Introduçao ao Pensamento Jurídico - Karl Engish

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INTRODUO AO PENSAMENTO JURDICO KARL ENGISH *** KARL ENGISH INTRODUO AO PENSAMENTO JURDICO 6 edio FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN --(Contracapa) INTRODUO AO PENSAMENTO JURDICO Karl Engish Nascido em 1899. Doutor em Direito pela Univ. de Giessen (1924). Prof. extraordinrio da mesma Univ. em 1929. Prof. catedrtico da Univ. de Heidelberga em 1934 e de Munique em 1953. Tem regido as cadeiras de Direito Penal, Processo Penal e Filosofia do Direito. Obras publicadas: Untersuchung ber Vorsatz und Fahrlssigkeit im Strafrecht, 1930. Die Kausalitt als Merkmal der strafrechtlichen Tatbestand, 1931. Die Einheit der Rechtsordnung, 1935. Logische Studien zum Gesetzesanwendung,1943 (2 ed., 1960). Euthanasie und Vernichtung lebenswerten Lebens in strafrechtlicher Beleuchtung, 1948. Vom Weltbild der Juristen, 1950. Die Idee der Konkretisierung in Recht und Rechtswissenschaft unserer Zeit, 1953. Die rechtliche Bedeutung der rtztlichen Operation, 1958. Joo Baptista Machado Nascido em 1927. Doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1971), onde foi professor auxiliar. Desde 1973, professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, onde exerce as funes de professor catedrtico desde 1979. Regeu as disciplinas de Filosofia do direito e do estado, Direito internacional privado, Introduo ao direito, Direito das obrigaes e Instituies de direito pblico. Alguns trabalhos publicados: Sobre a aplicao no tempo do novo Cdigo Civil, 1968. mbito de eficcia e mbito das competncias das leis, 1970. Lies de direito internacional privado, 1974. Participao e descentralizao, democratizao e neutralidade na Constituio de 76, 1982. Introduo ao direito e ao discurso legitimador, 1983.

--KARL ENGISH INTRODUO AO PENSAMENTO JURDICO 6 edio Traduo de J. Baptista Machado FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN / LISBOA --Traduo do original alemo intitulado: EINFHRUNG IN DAS JURISTISCHE DENKEN Karl Engish 8., neu bearb. Auflage, 1983 VERLAG W. KOHLHAMMER GmbH. Stuttgart Reservados todos os direitos de acordo com a lei Edio da FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN Av. de Berna / Lisboa --7 PREFCIO Uma "Introduo ao pensamento jurdico" prossegue finalidades diferentes das de uma "Introduo cincia jurdica" que, usualmente, uma introduo no s aos mtodos do pensamento jurdico mas tambm uma introduo ao prprio Direito e aos seus diferentes ramos. No presente livro, porm, trata-se antes de familiarizar um pouco o estudante de Direito e, quando possvel, tambm o leigo interessado, com essas coisas misteriosas e suspeitas que so a lgica e a metdica do pensamento jurdico e, mesmo assim, limitando a exposio aos problemas centrais da heurstica jurdica (Rechtsfindung) e abstraindo, portanto, das elaboraes da dogmtica "mais elevada", como, p. ex., a construo e a sistematizao jurdicas. Sob este ngulo, e apenas sob ele, foram tratados os problemas jurdico-materiais includos na exposio. Na revista "Studium Generale", 1959, pp. 76 e ss., tive ocasio de me pronunciar mais detalhadamente sobre as tarefas com que se defrontam a lgica e a metodologia jurdicas. Aqui apenas quero salientar o seguinte: A lgica do jurista uma lgica material que, com fundamento na lgica formal e dentro dos quadros desta, por um lado, e em combinao com a metodologia jurdica especial, por outro lado, deve mostrar como que nos assuntos jurdicos se alcanam juzos "verdadeiros", ou "justos" (correctos), ou pelo menos "defensveis". Uma lgica e metdica do jurista assim entendida no uma "tcnica" que ensine artifcios conceituais com cujo auxlio se possam dominar do modo mais expedito possvel

as tarefas de pensamento que se deparam ao estudioso do direito. Ela tambm no psicologia ou sociologia da heurstica jurdica, a qual indaga como se conduzem de facto as pessoas na prtica quotidiana ao adquirirem pontos de vista jurdicos. Constitui antes reflexo sobre o processo de conhecimento jurdico especificamente correcto, o que no coisa de fcil penetrao. Ela esfora-se por alcanar (nos limites do que ao conhecimento humano possvel) a meta de descobrir a "verdade" e emitir juzos conclusivamente fundados. O verdadeiro texto deste livro permaneceu substancialmente o mesmo desde o seu aparecimento no ano de 1956, muito embora vrias edies tenham sido ajustadas, no s nas anotaes mas tambm no texto, s evolues da legislao, da jurisprudncia e da teoria. A sexta edio (1975) foi apenas uma reimpresso da quinta. Seis anos aps o aparecimento desta ltima (1971) posso agora uma vez mais apresentar uma edio revista, numa reviso que, no entanto, de novo incide na sua mxima parte sobre as anotaes, nas quais tiveram lugar numerosos desenvolvimentos e esclarecimentos que tomam em conta a situao actual. No texto s introduzi alteraes em algumas passagens, sobretudo naquelas em que novas disposies legais o exigiam. Pelo que respeita teoria da discricionaridade (Captulo VI), porm, a evoluo entretanto operada na teoria e na prtica motivou-me a uma nova elaborao das minhas ideias. Em especial no que respeita s anotaes, devo dizer que, nas amplas panormicas bibliogrficas, tive como at aqui em vista a sucesso cronolgica do aparecimento das publicaes citadas, e no a ordem alfabtica dos nomes dos autores. Isto pode dificultar a procura dos autores, mas permite uma viso de conjunto da evoluo histrica da lgica e da metodologia jurdicas, que to dinmicas tm sido nas ltimas dcadas; pois no deixa de ter interesse verificar que bibliografia os autores mais recentes j encontraram antes de si e como a valoraram. Todavia, para facilitar ao leitor a descoberta de um autor, quando das remisses feitas em notas posteriores para as notas anteriores mais extensas, acrescentei, aps a frmula usual "ob. ant. citada" alm do nmero da nota para que se remete, tambm os algarismos do ano da publicao do trabalho em causa. Isto de ter em conta nomeadamente na remisso para a gigantesca nota 57. Alm disso desta vez assinalei com um * aquelas anotaes que contm desenvolvimentos substncia do texto, para que o leitor sem interesse pelos meros dados bibliogrficos possa deixar de lado as anotaes a que estes respeitam (*). Estas ltimas so destinadas quele leitor que deseje ir mais fundo e queira cotejar os diferentes pontos de vista. Julho de 1977 O Autor

(*) S as notas assinaladas presente traduo (N.T.). ----11

com

asterisco

so

transcritas

na

Captulo I INTRODUO Quem se proponha familiarizar o principiante ou o leigo com a cincia do Direito (Jurisprudncia) e o pensamento jurdico, ao tent-lo v-se a braos com uma srie de dificuldades e dvidas que no encontraria noutros domnios cientficos. Quando o jurista, situado no crculo das cincias do esprito e da cultura, entre as quais se conta a Jurisprudncia, olha derredor, tem de constatar, angustiado e com inveja, que a maioria delas pode contar extra muros com um interesse, uma compreenso e uma confiana muito maiores do que precisamente a sua cincia. Especialmente as cincias (teorias) da linguagem, da literatura, da arte, da msica e da religio fascinam os leigos devotados a assuntos de cultura numa medida muito maior do que a cincia do Direito, se bem que esta, no s quanto matria mas ainda metodologicamente, tenha com aquela estreitos laos de parentesco. Sem grandes hesitaes se depositar um livro de arqueologia ou de histria da literatura sobre a mesa dos presentes, mas a custo se far o mesmo com um livro jurdico, ainda que este no exija da parte do leitor conhecimentos especiais. As usuais introdues cincia jurdica, com raras excepes, apenas parecem ter algum interesse para o jurista principiante, mas j no para o leigo. Quantas vezes se encontra um cdigo tambm na biblioteca de um no jurista? As razes deste desinteresse do leigo pelo Direito e pela cincia jurdica so fceis de descobrir. Com efeito, a custo qualquer outro domnio cultural importar mais ao homem do que o Direito. H na verdade pessoas que podem viver e vivem sem uma ligao intima com a poesia, com a arte, com a msica. H tambm, na expresso de MAX WEBER, pessoas "religiosamente amusicais". Mas no h ningum que no viva sob o Direito e que no seja por ele constantemente afectado e dirigido. O homem nasce e cresce no seio da comunidade e - parte casos anormais - jamais se separa dela. Ora o Direito um elemento essencial da comunidade. Logo, inevitavelmente, afecta-nos e diz-nos respeito. E tambm o valor fundamental pelo qual ele deve ser aferido, o justo, se no situa em plano inferior ao dos valores do belo, do bom e do santo. Um Direito justo "faz parte do sentido do mundo". Porqu, pois, to pouca abertura de esprito para o Direito e para a Jurisprudncia?

Responder-nos-o, talvez, que o Direito e cincia jurdica so duas coisas diferentes, e que s esta ltima suspeita aos olhos do leigo. Mas, parte o facto de que o leigo somente se preocupa com o Direito na medida em que este um preceito prtico, Direito e cincia jurdica no so de forma alguma duas coisas assim to diferentes. So em todo o caso muito menos diferentes do que, por exemplo, a arte e a cincia (teoria) da arte. Sem dvida que tambm esta ltima serve a arte, na medida em que promove a sua compreenso. Pode ainda acontecer que as teorias cientficas influenciem a actividade artstica. Em geral, porm, a arte segue os seus prprios caminhos e a cincia (teoria) da arte que lhe vai no encalo, dilucidando, reflectindo e historiando, sendo muitas vezes considerada com suspeio pelo prprio artista, quando no por ele pura e simplesmente repudiada e ironizada. Claro que no tenho de forma alguma o intento de pr em questo o grande significado espiritual da considerao cientfica (teortica) da arte. Quanto no significou WINCKELMANN para os nossos clssicos! Com que intuies felizes nos no brindaram um JAKOB BURCKHARDT ou um HEINRICH WOLFFLIN! No obstante, temos de assentar nisto: a arte e a cincia (teoria) da arte so duas coisas distintas. E algo semelhante vale para a relao doutras cincias da cultura com o respectivo objecto. Pelo contrrio, constitui um privilgio quase exclusivo da cincia jurdica, entre as outras cincias da cultura, o facto de ela no abrir caminho ao lado ou atrs do Direito, mas, antes, poder afeioar o Direito mesmo e a vida que nele e sob a sua gide decorre. Havendo uma cincia jurdica, esta h-de ser uma cincia prtica. Os romanos, aos quais cabe o inesquecvel mrito de terem fundado esta cincia, sabiam muito exactamente o que nela lhes importava. Eles celebrizaram-na como a "divinarum atque humanarum rerum notitia", considerando-a, por consequncia, como a mais viva de todas as cincias, e com o seu Direito e a sua cincia jurdica se tornaram grandes e fortes. Aquilo que os juristas genuinamente dotados e criadores pensaram e trouxeram clara luz do dia em matria de conhecimentos jurdicos tem sido em todos os tempos uma bno para o prprio Direito (1),j por ter inspirado o legislador, j por ter infludo a deciso dos concretos casos jurdicos. A sabedoria jurdica dos juristas romanos clssicos ou a dos psglosadores italianos (a partir de 1250) tem alimentado a Jurisprudncia durante sculos. E tambm as doutrinas dos juristas modernos como JEHRING, WINDSCHEID, BINDING, LISZT e FRANK se tem revelado sempre frutuosas para a aplicao e para a estatuio do Direito, logo para o Direito mesmo - sem falar ainda daqueles casos em que um pensador jurista chamado directamente a exercer o papel de legislador, como aconteceu com EUGEN HUBER relativamente ao cdigo civil suo de 1907, obra esta que WIEACKER classifica, na sua Privatrechtsgeschichte der Neuzeit,

como "o mais nobre fruto da cincia jurdica de expresso germnica do sculo XIX em forma legislativa". Mas nem por isso qualquer entendido na matria pensar em colocar os grandes teorizadores do Direito acima dos grandes historiadores, linguistas e tericos da arte, para os situar ao lado dos filsofos, poetas, artistas e msicos geniais. Pelo que respeita, porm, imediata incidncia cultural, as produes essenciais no domnio da cincia jurdica so seguramente comparveis aos filosofemos, obras de arte e produes literrias importantes. Sob este aspecto, tm uma valncia igual. Que desta circunstncia decorre uma responsabilidade particular para a cincia jurdica, coisa por demais evidente. Coisa bem diferente desta luta pela compreenso e pela simpatia, em concorrncia com as demais cincias do esprito e da cultura, a permanente necessidade de auto-afirmao da cincia jurdica em face das dvidas que faz avultar o seu confronto com as cincias da natureza. O facto de to-somente se pensar neste confronto dever estar relacionado com o carcter legalista do Direito. A cincia jurdica , tal como as cincias naturais, uma cincia de leis. No entanto, aquele que nos desvenda as leis da natureza, revela-nos o ser e a necessidade. Ora ser que tambm o jurista nos conduz ao ser, poder ele convencer-nos da necessidade das leis jurdicas? A liberdade, que sem mais reconhecida ao esprito humano no sector de actuao da individualidade - logo, precisamente no domnio das artes -, facilmente parecer acaso, arbtrio ou despropsito no domnio do Direito, onde deve imperar a regra e a lei. Decerto que tambm o artista conhece regras e leis. Mas estas so para ele apenas as "formas", que pode e deve preencher com contedos pessoais. Acontece ainda que estas "formas", por seu lado, se bem que pensadas como relativamente constantes, so individualmente configuradas. Por isso se apresentam como culturalmente variadas e historicamente mutveis. No tm validade universal nem so rigorosamente vinculadas. "O mestre pode quebrar a forma". J das leis que regem o Direito e atravs das quais este impe o seu domnio se aguarda sempre aquela validade universal que se espera das verdades e das leis da natureza. E ficamos profundamente decepcionados quando a no encontramos. PASCAL deu a tal decepo uma expresso clssica com estas palavras, tantas vezes citadas: "Quase nada h de justo ou injusto que no mude de natureza com a mudana de clima. Trs graus de altura polar revolucionam toda a jurisprudncia. Um meridiano decide sobre a verdade. --16 Aps alguns anos de posse, alteram-se leis fundamentais. O Direito tem as suas pocas. Divertida justia esta que um rio ou uma

montanha baliza. Verdade aqum, erro alm Pirinus". O facto de os juristas, apesar de todos os seus aturados esforos, no terem at hoje conseguido encontrar o verdadeiro Direito, no o terem conseguido relacionar com a "natureza", seja esta a natureza do homem seja a natureza das coisas, faz com que a sua cincia aparea frequentemente a uma luz pouco favorvel. E tambm a conhecida crtica que JULIUS V. KIRCHMANN, ele prprio um jurista, fez (1848) Jurisprudncia como cincia se funda precisamente nessa circunstncia: "o sol, a lua, as estrelas brilham hoje da mesma forma que h milhares de anos; a rosa desabrocha ainda hoje tal como no paraso; o Direito, porm, tornou-se desde ento diferente. O casamento, a famlia, o Estado, a propriedade, passaram pelas mais diversas configuraes" (2). Alguns exemplos simples bastam para fazer luz sobre esta estranheza do leigo face "arbitrariedade" e falta de naturalidade da Jurisprudncia. O primeiro destes exemplos sem dvida banal mas, precisamente em razo da sua singeleza, poder oferecer um bom ponto de referncia para as nossas ulteriores consideraes. Quando ainda era estudante, um aluno de medicina insurgiu-se na minha presena contra o facto de o 1589 al. 2 do Cdigo Civil declarar ento (mas hoje j no): "Um filho ilegtimo e o seu pai no so parentes". Nesta disposio via ele arbtrio de juristas, arrogante denegao dos dados biolgicos e porventura ainda um falso pudor e uma moral hipcrita. Sustentava abertamente a opinio de que no era possvel ao Direito atropelar desta forma os factos naturais. Agora um segundo exemplo: Numa discusso cientfica sobre o Direito natural, um bilogo de nomeada referiu o exemplo, hoje muitas vezes citado, das regras que os lobos observam durante a luta: - aquele que derrotado assume uma "atitude de submissa humildade", o que induz o seu rival a absterse de novos ataques. evidente que na mente deste bilogo estava a ideia de que um genuno Direito natural haveria de ter igualmente as suas razes em dados biolgicos. O "Direito natural" que lhe era apresentado pelos juristas, tal como se manifesta, por exemplo, nos direitos fundamentais do homem, no lhe parecia ser um verdadeiro Direito natural. Um ltimo exemplo ainda: Nas esferas mdicas surge frequentemente a queixa de que falta aos juristas uma correcta compreenso da funo da medicina. Como particularmente chocante sentem os mdicos o facto de a jurisprudncia do tribunal supremo qualificar como "ofensa corporal" a operao cirrgica necessria realizada segundo as regras da arte, s deixando ela de ser punvel por o paciente ter dado o seu consentimento. Esta concepo parece ser contrria natureza da profisso mdica e a sua explicao s poder achar-se na sobranceria dos juristas. Que deve o jurista responder a tudo isto? Como pode ele fazer face ao desinteresse, averso, desconfiana? Em primeiro lugar,

familiarizando um pouco o no-jurista com a natureza ou o modo de ser do seu pensamento, que to estranho e misterioso parece. No nos propomos neste livro, pois, investir contra os opositores da cincia jurdica com uma apologia desta mesma cincia. Apenas poderemos salvar a dignidade do pensamento dos juristas analisando-o conscienciosamente, olhando tambm de frente os seus desvios e os seus passos em falso, assim como os esforos tendentes evit-los. Como toda a empresa e actuao do homem, tambm a Jurisprudncia nos aparece assinalada por defeitos e exposta a riscos. Mas lcito presumir que ela, a quem tantos homens excelentes tm dedicado o seu esforo, no se acha abandonada por todos os bons espritos. A propsito no deve esconder-se que as exposies subsequentes, de acordo com o carcter de uma "Introduo", tm o seu ponto de partida nos mtodos tradicionais da heurstica jurdica (Rechtsfindung) e, de uma maneira geral, neles se apoiam. Desde a primeira publicao deste livro em 1956, estes mtodos foram entretanto contestados. Tal como no comeo do nosso sculo a "escola do direito livre" e a "jurisprudncia dos interesses" apontaram heurstica jurdica novos alvos, assim tambm no deixam de existir no presente teorias e proclamaes progressistas relativamente referida heurstica. No devem passar sem uma referncia. O aparelho das anotaes vem sendo consideravelmente alargado em cada nova edio, e tambm nesta o ser, para dar conta das novas concepes e as confrontar e articular com a tradio. No essencial, porm, parece-me que a metodologia tradicional, tal como se constituiu com SAVIGNY e depois dele, forma ainda uma plataforma suficientemente firme em que o jurista dos nossos dias pode confiar como base do seu labor intelectual. --19 ANOTAES 1. Cfr. J. ESSER, Grundsatz und Norm, 1956, pp. 306 e ss.; H. DOLLE, Jur. Entdeckungen, 1958; L. LEGAZ Y LACAMBRA, Rechtsphilosophie (1961), edio alem, 1965, pp. 558 e ss.; L. RAISER, Rechtswissenschaft u. Rechtspraxis, NJW 1964, pp. 1201 e ss., esp. pp. 1204 e ss.. Sobre a cincia jurdica como "terceira fonte do direito" em Puchta, cfr. LARENZ, Methodenlehre, 1960, p. 19, 2 ed. 1969, p. 20; 3 ed. 1975, p. 22. Quando KRAWIETZ, em Jur. Schulg. 1970, p. 427, "do ponto de vista da actual teoria da cincia, influenciada sobretudo pelas correntes lingusticoanalticas da filosofia", pretende que a jurisprudncia romana "no (pode) valer como cincia", parece que o seu juzo assenta numa perspectiva demasiado estreita. Sobre o carcter da "Jurisprudncia" romana, cfr. p. ex. R. SOHM, Institutionem, 17 ed., 1931, 18; JRS-KUNKEL, Rmisches Privatrecht, 3 ed., 1963,

pp. 91 e ss.; M. KASER, D. rmische Privatrecht I, 1955, p. 2. No ltimo lugar citado diz-se: Os juristas romanos da ltima fase da Repblica "lanaram o fundamento de toda a posterior cincia jurdica do Ocidente". Sem dvida que eles "se fixaram na tarefa prtica da descoberta do direito". Em todos os tempos a cincia jurdica - tal como a jurisprudncia, relativamente qual recentemente isto vem sendo acentuado com particular entono (KRIELE, ESSER) - tem co-constitudo o Direito (em sentido lato), tem sido "cincia prtica" (mas contra, neste ponto: H. KELSEN, Reine Rechtslehre, 2 ed. 1960, p. 75, nota 2; cfr. sobre o mesmo MAYER-MALY, ob. cit., pp. 416 e ss.). Por outro lado merece reflexo a afirmao de R. V. IHERING (Geist des rmischen Rechts II 2, 2 ed., 1869, p. 369) de que "a jurisprudncia, para ser verdadeiramente prtica, no se pode limitar a questes prticas". Sobre o significado da jurisprudncia para a prtica jurdica vide agora tambm LARENZ, Methodenlehre, 3 ed., 1975, pp. 215 e ss., 224 e ss.. 2. Cfr. alm de BINDER, op. cit, pp. 847 e ss., e WOLF, ob. cit., p. 13, CARL SCHMITT, Die Lage der europaschen Rechtswissenschaft, 1950, p. 15. Acentua-se, por outro lado, que a cincia do Direito, ao contrrio das cincias naturais, pouco se tem modificado com o decorrer do tempo. V., p. ex., G. COHN, Existenzialismus u. Rechtswissenschaft, 1955, p. 88. Mais do que a relao entre cincia jurdica e cincia natural discute-se presentemente a relao entre cincia jurdica e cincia social (a qual em todo o caso se mantm prxima da cincia natural na medida em que encarada como "cincia do ser" ou "cincia da realidade" - a este respeito, por todos: LARENZ, ob. cit., 3 ed., 1975, pp. 171 e ss., 221 e ss., com o qual concordo). Cfr. tambm a nota 36, na parte final. De resto o carcter cientfico da jurisprudncia depende naturalmente dos critrios aos quais se vincule em geral o conceito de "cincia"; conforme, p. ex., s se queiram considerar "cientficas" as elaboraes endereados ao "conhecimento da verdade" (lgico, matemtico, emprico), ou tambm aquelas elaboraes que visam estabelecer um sistema de enunciados normativos metodicamente obtidos e bem fundamentados (eventualmente "justos") - como acontece precisamente na cincia jurdica. Em ltimo termo surge a questo das subdivises do "globus intellectualis". Sobre o carcter da cincia jurdica como cincia do esprito", v. infra. --21 Captulo II SOBRE O SENTIDO E A ESTRUTURA DA REGRA JURDICA Retomemos o 1589 do Cdigo Civil alemo. Este

pargrafo

o

primeiro de um conjunto de disposies sobre o "parentesco". Na sua verso original dizia, na ntegra: "As pessoas que descendem umas das outras so parentes em linha recta. As pessoas que no so parentes em linha recta, mas procedem duma mesma terceira pessoa, so parentes colaterais. O grau de parentesco determina-se pelo nmero de geraes. Um filho ilegtimo e seu pai no so (gelten nicht als = no valem como) parentes entre si". Este ltimo perodo foi revogado, graas nova regulamentao da posio jurdica dos filhos ilegtimos pela lei de 19.8.1969. Mas continuar a ser considerado na anlise que se segue. O que salta aos olhos na disposio transcrita a mudana na expresso. Primeiro diz-se que certas pessoas so parentes em linha recta ou em linha colateral. Depois diz-se: "determina-se" e, finalmente, no ltimo perodo: "gelten" nicht als (no so havidos como - no "valem" como). evidente que neste perodo final a ideia do legislador no podia ser a de que os filhos ilegtimos no so parentes de sangue de seu pai, do ponto de vista natural; mas antes a de que o filho ilegtimo no deve ser equiparado ao filho legtimo juridicamente, melhor: do ponto de vista do direito civil. Esta restrio: "do ponto de vista do direito civil", muito importante. Pois que, por ex., do ponto de vista do direito penal, o pai e o filho ilegtimo j anteriormente eram parentes. A cominao do 173 do Cdigo Penal contra o incesto entre "parentes na linha ascendente ou descendente" (como anteriormente se dizia) abrangia sem dvida tambm os pais e os filhos ilegtimos (filhos estes que agora so expressamente designados por "descendentes de sangue"). Ou: a despenalizao de "desvios cometidos pelos pais contra os seus filhos", no Cdigo de Processo Penal de 1841, valia tambm para desvios cometidos contra filhos ilegtimos (hoje um furto a um "familiar" s susceptvel de procedimento penal havendo acusao particular, o que igualmente se aplica ao parentesco ilegtimo). Por outro lado, e inversamente, volta a dizer-se no Art. 33 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil: "Sempre que, no Estatuto Judicirio, no Cdigo de Processo Civil, no Cdigo de Processo Penal (no confundir com o Cdigo Penal), no Cdigo de Falncias... sejam atribudos efeitos jurdicos ao parentesco ou afinidade, aplicam-se os preceitos do Cdigo Civil relativos quelas matrias". Estas outras leis, portanto, de novo se orientavam pelo princpio do Cdigo Civil segundo o qual o pai ilegtimo e o seu filho no eram "havidos" como parentes - o que se acha ultrapassado desde a lei de 19.8.1969. Daqui resultava que o direito de escusa a depor como testemunha, que conferido aos parentes do acusado em linha recta, no era reconhecido ao pai ilegtimo num processo penal instaurado contra o filho (e inversamente) - o que hoje j se no verifica. ---

23 Assim, para nos servirmos da frase de PASCAL atrs referida, parece que no s um meridiano que decide sobre a verdade no domnio da justia, pois que as linhas divisrias parecem poder atravessar uma e mesma ordem jurdica, para depois se deslocarem ou desvanecerem com a evoluo histrica. Pelo que respeita palavra "validade" ("Geltung"), h que dizer que ela tem um significado muito particular. Sem querermos filosofar a seu respeito (o que tem sido feito com frequncia bastante), diramos no nosso caso que ela traduz a ideia de que uma relao de vida olhada juridicamente de determinada maneira. Mas, antes de nos interrogarmos sobre qual seja esse especfico modo de considerao, indaguemos primeiro se realmente as coisas se passam de modo essencialmente diverso com os perodos anteriores do 1589 (ainda hoje em vigor) onde se diz que as pessoas que descendem umas das outras so parentes em linha recta. Neste ponto ao menos parece que na verdade o Direito se curva perante a natureza e que apenas afirma aquilo que . Todavia, tambm aqui no esto excludas as surpresas. O 1589 faz depender o parentesco da "descendncia". O que isto seja, toda a gente julga sab-lo. Tanto mais chocante haver de parecer, pois, o que o Cdigo Civil logo a seguir, nos 1591 e seguintes, preceitua com respeito "descendncia legtima". Diz-se a que um filho nascido aps a celebrao do casamento filho legtimo de ambos os cnjuges se a mulher o concebeu antes (?) do matrimnio ou na constncia deste e o marido coabitou com ela durante o perodo da concepo. Se este perodo tem lugar durante a constncia do matrimnio, presume-se (?) que o marido coabitou com a mulher. Como perodo de concepo considera-se (vale?) em geral o perodo que medeia entre o 181 e o 302 dias anteriores ao nascimento do filho. Nestas condies, o filho s no legtimo quando, "dadas as circunstncias, resulte claramente impossvel que a mulher tenha concebido o filho do marido". Mesmo que seja este o caso, a ilegitimidade ainda assim ter de ser estabelecida com fora de caso julgado atravs duma aco de impugnao da paternidade intentada pelo marido, pelos pais deste ou pelo filho. A no ser por este meio, no possvel "faz-la valer", se o filho nasceu na constncia do casamento ou dentro de 302 dias aps a dissoluo do mesmo. Em resumo: relativamente aos filhos nascidos na constncia do matrimnio ou dentro de um certo prazo aps a sua dissoluo, o Direito adopta fundamentalmente aquele ponto de vista que os romanos exprimiam com as seguintes palavras: "pater est quem nuptiae demonstrant" (Digesto 2, 4, 5: pai aquele que do casamento se conclui que o ). evidente que de novo aqui, nesta regulamentao, a considerao ou o ponto de vista jurdico pode estar em conflito com o ponto de vista "natural". Pode desde logo estranhar-se que, segundo o Cdigo Civil alemo - ao

contrrio do que sucede em muitos Direitos anteriores - o filho tambm seja legtimo quando no foi procriado na constncia do casamento mas antes da celebrao deste. A mais disso, porm, nos termos do regime acabado de referir, ainda possvel que uma mulher, que no tenha escrpulos em matria de fidelidade conjugal, brinde o seu marido com filhos que ho-de ser considerados legtimos, embora o crculo das pessoas cpticas e observadoras sua roda chegue a uma concluso completamente diferente fazendo uso dos seus olhos naturais. "Mater semper certa est". Ao contrrio, a no rara incerteza acerca do pai eliminada, no interesse da "segurana jurdica", atravs da "presuno" de que o marido coabitou com a me e o pai da criana. Se a isto acrescentarmos ainda que um filho ilegtimo pode posteriormente obter "a posio jurdica de um filho legtimo" pelo facto de o pai ilegtimo casar com a me (1719 do Cdigo Civil), ou pelo facto de ser declarado legtimo atravs de uma deciso do tribunal tutelar (1723 e seguintes do Cdigo Civil), o quadro assim preenchido deixar transparecer que a descendncia legtima e, por conseguinte, o parentesco em linha recta, so dados especificamente jurdicos que no precisam de coincidir com os dados naturais, muito embora o legislador se esforce, hoje mais do que nunca, por conseguir essa coincidncia. E tambm pelo que toca aos filhos legtimos no nos ser lcito afirmar, dum modo inteiramente geral, que eles so legtimos, mas antes teremos que dizer: eles so considerados (gelten) como legtimos para efeitos do Cdigo Civil (no em geral, pois que os 1591 e seguintes do Cdigo Civil no decidem, por exemplo, quanto ilegitimidade na hiptese de "infanticdio", a que se refere o 217 do Cdigo Penal). Mas ainda que os dados jurdicos concordassem com os naturais, sendo, por exemplo, de considerar como legtimos por Direito e por natureza aqueles filhos que foram procriados pelos cnjuges na constncia do respectivo matrimnio e nasceram durante esse perodo, nem mesmo assim isso quereria dizer que o conceito jurdico de parentesco significa exactamente o mesmo que conceito "natural". O leitor reflexivo no deixar de ripostar logo contra a palavra "natural". Para um bilogo nem sequer existe a distino entre filhos legtimos e ilegtimos - para ele apenas existe o facto da descendncia natural. A "descendncia legtima", bem como o "parentesco", que sobre ela se funda, trazem em si, com a caracterstica "legtimo", um ineliminvel momento cultural, quer este momento tenha a sua origem na esfera do religioso, na da moral ou na do jurdico. Quando h pouco se falou de uma coincidncia dos conceitos jurdico e natural de descendncia legtima e de parentesco, evidente que o conceito natural deste parentesco foi entendido, no num sentido biolgico, mas num sentido sociocultural. S neste sentido, e j no num sentido

biolgico, podemos falar duma descendncia legtima e de parentesco "naturais". Mas, agora examinada a questo mais de perto, temos de reconhecer que tambm o conceito jurdico de parentesco se pode distinguir ainda do conceito sociocultural, e hoc sensu natural, de parentesco legtimo, Sim, mesmo quando estes dois conceitos coincidem nos pressupostos da sua aplicao, quando, portanto, o parentesco jurdico s existe onde exista tambm o parentesco sociocultural, quando, especialmente, abstramos do facto de que entre ns a celebrao juridicamente relevante do casamento reveste formas particulares que se distinguem das formas religiosas - mesmo ento os conceitos jurdico e cultural-natural de parentesco no so idnticos, O conceito jurdico de parentesco tem nomeadamente um alcance particular que lhe empresta uma significao incomparvel. Conforme diz o jurista, ele funciona como "hiptese legal", qual a "regra de direito" (a "norma jurdica") liga "consequncias jurdicas". E eis-nos chegados ao ncleo da questo. Quando se dizia que o pai ilegtimo no era parente do seu filho ilegtimo, com esta regra jurdica queria significar-se que hiptese legal da descendncia ilegtima no eram ligados os mesmos efeitos jurdicos que hiptese legal da descendncia legitima. Mas que so efeitos jurdicos? J referimos, p. ex., que, em caso de parentesco legtimo em linha recta, existe um direito de escusa a depor como testemunha, o qual no existia na hiptese de ascendncia ilegtima, enquanto vigorou o mencionado 1589, 2. Mas, mais importante o seguinte, que continua a "valer" mesmo depois de eliminado o 1589, 2. Entre a descendncia legtima e a ilegtima subsiste como dantes uma diferena jurdica essencial, no obstante hoje o pai ilegtimo ser considerado "parente" do filho ilegtimo: o filho legtimo usa o apelido de famlia do pai, ao passo que o filho nascido fora do casamento recebe em geral o nome de famlia que usa a me ao tempo do nascimento (1616 e 1617 do Cdigo Civil). O pai legtimo detm, ao lado da me, o "poder paternal" sobre o filho, quer dizer, o direito e a obrigao de cuidar da pessoa e dos bens do filho, educando-o, vigiando-o, cuidando da sua sade, orientando a sua formao e escolha da profisso, representando-o em negcios jurdicos e em processos judiciais; ao passo que o filho nascido fora do casamento, enquanto menor, est (com certas restries) sob o ptrio poder da me (1626 e 1705 do Cdigo Civil). E, no obstante a equiparao (levada to longe quanto possvel) da posio do filho ilegtimo do filho legtimo relativamente ao direito a alimentos e ao direito sucessrio, subsistem ainda diferenas que no vamos especificar aqui. Saliente-se a ttulo de exemplo que o direito sucessrio que agora lhe cabe, quando com ele concorram descendentes legtimos ou os de um cnjuge sobrevivo do autor da herana, assume a forma de um direito de representao

sucessria (semelhante ao direito ao quinho legitimrio geral), de modo que o filho ilegtimo no entra na comunho hereditria com aqueles outros herdeiros (1934-a do Cdigo Civil). isto e apenas isto o que significa para o Direito "parentesco" e "descendncia" (legtima ou ilegtima): por fora da "hiptese" do parentesco ou da descendncia assim circunscrita pela lei desta ou daquela maneira surgem ou no surgem estes ou aqueles "efeitos jurdicos". Tudo o mais que, nas relaes humanas, o conceito de "parentesco" evoca ou por ele sugerido: o sentimento de solidariedade e comunidade de destino, a recordao de antepassados comuns e de uma origem comum, a conscincia de compartilhar da honra de todos os membros da famlia e o conexo sentimento de responsabilidade, a entreajuda nas necessidades, etc. - tudo isto apenas tem para o Direito, quando muito, um significado mediato, pois que imediatamente apenas lhe interessam aqueles direitos e deveres que so reconhecidos como "consequncias jurdicas". Assim, pode efectivamente constituir um dever moral para os descendentes de um tronco comum (irmos e primos) ajudarem-se mutuamente nas situaes de necessidade e garantirem-se reciprocamente o sustento. Mas, se o Direito no prescreve a obrigao de alimentos, o facto do parentesco no tem, nessa medida, relevncia jurdica. bem certo, todavia, que existe um direito de escusa a depor como testemunha relativamente a parentes da linha colateral at ao terceiro grau, de forma que tambm aqui se nos depara de novo uma certa relatividade da regulamentao jurdica. Esta relatividade da regulamentao jurdica sob a forma de diferentes efeitos jurdicos referidos mesma situao bsica faz-nos compreender melhor a relatividade acima descrita na formao dos conceitos da hiptese legal. Que a sucesso legtima e a ilegtima possam ter diferentes consequncias jurdicas, no obstante representarem a mesma situao de facto natural, isso explica-se pela circunstncia de na norma jurdica no ser conceptualmente fixada e tornada objecto de enunciados cientficos (sobre um "parentesco" ou "descendncia" biolgica "em si", com estes ou aqueles efeitos "naturais") uma situao de facto em si previamente dada. O que acontece , antes, que "hipteses legais" so recortadas e por assim dizer postas (constitudas) como pressupostos de determinadas regulamentaes jurdicas (de natureza civil, penal, ou at de direito pblico). Ora, ao proceder assim, o legislador tem a liberdade de determinar diferentemente os pressupostos da hiptese, na perspectiva de especficos pontos de vista jurdicos, e, portanto, de apreciar e conceber de diferentes modos, tendo em conta as diferentes consequncias jurdicas, o facto natural unitrio da "descendncia". Falmos repetidas vezes de efeitos jurdicos (ou consequncias

jurdicas) que se ligam a uma entender por "efeitos jurdicos"?

"hiptese

legal".

Que

devemos

--30 J tommos conhecimento de alguns de entre eles: o direito de usar um certo nome, o direito e a obrigao de exercer o poder paternal, o direito a alimentos e o direito de sucesso. Em qualquer caso, direitos e deveres. Isso implica uma multiplicidade de coisas. Primeiramente e para comear, significa que as consequncias jurdicas consistem em direitos (poderes jurdicos) e deveres e, depois, que estes direitos e deveres so reconhecidos como jurdicos. Com referncia a este ltimo ponto contentemo-nos com a observao de que os direitos e deveres apenas so reconhecidos como jurdicos quando podem ser defendidos e efectivados atravs de meios jurdicos - o que hoje praticamente significa, dada a ntima ligao entre Direito e Estado, que eles, sendo necessrio, podem fazer-se valer perante as autoridades judiciais e administrativas. (O problema das relaes dos direitos e deveres jurdicos com os direitos e deveres morais - aos quais falece aquela exequibilidade estadual - j um problema de filosofia do Direito que no cabe tratar aqui). Quando h pouco dissemos que as consequncias jurdicas so constitudas por direitos e deveres, deveramos ter logo acrescentado: em primeira linha. Pois no podemos esquecer que no Direito h "grandezas negativas", consequncias jurdicas negativas, a saber, a negao de direitos e deveres, como justamente acontece (parcialmente) na paternidade ilegtima, por exemplo. Ademais, se, v. gr., um "negcio jurdico" contrrio lei ou aos bons costumes, como, por exemplo, a promessa de prestar num processo um falso testemunho a troco de dinheiro, o negcio "nulo" (134, 138 do Cdigo Civil), o que significa que dele no resultam quaisquer direitos ou obrigaes. E deste caso devemos distinguir ainda aquele outro em que duma hiptese legal podem resultar direitos e deveres que tm um contedo negativo, isto , direitos e deveres que se referem a uma omisso, a um no fazer algo, como, v. gr., o dever de no realizar uma actividade ruidosa e o correspondente direito. Os direitos e deveres desta ltima espcie so juridicamente algo de positivo, como o so tambm as dvidas - que nas nossas contas tratamos como algo negativo e a ser reduzido do patrimnio, mas que em face do Direito so algo de positivo, a saber, tpicas obrigaes. Autnticas grandezas negativas em sentido jurdico so-no, pelo contrrio, as negaes de direitos e deveres que vo conexas com a nulidade dos negcios jurdicos contrrios lei e aos bons costumes. Elas representam como que um cancelamento das consequncias jurdicas, a que ns, no entanto, e por estranho que parea, voltamos a chamar

"consequncia jurdica", pois dizemos que a ofensa da lei ou dos bons costumes por parte de um negcio jurdico tem por consequncia jurdica que o negcio nulo e que, portanto, ele no produz propriamente quaisquer consequncias jurdicas. evidente que neste contra-senso se esconde uma ambiguidade. Esta perturbante ambiguidade reside no facto de chamarmos "consequncia jurdica", j a uma parte constitutiva da regra jurdica (a regra jurdica "consta de hiptese legal e consequncia jurdica"), j aquilo que na regra jurdica se prescreve ou estatui: a constituio de um direito ou de um dever ou aquilo a que o direito e o dever se referem: a prestao, a pena, etc. Por exemplo, importa distinguir entre a estatuio da regra jurdica prescrevendo que de um contrato de compra e venda resultam certos direitos e deveres para o comprador e o vendedor ( esta a consequncia jurdica enquanto parte constitutiva da regra de Direito) e os prprios direitos e deveres das partes contratantes que se encontram prescritos naquela regra: o direito do vendedor a exigir o preo da venda, o dever do comprador de pagar e receber a mercadoria. Quando dizemos que uma ofensa da lei ou dos bons costumes tem a consequncia jurdica de fazer com que se no produzam consequncias jurdicas (efeitos jurdicos), expresso "consequncia jurdica" h-de ser atribudo um duplo sentido: um primeiro, significando o mesmo que parte constitutiva da regra jurdica, e um segundo, significando o mesmo que direito ou dever. Esta ambiguidade nunca poder ser inteiramente evitada, por isso que a linguagem corrente dos juristas de contnuo se serve de ambas as expresses conjuntamente. Para afastar dvidas convm dar consequncia jurdica, quando esta seja entendida no sentido de elemento constitutivo da regra jurdica, a designao de comando ou estatuio jurdica. Aps este parntesis, regressemos nossa tese: as consequncias (efeitos) jurdicas apresentam-se sob a forma de direitos e deveres. Ser-nos- permitido pensar aqui em direitos e deveres positivos - se bem que eventualmente possamos ainda pensar naqueles direitos e deveres que so algo negativo, um non facere ou omisso. Eles representam a prpria substncia do Direito. Em face deles as negaes (scl. de efeitos jurdicos) apresentam-se to-s como limitaes, como algo secundrio. O centro gravitacional do Direito reside nisto: em ele positivamente conferir direitos e impor deveres. Ora topa-se agora e logo, nos tratados de Direito civil, com uma maneira de dizer segundo a qual a "consequncia jurdica" ou, como tambm se diz, o "efeito jurdico" duma factualidade juridicamente relevante consiste na constituio, extino ou modificao duma relao jurdica. E se agora perguntarmos o que que deve entender-se por este novo conceito "relao jurdica", receberemos mais ou menos a seguinte resposta: uma relao jurdica uma

"relao da vida definida pelo Direito", como o so, v. gr., as relaes entre comprador e vendedor ou entre cnjuges. "Pelo lado do seu contedo, as relaes jurdicas apresentam-se as mais das vezes como poderes (direitos), aos quais se contrapem os correspondentes deveres; mas tambm existem relaes jurdicas como, por exemplo, o parentesco, o domiclio - que apenas so consideradas como relevantes enquanto possveis fontes de direitos e deveres futuros, isto , de direitos e deveres que somente surgem quando outros pressupostos se verificam". Se agora analisarmos estas consideraes sobre a relao jurdica enquanto contedo da "consequncia jurdica", facilmente nos daremos conta de que, afinal, a relao jurdica no funciona justamente como consequncia jurdica, mas, antes, como hiptese legal destinada a produzir consequncias jurdicas, e que, ao invs, na medida em que a relao jurdica, ou a sua constituio, extino ou modificao, seja efectivamente encarada como consequncia jurdica, esta formulao por sua vez nada mais exprime seno que se trata de direitos e de deveres, da sua constituio, etc. --34 E, assim, tambm por este modo somos conduzidos, pois, aos direitos e deveres como contedo das "consequncias jurdicas". Do mesmo modo, s primeira vista que parecer tratar-se de uma diferente concepo da natureza da consequncia jurdica quando se diz: como o Direito uma ordem de coaco, a estatuio da consequncia jurdica h-de consistir sempre em prescrever uma coaco, em prescrever, portanto, uma pena ou uma execuo forada e coisas similares. "Sendo o Direito uma ordem de coaco, toda a norma jurdica uma norma que prescreve ou ordena um acto coercitivo. A sua essncia exprime-se por conseguinte numa proposio, na qual a um determinado pressuposto vai ligado o acto de coaco como consequncia". Assim se exprime o fundador da chamada "Teoria Pura do Direito", HANS KELSEN. Mas se ponderarmos que a prescrio da coaco, por seu turno, se limita tambm a produzir, de um modo coactivo, direitos e deveres ou que, como o prprio KELSEN diz, dada a hiptese legal, deve ter lugar a coaco, torna-se-nos patente que tambm aqui as consequncias jurdicas se reconduzem a direitos e deveres. S que so direitos e deveres dum tipo particular, a saber, direitos e deveres dos rgos estaduais de realizarem determinados actos. O significado dos direitos e deveres assim configurados est naturalmente conexo com a circunstncia de os direitos e deveres jurdicos serem precisamente caracterizados como jurdicos por acharem efectivao atravs das autoridades estaduais. Ora isto apenas pode ser assim se existem os correspondentes direitos e deveres estaduais. Estes aparecem, portanto, como o ltimo ponto de apoio de todos os

direitos e deveres - concepo esta que porventura discutvel, mas que ns no podemos discutir neste lugar. Como resultado provisrio vamos assentar no seguinte: as consequncias jurdicas, que nas regras de Direito aparecem ligadas s hipteses legais, so constitudas por direitos e deveres. As estatuies das consequncias jurdicas prescrevem a constituio ou a no-constituio de direitos e deveres. Mas poderemos ns porventura simplificar ainda o modo de nos exprimirmos reconduzindo os deveres a direitos e os direitos a deveres? Se no h deveres sem direitos nem direitos sem deveres, pois que sempre ao direito de um corresponde o dever de outro - v. gr., ao direito do vendedor a exigir o preo da venda corresponde o dever do comprador de pag-lo, ou o dever do Estado de condenar por sentena o dito comprador e proceder execuo forada do seu patrimnio -, talvez baste ento dizer que a hiptese legal de toda a regra de Direito tem como consequncia jurdica direitos ou afirmar que ela tem como consequncia jurdica deveres. Ora se efectivamente queremos proceder a esta simplificao, parece mais vivel seguir o caminho de reconduzir os direitos aos deveres. Pois fora de dvida que no existem direitos sem deveres, ao passo que duvidoso se a todos os deveres correspondem direitos referidos ao cumprimento desses deveres, e isto mesmo que ao falarmos nestes direitos correlativos tenhamos em mente no s os direitos dos indivduos mas ainda os da comunidade e particularmente do Estado. Digamos portanto: As consequncias jurdicas previstas nas regras de Direito so constitudas por deveres. Mas o que so deveres? Um dever consiste sempre num dever-ser de certa conduta. Quem obrigado a adoptar um certo comportamento, fazendo ou deixando de fazer (omitindo) alguma coisa: ele deve agir desta ou daquela maneira, deixar de fazer isto ou aquilo. E eis-nos assim chegados a uma nova fase da nossa indagao: as regras jurdicas so regras de dever-ser, e so verdadeiramente, como si dizer-se, proposies ou regras de dever-ser hipotticas. Elas afirmam um dever-ser condicional, um dever-ser condicionado atravs da "hiptese legal". Exemplo: se foi concludo um contrato vlido de venda de uma coisa, o vendedor deve entregar a coisa ao comprador e transferir-lhe a propriedade sobre ela, o comprador deve receber a coisa do vendedor e pagar-lhe o preo convencionado (cfr. 433 do Cdigo Civil). Novo exemplo: se algum, intencionalmente ou por negligncia, ilicitamente causa dano vida, ao corpo, sade, liberdade, propriedade ou a qualquer outro direito de outrem, deve prestar ao lesado indemnizao de perdas e danos (cfr. 832 do Cdigo Civil). Ainda outro exemplo: se algum subtrai a outrem um objecto mvel que lhe no pertence, na inteno de ilicitamente se apoderar dele, deve ser punido com priso por furto (cfr. 242 do Cdigo Penal). Embora as leis

designem as consequncias jurdicas como "obrigaes" (433, 823 do Cdigo Civil) ou se exprimam de qualquer outra maneira (o Cdigo Penal diz de um modo caracterstico: "ser punido"), o que se quer significar sempre que algo deve acontecer. Mas que significa aqui o verbo "dever" ("dever-ser" - "Sollen")? O que significa o dever-ser de certa conduta (pois que outras acepes do dever-ser, que no aquelas que se referem conduta humana, no nos interessam seno secundariamente)? De novo topamos aqui com uma difcil questo de filosofia do Direito, uma questo mesmo de filosofia geral. Muitos filsofos tm dito que sobre o dever-ser nada mais se pode afirmar: que ele um conceito fundamental e ltimo que j no susceptvel de definio, uma "categoria", um modo originrio do nosso pensamento. Foi este ponto de vista defendido pelo perspicaz filsofo da moral e da cultura, GEORG SIMMEL, entre outros. "o dever-ser (das Sollen) uma categoria que, aditada ao significado real duma representao, determina a sua importncia relativa para a praxis... No h qualquer definio do dever-ser... O dever-ser um modo de pensamento como o futuro e o pretrito...". Outros acentuam que o dever-ser a expresso de um querer. Neste sentido, escreve-se no conhecido dicionrio dos conceitos filosficos de R. EISLER: "o dever-ser o correlato de uma vontade, uma expresso do que exigido por uma vontade (prpria ou alheia). O dever-ser um 'diktat' da vontade. Ele dirigido por uma vontade supra-ordenada a uma vontade subordinada...". Se nos lembrarmos que a expresso de uma vontade dirigida conduta de outrem se chama "imperativo", poderemos acompanhar EISLER quando diz: "O 'tu deves' tem carcter imperativo". Sendo assim, podemos ento afirmar que as regras jurdicas, como regras de dever-ser dirigidos a uma conduta de outrem, so imperativos. Finalmente, podemos ainda tentar esclarecer o conceito de dever-ser atravs do conceito de valor: uma conduta devida (deve ser) sempre que a sua realizao valorada positivamente e a sua omisso valorada negativamente. Aqui no podemos aprofundar mais este assunto. Retomemos agora a frmula segundo a qual as regras jurdicas so imperativos. Ela quer dizer que as regras jurdicas exprimem uma vontade da comunidade jurdica, do Estado ou do legislador. Esta dirige-se a uma determinada conduta dos sbditos, exige esta conduta com vista a determinar a sua realizao. Enquanto os imperativos jurdicos estiverem em vigor, eles tm fora obrigatria. Os deveres (obrigaes) so, portanto, o correlato dos imperativos. A partir disto foi elaborada uma "teoria" cuja tese afirma: o Direito , em substncia, constitudo por imperativos e s por imperativos. E esta teoria correcta quando a entendamos adequadamente e sem exageros. Em primeiro lugar, ela no se refere naturalmente a cada uma das proposies gramaticais que se encontram num Cdigo. Nomeadamente estas proposies, na

generalidade dos casos, e por razes de "tcnica legislativa", no so autnomas. S da combinao delas entre si resulta um sentido completo. Mais tarde haveremos de ver que nesta combinao se traduz uma boa parte da arte dos juristas. Para j, limitemo-nos a um exemplo. Quando o 53 do Cdigo Penal e o 227 do Cdigo Civil concordemente nos apresentam uma "definio legal" de legtima defesa, a saber: "Legtima defesa aquela defesa que necessria para afastar uma agresso ilcita e actual de si ou de outrem", esta determinao do conceito no tem um significado autnomo, pois s tem sentido em combinao com o ulterior esclarecimento dado pela lei de que a conduta exigida pela legtima defesa no "ilcita" e no "punvel". Mas tambm este ltimo esclarecimento no autnomo, pois s pode compreender-se como limitao de proibies e de declaraes de punibilidade: causar danos a outrem, mat-lo, infligir-lhe leses corporais, exercer violncia sobre ele, etc., aces que em geral so proibidas e punveis, em caso de legitima defesa passam a ser lcitas. A conhecida mxima: "o que no proibido permitido", pode tambm ser invertida: "o que permitido no proibido" (1). Tanto as definies legais como as permisses so, pois, regras no autnomas. Apenas tm sentido em combinao com imperativos que por elas so esclarecidos ou limitados. E inversamente, tambm estes imperativos s se tornam completos quando lhes acrescentamos os esclarecimentos que resultam das definies legais e das delimitaes do seu alcance, das permisses assim como de outras excepes. Os verdadeiros portadores do sentido da ordem jurdica so as proibies e as prescries (comandos) dirigidos aos destinatrios do Direito, entre os quais se contam, de resto, os prprios rgos estaduais. Essas proibies e prescries so elaboradas e construdas a partir das proposies gramaticais contidas no Cdigo. O que acabmos de dizer vale tambm em relao quelas denegaes de consequncias jurdicas que ns vimos terem lugar quando um negcio jurdico viola a lei ou ofende os bons costumes. Quando o Cdigo Civil declara tais negcios nulos e, consequentemente, lhes recusa aptido para criarem obrigaes, isto apenas significa que a ordem ou comando impondo aquela prestao a que noutros casos os negcios jurdicos (como, v. gr., um contrato de compra e venda, um contrato de prestao de servios) obrigam, excepcionalmente no tem lugar. Por conseguinte, as prescries ou comandos que impem a prestao so tambm limitados por estas regras sobre a nulidade dos negcios jurdicos. De modo diferente, porm, se passam as coisas no que respeita revogao expressa ou tcita de imperativos jurdicos preexistentes. Assim, por exemplo, se a proibio do aborto fosse completamente revogada, como algumas vezes j tem sido reclamado, isto significaria o desaparecimento de um imperativo. Esta

revogao ela mesma no seria um imperativo nem parte integrante dum imperativo. No imperativo a vontade do destinatrio do Direito vinculada, ao passo que na norma jurdica revogatria essa vontade libertada. Se, porm, a regra proibitiva do aborto apenas quebrada em relao a certos casos, como, v. gr., na hiptese de interrupo clnica da gravidez para salvar a vida ou a sade da grvida, ento de novo se tratar apenas de uma regra permissiva limitadora, no autnoma, que se deixa configurar como excepo a regra proibitiva do aborto, mantendo-se esta como regra geral. Todavia, a teoria imperativstica no forada a abandonar a sua tese fundamental pelo facto de existirem normas jurdicas revogatrias que no tm carcter imperativo, por isso que estas normas revogatrias apenas tm por funo diminuir a soma total dos imperativos jurdicos vigentes, sem acrescentar ao prprio conjunto desses imperativos preceitos jurdicos dum novo tipo. Atravs das normas revogatrias certas formas de conduta so subtradas ao domnio do jurdico e relegados para o "espao ajurdico". O que subsiste aps esta operao so de novo e apenas imperativos. H ainda uma outra classe de normas jurdicas a que devemos prestar particular ateno: as normas atributivas, aquelas que conferem direitos subjectivos (2). Vamos portanto prolongar, mas de um novo ngulo, certas consideraes que acima inicimos sobre a relao entre o direito e o dever. Exemplos clssicos de atribuies de direitos aos indivduos so-no as garantias fundamentais de Direito constitucional, tais como aquelas que ns actualmente encontramos na primeira parte da Constituio (Lei Fundamental) de Bona, mas so-no ainda as determinaes do Direito Civil sobre a propriedade, o seu contedo e a sua proteco (903 e ss., 985 e ss., do Cdigo Civil). A linguagem jurdica corrente distingue entre Direito objectivo e direito subjectivo. O Direito objectivo a ordem jurdica, o conjunto das normas ou regras jurdicas que ns h pouco concebemos como imperativos. O direito subjectivo o poder ou legitimao conferido pelo Direito (Berechtigung). Mas se partirmos do ponto de vista de que os direitos subjectivos se fundamentam em normas jurdicas atributivas (normas que atribuem esses direitos), estas concesses ou atribuies de direitos pertencem ao Direito objectivo, pois que so regras jurdicas. Ora em que relao se encontram estas normas com as regras jurdicas de carcter imperativo? Para responder a esta questo temos de analisar mais de perto a natureza do direito subjectivo. Antes de tudo, os direitos subjectivos so mais do que simples permisses. Uma permisso, como por exemplo, a de causar danos ao agressor na hiptese de legtima defesa, pode ser considerada como mera excepo s vrias proibies de lesar ou danificar outrem e, nesta medida, apenas

ter um significado negativo. A concesso de um direito subjectivo como o da propriedade significa, ao contrrio, algo positivo. Neste caso, reconhece-se ao titular do direito subjectivo uma esfera de poder, de modo a ser-lhe possvel, dentro dela, acautelar os seus prprios interesses. Por isso que no j muitas vezes citado tratado de ENNECCERUS se escreve: "o direito subjectivo , sob o aspecto conceitual, um poder que ao indivduo concedido pela ordem jurdica e, pelo que respeita sua finalidade, um meio para a satisfao de interesses humanos". ENNECCERUS coloca a "concesso" de tais direitos subjectivos ao lado das prescries e das proibies do Direito. "Toda a regra jurdica perfeita (completa) contm uma prescrio (um comando); muitas, porm, a mais disso, e mesmo em primeira linha, contm uma concesso". "Efectivamente, se o Direito consistisse apenas em prescries ou comandos, estes poderiam na verdade traduzir-se em vantagens para outrem (assim, v. gr., o preceito que manda espargir as estradas em tempo de inverno e quando h gelo, traduzse em vantagem para os utentes das vias pblicas; o preceito que ordena o estabelecimento de determinadas instituies destinadas a promover o bem-estar geral, traduz-se em benefcios para o pblico - so os chamados efeitos "reflexos"),... mas no poderia surgir para esse outrem, com base apenas nessa prescrio ou comando, um direito a que ele (esse comando) seja observado; para tanto tornase necessria ainda uma concesso deste direito a essa pessoa... A regra jurdica que me atribui a propriedade no se limita a estabelecer para os outros a proibio de me perturbarem o domnio da coisa, antes me confere ao mesmo tempo esse domnio sobre a dita coisa, no sentido de que eu prprio posso exigir que mo no perturbem". Ora este lado positivo do Direito parece levar por completo de vencida a teoria imperativista. Numa clebre crtica desta teoria afirmou K. BINDING que, segundo ela, o direito subjectivo apenas seria "um buraco no crculo das normas". A teoria imperativista apresenta-se como uma espcie de pessimismo filosfico-jurdico. Se, de acordo com SCHOPENHAUER, o clssico representante do pessimismo filosfico em geral, todo o prazer da terra consiste em manter afastado o desprazer, segundo a teoria imperativista parece que tudo o que de positivo o Direito concede apenas consiste no no estar vinculado por imperativos, no estar liberto da "penosa exigncia, do rigoroso dever-ser (Sollen)". Assim como s nos apercebemos da meramente negativa libertao do desprazer quando a perdemos, assim como s aprendemos a apreciar a frescura da juventude, a sade e a energia para o trabalho quando estas vo gradualmente desaparecendo, tambm s damos conta da bno que representa a concesso de direitos quando os imperativos cada vez mais nos limitam a liberdade. Apenas sob o jugo do Estado totalitrio aprende o homem a apreciar de novo os perdidos direitos e liberdades fundamentais. Entretanto, a teoria

imperativista, rectamente entendida, no se deixa afastar por consideraes desta natureza. Ela de modo algum negar que o direito concede (atribui) algo, que produz resultados positivos e cria vantagens palpveis. Os direitos subjectivos esto a e so alguma coisa de positivo. Todavia, a referida teoria imperativista mostra-nos que o Direito to-somente alcana este efeito positivo atravs de uma significativa instituio de imperativos. Assim, haja vista propriedade, que pode considerar-se como prottipo de um direito subjectivo. A sua "concesso" operada atravs dos seguintes meios, e apenas atravs deles: pelo facto de ser proibido a quem quer impedir ao proprietrio o gozo da coisa que lhe pertence - furtando-lha ou roubando-lha, recusando-lhe a sua posse, perturbando-lhe o seu uso, etc. -; pelo facto de ser ordenado quele que, sem um particular ttulo jurdico, est na posse duma coisa alheia, que a restitua ao seu proprietrio; e, sobretudo, pelo facto de ser ordenado s autoridades judicirias que, a requerimento do proprietrio, intervenham no sentido de obterem a efectivao daqueles comandos e proibies primrios. Sem todos estes imperativos, qualquer concesso da propriedade, por mais expressa e solene que fosse, no teria sentido nem substncia. E o mesmo vale em relao a todos os outros direitos subjectivos. Deste ponto de vista, a concesso de direitos subjectivos , no fundo, um modo de falar sobre uma constelao de imperativos entrelaados de uma forma especial. Mas note-se bem que os direitos subjectivos no brotam do sol por toda a parte em que algo ordenado (prescrito) pelo Direito, mas to-somente l onde os imperativos jurdicos esto conformados e coordenados de maneira tal que deles resultam aquelas posies de privilgio (Machtpositionen) a que ns chamamos direitos subjectivos. KELSEN exprime isto mesmo nos seguintes termos: "Temos perante ns um direito subjectivo (Berechtigung) quando, entre os pressupostos da consequncia jurdica ilicitude, figura uma manifestao de vontade, dirigida quela consequncia, daquele que lesado nos seus interesses pelo facto ilcito, manifestao de vontade essa vertida na forma de uma aco ou de uma queixa (ou reclamao)". Assim, "o direito subjectivo no se situa em face do Direito objectivo como algo independente dele". "O dualismo de direito subjectivo e Direito objectivo desaparece". Sempre que h direitos subjectivos, sempre que eles so "concedidos", so concedidos atravs da criao de imperativos. Nem alis poderia ser doutro modo, por isso que o direito, por si mesmo, no dispe de qualquer outro meio de aco seno daquele que lhe conferido atravs do poder de emitir comandos. Tudo o que o Direito realiza, realiza-o atravs da utilizao deste poder de comando. Ele no dispe dum saco cheio de direitos subjectivos no qual possa meter a mo para os espalhar entre o povo. Na sua relativa pobreza assentam, em ltimo termo, as razes de todas as dificuldades do Direito. Como

os direitos subjectivos s podem ser concedidos agravando as outras pessoas com exigncias e obrigaes - mesmo que se trate apenas da obrigao de conservar uma coisa ou de se abster duma aco -, muito mais difcil realizar a justia do que se se tratasse da distribuio de um preexistente tesouro de direitos subjectivos. Tambm a uma me custa menos se tem de repartir justamente um bolo entre os seus filhos do que se se v obrigada a impor obrigaes a um filho para vantagem do outro. Ainda desta perspectiva se faz nova luz sobre a distino entre a simples permisso e a chamada concesso de direitos subjectivos. Com cada nova permisso so limitadas as proibies, os imperativos perdem terreno. Quando se trata de novas concesses de direitos, pelo contrrio - como aconteceu, no nosso tempo, e. g., com o reconhecimento dos direitos de autor - os imperativos aumentam necessariamente. O domnio do permitido alarga-se tanto mais quanto mais os imperativos se dissolvem. Inversamente, o inventrio dos direitos subjectivos apenas pode aumentar em paralelo com o aumento do inventrio das proibies e prescries (3). Se nos lcito, portanto, afirmar sem receio o carcter primrio de imperativos de regras jurdicas essenciais perfeitas (completas), no vamos no entanto esquecer que a vontade imperativista do legislador no uma vontade desvinculada (incondicionada), um mero arbtrio. Os comandos e proibies do Direito tm as suas razes nas chamadas normas de valorao (4), eles fundamentam-se - dito de forma mais simples - em valoraes, em aprovaes e desaprovaes. Tem inteira razo o moralista FR. JODL quando afirma que todo o imperativo "j pressupe necessariamente o juzo de que aquilo que se exige tem um valor particular, um valor prprio, e por isso mesmo que exigido". Com igual razo se exprime o criminalista E. MEZGER: "o Direito, enquanto 'norma determinativa' (=imperativo) no de modo algum 'pensvel' sem o Direito enquanto 'norma valoradora' - o Direito como norma valoradora um necessrio pressuposto lgico do Direito como norma determinativa... Pois quem pretende 'determinar' algum a fazer algo tem de previamente conhecer aquilo a que o quer determinar: ele tem de 'valorar' aquele algo num determinado sentido positivo. Um prius lgico do Direito como norma de determinao sempre o Direito como norma de valorao, como 'ordenao objectiva da vida'". Temos de reconhecer como acertadas estas consideraes, pelo menos quando no vejamos no Direito a expresso da vontade caprichosa de um dspota mas o produto de ponderaes racionais. Nestes termos, por exemplo, o aborto no proibido por acaso, mas porque se considera ou estima aquele ser vivo em gestao como sagrado e intocvel e se reconhece a necessidade de lhe conceder proteco jurdica contra os perigos que o ameaam, nas situaes de conflito, por parte da

grvida e de terceiras pessoas. Somente no caso de estas situaes de conflito se apresentarem com uma configurao tal que se deva dar preferncia a outros interesses sobre aquela vida em gestao, que poder ter lugar uma valorao diferente e abrir-se uma excepo proibio do aborto. neste sentido que hoje, entre ns, se reconhece a chamada indicao mdica como fundamento para a "interrupo da gravidez", com o fim de se afastar um perigo srio para a vida ou a sade da grvida, com o consentimento desta. A proibio do aborto, assim como as excepes a esta proibio, fundamentam-se, portanto, em valoraes prvias. Pode, de um modo inteiramente geral, afirmar-se que a indagao destas valoraes subjacentes s regras jurdicas de mxima importncia para a correcta compreenso e para a determinao do contedo de tais regras. A este ponto voltaremos ainda mais adiante. Todavia, tambm esta considerao no de molde a impedir-nos de ver a substncia das regras jurdicas no seu carcter imperativo. Com efeito, a valorao s se torna genuna regra jurdica ao armar-se com um imperativo. Com simples normas de valorao no poderia o Direito exercer o domnio que lhe compete sobre a vida dos homens em comunidade. S na medida em que as normas de valorao adquirem a fora de manifestaes de vontade e, portanto, de ordens ou comandos, que elas se transformam em normas jurdicas. Tendo, portanto, de nos conformar com a tese de que as normas jurdicas so, no seu contedo essencial, imperativos, ela no deixar de fazer surgir, no esprito daqueles que conhecem o mundo conceitual da filosofia kantiana, a seguinte pergunta: so estes imperativos categricos ou hipotticos? J dissemos que as regras ou proposies jurdicas so regras hipotticas de dever-ser. Voltemos de novo a este ponto. Primeiramente trata-se de saber, luz da terminologia kantiana, qual a espcie a que pertencem os imperativos jurdicos. Ora: "Os imperativos ou so hipotticos ou categricos. Os primeiros pem a necessidade prtica de uma possvel conduta como meio para qualquer outra coisa que se pretende alcanar. O imperativo categrico seria antes aquele que apresentasse uma conduta como objectivamente necessria por si mesma, sem referncia a qualquer outro fim". Por outras palavras, os imperativos hipotticos so apenas bons conselhos do teor seguinte: se queres alcanar este ou aquele fim, tens de recorrer a este ou quele meio. Eles so indicaes tcnicas nas quais se pressupe "hipoteticamente" um determinado fim. KANT designa-os tambm por "imperativos de percia" e acentua de forma incisiva: "A questo no a de saber se o fim racional e bom, mas apenas a do que temos de fazer para o alcanar. A receita do mdico para de forma segura fazer com que o seu paciente recupere a sade, e a do envenenador para com segurana lhe provocar a morte, so sob este aspecto de igual valor, pois que ambas so adequadas

realizao perfeita do respectivo fim". O clebre livro de N. MAQUIAVEL sobre o prncipe neste aspecto um palpitante exemplo de um repertrio de imperativos hipotticos (para fins polticos). Alm de tudo o mais um trao essencial de toda a tcnica moderna formular imperativos hipotticos que ensinam os meios de realizar determinados fins, sem discutir ou apreciar moralmente os mesmos. Ora, bem ao contrrio, a funo dum imperativo categrico precisamente dizer-me qual o fim que eu me devo, propor em cada caso, incondicional e absolutamente, "sem referncia a um outro fim". Devo eu, como mdico, curar ou, como envenenador, matar? A proposio: "No deves matar", um imperativo categrico. Do mesmo modo, "a lei penal um imperativo categrico", quer dizer, um imperativo categrico que o criminoso sofra a pena merecida. esta pelo menos a concepo de KANT na sua Metafsica dos Costumes. Claro que existe uma ntida diviso do trabalho (distribuio de funes) entre "tcnica" e "moral". A tcnica ensina-me os meios para alcanar o fim e deixa moral a determinao do prprio fim. A tcnica moralmente indiferente ou, para ser mais exacto, ela recebe a sua significao moral da moralidade ou imoralidade dos fins a cujo servio se coloca. A qual dos domnios pertencem, pois, as regras jurdicas? A cincia jurdica mais enformada por uma orientao tcnica ou por uma orientao tica? Ora certamente que as regras jurdicas, sob certo aspecto, so de conceber como preceitos que exigem determinados meios para determinados fins. Ns vimos, por exemplo, que uma grande parte dos imperativos probem ou prescrevem determinadas condutas, para desse modo criarem aquelas posies de privilgio a que ns chamamos direitos subjectivos. Mas, parte isto, o Direito est sob o signo e o critrio da convenincia prtica (da adequao a fins). Ele deve conformar (modelar) a vida da comunidade de modo ajustado a certos fins. E, no entanto, seria errado conceber por isso as regras jurdicas como imperativos hipotticos, no sentido kantiano. Desde logo, porque o prprio Direito aprecia os fins em ordem aos quais estabelece as suas regras. Ele valora (estima) determinados fins como bons e por a mesmo se submete, na medida em que enformado pela aspirao ao "justo", aos princpios morais. O mal-afamado princpio do Nacional-Socialismo: "O Direito o que til para o povo", que na realidade ameaou degradar o Direito a um conjunto de meros imperativos hipotticos, um princpio que no s se apresenta como uma aberrao do ponto de vista tico mas tambm como inadequado do ponto de vista da teoria do Direito. Isto porque nos no d qualquer resposta questo de saber o que til e proveitoso para o povo e ainda porque ns esperamos do direito precisamente uma resposta questo de quais os fins que, sob o rtulo "utilidade do povo", devemos prosseguir: a ordem fronteiras adentro ou a afirmao de poder em relao ao exterior, a paz ou a

expanso guerreira, o progresso cultural ou a riqueza material, a felicidade do indivduo ou a maior vantagem da comunidade? O prprio Direito, portanto, fixa os fins e exige a sua realizao de uma forma to incondicional, dum modo exactamente to "categrico", como a moral. Resulta, pois, como consequncia desta concepo, que, na interpretao e na aplicao dos imperativos jurdicos, devemos "entender" "compreender") estes como meios para alcanar os fins que o Direito considera bons. Inversamente, quando nos achamos perante imperativos hipotticos, somos livres para nos decidir a favor ou contra o fim. S se queremos o fim e o queremos alcanar com segurana que temos de nos orientar pelo imperativo hipottico, o qual nos aconselha os meios apropriados. Mas no ser justamente que o Direito deixa a cada um a escolha dos fins e se limita a fornecer-lhe os meios? Esta concepo pode encontrar apoio no facto de as regras de Direito ligarem determinados efeitos jurdicos, conformes ou contrrios vontade do agente, a determinadas aces, com a indicao de que, se pretendo esses efeitos ou estou disposto a aceit-los, tenho de praticar ou posso praticar as respectivas aces. Assim, por um lado, eu posso, atravs de uma declarao de vontade, da concluso de um acordo, duma petio junto duma autoridade e de actos semelhantes, produzir efeitos jurdicos que so de meu agrado; mas tambm posso, por outro lado, praticar "actos ilcitos" e "actos punveis", isto desde que me disponha a sujeitar-me prestao de perdas e danos e a suportar a punio. de acordo com o esprito desta concepo que A. RUESCH afirma: "Quem, conhecendo exactamente a pena em que incorre, se decide a cometer o crime, decide-se simultaneamente a suportar a pena, considerando-a um preo justo ou at vantajoso da satisfao que lhe proporciona o crime". Podemos ainda ler, num autor de certo relevo que escreve sobre teoria do Direito, a seguinte frase: A norma jurdica "limita-se a apresentar uma conduta como condicionalmente recta, ou seja, como meio para fins que talvez sejam por ns perseguidos, ou que talvez sejam, ao contrrio, por ns detestados, mas esto conformes com a vontade de quaisquer pessoas e, portanto, ho-de ser garantidos pelo poder posto ao servio dessa vontade". Ou ouamos o grande jusfilsofo italiano DEL VECCHIO falar - com intuito de repdio, claro - daqueles que "declaram que o Direito deixa ao devedor a liberdade de no pagar a sua dvida quando prefira sujeitar-se, por causa dela, execuo forada, e alm disso, que qualquer pessoa pode praticar um crime, desde que esteja pronta a sofrer a respectiva pena". Com o prprio DEL VECCHIO devemos, porm, afirmar que "o Direito tem um carcter ao mesmo tempo hipottico e categrico". As coisas passam-se efectivamente da seguinte maneira: Quanto sua substncia, a regra jurdica um imperativo categrico. Ela exige (prescreve) incondicionalmente. De certo que constituiria um mal-entendido

simplesmente lastimvel pensar-se que a regra jurdico-penal poderia significar que nos pertence a escolha entre matar ou no matar, entre a priso e a liberdade, que nos lcito, por isso, desde que estejamos prontos a passar a vida por detrs das grades da priso, cometer tranquilamente um homicdio. O Direito moderno probe o homicdio com tanta firmeza como a Lei mosaica. De igual modo, constitui um imperativo categrico que o transgressor da proibio seja punido. KANT viu isso muito bem. Da deriva para o Direito hodierno o chamado princpio da legalidade: o Ministrio Pblico, que tem por funo perseguir o crime, , segundo o Cdigo de Processo Penal, "obrigado a agir por todos os actos que podem ser judicialmente punidos e investigados". isto o que vale em geral para toda a espcie de actos ilcitos ou punveis. Vale em relao a tais actos o comando estrito da sua omisso, tanto por parte do Direito como, de resto, em grande medida, tambm por parte da moral. E no so menos categricos os deveres de prestar comunidade jurdica certas contribuies positivas, por exemplo: pagar impostos, suportar expropriaes, etc. tambm um preceito categrico aquele que ordena o cumprimento das obrigaes de Direito privado assumidas atravs de declaraes de vontade, especialmente atravs da concluso de tratados. Todavia, o certo que depende de ns o querermos ou no vincular-nos atravs duma declarao de vontade celebrao dum contrato. Nesta medida, est nas nossas mos o poder de utilizar as regras e os preceitos jurdicos como meio para a modelao planeada das nossas relaes de vida. Uma vez, porm, que nos tenhamos vinculado, -nos categoricamente exigido o cumprimento das obrigaes que assumimos. A clebre mxima "pacta sunt servanda" tambm , pois, um imperativo categrico - e muitas vezes considerada como de "Direito natural". O certo que os imperativos jurdicos so "hipotticos" num sentido inteiramente distinto daquele que corresponde terminologia kantiana. Eles so hipotticos, no no sentido de que temos de seguir determinadas prescries quando queremos alcanar certos fins, no nos sendo imposto nada de vinculativo quanto aos mesmos fins, mas, antes no sentido de serem conexionados a determinados pressupostos, em parte expressamente fixados, em parte tacitamente subentendidos. As regras jurdicas, por outras palavras, so imperativos hipotticos no mesmo sentido em que j acima chamamos hipotticas s regras normativas. "Toda a regra jurdica representa em certo sentido uma hiptese, pois que ela apenas aplicvel quando se apresentem certas circunstncias de facto que na prpria regra se acham descritas". Assim, por exemplo, a proibio de matar, no obstante o seu carcter categrico, pressupe que se esteja em face de uma situao normal, e no duma situao excepcional, como o seriam a situao

de legtima defesa, a existncia duma sentena de morte passada em julgado ou o estado de guerra. Propriamente a proibio de matar tem o seguinte teor: quando no seja caso de legtima defesa, de execuo duma sentena de morte ou de realizao de uma operao militar em tempo de guerra, proibido matar. E c temos um imperativo concebido sob a forma hipottica. Para o no confundirmos com o "imperativo hipottico" no sentido de KANT, podemos design-lo por imperativo condicional. Dificilmente se poder pensar num imperativo jurdico que no seja condicionado por este modo. Ora, como os lgicos, no chamado juzo hipottico (se a, logo b), distinguem entre prtase e apdose, assim tambm ns devemos distinguir no imperativo jurdico condicional a prtase da apdose. A prtase contm os pressupostos de cuja verificao depende o imperativo, a apdose o prprio imperativo (5). O jurista chama prtase "hiptese legal" e apdose "consequncia jurdica", devendo a propsito desta ltima pensarse no comando ou estatuio de consequncias jurdicas, no deverser de uma prestao (aco), tolerncia ou omisso. Pode, de resto, duvidar-se, num caso concreto, sobre o que pertence "hiptese legal" e o que faz parte da "consequncia jurdica". Quando o 823 do Cdigo Civil diz: "Aquele que intencional ou negligentemente lesar ilicitamente a vida, a integridade fsica... de outrem, fica obrigado a perdas e danos pelos prejuzos que da resultem", podemos perguntar-nos se a frmula "danos que da resultem" pertence propriamente hiptese legal ou consequncia jurdica. A soluo correcta a seguinte: pertence aqui hiptese legal que um determinado prejuzo tenha surgido, e consequncia jurdica que precisamente esse prejuzo que deve ser indemnizado. Pertence, com efeito, hiptese legal tudo aquilo que se refere situao a que vai conexionado o dever-ser (Sollen), e consequncia jurdica tudo aquilo que determina o contedo deste dever-ser. Sobre a hiptese legal muito haver ainda a dizer. Desde logo isto: que ela pode no ser constituda apenas por elementos positivos, mas tambm por elementos negativos, como o mostram os exemplos que acima apresentmos referentes s excepes a imperativos; que podem entrar a fazer parte dela, alm disso, no s elementos exteriores, apreensveis pelos sentidos, mas tambm momentos interiores, psquicos, "subjectivos" (v. gr., "intencionalmente", no referido 823); ou que podemos encontrar nela, ao lado de elementos descritivos (como, v. gr., "leso corporal"), elementos referidos a valores, "normativos" (v. gr., no 826 do Cdigo Civil, "ofensa aos bons costumes"). No nos ocuparemos por agora em detalhe destas distines. Pelo menos algumas delas tero de ocupar de novo a nossa ateno. A teoria da hiptese legal tem sido objecto de uma elaborao particularmente subtil dentro da cincia do Direito penal, o que em parte se

relaciona com um clebre princpio, que tambm se encontra expresso no artigo 103, al. 2, da Constituio, o princpio: nulla poena sine lege (nunca se aplica uma pena sem um fundamento legal). Deste princpio resulta, designadamente, que os preceitos de Direito penal tm de circunscrever com relativo rigor as hipteses (ou tipos) legais a que vai ligado o comando da punio contido na consequncia jurdica (estatuio). Por outro lado, desempenham um papel especial entre as hipteses legais aquelas do Direito civil que em si incluem declaraes de vontade, como designadamente todas as hipteses legais que tm por objecto a celebrao de contratos (exemplo: 652 do Cdigo Civil, relativo ao contrato de corretagem: "Quem promete uma comisso pela informao sobre a oportunidade de celebrar um contrato ou pela interveno de algum como intermedirio num contrato..."). Tais hipteses legais, como j referimos, possibilitam-nos a modelao das nossas relaes da vida de acordo com a nossa vontade. Elas tornam possvel a "autonomia privada" e permitem-nos dispor dos imperativos jurdicos duma maneira tal que nos levou a duvidar do seu carcter categrico. O sentido destes imperativos parece ser, com efeito, o de que, se queremos alcanar determinados fins (no exemplo: a informao sobre uma oportunidade de celebrar um contrato), nos temos de obrigar a uma contraprestao atravs das correspondentes "declaraes de vontade". Todavia, importa considerar que a obrigao, fundada em ltimo termo na declarao de vontade, tem ela mesma carcter imperativo: "quod initio est voluntaris, posterea fit necessitatis" (GROCIO). Mas h algo que precisamos pr em destaque antes de prosseguirmos na nossa indagao: que tanto a hiptese legal como a estatuio (consequncia jurdica) so, enquanto elementos da regra jurdica, representadas por conceitos abstractos. Assim como os juzos hipotticos no sentido lgico so constitudos por conceitos, de igual modo o so a prtase e a apdose de um imperativo jurdico condicional. Por isso, a "hiptese legal" e a "consequncia jurdica" (estatuio), como elementos constitutivos da regra jurdica, no devem ser confundidas com a concreta situao da vida e com a consequncia jurdica concreta, tal como esta proferida ou ditada com base naquela regra. Para maior clareza chamamos por isso "situao de facto" ou "concreta situao da vida" hiptese legal concretizada. Infelizmente, porm, no existe qualquer designao para a consequncia jurdica concreta. No obstante, o nosso Cdigo Penal esfora-se por exprimir a distino entre a consequncia jurdica abstracta e a concreta, designando a pena estatuda na lei em forma abstracta como "cominao penal" (ou pena cominada) e a pena concreta, isto , a pena "medida" ou fixada para o caso concreto, como "pena aplicada" (vejam-se, por exemplo, o 52, por um lado, e o 53 pelo outro, ambos do Cdigo Penal). Aquela "cominao penal" (pena cominada)

muitas vezes indeterminada. Assim, p. ex. a "pena de multa" frequentemente cominada sem indicaes precisas sobre o seu montante, se bem que, segundo certos preceitos da Parte Geral (cfr. 40 e s. do Cdigo Penal), existam limites mnimos e limites mximos. A pena "aplicada" em princpio, ao contrrio, exactamente determinada (ela , p. ex., multa correspondente a 20 dias, cujo montante o tribunal "determina"). Temos uma excepo a isto no direito da delinquncia juvenil, onde existe a possibilidade de uma durao indeterminada, embora dentro de certos limites. Ora, se tivermos em mente esta distino do abstracto e do concreto, toparemos ainda com um discutidssimo problema que no quero passar aqui em claro, por isso que rico de ensinamentos sobre a especificidade do pensamento jurdico. Refiro-me questo de saber qual a relao em que se encontram entre si a hiptese legal e a consequncia jurdica. At aqui limitamo-nos a caracterizar esta relao como relao de condicionalidade: a hiptese legal, como elemento constitutivo abstracto da regra jurdica, define conceitualmente os pressupostos sob os quais a estatuio da consequncia jurdica intervm, a consequncia jurdica desencadeado. Nada se ope a que concebamos esta relao tambm como pura e simples predicao, tal como frequentemente o faz o prprio legislador. Na verdade, em vez de dizer: "se algum intencional ou negligentemente lesa a vida, a integridade fsica, a sade..., fica obrigado a reparar os prejuzos que da resultem", diz antes: "Quem intencional ou negligentemente lesa..., fica obrigado a reparar os prejuzos que da resultem". Por conseguinte, logicamente indiferente dizer que, sob as condies (pressupostos) formuladas na hiptese legal vale (intervm) a consequncia jurdica, ou dizer que para a hiptese legal vale a consequncia jurdica. Todavia, a primeira formulao exprime mais claramente o carcter condicional dos imperativos jurdicos, ao qual ns atribumos um certo relevo. Mas, para efeito de configurar com maior elasticidade o carcter especfico do pensamento jurdico, tambm j se tem apresentado aquela relao de condicionalidade como uma forma particular de causalidade do jurdico. Foi o que fez, j no sculo passado, ZITELMANN, na sua importante obra "Irrtum und Rechtsgeschft", de 1879 (pp. 214 e ss.): entre a hiptese legal e a consequncia jurdica existe "um especfico vnculo de necessidade, criado pelo legislador, que ns no podemos conceber doutra maneira seno por analogia com a causalidade natural" (p. 216). Trata-se aqui de uma "causalidade prpria do jurdico, criada pelos homens inteiramente por analogia com a causalidade natural" (p. 221). O legislador institui, entre a hiptese legal e a consequncia jurdica - quer dizer, o estar-obrigado de uma pessoa -, uma conexo causal cuja existncia ele mesmo determina. De entre os eminentes juristas

contemporneos, A. VON TUHR seguiu as pisadas de ZITELMANN. Escreve: "O mundo jurdico est submetido, tal como os processos da realidade exterior, ao princpio da razo suficiente. Entre a hiptese legal e a consequncia jurdica existe uma causalidade baseada, no na ordem da natureza, mas na vontade da lei, que, como a causalidade dos fenmenos da natureza, se fundamenta em ltimo termo na estrutura do pensamento humano. Uma modificao no mundo do Direito somente surge (acontece) quando se verificou a situao descrita na hiptese legal para tanto necessria; ela desencadeia-se sempre que a situao descrita na hiptese legal se apresenta, com uma necessidade inarredvel, por assim dizer automaticamente, e isto no preciso momento em que a situao descrita na hiptese legal se completa: entre a causa jurdica e o efeito no medeia, tal como na natureza fsica, qualquer espao de tempo mensurvel". "A causalidade jurdica (a circunstncia de um facto arrastar consigo efeitos de Direito) baseia-se na determinao da lei e, por isso, pode ser livremente modelada por ela: o Direito pode coligar a quaisquer factos quaisquer consequncias jurdicas". Desta ideia de uma causalidade jurdica extraem-se tambm consequncias prticas, por exemplo: que uma consequncia jurdica no pode produzir-se duas vezes ou ser duas vezes anulada. No h "efeitos duplos" no Direito. Se algum, por exemplo, se torna proprietrio com base num negcio jurdico, no pode tornar-se uma vez mais proprietrio com base numa outra hiptese legal, v. gr., numa usucapio. Ou ento, se um negcio jurdico j nulo com base em certa hiptese legal, no pode ser declarado nulo uma vez mais com base noutra hiptese legal, por exemplo, com base no dolo. Neste sentido diz VON TUHR que "um direito, uma vez constitudo, no pode voltar a constituir-se, e um direito que ainda se no constituiu ou se extinguiu no pode ser anulado". Suponhamos por exemplo que, num processo em que se discute a validade de um contrato de compra e venda, uma das partes, que quer ficar desligada do contrato, alega primeiramente que tal contrato ofende os bons costumes e , por isso, nulo. Pode ento a mesma parte, no caso de encontrar dificuldades de prova, alegar, alm disso, que o contrato foi concludo por dolo, pelo que ataca a sua validade e requer a sua anulao com este fundamento? Segundo o ponto de vista de VON TUHR isso no possvel, pois contrrio "causalidade jurdica". Um direito no constitudo no pode ser anulado atravs duma aco de anulao. Contra a teoria da existncia duma conexo jurdico-causal entre a situao descrita na hiptese legal e a consequncia jurdica, tem-se repetidas vezes objectado que ela confunde uma conexo lgica com uma conexo causal. Com grande perspiccia declara, por exemplo, BINDER que "pura insensatez os juristas falarem de 'efeito (=eficincia) jurdico'". Tratar-se-ia de simples

linguagem figurativa - pois que a consequncia jurdica no poderia ser concebida, como todo o efeito genuno, como "modificao dum estado de coisas", ela no teria qualquer "realidade (efectividade) objectiva, quer no mundo fsico quer no mundo psquico". A consequncia jurdica em nada mais consistiria seno "numa conexo lgica da situao de facto (descrita na hiptese legal) com a regra jurdica na sua referncia normativa". Todavia, no com esta facilidade toda que se consegue afastar a concepo causalista. Pelo caminho seguido por BINDER parece que no chegamos ao problema propriamente dito. Quando um juiz "refere regra jurdica" uma factualidade concreta prevista na hiptese legal, uma situao da vida, portanto, quer dizer, quando ele a "subsume" hiptese abstracta da lei, com esta subsuno somente no chega consequncia jurdica concreta, mas unicamente quando logicamente pressuponha que, na lei, por um lado, e no caso concreto, pelo outro, a situao descrita na hiptese legal arrasta consigo a consequncia jurdica. precisamente a este atrair-a-si (ou arrastar atrs de si) que os causalistas do a designao de causalidade jurdica. Por conseguinte, a questo apenas pode ser a de se est certo que chamemos causalidade a esta conexo entre hiptese legal e consequncia jurdica, in abstracto (dentro da regra jurdica, portanto) ou in concreto (quer dizer, com referncia ao caso da vida que cai sob a regra jurdica). Quando BINDER observa que tal no possvel porque a consequncia jurdica no possui qualquer realidade (eficcia) objectiva, poder-se-ia responder que seria justamente uma limitao indevida do conceito de causalidade pretender aplic-lo somente a modificaes no mundo dos objectos fsicos e psquicos - pois que tambm h produtos espirituais que talvez possam ser submetidos categoria da causalidade. Por que haveramos de no poder dizer que uma promessa "produz" (provoca) uma pretenso ou uma obrigao com a mesma propriedade com que dizemos que uma pancada produz (provoca) uma ofensa corporal ou uma dor psquica? Desde HUME e KANT que, duma forma ou doutra, se encontra afastada a ideia de que a prpria causalidade seja algo de objectivo (etwas Gegenstndliches). Em todo o caso, sempre verdade que a causalidade natural se baseia em leis naturais, ao passo que a causalidade jurdica se funda em leis humanas, sendo que estas ltimas em certo sentido so produto duma criao arbitrria. Mas tambm com esta considerao no fica o assunto arrumado: " verdade que os factos jurdicos no possuem por si mesmos a sua fora criadora de Direito (rechtserzeugende Kraft), mas a recebem da lei ou do costume: a causalidade jurdica instituda pelo... Estado. Mas tambm os factos naturais no operam por si o resultado (efeito) natural, antes o mundo criado e ordenado num plano situado para alm deles...". Impe-se mais e mais a ideia de que estamos envolvidos numa luta de palavras. Se os juristas, em

vista das descritas analogias entre a conexo natural e a conexo jurdica, querem chamar causalidad