonaAugustanãose referia a azar,masadestino.Aminha leitura eraoutra; apardeumadesconfiançadevelha sábia,minha avó na verdade procurava eliminar o meu complexo de salvador, essa necessidade de querersalvar toda a gente que se aproxima demim, desviando-me de enfrentar osmeus problemas e demesalvaramimmesmo.Clarissedissequefinalmenteconcordávamos:comotantasvezesmerepetira,euganharaoviciodearcarcomasculpasdomundo.Penseique,atésobestepontodevista,odestinoviriaaprovarqueaavóAugustatinharazãoacercadeFernanda,porquemfuitraído.

AverdadeéqueeuamoClarisse,nãoqueroperdê-la.Entreguei-meaestamulher.Dominoa,comoconsentimentodela;nuncaumamulhersemeentregaraassim.Sintoquecomigoelaéumamulherinteiraequesouparaelaalgoquenuncaencontrara.Comtodasasoutrassentia-meummenino,comelasinto-meumhomem.Amante,pai,tudo—menosfilho;aliáscortologoaconversaquando,porumafaltabanal,elamechamaaatenção.Clarisseriedizqueeusofrodeexcessodemimomaterno,por issonãoaguento

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umarepreensão.Admito;mastodoomeuhistóricosetornalateraldiantedonossoencontro.Tudooquevivifoiumpreâmbulodaminhahistória,queClarissefeznascer.Nuncativeumamoradulto;estanovasensaçãoéextraordinária.Suponhoqueéatal«cumplicidade»queaspesquisasdaInternetdizemqueamaioriadoshomensprocuranumamulher.Emaisdoqueisso:amorintegral.

Clarisse é criativa como eu; ela escreve, eu pinto. Sinto que nos completamos, que existimos nomesmocompasso.Aminhamãesempredissequeoscriativostêmopoderdeanteverarealidade,equeessepodertemdeserusadocommuitadelicadeza.Aquiloquecriamostornaserealidade,diziaela.Oproblema é que eu sinto ter perdido este poder. Refugiei-me na arquitectura, um processo criativocondicionado,dependentedeoutros,muitoobedientearegras.Clarissediziaquesefartoudojornalismoexactamente por isso: o peso da dependência da realidade, e dos recortes específicos de realidadedeterminadospeloschefesoupelasnecessidadesfinanceiras,queagoraservemparajustificartudo.Metinacabeçaquenãoconseguiriavoltarapintar.Clarisseajudou-mearesgatarestepoder.Nuncadesenheiepinteitanto,ecomumatãograndesimplicidadedeprocessosemateriais.DesenhoacanetaBiccomosedesenhasse a tinta-da-china.Omalogrado projecto na vila deLagar foi paramim a gota d’água— aarquitectura passa a segundo plano. Sigo agora a sugestão de Clarisse, e tenho obtido um relativosucesso: os meus quadros vão-se vendendo nas galerias de Lagar. Os turistas têm gostado dos meusdesenhos,esboçosepinturasqueretratamainocênciaimponentedessaterra.Estestrabalhosaguentam-me;vouconseguindomanteracasaesaldarascontas.Clarissediz-menoSkypequequervivercomigonesta casa, e que vai comprar a parte dosmeus irmãos.Não sei se vai conseguir. Respondo-lhe quetalveznãosejanecessário,quetenhoesperançadeconseguirjuntarodinheiro.É-meindiferente.Queroquetudooqueémeusejadela.Querorecuperaracasaeonomedacasaparanósdois.

Casal daBelaVista.Este era o nome da casa daminha avóMargarida.Onde ela foi feliz comohomem com quem escolhera viver, no lugar da filha. Resolveram celebrar a sua existência e o seuprojectocomum,baptizandoapropriedadecomumnomequevalorizavaobem.Imaginoaimportânciaqueestebemteveparaaquelasduasvidas;terãopassadomuitasdificuldadesparaoadquirir.

Abroaescrituradecompraevendadoterreno.Umfeixedepapéisazuis,dactilografadosnotipodeletraeleganteutilizadonasmáquinasdeescreverem1945,anododocumento.Aescrituraestáenvoltanumacapadepapelbranco,emcujoversoselêumaprosaicatabeladepreçosdaLavandariaBené—notempo da ditadura salazarista, tudo se aproveitava. Até a água de lavar a loiça era recolhida paraempurrarosdejectosnacasadebanho.Avidanumestadoeternodecrise.

AindaouvidabocademinhaavóMargaridahistóriasdeestarrecer.NãoadmiraqueovelhoArturtenha raptado a filha para o Brasil. O Portugal daquele período, e mesmo dos anos conturbados deimplantaçãodaRepúblicaquesesucederamaoassassinatodoreieaofimdamonarquia,desfaleciadefomeeprivações.Margaridaeraafilhadomeioentreseis irmãosevivianumapequenacasadedoispisos,napartevelhadaaldeiadeArrifes.Afamílialevavaumavidadecolectarural,trabalhandonasplantações nas herdades alheias. Ocasionalmente o meu bisavô Cândido aparecia em casa com umtoucinho.Sentava-seàmesaeiadividindootoucinhoemrodelas,enquantoamulhereascrianças,diantedas malgas fumegantes de caldo verde, aguardavam em silêncio que o patriarca exercesse aquelepequenopoderdematara fomea todos.Entãouma rodelaeraamorosamenteentregueacadaum.Umpitéuquedariarazãodeexistiràquelaáguaquentecomcouveseumpingodeazeite.Cândidoficavacomasduasúltimasrodelas—umadelaseramergulhadanasuamalga,aoutraeraentregue,numesticardebraço,aogato,omaissilenciosoentretodososqueaguardavam,atéentãoocultoaospésdohomem.

Diantedosolharesfamintosdeespantoerevolta,Cândidodeclarava:«Eletambémtemdecomer.»Obisavô Cândido manifestava-se como pioneiro da tão contemporânea consciência dos direitos dosanimais.

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NumaidaaoMercadodeTermasdoRei,ondeaindahojeosagricultoresvendemosseusprodutosouosdosseuspatrões,Margaridaacaboupordeixar-seseduzirpeloredemoinhodoscabelosdoproletárioArtur, oito anos mais velho, um lisboeta moderno, um homem do futuro, que dominava máquinas etecnologia, senhorde si eque só respondiaaquemmomentaneamente lhepagava.Artur trabalhavanaimplantação da oficina gráfica daGazeta dasTermas. Jacinta nasceu um ano depois, em casa do avômaterno.Nestemesmoano, 1924, a pequena Jacinta passou a ser amamentadapelamãenumpequenoapartamentonoBairrodaGraça,emLisboa,enquantooboémioeanarco-sindicalistaArturSousaandavaa imprimir algum grande jornal ou alguma nova revista de promissores poetas. Nos intervalosfrequentava tertúlias de homenagem ao sétimo aniversário da Revolução Russa ou participava noscomíciosqueaConfederaçãoGeraldoTrabalhopromovianaBaixalisboeta,contraodesempregoeosbaixossalários.

Evitodivagarmaisevoltoaodocumento.TermasdoRei,SededeCartório,Lagar—RuaDireita.Folheioaescritura:«Osvendedoresnãoassinamporquedeclaramquenãosabemassinar.Emtemposedeclaraqueocompradorapõeaimpressãodigitaldoseuindicadoresquerdoenãodireito,porqueestese acha amputado.» O comprador era o Sr. Manuel Bento, o homem que casou com a minha avóMargarida e que trabalhou a vida toda na Sociedade de Conservas de Peniche— uma indústria desardinhasemlata,aalgunsquilómetrosdali.Minhaavótrocouafilhaporessavidaprevisívelesegura,porestacasinhanaserradeArrifes,umaligeiraelevaçãoemrelaçãoàestradaquecortaaaldeiaequeofereceadecantadaBelaVista.

Acasaémodesta:quatroassoalhadasexíguas,umacozinha,umacasadebanho.Duassalasedoisquartosnumaplantaemcomboio,semcorredor,formandoumLqueabraçaumquadradodeterraondeárvoresfrutíferasconvivemcomfloreseervas.Apinturabranca,muitodesgastada,revelaaquiealiqueacasa foihámuito tempopintadadeazul-cobalto,depoisde salmão,atéquealgum impulsode sensoestéticoconcluiupelobranco.Aportadacasadebanhoabreparaacozinha,soluçãoquesugerereduçãodecustoscomtubagensdeágua.Osquartossituam-seumemcadapontadoL;umdelesnãotemligaçãocomorestodacasa.Ooutrotemajanelavoltadaparaumpequenopátioalinhadocomojardim,deondesegozaavistaquevalorizaoconjunto.Umalgerozemzincoque,emtemposantigos,garantiaarecolhadaáguadachuvanumacisterna,percorreotelheirodacasa.

Todooterrenoacompanhaainclinaçãodaserra;umaescadadecimentoligaapartefinaldojardimàárea rural que outrora serviu de suporte de vida ao casal. A minha avó plantava tudo o que fossecomestível nesse terreno sobranceiro à casa, onde existe ainda um poço, que em tempos permitiu oregadio de uma horta e de um pomar.Um pequeno casebre aí instalado, com as suas duas portas emmadeira carcomidas pelo tempo, denuncia o abandono da serventia agrícola a que se destinava. Amodesta mas considerável gleba jaz inútil, tomada por erva alta, queimada por sucessivos Verõesabrasadores.Estaimagemdeabandonoéumdesafioparaumarquitecto,mesmoretirado.

OventonocturnopareceecoaronomedeClarisse.Estacasaondenuncamoroutemsaudadesdela.Eu próprio a incentivei a aceitar o convite que a levou para longe demim. Sentia-me um estorvo.Aminhatendênciaautodestrutivareemergia;amarmosesermosamadosnãobastaparanossalvarmos,senos falhar o amor-próprio. Clarisse assinalava-me esta evidência commeiguice; porém, como tantasvezes lhedisse,oconhecimentonãoéumaauto-estradaparaosentimento.Ria-seediziaqueeraumaquestãodeencararaestradaepagaraportagem.Tudosepaga.Nósdoispagamosopreçododesprezoaquevotámosodinheiro.

Ironicamente,odinheirolevouClarisseparaoutrocontinente.Umaex-colegadejornaltelefonou-lhedesafiando-aaaceitarumconvitequeelarecusara,paradirigirumarádioparaacomunidadeportuguesanaCalifórnia.Cincomildólaresmensais.Acolegarecusouapropostaporquetemfilhospequenoseum

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maridoassessornumministérioque,porconseguinte,aindaganhabem.Lembrou-seentãodeClarisseedasuacatástrofejudicial.AsatisfaçãocomqueClarissemecomunicouoconvitederrotou-me;disfarceiaminhatristezaeexortei-aaaceitar.«Ésóumano»,dizia.Comoseumanofossepoucoparaquemlevouquasecinquentaaencontrar-se.Apeteceu-megritar-lhequecadadiadanossavidatemderecuperarasdécadasemquenosamávamosàsescuras,tacteandocorposerrados,desconhecendoaexistênciaumdooutro.Masnãotinhaodireitodefazerisso—nesteanodeausênciasereiobrigadoaaprenderesseamordifícilquetodaavidaevitei.OculteiomeudesamornoclarãoverdedosolhosdeClarisse,comoantesdeaconheceroocultavaemtodosasimitaçõesdeamorquemeapareciam.Aproximidadedamortedaminha mãe levou - me a uma viagem no tempo, revisitando momentos que afogara na memória eestabelecendo ligaçõesentrepessoaseacontecimentosatéentãoflutuantescomoplanetasdispersos.Aaparição de Clarisse transfigurou essa viagem numa visita de estudo ao meu passado sonâmbulo,procurando saber demim para poder ofertar-me a ela.Mas sempre acabo pensando que o que sou époucoparaoqueelamerece.Voandoparaooutroladodomar,elaquispunir-meporpensardessejeito,istoé,porpensarmaldemim.

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25-AteoriadosvulcõesEm cada pico brilha o alarme de uma cratera. Pedro Gama Lousada chegou a esta conclusão

folheandoumálbumdefotografiasdeEmadeCastroqueimortalizavaumatournéeaçoriana,em1943,dadivaaposentada.Ocorreu-lhe,apartirdestafrase,escreverumateoriadosvulcõesquerevolucionariatoda a visão do universo vegetal e animal.No instante emque discorriamentalmente sobre esta obrafutura, entrouna saladevisitasdeDonaEmauma raparigadeslumbrante comoumaactrizde cinema.Tratava-se, de facto, de uma actriz de telenovelas, que vinha solicitar autorização à senhora parainterpretarumadassuasmaisfamosascanções,numanoveladeépocaqueestavaprestesaserrodada.DonaEmacongratulou-secomaditosaideiadeumaficçãotelevisivadedicadaaessestemposnosquaisa imoralidade não havia sido ainda inventada e as actrizes não se comportavam como prostitutas,despindo-seelambuzando-senosactoresemfrenteàscâmaras.Ajovemacenavacomacabeça,quasemuda,utilizandoumsorrisoamareloquePedrotomoupeloprópriosol.DonaEmaintimouVanessa,queandava a limpar o pó aos bibelots, a que lhes servisse um chá. A heroína da danceteria Princesaatrapalhou-secomabandejaepartiuumachávena,despejandoocháaferversobreostenrosjoelhosdaactrizdeslumbrante.DonaEmalembrou-lherispidamentequelhedescontariaapeçadeporcelananofimdomês,aactrizofereceu-secívicaesolidariamenteparapagarachávena,ePedro,quenãoouvianada,mergulhadonoencantamentodosjoelhosavermelhadospelaqueimadura,prontificou-seairbuscargeloàcozinhaparaaliviaradordaquelaspernasmoldadasemaçúcarcor-de-rosa.Emseguidacorreuatéàfarmáciaparacompraramelhorloçãocauterizanteexistentenomercado.

Volvida uma semana, Pedro precipitou-se para Lisboa, onde ia assistir às gravações do primeiroepisódio de Para Sempre Tua, protagonizado pela actriz deslumbrante. E por lá acabou por ficar,tornando-se assistente de produção e deixando à sua ruralCarla a responsabilidade total do afamadolicordepêra-rocha.Nãoconquistouajovemprotagonista,masagasalhou-secomumasecundáriamenosjovem,dotadadesólidoinstintomaternalparacomoshomensedeumacarteiradecontactosrecheada.

Carlanãoeramulherdeperdertempoalamentardesvariossentimentaismasculinosnemamirar-seaoespelhoparaseapoucar.AsfilosoficesdePedroenchiam-nadeumaborrecimentomortal,ecomeçavaacismarna injustiçada repartiçãodos lucrosdonegóciodo licor;elaéque transformaraaelementarprodução de frutas numa indústria rentável, ela é que se ocupara dasmáquinas e das contratações, epermaneciacomosóciaminoritária.JáavisaraPedrodequeasituaçãoteriadeserrevista;Pedroabriraumsorrisomanhosoeabraçara-a,dizendoqueasmesquinhicesfinanceirasnãoimportavamnada,porqueestavamjuntosejuntoscontinuariam.Carlaestremeceradehorrorperanteaantevisãodeumavidainteiracomaquelemandriãoenfadonhocomoumtelejornal.

Por conseguinte, recebeu com alívio a notícia, enviada por sms, de que Pedro Gama Lousada seapaixonara«demodoirrevogável»,fosseláissooquefosse.Apalavra«irrevogável»andarapelascapasdosjornaisepelabocadospolíticosnoúltimoVerão,masCarlanuncaseinteressaraemsaberporquê;votavaumabsolutodesdémàpolítica,quelhepareciaatoladadegentesempréstimoquesótinhaartepara enriquecer enganando o povo. Pedro maçara-a com extensas lições de História e Filosofia,procurandoalterarapercepçãodeCarla,queclassificavacomo«genérica»e«grosseira».Carlaabanavaacabeçaepunha-seaorganizarmentalmentea listadascomprasoudosseusafazeres, semoouvir;aprincípioaindaafectavaumempenhosuperficialempercebê-lo,maisporpenaegentilezadoqueporoutracoisa;mascedoentendeuquePedronãotinhanadadeútilparalheensinar,bempelocontrário.

Assim,respondeu-lhe,porsms,quefossemuitofeliz.Pôsumadvogadoatratarcomosóciodavendadapropriedadeedonegócio.APedroconvinha-lhedeixarascoisascomoestavam;respondeuquenão

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podia vender nada porque o pai, tanto quanto sabia, ainda era vivo, embora lhe desconhecesse oparadeiro.Carlafezassuasinvestigações,encontrouamoradadoex-patrãoedepressafechounegóciocomele;ovelhoearruinadofidalgo,quenãoousaradesfazer-sedapropriedadedeArrifesparaqueaconsciêncianãoomortificassepormeterofilhonasmandíbulasdamendicância,ficouencantadocomaproposta,quelhegarantiaumfinaldevidasereno.Apensãodequeviviasofreracortessucessivosnosúltimosanos,etinhapesadelosemqueseviacomumapernaamputadaedemãoestendida.

Nofinalde2014olicordepêra-rochadaantigaherdadedosLousadaostentavanorótuloonomedeCarlaFontinha.Compenetrando-sedequeaproduçãoartesanalimpediaocrescimentodonegócio,Carlaindustrializou o fabrico do licor de uma forma inteligente, sem perder a qualidade que o destacara.Manteveemelhorouosingredientes:oálcooldecereais,oaçúcar,acanelaeaespeciariasecretaqueconferiaaolicordeCarlaumpaladarinconfundível,tudoteriadeterumníveldeexcelência.Alémdasperas-rocha,evidentemente.Emmeadosde2015,ocorrer-lhe-iacontratarcomumafábricadechocolatesacompradecoposdechocolateamargo,quepodiamservendidosemconjuntocomolicor,conferindoàbebida um gosto e um requinte inexcedíveis. Em breve começaria a exportar para o estrangeiro. Osjornaiseastelevisõesprocuravam-nacomoexemplode«empreendedorismonofeminino»eprenúnciodaanunciadasalvaçãonacional.OêxitodamarcaFontinhalevouaqueaCâmaraMunicipaloferecesseaCarlaumaverbaapreciávelparaidentificarolicorcomoorigináriodaviladeLagar.Carlaadormeceriafeliz pelo resto da sua existência, matutando que, melhor ainda do que ter encontrado Pedro GamaLousada,forasaberperdê-lo.

PedroGamaLousadadeu-sebemnaatmosferaefervescentedasprodutorastelevisivas;oseurabo-de-cavalo, agora enriquecidoporumaprofusãode fiosbrancos, fazia sucesso juntodasmulheres.Empouco tempoascenderia a assistentede realizaçãoe, emseguida, a realizador.Da teoriadosvulcões,nuncaninguémchegouaouvirfalar.

Como que antecipando este desenlace venturoso, Raul soltou uma gargalhada quando soube dahistóriadapaixãodoprodutordepêra-rochapelajovemactriz,numatardecinzentaemqueVanessafoilimpar-lhe a casa, o que fazia agora de quinze emquinze dias.Esta gargalhada atingiu os ouvidos deGaspar, o pai da última filha de Vanessa. O mecânico desenvolvera uma obsessão pela mulher quemaltrataraeoabandonara;osseusmodosdesabridoseofactodeserecusarasustentarousequeraverafilhanãolhegranjeavamsimpatiasnaaldeia.Comoavançardotempoedasolidão,Gasparconvencera-sedequeodesprezoqueaaldeia lhevotavasedeviaaomodocomoVanessaseatiravaaoshomens,fazendodelemotivodeescárnio.Perseguiadissimuladamentearapariga,ecadavezmaissepersuadiadequeaex-mulher,queviaaindacomosua,agiacomoumagaldériaparaoachincalharepunir.SouberaqueelaforaparaFrançaatrásdeumemigrante,eestavacertodequeagoraandavaadeitar-seatrocodedinheirocomobrasileiro,ofarmacêuticoeopresidentedaJuntadeFreguesia,aindaporcimacasado.Pelomenoscomestes.Via-aentrare sairdascasasdeles,pródigaemrisinhosemeneios.Assistiuàsboleias frequentes que o farmacêutico lhe dava para a danceteria. Viu-a abanar-se provocantementediante do farmacêutico, que aliásmexia os quadris tanto oumais do que ela. Sabia que na aldeia secochichavaqueoboticárioerahomossexualetinhaumcasocomumholandêssexagenárioquecompraracasanosarredoresdeLagar,masmatutavaqueVanessaeosupostomaricôncioerammuitoíntimos.Ah,sim,haviaum jogode engate entre osdois,Gaspar bemopercebia.O fulano contorcia-se comoumaserpente.Talvezfossebissexual,coisaqueestavamuitonamoda.Masquenãotentassematirar-lheareiaparaosolhos:Vanessatinhaalgumacoisacomaquelebailarino.Gaspardiscorreuqueporalgumarazãoadesavergonhadagostavatantodaquelelugarondehomensemulheresiamparaseesfregaremunsnosoutros.Tambémjáláaviracomoarquitectobrasileiro;comessemarcaraelaencontroemLagar,numatardedechuva,eGasparficaraaespiaroquefaziamdentrodacarrinhadobrasileiro;nãoseaproximara

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muito, para não ser notado, mas estava seguro de ter visto as cabeças juntas, o que significava, nomínimo, beijos. Conjecturava que Vanessa intuía a sua ronda e fazia ainda pior para o amesquinhar.Quantomaispensavamaisafúriafervianele:sentiaumaurgênciacadavezmaiordesevingardaquelacabra,sobpenadeexplodir.EnquantoVanessaandasseamenear-sepor todolado,fazendotroçadele,nãoteriasossego.

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26-OtempoeadistânciaTrabalharparaesquecer:otemadaminhaexistência.QuandoconheciRaul,acrediteiqueessetema

caducara;viveriaparaamareotrabalhodeslizariaparaosegundoplanoquelhecaberia,seascriaturashumanastivessemojuízomínimodosanimaisditosirracionais.Paradoxalmente,foioamorporRaulquemeapartoudeleemepastoreouatéàminhaanterioridentidadedejornalistasemvidaprópria.AceiteiadirecçãodeumarádioportuguesanaCalifórniaparapoderpagaracasadamãedeleaosirmãos.Sabiaqueselhedissesseistoeleseoporiaàminhapartida;porisso,falei-lhecomentusiasmodaoportunidadedeviajar,conhecer,criar.Tretasaque,parameudesgosto,eleaderiucomumafacilidadesurpreendente.A insegurança desemboca num teatro de equívocos; a ligeireza que ambos afectámos talvez não fossemaisdoqueisso: insegurançarecíprocaquantoàverdadedesteamortardio.Excessodedesilusões.Eculpa, essa eterna e torturante vilã: eu sentia-me culpada por o ter empurrado para aquele infaustoprojecto camarário; deveria ter sido mais cautelosa, procurado aconselhamento jurídico e apoiospolíticos—enfim,tersabidodefenderRaulemvezdeconfiarnavitóriadaqualidadedoseutrabalhoeda sua boa-fé sobre os arranjinhos locais.Osmeusmuitos anos de jornalismo não bastaram paramedesintoxicardoviciodacredulidade.EcomodizaLupe:aspessoasfazemdecontaqueaprendem,masnuncaconseguemlibertar-sedasuanaturezaprofunda.Nascicrédulaeoptimista,assimheidemorrer.ORaulnasceudesconfiadoepessimista,eeuatrevi-meapensarqueotransformaria:acómicapresunção.Emvezdisso,contribuíparalhereforçaraideiadequeomundoéumlugarhostilondecadaumviveaarmadilharopróximo.Continuoapensarqueumaparteconsideráveldosseusproblemasadvémdestetipodepensamento: futuraremnegativoarreda-nosdafelicidade.NadespedidadaLupeconfessei-lheumacoisaquejamaisdiriaaRaul:quetenhomedodatrovoadaportátilquecompõeasuaalma.Eu,quemeriadassuassuperstições—opavordonúmerotreze,porexemplo—,doupormimatemerqueocepticismodeleme sequeoume atraia azar.Nãopossopensar naLupe semque as suas lágrimasmeretalhemo coração: «Minha querida, um ano, naminha idade, é umadécada. Provavelmente já não avolto a ver.» Respondi-lhe aquelas banalidades sofísticas: ninguém sabe quanto tempo dura, hoje aspessoasvivematéaoscemanos,umanocorrenuminstante.Mentiras.Cadaanotemdozemesesetodososdiascaminhamosparaonossodestinodemorte,póenada.

AquiemBerkeley,asquatroestaçõesmanifestam-senumsódia—amanhãnascehúmidadenévoa,àsduasdatardeosolaqueceequeimacomonoVerão,àsseisachuvaconcorrecomaventania,ànoiteinstala-seumamornidãodePrimaveraquemantémasruascheiasderisoseoscaféstransformadosemsalasdeestudoacompanhado.ArádioIdentidadeficanestacidadezinhauniversitáriadosarredoresdeSão Francisco e os seus donos negociaram aminha estadia com a universidade: estou instalada numquartodeliciosodoWomen’sFacultyClub,quedesdeháanossetomoudemocraticamentemisto.Aminhajaneladáparaaluxurianteflorestaincluídanocampusuniversitário.Acordocomotrinardospássaroseamúsicadoregatoquecorreaoladodoedifício.Aoserãoleionaconfortávelbibliotecadoclube.

Asestaçõesdoanoadquiremmaisintensidadenascidadesuniversitárias.Háumaconsciênciaagudado temponesses lugares onde se está, definitivamente, de passagem.O resto da vida de cadaumdosjovens estudantes que ali moram, temporariamente, dependerá daquilo que conseguirem aprender,descobrir,reinventar,nestespoucosanos.Ossonhoseangústiasdosestudantescirculamnoar—acertashorasdodiaoudanoite,parecematévisíveis,nuvensaltasatravessandoatransparênciaazuldocéu,ourajadasdeumventoinesperadamentefrio.

Sinto-meemcasa,oquemeampliaassaudades.SãoFranciscoéumaLisboasempenadesimesma.Amesmapontevermelha,osmesmoseléctricos,omesmoclima,complementadosporumalinhaartística

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de arranha-céus e, sobretudo, por um alento completamente diferente. Aos fins-de-semana praticoalpinismoamadorpelascolinasinclinadas,sigoopercursodaMadeleinedoVertigodeHitchcock,queé,nãoseiporquê,ofilmequemaismeimpressionaequemaisvezesrevi.Sento-meincontáveishorasnominúsculoebelíssimocemitériodaMissionDolores,ondeafinalnãoexisteacampadaantepassadadeMadeleine,mas simdezenasde campasde crianças oudemulheresmortas noparto, entre os séculosXVIIIeXIX.Ficoalisentadaaolharasfloreseostúmulos,devaneando,foradotempo.Estecemitériotransmite-meumestranhosentimentodepazquemearrefeceofogodatristeza.

Durante a semana, na rádio, vivo numPortugal transplantado.Os portugueses e luso descendentesrepresentam um por cento da população da Califórnia. Alguns vieram para a América na infância, etodaviamalfalaminglês:vivemetrabalhamemquintasecriaçõesdegadodacomunidadeportuguesa,vêem canais de televisão portuguesa, ouvem rádios portuguesas, comem cozido à portuguesa, bebemvinhoportuguêsesóesporadicamentecontactamcomamericanos.Arádioquevimprogramardestina-seà faixa oposta: aos filhos destes portugueses, que frequentam ou frequentaram as universidadesamericanas e vêem Portugal como um país antiquado de agricultores pobres e fadistas à beira dosuicídio.Éumdesafioalicianteestedetrazerparaalínguaeparaaculturaportuguesaosjovensluso-descendentes que se afastaram dela. Dou lhes a ouvir os novos grupos de música portuguesa, façoentrevistastelefónicascomescritoreseartistasportugueses,concursosdecontosemlínguaportuguesa,crónicassobreasqualidadesdePortugal.Doupormimarircomaquantidadedevirtudesquedescubronomeupaís,agoraqueestoulongedele.Aideiaéprepararostrêsjovensquetrabalhamcomigo,lusodescendentesformadosemComunicaçãopelaUniversidadedeBerkeley,paracontinuaremesteprojecto.Asurpresaeo júbiloquevãodemonstrandoàmedidaque lhesvou revelandoasmaravilhasculturaisdessePortugal,paraelesdesconhecido,temsidoumlenitivoparamim.Maselessãojovensetêmasuavida;sobram-memuitashorasdesolidão.

Felizmente inicieiagoraunsateliersde jornalismonaUniversidadedeBerkeley,aconvitedeumadinâmicaprofessoraquecriouumProgramadeEstudosPortugueses.Ganhomaisdinheiro—afinal,éesse o objectivo deste meu exílio — e ocupo-me. Nas horas em que a ausência de Raul se tornaparticularmente insuportável, procuro um café, para estar nomeio de outras pessoas eme proibir dechorar.OscafésdeBerkeleyestãocheiosdegenteadedilharcomputadoresportáteisouatomarnotasdelivros.NãosevêemosantipáticoscartazesdamaioriadoscafésdeLisboa,ondesedizqueéproibidoestudar—antipáticoseestúpidos,porqueemnenhumcafélisboetaseanunciaqueéproibidolerumoudezjornaisdefioapavio.OscafésdeBerkeleytêmsemprealgumasmesassemcadeirasaoseuredor,paraqueaspessoasemcadeirasderodaspossaminstalar-sesemproblemas.Emnenhumaoutracidadeencontreiatéhoje tantaspessoascirculandoemcadeirasde rodas,ou invisuais fazendocompras, comtodaatranquilidade.Todosossinaisdepassagemdepeõessãosonoros,todosospasseiostêmrampas,todasasportasumsistemadeaberturaautomática.Étãosimples.EmBerkeleynãoseencontraninguémquesepossatratarcomocoitadinho.ImaginooqueseriaPortugalsemestevírusdacaridadezinhaqueapoucaecorróiqualquerespéciederelaçãohumana.Asmuitasdezenasdesem-abrigoqueconstituemapopulação menos flutuante da cidade não se deixam acoitadar: pedem uma moeda ou, maisfrequentementeainda,umcigarro—maspedemdeumaformaorgulhosaelimpa:«Asenhorapoderiaporacasodispensar-meunstrocos/umcigarro?»Nadadehistóriasdacarochinhanemmentirolas;vivemdepedir e, honestamente, pedem. Caso a pessoa solicitada diga que não, desejam-lhe um bom dia eregressam à sua vida. São homens e mulheres em geral já idosos, com longas barbas e hirsutascabeleiras, que se passeiam com carrinhos de supermercado onde guardam um saco-cama ou várioscobertoressebentos,emeiadúziadepeçasderoupa.Sãoosdeprimidoscrónicosdaclasseoperária;osdoentes de depressão burgueses, acabam a ganhar prémios e terapias nos múltiplos talk-shows

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televisivos; os do povo, acabam na rua. Mas os de Berkeley, em geral, lêem—ou declamam, oudiscursam, ou publicam eles próprios as suas obras, em edições de autor que tentam vender aospassantes.ViumdestesmoradoresdaruaalerShakespearenumbancodejardimdauniversidade;outrorecitavaasIntimationsoflmmortalitydeWordsworthnomeiodoturbilhãodaTelegraphStreet,aofimdatarde,eacabeleireiravietnamitadoNarcisusHairandNailsassomouàportaparaouvirmelhor.

Contoestaspequenashistórias aRaul, tentandoanimá-lo,mas sinto-oalheado.Tenhode termuitocuidadonotom;perceboque,quandomostrocontentamento,elepensaqueeunãovouvoltar.Acontece-me também interpretar o alheamento dele como desinteresse pormim.O amor é um animal frágil, dacategoriadosroedores.Certasnoitesacordoalagadaemsuor,aterrada,depoisdeosonharnacamacoma sirigaita da Vanessa. Ele vai-me perguntando se ainda não conheci por aqui ninguém interessante;respondoinvariavelmentecomum«não»taxativo,masnãocreioqueoconvença.Ah,asteoriasqueeuelaborava sobre as vantagens terapêuticas do afastamento para o fortalecimento de uma relação, aimportânciadasolidãoparaaconstruçãodoamor-próprioeseiláquemais.Lérias.Pareciaoprimeiro-ministro a explicar que a miséria nos engrandecerá e que os sacrifícios nos tomarão melhores. Ossacrifícios tornam-nosapenas sacrificados.Diminuem-nos.Tornam-nospiores.Oamorprecisaapenasdoamor.Olixodoamor—asirritaçõessemmotivo,otédio,asobrigaçõesdoquotidiano,aroupasuja,osolhosremelosos,ocaldoentornado—éumaregaliaquepoucosreconhecem.Cadadiadeseparaçãoéapenasisso.-umdiaemqueoSolnasceuemorreusemtestemunharonossoabraço.QuemmederaqueRaulestivesseaquicomigo.Aoscinquentaanos,continuonoquemmedera.

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27-OteatrodatraiçãoÀsdezhorasdeumagloriosamanhãdejulhobanhadadeluz,inaugurava-senaviladeLagar,comum

elegantebouquetdeindividualidadeslocaisenacionais,incluindoosecretáriodeEstadodaCulturaeoGrandeEscritorRessuscitado,oedifíciodanovabibliotecamunicipal.

O Grande Escritor Ressuscitado era o último milagre lusitano; estivera dois anos em coma e,subitamente, despertara. Desguarnecido de herdeiros directos e morando numa casa arrendada,estabeleceraumacordocomoEstadodestinandotodososseusbensaumaCasaMuseucomoseunome,a construir de raiz por um Grande Arquitecto, revestido de tantos prémios internacionais como elepróprio. O desenho do edifício, magnificamente nostálgico e futurista, fora aprovado pelo próprioEscritor,quandoaindagozavadeboasaúdeegastavatradutorasincautascomosolasdesapatos.Aocabode um ano de coma, esgotadas as esperanças de recuperação doGénio, as entidades governamentaisdecidiramavançarcomoprojecto,atéporqueoGrandeArquitecto,quejánãoiaparanovo,exigiraopagamentodomesmo,easenhoriadoEscritorentenderasubirarendadoapartamentodesocupado.Alémdisso,asenhoriaqueixava-sedadegradaçãodoimóvel,quedeixaradeserlimpoeestavaatulhadodelivros, papéis, sofás,móveis demadeira, roupas e alimentos, correndoo riscode se transformar numfestivaldecaruncho, traçasebaratas.Quando, inesperadamente,oEscritor ressuscitou, jáasuaCasa-Museuestavaabertaaopúblico,actuandocomocentrocultural,comumcorpodiligentedefuncionárioseprogramadores. O Grande Escritor precipitou-se para essa sua morada eterna; as funcionárias darecepção, reconhecendo-o a partir dos postais e posters que vendiam com a sua fotografia e as suasfrases de impacto, ficaram apardaladas, julgando estarem na presença do espectro do seu ganha-pão.Eufórico e ainda em transe diante da sua recuperada existência, o Escritor trotou até ao auditório doprimeiro andar, onde decorria uma conferência sobre a sua obra, realizada pelo seu principal rival earqui-inimigo. Deslizou discretamente para um lugar no fundo da sala, e ficou a ouvir: «Este autorelaborouumaengrenagemmetaficcionalcujoparadigmaoperacionalconsistenasubversãodasemânticaestabelecida. Problematizando emetamorfoseando, através da sobreposição temporal, a singularidadedasvozesnarrativas,realizaumaconstruçãosinfónicaecontrapontísticanaqualintegraeoculta,atravésde simulacros do inconsciente, uma percepção misógina do real. Em suma: uma obra instigante, quemerece continuar a ser lida.»Opúblico começava a aplaudir quando oGrandeEscritor se ergueu dacadeira.Comoindicadoremristee,avançandoparaopalco,urrou:«Misóginoévocê,abutreignorante!Eu dou-lhe ametaficção e o inconsciente!Ai dou-lhe, dou-lhe!Você não percebe patavina do que euescrevo,nuncapercebeu.Aliás,passouavidaadenegrir-me,eagoravemarmadoemsábioprofanaromeucadávernaminhaprópria casa!Rua!Ponha-sena rua!»Oconferencista julgou estar peranteumaalucinação. Assarapantado, o jovem burocrata engravatado que dirigia a Casa procurou acalmar osânimos,mascomooGrandeEscritorofuzilassecomoolharelhegritasse:«Rua!Ponha-senarua,vocêtambém!»,tratoude,comsussurradasdesculpas,despacharoconvidadoescadaabaixo,antesqueasuadirectoral pessoa se visse forçada a regredir até à repartição de atendimento ao munícipe de onde,atravésdecomplexasdiligênciaspolíticas,havialogradocatapultar-se.

OGrandeEscritor tornou-sehabitantedoseupróprioMuseu,oqueaumentouexponencialmenteasreceitasdaCasa; turistasde todasaspartesdoGlobovinhamparaveroGrandeEscritor almoçando,escrevendo, dormitando no sofá ou baforando um charuto na varanda. Pagavam-lhe para palestrar emescolas,universidadesebibliotecasdomundointeiro.ForadoMuseu,assuasapariçõesnacionaiseramescassas; a consultora literária da Casa explicava-lhe que não se devia deixar banalizar. Aceitara oconviteparaainauguraçãodabibliotecadaviladeLagarporquequeriapassaranoitenapousadalocal,

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que lhe haviam gabado, com uma jovem tradutora checa que viera visitá-lo.Magro e envelhecido, oGrande Escritor já não possuía os atractivos físicos que tanto haviam contribuído para a suainternacionalização, mas os seus grandes olhos azuis furados por uma minúscula pupila negrapermaneciammagnéticos.Aoelementoeróticodafamaassociava-seagoraodaressurreição.

Descerradaaplacainaugural,sobosaplausosdeumpelotãodeturistasepopulares,asexcelênciasoficiaiseoficiosas,bemcomoatradutoracheca,galgaramosdegrausdaentradaeavançaram,risonhas,pelassalasainda rescendentesa tinta, flutuandonumriode luzese flashesemicrofones.Retiniramosdiscursosdasautoridades,solenesepromissores.OpresidentedaCâmaradeLagardissertoulargamentesobreaimportânciadasbibliotecasparaaformaçãodeuma«cidadaniaactiva»,concluindotodaviaque,«quandonosreferimosaoestímuloacriançasdosprimeirosgrausdeensino,nãoéadequadoquefalemosde literatura».Emseguida,oGrandeEscritor subiuaopúlpito, comumsorriso felino, ecomeçoupordizer que a exortação do Senhor Presidente à «cidadania activa» lhe desencadeara nas meninges aseguintequestão:oqueseriauma«cidadaniapassiva»?Confessounãofazeramaispequenaideia.«Poroutro lado—acrescentou—tenho de dizer ao Senhor Presidente que discordo em absoluto da suaafirmaçãode que os alunos do ensinobásico devam ser poupados ao convívio coma literatura.Essepaternalismoinsuportávelestupidificaascriançase...»

ParaalíviodoSenhorPresidente,osermãodoGrandeEscritor foi interrompidoporumavozeariaensurdecedoraprocedentedoexteriordoedifício.Oassessordecomunicaçãoprecipitou-se,afogueado,sobreosombrosdoalcaide,murmurando-lhequalquercoisaaoouvido.Nessemesmoinstante,irrompeuum vereador da Oposição, clamando que o que estava ali a acontecer era uma discriminaçãoinqualificável, equeexigiaexplicaçõessobrea faltadecumprimentodaLeiemvigorhámaisdedezanos,queobrigavaàeliminaçãodasbarreirasarquitectónicas.Haviaumasenhoranumacadeiraderodasa protestar na rua contra os quatro degraus que lhe proibiam o acesso à nova biblioteca. O SenhorPresidentefechouosolhos,desejandoqueotemporecuasseunsminutosequeoEscritorcontinuasseasua arenga contra ele, enquanto amulher sobre rodas permanecia em casa, quietinha.De um escritor,pensou,jáseesperaoexibicionismodarebeldia.Ninguémliga.Meditouqueautilidadedosescritoresnascampanhaseleitoraissedeveaofactodedizeremosdisparatesqueopovogostadeouvirsobreospolíticos,oqueosfazparecerindependentes.Gomosealguémfosseindependente.Entãoabriuosolhoseperguntou,baixinho,aoseuassessor:«Ondeéqueestáocabrãodoarquitecto?»

Antecipando a pergunta, o senhor arquitecto escapulira-se pelo canto da sala. Cruzou-se comumjornalista seu conhecido da Gazeta das Termas e disselhe: «Isto é uma alhada! Eu não tenho culpanenhuma,obrigaram-meacumpriroprojectodeumarquitectobrasileiroqualquer.»Entretanto,oSenhorPresidenteexplicava,transpirando,queembreveseriacolocadaumarampajuntoaosdegraus,equeasportas interiores seriam refeitas, demodoaquenenhumcidadão ficasse excluídodoacesso à leitura.Que tinhamsurgidoumasquestõezinhas técnicasqueseriamresolvidasamuitobreve trecho.Solicitoupublicamenteaopessoaldabibliotecaqueseapressasseatransportarasenhoracomasuacadeiraparadentrodoedifício;masasenhorarecusava-seaserlevadaaocolo,econtinuavaabarafustar.OSenhorPresidenteencheuopeitodeareafoitou-seadescerparacumprimentarasenhora,pedindo-lhedesculpapeloerrotécnicoegarantindoqueasituaçãoestariaresolvida,nomáximo,emduassemanas.Furibundo,nessamesmatardechamouaogabineteodirectordoDepartamentodeObrasparaodemitirdefunções,remetendo-o ao seu anterior posto demero engenheiro camarário, e comunicando-lhe que acabara denomeara subdirectoradoDepartamentoparao seu lugar.Oengenheiro ficouestupefacto: comopodiatamanha injustiça desabar sobre as suas nobres espáduas? E como podia o seu braço direito traí-lodaquela forma imediata e despudorada? Perguntou, titubeante: «E ela aceitou substituir-me?» OPresidente retorquiu bruscamente que sim, claro, a engenheira aceitara, afinal quem recusa uma

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promoção?Na alma enxovalhada do engenheiro desenrolava-se o filme das centenas de ocasiões nasquais, ao longo daqueles cinco anos de trabalho conjunto, a subdirectora lhe dissera, com os olhoshúmidosdelealdade:

—Sóestouaquiportuacausa.Nodiaemquesentirquejánãoconfiasemmim,vou-meembora.ou—Devo-te tanto. Tenho aprendido tanto contigo.Não aceitaria trabalhar nesteDepartamento com

maisninguém.ou—Nuncaesquecereiquefostetuquemapostouemmim,depoisdeanosesquecidanumaprateleirada

Câmara.Estas imagens doces retalhavam-no agora como punhais. Grande cabra, pensava. À mínima

repreensão,osfiéisolhoscastanhosdaengenheiraenchiam-sedeágua,esborratando-lheorímeldouradonasfacesentristecidas:

—Senãomeachas competente,vou-me já embora.Nãoaguentariadesiludir-te, enãoaguentoqueduvidesdemim.

Àsvezespunha-setodaatremer,deixavadedizercoisacomcoisa,tinhaquebrasdetensão,ficavaàbeiradodesmaio.Eelecondoído,aflito,acariciando-lheaslongasmãosdeunhasdouradas,pedindo-lhedesculpaerepetindoqueconsideravaoseutrabalhomagnífico.Nãoodisserajáempúblico,emtantasetão diversas circunstâncias? Não a avaliara sempre com nota máxima? Sabia ela como fora difícilarrancaraquelasequênciade«excelentes»aumaadministraçãopúblicatãoavaradeles?

Tudo fita, afinal.Encenação reles.Provavelmentedenegria-operanteosmesmos subordinadosdosquaissequeixava:

—Tensumminuto?Deixa-medesabafar.Jánãoseiquefazercomfulanoecicrano,sóengonhamesãomalcriadosqueeuseilá,nãometêmrespeitonenhum.

Eele,aparvalhado,aresponder-lhequeseelaquisesseiriapessoalmentefalarcomeles,pô-losnaordem.

—Não,não,deixalá,ésóumdesabafo,seforestuafalar-lhesentãoéquemeperdemorespeitinhotodo,porfavornãofaçasisso,eutratodeles.

Aengenheiratratavaosfuncionáriospor«osmeusmeninos».Nascostasdeleschamavalhesmoles,sonsos, vaidosos, inúteis; tinha de convencer o chefe de que ninguém fazia nada, para que ele aconsiderasseumaespéciedesupermulher.Eele,tansoretanso,considerava-amesmo.

O Senhor Presidente bateu no ombro do engenheiro, despertando-o deste excruciante memorial:«Vamosàvida, homem.Estas coisas sãomuito chatas, significamvotos, entende?Aliás temospoucasmulheresemcargosdedirecção,eaparidadetemdeserincentivada.»

Oengenheiroaindaaventou,comumaréstiadevoz,queaculpaeradoarquitecto.Denovoenervado,o Senhor Presidente retorquiu que o arquitecto seria também obviamente sancionado mas que, empolítica,aculpaésempredosdirigentes,peloquedavaporencerradooassunto.

Nodiaseguinte,aGazetadasTermasanunciava,atodaalarguradacapa:«EscândalonainauguraçãodabibliotecadeLagar:arquitectobrasileironãocumprealeieuropeiadeacessoadeficientesfísicos.»Naspáginasinterioresacrescentava-sequeoprojectoforaencomendadoporajustedirectoaobrasileiroRaulSousa,desprezandoacompetênciadosarquitectosmunicipais.Aventava-seaindaqueaOrdemdosArquitectos procederia a uma reanálise do processo de admissão do brasileiro e que o MinistérioPúblicoestariajáainvestigarocaso.

RaulsoubedanotícianocafédeArrifes,ondeprontamentelhevierammostrarojornal.Estarrecido,repetia:«Mentira.Tudomentira.»Osfrequentadoresdocaféjuntaram-seàsuavolta,dizendoque,seera

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mentira,aprimeiracoisaquedeviafazereraumacartaparao jornal.Aparecendonomeiodareuniãoinformalemtornodoescândalo,Alicedissequeeledeviafazermelhordoqueisso;processarojornalpor difamação. «Como? Com que dinheiro? » - perguntava, trémulo, o difamado.Massajando-lhe osombros«pararelaxar»,Aliceexplicouqueodinheironãoseriaproblema,dadoqueavitóriaeracerta:bastava que combinasse com o advogado pagar-lhe uma percentagem da indemnização, e estaria oassuntoresolvido.

Raul pensava: mais problemas. Os problemas perseguiam-no por toda a parte, como animaisfamintos.

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28-BodeexpiatórioAmilharesdequilómetros,Clarissecontinuasendoomeuanjoprotector:redigiucomigoacartapara

o jornal deTermas doRei. Teve a ideia de realçar a xenofobia implícita na expressão «o arquitectobrasileiro», acentuando a intenção difamatória do texto. Tranquilizoume: disse que eu falasse com oadvogadoqueestácuidandodoprocessodapartilha,equetudocorreriabem.Nãoseioquefariasemela; provavelmente, ficaria nomeu buraco e não faria nada.Deixaria de pintar.Desistiria. Chega umtempoemquenoscansamosderesistir.Osofrimentotemumafronteiraapartirdaqualnosesquecemosdequesomosgente.

A notícia da Gazeta das Termas apareceu depois nos jornais nacionais, embora sem o mesmodestaque.Estranhoveromeunomeimpresso;nãoaconteciadesdeapequenanotadeClarisse,nosidosde1998,sobreaminhaexposição.Emjovemsonhavaserumarquitectooupintorfamoso.Afinal,apenasme torneiumnão-arquitectonotório.Oadvogadori:«Nãomorreuninguém,homem!»Depoismudadeassunto,embaraçado:perceboquelheocorreuquemorreualguém,sim.Aminhamãe.Dequalquermodo,diz, quantomais jornaispublicaremanotícia,melhorparamim:maior será a indemnização.O juristaacrescenta umas linhas intimidatórias ao esboço que eu fizera com Clarisse e assina a carta. Queriaresponder eumesmo, contando todos os detalhes da armadilha quememontaram,mas tanto Clarissecomo o advogadome dizem que não devo fazê-lo. Alegam que as histórias compridas confundem osleitoresequeumtomdemasiadolamurientomevulnerabilizaria.Seja.Maisvulneráveldoquemesinto,nãoépossível.Remetoaosreplicadoresda«notícia»odireitoderespostaqueenvieiparaaGazetadasTermas.Publicamacartanumcantodepáginaquenenhumleitorlerá.Quemquersaberdobom-nomedeumprovincianoqualquer?AGazetapublicouemcorpomaior—masnãonacapa.A imprensagostadelama e odeia desmentidos; questão de sobrevivência. O director da Gazeta entra em contacto com oadvogadoparatentardemovê-lodoprocesso;queojornaléregionalepobre,etc.Ora.Pobretambémeusou;porquenãopensaramnissoantes?

Quefazerquandotudoparecedesfeito?Quepintarquandoavidapareceumquartoescuroevazio?Como pensar num tempo em que se esgotaram os nutrientesmínimos de segurança que libertam o

raciocínio?Clarisse pede-me que esqueça estas perguntas.Bemgostaria de jogá-las no lixo como ospoliciaisdaeficiênciafazemàspessoasquenãolhesservem.SeaomenospudesseabraçarClarisse.Asperguntas jánão sabemperguntar e as explicaçõesnunca souberamexplicar.Todospresumemsaberoquemoveosoutros;oscérebrosviraramcentrosdesondagens.Aspessoassãoagorapobresantesdeserempessoasoumesmoemvezdeserempessoas.

Clarissedizquenosfaltaperderomedodenosperdermos.Oscromosdatelevisãorepetemtodososdiasàhorado jantarqueestamosapagaropreçode termosvividoacimadasnossaspossibilidades.Mentem, para terem a certeza de que permaneceremos quietos, amedrontados. O medo mantém-nosabaixodasnossaspossibilidades.

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29-AcaçadaDescalçaedeolhosfechados,recostadaentreospinheirosnavelhacadeiradesdobrávelquetrazia

semprenabagageiradoautomóvel,Alicemeditavanabemaventurançadesemanterágileemforma,capazdepassear até onde lhe apetecesse edesfrutar paisagens, sabores, ritmos, o frio revigorantedaáguadomar, o calor da areia, o perfumeverdedas árvores, o somaladodospássaros.Masnemumtrinadoseouvia:osilêncioatingiraograudeperfeição.

Trêsestampidossecos interromperambrutalmentea tranquilidadedaquele repouso.Alicesaltounacadeiraeolhouemvolta,assustada.Nada.Nãoseavistavavivalma.Osilêncioespreguiçou-sedenovosobreatardeazul.Porém,apósalgunsminutos,Aliceouviulatidosdecães.Pensou:«Éoiníciodaépocadecaça.»Pegounosóculosenolivroquetrouxera-andavasempreoucomumlivro,oucomumtrabalhoderendaoudetricot—eresolveuler,jáqueacordaradotorporpuramentefísicoemquesedeliciavahámaisdeumahora.Oscaçadoresnãoviriamincomodá-la;acaçafazia-seaunsquilómetros,emcabeçoseserraniasafastadosdospinhaisquecircundavamaspraias.

Osagricultorese,deummodogeral,osmoradoresdaquelazona,agradeciamapresençasazonaldoscaçadores,nãosóporqueanimavao turismoeocomércio,massobretudoporqueregulavaanatureza.Sem a caça, os coelhos-bravos tornar-se-iam uma praga incontrolável, destruindo hortas e plantaçõesfrutícolas.Rauldistraía-seaobservarasentradasesaídasdeumavastafamíliadecoelhosdetodosostamanhosquemoravaentreacasadasuamãeeacasadeRosário,noterrenobaldioinvadidopormoitasegiestasqueaJuntadeFreguesiadesdeháanossecomprometeraalimpar.QuandoregressavaaLisboadenoite,depoisdevisitaramãe,levavaopéencostadoaotravão,nasestradinhasruraisqueantecediamaautoestrada,paraevitarquealgumanimalviesseestraçalhar-senoseupára-choques.Coelhosdeolhosvítreos estacavam subitamente no meio da estrada, encandeados pelos faróis. Não conseguia comercoelho,porqueselembravaoudosobressaltoquelhecriavamaquelesolhos,oudoscoelhosbebésqueentravamesaíamdasmoitaselhepareciamjáumprolongamentodafamília.

Aliceacabouporadormecer,semsedarcontadosestampidoselatidosquecontinuaramaecoarpelatardeluminosa.Acordoucomaprimeiraaragemdanoite,quaseaopôr-do-sol.EraoprimeirodomingodeOutubro,masoVerãoparecianãoquereracabar;oscaféspermaneceriamabertosatépertodameia-noite, regando os extensos comentários dos especialistas de futebol locais. Os velhos colavam-se àslongasgalastelevisivasdaquelaqueeraanoiteespecialdasemana.Acriseeconómicatransformaraosfins-de-semanaemdiasdeluxoeesquecimento,aproveitadosatéaoosso.Osjovenseasfamíliasmenoscaseiras escolhiam as suasmelhores roupas para o ritual de deambulação entre os turistas da vila deLagar.Avariedadedaslínguasedostrajesdosturistasalimentava-lhesailusãodemoraremnumlugarcosmopolitaedava-lhesocasiãoparaorelaxanteexercíciodamá-língua.Alicecostumavaficaremcasa,entretidacomatelevisão,masnestedomingoestiverademasiadashorassozinha,eregressaradoretironos pinheirais com uma sensação de indefinível angustia; telefonou a uma colega de ginástica, viúvacomoelae,comoela,ainda rija,edesafiou-aparaumgeladonumaesplanadadeLagar,aoserão.AsamigasviriamaencontrarRaulnumaoutraesplanadadavila,bebendolicordepêra--rochaefazendoesboçosparaumnovoquadro,umavistanocturnadasmuralhas,aproveitandoailuminaçãosuplementardaluacheia.

Do obscuro casario de Arrifes saíam também criaturas de todas as idades, vestidas de festa,dirigindo-se, de automóvel, mota ou bicicleta, para o ermo onde resplandecia a danceteria Princesa.Vanessa,comosabemos,nãofalhavaumanoite—anãoserqueestivessedeserviçoabifanas,sardinhasouchouriços.Hojeestavalivre.TentouconvencerduasraparigasdoCentrodeDiaaacompanhá-la,mas

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tinhamoutrosplanoscomosnamorados.PegounadecrépitamotorizadaepassoupelacasadeRaul,masestavatudoescuro:«Tantopiorparaele»,pensou.Dequalquermodo,indagavaaoseufecho-éclairparaquequeriaelaummonotristonhodoqualatéaquelalouraentradotasepisgara?Ocertoéquequalquerdia teria quarenta anos e depois já ninguém a desejaria; namoriscara na Internet um emigrante noLuxemburgo,mas, adestrada pelamá experiência francesa, cedo percebera que eramais um a querercama,comida,roupalavada—eprovavelmentesovas.Assovasnãoaincomodariamporaíalém,seeledemonstrasse expediente emeiguicena cama;umacoisapareciavir comaoutra, pelomenosnocasodela.O pior eramos ciúmes: assimque amarcavam como ferrete do sexo arrogavam-se direitos depropriedade sobre todos os seus risos, sorrisos, olhares e percursos. Não suportava essa vigilânciaconstante.

Vanessa contorcia-se no centro da pista de dança, de olhos fechados, vibrando ao som de I willsurvive, umadas suas canções favoritas, quando se sentiu agarrada pela cintura.Demorou a perceberquemeraoatrevido,porqueaencarcerarapelascostas,empurrandocomforçaoseucorpocontraodelaeimpedindo-adesevirar.Pensouqueabrincadeiraestavaairdemasiadolongeecomeçouadebater-se;os braços que a apertavam aumentaram a pressão e Vanessa, esperneando, deu por si a girar a altavelocidadecomospésnoar.Osoutrosparesafastaram-se,paradarespaçoaoquepensavamserumadançaacrobática.Vanessagritava:

—Deslargue-me,bruto!Masninguémaouvia.Finalmenteohomempousou-anochãoevirou-aparasi,enfiandoumaperna

entreaspernasdelaeapertando-aaindamais.— Cala-te, puta. Não voltas a chamar-me nomes nem a escapar-me— sussurrou-lhe ao ouvido,

espremendo-acontrasi.Apavorada,VanessareconheceuGaspar.Detectou-lheumodorintensoavinho,mastentouchamá-loàrazão.

—Não sejas parvo,Gaspar.Bateste-me, nuncaquiseste saber da tua filha, e agoravens-mepedirbatatinhas?Nãohápachorra.Játedissequemedeslargues.

Nopalco,ohomem-orquestrainterpretavaagoraoclássicoOnlyYou,dosPlatters,eVanessasentiaatranspiração de Gaspar colada ao seu corpo. Os dedos do mecânico beliscavam-lhe as nádegas,torturando-a devagar.Quantomais a rapariga se debatia,maior dor o homem lhe provocava.Vanessalançavaolharesdesesperadosaosparesqueos rodeavam,às famíliasqueconversavamanimadamentenas mesas que circundavam a pista, às capitosas empregadas de minifarda branca que corriam comtabuleirosdebebidasesalgadinhos,masninguémreparavanela;osfrequentadoresdadanceteriaestavamhabituadosà lubricidadeexibicionistade alguns casais, oua algumascenasde combate entre amantesdesavindos: ninguém ia ali para estabelecer códigos demoralidade nem para arranjar problemas porcausadedramasalheios.Cadaumsabiadesi.

ComabocadentrodoouvidodireitodeVanessa,Gasparcontinuavaainsultá-laameaçadoramente,dizendo-lhe que ela nuncamais faria pouco dele e que estava farto de ser omaior corno deArrifes.Informava-adequeassistiraaosbeijosnacarrinhadobrasileiroequeouviraosrisinhosdelanoquartodele,equenãoeraporacasoqueelasóialimparacasadopresidentedaJuntaquandoamulherdelenãoestava,equeváriasvezestinhavistoofarmacêuticoadar-lheboleiaaliparaadanceteria,equejáhámuitotempoperceberaqueaslimpezaseosgrelhadosnasfeiraseramumpretextoparaelasemeternacasadoshomens,porqueoverdadeiroserviçodelaeradeputa,amaisrelesputaqueimaginarsepodia,e que não queria saber da filha porque estava também a aprender para puta, vinha-lhe no sangue aporcaria.

Vanessachorava,osbeliscõesferiam-nacomobicadasdeabutre,eocantorentoavaagoraumhitdeMarcoPaulo,Maravilhosocoração.Ajovemgritavaporsocorro,masosseusgritoseramabafadospela

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mãopesadadeGasparepelovolumedamúsica.Gaspartravoucomascoxasaspernasmagrasdasuavítimaeestrangulou-lheopescoçocomasduasmãos.UmparsaltitanteesbarrounascostasdeVanessaenquanto ela desfalecia àsmãosdeGaspar.Umdos rapazespenduradosnovarandimdo camarotedosalão viu o corpo de Vanessa deslizando para o chão e cutucou os colegas: «Olhem para aquela,adormeceuadançar!»

No instante em que o corpo se desmoronou no soalho e os olhos revirados de Vanessa ficaramexpostosàsluzesgiratórias,asmulherescomeçaramagritaremconjunto,osparescorreramparaforadapistaeGaspar,comumsorrisodeabsortasatisfação,empurroucomopéorostolívido,paraverificarseaindamexia.Amúsicaparousubitamenteeoassassinocorreuparaasaída.Amultidãoestáticaergueu-seentãonumaondulaçãodefúria;meiadúziadehomenspegaramemGaspar,ergueram-nosobreosombroselevaram-noparaasaladebilhar,despejando-osobreamesa,semlhesoltaremosmembros.Aturbainvestiu em conjunto: enquanto uns lhe seguravam braços e pernas, outros espancavam-no com asprópriasmãosoucomostacosdojogo,nacabeça,nopeito,nosexo,naspernas.Umcírculodemulheresque subira às cadeiras e sofás espalhados pelos cantos da sala acompanhava o espancamento compalavrasdeordem:«Isso,cheguem-lhecomforça,acabemcomessecabrão!»

Na desertificada sala de baile, os empregados de balcão perguntavam se não havia ali nenhummédicoouenfermeiro,e telefonavamparao112,eparaaPolícia,enquantoasmeninasdoserviçodemesapediamporamordeDeusquealguémfizesserespiraçãoboca-abocaàraparigaquejazianosolo.Osbasbaquesabanavamacabeçaalegandoqueeraumagranderesponsabilidademexernumcorpo,equeomelhorseriaaguardarasautoridades.AlguémnotouqueVanessapareciamexerosdedos—masnãomexiaosolhos,córneasbrancas fixasno tecto.Famílias inteiras retiravam-sesorrateiramente,nalgunscasosignorandoacontaporsaldar.Queriamestarlongedaquelesítioquandoospolíciasentrassem.

A polícia chegou à uma e vinte da madrugada, quase meia hora depois de ter sido chamada. Aambulância das urgências chegara dezminutos antes, jáVanessa nemuma unhamovia. Encontraram adanceteria vazia e em silêncio; os funcionários informaram-nos de que Gaspar tinha fugido,desaparecendo nos campos. O corpo de Gaspar foi encontrado quatro dias depois debaixo de unsarbustos.Foifarejadoearrastadoparaaluzpeloscãesdeumgrupodecaçadores.Apolíciafezalgumasdiligênciasburocráticasparadetectarindíciosoutestemunhas:ninguémtinhavistonada,ninguémsabianada;ohomemmataraaraparigaeescapara-separadentrodanoite.Ninguémlheconheciafamília,nemsabiadeondeera.Setinhaamigos,nãoseapresentaram.OdonodaoficinaondetrabalhavadissequeGaspareraumbomprofissional.Quantoaoresto,nadasabia;nãosemetianavidadosempregados.Oprocessofoiarquivadoenuncamaissetocounoassunto.

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30-JogosvirtuaisCátia,filhadeVanessa,foiarrancada,emprantos,docolodaavóelevadaparaumorfanato.Rosário

diz que o choro damenina gritando pelamãe se ouvia em toda a aldeia. Eu estava dormindo; ficarafalandoetransandocomClarissenoSkypeatéaoamanhecer,esóacordeiaomeiodatardededomingo.AmãedeVanessa,porsuavez, fora transplantadaparaum lardasegurançasocialemLeiria;apernaparalisadaeadiabetesemestadoavançadonãolhepermitiamviversozinha,emuitomenosficarcomumacriançaacargo.Avelhasuplicouquelheencontrassemumsítioondeficassepertodanetinha,masaparentementeaassistentesocialnãosecomoveu:segundoavizinhaRosário,nemsequerteveacaridadededizerqueiatentar.

Aliceveiovisitar-memais tarde, agitadíssima, explicandoquemarcara já uma reuniãopara o diaseguinte no Centro de Dia, e que seria bom que eu estivesse presente. Pretendia que a aldeiacomparecesseempesoetomasseprovidênciasquantoàsortedamenina,quenãopodiaficarjogadanumorfanato-,haveriadeseencontraralguémnaaldeiaquepudesseadoptá-la,oupelomenosacolhê-la.Pelaprimeiravez,Alicemencionouasua idade:«Seeunão tivessesetentae trêsanos,eumesmacriavaapobrezinha»,dizia.PenseiquedeviaaessameninainfelizomeuencontrocomClarisse,erespondiquepodiacontarcomigoparaareunião.Tomararesponsabilidadedeumacriançaestava,paramim,foradecausa:aindanemsequersabiaseteriacasa,lutavapelaminhaprópriasobrevivência.Pergunteisehavianotícias do pai.Alice arregalou os olhos: «Opai?Qual pai?»Contei queRosáriome havia dito queGasparfugiradepoisdematarVanessa.Aliceaproximouorostodomeuouvidoemurmurouqueessaeraaversãooficial;arealidadeeraoutra:opovofizerajustiçapelassuasprópriasmãos,masninguémpodiasaber.«Dequalquermodo—argumentava—dequeserviriaàgaiataumcriminoso?Sólheestragavaavida. Nem ele alguma vez quis saber dela, que aquele ali, Deus Nosso Senhor me perdoe, era ummonstro.NãoseioqueéqueaVanessaviunele,francamente.Elatambém,verdadesejadita,nãodevianadaàinteligência.Eeraumafracamãe,coitada.Hádestinosmuitodesconchavados.»DepoispediuqueeufizesseofavordeconvocaravizinhaRosárioparaareunião,dizendoqueestavamuitoatrasadaparaumamissãoqualquerdosseusescuteiros,deondeseguiriaparaovelóriodeVanessa.

Ocaixãodamulherqueeunãoconseguiraajudarerao taldequinzecentímetrosdeespessura,emcontraplacado. A marca dos dedos do assassino era ainda visível no seu pescoço. Toda a aldeiaapareceu, e a notícia do estrangulamento na danceteria saiu nos jornais da capital e na televisão.Surgiramunsjornalistascomcâmarasdefilmar,masninguémquisfalar,alegando«respeito»paracomamorta.OpresidentedaJuntadeFreguesiaenviouumcarroaoLardeIdososdeLeiriaparatrazeramãedavítimaàscerimóniasfúnebres.Nãomedemoreiali;custava-meentrarnacapelamortuáriaondeaindanoanopassadovelaraaminhamãe,ejánadapodiafazerporVanessa.

Anoite,noSkype,conteiaClarisseaterrívelhistória.Mastinhatambémboasnotíciasparalhedar;Jaciara,aminhaamigaquetantopenaraemPortugal,terminaraocursodeLetrase,apósváriostrabalhossoltos,alcançaraumlugarnumaeditoraimportantedeSãoPaulo.Apesardaatmosferaderevoltasocialdesencadeadaemtomodaconstruçãodemegaestádiosdefutebolnumpaísaoqualcontinuavamafaltarhospitaisecondiçõesdesaneamentobásico,aeconomiaestavacrescendo.OBrasilnãoselivraraaindadosseushistóricoserros,maspareciamaisencaminhado.

VejonuvensnosolhosdeClarisse.NãogostouqueeufalassedeJaciara.DizqueeupareçocheiodevontadedevoltarparaoBrasil.Brinco:«Porquenão?SóvocêéquetemdireitoafugirparaaAmérica?», mas logo entendo que Clarisse não está mesmo nada virada para a brincadeira. Ferimo-nospropositadamente;asaudadepondoasgarrasdeforadomodomaiscanhestro.Peço-lhequeseaproxime

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maisdoecrãparaolharbemnosmeusolhosedigo,devagar,quenãopretendovoltaraoBrasil,pordoismotivos:primeiro,porqueaamo;segundo,porqueamoPortugal.Clarisseperguntaseémesmoessaaordemexactadosmeusamores;pensaqueaterradaminhamãeéofundamentalparamim.Confessaquenãosabeatéquepontooamorqueeulhedeclaroéverdadeiro;temequesejaapenasumaconsequênciadafragilidadeemqueeuestavaquandonosconhecemos,aoladodocaixãodaminhamãe.Suspiro.Denovoo fantasmado amormorto assombrando aminha felicidade.Desta vez está emcausa o amordaminhavidaenãopermitireiquenenhumaalmadooutromundovenha torpedeá-lo.Aliás,oqueminhamãemaisqueriaeraver-meapaixonadoefeliz.

Clarisse diz que quer acreditarmas temmedo; vivemosmuitos dramas emmuito pouco tempo.Oracionalismo americano e a ausência estão a enfraquecê-la. Explico-lhe que o seu argumento poderiafuncionartambémnasituaçãoinversa:esenostivéssemosconhecidonummomentodeparticularalegria?Nãopoderiaelatambémsuporqueaminhapaixãoporelasedevia,nãoaela,nãoanósdois,masaomeuestadoeufórico?

Omais constrangedor é que, pormuito queme esforçasse, não conseguiria assinalar, nas últimasdécadasdaminhavida,qualquermomentodegenuínaalegria—excepto,precisamente,oinstanteemqueentendiqueamavaClarisse.

«PorquegostastantodePortugal?»—perguntaaminhaamadaportuguesa.Fixooolharemsilêncioaumcantoqualquere reflicto.Éverdade,porquegosto tantodeestar cá? Jácáestouhávinteequatroanos, lembro o entusiasmo e a confiança com que, no Inverno de 1990, submeti o meu currículouniversitário àOrdemdosArquitectos, e o orgulho que senti quando fui admitido, ummês depois.AfaculdadeondemeformeinoRio,aSantaUrsula,era felizmentemuitobem-vistaporcá.Desdeentãopassei de tudo neste país, do sucesso à derrota.Realizei-me.Trêsmeses após a admissão naOrdem,conseguitrabalhonoescritóriodeumarquitectotambémchegadodefora,umretornadodeÁfrica.Cincoanosdepois,crieiaminhaempresa.NosanosbonschegueiadesenharosprédiosdeumaurbanizaçãointeiraemSintra;centenasdepessoasvivemhojeemapartamentosdesenhadospormim.NoBrasiltivebonsmestrescomquemestagieieaprenditudooquesei;aindadesenheisozinhoalgumasrecuperaçõesdecasaseanexos,nadadeimportante.Paraobemeparaomal,fizaquiaminhacarreira.Recordoosprimeirosanos,asdificuldadesdeadaptação,asinvejasprofissionais.Osanosdesolidão—volumosos,compactos—eoseuaprendizadomarcial.Revisitoosamoresqueencontrei,asmulherescomquemvivi—nãomuitas;quediferençadoBrasil.Easviagens,ossabores,oslugares,oclimafrio,osnevoeiros,oencontrocomapartedafamíliaquenãoconhecia,adescobertadasminhasraízes,maisprofundasdoquejamais pude imaginar, na terra daminhamãe,Arrifes.Definitivamente, sempre fui daqui.Vale a penalutarparacáestar,frasequerepetivezessemcontaaquemmediziaquesólherestavaemigrar.Voltoaolharparaoecrã,ondeClarisse,comumsorrisocuriosoepaciente,aindaaguardaumaresposta,edigo,emtomdebrincadeira:«Achoqueédocheiro.EugostodocheirodePortugal.»Ri.AssumologoumtomsérioedigoqueadmirooEstadoSocialque,emtãopoucotempo,apenasquarentaanosdedemocracia,osportuguesesconstruíram.Clarissefranzeabocaeesboçaumsorrisoamarelo.-«OEstadoSocial,casonão tenhas reparado, já está a caminho do museu.» Respondo que, com todas as suas mazelas, osportuguesesconseguiramempoucotemporeduzirimensamenteadesigualdade;nopaísondenasci,quemquersaúdedequalidadetemdepagarcaro,osistemapúblicodesaúdecontinuamuitoaquémdomínimoexigido e a segurança social praticamente não existe. Os europeus estão a dar cabo das suas maispreciosasconquistas,éverdade—masnãochegarãoacometeraloucuradeasatirarparaoporãodaHistória.RiocomClarisse:«Evocêdizquesoueuopessimista.»

Não,nãotenhosaudadesdoBrasilenãosintoafaltadeJaciara.TenhosaudadesdohomemquesópossoserjuntodeClarisse.Felizmentenãomeperguntaporquê;comoeu,sabequeesteamorveioabrir-

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nosaportaparaummundoemquenadanemninguémnospodefazermal.Esteamoréafórmulaquímicadamisericórdiaqueeutantobusquei.

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31-OleilãoOsoalhoimpermeabilizadodoGinásioCentrodeDiadeArrifescobriu-sedecadeirasdeplástico

cor de laranja para a magna reunião que solucionaria o infortúnio da filha de Vanessa. A populaçãoapresentou-seemmassa,condoídaesatisfeitacomasuacontribuiçãoparaobempúblico.Faltouotenroe ávido presidente da Junta de Freguesia, que fizera umas contas de cabeça e concluirá que não lheconvinhamesmonadameter-se naquele assunto.Havia pouquíssimos casais jovens na aldeia, e todostinham,nomínimo,doisfilhos.Eraquasecertoqueeleeamulher,quenãotinhamfilhosnemvontadedeos ter, porque representariam uma despesa e um empecilho na carreira ascensional que projectavam,acabassem eleitos como os pais ideais para a desditosa criança. Além disso, discordava daquelainiciativa,quesearriscavaaatrairasatençõesdacomunicaçãosocial;quantomenossefalassedoqueacontecera na danceteria Princesa,melhor.Andava um homem a estafar-se para valorizar o potencialturísticodaaldeia,osares,oclima,agastronomia,aproximidadedepraias,camposdegolfeedessemonumento histórico que era a vila de Lagar, a tranquilidade, a segurança— e bastava um burgessociumento para destruir a paradisíaca obra que tanto lhe custara a criar.Da qualificação da aldeia—pavimentos,obras, iluminaçãoesaneamentobásico—ninguémfalavanosjornais.QuandofalavamdoCentro de Dia e dos seus serviços sociais, que aliás haviam sido criados pelo seu antecessor, eranormalmenteparaextraíremdelehistóriasdesolidãoepenúriaqueemnadaabonavamasmuitasvirtudesdeArrifes.Assim,mandoudizerquetinhaumareuniãoimportantíssimanaCâmaradeLagar,ordenouàmulherquedessepartededoenteeficasseemcasa,eenvioucomorepresentantedaJuntaumfuncionáriocommaisdesessentaanoseincapazdeabrirabocaempúblico.

AreuniãoseriaorientadapeladirectoradoCentrodeDia,emconjuntocomAlice.ApósumintróitosobreadesventuradaqueridaVanessa,cujapartidaaaldeiaparasemprechoraria,ambasexplicaramnãoterqualquerhipótesedecuidardapequenaCátia,acrescentandoquedecertohaveriaentreospresentesumalongalistadecandidatosàmagnânimatarefadeprovidenciarumfuturoradiosoaumacriança.Alicesugeriuqueoscandidatossemanifestassematravésdométodododedonoar,propondo-seanotarosseusnomes, paraquedepois cadaumexpusesseos seus argumentos e a comunidadepudessevotar.Fez-seentãona salaumsilêncio fragoroso, acompanhadoporumaperfeita imobilidade; aspessoaspareciamconvertidasemestátuas.

Atónita,Alicepôsosóculosdeveraolongeevasculhouasala,embuscadeelementosdesalvação.NãopodiaacreditarqueentreaquelacentenadepessoasnãohouvesseninguémdisponívelparaacolherCátia.«Então,estamosdiantedeumaepidemiadetimidez?»,perguntou,rindo,paraaligeiraroambientee favorecer a eclosão dos sentimentos de culpa. Porém, nem um dedo mindinho se movia. Aliceengrossouotom:«ÉestaasolidariedadedopovodeArrifes?Oquevieramentãoaquifazer?»

Dasegundafilasubiuumfiodevoz:«Euvimparaajudaraescolher,ecomamelhordasintenções,mas tenho três filhos para criar e já não sei como lhes dar de comer todos os dias.» Sucedeu-se umcortejode justificaçõessimilares:oueramvelhos,ou tinhamfilhos,ouestavamapontodeemigrar.OpresidentedaJuntatinhafeitobemascontas.

Nomeiodasala,dobradosobreocadernodeesboçosonderabiscavaincessantemente,Raulpensavaque, seClarisseestivessecomele, talvez lhepropusesseque ficassemcomacriança.SemCátia,nãoteriaencontradoClarissenaquelediaenaquelelugar,precisamentenoinstanteemquemaisprecisavadeapoio.Poroutrolado,CátiaerafilhadeVanessa,eClarissetinhaciúmesdeVanessa.AideiadosciúmesdeClarisseanimou-o;aprolongadaausênciadanamoradalevava-omuitasvezesaduvidardarealidadedaquele amor. Mas teria ele paciência para educar uma criança? Isto já sem considerar o esforço

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financeiro.Nosmomentosdereconciliaçãointerior,sofriapornãotertidofilhos.Sentiraessamelancoliaretrospectiva quando se apaixonara por Clarisse: gostaria de tê-la conhecido mais cedo para quepudessemtertidoumfilhojuntos.Clarissecomentaraque,deumaformaoudeoutra,Raulestavasempreàpescadeummotivodetristeza:quandosesentiaumfalhado,agradeciaàProvidênciaofactodenãoterdescendentes que pudessem lastimá-lo ou envergonhar-se dele; quando se sentia um homem comqualidades,sofriapornãoterfilhosaosquaispudessetransmitiressesatributos.RaulpensavaagoraqueessecomentáriodeClarisserepresentavaumdesviosintomáticodotema:apalavra«filho»seriasempre,paraela,umaferidaemsangue.Piordoquenãoter tidoumfilho,é tê-loperdido.PensounospaisdeLaísenoquartointactoqueelesmantinhamparaafilhaquejamaisregressaria.Pensounomodocomosetinhamagarradoaele,olhando-ocomoumasombratáctildafilha.PensouquetalvezadordeClarissefossemenorseVicentetivessemorrido;serserenegadoporumfilhoéviversobtortura.Pensoudenovonamãeenosirmãos.Pensouquesobreviveraosuicídiodeumfilhoseriaaindamaisduro:umchicotedecondenação perpétua.Ou sobreviver ao desaparecimento de um filho, adormecendo e acordando pelorestodavidasemsaberseacriançaestariavivaoumorta,eoquefariamcomela.Depoisdepensartudoisto, sentiu que uma benigna serenidade se apossava dele, dispensando-o de entrar no jogo de máconsciêncialançadoporAlice.

Ofarmacêuticoentendeuporconvenientedeclararque,senãofosseumhomemsozinho,teriaomaiorprazeremacolherafilhadasuafalecidacolegadedança.Ecoouumburburinhogeneralizadonasaladetecto alto.Raul reparou que o homem trazia ao pescoço o seu precioso cachecol.Teve vontade de irpedir-lho,mas faltou-lheacoragem.Ooutro retorquir-lhe-iadecertoquese tratavadeumpresentedeVanessa.Nãovaliaapena.

OpadreFranciscofezumpequenosermãoapelandoàbondade,àcapacidadedesacrifícioeaoamorao próximo. Uma voz masculina e marcada pelo álcool gracejou: «Senhor Padre, não nos fale desacrifíciosqueparaissojánosbastaaqueleajudantedabruxaalemãeapandilhadele.»Risadageral.Alice apelou ao respeito e à gravidade do assunto em tomo do qual se haviam reunido, e voltou aperguntar:«Nãoháumasóalmanestaterradegenteboadisponívelparaacarinhareeducarumameninalinda?»

Ergueu-se então, de uma das últimas filas de cadeiras, umamulher baixa e forte, de cabelomuitocurto.EraCarlaFontinha,arainhadolicordepêra-rocha,quedisseemvozalta:«Estádecidido.Ficoeucomamenina.»Apósumsegundodesilêncio,asaladesabouemaplausos.AdirectoradoCentrodeDiaagradeceu a colaboração de todos os presentes naquele «acto de cidadania» e manifestou o seucontentamento por se ter alcançado uma tão agradável solução para aquela «questão social». Alicepediu-lhequeviesseaté aopalcoparaavançaremcomosprocedimentos, e, comumsuspiro,deuporencerradaareunião.

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32-OsonhoamericanoAbeleza,conjugadacomasolidão,arrasa.Porqueabelezaéa representaçãoestéticadaverdade,

matériademasiado intensaparaquemestá fisicamente sódepoisde ter renascidoatravésdoamor.Osvermelhos,laranjaseocresdaflorestadeBerkeleyharmonizam-secomonumapintura.TudorefulgenoOutono—épocadeencontroseplanos,quandoomundoparecedisponívelparacomeçardozero,eserperfeito.NasprimeirassemanasdeOutubroopátiodauniversidadeenche-sedebalõesazuiseamarelosparaacolherosantigosalunos,queanimamdiversasactividades—e, sobretudo,vêmcontribuirparadiversosprojectosdeinvestigaçãouniversitária:ohomecomingéumconcentradodepassadoefuturo;aidentidade como soma enérgica doque já não somos e do que ainda não somos.Omelhor da culturaamericanaéestesentidoderesponsabilidade,pertençaegratidãoquetransformacadaex-alunonumpilarda universidade que o formou. Como se um estudante permanecesse para sempre estudante, e auniversidadefosseummododeolharavida,emvezdeummododenosarrumarmosnavida.ÉissooquemeencantaemBerkeley;nãoporacaso,foiaquiquenasceuomovimentohippie,quenãoestátãomorto como se pensa, apesar da praga do espírito competitivo, que também aqui chega a matar. Hátempos,umalunosuicidou-senoprópriocampusporterchumbadonosexames.

Tornei-me amiga de um casal luso-americano, ela portuguesa e ele californiano (que sublinha adesignaçãoregional,dizendoque,«talcomooseuropeus,osamericanosnãoexistem»),maisoumenosdaminhaidade,ambosartistasplásticos;conheceram-sehávinteanosnumfestivaldeartesemBerlimenão voltaram a separar-se. Mais do que inveja, provocam-me esperança; a ternura e o fascínio quedemonstramumpelooutro sussurram-mequeo amordurável não éummito.Vivemcommuitopoucodinheiroe,tambémporisso,decidiramnãoterfilhos:alegamqueasinstalaçõesoupinturasquefazememconjuntosãoosseusfilhos.Elacontaqueosseusamigosportuguesesficammuitoespantadosquandopercebemodespojamentodasuaexistênciaamericana;comoaArtinAmericaouoTheNewYorkTimesescrevem sobre o seu trabalho, imaginam-na a morar nummoderníssimo e amplo loft e a ter toda aespéciedemordomias.Explicaquea ideiade«classemédia»nosEstadosUnidosémuitodistintadaexistente em Portugal— isto é, muitomais pobre. Comento que talvez esteja a deixar de ser assim,porque a classemédia portuguesa foi empurrada para umamáquina de empobrecimento acelerado.Olemaé:empobrecerparaenfraquecer;ossenhoresdaTerrapensamquequemnadatematudoseresigna,alheios aos efeitos da fermentada guerra dos deserdados. Pergunto aos meus novos amigos luso-californianosoqueoslevouaescolheremaAmérica,sePortugallhesparecia—eera,defacto—umpaísmaisfácil.Osseusdoisrostosformamumsósorriso:«Afacilidadeinspiradesalento;emPortugalaspessoaslamuriam-semuito,eperdemumtempoinfinitoemjantaradasenoitadasdecoposafalardascoisasgrandiosasquefariamsetivessemcondições.Aquiaspessoascomeçamafazerascoisasedepoisentãopensamnascondições.Senãoconseguiremfazerumaobraespectacular,pelomenosdeixamasuamarca.Eessasmarcasvãocriandocaminhoseestímulos.»

Pensa-se melhor em conjunto; vive-se melhor em partilha. Voei para longe de Raul agarrada aocobertor do medo: e se aquele amor me decepcionasse? E se não tivéssemos condições interiores eexteriores para a plenitude? Também eu me acoitei na gruta da lamúria, preferindo perder porantecipação a enfrentar um provável basco. Por que razão seria o fiasco mais provável do que afelicidade?O idealismo sufoca-nos; o romantismo à portuguesa é uma forma presunçosa de preguiça.TapeiessemedocomaideiabeneméritadequeaceitaraestetrabalhoparasalvaracasadamãedeRaulegarantirasuatranquilidade.Temosissoemcomum,Rauleeu;oviciodesalvarosoutros.Umpardesnobs insuportáveis, é isso que somos. Pode ser que ainda nos reencontremos a tempo de aceitar

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humildementeesteamorqueveioterconnoscocomoumprémioinesperado.Jálávãodezmeses.Faltamapenasmaisdois;regressareiaPortugalnoiníciodoano.

Vicente virá passar oNatal comigo; apenas dois ou três dias, que o lagodos tubarões não lhe dádescanso.Semprequenosdespedimosfico reduzidaa lágrimasduranteumasemana.Choroasaudadefísica do corpo dele, choro a decepção das nossas conversas. E a culpa, o ressentimento, o ciúme, aingratidão— um séquito de sentimentos venenosos como um ninho de serpentes de que não consigolibertar-me. Os meus diálogos com o meu filho são cada vez mais superficiais; ambos evitamos asinevitáveisdiscussões,oquemeentristece.Jánãotemosintimidadesuficienteparanosbatalharmos;efoioVicentequeminaugurouessastréguascerimoniosas.Semprequetentoquebrá-las,suspiracomardeenfado:«Mãe,nãovousequerdiscutircontigo,nãovaleapena.»Sequer.ForGod’ssake,dizomeufilhoamericano.Omeufilhoúnico.Asnoitesemclaroaembalá-lo,osbanhos,ashistóriasaoadormecer,omercurocromonosjoelhos,osmergulhosnapraia,ocoloondesarouasprimeirastraições—omeufilhofala-mehojecomosenadadissotivesseexistidonunca.Evocoestaouaquelamemóriadeinfânciaeeleresponde-me,descontraidamente,quenãoselembradenada.Temvergonhadeserfilhodeuma«lírica»;é assimqueme define, para ser simpático.Mais do que isso: temvergonha de ser português, porquePortugal éumsitio embaraçosamente lírico.Este filhoquecausouaderrocadadasminhasmamaseoamolecimentogeraldomeucorpoparececaídodeumanaveespacial.Lembro-medeterpensadoissonomomentoemquemopuseramnocolo,quandonasceu:muitomorenoepeludo,acabeçagrandeebicuda,decabeloshirsutosemãosgrandes,nãoo teriam trocadocomo recém-nascidodaparturienteaomeulado?Nãodissepalavra,masamédicaleuadúvidanosmeusolhosapavorados,edisseme,rindo:«Éseu,sim.Nãosepreocupequeessapenugemcaieamoleirinhaarredonda.Daquiaunsdiasoseumeninoficará lindo, vai ver.» Ficou lindo e igual ao pai. Com os olhos ligeiramente mais claros e o narizarrebitadonaponta,igualaomeu.

Sentia-meumamãedesnaturadasemprequeliaaquelasentrevistasondeasvedetasdistooudaquiloconfessamqueomelhormomentodassuasvidasfoiodonascimentodosfilhos.Recordo-mequeumadelasatécomparavaopartoaumorgasmo.PelosvistoseraeuquemtinhacaídodeMarte:dopartoedoprimeiromêsdevidadoVicentenãoguardavaqualquerreminiscênciagalvanizante;apenasdor,solidão,medo e desespero. O encantamento manifestou-se devagar—e nunca em doses tão generosas que mealiviasseporcompletoosofrimento.Vicentedormiapoucoese,poracaso,calhavaquedormisseumanoite seguida, era eu quem acordava em pânico e saltava da cama para ver se ele estava a respirar,temendoamisteriosasíndromadamortesúbitaquevoltaemeiaseabatiasobreosberços.

Seiquedeviasubstituirestespensamentosememóriasquemedilacerampelosaudávelexercíciodadisciplinamental:crieiumfilhoautónomo,responsávelefeliz.Deveriaestarcontentecomaminhaobra,emvezdedesejarqueseassemelhassemaisamim. IstomesmomedizRaul,acrescentando:«Mesmoporque igual a você não é possível que exista alguém.» Este elogio bem-intencionado atiça-me aimpaciência; respondo-lhe que agradeço os conselhos providenciados pela sua larga experiência depaternidade,eRaulapressa-seapedirmedesculpa,acrescentando:

—Porfavor,nãobriguecomigo.Nos últimos meses, de facto, brigamos cada vez mais. Sorrio pensando nos teóricos da função

terapêuticadadistância.Tantasteoriasparatãopoucoamor.

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33-UmdesejodeeternidadeNavésperadoanoanovo,omaridodeRosáriorezavaparaqueDeuslhesconcedesseaventurade

ganharoEuromilhões,oupelomenosumaterminação,paramandarconsertarotelhadodacasa,queaelesobrava-lheaidadeeescapava-lheaenergiaparafazeressetrabalho—esobretudoparaquepudessemlançar-seaumaviagempelomundo.JásecontentavaemiratéàIrlanda;tinhamhospedagemgarantidaem Limerick, em casa de uns amigos irlandeses que haviam conhecido há dois Verões na Praia dasRaposas.Oirlandêsafoitara-senomarsematentarparaaviolênciadascorrentes,eomaridodeRosáriometerasenasondaseconseguirapuxá-loparaaareia.Dalinasceuumaamizadeprofunda,depoucasmassólidaspalavras,porquenemRosárionemErnestoerampropriamentefluenteseminglês.

—Bemmerecíamosomilagredealgumdinheirinhoextra,mulher.—Chegadecismaremmilagres,homem.Milagrebastanteéestarmosnósaindasobrea terra,não

entendes?NãoteesqueçasqueestanoitetemosdeiràinauguraçãodaexposiçãodoRaul.Rosário estava cheia das ladainhas domarido. Com o aproximar da velhice dera em sonhar com

milagrescomoquemfazcontasdemercearia;tornara-setãobeatoqueRosáriosentiaumrastodeincensoquando se aproximava dele.Na cama, a beatice esfumava-se-lhe num instante— valia-lhe isso.MastinhasaudadesdocheiroatabacoevinhocarrascãoquesedesprendiadeErnestoquandooconhecera—umcheiromásculoque lheexcitavaaquelapartedaalmaquecaminhamaisencostadaàpele.Rosárioduvidavaquehouvesseoutra:umaalmadesligadadosapetitescarnais,flutuandopelatralhainteriordecadaumcomoumanjocumpridorecontroleiro.Aalmaéumacoisa sujade sangueememórias,umacoisaqueaidadetornacadavezmaispesada,comooestômagoouaspernas.TomaraafeiçãoaErnestoporlheparecermaislivredoquetodosalidaaldeia.Ograndepredadorlocaldeixara-seconquistarporela,queseconsideravaumaartistafalhadadasedução.

— Estuda, menina, estuda bastante para arranjares um bom casamento— nunca esquecera estaspalavrasdamãe,tremidas,noabraçoemqueadespacharaparacasadatia,lálonge,nacidade.

Rosário nunca conseguira ganhar amor aos estudos, mas ganhara amor a um Alberto electricista,bastantemais velho.Entregara-se-lhe tanto que se sentira quase bonita, comos olhos acesos e a pelemaciacomosetivessesidocriadaentrecremesesedas.Aprenderaasublinharanegroosolhosparaopuxar para dentro do incêndio da sua paixão. Ele dizia-lhe que encontrara nela a sua alma gémea, eRosáriocaíranessafé.Porém,navésperadeumapassagemdeano,confessara-lhequenãopodiafestejarcomelaporquejáeracasadoetinhaumfilho.Rosárioestavanuaetranspiradanosbraçosdele,numacasaquepensavadeleeafinaleraemprestadaporumamigo.Enquantoprocuravaaroupa,decócoras,nochão, jurouquenuncamaispassariaporumahumilhaçãosemelhante.DeambulouatéaonascerdoSolpelasruasdesertasdacidade,embriagando-sedeprédioseprogressosinacessíveis,eregressouàaldeianessemesmodia.

Oamornãolhepassoutãodepressaquantoafúria:agarrava-seàquelaideiadaalmagémeaquelheacendia no sexo uma rede de electricidade. Serviu-se do prazer que Alberto lhe revelara para aalfabetização erótica de Ernesto, que era nula. Ernesto casara comRosário em estado de virgindadequantoaodesejofeminino:nuncasequerlheocorreraquetalmatériaexistisse;menosaindaquepudesseampliardeummodotãoconcretoasdelíciasdosexo.Aprincípioassustou-se:perguntavaasimesmocomopodiaterumasómulheracapacidadedelheapresentartãovariadasversõesdoparaíso.Mallheviravaas costasdesatavaa sofrer e tinhaganasdea amaldiçoarpor esse feitiço.Todasasoutras lhepareciamde repente esboços imperfeitosdeRosário, aopontodeperder avontadede as subjugar.OdeslumbramentoporRosáriovirara-odoavesso,elevariaavidainteiraaacostumar-se,semsossego,a

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essarevolução.Comotempo,Rosárioreconciliou-secomamemóriaamargadoseuprimeiroamor;deviaaAlberto

o conhecimento do prazer, a consciência das possibilidades do seu corpo de mulher. Em algumasocasiões lograramesmo encontrarAlberto no corpo deErnesto.No dia-a-dia, enervava-a a distânciainsuperável entre um e outro; peguilhava com Ernesto por insignificâncias, invejosa do excesso defelicidadedomarido.Ernestoaceitavacombonomiaessessaltosdehumor,isoladonofilmeluminosodasua própria paixão. Alquebrado pela idade e por uma vida de trabalho, continuava a desejá-la, e oslimitesdocorpoateavam-lheacriatividade.Amavacadaumadaspregase rugasdocorpodamulher,percorria-lhecomdedosvagarososcadacurvae recanto, lavava-acoma línguaatéadeixarbrilhantecomoumapedrapreciosa.Quandofinalmenteentravanelasentia-seumjovemcomasas,umanjolúbricoemêxtasecelestial.Umaboapassagemdeanoseriaessa:meter-sedentrodasuacasa,amulheramada.Emvezdisso,tinhamderumaràexposiçãodovizinho.Umacanseiraeumachatice.

GostavadeRaul,masnãotinhaqualquerinteresseporpintura.AlémdequeLagarnavésperadeAnoNovoestariabarulhento.

Falava em viajar para agradar a Rosário, que muitas vezes dizia que tinha pena de morrer semconheceraspirâmidesdoEgiptoou,pelomenos,aCapelaSistina.Aele,naverdade,nãolhefaziafaltaconheceromundo.Tudooquelhefaziafaltaestavaali.Aocontráriodamulher,nãosofriapornãotertidofilhos;alegrava-sepornãoterdedividirRosáriocommaisninguém.Filhosenetoseramralaçõesedespesas;nahoradadecadênciaempacotavamavelhariaemlareseescabichavam-lheoshaveressemsequer aguardarem pela hora da morte. Ernesto tinha uma caçadeira, não tanto para se defender dosladrões,quenenhumseafoitariaairtãolongeportãopouco,masparagarantirquemorreriaassimqueRosáriosefinasse,casoDeusousasseagrosseriadealevarprimeiro.Pediraàmulherquelhefizessegentilezaidênticaseamorteoescolhesseantes.RosárioargumentaracomazangadeDeuscontraosquelheroubamopoder.

—Nãoteapoquentes,mulher,DeusdistingueosquesematamcontraEledosquesedeixammorrerdeamor.OprópriofilhoDelesedeixoumatarparanossalvar.

RosáriodisselhequeelebaralhavaosentidodaBíbliasagrada.Semorressemosdois,entãooquehaviadeserdasgalinhasedoscincocães?Ernestotornavaqueosvizinhostratariamdabicharada,eleéquenãopodiaentrarnocéusemalevarpelamão.

—Falamosdissomaistarde.Nenhumdenósestáparamorrerhoje—eraarespostadela,prontaamudardeassunto.

NistoiaoúltimodiadeDezembroadiantado.Raulinauguravaàsseisemeiadatardeasuaprimeiraexposição em Lagar; ainda considerara propor ao galerista um adiamento para meados do mês deJaneiro,depoisdoregressodeClarisse,masahipótesedevenderalgumacoisaaosturistasdefimdeanofaloumais alto.Talvez aquela exposição, precisamente naquele dia derradeiro, significasse que a suasorteestavaamudar.Pormaisquepoupasse,aindanãoconseguirajuntarnemmetadedosvintemileurosquelhepermitiriamficarcomacasadamãeecomeçaraesquecerainsensibilidadedosirmãos.Tinhavendidoalgunsquadros,masapreçosbaixos;eosprocessosquemoveracontraaGazetadasTermasecontraos jornaisdeLisboaquehaviamreproduzidoadifamaçãopublicadanaGazetacontinuavamembanho-maria, não percebia se por falta de empenhamento do advogado ou pela secular lentidão daJustiça.CarlaFontinhaencomendara-lheumprojectodealargamentodafábricadolicordepêra-rocha;outraboanotícia.Noentanto,Raul temiaqueCarladesistissedoprojectoequeaexposiçãofosseumfalhanço total; estava acostumado a descobrir que os seus sonhos e projectos eram afinal feitos denevoeiro. Clarisse voltaria mesmo? Nem disso estava certo. Há dias, Alice dissera-lhe, num tombrincalhão,quedeviapintarmenospaisagensemaispessoas,designadamenteasraparigasbonitasque

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passavam à sua frente em Lagar, para compor a sua vida: «A Clarisse, rapaz, esqueça; já deve terarranjadoporláumgringo.Segostassemesmodesi,nãosetinhaidoembora.Aquiloépássarourbano;eubemdiziaàpobredaLupequenãoselheafeiçoassetanto,queaquiloeraavedearribação.Atéhojechoracomsaudadesdela,avelhota.»

NãosepodiadizerqueRaulpintasseexactamentepaisagens;pintavarecantosdesertosderuascompapéis e folhas de árvore voando, casas vazias, espelhos onde se reflectiam árvores nuas, a velhabancadadecozinhadacasadasuamãe—excertosderealidadesquevelavam,silenciosas,àmargemdamemória.Háunsmesesmetera-seafazerumacolecçãoderetratos;ogaleristaqueagoraiaexporassuastelasdesafiara-oaocuparagaleriaduranteduassemanas,porqueoartistalisboetaquetinhaagendadopara aquela data se atrasara na entrega das obras. Raul não tinha então um corpo de trabalho comconsistênciabastanteparaselançaraumaexposiçãoimediata,masocorreu-lheumaideiaatrevida;abriragaleriacomasparedesvazias,exortandoos transeuntescomaseguintepalavradeordem,em letrasgarrafaisnasparedes: «Retrate-se!»Ládentro, o artista aguardavaosmodelos, diantedeumcavaletecomumafolhadepapelembranco.Quemquisessecomprariaoseupróprioretrato;osquenãofossemcompradospelosmodelosseriamexpostosparavendanasparedesvazias.A iniciativa foiumêxito—também,maisumavez,porqueRaulpediapreçosbaixos.Receavanãovendernadaseexigissemuitodaclientela.

ApopulaçãodeArrifessurgiuemromagemorganizadanainauguraçãodeRaul,oqueocomoveu;eraaindaumahomenagemàsuamãe,cujaalegriaedisponibilidadeaspessoas recordavamcomsaudade.Mas era também a demonstração de que estavam do seu lado; a cobiça dos restantes filhos deDonaJacinta em relação à casa para a qual nunca haviam contribuído despertara na aldeia uma onda desolidariedade em relação a Raul. A história do projecto arquitectónico que a Câmara de Lagar lhepropuseraeretiraraeapartidadeClarissecontribuíramparareforçaressateiadecompanheirismo.AtéoZédasMurtasveiodizer-lhe:«SeosenhorRaulnãovenderosquadros,sabequecontasemprecomumamalgadesopaláemcasa.»

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34-RaulearedençãoRabisco,desenhoepinto.Trabalhohádias, freneticamente,aosomdeDonGiovanni,que tocaem

contínuo das colunas do computador. Esta ópera ajuda-me a criar. Identifico-me com todos ospersonagensmasculinos, tenhoumpoucodeles todos.O sedutorDonGiovanni, quenunca se contentacomnadanemninguém.OsemprecobardeLeporello.OvingativoeimplacávelComendador,primeirovítimaedepois juizealgoz.OtraídoMasetto,oapaixonadoDonOttavio.Aliás, todososhomensqueconheço e que gostam de ópera elegem Don Giovanni como a melhor. É inevitável, quase todos osdramas e tipos masculinos estão ali retratados. Rafinha não tem paciência para ópera. Se gostasse,identificar-se-ia somente com Don Giovanni; o personagem é a cara dele. Porque penso ainda emRafinha?Porqueaindanãoconseguipagaropreçoparadeixardepensar.

Será?Quandopagaracasaesseirmãoquemeperseguedesaparecerádaminhacabeça?Erabomquepudéssemoseliminardosarquivosasrecordaçõesindesejadas.Maselassãotambémaspedrasdanossaestrada.MesmoquejamaisvolteafalarcomRafael,seiquenãomelivrareidele;crescicomeleecontraele.Atéamemóriademinhamãetemolastropesadodessemeuirmão.

Tenhodeabandonarovíciodador,éumaespiralqueparecenão terminar.Finalmenteencontreiaminha terra, omeu lar. Na casa torta e degradada daminhamãe sinto uma serenidade de que nuncausufruíquandomoravaemcasasnovasecómodas.Façoplanosmentaisderemodelaçãodestacasa;àsvezespensoqueoidealseriareconstruirtodoointerior.Nãotemlógicaque,parasechegaraoúltimoquarto,tenhamosdeatravessarasdivisõesanteriores,nemqueacasadebanhosesituenoladoopostodoquartodedormir.Mas,nessecaso,maisvaleriacomprarumaoutracasa—eomeucordãoumbilicalcontinualigadoaesta.Nãomexernasuaplantaéquasearte,acasapassaaserumainstalação.Éumacasairracional,bisonhaecomumavistasurpreendente.Condizcomigo.

Hojeestoufeliz.OntemànoiteClarissedissemenoSkypequevoltadaquiaquinzedias,atempodafesta da aldeia. Tantas noites de insónia imaginando que ela já não voltaria. Congeminava que umamericano bem-falante, louro como ela, a seduziria. Em Arrifes davam como certo que eu foraabandonado;acarinhavam-memaisporisso,comumacompaixãoquememortificava.Odeiocausarpena;éograuzerodorespeito,emboraaspessoasnãofaçampormal.Coitado,ninguémoquer.Coitada,fugiudaqueleenguiçoambulante.

Seiqueaautodepreciaçãosóagravaosmeusproblemasequeninguémacreditanoamordealguémquesejulgaindignodeseramado.Pensoqueaminhaamadaaindaveráaminhaexposição,esinto-meorgulhoso.Nãovoltareiadeixá-lapartir.Clarissedisparaoritmodomeucoração-,comosecomelaeufosseumDonGiovanniqueobteveoperdão,quevoltadoinferno,redimido.Oamoréisso,redenção.

Oqueme fezpermanecer emPortugal foi essanecessidadede redenção.Hoje acreditoquevolteiparacumprirumdesígniodomeuavôArtur;depoisdeserpelasegundavez rejeitadopelaminhaavóMargarida, nuncamais regressou. Quantomais envelheciamais recordava histórias e locais do país.Morreu de pneumonia em 1978.Aos setenta e nove anos, já estavamuito velho e doente para podertestemunhar o seuPortugal na democracia.Guardo namemória os almoços de fim-de-semana para osquaisovelhotenosconvidavaquatrooucincovezesporano.CreioterconhecidonainfânciaquasetodososbonsrestaurantesportuguesesdoRiodeJaneiroedeNiterói.Minhamãevestia-nosmuitobemelátomávamosumtáxi.Nuncalembrodemeupainestesalmoços,ouporqueevitavaestarcomosogro,depersonalidade difícil e antigo chefe da oficina do jornal, ou porque já não vivia connosco. Estesrestaurantes eram verdadeiros templos dedicados à memória de Portugal; entrávamos e parecia quetínhamos atravessado o Atlântico. O ambiente era deliciosamente frio, devido ao potente ar

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condicionado; contrastava com o calor húmido que assolava a cidade. Lembro-me em especial doTimpanas, naRua São José; era omeu preferido, porque tinha bonecos no logotipo: um alentejano acavalo. O avô Artur, sempre de paletó e gravata em tons escuros, acabava os almoços, em geral,embriagado— debaixo dos protestos daminhamãe— e com os cabelosmuito finos e rebeldes emligeirodesalinho.FalavadePortugal,quereafirmavaserumaterra«defomeemiséria»,comoqueparase convencer da inteligência da opção que tomara. Jacinta era forçada a ampará-lo até ao táxi. Hojepensoque,alémdealgunsressentimentoscontraaterrade«fomeemiséria»quedeixaraparatrás,talvezo velhoArtur carregasse também a culpa pelos insucessos da vida da filha que tirou ainda bebé dosbraçosdamãeparaqueoacompanhassenaaventuradaemigraçãoeque,depois,entregouaoscuidadosdamulherdoseupai.Umafilhaquetãopoucoamorrecebeunainfânciaequetevedesereinventarparadaramoraosfilhos.

NoseuapartamentoemSantaTeresa,visitadoporamigosescritoresouartistascomoJorgeAmado,BarãodeItararéeAugustoRodrigues,oprofundamenteateueanarquistaArturSousamantinhaumúnicosantuárioderecordaçõeslusas:avitrola.Nenhumdosquadrosdaparedenemnenhumdosobjectosdasua casa aludia a Portugal, excepto os discos*, as piadas de Raul Solnado, as vozes de AmáliaRodrigues,AlfredoMarceneiroeoutrosfadistasquefalavamàsuageração.Procuravaouviremanteroregisto sonoro da lingua: o sotaque português que conservou sempre. A par dos discos, também láestavamas estantes recheadasde livros-,mas a literatura em línguaportuguesa, seja eladoBrasil ouPortugal,jáéumamemóriacomum,apátrida.

SintoqueoavôArturmeincumbiuderesgatarasuaidentidade,sejaláissooquefor.Comoseeuvivesse aqui em sua homenagem.Minha relação comClarisse vinga a relação falhada dosmeus avósportugueses.Gostodofrio,doInverno,dadesconfiançapreventiva,doespiritopassadistaedoapegoàsrecordações.Sempregostei.Achoquenascimaisportuguêsdoquebrasileiro.AjuventudeeufóricaqueoBrasil gosta de exibir esvaziava-me. Nunca consegui ser um jovem parecido com o Brasil. Sorrio,pensandoemPortugalcomoumpaísadolescente,queenvelheceusempassarpelasagrurasdajuventudenemdamaturidade.Umpaísfundadoporumrapazemguerracomamãe.Sorrio,devaneando,comumapresunçãogalopante,quevimtambémparavingaresselaçoquebradoentremãeefilhoquetornouestepaísoreinodamelancolia.Umpaísàminhamedida,quecomeçatudoenãoacabanada;umpaíssempressa,queresisteháquasemilanoscomasmesmasfronteirasporquevivecomosefosseeterno,comumheroísmode improvisoqueéuma formade sabedoria.Mantiveo sotaquecarioca,masmisturoassintaxes de Portugal e do Brasil; falo um português de caldeirada, sou um acordo ortográficoatabalhoado,umportuguêsabrasileiradoqueninguémreconhececomo tal.Masnenhumportuguêsquerser apenas português-, todos eles, como eu, sofrem de um complexo de inferioridade superior ou desuperioridadeinferiorquelhespermitecriarumasinuosaempatiacomoqueéestranhoediferente.Osmeusfilhossãoosmeusavós,aminhamãe,cujasvidasvenhocompletar.Osmeusfilhossãoaquelesdequemeutomoconta;tomarcontaéumaactividadequefazpartedoquotidianoportuguês.Estepaísquesediztristeéafinalumlugardeconsolação.

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35-PlanodepormenorSobre o aro de metal cor de laranja pousa uma abelha, zumbindo. O vidro da lente direita está

rachado; uma mosca varejeira tacteia a superfície transparente e irregular. A queda daquele objectoimprevistomovimentaacuriosidadedosinsectos.Asformigasdesviamoseucarreiro.Unsmetrosmaisadiantedeparar-se-ãocomumobstáculodedimensõesmuitomaiores.Sobemporpregasecurvasdepelerosadaeencontramumamassaesponjosapintadadevermelho,redonda,comumburaconomeio;atintavermelha é doce e molhada; algumas formigas fazem uma pausa para a provar. Depois avançam,descendodenovopelapeleatéàterraondebuscarãosementesemigalhasparaarmazenar.Atraídaspelatransparência das córneas, as moscas pousam em redor dos olhos abertos, quase estáticos, de íriscastanhas.Unsolhosqueduranteosúltimossetentaecincoanoshaviamsidoluzemacção.Umpequenorafeirocastanho-claro,ganindoinsistentemente,lambeorostodamulhercaída.Ocãosentenalínguaoestremecimento da dona. Pombos e pardais saltitam em tomo do corpo, arrulhando e trinando. Seencostássemosoouvidoàterra,ouviríamosaindaoutrosruídos;orestolhardasbaratas,amastigaçãodaslesmas, a queda ocasional de uma folha de árvore ou de um fruto, o eco dos automóveis, na estradaprincipal,umascentenasdemetrosadiante.Masnãoseavistasequerasombradeumserhumanonestepedaço demato onde o corpo deAlice acaba de tombar, no regresso de umpasseio pelo campo.Ascalçaseacamisabrancaqueenvolvemocorpocaídofaíscamnomatoqueimadopelosol.Éumatardededomingo;aaldeiadeArrifesdormeasestaoufazadigestãodoalmoçomelhoradoquecomplementaamissadomeio-dia.Daprimeiracasadaaldeia,umamoradiabrancacomjanelasdebruadasaazul,sobeum choro de bebé; duas ruas adiante, o silêncio é entrecortado por gritos de homem e de mulher,misturados como somde loiçaquebrando-se contra asparedes.Do interiordoCaféCentral sobeumburburinhoassimétrico,compostopelasvozesdosclientesedoscantoresdatelevisão.

AsmãosredondasepequenasdeClarissebrincamcomosdedosfinosecompridosdeRaul,sobreamesametálicadeumaesplanadadeLagar.Cumprem-sehojedoisanossobreodiadoseucasamento,napequenaigrejamaneiristadeArrifes,aoladodocemitérioondejazemJacintaeasuamãeMargarida.Aideiadecasarem,não,deummodogenérico,pelaIgreja,masexactamentenaquelaigrejaecomabênçãodopadreFranciscopartiradeClarisse;dessemodo,Raulsentiriaaproximidadeeoconfortodamãe.Clarissearrendouasuacasaaumcasaldereformadosalemães;oturismocrescedeanoparaanonazonadeLagar.Aspoupançasconjuntaspermitiram-lhesnãosócomprarametadedacasadeDonaJacintaquelhesfaltava,comofazeremasprimeirasobrasepinturasnecessáriasaorenascimentodotãoentristecidoCasaldaBelaVista.

Joaquim,oempregadodemesa,explicaàstrêsinglesasquesesentamnamesaseguinteàdeClarisseeRaulquePortugalelegeupelaprimeiravezumamulherparaaPresidência:«amoderncountry,see?»As três cabeças louras estremecemde riso.Asmãos rechonchudas deCátia tapamos olhos deRaul:«Cucu!Não adivinhas quem eu sou!»Raul entra no jogo: és aBranca deNeve, és aBruxaMá, és oCapuchinhoVermelho,ésameninamaisfeiadeArrifes.Cátiari-se,chama-lheparvo,informa-odequeparacastigovaiterdelhefazerumdesenhoemqueaBrancadeNeveestejaabaternoLoboMau.Gostaqueashistóriasentremumasnasoutras.Caemmoedasnochão;otrocodogeladoqueCarlacompraraparaafilha,equeJoaquimapanha,gentilmente,paralhedevolver.Umriodesandáliasesapatosdeténisestrangeirospreenchemacalçadapedregosaeirregulardavila.«Beautiful»Joaquimfazdeamplificador,enquanto recolhe as últimasmoedas debaixo das solas dos passeantes. «Beautiful!Beautiful country!»Cátiarodopianoseuvestidofloridodealgodãoenquantofiscalizaaexecuçãododesenho,anunciandoque quando for grande vai ser bailarina.Raul sorri, lembrando-se deVanessa na danceteria Princesa,

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entretantorebaptizadacomoOásis.OsdedosdeRauldesenhamaprincesaeolobonumguardanapodepapel.Cátiaexigequeosdentes

do lobo sejammaiores. Joaquim poisa namesa, ao lado das chávenas de café, o jornal do dia, casoqueiramdarumavistadeolhos.Clarissearregalaosolhosdiantedotítulodecapa:«Meninoretiradoàmãeconfirmaosabusosdopai».Omeninoatingiraentretantoosdezasseisanosedecidiradenunciaropai. O mesmo pai que a processara, levando-a à ruína e ao encontro de Raul. O menino suportaraentretanto anos de abuso, semqueClarisse pudesse fazer nada contra isso. Pelomenos tentara.Carlapergunta a Raul se tem notícias do seu julgamento contra as gazetas difamantes; mas ainda não. «Éprecisopaciência»,dizClarisse,acariciandoabarbagrisalhadeRaul.«Tantapaciênciaparatãocurtavida»,concluiCarla,beijandoCátia,quesesentaraaoseucoloparadesenharumabailarina:«Ajudas-me,Raul?»EnquantoamãodireitadeRaulsesobrepõeàpequenamãodacriançaecomeçaaesboçarocorpodabailarina,orafeirodeAlice,aoitoquilómetrosdali,desistedeganiredelamberorostodadonaecorredesesperadamentenadirecçãoda igreja.Ladra furiosamenteàportadopadreFrancisco,puxa-lheascalçascomosdentes,forçando-oaqueosiga.Alicechamapelomarido,quejánãolhepodeacudir.Estánasuamachambaaapanharsol;masparaondefugiramtodos?Ondeestáomainato?Querchamá-lomasnãotemvoz.Ouveoslatidosdoseucãozinho.Chamapelomarido;sorriquandoovê;umrostodehomemdobra-sesobreelaediz-lhequetudovaificarbem.Alicesabiaqueeleviriaantesqueosolamatasse.Otornodomundovoltaarodar.

Ericeira,29deMaiode2014

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AGRADECIMENTOSAgradeçoaCecíliaAndrade,GilsonLopes,MariaManuelViana,PatríciaReis eThomasColchie

leituraspréviasdesteromanceeaspreciosassugestões.