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Página 1 04.08.2013 ISSN: 2236-8221 Edição n. 58, Julho de 2016. Vitória da Conquista, Bahia. O corpo é discurso A edição 58 de O Corpo é Discurso inaugura suas seções com o Pockets Comix: Inspiração. Em seguida, um conto: A espreita do fim do mundo. O primeiro artigo trata dos mecanismos cine- matográficos em discurso. Convite imperdível para o I Encontro Foucault e Discurso na Bahia— Outras palavras: o nó na rede. O hermafroditismo e a virilidade da mulher entra em discussão no segundo artigo. Sexo com Foucault e Freud é a temática principal do próximo simpósio que acontece no Labedisco/Uesb. O grupo de pesquisa Infância e Educação Infantil apresenta seus afazeres e suas componentes. A doutoranda Samene Batista entrevista a professora de dança Lorena Albuquerque: o corpo no ballet clássico. Dica de vídeo-aula no canal do Labedisco no Youtube. Por fim, a dica de leitura do livro “O cânone visual: As belas-artes em discurso” do Prof. Dr. Renan Mazzola. Boa leitura! ISSN: 2236-8221 FUNDADORES (15/03/2011) Nilton Milanez Cecília Barros-Cairo EXPEDIENTE DE O CORPO É DISCURSO Editores Nilton Milanez (LABEDISCO/CNPq/UESB) Ricardo Amaral (PPGMLS/FAPESB) Vilmar Prata (PPGMLS/FAPESB) Organizador Matheus Vieira (IC/CNPq) Samene Batista (PPGMLS/LABEDISCO) Revisão George Lima (PPGLIN/CAPES) Layanne Mussy (LABEDISCO/PSINEMA/CNPq) Otávio Ribeiro (IC/LABEDISCO) Vinícius Reis (PPGMLS/LABEDISCO) Coordenação da Seção de Literatura Jamille da Silva Santos (GPEA/LABEDISCO/UFU) Coordenação da Seção de Ensino e Tecnologia Jaciane Ferreira (IFGoiano-Campus Iporá) Diagramador Gilson Santiago (IC/LABEDISCO) Estagiário Nathan Soares (Cinema e Audiovisual/UESB) Secretária Géssica Soares Editoração eletrônica (MARCA DE FANTASIA) Henrique Magalhães Jornal de popularização científica Acesse o site do Labedisco: www2.uesb.br/labedisco Contato: [email protected]

ISSN: 2236-8221 Jornal de popularização científicaE esses meninos do Nicolau, chutando essa maldita bola contra a parede. Que inferno! Tum tum tum tum tum... Eu não vou sentir

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O Corpo

Página 1

04.08.2013

ISSN: 2236-8221

Edição n. 58, Julho de 2016. Vitória da Conquista, Bahia.

O corpo é discurso

A edição 58 de O Corpo é Discurso inaugura suas seções com o Pockets Comix: Inspiração. Em

seguida, um conto: A espreita do fim do mundo. O primeiro artigo trata dos mecanismos cine-

matográficos em discurso. Convite imperdível para o I Encontro Foucault e Discurso na Bahia—

Outras palavras: o nó na rede. O hermafroditismo e a virilidade da mulher entra em discussão

no segundo artigo. Sexo com Foucault e Freud é a temática principal do próximo simpósio que

acontece no Labedisco/Uesb. O grupo de pesquisa Infância e Educação Infantil apresenta seus

afazeres e suas componentes. A doutoranda Samene Batista entrevista a professora de dança

Lorena Albuquerque: o corpo no ballet clássico. Dica de vídeo-aula no canal do Labedisco no

Youtube. Por fim, a dica de leitura do livro “O cânone visual: As belas-artes em discurso” do

Prof. Dr. Renan Mazzola. Boa leitura!

ISSN: 2236-8221

FUNDADORES

(15/03/2011)

Nilton Milanez

Cecília Barros-Cairo

EXPEDIENTE DE O CORPO É DISCURSO

Editores

Nilton Milanez

(LABEDISCO/CNPq/UESB)

Ricardo Amaral

(PPGMLS/FAPESB)

Vilmar Prata

(PPGMLS/FAPESB)

Organizador

Matheus Vieira

(IC/CNPq)

Samene Batista

(PPGMLS/LABEDISCO)

Revisão

George Lima

(PPGLIN/CAPES)

Layanne Mussy

(LABEDISCO/PSINEMA/CNPq)

Otávio Ribeiro

(IC/LABEDISCO)

Vinícius Reis

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Coordenação da Seção de

Literatura

Jamille da Silva Santos

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Coordenação da Seção de

Ensino e Tecnologia

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(IFGoiano-Campus Iporá)

Diagramador

Gilson Santiago

(IC/LABEDISCO)

Estagiário

Nathan Soares

(Cinema e Audiovisual/UESB)

Secretária

Géssica Soares

Editoração eletrônica

(MARCA DE FANTASIA)

Henrique Magalhães

Jornal de popularização científica

Acesse o site do Labedisco: www2.uesb.br/labedisco Contato: [email protected]

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Renato Lima é graduado em Pintura pela Escola de Belas Artes - UFRJ. Para saber mais sobre o autor e

suas produções, acesse também o site Pockets - Histórias de Bolso ou a página de Facebook Pocketscomics.

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Realização:

Desde ontem que não paro de pensar nisso. Mas não ontem, ontem! É um ontem que já faz tempo. Já faz um bom tempo.

Daqui do alto vejo tudo que se passa lá fora. Chego antes do Sol nascer e só saio quando a Lua se enfada de mim. Todo dia é assim.

Uns diriam que o tempo custa a passar. Eu acho que ele passa rápido demais. Ainda pouco o Justino subiu com a carrocinha de p ico-lés. Pensei que não teria tempo de vê-lo voltar. Sempre acho isso. Que não vou estar mais aqui quando alguma coisa que ainda não

aconteceu está para acontecer.

Lá vem o Justino de volta. Vem sorrindo. Deve ter vendido tudo hoje. Engraçado como hoje é sempre hoje. E eu sempre acho que vai

ser hoje. Desde ontem que não paro de pensar nisso.

– Boa tarde, Seu Gomes!

– Boa tarde, Justino!

Ainda bem que esta cadeira é bem confortável. E que a varanda é espaçosa e fica no patamar. Daqui vejo tudo. Vejo o Baltazar, guar-

da noturno, saindo pra trabalhar na boca da noite. Depois vejo a Neuzinha, mulher dele, recebendo os amantes pela rua detrás. Ela

nem fecha a janela. Deve achar que estou cego, ou meio cego. Mulher fogosa. Faz coisa que o Cão duvida. Pobre Baltazar. Às vezes

sinto pena dele. Mas eu gosto de ver a Neuzinha prevaricando. É uma das coisas que mais gosto de ver. Danada essa Neuzinha. Vai

ver que o Baltazar nem aguenta tanta danação. Será que hoje vai ter? Tomara que eu ainda esteja aqui pra ver! Desde ontem que não

paro de pensar nisso.

Dona Jurema passou, agorinha, pra comprar o pão. Seis da manhã e cinco da tarde. Todo dia. Agora estava apressada, nem me cum-

primentou. Mas na volta ela fala comigo. Se eu ainda estiver por aqui. Até que ela é bem apanhada. Viúva há tanto tempo. Se eu tives-

se mais fé nesse tal de amanhã... Dona Jurema até que caía bem. Pelo menos pra esquentar os pés no inverno.

Os pestes dos meninos do Nicolau chegaram da escola. Jesus! Como esses meninos são danados! Esse mais velho então... Alguém

tem que abrir os olhos do Nicolau. Isso não vai dar coisa que preste não. A mãe não tem pulso firme.

Não gosto quando esse caminhão para aqui em frente pra descarregar na venda do Arnaldo. Fico com a visão encoberta. Se eu ainda estiver por aqui, quando amanhã for hoje, vou reclamar com o Arnaldo. Pode, muito bem, parar mais à frente. Fica até melhor pra

descarregar.

– Boa tarde, Seu Gomes!

– Boa tarde, Dona Jurema!

Não disse que na volta ela falava?

O Arnaldo é esperto. Só paga a mercadoria depois que confere tintim por tintim. E Dona Helena fica lá, de olho no caixa e atendendo os clientes. Dona Helena, sim, mulher de respeito. O Arnaldo deu muita sorte. Ela bem que podia dar umas aulas pra Neuzinha, ensi-

nar uns predicados. Os meninos do Arnaldo são bem criados, diferentes dessas pestes do Nicolau. Dona Helena sabe criar.

Pensando bem! Melhor ela não ensinar nada pra Neuzinha, não. Vai que ela consegue consertar a Neuzinha... Isso aqui vai ficar meio

sem graça. Se bem que vai ser bom pro Baltazar. Que nada! O que os olhos não vêem o coração não sente.

A Espreita do Fim do Mundo

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Página 4 O Corpo

Realização:

Daqui a pouco o Baltazar deve sair pra trabalhar. Será que vai ter hoje? Nesta semana ela está, até, comportada, só teve uma vez.

– Boa tarde, Seu Gomes!

– Boa tarde, professora!

É a Mariana. Professora do supletivo no colégio. Moça bonita, educada. Não sei o porquê de não ter, ainda, arranjado casamento.

Moça inteligente, trabalhadeira. Sai agora e só volta tarde da noite. O irmão mais novo vai buscar no ponto do ônibus. Na certa pra

proteger de algum vagabundo. Será que eu vou estar aqui quando ela voltar? Se eu fosse novo me casava com ela. Ah se casava!

A Mariana é muito educada, e bonita. Nunca passa sem me cumprimentar. É o último boa noite que recebo no dia. Dela e do irmão.

Depois fico aqui, vendo as luzes se apagarem.

E esses meninos do Nicolau, chutando essa maldita bola contra a parede. Que inferno! Tum tum tum tum tum... Eu não vou sentir a

menor falta disso.

Não suporto quando esse caminhão arranca, largando essa fumaça preta. Vai-te embora! Acho que vou reclamar com o Arnaldo.

Acho que vou.

As portas da venda estão precisando de graxa. Ha há há... O Arnaldo é um tremendo pão-duro. Só quer ganhar. Não gasta com nada.

Mas tem que pôr graxa nas portas. Pelo menos isso.

Opa! O Baltazar tá saindo. Coitado! Ele tinha que fazer logo uns filhos pra dar o que fazer a essa mulher. A minha falecida também

era assim, bonitona, mas eu não dei espaço, fiz logo cinco. Um atrás do outro. Pra não dar nem tempo de pensar besteira. Acho o

Baltazar meio frouxo! Depois acaba velho, sem filhos e com a testa cheia de pontas.

Ainda bem que fiz logo cinco. Um atrás do outro. Meus filhos gostam muito de mim, são preocupados comigo, sempre telefonam pra

saber como estou. Acho que minha filha vem me visitar no domingo. Às vezes ela vem. São todos muito ocupados, mas se preocupam

comigo, sempre telefonam pra saber se estou bem.

A Neuzinha acompanha o pobrezinho até o portão. Quem não vê o que eu vejo, até imagina que ela é uma esposa perfeita. Ha há há...

Perfeita ela é!

– Boa noite, Seu Gomes!

– Boa Noite, Baltazar!

Coitado do Baltazar! Agora vai tomar duas conduções até o trabalho e passar a noite toda comendo sereno. É Baltazar... Você co-

mendo sereno e...

– Seu Gomes! Vou deixar seu café aqui perto. Já estou indo.

– Vá com Deus, Maria! Chegue cedo amanhã!

– Eu sempre chego cedo, Seu Gomes. Boa noite.

– Boa noite, Maria! Domingo vou ter visita.

– Tomara Seu Gomes. Tomara!

Nem sei se vou estar aqui no domingo. Desde ontem que não paro de pensar nisso.

Maria precisa emagrecer, anda arrastando aquelas pernas gordas, parece uma tartaruga.

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Realização:

Tum tum tum tum tum. Santo Deus! Será que esses meninos não se cansam?

Enquanto eu estiver aqui vou ter que suportar isso. Mas não deve ser por muito tempo. Desde ontem que não paro de pensar nisso.

Ah... Que bom. Lá vem o Nicolau. Deve ter largado do trabalho mais cedo hoje. Tomara que ponha um fim nessa perturbação.

– Boa noite, Seu Gomes!

– Boa noite, Nicolau! Chegou mais cedo hoje. Algum problema na estação?

– Não. Tudo bem. Vim mais cedo hoje pra descansar. Amanhã vou entrar mais cedo também. Tem um colega doente. Aí os outros se

juntam e dividem o horário dele. Amanhã saio antes do dia raiar.

– Então vá descansar. Você precisa de descanso.

– Obrigado, Seu Gomes!

Que bom! Agora essas pestes vão ter que parar com essa maldita bola. Ainda bem que o Nicolau chegou mais cedo. Ainda bem.

Meu Deus! Diga que meus olhos estão me traindo. Olha só quem está entrando na casa do Baltazar. Isso é um absurdo. Deve ter d ito

pra Dona Helena que ia pro carteado da praça. Minha Nossa Senhora! Se alguém descobre... Vai ser o maior bafafá.

Essa Neuzinha não tem jeito mesmo. E Dona Helena, coitada! Ainda vende fiado pra essa cobra. O Arnaldo, também, é um safado. É

homem, eu sei... Que fosse, então, arranjar uma rapariga longe de casa. Mas não! Parede com parede.

A danada da Neuzinha ainda olha pra cá. Deve achar que estou cego, ou meio cego. Coitada! Eu vejo tudo. Só não sei até quando. Mal-

dito pensamento! Desde ontem que não paro de pensar nisso.

Quando amanhã for hoje eu vou lá na venda do Arnaldo, vou reclamar do caminhão, do barulho das portas da venda e olhar bem na

cara dele. Quero ver se vai baixar as vistas. Ele sabe, muito bem, que eu estou aqui. Sempre estou aqui. Ou então pensa que sou ce-

go... Meio cego.

A desavergonhada vai deixar, mesmo, a janela aberta. É o fim dos tempos! Vou mudar de posição pra espiar melhor.

– Boa noite, Seu Gomes!

– Boa noite, Seu Gomes!

– Bom dia, Seu Gomes!

– Bom dia, Seu Gomes!

– Seu Gooomes!!!

TOM LIRA: PROFESSOR DE LITERATURA E LÍNGUA PORTUGUESA. ESCRITOR,

TEATRÓLOGO E COMPOSITOR.

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No campo das emergên-

cias enunciativas sobre o sujeito

com deficiência, temos nos debru-

çado, em nossas pesquisas, sobre

suportes audiovisuais para pro-

blematizar o funcionamento dis-

cursivo contemporâneo acerca

desse corpo. Especificamente, em

nossa tese de doutorado, privile-

giamos o investimento discursivo

cinematográfico sobre esse sujei-

to, buscando compreender as re-

gularidades que se formam e o

modo como os códigos de visuali-

dade cinematográfica tornam-se

sistemas de saberes que investem

em uma conduta ética (FOUCAULT,

2004) para com a deficiência, ins-

crevendo modos de gestão do

corpo que se alicerçam em práti-

cas de governo de si. Entendemos,

assim, que nesse jogo de discursi-

vidades, as instâncias cinemato-

gráficas que operam sobre o visível

e o enunciável são regidas na rede

de relações que envolve o corpo e a

vida, pela dimensão do poder que

compõe o dispositivo.

Esse poder sobre a vida é

justificado, segundo Rabinow e

Dreyfus (2010), pelo ordenamento

dos indivíduos e da população em

prol de seu bem-estar. Trata-se da

gestão de vida das populações que

se constitui de escolhas políticas,

cuja emergência está relacionada às

configurações econômicas de uma

determinada sociedade. Passa-se,

assim, a exigir métodos de poder

que agenciem a produtividade da

população, definindo como prática

contemporânea uma ordem discursi-

va na qual a visibilidade dos corpos

(independente de sua especificidade)

produz a necessidade do cuidado

consigo mesmo e com o outro, e de-

fine, assim, as condutas pessoais e

sociais da convivência com as defi-

ciências.

Dada a especificidade da

materialidade de análise, nosso ob-

jetivo, neste texto, é demonstrar o

percurso traçado para chegarmos

à proposta teórico-metodológica

apresentada na tese, que viabilizou

a análise dos filmes que fizeram

parte do corpus de pesquisa. A op-

ção por esse empreendimento se

deve pela possibilidade deste qua-

dro teórico-metodológico vir a ser

mobilizado para visualizar a rede de

dispositivos que constitui a prática

discursiva sobre o corpo com defi-

ciência (ou sobre outros sujeitos)

em produções cinematográficas e

em práticas analíticas outras. Por

isso, dadas as especificidades da

tese, o quadro síntese que apresen-

tamos neste texto passou por algu-

Gabriela Guimarães Jeronimo

Yuri Araujo de Mello

Érica Danielle Silva

(GEDUEM–UEM/CNPq/UNESPAR)

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mas adaptações, para que se tor-

nasse extensivo a outras práticas

analíticas.

MECANISMOS CINEMATOGRÁFI-

COS EM DISCURSO

Em primeiro lugar, é preci-

so considerar os recursos de ela-

boração da imagem cinematográfi-

ca, sobre os quais, organizados a

partir das categorias apresentadas

por Jullier e Marie (2009) – o pla-

no, a sequência e o filme –, delinea-

mos seu funcionamento discursivo

a partir das regras de formação

dos objetos, da formação das mo-

dalidades enunciativas e da produ-

ção da verdade, demonstrando,

assim, o modo como essas táticas

se alinhavam aos da ordem históri-

ca e discursiva para tecer as es-

pessuras fílmicas. O cinema torna-

se, desse modo, um campo de do-

mínio que produz enunciados para

um dispositivo responsável pela

construção de um discurso verda-

deiro, a partir de estratégias que

promovem a visibilidade e a enunci-

abilidade dos sujeitos com deficiên-

cia.

Desde o nível do plano, uni-

dade mínima da montagem, cons-

troem-se, discursivamente, os senti-

dos do corpo com a deficiência na

tela. Com sua normatividade própria,

as estratégias que regulam a escri-

tura fílmica demarcam e descrevem

os sujeitos e lhes atribui, conse-

quentemente, um status de objeto,

tornando-os nomeáveis e descrití-

veis. Logo, esse corpo, enquanto ob-

jeto do discurso cinematográfico, é

submetido às condições de seu apa-

recimento, a partir de instâncias de

emergência, de delimitação e de es-

pecificação (FOUCAULT, 2007a).

As condições de possibilida-

de para a organização de uma se-

quência de planos, esta que segue

de uma determinada forma e não de

outra, devem ser tomadas a partir

da regularidade de discursos sobre

esses corpos. Tal regularidade é

formada por diferentes estatutos

do sujeito que fala, por lugares ins-

titucionais de onde o sujeito fala e

pelas posições-sujeito ocupadas

pelo sujeito da enunciação. De acor-

do com Foucault (2007a, p.61), es-

sas modalidades de enunciação,

“em lugar de remeterem à síntese

ou à função unificante de um sujei-

to, manifestam sua dispersão: nos

diversos status, nos diversos luga-

res, nas diversas posições que pode

ocupar ou receber quando exerce

um discurso, na descontinuidade

dos planos de onde fala”.

A proposta é compreender

a singularidade do enunciado, suas

condições de existência, fixando

seus limites e correlações com ou-

tros enunciados, demonstrando que

outras formas são excluídas da

enunciação: “deve-se mostrar por

“Com sua normativida-

de própria, as estraté-gias que regulam a es-

critura fílmica demar-cam e descrevem os

sujeitos e lhes atribui,

consequentemente, um status de objeto, tor-nando-os nomeáveis e

descritíveis.”

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Página 8 O Corpo

que não poderia ser outro, como

exclui qualquer outro, como ocupa,

no meio dos outros e relacionado a

eles, um lugar que nenhum outro

poderia ocupar. A questão perti-

nente a uma tal análise poderia ser

assim formulada: que singular exis-

tência é esta que vem à tona no que

se diz e em nenhuma outra par-

te?” (FOUCAULT, 2007a, p. 31). Trata

-se, desse modo, de observar a

emergência dos enunciados para

além da articulação de palavras ou

visibilidade de imagens; organizar

unidades de sentido a partir das

relações entre enunciados ou gru-

pos de enunciados e acontecimen-

tos.

Fundamentando-nos nos

pressupostos teórico-metodológicos

foucaultianos, definimos as produ-

ções fílmicas como lugares de enun-

ciação, inscritas em um espaço-

tempo sócio-histórico, cuja função

de existência possibilita construir

percursos temáticos que trazem à

tona dispositivos e configurações

significantes que produzem sentidos

sobre o sujeito com deficiência na

configuração social e política con-

temporânea. Importa analisar, por-

tanto, no contexto de nossa pesqui-

sa, o modo como a deficiência, en-

quanto objeto do discurso cinemato-

gráfico, é submetida a condições de

aparecimento, a partir de superfí-

cies primeiras de sua emergência,

de instâncias de delimitação e de

grades de especificação (FOUCAULT,

2007a), em um feixe complexo de

relações, o que caracteriza o discur-

so como prática.

Traçar, nessa perspectiva, a

prática discursiva cinematográfica

sobre a deficiência demonstra “[...]

o tema geral de uma descrição que

interroga o já dito no nível de sua

existência; da função enunciativa

que nele se exerce, da formação

discursiva a que pertence, do siste-

ma geral do arquivo de que faz par-

te” (FOUCAULT, 2007a, p. 149). Na

complexidade das práticas discursi-

vas, o cinema constitui, assim, um

arquivo que torna possível localizar

o processo de formação e transfor-

mação de enunciados. Segundo Fou-

cault (2007a), a análise do arquivo

comporta uma região privilegiada,

já que “nos desprende de nossas

continuidades; dissipa essa identi-

dade temporal que gostamos de nos

olhar para conjurar as rupturas da

história” (FOUCAULT, 2007a, p. 148-

149).

Nessa arquitetura enuncia-

tiva, entra no jogo discursivo cine-

matográfico o reconhecimento dos

dispositivos, da ordem do visível e

do enunciável, que atuam sobre a

produção discursiva, favorecendo

desdobramentos sempre estratégi-

cos, que se reinventam nos proces-

sos de institucionalização, ao mes-

mo tempo em que são por estes

reinventados. A noção de dispositivo

“Na complexidade

das práticas discur-

sivas, o cinema cons-

titui, assim, um ar-

quivo que torna pos-

sível localizar o pro-

cesso de formação e

transformação de

enunciados.”

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Página 9 O Corpo

é, pois, eixo condutor de nossa re-

flexão, dada sua produtividade no

campo discursivo.

LUGARES DE ENUNCIAÇÃO, RE-

PRESENTAÇÃO E DISPOSITIVO:

UMA PROPOSTA TEÓRICO-

METODOLÓGICA DE ANÁLISE

Na perspectiva que ora

adotamos, as produções cinemato-

gráficas que tratam de alguma for-

ma o corpo com deficiência consti-

tuem uma série que compõe o ar-

quivo de discursividades sobre o

sujeito com deficiência na contem-

poraneidade. Por meio de diferen-

tes estratégias de representação,

todas as materialidades convergem

para a visibilidade desses corpos e

promovem, com isso, discussões e

reflexões na sociedade em geral,

ultrapassando, assim, a função de

mero entretenimento.

A representação, delineada

sob o olhar discursivo da seme-

lhança e da similitude (FOUCAULT,

2008), não é uma cópia do real,

uma vez que mesmo pretendendo-

se repetir a realidade, essa ação se

dá de forma diferente, a cada repre-

sentação. Ao representar a realida-

de não apenas repetimos o real, mas

o transformamos. Tem-se, portanto,

na representação, o privilégio da

similitude sobre a semelhança. Se-

melhança enquanto asserção única,

reconhecimento do que está visível,

que se dá no pensamento ao relacio-

nar o que se vê ou o que se ouve a

alguma coisa que está no mundo.

Similitude enquanto “multiplicação

de afirmações diferentes”, que fa-

zem ver o que está escondido, invisí-

vel.

A partir dessas noções e

problematizações acerca da repre-

sentação, notamos que a função

enunciativa permite considerar os

elementos significativos que consti-

tuem a linguagem cinematográfica

como enunciados, o que implica atri-

buir-lhes uma função de existência;

regras que os sucedem e os justa-

põem (FOUCAULT, 2007a). O funcio-

namento discursivo da linguagem

cinematográfica, posta desta forma,

indica que os elementos significati-

vos são produzidos por uma posição

-sujeito que ocupa um lugar institu-

cional, perpassado por regras sócio

-históricas que definem e possibili-

tam sua enunciação. A mecânica

deste quadro enunciativo-discursivo

aponta para a noção de aconteci-

mento, para o qual o novo não é o

que é dito, mas o modo como ele é

(re)produzido, representado e

enunciado. De um lado a materiali-

dade repetível do enunciado, de ou-

tro a enunciação como

“acontecimento que não se repete;

tem uma singularidade situada e

datada que não pode redu-

zir” (FOUCAULT, 2007a, p.114).

É nas regularidades discur-

sivas encontradas na dispersão das

enunciações possíveis que entra em

jogo o dispositivo. Nesse escopo, o

cinema produz e faz circular emer-

gências discursivas que regulamen-

tam as práticas discursivas vigen-

tes em um período histórico especí-

fico, em uma dada sociedade. São

essas discursividades que nos inte-

ressam, uma vez que não existe

“discurso fora de dispositivos e dis-

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Página 10 O Corpo

positivos sem discurso” (COURTINE,

2013, p. 29).

É necessário, pois, pensar

sobre o modo pelo qual se entre-

cruza, na materialidade cinemato-

gráfica, uma rede de memórias,

regimes e enunciados heterogê-

neos que se apoiam em determina-

dos saberes e produzem outros,

compreendendo, assim, funções

estratégicas de controle e de regu-

lação da população. Para Foucault

(2007b), o que define o dispositivo

é essa rede de elementos hetero-

gêneos, dentre eles discursos, ins-

tituições, organizações arquitetôni-

cas, decisões regulamentares, leis,

medidas administrativas, enuncia-

dos científicos e proposições filo-

sóficas, cuja trama possibilita esta-

belecer relações entre o dito e o

não dito. Ao explicar o sentido e a

função metodológica, Foucault

(2007b) acrescenta que, devido à

natureza desses elementos, [...] tal

discurso pode aparecer como pro-

grama de uma instituição ou, ao

contrário, como elemento que per-

mite justificar e mascarar uma

prática que permanece muda; pode

ainda funcionar como reinterpreta-

ção desta prática, dando-lhe acesso

a um novo campo de racionalidade

(FOUCAULT, 2007b, p. 244).

Além disso, o filósofo enten-

de que o dispositivo é “um tipo de

formação que, em um determinado

momento histórico, teve como fun-

ção principal responder a uma ur-

gência” (FOUCAULT, 2007b, p. 244)

que emerge no campo social e tem

como consequência funções estraté-

gicas. Desse modo, a concepção de

dispositivo implica, necessariamen-

te, considerar sua função estratégi-

ca e, portanto, as diferentes tecno-

logias de poder acionadas em um

sistema complexo de relações em

uma dada sociedade, através da his-

tória.

O dispositivo está, portanto,

“sempre inscrito em um jogo de po-

der, estando sempre, ligado a uma

ou a configurações de saber que

dele nascem mas que igualmente o

condicionam. É isto o dispositivo:

estratégias de relações de força

sustentando tipos de saber e sendo

sustentadas por eles” (FOUCAULT,

2007b, p. 246). Pois bem, as formas

de representação que predominam

no cinema são (re)formuladas e

(re)utilizadas com finalidades es-

tratégicas diferentes, adaptando-se

às exigências do dispositivo vigente

e intervindo nas relações de saber-

poder sobre a deficiência, seja para

direcioná-las, para bloqueá-las ou

para estabilizá-las. A espessura

fílmica atende, dessa forma, em seu

nível discursivo, a diferentes impe-

rativos estratégicos que formam

um dispositivo de controle, que se

configura de formas distintas em

temporalidades e espaços diversos.

Considerando, assim, todos

esses aspectos mobilizados, elabo-

ramos, em nossa tese, um quadro

teórico-analítico, o qual reproduzi-

mos a seguir:

“É isto o dispositivo: es-

tratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sus-

tentadas por eles.”

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Página 11 O Corpo

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SO-

BRE A ESCRITURA FÍLMICA E SEU

FUNCIONAMENTO DISCURSIVO

O dispositivo discursivo e a

representação são conceitos signi-

ficativos para mobilizar os procedi-

mentos de significação do corpo

com deficiência em materialidades

cinematográficas. A partir do que

foi destacado sobre o dispositivo,

segundo o projeto foucaultiano, é

possível afirmar que ele é formado

por um conjunto de elementos práti-

co-discursivos em torno do sujeito

com deficiência, que, dispersos, se

materializam em práticas institucio-

nais – escola, família, igreja, hospital

etc. A urgência histórica, à qual esse

dispositivo surge como resposta,

vem, desde o nascimento do capita-

lismo, da necessidade de minimizar

os desvios, tomando como critério a

anormalidade. De uma preocupação

individual, que permanecia no seio

da família, essa forma de visibilida-

de do sujeito com deficiência ganha

um status de discurso e, por ser

produtivo do ponto de vista econô-

mico, filosófico e científico, passa a

operar sobre a necessidade de in-

clusão social desses sujeitos.

Esses regimes de verdade

Biopol i t i ca

Re l ações

de

Saber e

de

Poder

CINEMA

Arquivo que possibilita localizar a emergência e a (co)existência enunciativa da discursividade do sujeito com deficiência.

Espaço material de entrecruzamentos discursivos que sustentam as possibilidades de discursivização da realidade.

Legi t imação

da

Prát ica

de

Normal ização

Plano da visibilidade Plano da enunciabilidade

Mecanismos verbo-visuais inscritos no nível do plano, da sequência e do filme:

* Plano: ponto de vista, local de observação, distância focal, profundidade de campo e movimento de câmera.

* Sequência: montagem e combinação audio-visual.

*Filme: narratividade e o modo como os sa-beres sobre o sujeito com deficiência são atualizados na superfície fílmica.

Enquanto lugares de enunciação, esses mecanismos sustentam modali-dades de visibilidade e de enunciabi-lidade e constroem...

sentidos sobre o corpo;

status de objeto;

posições discursivas;

lugares de enunciação;

práticas discursivas.

REPRESENTAÇÃO

Construção do real, pela similitude;

Seu funcionamento discursivo é construído por uma posição-sujeito, que ocupa um lugar institucional;

Acontecimento: modo como o novo é (re)produzido, representado e enunciado.

FUNCIONAMENTO DO DISPOSITIVO

Rede de elementos heterogêneos, que tem como função estratégica responder a uma urgência, em um determinado momento histórico;

“Possibilidades do verdadeiro” – toma o sujeito como objeto de discurso e torna suas visibilidades percep-tíveis e seus enunciados dizíveis, produzindo o verdadeiro de uma época.

DISCURSIVIDADE

Normalização;

Investimento em uma maquinaria política de produção de subjetividades.

O SUJEITO COM DEFICIÊNCIA

Quadro 1 – Quadro teórico-analítico

Fonte: adaptado de Silva (2016)

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Página 12 O Corpo

implicam complexas relações de

saber e de poder sobre esses su-

jeitos. O movimento teórico-

analítico empreendido possibilitou a

abordagem de quatro funcionamen-

tos: a relação entre o plano da visi-

bilidade e da enunciabilidade; a for-

ma de representação; o funciona-

mento do dispositivo; e a discursivi-

dade que produz diferentes modos

de normalização do sujeito com

deficiência. Esse processo, além de

demonstrar o modo encontrado

para estabelecer um regime do

olhar os sujeitos com deficiência,

ratifica que “há um conjunto de

procedimentos que controlam a

nossa maneira de viver e que de-

terminam nossa forma de estar no

mundo. Isso não quer dizer que es-

tamos assujeitados a essa história,

mas que fazemos parte dessa en-

grenagem” (MILANEZ, 2013, p. 373).

Há uma série de relações sociais e

históricas que localizam os corpos

em determinadas categorias que

atestam, por sua vez, uma ordem

discursiva que age sobre esses

corpos, em sua vida cotidiana, pri-

vada, transformando esses indiví-

duos em sujeitos do discurso. Te-

mos, assim, lugares de sujeitos que

ocupamos, numa produção histórica

de subjetividades.

A função estratégica dessa

discursividade é, por fim, normaliza-

dora, por meio da qual são estabele-

cidas algumas regulações, que po-

dem ser proibitivas – da ordem da

lei –, prescritivas – da ordem da

disciplina –, e condutoras – da or-

dem da segurança da população. O

dispositivo trata de uma situação

específica a partir da prática nor-

mativa, e é incorporado às institui-

ções e discursos, afetando direta-

mente as ações individuais e a reali-

dade social.

Na contemporaneidade, te-

mos a emergência discursiva de um

corpo que se constrói pelas tecno-

logias políticas do corpo (FOUCAUTL,

2005), que recorrem a diferentes

tipos de instituição, por exemplo, o

cinema, para se legitimarem e pro-

duzirem efeitos. Esse exercício do

poder “opera sobre o campo de

possibilidades em que se inscreve o

comportamento dos sujeitos ativos;

ele incita, induz, desvia, facilita ou

dificulta, amplia ou limita, torna

mais ou menos provável; no limite,

coage ou impede absolutamente

mas é sempre um modo de agir so-

bre um ou vários sujeitos ativos, e o

quanto eles agem ou são suscetí-

veis de agir” (RABINOW; DREYFUS,

2010, p. 288). Trata-se do biopoder,

ou o “poder sobre a vida”, que co-

nheceu profunda transformação a

partir do século XVIII. O poder de

soberania – “o velho direito de cau-

sar a morte ou deixar viver” foi

substituído por uma série de inter-

venções e controles reguladores:

uma biopolítica da população, ca-

racterizada pelo poder de “causar a

vida ou devolver à mor-

“O dispositivo trata de

uma situação específica a

partir da prática normati-

va, e é incorporado às

instituições e discursos,

afetando diretamente as

ações individuais e a rea-

lidade social.”

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Página 13 O Corpo

te” (FOUCAULT, 2009, p. 152).

Uma das consequências

desse poder que promove a vida na

ordem do saber e nas estratégias

do poder é a instauração da norma.

Pela perspectiva dos dispositivos

de regulamentação, caros à biopolí-

tica, ao mesmo tempo em que o

poder tenta homogeneizar as dife-

renças entre o que é normal e

anormal, ele individualiza e permite

que as diferenças se tornem úteis e

se ajustem umas as outras, identifi-

cando-se, desse modo, curvas de

normalidade. A norma consegue,

dessa forma, estabelecer um vín-

culo entre o elemento disciplinar do

corpo individual – aquilo que se

pode aplicar a um corpo – e o ele-

mento regulador que deseja gerir a

população. Forma-se, nessa pers-

pectiva, um pensamento econômico

-político em que aquele que gover-

na sabe dizer “sim” aos desejos da

população e que instaura as tecnolo-

gias disciplinares e regulamentado-

ras desde o corpo até a população. O

corpo é, portanto, ponto de apoio

para o assujeitamento dos indiví-

duos, em que suas condutas podem

ser conduzidas, reguladas e úteis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COURTINE, Jean-Jacques. Decifrar o corpo – pensar com Foucault. Tradu-

ção de Francisco Morás. Petrópolis RJ: Vozes, 2013.

FOUCAULT, Michel. O Cuidado com a Verdade (1984a). In: MOTTA, M. B. da (Org.). Ética, Sexualidade, Política: Michel Foucault. Tradução de Elisa Monteiro e Inês A. D. Barbosa. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2004. Coleção Ditos & Escritos, v. V, p. 240-251.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhe-te. 30.ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005.

______. A arqueologia do saber. Tra-

dução Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitá-ria, 2007a.

______. Microfísica do poder. Orga-nização e tradução de Roberto Ma-

chado. 24. ed. Rio de Janeiro: Edi-ções Graal, 2007b.

______. Isto não é um cachimbo. Trad. Jorge Coli. 5. ed. Rio de Janei-ro: Paz e Terra, 2008.

______. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria The-

reza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 19. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009.

JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as imagens no cinema. Tradu-ção de Magda Lopes. São Paulo: Edi-tora Senac São Paulo, 2009.

MILANEZ, Nilton. A dessubjetivação de Dolores - escrita de discursos e m isér ias do corpo -espaço . Linguagem: Estudos e Pesquisas. Catalão-GO, vol. 17, n. 2, p. 367-390, jul./dez. 2013

RABINOW, Paul e DREYFUS, Hubert L.

Michel Foucault: uma trajetória filo-sófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

ÉRICA DANIELLE SILVA: PROFESSORA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ, CAMPUS APUCARA-

NA. DOUTORA EM LETRAS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - UEM. MESTRE EM ESTUDOS

LINGUÍSTICOS, NA LINHA DE PESQUISA "ESTUDOS DO TEXTO E DO DISCURSO" (2010) E GRADUADA

EM LETRAS - HABILITAÇÃO PORTUGUÊS/INGLÊS (2007) PELA UEM. PARTICIPANTE DO GEDUEM -

GRUPO DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UEM. Currículo Lattes: Clique Aqui!

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Página 14 O Corpo

Dica de O Corpo

Para acessar, clique na imagem acima.

Foucault esteve na Bahia, em 1976, na Faculdade de Filosofia na UFBA e proferiu sobre as malhas que tecem o poder nos nossos tem-

pos. Discutir sobre as redes dos discursos, entre sujeitos e poderes, é celebrar a voz de Foucault, que ecoou em meio a um sufoca-

mento de plena ditadura naquela época. Queremos com o I Encontro Foucault e Discurso na Bahia. Outras palavras: o nó na re-

de retornar à história do sujeito cotidiano para reencontrar novas formas de atualidade e fatos do discurso contemporâneo que evo-

cam a coragem dos dizeres e das imagens, hoje, 40 anos depois, em 2016. O convite a um Encontro, em nosso caso, é a festividade de

um Reencontro de Grupos de pesquisa que problematizam as experiências discursivas de Michel Foucault nas Universidades Baianas

e seu entrelaçamento com Universidades de norte a sul, em especial, nesta ocasião, com o GEADA – Grupo de Estudos de Análise do

Discurso de Araraquara, da UNESP, e o CIDADI – Círculo de Estudos em Análise do Discurso, da UFPB. A rede entre Grupos de Pesqui-

sas é, portanto, o nó que acolhe o laço dos saberes. A possibilidade de se dizer de outra maneira são as palavras que furam o espaço

do território Baiano atravessando todo o Brasil. O I Encontro com Foucault na Bahia é o lugar da malha de vontades de saber entre

o LABEDISCO – Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e do LINSP – Lingua-

gem, Sociedade e Produção de Discursos, na UEFS - Universidade de Feira de Santana, no quadro dos trabalhos do Programa de Pós-

Graduação em Estudos Linguísticos, o PPGEL. O enredamento dos dizeres em instâncias midiáticas, literárias, jurídicas, históricas e

educacionais são as marcas do intercâmbio desse Encontro Baiano para pesquisadores, estudantes e estudiosos das Outras Pala-

vras que Michel Foucault nos dá a possibilidade de dizer. É nessa orla do discurso que desejamos encontrar vocês nos dias 20 e 21

de outubro na UEFS em Feira de Santana, na Bahia.

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Página 15 O Corpo

Sob a ótica discursiva,

entendemos que a alteridade nos

constitui. Somos sujeitos invadi-

dos por outros sujeitos, produzi-

dos discursivamente como efeitos

de sentido, no entrecruzamento

da linguagem e da historicidade.

Ocupamos posições e espaços

determinados e definidos nas/

pelas relações de poder-saber,

que nos hierarquizam e (des)

classificam.

Com efeito, ao tratarmos

de um sujeito com sexo duplo pen-

samos rapidamente em sujeito

hermafrodita – corpo andrógeno,

visivelmente heterogêneo, discur-

sivamente constituído pelo mesmo

e pelo outro – sujeito que, uma

vez situado em paralelo, pode ser

descrito e analisado, metafórica e

discursivamente, em consonância

com o sujeito mulher guerreira.

Isso porque, em tempos de guerra,

percebe-se uma regularidade histó-

rica do acontecimento discursivo em

que o sujeito soldado mulher ‘do se-

xo duplo’ irrompe, ocupando repeti-

damente uma posição, como diz Fou-

cault (2008), e uma identidade mas-

culina. Essa posição sujeito se mate-

rializa na roupa e, não raramente,

nos nomes masculinos.

Em meio a tantas mulheres-

homens que se cristalizaram no

imaginário social e que fazem parte

da rede de regularidades das práti-

cas discursivas e não discursivas

em volta do sexo duplo - lembremo-

nos de Mulan (personagem da Dis-

ney, originalmente protagonista da

lenda chinesa do século V, que lutou

por 12 anos contra os mongóis de-

monstrando grandes habilidades

guerreiras, razão pela qual foi reco-

nhecida e condecorada), Joana

d’Arc (heroína francesa e santa da

Igreja Católica que foi chefe militar

da Guerra dos Cem Anos), Diadorim

(personagem do romance roseano

Grande Sertão: Veredas, a mulher

escondida debaixo da farda de sol-

dado que morre em ato glorioso, no

duelo com o inimigo) - daremos re-

levo, aqui, a uma sérvia, Milunka

Savić, talvez desconhecida no Brasil

Jovana Simanic

UNICENTRO

“Sob a ótica discursi-

va, entendemos que a

alteridade nos consti-

tui. Somos sujeitos in-

vadidos por outros su-

jeitos, produzidos dis-

cursivamente como

efeitos de sentido, no

entrecruzamento da

linguagem e da histo-

ricidade.”

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Página 16 O Corpo

e nos demais países distantes dos

balcãs, mas transformada em uma

heroína, alcançando notoriedade

graças às diversas condecorações

que recebeu por sua atuação na

Primeira Guerra Mundial.

Enquanto sujeito, Milunka

remete tanto às outras mulheres

que só combateram nas guerras

porque ‘foram’ homens quanto à

(ao) Herculine, um hermafrodita

francês do século XIX, na medida

em que ambas viveram o conflito e

as dores do sexo duplo, no qual de-

ve viver o homem e ‘morrer’ a mu-

lher.

A etimologia da palavra

hermafrodita nos leva ao mundo

mitológico, utópico, onde descobri-

mos não apenas a explicação lin-

guístico-morfológica do hermafro-

dita, mas também os encantos e os

temores daquilo que ele significa.

Hermafrodito era filho de Hermes e

Afrodite, fruto de um romance

adúltero, jovem extraordinariamen-

te belo. Criado pelas Ninfas, fora de

casa, Hermafrodito vivia viajando.

Um dia parou num lago para des-

cansar, onde a Ninfa Salmácis o viu,

se apaixonou e tentou, sem sucesso,

seduzi-lo

Certo dia Hermafrodito resol-

veu se banhar nas águas. Quan-

do Salmácis o viu dentro de

seus domínios, despiu-se e entrou nas águas abraçando

Hermafrodito. Aderindo ao cor-

po dele, ordenou às águas que

os unisse para sempre e que

jamais seus corpos se separas-sem [...] Embora Hermafrodito

tentasse se afastar, uma atra-

ção além de suas forças fez

com que seu corpo se aderisse

cada vez mais ao corpo da Nin-

fa. Subitamente ele compreen-deu a intensidade do amor que

ela sentia, um amor que se

infiltrava por sua pele e invadia

seu organismo. Assim ele dei-

xou que seu corpo se fundisse

ao corpo de Sálmacis até que

os dois se transformaram em

um único ser. O momento da

fusão definitiva causou-lhe

êxtase tomando-lhe os senti-

dos, sendo homem e mulher,

participando de uma única na-

tureza, em equilíbrio, perfeito e completo, em um só ser ao

mesmo tempo sendo dois. E

assim ordenou que todos aque-les que se banhassem naquele

lago, poderiam se tornar macho

e fêmea, em um só corpo. Po-

rém os homens evitavam de banhar-se naquele lago temen-do perder a sua virilidade.¹

Foucault (1999ª) revela a

história do hermafrodita argumen-

tando que ela foi sempre ligada à

história da monstruosidade e da cri-

minalidade, o que nos permite com-

preender algumas interpretações

contemporâneas a respeito dos su-

jeitos hermafroditas e quais efeitos

de sentido produz. No século XVIII, a

monstruosidade era o efeito produ-

zido pelo corpo do sujeito, corpo

esse que fugia da natureza, defor-

mado e anormal. Depois, no século

XIX, a monstruosidade passa a ser

percebida no efeito da criminalidade

do sujeito, isto é, o monstro era

aquele cujos atos (e não o corpo)

eram imorais, perversos e mons-

truosos; esses atos, possivelmente,

seriam um desvio da natureza. Inde-

pendentemente das transformações

históricas do sujeito andrógeno,

houve um esforço que visava atri-

buir a tal sujeito características de

não naturalidade e, em consequên-

cia, transformá-lo em uma possível

transgressão do legal, o que justifi-

cava a marginalização do sujeito

hermafrodita.

Na Idade Média, o corpo do

hermafrodita era interpretado co-

mo o resultado de uma comunica-

ção/relação com o diabo e seu fim

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Página 17 O Corpo

era a morte na fogueira, ou seja, no

“fogo purificador”² (PERROT, 2007,

p.89). No século XVIII, sob a força

dos discursos médico-jurídicos, a

sociedade torna-se mais ateia, ain-

da que permaneçam as vontades de

verdade (FOUCAULT, 2001) dos tra-

dicionais saberes religiosos. Nesse

momento, o sujeito passa a ser

produzido pelo disciplinamento e

vigorosamente objetivado pelos

saberes médicos – era um sujeito

do naturalismo, natural. Se antes o

corpo do hermafrodita fugia do

‘caminho de Deus’, contendo o lado

diabólico, mau, perigoso, agora fu-

gia do natural, sendo o lugar da

mistura dos dois elementos natu-

rais que mutualmente se excluíam.

A condenação à morte, estratégia

até então comum de apagamento

dos desviantes, agora é debatida e

a vida do sujeito adquire certa pri-

mazia. Vida, porém, que exigia a

normalização do anormal.

Voltando ao corpo e à his-

tória de Herculine Barbain, Foucault

(1983) mostra que essa normaliza-

ção se deu através do dispositivo

de sexualidade. Explica que “na civili-

zação moderna, exige-se uma cor-

respondência rigorosa entre o sexo

anatômico, o sexo jurídico, o sexo

social; esses sexos devem coincidir

e nos situam em uma das duas colu-

nas da sociedade”. (FOUCAULT, 1994,

p.624). Antes, no entanto, existia

uma margem de mobilidade maior.

Nessa linha de raciocínio,

Foucault explica que o conceito de

sexo foi recortado para servir ao

dispositivo de sexualidade, tornando

possível “agrupar, numa unidade

artificial, elementos anatômicos,

funções biológicas, condutas, sensa-

ções e prazeres, e permitiu que se

usasse essa unidade fictícia como

um princípio causal” (FOUCAULT,

1999b, p.144). Em outras palavras, o

sexo da pessoa (binário - masculino

e feminino - e exclusivo - se era um,

não era outro) servia como o indi-

cador do seu gênero.

A autobiografia de Herculi-

ne está publicada na coleção Vidas

paralelas³. Herculine nasceu como

Alexia, uma menina que descobriu,

quando tinha 20 anos, que sentia

atração por outras meninas e que o

corpo dela tinha marcas de ambos

os sexos.

[...] ela/ele possuía o que se poderia descrever como um pequeno pênis ou um clitóris

aumentado; [...] onde deveria estar a vagina, havia um “beco

sem saída”, como disseram os

médicos; e [...] ela não parecia não ter seios femininos identi-

ficáveis. Também havia, pare-

ce, uma capacidade de ejacula-

ção... (BUTLER, 2003, p.5).

A descrição do corpo an-

drógeno de Herculine foi feita pela

intervenção médica e pastoral, de-

pois de séries de averiguações e

confissões. A descoberta resultou

“Se antes o corpo do

hermafrodita fugia do

‘caminho de Deus’,

contendo o lado diabó-

lico, mau, perigoso,

agora fugia do natural,

sendo o lugar da mis-

tura dos dois elemen-

tos naturais que mutu-

almente se excluíam.”

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Página 18 O Corpo

num processo jurídico que teve

como objetivo estabelecer e fixar,

oficialmente, a identidade sexual de

Herculine, isto é, atribuir-lhe um

gênero, uma identidade sexual defi-

nida e estável. Herculine foi subme-

tida/o à transformação da sua

“não-identidade” (FOUCAULT, 1983,

p.5). Foi dada/dado o nome mascu-

lino de Herculine e foi lhe imposto o

uso da roupa masculina, bem como

lhe foi exigido o exercício do papel

de homem na vida pública.

Com efeito, podemos dizer

que o seu corpo andrógeno foi per-

passado/transformado pelos sabe-

res mítico-utópicos, saberes que

firmaram verdades e sujeitos tanto

na ordem do discurso religioso, ju-

dáico-cristão, quanto na ordem dos

discursos naturalistas que visavam

disciplinar e controlar os corpos

desviantes.

Ainda que em algumas cultu-

ras, do passado e do presente, o

corpo do hermafrodita não tenha

sofrido a ação negativadora dos di-

versos saberes que atravessam a

vida social, é de se notar que as so-

ciedades ocidentais se constituíram

a partir do controle e exclusão das

situações consideradas anormais -

caso desses indivíduos. O final do

mito grego é um indício dessa posi-

ção, afinal, ciosos de sua virilidade

os homens evitavam banhar-se no

lago onde Hermafrodito havia sido

tomado por Salmácis. Como “a ver-

dade é deste mundo” (FOUCAULT,

2007, p. 12), e não dos mundos mito-

lógicos e utópicos, o que prevalece e

nos define é a vontade de separar,

de nos recortar no masculino e no

feminino para que, assim, respon-

dessemos às urgências dos nossos

tempos. Esses recortes resultam de

funcionamento dos dispositivos, no

caso do sujeito do presente traba-

lho, o de sexualidade e de virilidade.

A constituição do sujeito

mulher guerreira e viril – sujeito

que só ganhava visibilidade no cho-

que com o poder, no momento da

revelação do seu sexo duplo – se

deu de uma maneira semelhante, no

lugar de encontro da ordem dos

discursos médicos e legais, postos

em circulação pelos dispositivos da

sexualidade e da virilidade.

Assim como Herculine, Mi-

lunka Savić também precisou assu-

mir uma identidade de homem, ain-

da que por condições sócio-

históricas distintas. Milunka, como

já foi dito, era uma das mulheres

sérvias que participou como com-

batente da Primeira Guerra Mundial.

Devido a sua bravura, foi promovida

a sargento, tornando-se a mulher

mais condecorada na história da

Grande Guerra e a única a possuir a

“Ainda que em algumas

culturas, do passado e do presente, o corpo do hermafrodita não tenha

sofrido a ação negativa-dora dos diversos sabe-res que atravessam a

vida social, é de se no-tar que as sociedades

ocidentais se constituí-

ram a partir do contro-le e exclusão das situa-

ções consideradas

anormais - caso desses

indivíduos.”

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Página 19 O Corpo

Croix de Guerre com a palma dou-

rada. Isso só foi possível porque, ao

se alistar como voluntária, identifi-

cou-se clandestinamente como ho-

mem, vestindo-se de modo a ocul-

tar as marcas corporais que pu-

dessem identificá-la como mulher.

Era, seguramente, uma mulher se-

gundo as normas do dispositivo de

sexualidade: o corpo dela era femi-

nino, suas atrações eram heteros-

sexuais. Porém, os códigos da

guerra, forjados nas produções de

saberes que reforçam o imaginário

da inferioridade e da fragilidade

feminina, fizeram com que ela se

desconstruísse como sujeito mu-

lher e se construísse como sujeito

homem, por meio não apenas de

roupas masculinas, mas, sobretu-

do, pela adesão ao mundo da virili-

dade. Debaixo da farda, Milunka era

reconhecida como um homem viril

por muitos daqueles com quem

conviveu.

O hermafroditismo de

dois/duas mulheres-homens, físico

ou metafórico (Herculine e Milun-

ka), desviava das normas das soci-

edades disciplinares e

(hétero)normativas da França no

século XIX e da Sérvia no começo do

século XX, respectivamente. Produ-

zindo efeito de anormalidade, o su-

jeito andrógeno que foi para guerra

choca quando ‘despido’. No caso de

Herculine, o choque do seu descobri-

mento resultara não apenas no apa-

gamento dos diversos indícios de

sua existência, uma vez que o seu

diário, juntamente com a documen-

tação médica, pastoral e jurídica

foram cuidadosamente ocultados

dos olhos da sociedade, até que Fou-

cault os publicara, mas também no

seu suicídio.

O dispositivo da virilidade,

coexistindo com o da sexualidade,

agrupou e favoreceu subjetividades

requeridas pelo estado da guerra.

Sendo um dispositivo – que surge

como resposta à uma urgência his-

tórica para, estrategicamente, criar

subjetividades que correspondem

às novas condições de existência

(FOUCAULT, 1999b) – a virilidade

militar era uma prioridade da Sér-

via, durante a guerra. Dado que o

país enfrentou a questão da ‘vida ou

morte’ no mapa mundial, era crucial

a virilização em nível nacional. Em-

bora não haja uma definição una e

fixa de virilidade, ela era/é um mo-

delo ideal do sujeito homem, consti-

tuído por exigências do corpo

(musculoso, com pelosidade acentu-

ada, firme, sólido, etc.) e da mente

(homem corajoso que controla seus

impulsos e sua força, aquele que

visa à expansão, à grandeza e está

sempre pronto para morrer pela

pátria). Ainda que as característi-

cas desse modelo tenham sofrido

mutações ao longo do tempo, ele,

“Era, seguramente,

uma mulher segun-

do as normas do

dispositivo de sexu-

alidade: o corpo de-

la era feminino, su-

as atrações eram

heterossexuais.“

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Página 20 O Corpo

via de regra, no imaginário das so-

ciedades ocidentais, dizia respeito

àquilo que faz do menino “UM HO-

MEM” (CORBIN et al., 2013, p.72); em

consequência, excluía as mulheres.

Ao ser ferida numa batalha

e depois de ser levada para um

hospital, a Milunka se lembra:

Só não quero que me firam, pensava. Bem, se for o caso,

que seja a perna, ou o braço.

A cabeça também pode ser,

acho. Que não sejam os peitos.

Descobririam que sou mulher.

A bala acertou os peitos mes-

mo. Quando despertei estava

no hospital. Meu Deus, me

lembro: o médico, homem idoso, tirou o meu justilho

rapidamente para ver onde

estava a ferida. Deu um passo

atrás, estupefado. Começou a

chamar por ajuda. Já era, pensei. Não posso me escon-der mais. Não sou Milun, sou

Milunka (ĐURIĆ, 2014, p.17) .

A sequência discursiva aci-

ma materializa a reação-choque do

médico, quando ele vê, na sua fren-

te, seios femininos no corpo que

deveria ser de um homem. Nesse

instante, entram em combate os

saberes sobre os sexos, constituti-

vos do sujeito homem e sujeito mu-

lher (os sujeitos normais). O legível

do corpo feminino, por um lado,

evoca saberes médicos sobre o cor-

po frágil que precisa ser protegido,

que desperta os efeitos de materni-

dade e feminilidade, talvez de prazer,

mas nunca de virilidade; por outro

lado, o peito derramando sangue, tal

como se esperava de um soldado,

define o corpo da mulher sofrendo

as dores do sacrifício glorioso, pela

pátria. Os saberes contrastantes

acabam matando o Milun, o homem

soldado, paralelamente dando à luz a

Milunka, apenas uma mulher.

Na discursividade do depoi-

mento em análise, vê-se que a mu-

lher não pode permanecer mulher e

ser viril ao mesmo tempo, no mesmo

corpo. Devido à superioridade mas-

culina ao longo da história ocidental,

a virilidade é incompátivel com a

feminilidade e, consequentemente, o

‘homicídio’ da mulher torna-se um

leitmotif na história do sujeito mu-

lher guerreira. Mencionamos aqui

Diadorim do romanse roseano Gran-

de Sertão:Veredas, que é um exem-

plo reforçador da ideia de que Milun-

ka é mais um nó em uma rede

(FOUCAULT, 2007, p. 26), rede essa

que tece a (in)existência do sujeito

mulher guerreira vestida de homem

– mortas/esquecidas por causa do

seu ato glorioso, e glorificadas post

mortem4. No exemplo que segue,

descobre-se que Diadorim, durante

a obra inteira um soldado-homem,

era na verdade – um soldado-

mulher:

“Não me mostrou de

propósito o corpo. E disse...

-‘A Deus dada. Pobre-zinha...’

[...] sabendo somente

no átimo em que eu só soube...

Que Diadorim era o corpo de

uma mulher, moça perfeita...

Estarreci. A dor não pode mais

que a surpresa.”

[...] Diadorim! Diado-

rim era uma mulher. Diadorim

era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúria

(ROSA, 2006, p.599).

Uma vez mais o sujeito mu-

lher nasce do corpo morto, logo, ela

morre sem nunca ter existido. No

jogo – ora sutil, ora agressivo – dos

dispositivos de sexualidade e de

virilidade, parece-nos, então, justifi-

cada a escolha de Rosa em manter

Diadorim ‘aquilo que não era’ – um

homem – durante o romance intei-

ro, para apenas mostrá-la como

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Página 21 O Corpo

‘aquilo que era’ – mulher – quando

morta. Dessa forma, a mulher Dia-

dorim está morta em todas as pá-

ginas do romance. O efeito repro-

duzido – a mulher viril, sobre a qual

se fala, continua a ser um mero

fantasma.

Claro, existe também o ou-

tro lado da história, onde o nosso

sujeito não é, exclusivamente, uma

vítima e poderia estar nascendo, no

ato da sua resistência ao poder que

o subjetiva. Ao acontecer no cho-

que com o poder, o nosso sujeito

anormal se torna resistente, se

estabelece como ameaça ao dis-

curso patriarcal e machista, deses-

tabilizando-o. Os elementos contra-

ditórios no sujeito deste trabalho,

uma vez postos em movimento e

funcionamento nas/pelas relações

de poder-saber da nossa sociedade,

apresentam os já-ditos e os jamais-

ditos sobre esse sujeito. É nessa

mesclagem dos dois que se cria a

possibilidade da produção de senti-

dos novos; ela é a condição que nos

permite pensar em termos de alteri-

dade constitutiva do visível; é, poten-

cialmente, a condição para um futu-

ro – não nos importa se seria me-

lhor ou pior – diferente. O sujeito é o

lugar do potencial deslizamento dos

sentidos que produz. Naquilo que

vemos, naquilo que é visí-

vel/dizível/enunciável sobre o sujei-

to andrógeno (em todos os sentidos

da palavra), existe a possibilidade de

enxergarmos aquilo que ele não é.

Uma vez que nada preexiste

ao discurso, as mudanças sócio-

históricas, elas mesmas, na pers-

pectiva da AD, começam no nível

discursivo. Testemunhamos a exis-

tência das rupturas na história do

sujeito mulher e do sujeito guerrei-

ro, porém, sendo contemporâneos

delas, ainda não sabemos se essas

‘vibrações’ se tornarão tranforma-

ções na história do sujeito mulher

guerreira. O nosso presente está se

reconfigurando no embate entre as

permanências históricas e aconte-

cimentos novos, atualizados. Não

querendo produzir o efeito da espe-

rança de um futuro igualitário, em

termos da sexualidades, podemos

simplesmente afirmar que sempre

fomos, somos e seremos, nada mais

e nada menos que “diferença, [...] a

nossa razão (é) a diferença dos dis-

cursos, a nossa história a diferença

dos tempos, o nosso eu a diferença

das máscaras.[...] a diferença, longe

de ser origem esquecida e recober-

ta, é a dispersão do que somos e do

que fazemos” (FOUCAULT, 2008,

p.149).

NOTAS

¹ Lucia de Belo Horizonte, Hermafro-dito e os opostos da vida. Dispenível em:

http://eventosmitologiagrega.blogspot.com.br/2010/11/hermafrodito-

“O nosso presen-

te está se recon-

figurando no em-bate entre as

permanências históricas e

acontecimentos

novos,

atualizados.”

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Página 22 O Corpo

e-os-opostos-da-vida.html. Acesso: 20/05/2016.

² “Fogo purificador” é mais um ponto de encontro do hermafrodita e do sujeito mulher-homem guer-

reira. Joana d’Arc, guerreira fran-cesa do século XV, participou da Guerra dos Cem Anos vestida de homem. Foi queimada na fogueira por ter transgredido para o mundo da virilidade, por ter liderado sol-dados (homens) nas batalhas e por

ter se vestido de outro sexo para fazê-lo.

³ A coleção foi publicada em 1978

pela Editora Gallimard, acompanha-da de uma apresentação (cf. Fou-cault, 1982). Nessa apresentação, Foucault justifica o título, mostran-do que na Grécia Antiga era comum colocar vidas dos grandes nomes em paralelo, uma prática que glori-

ficava esses indivíduos, assim ga-rantindo a sua eternidade – a per-manência na memória do mundo. Colocar vidas condenadas ao apa-gamento da memória em paralelo é uma provocação para o nosso pen-samento normalizado(r), acostu-

mado a olhar para a história como espaço linear, contínuo, em vez de a tratar como séries de aconteci-mentos e rupturas dispersos.

4 Se não foram glorificadas, ao me-nos receberam espaço nas diversas representações da memória coletiva como forma de honrá-las: vale re-forçar: Joana d’Arc foi declarada

santa, séculos depois da sua morte na fogueira; Milunka ganhou espaço no mencionado livro (publicado 100 anos após a Primeira guerra mundi-al); Diadorim, personágem fictícia, foi reconhecida como cânone, eterna como a obra que a fez surgir; Mulan,

a menina soldado, eternizada na len-

da chineza (cuja história foi adapta-da no desenho de Disney); etc.

REFERÊNCIAS

BUTLER, J. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão de identida-de. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-

leira, pp. 140-155, 2003.

CORBIN, A., COURTINE, J.J., VIGA-RELLO, G. História da Virilidade 2 – O triunfo da virilidade: O século XIX. Tradução de João Batista Kreuch e Noéli Correia de Melo Sobrinho – Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

FOUCAULT, M. Herculine Barbin ou o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.

______. M. Dits et écrits III. Paris:

Gallimard, 1994.

______. M. Os anormais. Curso no Colégio de França. 1974-1975. Paris, Gallimard-Seuil, 1999ª.

______. História da Sexualidade 1: a

vontade de Saber. Tradução de Ma-ria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13.a Edi-ção. Rio de Janeiro: Graal, 1999b.

______. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2001.

______. Microfísica do poder. Rio de

Janeiro: Graal, 2007.

______. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

LUCIA de Belo Horizonte (18 de no-vembro de 2010). Hermafrodito e os opostos da vida. Disponível em:

http://eventosmitologiagrega.blogspot.com.br/2010/11/hermafrodito-e-os-opostos-da-vida.html

PERROT, M. Minha história das mu-lheres. São Paulo: Contexto, 2007.

ROSA, J.G. Grande Sertão: Veredas, ed. – Rio de Janeiro : Nova Frontei-

ra, 2006.

ĐURIĆ, A. Žene solunci govore.

ЕvroGiunti, 2004.

JOVANA SIMANIC: POSSUI GRADUAÇÃO EM ENGLISH LANGUAGE, LITERATURE AND CULTU-

RE PELA FACULTY OF PHILOLOGY, UNIVERSITY OF BELGRADE (2014). MESTRADO EM

ANDAMENTO EM LETRAS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE, UNICENTRO.

TEM EXPERIÊNCIA NA ÁREA DE LINGÜÍSTICA, COM ÊNFASE EM TEORIA E ANÁLISE LINGÜÍS-

TICA. Currículo Lattes: Clique Aqui!

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Página 23 O Corpo

Dica de O Corpo

Coordenação Nilton Milanez

Este Simpósio tem como objetivo discutir a proposta sobre a incitação dos discursos do sexo e da sexualidade por Michel Foucault,

tomando para batimento teórico os estudos de Sigmund Freud acerca da repressão e do recalque. Nosso ponto de partida, portan-

to, se levanta em torno de algumas questões gerais: O que está em jogo sobre a repressão do sexo e a incitação dos discursos

sobre o sexo? Como compreender o lugar de cada uma dessas posições? De que maneira as contradições teóricas convergem

para um mesmo domínio de memória? Teriam Foucault e Freud muito mais em comum do que o F em seus nomes?

Como funciona?

Os estudos demandam leitura prévia dos textos. Cada encontro se inicia com a apresentação de um texto de Foucault e de Freud,

com vistas ao debate das problematizações teóricas.

Realização

O Laboratório de Estudos do Discurso/CNPq desenvolve suas atividades de ensino, pesquisa e extensão na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, no campus de Vitória da Conquista, desde 2007. Nosso objetivo é discutir, problematizar e analisar a condi-

ção do sujeito e suas relações com o corpo na contemporaneidade, considerando os postulados de Michel Foucault no quadro dos

estudos discursivos.

Para acessar, clique no banner acima.

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Página 24 O Corpo

GRUPO DE PESQUISA

INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

A categoria criança se refere a um conjunto de pessoas com idade precoce e características peculiares do desen-volvimento que definem suas relações e direitos perante o resto da sociedade. A infância pode ser definida como o período ou o estado da criança. Como todas as demais categorias, a infância foi construída historicamente no ras-tro do projeto civilizatório iluminista, e hoje, por meio do conhecimento construído a seu respeito, possibilita aos adultos e instituições o manuseio do futuro da sociedade com a formação de escolas, espaços voltados para a cri-ança, e uma série de objetos (brinquedos, vestuário) que movimentam milhões em todo o mundo e que têm a crian-ça como alvo. É importante destacar que nos últimos anos, tem sido bastante significativo o crescimento dos estu-

dos sobre a criança de 0 a 6 anos, principalmente, nos programas de pós-graduação das instituições superiores de ensino brasileiro. Isso se reflete também na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), por meio das pesquisas tanto na graduação como na pós-graduação lato sensu e na extensão. Acreditamos que por meio dos

estudos desenvolvidos no Grupo de Pesquisa Infância e Educação Infantil contribuiremos para as discussões que vem sendo geradas sobre a infância e os direitos da criança, especialmente no município de Vitória da Con-

quista - Ba e região.

Líderes do grupo:

Dra Carmem Virgínia Moraes da Silva

Dra Isabel Cristina de Jesus Brandão

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Página 25 O Corpo

Samene Batista: Sabemos que o

ballet clássico tem uma história de

mais de 500 anos, com berço na

Itália e depois se difundiu por toda

a Europa até chegar a nós. De que

forma a dança clássica manteve-se

tão firme ao longo da história en-

quanto linguagem corporal e movi-

mento artístico?

Lorena Albuquerque: Sabemos

que a dança clássica, como todas

as demais coisas no mundo, evoluiu

ao longo dos anos. O padrão dos

bailes valsados, ainda dançados por

calçados de salto foi se aprimoran-

do e porquê não dizer, se refinando

ao logo dos anos. A técnica foi de-

senvolvida associada a uma nomen-

clatura própria, trazendo consigo

desafios ao corpo dançante. Na

época do romantismo e neoclassi-

cismo, peças hoje chamadas de

Ballets de Repertório foram escri-

tas, montadas, encenadas e eterni-

zadas no meio da dança clássica,

sendo até os dias atuais uma refe-

rência importante desta modalidade

artística; as sapatilhas de ponta sur-

giram para as bailarinas trazendo

ainda mais leveza, beleza e a neces-

sidade de superação...

Creio que a estruturação e sedimen-

tação do ballet clássico, hoje resis-

tente a tantas décadas, vem de uma

incessante busca da expressividade

corporal refinada e precisa, motiva-

da pelo desejo de alcançar um movi-

mento artístico cada vez mais belo.

Samene Batista: A dança de um mo-

do geral, mais especificamente o

ballet clássico, delineia o corpo dos

bailarinos de maneira a fugir do nos-

so "natural" fisiológico. Os exercí-

cios, técnicas e estratégias sobre o

corpo objetivam que tipo de resulta-

do?

Lorena Albuquerque: Para uma

dança tão precisa e leve, onde tan-

tas vezes os bailarinos parecem

desafiar algumas leis inquestioná-

veis, como a própria gravidade, na-

da mais natural que a preparação

deste corpo, e mesmo a repetição

dos movimentos acabe por

"redesenhar" o arcabouço osteo-

muscular. Logo de início, partimos

de um posicionamento corporal ini-

cial que por si só já é antifisiológico:

o en dehors (rotação externa) das

pernas e pés. Não nascemos para

ser en dehors, tampouco para girar,

saltar e manter este posicionamen-

to por tantas horas de aula e ensai-

os semanais. Desta forma, natural-

mente o corpo do bailarino vai as-

sumindo novas marcas: uma flexibi-

lidade extrema e totalmente fora do

natural é essencial e cobiçada por

todos; as curvas fisiologicamente

SAMENE BATISTA ENTREVISTA

LORENA ALBUQUERQUE

O CORPO NO BALLET CLÁSSICO

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Página 26 O Corpo

normais da coluna vertebral a nível

cervical e lombar são suavizadas

por um constante crescimento axial

postural; os grupos musculares dos

membros inferiores assumem um

aspecto mais longilíneo pelo fato de

se utilizar os exercício de sustenta-

ção sem carga, num ritmo lento;

além disto podemos considerar

cada sequência dançada como um

grande treino de coordenação mo-

tora, memorização e concentração.

Os exercícios de equilíbrio são fei-

tos sobre duas ou apenas uma per-

na, o que confere ao praticante

grande ganho de precisão nos seus

movimentos, além da percepção de

muitas cadeias musculares estabi-

lizadoras do tronco, a exemplo dos

paravertebrais (ao longo da coluna

vertebral), e o cinturão pélvico/

abdominais (tronco). Como conse-

quência de tantas mudanças corpo-

rais, podemos desconfiar que os

resultados psicológicos acontece-

rão em duas linhas principais: uma,

no impacto que terá a importância

deste corpo (e dos cuidados com

ele) para se atingir um bom resul-

tado prático; e outro num padrão

comportamental mesmo, diante de

tamanha solicitação de precisão nos

movimentos, cadenciamento de cada

movimento corporal em seu respec-

tivo tempo musical, percepção dos

espaços coreográficos, dentre ou-

tros... é inevitável que estes compor-

tamentos corporais não alcancem a

esfera psicológica cotidiana.

Samene Batista: Sabemos que exis-

tem algumas escolas de dança clás-

sica espalhadas pelo mundo e que

elas normatizam/unificam os exer-

cícios e movimentos que devem ser

praticados pelos alunos. Qual a es-

cola de ballet Clássico a qual você

se filia enquanto profissional? Qual

a peculiaridade dessa escola no que

concerne ao trabalho corporal com

os alunos?

Lorena Albuquerque: A minha es-

colha metodológica para trabalhar

com meus alunos foi a Metodologia

Cubana. Atual, dinâmica e já consa-

grada, a Metodologia cubana é a

"caçula" dentre as outras metodo-

logias! Criada por Alícia e Fernando

Alonso, a metodologia cubana surgiu

como fruto de alguns anos de estu-

do das outras escolas já existentes,

porém com um pertencimento mai-

or ao corpo e comportamento do

latino. Tenho dito que escolher um

método de ensino é escolher um

caminho para levar o aluno ao seu

destino final. Assim, sabendo que

todas as escolas metodológicas

revelaram grandes nomes mundiais

da dança clássica, podemos conclu-

ir que todos funcionam. Arriscaria

ainda dizer que o melhor facilita-

dor/mestre do aluno será aquele

que tiver maior conhecimento de

“Arriscaria ainda

dizer que o melhor

facilitador/mestre

do aluno será aque-

le que tiver maior

conhecimento de

todas as escolas, ou

seja, estudar é

essencial!”

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Página 27 O Corpo

todas as escolas, ou seja, estudar é

essencial!

De forma prática, dentro da nossa

escolha metodológica temos uma

logística de aula que muda muito ao

longo de um ano, estimulando o

aluno a pensar/memorizar/variar

mais a cada ano de curso, deixando

-o mais versátil, enquanto em ou-

tras escolas metodológicas existe

um padrão de aula anual. Outra di-

ferença é o volume de conteúdo

apresentado ao aluno nos níveis

iniciantes, sendo maior nos primei-

ros anos da escola cubana.

Além disto, outras diferenças de

nomenclatura dos passos, ou dinâ-

mica de alguns movimentos visam

respeitar este corpo latino que tem

mais massa muscular que os euro-

peus, menor retroversão da pelve

(dificultando um pouco o en dehors),

e até mesmo um comportamento

mais "quente" e vibrante vindos na

nossa cultura.

Samene Batista: Hoje, parece-me

que as barreiras de "quem pode fa-

zer ballet" estão cada vez mais dila-

tadas, abrindo-se espaço para os

"corpos fora do padrão" no universo

da dança. Esse rompimento, ou essa

reconfiguração da norma clássica

está presente apenas nas escolas de

ballet ou se estende às grandes

Companhias de ballet no Brasil e no

mundo?

Lorena Albuquerque: De forma

amadora todos devem e podem dan-

çar; e estes estímulos hoje são um

consenso no Brasil e no mundo. Nes-

tes casos, o corpo mais ou menos

alinhado ao padrão exigirá mais ou

menos esforço de quem a pratica.

Porém, se falamos em Companhias

profissionais, o padrão corporal

continua sendo uma exigência im-

portante, por vezes inegociável. Pe-

so, estatura, flexibilidade geralmen-

te são quesitos primordiais. Existem

até em algumas Companhias a

“estatura aceitável”, determinada

para linha de corte de ascensão ao

Corpo de baile!

Contudo, a grande liberdade da al-

ma é a possibilidade de expressar-

se! Assim, sejamos livres através

de nossas danças, e vivamos felizes

com o reconhecimento de nossas

conquistas pessoais.

SAMENE BATISTA: DOUTORANDA NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA, LINGUAGEM E SOCIEDADE

NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA. MESTRE PELO MESMO PROGRAMA. POSSUI GRADUAÇÃO EM

DIREITO PELA UESB. INTEGRANTE DO GRUPO DE PESQUISA EM ANÁLISE DE DISCURSO - UESB E LABEDISCO -

UESB, COM PESQUISA EM DIREITO PROCESSUAL E MATERIALIDADES AUDIOVISUAIS. PROFESSORA DE DIREITO

PROCESSUAL DA FACULDADE INDEPENDENTE DO NORDESTE E COLABORADORA DO PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO

DA UCSAL EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL E PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO DA FACULDADE DE ILHÉUS. CURRÍ-

CULO LATTES: Clique Aqui!

LORENA ALBUQUERQUE: FISIOTERAPEUTA, BAILARINA, PROFESSORA E PROPRIETÁRIA DA ESCOLA DE BALLET

LORENA ALBUQUERQUE EM VITÓRIA DA CONQUISTA-BA.

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Página 28 O Corpo

Dica de O Corpo

Assista a primeira aula ministrada pela Profa. Drnda. Samene Batista

(PPGMLS/Labedisco/UESB) no I Encontro do Ciclo de Estudos:

"Corpo e Audiovisual: Aportes Teóricos para Estudos em Análise do Discurso".

Para acessar, clique na imagem abaixo.

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Leitura do livro “O CÂNONE VISUAL:

AS BELAS-ARTES EM DISCURSO” do Prof. Dr. Renan Mazzola.

Dica de O Corpo

Página 29 O Corpo

Sinopse

O Cânone Visual apresenta uma

investigação das belas-artes sob o

ponto de vista da teoria do discur-

so. No campo dos estudos da lin-

guagem, atualmente, o conceito de

“discurso” mostra-se complexo e

multifacetado: constitui-se de um

modo de produzir sentido que se

materializa em diversos sistemas

de signos, como a língua, as ima-

gens, os gestos, etc. Nesta obra,

investiga-se como as artes plásti-

cas estão a serviço dos discursos,

ora para reafirmá-los, ora para

refutá-los. A partir de Michel Fou-

cault, que refletiu intensivamente

sobre a dimensão discursiva que

atravessa os textos e as imagens,

este livro aprofunda a discussão

sobre o sentido do cânone visual

ocidental sob as perspectivas teó-

rica, epistemológica e analítica.

Para download, clique na imagem abaixo.

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O corpo é discurso

Conselho Editorial Internacional

Beatriz de Las Heras (Universidad Carlos III de Madrid)

Jean-Jacques Courtine (University of Auckland)

Martha Guadalupe Loza Vazquez (Universidad Autônoma de Guadalajara)

Philippe Dubois (Sorbonne Nouvelle – Paris 3)

Conselho Editorial Nacional

Adilson Ventura da Silva (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)

Amanda Batista Braga (Universidade Federal da Paraíba)

Anderson de Carvalho Pereira (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)

Antônio Fernandes Júnior (Universidade federal de Goiás)

Conceição de Maria Belfort de Carvalho (Universidade Federal do Maranhão)

Denise Gabriel Witzel (Universidade Estadual do Centro-Oeste)

Edvania Gomes da Silva (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)

Elmo José dos Santos (Universidade Federal da Bahia)

Flávia Zanutto (Universidade Estadual de Maringá)

Francisco Paulo da Silva (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte)

Ilza do Socorro Galvão Cutrim (Universidade Federal do Maranhão)

Ivânia dos Santos Neves (Universidade Federal do Pará)

Ivone Tavares Lucena (Universidade Federal da Paraíba)

Leda Verdiani Tfouni (Universidade de São Paulo)

Luzmara Curcino Ferreira (Universidade Federal de São Carlos)

Maíra Fernandes Martins Nunes (Universidade Federal de Campina Grande)

Maria do Rosário Gregolin (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho)

Maria Regina Baracuhy Leite (Universidade Federal da Paraíba)

Marisa Martins Gama-Khalil (Universidade Federal de Uberlândia)

Mônica da Silva Cruz (Universidade Federal do Maranhão)

Nádia Regia Maffi Neckel (Universidade do Sul de Santa Catarina)

Nilton Milanez (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)

Nirvana Ferraz Santos Sampaio (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)

Paula Chiaretti (Universidade do Vale do Sapucaí)

Pedro Luis Navarro Barbosa (Universidade Estadual de Maringá)

Sandra Márcia Campos Pereira (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)

Simone Hashiguti (Universidade federal de Uberlândia)

Vanice Maria Oliveira Sargentini (Universidade Federal de São Carlos)

Página 30 O Corpo

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O Corpo é Discurso

é o primeiro jornal

eletrônico de

popularização

científica da Bahia.

Colaboradores

Popularização da Ciência

A pesquisa científica gera conhecimentos, tecnologias e inovações que benefi-

ciam toda a sociedade. No entanto, muitas pessoas não conseguem compreender a

linguagem utilizada pelos pesquisadores. Neste contexto, a grande mídia e as novas

tecnologias de comunicação cumprem o papel de facilitadores do acesso ao conhe-

cimento científico. Para contribuir com esse processo, em sintonia com o espírito

que anima o Comitê de Assessoramento de Divulgação Científica do CNPq, criamos

esta seção no portal do CNPq. Seja bem-vindo ao nosso espaço de popularização da

ciência e aproveite para conhecer as pesquisas dos cientistas brasileiros e os bene-

fícios provenientes do desenvolvimento científico-tecnológico.