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O BARO TREPADOR
Verso em Portugus de Portugal
(ttulo no Brasil: O Baro nas rvores)
ITALO CALVINO
Digitalizao e Arranjo
Agostinho Costa
Uma vida nas rvores pode no ser to absurda para o ser humano
como primeira vista parece. o que nos demonstra Cosimo, protagonista
de O Baro Trepador, um dos romances mais clebres de Italo Calvino. Na
verdade, a revolta permite que este singular nobre se liberte da monotonia
terrestre iniciando entre troncos e folhagens uma existncia marcada por
aventuras fantsticas. E ainda lhe sobra tempo para a vida amorosa, a
leitura e a reflexo sobre o mundo. Entre o sublime e o ridculo,
convocando figuras como Diderot, Rousseau, Voltaire ou Napoleo, esta
stira retoma a persistente questo de uma sociedade ideal.
FelipeHighlight
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Ttulo: O Baro Trepador
Ttulo Original: Il Barone Rampante
Autor: Italo Calvino
Impresso: Maio de 2000
I
Foi a 15 de Junho do ano de 1767 que Cosimo Piovasco de Rond,
meu irmo, se sentou pela ltima vez entre ns.
Lembro-me como se fosse hoje. Estvamos na sala de jantar da
nossa villa de Ombrosa e a janela emoldurava a frondosa ramaria do
enorme lamo do parque. Era meio-dia e, seguindo uma velha tradio, a
nossa famlia sentava-se mesa sempre quela hora, no obstante se
tivesse espalhado j entre a nobreza a moda, originria da pouco
madrugadora corte de Frana, de almoar a meio da tarde.
Lembro-me de que soprava uma leve brisa vinda do mar e as folhas
buliam. Cosimo teimou: - J disse que no quero e no quero! -, afastando,
com um gesto, o prato de caracis. No havia memria de mais grave
desobedincia.
cabeceira da mesa sentava-se o baro Armnio Piovasco de Rond,
nosso pai. A longa cabeleira, j antiquada, como tantas outras coisas nele,
cobria-lhe as orelhas, moda de Lus XIV.
Entre mim e meu irmo ficava o abade Fauchefleur, esmoler da
nossa famlia e aio dos mais novos. Diante de ns, a generala Corradina de
Rond, nossa me, e a seu lado nossa irm Battista, a monja da casa.
outra cabeceira da mesa, vestido turca, defronte do baro, o
cavaleiro-advogado Eneias Slvio Carrega, administrador e engenheiro
hidrulico encarregado das nossas propriedades, nosso tio natural, j que
irmo ilegtimo do baro nosso pai.
Havia poucos meses, desde que Cosimo completara doze anos e eu
oito, que tnhamos sido admitidos mesma mesa que ocupavam os nossos
pais; desta maneira, eu viera beneficiar prematuramente do mesmo
privilgio concedido ao meu irmo, j que no tinham querido deixar-me
s hora das refeies.
Dizer que viera beneficiar talvez uma fora de expresso: na
realidade, tanto eu como Cosimo recordvamos com saudade as refeies
tomadas no nosso pequeno aposento, a ss com o abade Fauchefleur. O
abade era um velhinho seco e enrugado, que tinha fama de jansenista e,
na verdade, havia fugido do Delfinado, seu torro natal, para escapar a um
processo da Inquisio. Mas o carcter rigoroso que habitualmente todos
ns lhe louvvamos e a interior severidade que a si e aos outros impunha
cediam constantemente o lugar a uma sua vocao peculiar para a
indiferena, para o deixar correr, como se as suas prolongadas meditaes,
de olhos fixos no vago, o levassem apenas a um grande enfado e indolncia,
e em todas as dificuldades, ainda que mnimas, descortinasse o sinal de
uma fatalidade a que no valia a pena opor-se. As nossas refeies em
companhia do abade principiavam aps demoradas oraes, com
movimentos da colher muito compostos, rituais, silenciosos, e um "ai de
vs!" a quem quer que erguesse os olhos do prato ou fizesse o mnimo
rudo enquanto sorvia a sopa; todavia, ainda mal terminado o caldo, o
abade encontrava-se j fatigado, aborrecido, olhando o vago e estalando a
lngua a cada novo gole de vinho, como se apenas as mais superficiais e
caducas sensaes conseguissem atingi-lo; ao primeiro prato podamos j
comer com as mos e entretnhamo-nos a arrancar os caroos das pras,
enquanto o abade deixava cair, de quando em quando, um dos seus
preguiosos:... "Ooo bien!... Ooo alors!"
Agora, em lugar de tudo aquilo, sentados mesa com a famlia,
sentamos formularem-se os rancores familiares, triste captulo da infncia.
O pai e a me sempre ali presentes, o ter de empregar talheres para comer
galinha, o "ponha-se direito!", e o "tire os cotovelos de cima da mesa!",
continuamente, e, ainda por cima, a presena da antiptica da nossa irm
Battista. Foi o incio de uma srie de repreenses, de castigos e de
teimosias at ao dia em que Cosimo recusou o prato de caracis e decidiu
separar do nosso o seu destino.
S mais tarde vim a tomar conscincia desta acumulao de
ressentimentos familiares: tinha, ento, oito anos apenas e tudo me
parecia um jogo. A nossa guerra de crianas contra os adultos era idntica
de todas as outras crianas e no compreendi, naquela altura, que a
obstinao de que Cosimo dera provas ocultava algo de mais profundo.
O baro nosso pai era um homem enfadonho, certo, ainda que
no fosse mau: enfadonho porque toda a sua vida era dominada por
pensamentos e ideias confusas, como to frequentemente acontece nas
pocas de transio. A agitao dos tempos imbui em muitos uma
necessidade de se agitarem tambm, mas completamente ao contrrio, em
direces totalmente diversas: assim tambm o baro nosso pai, que se
vangloriava das suas pretenses ao ttulo de duque de Ombrosa e pensava
to-somente em genealogias, sucesses, rivalidades e at em alianas com
os potentados vizinhos e distantes.
Por isso tambm, vivia-se em nossa casa como se
ininterruptamente se estivesse a proceder ao ensaio geral do que devamos
fazer se tivssemos sido convidados para a corte, no sei se a corte da
imperatriz da ustria, se a do rei Lus ou at se a dos montanheses de
Torino. Quando se servia o peru, meu pai fitava-nos, para verificar se o
sabamos trinchar e descarnar segundo todas as regras e preceitos
cortesos, e o abade quase no provava, para no se arriscar a ser
apanhado em falta, ele que sempre devia manter a sua cumplicidade com
todos os ralhos e observaes que o nosso pai nos dirigia. Depois,
tnhamos conseguido descobrir o fundo falso da alma do
cavaleiro-advogado Carrega: fazia desaparecer, sob as largas abas da sua
samarra turca, coxinhas inteiras de peru, que depois ia comer com
pequenas dentadinhas, como lhe agradava, sentado a bom recato entre os
vinhedos; e teramos jurado (conquanto nunca tivssemos conseguido
surpreend-lo em flagrante, a tal ponto era lesto nos seus movimentos) que,
ao vir para a mesa, trazia consigo um saquinho cheio de ossos j
descarnados, que colocava no prato em lugar dos quartos de peru
surripiados. Nossa me, a generala, no contava para ns, porque at
mesmo mesa conservava, ao servir-se, aqueles seus modos bruscos,
quase militares: - So! Noch ein zvenig! Gut(1)! -, que a ningum
provocavam vontade de rir e troar; connosco fazia questo, se no j de
etiqueta, pelo menos de disciplina, e auxiliava o baro com as suas ordens,
que dir-se-iam gritadas numa praa de armas: - Sitzt, ruhig(2)! - Limpem a
boca! - A nica que se sentia vontade era Battista, a monja da casa, que
descarnava os frangos com um encarniamento minucioso, fibra a fibra,
com certas faquinhas aguadas, parecidas com lancetas de cirurgio e que
era a nica a possuir. O baro, muito embora julgasse tambm necessrio
cham-la a exemplo, no ousava faz-lo, nem sequer olh-la, porque, tal
como ns, sentia tambm um certo receio daqueles olhos retorcidos sob as
abas da touca engomada e dos dentes aguados na carinha de rato.
Compreende-se, assim, por que motivo era a mesa o lugar onde vinham a
lume todos os antagonismos, todas as incompatibilidades que entre ns
existiam e at mesmo todas as nossas pequenas loucuras e hipocrisias e
tambm por que motivo fora mesa que se determinara a rebelio de
Cosimo. Por isso me alongo a contar tudo, j que mesas postas algo que,
com toda a certeza, nunca mais iremos encontrar na vida do meu irmo.
1. Bem! Mais um bocado!
2. Estejam quietos!
Mas a mesa era tambm o nico local onde nos encontrvamos
com os adultos.
O resto do dia passava-o minha me encerrada nos seus aposentos,
a fazer renda, bordados e filet, porque, na verdade, a generala apenas
sabia atender estes trabalhos tradicionalmente femininos e s neles
tambm afogava a sua paixo guerreira. Eram rendas e bordados que,
habitualmente, representavam mapas geogrficos; estendidos por cima de
almofadas ou tecidos alcatifados, eram por nossa me pontilhados de
alfinetes e bandeirinhas, assinalando os planos de batalha da Guerra da
Secesso, que conhecia perfeitamente.
Outras vezes bordava canhes, com as vrias trajectrias dos
projcteis que saam da boca de fogo e as forquilhas de tiro e at mesmo os
sinais da triangulao, porque era muito competente em matria de
balstica e, alm disso, tinha ainda sua disposio toda a biblioteca do
general seu pai, onde encontrava tratados completos de arte militar,
tbuas de tiro e alas diversas. Nossa me era uma von Kurtewitz,
Konradine von Kurtewitz, filha do general Konrad von Kurtewitz, que vinte
anos atrs havia oc