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CALÚNIA! Jan Haye Bianca 100 Copyright: JAN HAYE Título original: “CHATEAU NURSE” Publicado originalmente em 1964 pela Mills & Boon Ltd. , Londres, Inglaterra Tradução: RILDA MACHADO LORCH Copyright para a língua portuguesa-. 1982 ABRIL S. A. CULTURAL E INDUSTRIAL —São Paulo Composto e impresso em oficinas próprias Foto da capa: R. J. B. PHOTO LIBRARY Myrna Hope, convalescendo de uma forte pneumonia, partiu para a França para assumir o único trabalho que a sua saúde permitia: cuidar de uma jovem senhora que sofria do coração. Porém, no Castelo de Bois, convivendo com aquela família prepotente, Myrna sofreu amargas decepções. Vigiada, carregava até a suspeita de um roubo. Mas ali, também, encontrou o verdadeiro amor, um amor que nasceu ameaçado pela intriga. O Dr. De la Rue, o homem que despertou nela uma paixão voraz, jamais acreditaria na sua inocência. E ela, difamada, traída, indefesa, afundava cada vez mais para um abismo de onde ninguém, nem mesmo o homem que ela amava, conseguiria salvá-la. 1

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CALÚNIA!Jan Haye

Bianca 100

Copyright: JAN HAYE

Título original: “CHATEAU NURSE”

Publicado originalmente em 1964 pela Mills & Boon Ltd. , Londres, Inglaterra

Tradução: RILDA MACHADO LORCH

Copyright para a língua portuguesa-. 1982

ABRIL S. A. CULTURAL E INDUSTRIAL —São Paulo

Composto e impresso em oficinas próprias

Foto da capa: R. J. B. PHOTO LIBRARY

Myrna Hope, convalescendo de uma forte pneumonia, partiu para a França para assumir o único trabalho que

a sua saúde permitia: cuidar de uma jovem senhora que sofria do coração. Porém, no Castelo de Bois,

convivendo com aquela família prepotente, Myrna sofreu amargas decepções. Vigiada, carregava até a suspeita de um roubo. Mas ali, também, encontrou o

verdadeiro amor, um amor que nasceu ameaçado pela intriga. O Dr. De la Rue, o homem que despertou nela uma paixão voraz, jamais acreditaria na sua inocência. E ela, difamada, traída, indefesa, afundava cada vez

mais para um abismo de onde ninguém, nem mesmo o homem que ela amava, conseguiria salvá-la.

PROJETO REVISAR

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos. Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente

proibida. Cultura: um bem universal.

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Digitalização: Palas AtenéiaRevisão: Valdilea Souza

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CAPÍTULO 1

Era um agradável dia de agosto, mais típico da primavera do que do verão, e as duas fileiras de jovens enfermeiras estavam contentes com isso, pois de outro modo não agüentariam o discurso de saudação que o dr. James Oswestry lhes fazia.

Elas eram as mais recentes graduadas do Hospital Geral St. Oswald, nos arredores de Londres, com o título de enfermeiras registradas do Estado. De um tablado armado sob a sombra dos enormes olmos, nos jardins do hospital, o dr. James, médico-presidente do conselho do hospital, dava mostras de estar, tanto quanto elas, ansioso por acabar aquela cerimônia o mais rápido possível.

Algumas delas haviam trabalhado a noite toda, e deveriam estar na cama àquela hora, enquanto que outras tinham sido dispensadas do serviço exclusivamente para participar da festa de formatura.

A enfermeira-chefe estava no tablado, saboreando cada instante, pois adorava discursos sobre a vida e os deveres num hospital. Aquela ocasião era tão importante para ela que, em seus aposentos, já organizara um chá especial, pronto para ser oferecido mais tarde, a uns poucos privilegiados. Não para as enfermeiras que tinham tornado possível aquela ocasião, mas para a alta direção do St. Oswald. Porque, afinal, a enfermeira-chefe mantinha-se distante de suas subordinadas, levando uma vida isolada, como se unicamente isso lhe assegurasse autoridade suficiente para que a disciplina e a tranqüilidade do hospital fossem mantidas.

O discurso prosseguia, monótono. Uma das enfermeiras olhou para a companheira do lado e perguntou baixinho:

— Você está se sentindo bem, Hope?— Estou bem, sim, Davies — foi a resposta. — Por quê?— Você está branca como um fantasma!— Tive que ficar de cama várias semanas, você sabe. Mas estou bem,

sossegue. Myrna Hope ficava um pouco sensível quando falavam de sua saúde.

Tinha apanhado pneumonia por ter se enfraquecido muito com os estudos para os exames finais e, embora um tratamento médico impecável e a saúde de ferro que tinha, a tivessem curado, não compreendia por que sentia-se tão cansada naquele instante, como se fosse desmaiar. Se ao menos pudesse andar um pouco, ativar a circulação… Mas não. Se fizesse isso chamaria a atenção de todos, e esta era uma coisa que ela não queria que acontecesse.

Tinha vindo naquela manhã de Sussex, para receber seu certificado e a medalha de ouro como a melhor aluna da sua turma, e, uma vez terminada a cerimônia, teria uma entrevista com a enfermeira-chefe às cinco e meia, depois do chá, quando conversariam sobre a sua volta ao trabalho. Era isso, pelo menos, o que esperava. Afinal, uma enfermeira que como ela costumava trabalhar e estudar umas dezoito horas por dia, e subitamente é obrigada a ficar com todo o seu tempo disponível, acaba sentindo-se infeliz e inútil.

Durante a convalescença, ajudara a mãe em casa e passeara pelos arredores com Lassie, a cadela de estimação, mas, logo, aquela pequena vila onde havia passado a infância tornara-se maçante e limitada. Um hospital movimentado é um pequeno mundo; nele, uma pessoa pode encontrar emoção, amizade, rivalidades, alegrias e compensações. Myrna não via a hora de voltar ao trabalho e, como enfermeira diplomada, novos horizontes se abririam, esplendorosos, para ela.

Seus olhos brilharam ao pensar nisso, e uma madeixa clara escapou de

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um grampo e caiu-lhe no rosto, libertada pela brisa suave e quente que soprava.

— Vamos, mexa-se! — A voz da enfermeira Davies interrompeu seus sonhos. — Você é a primeira, da classe e tem que ir até lá agora!

Automaticamente, Myrna ajeitou a touca e saiu da fila, olhando para o tablado onde a enfermeira Makepiece, que tinha sido sua instrutora, estava recolocando o megafone na mesa e sorria encorajadoramente.

O caminho até o tablado parecia não ter mais fim. As colegas batiam palmas animadoras. O dr. James a esperava com as mãos estendidas, olhando, com os olhos pálidos e risonhos, por cima dos óculos,

— Muito bem, minha cara. Uma recompensa justa. Continue assim e logo estará onde a enfermeira-chefe está hoje!

Com vinte e um anos de idade, Myrna considerou isto mais como uma ameaça do que como um prêmio, e gaguejou alguns agradecimentos quando ele lhe entregou a medalha de ouro. Estava muito mais interessada em receber a sua insígnia de enfermeira registrada do Estado, que a enfermeira Wimple, outra instrutora, colocou solenemente na lapela do uniforme impecável de Myrna.

A enfermeira-chefe entregou-lhe o diploma, amarrado com uma fita vermelha, e ela, já exausta, ouvia a explosão de palmas que as colegas lhe dirigiam enquanto voltava, com um certo sacrifício, a seu lugar.

Passou-se mais meia hora até que todas as enfermeiras tivessem recebido as homenagens e fossem dispensadas para um rápido chá, antes de voltarem ao serviço ou retornarem às suas casas. A maioria das colegas de Myrna já trabalhavam como enfermeiras, no St. Oswald e em outros hospitais.

— Gostaria de saber para onde Watters vai me mandar — comentou Myrna com Cathy Margrave, que tinha conseguido um lugar na enfermaria infantil.

— Acho que vai voltar ao seu antigo posto, companheira. Sabe, ainda não arrumaram uma substituta para Villiers, e ela vai sair em outubro. Acho bastante provável que fique no lugar dela, porque a enfermeira Wedlake falava muito bem de você enquanto esteve doente.

— Sim, mas quando eu estava doente… — disse Myrna, fazendo careta. — Acho que ela pensou que eu poderia morrer, e por isso lembrou-se de todas as minhas qualidades. Sabe, Wedlake não falou amavelmente comigo nem uma só vez, quando trabalhávamos juntas.

— Bem, é sempre assim — disse a amiga, cobrindo uma fatia de pão com geléia de morango. — Elas acham que os elogios prejudicam a eficiência. Mas você vai para a enfermaria feminina de cardiologia. Marque as minhas palavras!

— Bem que eu gostaria… — falou Myrna, pensativa, enquanto levantava a tampa de um bule e verificava que estava vazio. — Acha que esse resto de chá vai ficar bom com um pouco de água, Cathy? Estou com a boca seca!

— Vamos fazer uma tentativa — sugeriu a amiga, e chamou a garçonete: — Você não acha que a melhor aluna da turma merece um chá fresquinho, Olga? E alguns bolinhos deliciosos roubados lá da despensa? Muito obrigada, minha querida. Você é um amor!

A garçonete afastou-se, rindo. Achava as enfermeiras engraçadas, sem dúvida.

— É bom estar de volta — afirmou Myrna. — Se não fosse a comida, isto aqui seria perfeito. Esta coisa que eles passam no pão não pode ser considerada manteiga, concorda? Cada vez mais me convenço de que só

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minha mãe é quem sabe cozinhar!— Apesar disso — disse Cathy, enquanto Olga voltava com o chá e um

prato com pãezinhos que atraiu os olhares de todas as outras —, é uma boa vida, e eu não a trocaria por nada. Bem, agora preciso voltar ao trabalho, querida. É hora do maior movimento em minha enfermaria. Apareça para me contar para onde você vai, está bem?

As outras enfermeiras também começaram a sair, e logo o refeitório estava vazio. Nesse instante, uma das enfermeiras surgiu na porta e sugeriu que as chefes deveriam estar sentindo falta do chá, e se não seria trabalho demais alguém o levar a elas.

Myrna saiu dali e sentiu-se inútil. Eram somente quatro e meia, e ainda faltava uma hora para a entrevista com a enfermeira-chefe.

— Oh, enfermeira Hope! — Cumprimentou a enfermeira que acabava de pedir o chá, que se vangloriava de saber os nomes de todas, o que era realmente significativo quando considerando-se que havia pelo menos trezentas e cinqüenta enfermeiras nos quadros do hospital. — Estou muito contente por vê-la novamente entre nós! Mas ainda está pálida e magricela, hein? Precisa vigiar a sua saúde com cuidado.

— Estou bem, agora, enfermeira. E nunca fui muito corada mesmo. A velha observou-a em silêncio. Myrna era uma linda moça, podia-se

mesmo dizer excepcionalmente bela, não fosse aquela expressão tristonha e distante. Sua beleza loira tinha algo de angelical, puro. A pele era suave e rosada, e os grandes olhos eram doces como os de uma gazela. Mas realmente o rosto estava mais fino, mostrando uma transparência antes não tão evidente.

— É, essas coisas levam tempo — insistiu a enfermeira. — Mas por que não dá uma volta por aí e visita sua antiga enfermaria? Não vai encontrar nenhum conhecido entre os pacientes, mas a enfermeira encarregada vai ficar contente em vê-la novamente.

Foi com alegria que Myrna percorreu os longos corredores de ladrilho até a enfermaria Maria Madalena, onde as pacientes eram todas mulheres que sofriam do coração e do pulmão. O médico responsável, o dr. Hugo Merlin-Smythe, estava fazendo a ronda da tarde, acompanhado da enfermeira-encarregada e da enfermeira de plantão. Myrna parou na porta, olhando-os.

Uma jovem estagiária entrou nesse instante e dirigiu-se a ela com uma admiração incomum:

— Soube que ganhou a medalha de ouro, enfermeira Hope. Parabéns! Acho que nem vou conseguir passar nos exames de admissão! Bem, com licença, ainda não tomei o meu chá e vou aproveitar esta minha folguinha.

A jovem partiu tão apressadamente quanto chegara, e Myrna desejou ardentemente ter o direito de compartilhar das atividades da enfermaria. Sentia-se como um peixe fora d'água, e ninguém parecia ter tempo para ela.

Pensativa, continuou caminhando. Havia apenas cumprimentado a ocupada enfermeira Wedlake e recebido parabéns apressados da Villers quando notou que estava na hora de ver a enfermeira-chefe. Não queria deixá-la esperando e, assim, cinco minutos adiantada, dirigiu-se para o corredor, a caminho da sala da velha srta. Wattkyn. Exatamente às cinco e meia, Myrna bateu à porta, alegre porque o momento da decisão havia finalmente chegado.

A enfermeira-chefe, que não tolerava a impontualidade, já estava sentada em sua cadeira giratória, os cabelos grisalhos revoltos e cacheados em volta da touca engomada. Usava óculos sem aros que tornavam seus olhos mais claros, e roupa marrom, com gola e punhos brancos.

— Enfermeira Hope — disse ela, indicando uma cadeira num gesto sem

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precedentes, pois enfermeira nenhuma jamais se sentara em sua presença —, este deve ser um dia muito feliz para você, correto?

— Realmente, senhora. Estou muito contente por poder voltar a trabalhar.

— Teve ótimas notas, enfermeira. Deve ter batido um ou dois recordes. Mas todos nós sabemos que não é possível ser uma boa enfermeira somente em teoria, não sabemos? — Myrna sorriu, indecisa, e esperou o resto. — Estou muito preocupada com você, enfermeira, por ter insistido em terminar os exames mesmo estando tão doente. Mas, como os resultados foram tão auspiciosos, vamos esquecer isso, está bem?

— Sim, está bem, senhora. — Myrna sorriu, enquanto a srta. Wattkyn examinava uma carta que tinha nas mãos.

— Tenho o relatório do seu médico sobre o seu estado. Ele diz que teve um bom restabelecimento. O médico do hospital também concorda. Ambos sugerem que, por enquanto, faça apenas serviços leves.

Myrna engoliu em seco. O quê, precisamente, queria dizer a expressão “serviços leves”?

— Gostaria de voltar ao trabalho, senhora. Por favor!— Sim, eu sei disso, enfermeira, o que só depõe a seu favor, mas

realmente acho que precisa, antes, de umas férias. Um hospital como este não é um lugar adequado para convalescenças, pelo menos no que diz respeito aos funcionários. Não existem serviços leves em nossas enfermarias. Se eu a indicar para uma delas, logo estará trabalhando mais do que deve. A tentação de tomar a frente e fazer mais um pouquinho seria muito grande. Eu simplesmente não posso arriscar. Algumas semanas num ambiente mais calmo e você estará pronta para voltar ao trabalho. Sabe, não quero e não vou estragar uma boa enfermeira por negligência. A idéia é que você descanse uns dias, dedicando-se a um serviço leve, tranqüilo. O dr. Hugo deseja-lhe falar. É só, enfermeira registrada.

Myrna não deu a menor atenção ao fato de ter sido chamada pelo novo título, tal seu desapontamento. Estava farta de férias, não queria saber de serviços leves e estava disposta a dizer isto ao dr. Hugo.

Tinha que passar pela enfermaria infantil para chegar até a sala de espera dos médicos, e aproveitou para dar a má notícia a Cathy.

— Que azar! — comentou a amiga, triste. — Vou sentir sua falta, mas a saúde vem em primeiro lugar. Provavelmente você vai levar alguma milionária para Brighton, para ajudá-la a tomar banhos de mar, essas coisas. Depois, quando ela morrer, vai lhe deixar uma fabulosa herança, e aí você nunca mais precisará trabalhar. —sorriu, encorajadora. — A gente deve sempre ver o lado bom das coisas, Myrna. Bem, até logo, querida. Estamos dando banho nas crianças e pondo todas elas pra dormir. Imagine o trabalho!

O dr. Hugo Merlin-Smythe era um homem alto, de cabelos grisalhos, aparência ascética e traços nobres, com uma voz que se tornava tanto mais suave quanto mais zangado estava. Era muito inteligente e não suportava gente tola.

O dr. Hugo escutou os protestos de Myrna em silêncio e depois tocou a campainha, para pedir chá. Olhou-a profundamente, como se compreendesse tudo que a atormentava.

— Eu sei, minha querida, eu sei — disse ele amavelmente, enquanto cruzava as longas pernas. — Uma doença grave é altamente frustrante para uma pessoa ativa. Eu mesmo já passei por isso: tive que ficar num sanatório um ano inteiro, sendo que, nos primeiros seis meses, em repouso absoluto. Era

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como um castigo,e eu me revoltei multo. Mas sobrevivi. Você está tão próxima da cura total que seria tolice arriscar toda a sua carreira só por causa de mais seis semanas.

— Arriscar a minha carreira, doutor?— Muito facilmente, minha querida — respondeu ele, enquanto uma

funcionária entrava com o chá, apetitosos sanduíches e docinhos. — Por favor, sirva-se. Pneumonia não é brincadeira, principalmente a causada por vírus, e você tem muita sorte por estar agora aqui, sorvendo este chá horrível que eles fazem neste hospital. As enfermeiras têm de ser resistentes, e você vem se recuperando maravilhosamente bem, mas ainda não está completamente boa. Estamos chegando no outono, uma estação cheia de umidade, garoas, muito trabalho e resfriados. Você poderia ter uma recaída e, aí, adeus mesmo à carreira. Portanto, temos que tomar cuidado, mesmo contra a sua vontade. Compreendeu?

Lembrando-se das palavras de Cathy, Myrna perguntou:— Como por exemplo acompanhar uma velha milionária até Brighton e

levá-la para tomar banhos de mar?— Sim. Uma coisa assim. Mas a nossa milionária é uma mulher jovem, de

apenas quarenta e cinco anos e muito atraente. Só não é muito ativa, nem vai para Brighton. Vive num lindo castelo perto de Aurillac, no distrito de Auvergne, na França. — Myrna abriu a boca de espanto, mas não disse nada. Estava surpresa demais. — Espero que tenha um passaporte — continuou o dr. Hugo.

— Sim, senhor,tenho, sim. Tirei um porque pretendia fazer uma excursão à Normandia, mas acabei não indo. Nunca em minha vida viajei para o exterior.

— Então esta será uma ótima oportunidade para treinar seu francês. Vou telefonar para lady Vésper e pedir que entre em contato cem você, avisando sobre a data da ida ao castelo. Enquanto isso,deixo em suas mãos o relatório do caso, para que o leia. Vai perceber que a nossa paciente precisa mais que a vigiem do que propriamente de serviços de enfermagem. Não permita que fique zangada ou muito excitada e tudo sairá bem. Naturalmente ela tem seu médico particular, mas eu viajarei até lá em caso de emergência. Ele sabe disso. Devolva-me quando terminar de ler.

Myrna entendeu que deveria se retirar e foi ler o relatório na sala de espera. O lugar estava vazio àquela hora, mas o pronto-socorro de acidentados, ao lado, fervilhava. Como sempre, aliás.

Lady Vésper tinha um coração congenitamente fraco. Ela quase morrera durante as duas vezes em que engravidara e o médico proibira outras tentativas. Era sujeita a desmaios quando muito cansada, e tinha sofrido um infarto durante um ataque de icterícia, recentemente. Em casos como este, o aconselhável seria prevenir emoções muito fortes em vez de tratar alguma moléstia em especial. A doença era prejudicial ao doente, pois as funções de recuperação do corpo exigiam demais de um coração fraco. Por outro lado, a paciente poderia ter longos períodos completamente normais e felizes, quando não sentia dores nem grandes mal-estares.

Myrna terminou a leitura do relatório muito tarde e passou a noite no hospital. Voltou à sua casa no dia seguinte, muito animada.

— É como se me pagassem para ter férias — disse ela à mãe. — Não vou ter praticamente nada para fazer, a não ser vadiar e engordar.

— Espero que seja assim mesmo! — comentou a mãe, observando o corpo magro da filha. — Algum dia já pensou em se casar, meu bem?

— Com quem, por exemplo?

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— Bem, Ted é um bom rapaz… Filho de fazendeiro e…— Ted! Sinceramente, mamãe, só porque você se casou com dezoito

anos está achando que já sou solteirona! Eu posso até me casar algum dia, mas tenho que pensar em minha carreira! Não trabalhei nem estudei todos estes anos só para me casar, e logo quando minha carreira está me oferecendo tantas oportunidades! Esta viagem para a França, por exemplo. Só tive esta chance porque sou enfermeira diplomada!

— Naturalmente, a vida é sua — disse a sra. Hope, encolhendo os ombros, dando a entender que não havia melhor carreira para uma mulher do que um simples casamento.

As duas irmãs de Myrna, Helen e Jan, estavam casadas e já tinham filhos; vendo-as tão felizes, a sra. Hope não podia deixar de se preocupar com o futuro da caçula da família.

Myrna também se preocupava com isso, e pensava, muitas vezes, se algum dia um homem a faria feliz. Não estava apaixonada por nenhum dos médicos ou dos estudantes do hospital, como muitas de suas colegas, e nenhum dos rapazes de sua cidade a interessavam de maneira especial. Chegara até a pensar se não seria anormal; talvez fosse fria. Mas havia ocasiões em que tinha certeza de que o homem certo ainda não aparecera, e que todos os seus sentidos ansiavam por essa chegada.

Algumas vezes, caminhando pelas ruazinhas sossegadas ou pelos bosques, apreciando os campos cobertos de pequenas flores ou as paisagens tingidas pelas cores do outono, ela brincava e fingia estar acompanhada pelo homem da sua vida, comentando: “Querido, não é um lugar lindo?” Quem seria esse “querido”? Myrna não sabia,mas intuía que um dia ele haveria de chegar e a amaria muito e… E pronto, lá estava ela sonhando outra vez. Não acordaria nunca? Os pensamentos românticos foram abandonados assim que a campainha do telefone tocou. Era um recado de lady Vésper, que estava em tratamento numa casa de repouso exclusiva em Surrey. Ela convidava a enfermeira Hope para um chá na tarde seguinte, para discutirem sobre a viagem para a França.

Myrna vestiu-se cuidadosamente. Escolheu um conjunto creme com uma blusa no mesmo tom. Prendeu os cabelos loiros num coque e preferiu um calçado e uma bolsa de couro cru . Tomou o trem para Guildford e depois tomou um ônibus para Redroofs.

Parou em frente à casa de saúde e caminhava até lá, distraída, quando um rapaz quase a derrubou. Sua bolsa foi atirada longe e todas suas coisas se espalharam pelo chão.

— Puxa, eu sinto muito! — exclamou o rapaz, parando e catando um batom, uma agenda, um cartão de biblioteca e uma carteira. —Pode me chamar do que quiser que não fico ofendido!

Myrna o olhou com um sorriso e viu que devia ter mais ou menos a sua idade. Os lindos olhos azuis parcialmente cobertos pelos cabelos loiros e rebeldes expressavam tanta doçura que ela não teve vontade de agredi-lo.

— Tudo bem. Foi só um acidente. — Se garante que está mesmo tudo bem, vou sair voando. Tenho que

pegar o trem. — Então vá, por favor. Não aconteceu nada comigo. — Foi um prazer dar um encontrão…quero dizer, conhecê-la — declarou

ele com muito charme e começou a andar, apressado, em direção à estação. Quando Myrna viu lady Vésper, verificou que acabara de conhecer o filho

dela. A semelhança era imensa, embora os cabelos da mulher fossem agora

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artificialmente loiros e seus olhos azuis estivessem já quase sem brilho. — Minha querida, deixe-me olhar para você! É ainda muito jovem, não?— Tenho vinte e um anos, lady Vésper, sou diplomada e passei seis

meses na enfermaria de cardiologia do St. Oswald. — Oh, tenho certeza de que você é tudo aquilo que o dr. Hugo afirmou —

respondeu lady Vésper, com uma ponta de impaciência. — Mas gente jovem gosta de alegria e movimento. Não há muito disso no

Château de Bois. — Não espero alegria ou movimento quando estou trabalhando, senhora.

Para ser franca, ficarei contente em ter um trabalho. — Ah, sim? Soube que você esteve doente…— Já estou curada — respondeu Myrna, com firmeza. — Mas o dr. Hugo

acha que não devo voltar ao hospital, pelo menos dentro dos próximos dois meses.

Lady Vésper pediu o chá e, com muito tato, foi perguntando à nova enfermeira coisas sobre sua vida pessoal, família, amigos, namorados.

— Não tenho namorado, senhora. Pelo menos, nada sério. Estive ocupada demais com meus exames e com muitas outras coisas para me preocupar com homens.

— Eu tenho um filho, sabia? —— disse, enquanto observava a beleza de Myrna e fazia planos. — Pode ser que ele resolva nos visitar.

— Vai ser ótimo para a senhora — respondeu ela, sentindo uma onda de alegria ao lembrar daquele jovem alto e desastrado, que quase a derrubara.

— Vai ser bom para você também, querida. Ele precisa levá-la para passear e conhecer tudo por lá.

— É muita bondade, senhora — disse, excitada com a idéia de ter uma companhia como a do filho de lady Vésper. E perguntou a si mesma se não estaria sonhando.

— Minha filha Louise cursa uma escola de artes em Paris, mas atualmente está veraneando em St. Tropez. Não tenho dúvidas de que ele aparecerá por lá. Desde que fechei minha casa em Londres, o castelo é o único lar da família. Quando estou na Inglaterra praticamente vivo aqui, em Surrey, mas não vejo a hora de chegar em Aurillac, ao Château de Bois. A Inglaterra é terrivelmente enervante no verão. Será inconveniente para você se viajarmos na próxima sexta?

— Certamente que não, senhora. — Então é melhor que venha para cá na quinta, para me ajudar a fazer

as malas. E preste atenção: em Aurillac faz calor durante o dia, mas esfria à noite. Portanto, leve roupas apropriadas.

Naturalmente deverá usar uniforme, a não ser que esteja de folga. Está entendido?

— Certamente, lady Vésper. — Então acho que é tudo. Estou cansada. Se me der licença…— Posso ajudá-la em alguma coisa?— Aqui há gente para fazer isso, não se preocupe — respondeu lady

Vésper, com doçura. Sentindo que estava sendo dispensada, Myrna despediu-se e saiu do

sanatório, a cabeça cheia de pensamentos alegres e animadores.

CAPÍTULO II

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Myrna estava emocionada. Nunca havia voado antes, e tudo naquele avião que a levaria ao sul da França constituía uma surpresa.

— Está muito pálida — disse lady Vésper, enquanto Myrna tentava afivelar o cinto de segurança. — Espero que não enjoe na viagem, querida.

— De modo algum, senhora. — Já imaginou se eu precisasse cuidar de você quando

desembarcássemos? Aí eu seria sua enfermeira, já pensou?Myrna sorriu, sem jeito. Pressentia que lady Vésper não confiava

inteiramente nela e que precisaria provar sua competência para ser aceita como profissional.

O avião alçou vôo e Myrna sentiu um frio no estômago. Mas, na verdade, estava feliz, excitada, entregue às novas emoções. Era estranho estar em cima das nuvens, onde o sol brilhava constantemente e o céu era de um azul profundo. Era estranho enxergar as vilas e cidades da Inglaterra daquela altura. Estranho e bonito.

— Lady Vésper? — Myrna ficou apreensiva ao ver sua paciente com as pálpebras abaixadas e a testa ligeiramente enrugada.

— Fique quieta, menina. Acordei muito cedo e estou tentando dormir. — Desculpe, senhora. A jovem enfermeira pensou que o único problema realmente sério que

teria com sua paciente seria suportar uma certa intolerância. Era comum que pessoas doentes como lady Vésper fossem egoístas, rudes e até mesmo tirânicas, e Myrna precisaria ter muito tato para procurar compreendê-la. Não adiantaria nada responder ou aborrecê-la. Olhou para a mulher e teve certeza de que, quando jovem, deveria ter sido muito bonita. Tinha o rosto oval e a boca, embora um pouco petulante, era cheia e bem feita. Das orelhas pequenas pendiam brincos de pérolas rosadas que contrastavam com o tom pálido da sua pele.

Quando a aeromoça apareceu com as bebidas, Myrna acordou a companheira com firmeza.

— Lady Vésper, a senhora precisa tomar alguma coisa quente. Pode continuar a dormir depois! — Enfrentou os olhos azuis irritados e continuou: — Leite ou chá?A outra endireitou-se na cadeira, suspirando.

— Posso perceber que recebeu instruções de Hugo. Pensei que fosse muito jovem para ser mandona, mas vejo que me enganei. Chá e torradas, por favor. Gosto de comer aos poucos, e freqüentemente.

Mentalmente, Myrna creditou a si mesma um ponto e decidiu ser firme para com lady Vésper quando houvesse necessidade. Sabia que assim conseguiria impor respeito e confiança.

Sorriu, satisfeita, e olhou pela janela do avião. Estavam voando agora sobre a França, e era possível ver os campos quadrados cultivados. As linhas verde-escuras indicavam fileiras de árvores que margeavam as estradas, e todas pareciam se dirigir a Paris, onde o avião aterrissou.

Do Aeroporto de Orly, Myrna e lady Vésper tomaram um avião menor, com destino a Lyon. A maioria dos passageiros e tripulantes eram franceses, e Myrna teve que usar o idioma continuamente, certa de que seu vocabulário estaria muito aumentado quando voltasse à Inglaterra.

Em Lyon, depois das formalidades com a alfândega e com o Departamento de Imigração, foram recebidas por um Simca enorme e confortável, guiado por um motorista particular chamado Gastou, e que parecia radiante em rever a patroa.

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Lady Vésper quase não falou durante o trajeto e Myrna não a importunou com perguntas. Viu pelas placas de sinalização, na estrada, que tinham passado pela cidade de Vichy, famosa por suas águas. Viu ao longe uma cadeia de montanhas, que ladeava um vale maravilhoso, onde ficava Clermont Ferrand. Mas o Simca avançava em direção às montanhas. Entraram então por uma estrada íngreme e cheia de curvas pavimentada com cascalho. À medida que subiam, Myrna podia ver as pequenas propriedades repletas de vinhas, tão comuns na região.

O ar, ali em cima, era leve, agradável. Lady Vésper estremeceu,e Myrna cobriu-a com uma manta grossa.

Gaston guiava com tranqüilidade pela estrada, ladeada por pequenas muretas de pedra de meio metro de altura. Lady Vésper cochilava. Myrna, apesar de cansada, não queria perder um só momento daquela experiência. Olhava tudo, maravilhada, e esperava nunca em sua vida ficar indiferente às belas coisas à sua volta.

A cidade de Aurillac estava situada bem aos pés da montanha, e meia hora mais tarde, depois de cruzarem lugares que lembravam os vales do Yorkshire e a paisagem de Torquay, o carro subiu uma encosta suave, penetrou num bosque de carvalhos, subiu mais um pouco, agora entre pinheiros, e chegou ao vilarejo de St. Jude, onde umas trinta casinhas brancas circundavam uma igreja com telhas vermelhas. Logo depois da vila, o Château de Bois aparecia, imponente, dominando terras férteis e extensas.

Era a casa mais bela que Myrna já tinha visto, e ela engoliu em seco ao notar os dois lances da escada de mármore de Carrara, que levavam a um amplo terraço, por cujas colunas subiam as primaveras em flor. A frente era simples, em estilo georgiano, mas havia nas portas e janelas uma elegância tipicamente francesa.

Lady Vésper estava observando atentamente sua jovem companheira. — Gosta de meu castelo, enfermeira Hope?— Oh, senhora, é um lindo castelo! Eu… eu nem tenho palavras…— Então, acha que fiz bem em escolher este lugar? Myrna olhou para a

outra, o rosto corado pelo entusiasmo. — Deve ter muito orgulho daqui, lady Vésper. Sinto-me honrada em

poder vir para cá. — Você é uma boa menina. Gostaria que Louise fosse assim. Ela acha

que o Château de Bois é um mausoléu. Bem, agora vou Para o meu quarto. Estou cansada e pretendo dormir até amanhã.

Pode vir ver-me por volta das nove e meia, que é quando tomo os remédios. Mas não queira ser muito eficiente, aparecendo por lá antes disso. Tenho uma criada de quarto, Marie, que cuida de mim há anos, e não desejo aborrecê-la. Ela chamará se houver necessidade. Tente ocupar seu tempo da melhor forma, possível. A governanta lhe' mostrará o seu quarto.

Gaston carregou a patroa como se ela fosse uma criança, degraus acima. Myrna os seguiu, sentindo-se inútil, carregando apenas a bagagem de mão. Atravessaram a porta de entrada e chegaram a um enorme hall de mármore, onde a criadagem estava reunida. Lá se encontravam a governanta, esposa de Gaston, com um cinto onde estavam penduradas as chaves do castelo; a velha Marie, já beijando a patroa, o rosto molhado pelas lágrimas, e mais duas criadas e um copeiro.

Gaston amparou lady Vésper pela enorme escadaria e Marie os acompanhou de perto. Myrna foi deixada no hall, sentindo-se repentinamente muito infeliz, com saudade de sua casa, de seu país.

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Observou, com uma ponta de tristeza, os pastores e pastorinhas pintados nas paredes do hall, e as cenas campestres que enfeitavam I o teto. Era tudo muito bonito, mas Myrna não estava com vontade de ficar ali a noite toda. Já eram quase sete horas, e ela havia se levantado às quatro e meia da madrugada, depois de dormir mal-acomodada, numa cama estreita e dura que tinham lhe dado no sanatório de Surrey.

O tilintar das chaves anunciou a aproximação da governanta. Ela desceu a escada, murmurando desculpas que Myrna não entendeu. Apenas percebeu que era mais ou menos: “Sinto muito, mas a confusão da chegada me fez esquecer da senhorita”.

Depois, seus olhinhos escuros e espertos a observaram melhor. — Parlez vous français?— Un peu — respondeu Myrna timidamente. Então a mulher começou a falar devagar, num francês de província que a

jovem enfermeira não conseguia entender. Mas compreendeu o dedo que apontava escada acima e seguia a governanta. Atravessou o corredor acarpetado até a outra extremidade e entrou num quarto não muito grande, onde uma porta-janela mostrava o vale, lá embaixo, e outra dava para a floresta de pinheiros, do lado direito da casa. Cada uma delas abria para uma pequena sacada e Myrna,encantada,aspirou profundamente o ar frio da noite, perfumado pelos pinheiros.

Uma das criadas lhe trouxe a refeição numa bandeja, olhando-a com uma ponta de hostilidade. Não tentou conversar e mal esperou que Myrna agradecesse. Colocou a bandeja numa mesinha ao lado da janela e saiu.

Havia uma sopa leve, costeleta de vitela, salada, pãezinhos,manteiga, queijo e um prato com uvas.

Mais tarde a governanta trouxe um bule de café e levou de volta a bandeja, aparentemente satisfeita ao verificar que a jovem hóspede tinha um ótimo apetite. E, quando a mulher lhe desejou boa-noite, Myrna teve a impressão de que ninguém esperava nada mais dela naquela noite. Resolveu então tomar um bom banho e cair na cama. Estava tão cansada que chegou a cochilar na banheira. Acertou o despertador para as onze e quinze e entrou debaixo das cobertas, tentando dormir um pouco antes de começar de verdade seu trabalho para lady Vésper.

Já mergulhada num sono profundo, o despertador tocou e ela acordou assustada, sem entender, a princípio, onde se encontrava.

Estava escuro agora e o ar fresco da montanha entrava pelas janelas abertas. Ficou satisfeita por ter trazido seu roupão grosso e quente. Envolveu-se nele e saiu para o corredor, em direção ao quarto de sua paciente para dar-lhe o remédio.

Na manhã seguinte o café lhe foi servido no quarto, acompanhado de deliciosos croissants. Ela sentia-se maravilhosamente bem, pronta para trabalhar. Tomou um banho e foi ver como lady Vésper tinha passado o resto da noite.

Notou, satisfeita, o brilho nos olhos da mulher enquanto tomava seu café; eles espelhavam sua alegria por estar em casa.

— Vai ficar deitada o dia todo, senhora?— Sim. Pelo menos não pretendo sair do quarto. Como vê, estou muito

bem aqui. — Quando deseja tomar o seu banho?— O que você tem com isto?Sou muito capaz de tomar um banho

sozinha!

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Myrna enrubesceu e mais uma vez agiu com segurança. — O dr. Hugo recomendou-me que sempre estivesse por perto quando a

senhora tomasse seu banho. Não estaria cumprindo com meu dever se desobedecesse as instruções dele,

Lady Vésper tentou subjugar a jovem enfermeira pelo olhar, mas vendo que não conseguia, falou alguma coisa em francês à criada

Marie riu, maliciosa, e olhou para Myrna que não pestanejou Ao contrário, manteve-se firme e segura.

— A que horas deseja seu banho, lady Vésper? — perguntou novamente, com paciência.

— Daqui a meia hora, menina! —respondeu a senhora, e Myrna saiu do quarto em silêncio, com a convicção de que lady Vésper estava encantada por encontrar-se novamente no castelo, cercada pelos empregados que a serviam há anos. Devia ter sido o dr. Hugo quem insistira para que ela contratasse uma enfermeira e, até aquele momento, a enfermeira não fora nada mais do que um aborrecimento.

Mas Myrna estava disposta a cumprir seu dever, não importando quanto a sua paciente resistisse a isso. Portanto, depois de meia hora, ela entrou na suíte de lady Vésper e preparou o seu banho, sem muita conversa. Procurou não incomodar a jovem senhora e ficou do lado de fora, com a porta entreaberta e os ouvidos atentos a qualquer movimento anormal. No final do banho, lady Vésper chamou Marie, e não ela, para ajudá-la a vestir uma camisola leve e um néglige florido.

Quando as duas apareceram conversando animadamente, Myrna já esperava com uma injeção que a paciente deveria tomar duas vezes por dia.

— Oh, mas que amolação! — Lady Vésper submeteu-se de má vontade e depois acomodou-se novamente na cama. — Agora que já fui vigiada enquanto tomava meu banho e já tomei minha injeção,será que mereço um pouco de paz, enfermeira?

— Certamente, senhora. Sua próxima injeção será às seis e meia. E, por favor, se a senhora precisar de mim antes disso, é só chamar.

Lady Vésper a olhava com interesse. — Sabe, minha querida,você consegue ser insolente da maneira mais

simpática que conheço. É bastante inteligente para saber que sua paciência e tolerância são insuportáveis para alguém como eu.

Myrna fez um gesto de impotência. — Não pretendo ser insolente. Apenas não sei realmente como lidar com

a senhora. — Lidar comigo? É isto o que deve fazer?— Eu tenho que cumprir certas obrigações que, aparentemente, a

desagradam. Se eu saísse de seu caminho, estaria falhando no meu dever como enfermeira. A senhora necessita de meus serviços por causa de sua saúde, e eu devo encontrar o caminho certo para ajudá-la sem lhe causar aborrecimentos. É isto que quero dizer com “a melhor maneira de lidar com a senhora”.

Novamente os olhares das duas se encontraram e, desta vez, os de Myrna brilhavam de indignação.

— Eu a deixei zangada, não foi?— Não, realmente. Uma boa enfermeira não se zanga. — Bem, não sei se você já é bastante boa. — Um sorriso iluminou o rosto

de lady Vésper, e ela pareceu dez anos mais jovem. — De agora em diante vou me interessar pelo modo como lida comigo.

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Em que seu pai trabalha?— Ele era advogado. Morreu no ano passado. — Oh, sinto muito. Bem, pode ir agora. Divirta-se um pouco. Vai

encontrar muita coisa para fazer, e eu estarei muito bem aqui. O dr. Raoul de la Rue virá me visitar por volta das quatro horas, e é melhor aparecer para ser apresentada a ele. Provavelmente Raoul vai lhe dizer que acha muito difícil de se lidar comigo e então os dois já terão algo em comum.

Myrna saiu do quarto sentindo que lady Vésper simpatizava mais com ela. Sabia que a mulher estava se divertindo, pois tinha jogado com a palavra “lidar” como se gostasse de ser considerada uma paciente difícil.

Mais animada, trocou o uniforme por um vestido chemisier rosa claro e consultou,seu dicionário de francês para explicar à governanta que não estaria em casa para o almoço. Também informou que poderia ser encontrada na vila e partiu, subitamente feliz e otimista.

Queria procurar alguém que lhe desse aulas de francês,mas tinha se esquecido de que naqueles meses todas as escolas ficavam fechadas para as férias de verão. Entretanto, encontrou uma senhora que, num inglês quase incompreensível,indicou-lhe um tal monsieur Smis,um pintor que costumava ensinar inglês aos franceses. Por que não poderia fazer o contrário? E ela o acharia ali perto, num café, seria fácil.

Myrna agradeceu e andou pela rua estreita, calçada com pedras gastas pelo tempo, sentindo o sol quente nos ombros. Guarda-sóis coloridos cercavam o pequeno bar, onde os velhos do lugar se reuniam para conversar, com suas camisas de brim azul e suas boinas. No meio deles, um jovem de cabelos muito loiros, o rosto salpicado de sardas, tinha à frente um copo com café e desenhava atentamente um velho de nariz adunco que bebericava seu conhaque com soda.

— Monsieur Smis? — perguntou Myrna timidamente. O rapaz encarou-a com seus olhos muito azuis.

— Oui?— Ah… meu nome é Myrna Hope. Estou hospedada no Château…— Ah, é inglesa! Então, acerte meu nome: é Smith… Myrna riu e Michael

Smith a examinou detidamente. — Mas reconheço que Smis parece mais aristocrático — comentou, sorrindo. — O que posso fazer por você?

— Bem, é que… cheguei ontem e não consigo… A verdade é que não sei falar francês! — explicou ela, bem-humorada.

— É, as escolas inglesas não preparam as pessoas para fazer turismo… — Ele riu de novo. — Mas isso a gente só percebe quando precisa escolher entre se afogar ou nadar. Como posso ajudá-la?

— Pensei que pudesse me dar algumas aulas…— Bem, isto até que seria bom. Mas não tenho pretensões de ensinar um

francês perfeito, hein? Eu somente me viro. — Mas é isso mesmo o que eu quero!— Muito bem, então. Que tal começarmos agora e depois todos os dias

às onze?Myrna logo começou a se lembrar de uma porção de palavras que

pensara ter esquecido, e durante meia hora conversou somente em francês com Michael. Até despediu-se dele com um au revoir muito espontâneo.

Comprou alguns pães, salsichas e uma garrafa de água mineral, lembrando-se de que Michael lhe dissera que encontraria recantos maravilhosos para piqueniques no bosque de pinheiros. O calor do meio-dia era quase insuportável para alguém que tinha acabado de chegar da Inglaterra, e

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ela adorou mergulhar na sombra fresca das árvores. De vez em quando, avistava o castelo, que aparecia, imponente, entre os galhos e acima das copas das árvores dominando toda a região.

Myrna andou a esmo até encontrar um recanto agradável para fazer a sua pequena refeição. Não havia ninguém por lá. Ela fechou os olhos e cochilou, encorajada pelo calor da tarde e pelo cheiro delicioso dos pinheiros. Acordou às três horas e lembrou-se de que deveria estar presente à visita do médico de lady Vésper, às quatro, e assim resolveu cortar caminho pelo bosque, para chegar mais rapidamente ao castelo. A floresta de pinheiros se abria num encadeamento de campinas, que ela acreditava fazerem parte das terras do castelo. Assim, pulou sobre uma cerca e passou entre um rebanho de gado charolais. Estava passando pelo terceiro campo quando ouviu uma voz ríspida:

— Arretez! Vous ne seriez pas être ici! Era a voz de um homem alto, de cabelos escuros, que se aproximava dela.

— Pardon! — disse, encabulada. Ele apontou para a cerca e disse, sério:— Allez-vous en, s'il vous plaít. Ela obedeceu e saiu sentindo-se

humilhada e zangada. Lamentou que seu francês fosse pobre demais para responder e informar àquele homem que existiam maneiras mais amáveis de pedir às pessoas que se retirassem, e que não lhe faria nenhum mal aprender algumas delas.

Evitando cuidadosamente outros campos, ela chegou ao castelo às quinze para as quatro, o que somente lhe deu tempo para lavar as mãos e trocar de roupa. Desta vez escolheu um vestido branco com enfeites vermelhos, que realçava o corado que já se fazia notar em seu rosto.

Bateu à porta do quarto de lady Vésper exatamente quando o relógio dourado do saguão batia as quatro badaladas. Marie abriu a porta e fez sinal de que sua patroa já estava conversando com alguém. Olhando além dela, Myrna viu sua paciente recostada numa espreguiçadeira, ao lado das janelas abertas. Uma veneziana evitava que os raios de sol penetrassem, e uma luz rosada e difusa invadia todo o ambiente, favorecendo a beleza de lady Vésper. Um homem com ombros largos e fortes estava sentado à frente dela, e Myrna teve a impressão de que aquela figura lhe era vagamente familiar.

— Muito bem, aproxime-se, enfermeira Hope! — disse lady Vésper, num tom exasperado. — Venha conhecer monsieur le docteur. Ele está acabando de me passar um pito porque ousei sugerir que la oferecer um jantar a alguns amigos. Enfermeira Hope, o dr. de la Rue.

— Boa-tarde, doutor. — A enfermeira e eu já nos conhecemos, e de um modo nada tradicional!

— O dr. de la Rue sorriu, e seu rosto de traços aristocráticos ficou mais suave. — O senhor! — exclamou Myrna, enrubescendo violentamente ao

lembrar-se do incidente daquela tarde. — Sim. — O doutor olhou para lady Vésper, que demonstrava grande

surpresa com o diálogo dos dois. — Eu salvei a enfermeira Hope de ser atacada pelo meu touro charolais, “Napoleão, o Quinto”. Ela estava atravessando descuidadamente o pasto onde ele fica solto. Naturalmente, agora que sei que a enfermeira é inglesa, compreendo o que fez. Ninguém na vila seria tão tolo para arriscar a vida daquela maneira.

O inglês do médico era perfeito, e o leve sotaque dava um certo charme àquela voz profunda e agradável. Mas Myrna estava furiosa demais, ao notar que ele zombava dela, para prestar atenção nisso.

— Eu não vi nenhum touro — disse secamente. — E o senhor também

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estava andando pelo campo. — Como todos os bons touros, Napoleão conhece seu dono. Mas lindas

jovens, com vestidos cor-de-rosa, podem despertar nele os piores instintos… — Myrna olhou, muito séria, e ele, encolhendo os ombros voltou toda a sua atenção à paciente. — Agora, minha cara, acho que devo examinar seu pulmão. Enfermeira!

Myrna soltou as fitas do négligé e ficou por perto enquanto o estetoscópio era passado pelo peito pálido da doente. Olhou rapidamente para o médico e teve que reconhecer que era um belo homem. Seus cabelos eram escuros e brilhantes, e os olhos, acinzentados. Devia ter entre trinta e trinta e cinco anos.

— Pronto — disse ele, encarando Myrna com olhos sorridentes. — Vamos conversar onde esta dama teimosa não possa nos escutar?

— Não quero mais saber de restrições, Raoul! — reclamou lady Vésper, enquanto ele guiava a jovem enfermeira para fora do quarto.

— Já estou farta! —Ah, quando acabarem, volte para tomar chá comigo. Você pode tomar o seu lá embaixo, enfermeira.

Então ela me pôs em meu lugar, pensou Myrna amargamente enquanto o dr. de la Rue fechava a porta e dava alguns passos pelo corredor. Eu não fui convidada para a festa…

— Ela deve tomar muito cuidado — recomendou o médico, muito preocupado. — Está completamente sem forças. Completamente!

— Ela não aceita nada que eu digo , doutor — desabafou Myrna. — Mas a verdade — disse ele com um movimento de desalento — é que

nenhum de nós aceita os conselhos dos outros, não é? Você mesma, enfermeira, ficou irritada quando eu lhe disse para se afastar de touros ferozes, e a nossa querida Caroline Vésper se ressente quando lhe dizemos que não tem saúde suficiente para levar a vida normal que almeja. O que fazer? Devemos ter muito tato, mas temos de ser firmes. Dorme no quarto de vestir?

— Não. Eu estou no quarto do fim do corredor. — Então isto precisa ser mudado logo. Você deve ficar perto deCaroline durante a noite. — Mas lady Vésper diz que não quer ofender Marie, e eu não sei o que

fazer. — Deixe Marie e lady Vésper comigo. Não vejo motivos para

aumentarmos a dose de remédios que ela toma, desde que leve uma vida muito sossegada, mas vou deixar com você três ampolas para serem usadas em caso de necessidade. Somente emergência, compreendeu?

— Sim, doutor. Myrna apanhou as ampolas e, com um leve aperto de mão, ele se despediu e voltou para os aposentos de lady Vésper.

Uma hora depois, o copeiro apareceu no quarto de Myrna e avisou que ela deveria arrumar suas coisas imediatamente. Ele carregou as malas pelo corredor até um pequeno quarto, ao lado da suíte de lady Vésper, ligado por uma porta de comunicação. Lá não havia porta-janela com balcão, mas Myrna não lamentou a troca, pois agora se sentia mais responsável pela paciente.

Mais uma vez começou a desfazer as malas. Mal tinha acabado, quando Marie surgiu, avisando que lady Vésper queria lhe falar.

Myrna atendeu, apressada. — Enfermeira Hope por que não estava de uniforme quando Raoul veio

fazer a visita? — perguntou Caroline Vésper. Myrna ficou muda. Ela não esperava uma repreensão destas. — Você é minha enfermeira ou uma hóspede? Suponho ter deixado bem claro que deve usar seu uniforme, a não

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ser quando estiver de folga. — Sinto muito, senhora — murmurou ela, humilhada. — Nem pensei

nisso. — Mas precisa pensar. Espero que uma enfermeira apresente-se

exatamente como deve. Não peço muito de seu tempo, mas quando precisar de você não quero que me apareça com short, tênis ou como se estivesse preparada para ir a uma festa. É só.

Myrna saiu e imediatamente vestiu seu uniforme, imaginando que, afinal de contas, as férias que tanto esperara não iriam ser tão maravilhosas assim… No hospital, havia normas precisas sobre quando se devia ou não usar uniforme. Mas, ali, naquele castelo,era lady Vésper quem dava as ordens. E Myrna ainda não conhecia as regras. Sabia apenas que a jovem senhora atacava sem avisar, colocando as pessoas em seus lugares sem maiores rodeios. Ora exigia que Myrna a deixasse em paz, ora reclamava por não estar uniformizada. Para a jovem enfermeira, vestir uniforme engomado, com touca e tudo, só para ver um médico usar o estetoscópio era,no mínimo, ridículo. Mas sabia que não poderia correr o risco de aborrecer a paciente com uma observação dessas. Se sou sua enfermeira e não sua hóspede, vou fazer o meu serviço direitinho, pensou Myrna. Eu meu sinto como um peixe fora d'água o dia inteiro!

Com os olhos brilhando, ela se dirigiu ao quarto de lady Vésper depois de terminar a refeição da noite, com uma bandeja nas mãos.

— O que está fazendo, enfermeira? — perguntou Caroline Vésper, que estava jogando paciência numa mesa ao lado da janela.

— Vim para lhe fazer uma massagem com talco, senhora. Vai achar muito refrescante e ajudará a circulação. Queira ter a bondade de vir para a cama.

— Não seja ridícula. Estou no meio de um jogo!— Então eu espero. Myrna ficou em pé, imóvel, até que lady Vésper se irritou. — Realmente,você é uma moça cansativa, enfermeira. Muito bem, o que

quer que eu faça? — Por enquanto que se deite. Myrna tinha certeza de que a paciente adoraria a massagem, apesar de

não admitir. Quando terminou, ela bocejou e disse:— Acho que já sabe que não me levanto mais por hoje. Você ganhou.

Pode me dar a injeção e os comprimidos e não ouse me perturbar mais, está bem?

Myrna sorriu enquanto preparava a injeção. — Acho que amanhã a senhora deveria dar um passeio. Vai lhe fazer

bem. — Eu resolvo o que me faz bem, mocinha. Tenho muita experiência. Bem

mais do que você, diga-se de passagem. — Está com pouco apetite, senhora. Um pouco do ar da montanha pode

melhorar isso. — Você não desiste, enfermeira?— Eu só insistirei nas coisas que lhe poderão fazer bem, senhora. Myrna

tinha acabado de aplicar a injeção e estava enchendo um copo para que Caroline tomasse suas pílulas,quando Marie entrou no quarto, muito agitada, falando qualquer coisa em francês.

Lady Vésper fez um gesto com as mãos, recusando as pílulas. — Mais tarde, enfermeira. — Ela estava muito bonita agora, o rosto

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corado e vivo. Falou com Marie e depois virou-se para Myrna:— Não estou tão cansada como pensei. Vou receber uma pessoa agora.

— E, vendo a hesitação no rosto da enfermeira, acrescentou:— Não é um compromisso com um cavalheiro, mas com uma moça mais

ou menos da sua idade. Ela mora perto daqui. Que tal você colocar novamente aquele lindo vestido branco que usou quando Raoul esteve aqui? Ele a torna muito atraente. Gosto de ver jovens belas e bem-vestidas.

— Mas por que devo trocar de roupa agora? O que está acontecendo?— Quero que conheça esta moça, Celeste Beldame. Volte quando estiver

pronta. Myrna resolveu não discutir, pois, às vezes, não conseguia compreender

lady Vésper. Por que não poderia ser apresentada a mademoiselle Beldame usando uniforme, quando há poucas horas tinha sido repreendida por não usá-lo? Não entendia mais nada. Limitou-se a colocar novamente o vestido e pentear os cabelos de um modo menos severo.

Quando reapareceu no quarto de lady Vésper, a conversa estava tão animada que ela ficou indecisa se deveria ou não interromper.

— Ah! — Lady Vésper a recebeu vivamente. — Aqui está Myrna, finalmente!

Fez as apresentações e Myrna ficou surpresa ao ver que Caroline Vésper se dirigia a ela pelo nome de batismo.

Aparentemente, Celeste falava inglês muito pouco, e, depois de um cumprimento tímido, ficou calada, observando atentamente Myrna, enquanto lady Vésper praticamente conversava sozinha.

Celeste era ruiva, muito bonita, os cabelos cor de cobre contrastando com expressivos olhos verdes. Não parecia ter gostado de Myrna.

— Não acha que Celeste é amável? Ela vai me acompanhar no passeio que você sugeriu. Vamos fazer um piquenique amanhã.

— Muito amável — concordou Myrna, imaginando se também seria convidada.

— Você fica tomando conta das coisas por aqui, minha querida. Celeste e eu temos muito o que conversar.

Falando em francês, ela disse à moça que estava cansada e que precisava se recolher. Combinaram um encontro para o dia seguinte, às onze horas.

— Três bien, madame. Bon soir!— Bon soir, Celeste. — Bon soir, mademoiselle. — Bon soir. Antes de sair, Celeste olhou novamente para Myrna de forma estranha.

Havia um ar de intriga no quarto, algo que a enfermeira podia sentir, captar, mas não conseguia entender.

— Ela é a filha do veterinário da cidade — explicou Caroline. — Realmente uma pobre coitada.

Então, pensou Myrna, lady Vésper é uma esnobe. Mas por que convidar a moça para um piquenique, se a desprezava? E por que Celeste tinha ido até o castelo para uma visita? Tudo aquilo parecia muito estranho…

— Já jantou, enfermeira? — perguntou a paciente com frieza, restabelecendo a distância entre as duas.

— Não. Ainda não, senhora. — Então vá, agora. Suponho que já conheça o caminho. A sala de jantar

é perto do hall. Ela foi aberta hoje por ordem minha, porque meu filho Verian

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vai chegar amanhã. Ele está viajando de carro desde Dieppe. Pode ser que chegue enquanto eu estiver fora, portanto peço que o receba por mim. Não precisará usar uniforme amanhã. É só, enfermeira.

Myrna retirou-se e saiu à procura da sala de jantar, animada com a idéia de ver mais uma vez Verian Vésper, que parecera ser um rapaz muito atraente. Com ele por perto, o castelo não pareceria tão grande e tão isolado.

Ela concluiu que lady Vésper a mandara usar roupas comuns com o objetivo de atrair as atenções de Verian e, embora aquilo a surpreendesse, resolveu que não questionaria a doente. Mas intuía que algo estranho estava acontecendo ali.

Bem, fosse o que fosse, ela decidira manter-se distante dos assuntos pessoais da sua paciente, e nada a faria mudar de idéia. Pensou em Verian, no impacto que ele lhe causara e animou-se. Afinal, também tinha o direito de ser feminina e receber um pouco de atenção de algum homem.

A comida no castelo naquele dia deixava bastante a desejar, mas terminou a sua refeição solitária com bastante café com creme e um prato generoso de uvas da plantação do castelo.

Myrna levantou-se, alegre, da mesa e foi para o quarto escrever para casa com a convicção de que o dia seguinte poderia ser, pelo menos. Um dia muito interessante.

CAPÍTULO III

Myrna acordou na cama improvisada do quarto de vestir com a impressão de que aquele seria um dia luminoso, graças à chegada de Verian. Mas não pôde deixar de dizer a si mesma, com severidade, que não tinha o direito de alimentar quaisquer esperanças pelo único filho de lady Vésper. Mesmo assim, sua alegria não diminuiu, e ela tomou o café da manhã animada e descontraída. Em seguida foi até o quarto da sua paciente, para ajudá-la no banho e fazer nova massagem com talco.

Na cozinha, o piquenique estava sendo preparado. Fatias de peito de frango, pãezinhos frescos, grandes cachos de uva e uma garrafa com café foram acomodados nos cestos forrados de linho. O dia prometia ser bem quente.

Lá fora, Gaston estava polindo o Simca, assobiando alegres canções regionais.

Celeste chegou pontualmente às onze. Ela vestia um traje amarelo, de linho, e estava muito elegante. Embora tivesse cruzado com Myrna no enorme saguão da entrada, não parou para conversar, e a jovem enfermeira achou que ela devia ser muito tímida.

Depois que o carro partiu, levando as duas mulheres, Myrna colocou um vestido azul de algodão, bem leve, que tinha pequenos babados no decote e nas mangas e que realçava sua juventude.

Apressou-se para chegar à vila, onde Michael, como sempre, estava sentado numa das mesas do café.

Ele a olhou atentamente, sem nenhum cumprimento. — Fique parada aí — ordenou. — Quero desenhar você. — Vai demorar muito? — Ela sorriu, corando com o elogio implícito. — Na

verdade não tenho muito tempo, e quero minha aula de hoje. O carvão, nas mãos dele, corria com desenvoltura. — Dois pássaros com um tiro só — disse Michael, olhando rapidamente

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para ela. — De agora em diante, é proibido falar inglês! Vamos! É o único meio: Travaillez! Faites attenüon, maintertant!

Na meia hora seguinte, Myrna lutou com os verbos e com os femininos e masculinos dos nomes franceses.

— Você vai indo muito bem, mocinha. Este é o único jeito de se aprender uma língua. A gente tem que se atirar na água e nadar. Está livre esta tarde?

— Oh, não — respondeu ela prontamente. — Tenho que ver algumas coisas lá no castelo. Verian está sendo esperado. Você o conhece?

— Conheço, sim!E sei que ele pode muito bem tomar conta de si mesmo. Sabe, eu estive pensando em levá-la para ver a exposição de arte dos estudantes, em Aurillac. É uma coisa que vale a pena.

— Oh, sinto muito…Myrna não desejava um relacionamento muito pessoal com Michael. Ele

a olhava às vezes, de um modo estranho; poderia até ser o olhar de um artista. Mas, talvez, fosse alguma coisa mais profunda, e ela não pretendia encorajá-lo.

— Como sabe, sou uma moça que trabalha — disse ela, enquanto se levantava. — E geralmente lady Vésper não gosta de ser desobedecida. Gostei do desenho. O que vai acontecer com ele, depois que terminar?

— Oh, não vai ficar somente no carvão. Talvez eu resolva passar para a tela e criar uma nova Mona Lisa. Para a posteridade.

— Mas que honra… —comentou ela, rindo, e afastou-se. Estava pensando se Verian chegaria logo. Se tivesse dirigido a noite toda, ele poderia chegar ao castelo para o almoço.

Sentiu-se vagamente irritada quando viu o dr. de la Rue saltar de seu Renault conversível.

— É o destino, enfermeira Hope! — foi o seu cumprimento. — Eu estava mesmo querendo ir buscá-la.

— Buscar-me doutor? — respondeu ela, sentindo-se completamente insegura na presença dele. — Para quê?

— Uma emergência, naturalmente. Para que mais?A afirmação de que ele só necessitaria dela em caso de emergência a

deixou, de certa maneira, desapontada. Ao contrário de Michael Smith, o dr. de la Rue não parecia apreciar muito a companhia dela.

— Que tipo de emergência, doutor?— Uma jovem mãe em trabalho de parto. A parteira local levou um

tombo e torceu o tornozelo, e a velha senhora que costuma atender a alguns casos por aqui foi visitar seu filho numa fazenda próxima. Pensei que seria bom ter alguém para ajudar e, assim, lembrei-me da senhorita.

Myrna não hesitou. — Se acha que posso, certamente vou ajudar, doutor. Mas devo avisá-lo

de que ainda não recebi meu CCP — disse ela, sem se preocupar se o médico entenderia ou não aquilo.

— CCP? O que é isso? — perguntou, levando-a para um consultório improvisado numa das casas da vila.

— Certificado do Curso de Parto. Não sou parteira diplomada. — Suponho que saiba como nascem os bebês, não? E que entende como

se faz assepsia?— Naturalmente, mas…— Então que se dane seu CCP. — Ele a empurrou para dentro de um

banheiro escuro e pequeno. — Esfregue bem as mãos — ordenou. — Depois suba para trabalhar.

Um grito angustiado de mulher chegou até Myrna, quando esfregava um

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desinfetante leitoso nas mãos. Instintivamente, ela prestava atenção no intervalo entre os gemidos, e percebeu que o nascimento não tardaria. Subiu depressa a escada até um quarto onde o médico, em mangas de camisa, colocou nela um avental branco.

— É melhor andarmos depressa —recomendou ele. — O bebê vai nascer a qualquer momento.

Myrna olhou com ternura para a jovem deitada na cama. Devia ter pouco mais que dezoito anos e estava assustada. Delicadamente a enfermeira enxugou-lhe o suor da testa e depois calçou as luvas de borracha que de la Rue lhe estendeu.

— Está na hora! — exclamou o médico quando a jovem se retesou e se curvou novamente. — Ele está nascendo!

— Ou ela! — Myrna ainda encontrou tempo para dizer, quando uma cabecinha redonda apareceu entre suas luvas. — E é linda!

— Não me diga que é também feminista, enfermeira Hope!Por enquanto é um menino; até prova em contrário!

— Mas tem rosto de menina — insistiu Myrna. — Se você julga uma criança pelo rosto, vai ser uma péssima parteira. — Neste instante, emocionada, Myrna ajudou um parzinho de ombros a

entrar no mundo. — É uma meninona! — disse ela, insistindo no palpite. O resto foi rápido

e fácil. Raoul de la Rue olhou para o bebê, enquanto cortava o cordão umbilical; e todos ouviram o choro de protesto da criança que começava a viver separadamente da mãe. O médico sorriu para Myrna, mas dirigiu-se para a paciente:

— Três bien, Marte! Le bebe est un fils!— Un fils? — exclamou a mãe incrédula. — Ah! Merci, le Bon Dieu!— Um garoto — repetiu tranqüilo, enquanto atendia à criança. — Você

disse que o rosto era de menina, enfermeira?Myrna, que estava limpando tudo e pegando lençóis limpos de um

armário próximo, decidiu conceder a ele aquele momento de triunfo. — É um lindo bebê — disse ela. — e isto o que realmente toda mãe

deseja. O sexo não é importante, a não ser para alguns homens com mentalidade medieval.

— Gosto de você, enfermeira Hope. Como uma antagonista. Faz uma ótima oposição. Quando estiver com vontade de discutir irei buscá-la novamente, combinado?

— Posso passar meu tempo muito mais agradável mente do que brigando, muito obrigada — respondeu ela, zangada.

— Mas é tão monótono ter alguém sempre admirando a gente o tempo todo… Eu fico muito cansado com isso!

— Tenho certeza de que todos o acham encantador! — comentou Myrna, irônica.

— Todos menos você, não é verdade?— Então eu consigo uma mudança bem estimulante, não é?Ouviram então, lá embaixo, um som de vozes, e depois um homem

gritou algo incompreensível. — En haut, Pierre! -— convidou o dr. de la Rue. — Regardez le petit beau. Um homem, vestido com roupas de agricultor, irrompeu pelo quarto.

Primeiro, seus olhos procuraram a esposa e notaram nela um sorriso de felicidade e orgulho. Depois, seu olhar pousou na pequena trouxa nos braços da mulher e ele caiu de joelhos ao lado da cama. Uma senhora de meia-idade,

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parada no limiar da porta, chorava incontrolavelmente. Era a mãe da garota. — Agora vamos indo — disse o dr. de la Rue, enquanto guiava Myrna

para fora daquela tocante cena de alegria familiar. — Eles não precisam mais de nós.

Myrna sorriu e comentou que tinha adorado cada minuto. — Até mesmo a discussão?— Sim, até mesmo isso, doutor. — Bom! Então ainda há esperanças para nós. Posso levaria até o castelo?— Não, obrigada. É longe demais. Adeus. Enquanto caminhava, Myrna pensava no quanto tinha adorado realmente

aquela experiência. Já eram duas e meia, e ela estava faminta e cansada. Mas o cansaço abandonou-a quando viu o Jaguar estacionado em frente à casa. Devia ser Verian!

Ela correu para dentro, e foi diretamente para a sala de jantar. A mesa estava arrumada para uma só pessoa, constatou desapontada. Naturalmente, o recém-chegado já tinha almoçado. Fora estupidez imaginar que ele a esperaria.

Madame Durand trouxe-lhe uma refeição já fria, enquanto Myrna tentava explicar, em francês, que estivera ajudando o doutor a fazer um parto.

— Marie Canet? — perguntou a senhora. Myrna respondeu que achava que era esse mesmo o nome, e contou que

era um menino. A mulher afastou-se alegremente, ansiosa por espalhar a notícia.

A sopa não estava somente fria; estava gordurosa também. Myrna não conseguiu tomá-la; comeu uma salada de alface carregada de temperos, acompanhada de um peixe insosso. Depois das uvas costumeiras e do café, foi até o terraço. Seu coração deu um salto.

Diante de seus olhos estava o imenso gramado verde e nele um rapaz alto e loiro atirava flechas num alvo.

— Bravo! — gritou Myrna quando ele acertou bem no centro. Verian Vésper levantou o olhar luminoso, sorrindo, mas o sorriso morreu lentamente em seus lábios. Myrna teve que admitir que ele ficara desapontado ao vê-la. Talvez esperasse outra pessoa, quem sabe a mãe…

Ele subiu os degraus do terraço com um olhar intrigado, como se não a reconhecesse. Estendeu as mãos para cumprimentá-la e logo disse, com uma nota alegre na voz:

— Você é a garota em quem eu dei um encontrão lá na casa de saúde, não é? Não me diga que é a nova enfermeira da minha mãe!

— Está bem, então não digo!— Puxa, quem diria que nós teríamos afinal uma enfermeira jovem e

bonita! Até agora só tem vindo gente aposentada! Minha mãe liquida com enfermeiras. Assim como tem gente que liquida com pragas.

— Ela já tentou comigo, mas estou sobrevivendo. Diz que eu pareço água mole em pedra dura, de tanto que insisto nas coisas.

— Sorte sua! Eu admiro muito as enfermeiras, sabe? Quando penso que existem mais de mil pacientes como a minha mãe, tenho vontade de condecorar todas elas!

— Sua,mãe não é assim tão ruim. O caso é que ela não quer ser tratada como doente. Tenho que lutar para me aproximar dela.

— Como ela está? Ou você não tem permissão de revelar para um leigo?— Sua mãe está bem, dentro de certos limites. Mas, pelos relatórios, vejo

que ela periodicamente comete alguns excessos.

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— Isso mesmo! Ela detesta ser tratada como uma inválida. Muitas vezes é injusta com Lulu e comigo. Lulu é minha irmã. Louise,para ser exato.

— Como pode dizer isso? Vocês parecem livres para fazer o que querem. — Não podemos contrariar nossos pais sem pensar nas conseqüências.

Lulu quase fugiu com um professor de alemão. Ela aprendeu que ich Hebe dich, “eu te amo”, era uma coisa que existia mesmo e foi apanhada, com ele, pela Interpol, quase na fronteira. Foi quando a apaixonada Lulu descobriu o que seu comportamento impensado poderia ter causado a mamãe. Então, baixou a cabeça e voltou para casa. Mais triste.

Myrna não sabia se devia ou não acreditar naquela história, pois fora contada num tom brincalhão.

— E você? Teve que baixar a cabeça muitas vezes? Ele sorriu. — Se quer a história da minha vida, precisa pagar uma prenda. Ponha um

chapéu e venha dar uma volta. — Com todo prazer! — respondeu ela animada. Deitada numa encosta verde, olhando para a floresta lá embaixo, Myrna

sentia-se radiante. Verian Vésper, agora, não somente sabia que ela existia como também simpatizara com ela. Ria muito das histórias que Myrna lhe contava sobre a vida no hospital, e parecia também bastante satisfeito.

— Vai ser divertido ter uma enfermeira jovem por aqui. Até que minha mãe crie algum caso, evidentemente…

— O que quer dizer?— Quero dizer, minha linda enfermeirinha, que eu sou jovem e você é

jovem, e somos homem e mulher. Quando minha mãe perceber isso, não vai deixar que fiquemos um minuto sozinhos.

— Isso me surpreende, porque ela recomendou que eu lhe fizesse companhia quando chegasse. Disse-me também que você poderia me levar para fazer passeios, e que eu gostaria muito disso. Naturalmente não pretendo usar as sugestões de sua mãe para obrigá-lo a nada. Você deve fazer exatamente o que tiver vontade.

— Não sei não… —Ele mordeu os lábios, pensativo. — Se é desse jeito que minha mãe quer, vamos fazer o jogo dela. O que temos a perder?

Olhou longamente para Myrna, que acabou sentindo o rubor colorir seu rosto. Inclinou-se para ela, que ficou tensa, pensando que ele queria beijá-la. Seu coração batia loucamente, mas Verian afastou-se devagar.

— Estive intrigado até agora por causa de seu perfume. Mas agora descobri que não é perfume. É desinfetante!

Pegou, uma das mãos dela e a cheirou delicadamente. — Você está certo. — Sua voz estava insegura. — Estive ajudando o dr.

de la Rue a fazer um parto esta manhã. Sinto por causa do cheiro. Ele continua por vários dias; a gente tem de esfregar bem as mãos com o desinfetante.

— Não precisa se preocupar. É até um cheiro agradável, de limpeza. De certo modo, combina com você.

— Obrigada — respondeu ela, não muito satisfeita. — O que acha de Raoul de la Rue? — perguntou Verian quando se

levantavam para voltar ao castelo. — Como pessoa ou como médico?— Sei que ele é um ótimo médico. Mas, como pessoa, acho que é um

grande convencido. Gostaria de saber como ele impressiona as mulheres. — Se é que as impressiona — respondeu Myrna, sentindo-se desleal. —

Mas ele é um bom médico, e isto é o que realmente importa, não é?— Uma vez pensei em ser médico… Mas de la Rue riu na minha cara.

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Disse que eu não me formaria nem em cem anos. Foi o que aconteceu, mas ele não precisava ter sido tão positivo!

— Ele ainda é bastante jovem, não?— Tem pouco mais de trinta anos. — De fato, pronto para a aposentadoria! — gracejou ela. — Quando eu tiver trinta anos, já terei abandonado todo o interesse

pelas coisas. Mais nove anos e um pouco e eu…— Então não fez vinte e um anos ainda?— Deverei celebrar este grande acontecimento aqui, neste buraco, daqui

a três semanas. Vai ser uma maravilha mesmo…— Por causa de sua mãe?— Sim. Vai ser uma comemoração calma, eu espero, nada sensacional.

Quando penso numa festa qualquer, logo imagino champanhe jorrando por todos os lados e todo mundo bêbado, caindo no lago. Assim é que deveria ser.

— Eu comemorei meus vinte e um anos trabalhando. Naturalmente ganhei lindos presentes, mas nem pensei em dar uma festa.

— Bem, é diferente com gente do seu meio, não?— Está querendo dizer: com gente de minha classe social, não é?— Falo de gente que precisa trabalhar para viver, e que não tem

programas sociais constantes como nós. Sei que o sistema está todo errado, mas estamos presos a ele. A vida deveria ser justa e agradável, mas não é sempre assim; a minha não é. Não me compreenda mal. Eu gosto de moças da sua classe social. Gosto mesmo. São inteligentes e úteis.

A brecha entre eles estava aumentando e Myrna resolveu mudar de assunto. Não estava gostando tanto do caminho de volta quanto gostara da ida.

Não havia “classes” num hospital movimentado. Havia trabalha-dores e havia ineficientes. A hierarquia era formada por gente quietinha conquistado sua posição e sua autoridade em anos e anos de trabalho.

Myrna percebeu que tinha sido sutilmente esnobada por Verian. Ele fazia parte dos “nós” e ela dos “eles”. A distância entre os dois cresceu até se transformar numa muralha quase intransponível.

Ela ficou pensando se não estaria sonhando quando, um minuto depois, ele lhe deu o braço e a puxou carinhosamente.

—Vamos combinar alguma coisa para amanhã? Se a minha mãe quer que sejamos amigos, eu aprovo inteiramente. Que tal?

Ela sorriu e tirou o braço com delicadeza. Estavam se aproximando da casa pelos fundos.

—Podemos combinar qualquer coisa desde que eu esteja livre. Olhe lá o Simca na garagem. Sua mãe deve ter voltado! — E começou a correr.

—Por que a pressa?— Sou a enfermeira de sua mãe, não se lembra? Não sou uma hóspede. Myrna pensou que seria melhor que sempre tivessem isso em

mente,antes que as coisas fossem mais longe entre eles. E reconheceu que ela mesma tinha precipitado os fatos. Praticamente convidara Verian a beijá-la quando ele não tinha essa intenção. Talvez o rapaz tivesse percebido isso e resolvera lembrar-lhe seu lugar.

Mas, qualquer que tivesse sido a intenção dele, ela agora se sentia ferida, magoada. Correu para o quarto, lavou o rosto com água fria e rapidamente vestiu seu uniforme branco. Depois, foi bater à porta do quarto de lady Vésper.

A semana seguinte passou alegremente,sem maiores problemas. A

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saúde de lady Vésper não inspirava maiores cuidados; de vez em quando ela saía para uma volta de carro ou passeava pelos jardins e sentava-se perto de rosas que tinham sido trazidas da Inglaterra.

Ocasionalmente recebia visitas, mas embora estas fossem necessárias para deixá-la mais animada, Myrna tinha instruções do dr. de la Rue para desencorajar o planejamento de festas e para afastar os visitantes sempre que percebesse que a paciente mostrava sinais de cansaço ou tensão.

Toda vez que arranjava um tempinho, Myrna tomava aulas de francês com Michael Smith, e la progredindo aos poucos. Agora ela não só conseguia se comunicar com os criados como também compreendia suas respostas, o que fez com que a afinidade entre eles crescesse bastante.

Durante as tardes, enquanto lady Vésper descansava, Myrna e Verian ficavam sempre juntos, dando pequenos passeios a pé, de carro, ou fazendo compras. Aparentemente ele apreciava a companhia da moça e a tratava como irmã, com afeição e bom humor. Aprendeu a confiar nela, e um dia abriu o seu coração.

O amor, ele contou, era um inferno. Uma vez havia se apaixonado e correra o risco de arruinar toda a sua vida. Mas nada disso teria acontecido se a garota fosse “alguém”.

— Bastava que nos olhássemos para que meu coração desse um salto. — Você conseguiu esquecê-la?— Não sei. Não a tenho visto ultimamente. Estive em Oxford. Mas às,

vezes penso que talvez tenha conseguido esquecê-la, sabe? Outras vezes… Outras vezes eu não sei. Ela era tão terrivelmente importante para mim que o fato de eu não sofrer mais já é um alívio. Compreende?

— Acho que sim. Eu sou inexperiente nesses assuntos. Você chegou a escrever para ela?

— Não. Nós combinamos esperar e ver se o amor durava. Meus pais eram contra, e isto é desagradável quando se precisa deles para cada centavo. Ela não me procurou e eu prometi não importuná-la, e desconfio até que ela já tenha se apaixonado por outro.

— É uma pena… Mas você é ainda muito jovem, Verian!— Você também é, “vovó”, ou se esqueceu disso?Estavam sentados na relva, no alto de uma colina, com Aurillac se

descortinando à frente deles. — O que você faria se eu a beijasse, Myrna? Ela corou imediatamente. — Realmente não sei. Como já lhe disse, sou inexperiente nessas coisas. — Gostaria de tentar. Posso?Ela preferia que ele agisse sem pedir. Sentia-se ridícula concordando

com aquilo e esperou que os lábios dele descessem sobre os seus. Ele a beijou levemente a princípio, depois mais forte, e em seguida afastou-se, observando-a.

— Nada mau…— Que tolice! — exclamou ela, levantando-se, contrariada, percebendo

que ele fizera somente uma experiência. — Você me beijou para descobrir se tinha esquecido de verdade aquela moça, e é claro que não a esqueceu!

— Como pode saber? Ela estava tirando a grama dos cabelos e alisando a saia de linho verde. — Não sou assim tão inexperiente. E já recebi beijos mais inspirados… da

minha cachorra!De certo modo, ela estava contente por aquilo ter acontecido. Agora,

sabia que nunca poderia se apaixonar por alguém como Verian.

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— Você está querendo me humilhar, Myrna?— Pense o que quiser — disse ela por cima dos ombros e começou a

correr encosta abaixo. Verian correu atrás dela, rindo do seu mau humor. E, quando a agarrou,

ambos começaram a rir alegremente. Depois disso, nunca mais tocaram no assunto, e por algum tempo a vida

correu sem complicações. Um belo dia, amavelmente, lady Vésper dirigiu-se a Myrna, durante o

banho. — Como vai indo com o meu filho, enfermeira?— Muito bem, senhora. Myrna espremeu a esponja e recolocou-a no lugar. — Ótimo! Estou satisfeita por terem simpatizado um com o outro. São

mais ou menos da mesma idade e presumo que tenham os mesmos interesses. — Myrna não respondeu, e lady Vésper continuou, deixando-a de sobreaviso: — Sabe se ele… se ele encontrou alguém na vila?

— Realmente não sei, senhora. Eu nunca vi. Creio que só ele pode responder a essa pergunta.

— Oh, não é tão importante. Tenho certeza de que é uma jovem com os pés no chão e sabe como enfrentar os rapazes que imaginam estar apaixonados, não sabe?

Desta vez Myrna ficou mesmo intrigada. — Não sei, lady Vésper não foram muitos os rapazes que se apaixonaram

por mim. Quando isso acontecer, vou descobrir se tenho ou não os pés no chão.

Voltou ao seu quarto, tremendo de raiva. Em outras palavras, lady Vésper apadrinhava a amizade de uma enfermeira com o filho, desde que a enfermeira não alimentasse esperanças de ultrapassar sua posição social. Se por acaso Verian se apaixonasse, “ela” seria obrigada a renunciar, não importando quais fossem os seus sentimentos.

Isto a deixava louca. Estava sendo tratada como uma coisa, não como uma pessoa! Mas devia haver alguma razão muito forte para que lady Vésper tivesse forçado uma aproximação entre Myrna e Verian. O que ela estaria tramando?

CAPÍTULO IV

Lady Vésper começou a mostrar interesse pelo relacionamento do filho com Myrna. Um dia, enquanto estava se preparando para dormir, começou a fazer perguntas:

— Tem saído sempre com meu filho, enfermeira?— Bastante, senhora. — Você o acha atraente?— Ele é um rapaz muito bonito. E se parece muito com a senhora. — Obrigada, minha querida. Que amável! Louise é morena, como o pai, e

também é bastante bonita. É magra, sabe?Tem as pernas longas e pouco busto. Como os padrões de beleza atuais!

— Suponho que seu falecido marido teria grande orgulho da família, se pudesse vê-la.

Lady Vésper olhou para eía e deu uma gargalhada. — Mas por que imaginou que meu marido está morto, enfermeira? Na

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verdade, ele está bem vivo!Myrna enrubesceu imediatamente. Raramente cometia uma gafe como

aquela. Tinha realmente pensado que sir William Vésper estivesse morto. Mas eles deveriam estar divorciados ou coisa parecida.

— Sinto muito, senhora — disse, confusa. — Eu não sabia. — Agora sente muito porque ele está vivo, hein? — Graças a Deus lady

Vésper estava gracejando. — Estamos separados amigavelmente, sem divórcio nem nada. Uma mulher inválida é um grande estorvo para um homem que adora passar a maior parte do ano caçando ou escalando montanhas. Quando descobri que não podia seguir este ritmo, preferi deixá-lo. O resultado é que agora ele simplesmente me respeita muito. E me vê tão poucas vezes que nem sabe realmente dos meus problemas. Então? O que acha deste arranjo?

— Acho que a senhora fez uma escolha corajosa. Tenho certeza de que eu não conseguiria agir assim.

— Tolice! Usei a cabeça, menina. Quando se tem um coração inútil como o meu, alguma outra parte do corpo precisa trabalhar dobrado. Sou uma máquina calculadora humana e nunca se esqueça disto!

— Não me esquecerei!— Agora, diga-me: o que você e meu filho fazem juntos?— Oh, passeamos, conversamos. Ele está me transformando numa

andarilha…— Muito bem. E fazem amor?— Não, não fazemos. — Myrna ficou aliviada por poder responder com

sinceridade. — oh eu pensei que hoje em dia os jovens fizessem amor com muito

mais liberdade!— Não todos os jovens, senhora. Verian e eu temos uma amizade…

digamos, uma amizade platônica. Esta resposta pareceu deixar lady Vésper pensativa. — Ele costuma se encontrar com mais alguém quando você está

ocupada? Outras moças?— Não que eu saiba. — Ouça, não estou espionando nada, apenas imagino que as moças da

vila sonham em namorar rapazes bonitos e ricos como o meu filho. — Tenho certeza de que ele tem muito bom senso, senhora, e não vai se

deixar levar per impulsos — disse Myrna, procurando acalmar a sua paciente. — Ele não teve o bom senso de se apaixonar por você, teve? Isso poderia

fazer bem a ele. É, mas as coisas não caminham como se planeja. E você eu poderia controlar…

Myrna percebeu que lady Vésper aceitaria um namoro sem maiores compromissos entre ela e Verian, mas nada mais sério. Na verdade, parecia um pouco decepcionada pelo fato de eles não terem ido além de uma simples amizade. Havia uma outra coisa que deixara Myrna intrigada: aquela conversa de ser fácil de controlar. Concluiu que isto queria dizer que, depois de ter servido aos propósitos de lady Vésper e mantido Verian interessado por algum tempo, ela seria descartada sem qualquer consideração. Myrna começava a respeitar aquela mulher por seu maquiavelismo, e ficou aliviada por não ter sido envolvida em nenhuma de suas intrigas.

Na manhã seguinte, Myrna passeava pelo imenso jardim quando Verian foi correndo ao seu encontro.

— Até que enfim achei você! Vamos andar um pouco até a vila?

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— Boa idéia! Preciso mesmo tomar minha lição de francês!Mas Michael não estava no lugar combinado e Myrna ficou surpresa. Ele havia prometido emprestar-lhe alguns livres, e combinara encontrar-se com ela mais cedo do que de costume porque pretendia ir até Aurillac.

— Acho que vou até a pensão onde ele está hospedado — explicou Myrna. — Tome um café enquanto me espera.

— Monsieur Smís est malade — informou a dona da pensão. Três malade. Myrna perguntou se podia vê-lo e foi levada até um quarto, no sótão, que

estava praticamente forrado de desenhos, tintas, pincéis, telas. Foi com dificuldade que ela conseguiu se aproximar da cama. Michael tremia de febre.

— Eu sofro de malária — explicou. — É só isso. Malária. — Ela pôs uma das mãos na testa suada e quente do amigo. — Que gostoso… — disse ele. — Está com a mão fria, fria. Eu a amo, Myrna. Já sabia? Estou terrivelmente apaixonado por você.

— Você está delirando, Michael. Isso é comum no seu estado. Diga-me: já procurou um médico?

— Não tenho dinheiro para pagar médicos. Ficar doente aqui neste país também custa dinheiro. Eu me viro. É sempre assim.

— Desta vez vai ver um médico. Michael, e não quero ouvir reclamações. Não cobrou nada pelas aulas que me deu; estou em débito com você, eu pagarei a conta.

Sem se importar com os protestos dele, Myrna saiu do quarto e procurou um telefone. Em menos de meia hora Raoul de la Rue chegava e escutava a história.

— Os ingleses sempre me surpreendem — disse ele, quando Michael lhe explicou que não poderia pagar um tratamento. — Realmente acredito que vocês gostam de sofrer, sabe?Talvez assim sintam-se mais fortes do que os outros. Ouça, Michael, um médico que se recusasse a atender alguém por causa de dinheiro, deveria abandonar a profissão.

Myrna ajudou de la Rue nos exames e, uma hora depois, quando voltou ao café, não esperava mais encontrar Verian lá. Mas ele estava; e em companhia de uma jovem:Celeste. Os dois estavam tão interessados um no outro que não perceberam sequer a aproximação de Myrna.

— Alô! — exclamou ela pela segunda vez. Verian estremeceu levemente. Olhou-a com certa desconfiança e

levantou-se, meio sem jeito, como um moleque apanhado na hora da traquinagem.

— Acho que já se conhecem, não? — perguntou ele. — Sim, já nos conhecemos — Myrna cumprimentou Celeste com um

aceno de cabeça, e a outra sorriu. Não um sorriso amistoso, mas de triunfo. Verian despediu-se da moça, mas antes cochichou-lhe algo que a fez

corar e sorrir. Depois, levou Myrna para longe dali, como se estivesse ansioso para falar-lhe.

— Por que não me contou que Celeste esteve lá em casa no dia em que cheguei? Por que ela pensou que você fosse a minha… minha noiva?O que foi que fez para que ela imaginasse isto?

— Não sei do que está falando. Eu nem sabia que você conhecia essa moça e tampouco o havia visto no dia em que Celeste saiu com a sua mãe. O que ela pensou não tem nada a ver comigo. Eu não me envergonho de ser chamada e conhecida como a enfermeira da sua mãe, para sair por aí dizendo que sou sua noiva, Verian!

— Ah! Então deve ter sido coisa da minha mãe! —disse ele pensativo. —

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Provavelmente ela utilizou você para manter Celeste afastada. Mamãe é um demônio! Imagine só! Eu poderia ter visto Celeste todos estes dias, no entanto, nenhum de nós sabia que o outro estava tão perto! E tudo por obra de minha querida mãe!

— Quer dizer…que Celeste é a moça por quem você estava apaixonado?— Estava, e acredito que ainda esteja. E ela sente o mesmo. Minha mãe

a levou para um piquenique e lhe deu a entender que eu não viria neste verão. E também lhe disse que você era minha noiva.

— Então foi por isso que a sua mãe mandou que eu tirasse o uniforme naquela noite!Sabe, eu não compreendia uma só palavra do que elas diziam, mas percebi que Celeste me olhava como uma inimiga. Por que sua mãe é contra o namoro de vocês?

Verian sorriu cinicamente. — Já deve ter descoberto que minha mãe é uma terrível aristocrata.

Desconfio que Lulu e eu também sejamos, por causa de nossa educação. Para nós as pessoas simplesmente servem ou não, mas pelo seu nome, sua posição social, não pela beleza ou inteligência. Celeste não serve porque é filha de um veterinário, neta de um granjeiro. E estuda Veterinária para auxiliar o pai. Pessoas que precisam trabalhar para viver são pessoas “erradas”, a não ser que trabalhem para se divertir, como modelos ou coisas assim, compreende? Só não sei o que mamãe acha das enfermeiras. Enfermagem é uma profissão, não é?

— Eu lhe digo para que servem as enfermeiras, no entender de sua mãe: elas servem para um namoro ligeiro, desde que não comecem a aspirar em fazer parte de uma família nobre. Se sua mãe não estivesse no estado em que está, bem que eu gostaria de lhe dizer algumas verdades! Que mesmo as pessoas “erradas” também têm sentimentos e coração! Não estamos mais vivendo no feudalismo. e, quanto mais cedo lady Vésper descobrir isso, melhor.

— Não diga a minha mãe que encontrei Celeste. Agora pode compreender como tudo sempre foi difícil para Lulu e para mim. Nunca nos conformamos com o autoritarismo de mamãe, mas nunca pudemos nos rebelar por causa da saúde dela. Sabe, acredito firmemente que um cara tem o direito de escolher sua própria esposa, e vou resolver sozinho sobre Celeste. Você não contará a ela.

— É lógico que não! Fique sossegado. Bem, agora tenho que ir, pois ela pode estar precisando de mim.

Encontrou lady Vésper confortavelmente instalada lendo a correspondência que acabara de chegar. Parecia tão inocente quanto um bebê, quando releu a carta que tinha nas mãos.

— Não é um amor? William está pretendendo vir para a festa de aniversário de Verian. Vai ser tão bom vê-lo outra vez! Não me importo com o que digam, temos que dar uma linda festa e convidar todo mundo, isto é, todos os que são como nós. Você pode participar também, enfermeira. Não gostaria de dançar, na penumbra do terraço, com Verian?

— Seria ótimo! — respondeu Myrna, e lady Vésper não percebeu o tom levemente sarcástico na voz da sua enfermeira.

CAPÍTULO V

Depois de todos os absurdos e intrigas de lady Vésper, Myrna resolveu relaxar e descansar depois do almoço, lendo as cartas com as novidades da

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sua família e dos seus amigos. Lassie, sua cadela, tinha dado cria a quatro filhotes. A sra. Hope, a mãe de Myrna, estava interessada em criar cachorros e resolvera ficar com uma das fêmeas para cruzar mais tarde. Pedia a Myrna que sugerisse um nome para ela.

Myrna começou a pensar. Lassie chamava-se pomposamente Hopeful Harriet of Thatchdown. Mas logo todos a chamavam somente de Lassie.

Quem sabe Hopeful Hildegard? Não, não. Talvez Hopeful Myrna of Thatchdown… Também não. Parecia o nome de uma solteirona.

Mas, afinal, é exatamente isto o que vou ser no futuro, pensou Myrna. Verian não me achou muito atraente.

Lembrou que agora Verian e Celeste tinham se reencontrado, e certamente se veriam todos os dias. A ela restaria apenas a solidão. Sim, a solidão… Porque até mesmo lady Vésper parecia não precisar mais dela. Ninguém precisava. Nem como profissional, nem como mulher. Myrna começou a ficar angustiada e resolveu ler uma carta de Cathy, para se animar um pouco.

“O que você está arrumando por aí? Todos dizem que os franceses são irresistíveis, maravilhosos. É mesmo verdade? E o trabalho, como vai?”

Myrna parou para pensar nos únicos homens que conhecia em St. Jude: Verian e Michael eram ingleses; não tinha visto nenhum rapaz francês interessante na vila. Provavelmente todos eles, logo que podiam, iam para as grandes cidades.

A figura de um homem sério, de expressivos olhos cinzentos, veio-lhe à mente, mas ela afastou-a com determinação.

Ele não conta, disse para si mesma. Só me vê como uma ajudante, só isso. E provavelmente já teve uma esposa e, quem sabe, dúzias de filhos. Vou perguntar a Verian.

“As coisas aqui continuam na mesma”, continuava Cathy, “com os boatos de sempre. Se metade deles fosse verdadeira, daria para encher uma edição do News of the World. Aquela enfermeira ruiva da maternidade foi suspensa por ter sido surpreendida na cama com um médico. Mas, para ele, nada aconteceu. Lembre-se, querida, nessa sociedade quem sempre paga é a mulher. Nunca olhe para um médico, a menos que ele a peça em casamento, e na frente de testemunhas!Eles são uma espécie perigosa, mas, assim mesmo, terrivelmente atraentes. Não sei por quê…”

Sim, eu acho que ele é atraente, pensou Myrna. Poderia ser irresistível se não fosse tão convencido!

“E a vida continua”, concluiu Cathy. “Barzinhos, briguinhas, casos,Acho que, quando terminarmos o estágio, seremos automaticamente transferidas. Sinto muita falta de você e, ai, como a invejo! Que tal trocarmos de lugar?”

Myrna sorriu enquanto guardava as cartas. Era ela quem invejava Cathy. Ninguém ficava contente com a própria sorte.

A tarde se arrastou. Verian não apareceu nem para saber como ela estava. Myrna já se acostumara tanto com as atenções do rapaz que sentiu falta dele. Conversou num francês imperfeito com um dos jardineiros até que resolveu acomodar-se numa espreguiçadeira e abrir um livro. O sol estava forte mas um toldo de lona a protegia. Myrna fechou os olhos e adormeceu.

Uma hora depois, foi acordada por mãos que a sacudiam suave e firmemente.

— Verian! — exclamou ela, contente. Mas, ao abrir os olhos, aparou com de la Rue, que estava sorrindo, contrafeito.

— Garota levada! Vai ficar com as pernas queimadas!

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— Não, não! — respondeu, apesar de sentir que já estavam ardendo um pouco. — Eu não me queimo com facilidade, doutor.

— Por que me chama de doutor? Eu não sou seu chefe, sou?— É assim que fazemos na Inglaterra. — Pois então eu devia saber disso! Minha mãe é inglesa, e eu nasci na

Inglaterra. — De onde é, doutor?— Não mude de assunto. Aqui não é a Inglaterra e o sol é quente demais

para uma rosa inglesa. Lembre-se disso, no futuro. — Myrna nunca tinha pensado em si mesma como uma rosa, sentiu-se sutil-mente envaidecida. — Todas as moças inglesas têm a pele delicada, louras ou morenas — disse ele, destruindo a impressão que o elogio causara nela. — Sabe, achei que gostaria de ter notícias de seu jovem amigo…

— Verian?— Não. O jovem artista inglês. — Oh, Michael! Como vai ele?— Muito melhor. Reagiu maravilhosamente ao tratamento. — Oh, eu pagarei todas as despesas, doutor! Eu…— O que a faz pensar que eu aceitaria seu dinheiro? — afirmou ele

categoricamente. — O que esse jovem representa para você?— Ele tem me ajudado a aprender francês, só isso. — Pois quando estava delirando por causa da febre ele disse… bem,

desconfio que ele sente mais do que amizade por você. — Gente com febre alta fala coisas sem qualquer sentido, doutor Eu

nunca encorajei Michael pára nada. — Prefere Verian?— Não levo Verian a sério. Nós somos amigos, e só. — Está aborrecida comigo? Sou muito curioso, não, minha pequena? Mas

me sinto aliviado ao constatar que não considera Verian Vésper muito especial. Ele é jovem demais, e nada apropriado para uma moça inteligente como você.

Mais uma vez, Myrna sentiu-se lisonjeada, e não pôde resistir à pergunta:— E algum dia a inteligência teve alguma coisa a ver com amor, doutor?— Não — respondeu ele, sorrindo abertamente. — Mas existe sempre

alguma esperança. Vamos subir para visitar nossa paciente?— Você está incrivelmente saudável! — declarou o dr. de la Rue ao

terminar o exame em lady Vésper. — Muito melhor! Acredito que a enfermeira Hope tenha os méritos disso, não é Caroline?

— Talvez… Bem, pelo menos não me atormenta tanto quanto as megeras que já trabalharam aqui. Algumas vezes até penso que ela não está por perto, porque não é intrometida. E é também uma companhia muito agradável para Verian! O homem olhou para myrna, preocupado.

— Eu, se fosse mais jovem, acredito que acharia a enfermeira Hope uma companhia agradável e sensata.

Mais uma vez Myrna enrubesceu. Fingiu estar ocupada, sem prestar atenção ao que falavam sobre ela.

— Ora, ora, Raoul, você não é tão velho assim! Desde que aconteceu aquele caso horrível com Yvonne, você se comporta como se fosse seu avô! Ainda é moço, e já é tempo de reconhecer isso. Eu odeio ver toda essa sua vitalidade e mocidade voltadas para a recordação dos mortos.

O dr. de la Rue guardou seu estetoscópio. Não disse mais nada enquanto colocava suas coisas na maleta.

— Certamente não o ofendi, não é? — perguntou lady Vésper, um pouco

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ansiosa. — Não,não, é lógico que não. Como você poderia ofender alguém, minha

querida amiga?Myrna desconfiou que a resposta tinha duplo sentido. Lady Vésper estava

tão acostumada a dizer o que pensava, que muitas vezes ofendia sem perceber ou realmente querer. Naquele momento devia ter tocado em alguma ferida do passado de Raoul de la Rue. Ele parecia ter tido uma esposa, ou uma namorada, chamada Yvonne. e essa Yvonne estava morta. Myrna notou que ele se recompunha com esforço.

— Pode dispensar sua enfermeira por uma ou duas horas, Caroline? Existe uma pessoa que deseja vê-la.

— Sim, naturalmente — respondeu lady Vésper não muito satisfeita. — Mas não demore, enfermeira. Lembre-se da minha massagem.

Myrna foi mudar de roupa. Escolheu um vestido amarelo, um de seus favoritos. Queria ficar bonita. Não sabia por que, mas queria.

Convenceu-se de que desejava apenas levantar o ânimo do dr. de la Rue, mas ele mal olhou para ela, quando o encontrou já dentro da carro.

— Aonde vamos? — perguntou Myrna. —Quem quer me ver Eu quase não conheço ninguém aqui.

— Talvez você cause um grande impacto sobre as poucas pessoas que a conhecem, Myrna. Incomoda-se se eu a chamar de Myrnal

— De modo algum, doutor. Ela evitou chamá-lo de Raoul ou de de la Rue. Um médico é um médico,

afinal de contas, e pedia tomar certas liberdades com oi subordinados. Mas o contrário não era a mesma coisa.

— Quero lhe fazer uma surpresa. Vai ver logo. O carro parou numa pequena rua da vila, em frente à casa onda Myrna

tinha ajudado de la Rue a fazer o parto: o garoto com carinha de menina, ela se lembrou sorrindo.

Raoul de la Rue segurou-a pelo braço e levou-a até um pátio nos fundos da casa. Havia bastante gente ali, todos bebendo vinho e conversando alegremente. Num canto, na sombra, estava um bercinho de madeira, muito antigo e, dentro dele, um bebê dormia serenamente.

— Oh, mas que gracinha! — exclamou ela, encantada. Em volta do berço havia pacotes de vários tamanhos e formatos!

Subitamente, a moça compreendeu o que estava acontecendo e voltou-se para ele, embaraçada.

— E o batizado! Mas não tenho nada para dar ao bebê… Ele a olhou com ternura.

— Você tem uma coisa, sim, Myrna Hope. Seu sobrenome. Os pais ficaram tão gratos com a sua ajuda que agregaram seu “nome ao nome do garoto. Veja: le petit Hilaire Hope Canet!

Myrna ria e chorava ao mesmo tempo. Secou com os dedos algumas lágrimas que teimavam em cair de seus olhos.

— Por favor, me perdoe. Estou tão orgulhosa! Nunca me aconteceu uma coisa tão bonita!

O dr. de la Rue apertou uma das mãos da jovem para dar-lhe apoio, e os pais se afastaram de um grupo de amigos para recebê-lo

— Que não seja a última coisa bonita em sua vida! — murmuro de la Rue enquanto lhe entregava um lenço.

Nos dias que se seguiram, Myrna descobriu várias coisas sobre Raoul de la Rue, pois passou a acompanhá-lo até o carro depois das visitas diárias a lady

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Vésper. Enquanto desciam a escada e caminhavam pelo enorme saguão; conversavam cada vez menos sobre a paciente e cada vez mais sobre eles.

E tinham tanto a dizer que andavam vagarosamente pelo terraço, descendo depois a escadaria de mármore quase numa conversa tête-à-tête.

Myrna não o achava mais arrogante e inatingível. Agora apreciava aqueles poucos instantes de camaradagem, pois Verian continuava ocupado com Celeste e ela raramente o via, a não ser nas horas das refeições.

Então, um dia, ela acabou revelando ao médico que tinha medo que sua doença pudesse prejudicar-lhe a carreira; e ele contou-lhe que tinha tomado conta da clientela do pai quando este morrera, há dois anos, e isto atrapalhara seus planos de se especializar em pediatria. Myrna perguntou-lhe por que não pedira ajuda a outro médico, para poder continuar estudando, e ele explicou que tinha que pensar não só numa clínica muito grande, mas também em sua mãe viúva e nas propriedades rurais que deviam ser administradas.

— Como filho único,esperavam que eu fosse o apoio da minha mãe, o herdeiro da clientela e o administrador das terras da família. Este era o meio mais econômico e mais prático. Você precisa conhecer minha mãe, Myrna. Ela é fantástica. E não pense que eu… que eu me sinto preso. Sou feliz. E ainda sonho e planejo. Algum dia construirei um hospital infantil por aqui, o clima é excelente.

— Acho que é um sonho maravilhoso doutor, e espero que um dia se torne realidade.

— Vai se tornar. Quando se deseja muito uma coisa, trabalha-se por ela. — Olhou-a intensamente ao dizer estas palavras, e seus olhos cinzentos brilharam de entusiasmo. Encorajou-a quanto ao problema da saúde e da profissão. — Tenho certeza de que não a deixarão de lado. Sua saúde não é um empecilho para o trabalho. Se eles pensassem assim, certamente teriam me dito alguma coisa, e Posso garantir-lhe que nada me foi comunicado. Desde que não Pegue nenhuma gripe forte, em algumas semanas estará cem por cento em forma! Aliás, você me parece muito saudável. E muito linda, também. Uma verdadeira parisiense!

Myrna enrubesceu e sorriu com aquele elogio inesperado. — Muito obrigada, doutor. Mas concluo, daí, que o senhor não considera

as inglesas assim tão bonitas. — Bem, considero, sim, mas um pouco… um pouco…Perdoe-me mas às

vezes não consigo expressar certas palavras em inglês. Ficou ofendida? — E despediu-se sem maiores explicações.

Myrna gostava cada vez mais daquelas conversas. Só lamentava não ter tempo para conhecer melhor Raoul de la Rue. Afinal sua estadia no castelo já estava quase no fim. Simplesmente não haveria tempo para um conhecimento mais profundo, mesmo que ele estivesse interessado nisso.

Uma noite, quando estava preparando lady Vésper para dormir, Verian irrompeu no quarto.

— Boa noite, mamãe! Myrna…— Boa noite — respondeu Myrna automaticamente. Lady Vésper olhou de

um para outro. — Vocês dois brigaram?— Não. Por quê? — Verian ficou confuso, e Myrna apressou-se em

responder:— Por que está pensando uma coisas destas, senhora?— Tenho a impressão de que estão frios um com o outro…— Tolice, mamãe!

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Não é frieza, pensou Myrna. É somente desinteresse. — Ele tem lhe dado atenção, enfermeira? Tem levado você a passeios,

tem lhe mostrado a região, como sugeri?— Verian tem sido muito amável comigo, lady Vésper. Já me levou para

conhecer muitos lugares. Agora, a senhora deve tomar seus remédios e descansar. Verian, poderia deixar sua mãe?

— Claro! — Ele a seguiu para fora do quarto. — Você foi ótimo por não me trair. Obrigado. Muito obrigado.

— Trair você? Eu simplesmente falei a verdade!— No passado. Você disse que “Verian tem sido amável”, mas não disse

que continuo sendo. Sinto muito ter negligenciado você ultimamente. — Não faz mal, Verian. — Espero que compreenda. Talvez eu deva me explicar… — Não!Pelo amor de Deus, não faça isso. O que eu não sei, não posso

contar, não é?— Mas você sabe que tenho visto Celeste ultimamente, você nos viu

juntos! Eu vou estourar se não confiar em alguém!Aonde você está indo assim tão depressa, Myrna?

— Até a cozinha. Vou desinfetar as agulhas de injeção. Venha comigo, se quiser conversar.

Ele então lhe contou que Celeste, às vezes, mostrava-se apaixonada, mas havia momentos em que parecia fria e distante.

— No começo, ela disse que tudo estava como antes. Depois começou a falar de gente que conheceu na droga da escola de veterinária e me fez sentir desprezado. Disse também que amadureceu muito este último ano, mas que eu não. Que acha disso? Eu amo Celeste, Myrna, e estou desesperado!

— Eu não acho que possa dar conselhos a você, Verian. Por que não conversa com o dr. de la Rue?

— Porque já sei o que ele vai responder… Que não tenho a menor chance de me tornar um bom amante. Mas o que “você” acha? Isto me interessa muito mais!

— Acho que você é jovem demais, Verian, para estar tão certo sobre o amor. Celeste possivelmente pensa o mesmo. Não se pode deixar de reconhecer que as mulheres amadurecem mais depressa. Você e eu somos praticamente da mesma idade, mas sinto-me como se fosse sua tia mais velha quando me faz estas perguntas. Francamente, não acredito que este amor agüente o teste do tempo. Tente não apressar nada.

— Minha mãe falou com você?— Lógico que não!— Desculpe-me. Eu vivo pensando que ela tem espiões por todos os

lados, talvez até influenciando Celeste contra mim. Escute, gostaria de dar um passeio comigo, amanhã de manhã? Quero me redimir por tê-la abandonado todos estes dias. E também gosto de sua companhia, sabe? Sempre me lembro dos passeios que fizemos juntos.

Ela sorriu, e cedeu. — Aonde você quer ir?— A algum lugar sossegado. Ao lago des Chevaux, por exemplo. Você vai

adorar! Poderemos nadar, lá!— Parece maravilhoso, Verian!— Ótimo! Agora venha comigo para um passeio até a vila. Vai fazer bem

a nós dois. Myrna sentiu-se contente ao verificar que Verian estava novamente

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interessado nela. Saíram de mãos dadas, sorrindo um para o outro. — Por que parou aqui? — perguntou ela, surpresa, ao ver que haviam

parado em frente à casa de Michael. — Pensei que pudéssemos visitar seu amigo, saber como ele esta

passando…— Ele não é meu amigo, você bem sabe — disse ela prontamente! mas

depois se corrigiu: — Pelo menos, não da maneira como as pessoas classificam a amizade entre um homem e uma mulher. Mas se quiser, podemos entrar.

Michael estava descansando numa velha cadeira de junco, no pátio dos fundos da casa, e adorou receber a visita.

Conversaram sobre várias coisas, finalmente Verian falou:— Este cara está precisando de um bom exercício! Será que não seria

saudável se ele fosse conosco até o lago amanhã, Myrna?— Acho que sim… Gostaria de vir conosco, Michael?— Claro que sim, obrigado. Mas vocês têm certeza de que eu não vou

atrapalhar?— De jeito nenhum, meu velho. — respondeu Verian. — Vamos formar

um belo quarteto. Vai ser muito gostoso!Myrna controlou-se ao ouvir a palavra “quarteto”. Esperou que

estivessem longe da pensão para criticar Verian. — Mas que jogo sujo, hein? — disse, zangada. — Você não tem obrigação

de me levar para passear e muito menos de me arranjar um par! Posso muito bem me distrair sozinha e escolher os meus amigos. Não quero Michael Smith grudado em mim. Eu já tinha decidido manter nosso relacionamento numa base estritamente profissional.

— Eu pensei que ele fosse um cara legal, só isso. — Legal para uma moça simples como eu, não é? A enfermeirazinha de

sua mãe!— Está realmente zangada, hein? Sinto muito. Eu realmente pretendia

levar somente você, mas quando vi Michael tão abatido, pensei que o passeio lhe faria bem. E que poderia convidar também Celeste; e que ela gostaria mais, se fôssemos os quatro.

— Estou começando a acreditar que você só pensa em si mesmo, Verian. Eu irei para não desapontar Michael, mas, depois disto, por favor, me deixe fora das suas maquinações. Agora, vá depressa contar a Celeste que conseguiu reunir um grupo para a excursão de amanhã. Eu volto sozinha para casa.

— Bem que eu digo, Myrna, você é maravilhosa. Obrigado. Ela o encarou, completamente surpresa. Verian não compreendera o

sentido daquelas palavras e realmente acreditava que as outras pessoas eram somente bonecos que deveriam ser movimentados segundo os desejos dele.

Agora, Myrna não esperava mais o passeio do dia seguinte com ansiedade. E sentiu-se ainda mais desanimada quando viu que o dr. de la Rue estava saindo do castelo.

Acenou para que ele parasse o carro, aborrecida por ter chegado atrasada.

— Alguma instrução para mim, doutor?— Sim, enfermeira. Use um chapéu no sol — disse ele entre brincalhão e

terno, e, com um sorriso, pôs o carro em movimento. — Adeus. Não ouse envolver-se, aconselhou a si mesma, pois pode conseguir

somente dor. Cuidado, Myrna! Ele nem sabe que você existe, e você está começando a se apaixonar por ele…

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CAPÍTULO VI

Myrna mergulhou nas águas frias do Lago des Chevaux, próximo às montanhas que cercavam um castelo em ruínas a umas doze milhas de St. Jude, com a certeza de que ninguém estava realmente se divertindo naquele passeio.

Durante a viagem de carro, quando Celeste sentou-se no banco da frente, tanto Verian quanto ela perceberam claramente que Michael a olhava com interesse o tempo todo. Depois de algum tempo, Celeste virou-se para trás e iniciou uma conversa com Michael, a quem havia conhecido no verão anterior, durante uma batalha de flores em Aurillac.

Galantemente, ele contou-lhe que a tinha desenhado enquanto desfilava, e que achara muito difícil reproduzir o raro tom avermelhado de seus maravilhosos cabelos. Obviamente isto agradou Celeste, que sorriu, coquete, para o rapaz, fazendo com que Verian quase causasse um acidente, pois não conseguia se concentrar no que estava fazendo. !

Durante o lanche, à beira do lago, Celeste novamente monopolizou: Michael, enquanto Verian, obviamente aborrecido, não tinha nem disposição de conversar com quem quer que fosse.

Myrna observava o rumo que as coisas tomavam e se divertia umj pouco, ao ver que o plano dele tinha falhado. Verian bem que merecia! Era um jovem acostumado a conseguir tudo que desejava sem muita dificuldade, e não lhe faria mal nenhum aprender que as coisas não eram bem assim.

Myrna não sentia nenhuma simpatia especial por Celeste e ela, por sua vez, parecia preferir sempre a companhia masculina.

Nesse momento, depois de descansarem um pouco ao sol, todos estavam nadando, tentando demonstrar uma descontração que estavam longe de sentir.

— Venha comigo, Michael — convidou Myrna. — Vamos apostar uma corrida até a ilha!

Os dois nadaram até lá e chegaram exaustos, ofegantes. Myrna era boa nadadora, e estava surpresa por sentir-se cansada depois de uma distância tão curta.

— Eu…eu estou fora de forma! — conseguiu dizer. — E… puxa! Como a água está fria!

— Ela vem diretamente de lá — explicou Michael, apontando o majestoso maciço das montanhas. — Mas é revigorante! — Depois indicou com a cabeça Verian e Celeste, que estavam se divertindo na parte mais rasa. — O que é que há entre aqueles dois?

— As dores do amor… Agora que eles se conhecem melhor, tudo não é tão maravilhoso quanto pensavam.

— Eu… bem, eu pensei que você tivesse uma queda por ele — falou Michael, um pouco acanhado.

— Eu? Não. Por que pensou uma coisa destas?— Tive a impressão de que você estava procurando não me encorajar. — Não foi isso. — Então… — falou ele impulsivamente, enquanto segurava as mãos dela

com força. — Desde que a vi, Myrna, não pensei em outra mulher a não ser você. Sinceramente. Eu não ganho muito, mas acredito que as coisas irão melhorar e…

— Por favor, Michael. — Ela soltou-se, um pouco embaraçada. — Eu acho

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que nunca insinuei que o considerava algo mais do que um professor que tornou-se meu amigo. Verian não significa nada para mim, mas existe uma outra pessoa…

— Ah! Então você já é noiva?— Não, nada disso. Para ser sincera, ele mal sabe que eu existo. Mas…

que posso fazer? Estou apaixonada. De verdade. — Bem, espero que você tenha sorte. Mais sorte do que eu —

acrescentou ele, ressentido. — Michael, você mal me conhece. E este clima, este lugar que faz com

que todos pensem que estão apaixonados por alguém. Provai velmente acordaremos quando voltarmos para casa, e aí vamos perceber como fomos tolos!

— Esse outro cara que você mencionou… Eu o conheço?— Isto eu não vou dizer, Michael. E também acho que não deveria me

perguntar. Myrna calou-se, sonhadora. Boiando ali, sob a abóbada azul do céu de

verão, ela via claramente a imagem daquele que preenchia todas as suas aspirações de um verdadeiro amor. Mas, com o coração dolorido, reconhecia que, com toda a certeza, ele nem se preocupava com ela.

— Vamos voltar para junto dos outros — sugeriu, subitamente constrangida por estar sozinha com Michael.

De certo modo, estava contente com o fato de a situação entre eles estar finalmente esclarecida.

À beira do lago, Verian e Celeste discutiam se deviam explorar os lindos jardins do castelo ou visitar um vilarejo próximo. Acabaram não fazendo nenhuma das duas coisas, pois nuvens pesadas desceram das montanhas, ameaçando tempestade.

— Acho que deveríamos voltar — sugeriu Myrna. — A estrada não está muito boa, e uma chuva forte dificultaria o retorno.

— Pois agora estou começando a me divertir! — respondeu Celeste, irônica. — Parece que tem medo de tempestades, enfermeira Hope.

— Não é isso, é que prometi estar de volta às quatro e meia. Como sabem, estou aqui trabalhando.

— Então vamos — disse Verian, enquanto os primeiros relâmpagos clareavam o céu.

A chuva caiu dez minutos depois, violenta, e Celeste deu gritinhos ao ficarem completamente ensopados.

— Pare, Verian! Levante a capota do carro! Ele ignorou o pedido. — Verian! — disse Myrna, inclinando-se para ele. — Qual a necessidade

de ficarmos ensopados?Sem uma palavra, ele parou o carro e, auxiliado por Michael, levantou a

capota. — Eu odeio você! — exclamou Celeste, pulando no meio da chuva. —

Você fez isto de propósito!— Cale a boca! Nós todos estamos molhados, não só você! Ao voltarem para o carro, Myrna ofereceu a Celeste uma toalha seca, que

tinha ficado protegida por um saco de plástico. A francesinha agradeceu, comovida, e enxugou o rosto e os cabelos.

— E você, Myrna? Não vai se enxugar?— Não, não vou. Afinal, estamos quase chegando em casa. Elas estavam

sentadas lado a lado, e os homens iam na frente. — Foi muita gentileza sua, Myrna. Obrigada. — Ora, não precisa

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agradecer. Mas Myrna estava tremendo quando, finalmente, ela e Verian chegaram

ao Château des Bois. Entraram e, ao subirem a escada, encontraram-se com o dr. de la Rue.

— Que história é esta? Que aconteceu? — perguntou, olhando para os dois. — Vocês costumam tomar banho de roupa?

— Muito engraçado! — foi a resposta de Verian, que continuou, mal-humorado, seu caminho.

— Nós viemos debaixo de chuva — explicou Myrna, os dentes batendo. — Este foi o resultado!

— Muito próprio para uma pessoa que acabou de sair de uma pneumonia! — disse ele, zangado. — Vá tomar um banho quente imediatamente! E depois, para a cama! Vou subir para examinar você mais tarde.

Ela sentiu-se como uma menininha que acabara de levar um pito. Dirigisse para o banheiro, despiu-se e mergulhou numa banheira com água quente durante um bom tempo. Quando vestiu o uniforme sentiu-se muito melhor, e resolveu então prosseguir com suas obrigações, como se nada tivesse acontecido. Foi visitar lady Vésper, que tinha passado um dia muito agradável e queria conversar sobre ele. O dr. Raoul de la Rue a levara para um passeio pelo jardim italiano. Há anos ela não la até lá, embora não fosse longe do castelo. Tinham caminhado vagarosamente, descansado freqüentemente e, mesmo agora, ela não sentia cansaço algum.

— Estou me sentindo ótima! Para mim, foi uma vitória! Deve ser por causa de todas aquelas massagens, não?

— Elas ajudam muito! — concordou Myrna, contagiada pelo bom humor da paciente. — Estou tão contente porque a senhora pôde ver o jardim italiano! Verian me levou até lá um dia destes, e sei que fica lindo nesta época do ano. Mas, já que se esforçou tanto, devo insistir para que descanse agora, para poder repetir estes passeios. Vou ajudá-la a se preparar para dormir.

— Minha querida ditadorazinha! Desta vez eu vou obedecer porque me sinto realmente muito bem. Fez um bom passeio?

— Foi muito agradável. Mas fomos surpreendidos pela tempestade e ficamos todos encharcados.

— Todos? — Lady Vésper ficou desconfiada de repente. — Quem mais foi, além de você e de meu filho?

Myrna não hesitou:— Um jovem inglês que costuma passar o verão na vila e a namorada

dele. Michael teve um ataque de malária e Verian achou que um passeio poderia lhe fazer bem.

— Compreendo…Myrna esperava ser perdoada por não ter mencionado o nome de

Celeste. Seria uma pena comentar a presença da moça e perturbar o excelente estado de humor de lady Vésper.

Ficou satisfeita pelo assunto ter morrido ali mesmo e foi tomar a sua refeição. Verian não estava na sala de jantar e madame Durand informou-a de que ele pedira para que levassem o seu jantar no quarto.

— Talvez tenha se resfriado — comentou Myrna. — Devo ir vê-lo mais tarde.

Justamente quando a tempestade parecia estar se acalmando Raoul de la Rue apareceu, furioso. Atravessou a sala de jantar a passos largos, o rosto fechado.

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— Enfermeira Hope, parece que mandei que tomasse um banho e fosse para a cama!

— Bem, eu me senti melhor e resolvi fazer o meu trabalho. — Enfermeira Hope — retrucou ele, mais zangado ainda — não estou

acostumado a ver minhas recomendações desobedecidas. Pensei que se preocupasse um pouco com a sua saúde, e estava disposto a ajudá-la. Aliás, estou disposto. Vá para a cama imediatamente que vou fazer um exame completo. Dou-lhe exatamente cinco minutos para obedecer-me.

Myrna tratou de seguir a ordem, mas parou na porta para dizer:— Acho que é Verian quem o senhor deve ir ver. Ele nem desceu para

jantar. Está se sentindo mal. Mas ele a olhou tão zangado que Myrna fugiu dali. Como eu pude imaginar estar apaixonada por uma pessoa tão odiosa?

perguntou ela a si mesma, enquanto se despia. Ele às vezes me faz sentir tão idiota… como nunca me senti antes!

No dia seguinte, Myrna amanheceu com uma gripe forte e o dr. de la Rue a fez ficar na cama por quarenta e oito horas. Ele mesmo aparecia para dar as injeções em lady Vésper, e tratava da nova paciente com eficiência e frieza.

— Eu me sinto uma boba, ficando de cama por causa de um simples resfriado!

— É melhor sentir-se uma boba agora do que deixar que seus pulmões sejam atacados novamente, mocinha. Obedeça ao que eu mando, e todos ficaremos mais felizes.

Verian foi visitá-la mais tarde e levou-lhe um ramalhete de lindas rosas vermelhas, muito perfumadas.

— O dr. de la Rue ficou uma fera comigo, porque permiti que você se molhasse. Não sabia que tinha uma saúde tão delicada.

— E não tenho. É que acabei de me livrar de uma pneumonia. Eu me sinto mal porque deveria estar cuidando de sua mãe ao invés de ficar aqui, na cama, sendo servida o tempo todo. Tenho vontade de me levantar, mas o doutor vai armar um barulho terrível se descobrir.

— Nem precisa me dizer! Ele me fez sentir como se tivesse seis anos de idade, agora há pouco. Disse que eu nem deveria ter direito a uma carta de motorista já que não sei tomar conta dos outros nem de mim mesmo. Que eu preciso crescer, e não somente ficar mais velho. Quem ele pensa que é?

Myrna sorriu, mas não disse nada. — Obrigada pelas flores. São maravilhosas. As coisas estão indo melhor

entre você e Celeste?— Mais ou menos. Ela virá à minha festa de aniversário na semana que

vem. — É mesmo? A festa dos seus vinte e um anos! Já estão cuidando dos

preparativos?— Sim, eu espero que Lulu já tenha começado, mulher gosta desse tipo

de coisa. Minha mãe vai dar seus palpites, naturalmente, mas é meu pai quem vai pagar as contas. Eu preferia fugir para Lyon com Celeste do que enfrentar uma multidão de convidados; mas a maioridade do filho e herdeiro é um acontecimento importante para a família toda, parece.

— Gostei desta história de “herdeiro”. Você vai receber algum dinheiro?— Meu avô me deixou uma herança. Ninguém pode evitar que eu ponha

as mãos nela, agora. Da semana que vem em diante, Myrna, vou ser uma pessoa que vale a pena se conhecer! Está interessada?

— Não acredito que o dinheiro me fizesse gostar mais de alguém, mas,

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se isto é uma proposta de casamento, prometo pensar no assunto e considerar sua renda futura…

Os dois riram. — Eu realmente gosto de você, Myrna — disse Verian gentilmente,

sentando-se ao lado da cama e tomando as mãos dela nas suas. — Você é como aquele botão de rosa — comentou, apontando para uma flor entreaberta. — Por que a moça que eu amo não é assim como você?

— Vai ver ela é assim… Só falta você descobrir isto!— Não, não é. Não é nem mesmo carinhosa. Se eu não estivesse

apaixonado por Celeste, provavelmente antipatizaria muito com ela. Mas que posso fazer? Sou como uma mosca, presa na teia de uma aranha.

— Sabe o que. dizem sobre o verdadeiro amor? Que aceita tudo, perdoa tudo… Azar o seu! — Ela riu, tentando animá-lo.

— Ora, obrigado pela falta de apoio! — brincou ele e, impulsiva mente, beijou-lhe os lábios.

— Ahá! — uma voz forte fez da porta. — Acredito que esta é uma maneira muito segura de propagar o vírus da gripe!

Verian levantou-se, irritado. — E também uma maneira adorável! — respondeu ele a Raoul de la Rue.

— Talvez o doutor já tenha se esquecido de como é bom! Myrna ajeitou-se na cama, um pouco desapontada, assim que Verian saiu

e fechou a porta. Os olhos do médico brilhavam como aço ao fitá-la. Tomou-lhe a temperatura e examinou-lhe o peito em silêncio.

— Muito bem! — disse, afinal. — Acho que conseguimos podar o mal pela raiz. Poderá levantar-se amanhã, mas tome cuidado, Visite sua paciente, tome banhos de sol rápidos e nada de esforços

— Obrigada, doutor. Agradeço sua preocupação, mas tenho certeza de que estou bem.

— Prefiro eu mesmo ter esta certeza, enfermeira. Sei que se preocupa muito com a sua carreira, e ambos sabemos o risco que corre.

Ele virou-se para sair, guardando o estetoscópio no bolso. — Obrigada — disse ela timidamente. — O senhor tem sido muito

atencioso. Naturalmente eu mesma quero pagar minha conta. Ele deu meia-volta para encará-la. — Verian quase a fez morrer, e quem vai pagar esta conta é a família

dele. Sua independência, tipicamente inglesa, é apreciável, mas deverá ser a última pessoa a sofrer problemas financeiros. Mais alguma coisa? — Ela sacudiu a cabeça, sentindo-se medíocre. Sempre que abria a boca, ele ficava ofendido. — Ele impressiona você?

— Quem?— Verian. — Ah, ele! — Ela sentiu que enrubescia. — Não temos nada um com o

outro, apesar do que presenciou. Eu estava simplesmente dando-lhe conselhos sobre a sua vida sentimental. E não faço parte dela.

— As aparências, então, enganam?— Naturalmente. Verian teria preferido beijar uma outra pessoa . — E você? — Ela olhou-o nos olhos, surpreendida, e os lábios firmes do

médico se entreabriram num sorriso de desculpas. — Como se isto fosse da minha conta… Bem, desculpe-me: Até amanhã, então. E siga o meu conselho, Myrna: nada de excessos. — Sorriu outra vez e o coração dela deu um salto no peito.

O que ela teria feito se Raoul de la Rue a beijasse? Teria morrido de

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alegria e felicidade? Teria declarado ardentemente seu amor? Oh, esses pensamentos idiotas! Ele nunca a beijaria.

O dia primeiro de setembro amanheceu quente e opressivo. O sol encoberto e o mormaço insuportável anunciavam fatos desagradáveis.

E eles aconteceram!Lady Vésper tinha acabado de se deitar pàrj descansar. Queixava-se de

cansaço quando a casa subitamente entrou em polvorosa. Myrna estava atravessando o saguão, com a intenção de preparar um refresco para a sua paciente, quando quatro moças, seguidas por dois rapazes.

Entraram dando gargalhadas que ecoaram fortemente por todos os lados.

— Poxa! — exclamou um dos rapazes, admirado. — Este lugar é de primeira.

— De primeira mesmo! — enfatizou o outro, encarando Myrna. As moças agora a olhavam com um misto de curiosidade e hostilidade.

— Alô! — disse uma delas, adiantando-se. Era a mais alta das quatro, tinha um rosto muito atraente e olhos cor de violeta. Os cabelos eram longos e belos, mas estavam despenteados. Parecia ser uma criatura autoritária. — Eu moro aqui. E não conheço você.

— Você é Louise Vésper? Meu nome é Myrna Hope, sou enfermeira de sua mãe.

— Ah, ela fala! — exclamou uma das moças, irônica. — E fala bonitinho! Ela é a srta. Louise para você, garota. Senhorita, entendeu?É assim que os empregados devem tratar os patrões, sabia?

Myrna olhou rapidamente para ela e dirigiu-se novamente a Louise. — Lady Vésper está descansando, no momento. Talvez possa pedir a

seus amigos que façam silêncio por uma hora, está bem?Virou-se e seguiu seu caminho em direção à cozinha enquanto ouvia um

deles, berrando:— É o máximo, Lulu! Como permite que dêem ordens a você em sua

própria casa? A ousadia das classes trabalhadoras!— Pois eu acho que ela é uma belezinha! — falou uma voz masculina

com sotaque americano. — Você gosta de qualquer mulher, Rod. Myrna voltou trazendo um copo de limonada gelada. — Permite que eu a ajude? — ofereceu-se Jason, o rapaz americano. — Não, obrigada, eu me arranjo. — Ela não gosta de nós — declarou uma das moças. — Está na cara!— Garotas não gostam de garotas — falou Louise. — Eu, por exemplo,

detesto vocês todas!— Oh! Mas que gentil!Myrna entrou com cuidado no quarto de Lady Vésper e colocou a bandeja

perto da cama. A mulher estava deitada, entre almofadas, com algodões empapados de água de colônia sobre as pálpebras. Sem se mover, perguntou:

— Foi a voz de minha filha que ouvi?— Sim, senhora. Eles estão num grupo de seis. — Meu Deus! Se ela não avisou madame Durand, eles não poderão se

hospedar aqui! Os amigos de Louise costumam ser, para dizer o mínimo, intratáveis.

Myrna bem que concordava, mas não disse nada. Tinha resolvido que não teria o menor contato com a irmã de Verian e seus amigos.

Mais tarde, procurou um lugar sossegado no jardim e começou a ler um

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livro. De vez em quando, escutava uma risada estridente ou um comentário jocoso, mas não se abalava. O que queria era ser deixada em paz.

Ficou ali até a hora da visita do dr. de la Rue. Subiu, vestiu o uniforme e foi atender lady Vésper.

— Teve um sono tranqüilo, senhora?— Sim, obrigada. Sinto-me bem melhor. Quer, por favor, chamar Marie?

Quero me vestir. Quando lady Vésper estava elegantemente vestida, Louise chegou e a

beijou afetuosamente. — Querida, mas você está linda! Está se sentindo melhor?— Muito melhor, Louise. Tenho uma enfermeira encantadora!— Nós já nos conhecemos — disse Louise secamente. — Ela disse para

calarmos a boca. Não foi, enfermeira?Myrna mordeu os lábios e estava a ponto de escapulir do quarto quando

o médico chegou. — Raoul, querido! — Louise cumprimentou-o efusivamente e abraçou-se

a ele. Myrna sentiu um aperto no coração e desviou o olhar. A voz de Louise

era doce como mel. — Raoul, eu já tenho quase dezenove anos. Agora já sou uma mulher.

Você deve conhecer muito bem fisiologia e…— Você é uma gatinha, Louise. Ou ronrona, ou arranha. Amanhã. — Amanhã eu ainda vou adorar você, Raoul. Eu te amo, amo, amo!— Louise! — ralhou a mãe. — Ora, querida, não tenha ciúmes. Você já tem o papai. — Com licença, por favor — disse Myrna com voz clara. Aparentemente,

ninguém a escutou, e então ela saiu dali depressa e entrou no seu quarto. Tinha uma vontade louca de chorar, embora não soubesse por quê.

Não entendia por que se sentia tão deprimida…

CAPÍTULO VII

Louise Vésper olhou-se no enorme espelho e gostou do que viu. Tinha acabado de se levantar e vestia uma camisola listrada, que tinha sido especialmente desenhada para valorizar seu corpo esguio. Várias vezes a tinham comparado às modelos que enchiam as páginas da Vogue e Harpers, e isso a deixava satisfeita. Podia usar qualquer coisa que sempre ficava elegante e, embora praticamente só vestisse jeans e camisetas, sabia que, quando havia uma ocasião especial para usar roupas sofisticadas, todos invejavam a sua elegância.

Tomou um bom banho, vestiu uma blusa e short; e desceu para uma das quadras do castelo, onde pretendia jogar tênis.

As moças e um dos americanos tencionavam ir até Aurillac. Louise ficou aliviada com isso. Já estava ficando um pouco cansada de Chrystabel, Sarah e Fanny. Elas sempre se divertiam muito juntas, mas as pessoas acabam ficando fartas disso e de qualquer outra coisa que dure tempo demais.

Elas haviam conhecido os dois estudantes americanos em Juan les Pins, onde estavam hospedados em casa dos pais de Sarah, o honourable Marcus e a sra. Willesdon, que tinham uma magnífica casa numa das praias da moda. Naquele momento parecera-lhes interessante convidar os dois americanos para uma temporada no Château des Bois. Eles não tinham as inibições

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características dos ingleses e eram bem mais divertidos. Roü e Jason, que estavam excursionando pela Europa durante as férias

de verão, tinham sido convidados para a festa de Verian em troca da ajuda prestada às três moças: eles as haviam levado, e bagagem delas, até o castelo.

Louise estava sentindo-se contente por outra razão. Uma razão-que não pretendia confiar a ninguém. Tinha descoberto, um pouco consternada, que ainda amava Raoul de la Rue. No ano anterior tinha experimentado uma violenta paixão pelo médico, que naquela época acabara de ser apresentado à família Vésper. Como já havia sentido paixões violentas, que não tinham durado muito tempo, pensara que esta também passaria, como as outras. Mas descobrira, no momento em que vira Raoul, no momento em que encostara seu corpo jovem e ardente ao dele, que ainda o amava perdidamente.

O médico continuava a ser o homem mais maravilhoso que já conhecera, e todos os outros pareciam insignificantes e cansativos se comparados a ele. E já que este seu amor tinha vencido a prova do tempo, deveria durar para sempre. Agora, dependia dela fazer com que Raoul retribuísse e se apaixonasse. E Louise não achava difícil essa tarefa.

Sabia que tinha havido uma mulher na vida dele, uma criatura culta e interessante que fora sua colega na faculdade de Medicina, na Sorbonne. Essa mulher morrera num acidente de metrô, e Raoul de la Rue nunca a esqueceu. Bem, era óbvio que a imagem maravilhosa que ficara de Yvonne tinha muito a ver com a sua morte prematura. Agora, ela seria uma mulher bela e madura, de trinta anos. Com uma experiência de vida que seduziria qualquer homem. Principalmente homens como de la Rue. Louise sabia que cabia a ela mostrar ao médico que uma mulher jovem também poderia ser desejável. A falta de experiência e maturidade podiam ser compensadas com inteligência e boa vontade.

Naturalmente, o casamento teria que ser protelado por mais um; ano, pois ela pretendia aproveitar a temporada social em Londres. Uma tia já estava ocupada com os preparativos, pois lady Vésper escrevia-lhe constantemente, recomendando que ela anotasse para a filha que o baile de fulano seria no dia tal, que a recepção de beltrano seria no dia seguinte, e assim por diante. Haveria tanto o que fazer no próximo ano, que ela, na verdade, teria muito pouco tempo para dedicar ao amado Raoul.

Eles ficariam noivos em segredo, e o médico ficaria com ciúmes, mortificado com as atividades dela. Provavelmente voaria até Londres e a obrigaria a sair de uma das várias recepções, e isto causaria tal escândalo que eles teriam que se casar.

Oh, seria um sonho maravilhoso, e ela se transformaria numa esposa enquanto suas amigas ainda estariam agüentando jovens tolos e inexperientes, dentre os quais, esperava-se, teriam que escolher seus pares, tanto para as danças quanto para a vida.

— Então, é aí que você está, Lulu! — A voz de Verian interrompeu seus devaneios. — Há um sujeito perguntando por você. Ele é americano.

— Deve ser Jason. Mande-o vir até aqui, meu caro irmão. — Que diabo de Jason é esse? Eu pensei que ele estivesse passeando

com suas “argonautas”…— Muito engraçadinho! Agora deu para citar lendas gregas, é? Jason é

meu amigo, e combinamos jogar tênis esta manhã, não está vendo a minha roupa? E você, o que vai fazer?

— Infelizmente nada. Mas, sem dúvida, vou achar alguma coisa errada

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para fazer com minhas mãos indolentes. Posso ser o juiz do seu jogo com o americano?

— Se quiser, querido. Mas não pode nos fazer mal algum. Jason realmente joga tênis. Ele é dos bons.

— Então você banca o juiz e eu jogo. — não queira ser chato. Ele pode derrotá-lo com um braço nas costas, de

venda nos olhos. Até eu posso vencer você. Por onde anda Celeste? Tive a impressão de que o caso entre vocês ainda continuava.

— Pois é… talvez. O tempo dirá. Eles olharam ternamente um para o outro. — Eu estou apaixonada — disse Louise subitamente. — Não é

maravilhoso?— Você ainda deve estar no primeiro estágio — comentou Verian, sério.

— Não dura muito, eu sei. Mas você vai descobrir. Ah, aí vem o americano. — Olá — cumprimentou Jason, alegre, pulando por cima da rede e

beijando o rosto de Louise. Tinha planejado beijá-la na boca, mas ela virara-se bruscamente, lembrando-se de Raoul. — Como vai, doçura?

— Oi, Jason — respondeu ela, e depois olhou para o irmão: — Você fica ou vai?

— Vou. Tenho certeza de que vocês dois querem ficar sozinhos. — Acertou — respondeu Jason, sem vacilar. — Gosto dos americanos por causa disso —— gracejou Verian. — Eles

são sempre tão tímidos e reservados…Myrna encontrou o dr. de la Rue quando passeava pelas ruas da vila. — Bom dia, Myrna. Minha mãe perguntou se você não gostaria de tomar

um verdadeiro chá inglês hoje à tarde. Que tal?— É muita gentileza de madame de la Rue — respondeu elaj sentindo-se

um pouco embaraçada. — Teria grande prazer, se lady Vésper puder me dispensar.

— Mas naturalmente que pode! Você não é a sombra dela!Deixe que eu me encarrego disso. Mandarei André, o motorista da vila, buscá-la às três horas.

Myrna sorriu e ele se afastou,alto e atlético, enquanto ela o observava numa espécie de êxtase. Repentinamente, Raoul de la. Rue voltou a cabeça e a moça corou de vergonha. Quase la se esquecendo de responder ao aceno que ele lhe fez.

Depois do almoço, ela examinou seus vestidos. Escolheu um deles e foi até a lavanderia para passá-lo.

Na cozinha, encontrou Louise fazendo um bolo. Myrna nunca imaginou que ela apreciasse esse tipo de atividade doméstica.

— Estou fazendo um bolo para o meu doce Raoul — explicou ela, alegre. — Você não acha que ele é extremamente atraente, enfermeira?

— Acho que o dr. de la Rue é muito simpático, senhorita. — Pode me chamar de Louise, sabe disso. Chrys estava somente

querendo chatear você quando veio com aquela história de “senhorita” Louise. — Percebi logo. Parece que se divertem com essas brincadeiras, não?— Sinceramente, não. Elas são bem mais crianças do que eu.

Mentalmente, quero dizer. Algumas vezes sinto-me bem mais velha, e simplesmente adoro homens maduros. E você?

— Eu acho que isto depende do homem. Alguns são adoráveis, e outros, insuportáveis.

— E como classifica Raoul?

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Myrna escondeu sua confusão dando uma risada. — É melhor não tratarmos de casos pessoais, está bem? Se eu dissesse

que ele é adorável, você não gostaria, não é?Louise colocou o bolo no forno, com um suspiro de satisfação. — Deverá ficar pronto para a hora do chá e ele ficará encantado! Myrna

pensou se tomaria chá a sós com madame de la Rue. Afinal, Raoul não havia dito que estaria presente. Resolveu, então, contar

a Louise sobre o convite que recebera. Não queria que ela ficasse desapontada caso o médico não aparecesse.

— Oh, ela é um encanto! — recomeçou Louise. — Adora dar seus chazinhos e saber as novidades da Inglaterra. Ela não tem viajado para lá, sabe? Naturalmente, eles não têm muito dinheiro, você entende. São apenas de uma família francesa antiqüíssima, bastante respeitada e querida no lugar. Raoul é muito considerado por aqui.

Myrna subiu para se arrumar com a impressão de estar sendo uma tola. Como poderia ser comparada à sofisticada Louise Vésper?

Exatamente às três horas, um velho carro de praça chegou para levá-la à maison dos de la Rue. Ela escolhera um vestido vermelho e branco, que realçava sua pele, agora mais morena e aveludada.

Esperava estar elegante e, quando o táxi parou em frente a uma antiga casa de tijolinhos, cercada por alamos, a primeira pessoa que viu foi Raoul. Ele a esperava para recebê-la e a olhava de uma forma estranha. Segurou suas mãos somente o tempo necessário para que ela se firmasse no chão.

— O meu lar — disse ele, indicando a casa aconchegante. — É muito bonito!Myrna estava mais abalada pela proximidade dele do que jamais tinha

ficado, quando entraram no espaçoso hall, fresco e cuidadosamente polido, mobiliado com mesas antigas e tapeçarias.

— Minha mãe a espera ali — explicou, enquanto a guiava para uma sala que dava para um jardim levemente inclinado, onde um riacho de águas límpidas completava o quadro encantador.

Uma senhora idosa a esperava, sentada numa cadeira de espaldar alto. Seus olhos eram de um azul forte, diferente dos olhos cinzentos do filho. Tinha uma personalidade calorosa e via-se claramente que estava encantada com a visitante. Myrna simpatizou imediatamente com ela. Tomou asxmãos que a mulher lhe estendia e percebeu que ela sentia-lhe os dedos, um por um.

Foi então que Myrna fixou o olhar naqueles olhos azuis. E percebeu que eles. quase nunca piscavam, que olhavam através dela e não para ela, que, na verdade, eles não viam absolutamente nada. Madame de la Rue era cega.

— Eu gosto da sua enfermeira Hope, Raoul — disse a velha senhora alegremente. — Ela é tudo o que você diz. Agora pode nos deixar. Acho que nos daremos muito bem sozinhas.

— Posso ter uma palavrinha com seu filho, madame? Não me demoro muito tempo — pediu Myrna, levando Raoul até a porta.

— Realmente não tenho nada especial a dizer. Quero apenas ter certeza: sua mãe é cega?

— Sim, é. Mas permita que ela a surpreenda. Mamãe gosta de acreditar que ninguém percebe, e, quando ela começar a andar, você verá por quê.

— Sinto muito. Quero dizer… sobre seu pai, e… isto. — Você tem uma natureza muito humana, Myrna, e uma percepção

excepcional. Agora pode compreender por que nunca poderei voltar para Paris. — Sim. Mas surgirão outras oportunidades para… — Myrna interrompeu-

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se. — É… Bem, estarei de volta para levá-la para casa. Vou fazer um parto

agora. A bientôt. Myrna voltou para a companhia da dona da casa com o coração leve,

sentindo que compreendia Raoul de la Rue melhor do que tinha imaginado. E estar ali, em seu mundo particular, era um privilégio que ela não poderia apreciar senão de todo o coração.

Madame de la Rue foi amável, encantadora, amistosa. Myrna teve a impressão de que o filho era parecido com ela. Conversaram sobre várias coisas, Londres, a vida no campo, que madame achava insuperável, apesar do encanto da França rural. Uma velha criada, obviamente devotada à família, trouxe um chá tipicamente inglês às quatro e meia, que foi servido ali mesmo, no terraço, próximo ao jardim.

A bebida veio num finíssimo bule de prata, acompanhado de xícaras da melhor porcelana. Foi o melhor chá que Myrna tomou desde que tinha deixado a Inglaterra, e era evidente que a velha senhora era a responsável por isso.

Havia bolinhos de aveia amanteigados, pão feito em casa, recheados de queijo, pão branco, geléia de morango e biscoitos variados, que pareciam derreter na boca.

Depois da refeição, quando ambas conversavam alegremente, a velha dama perguntou subitamente:

— Você percebeu, não foi? . — Sou uma enfermeira, madame. Fui treinada para ser uma boa

observadora, só por causa disso noto rapidamente as coisas. Mas ninguém descobriria pelos seus olhos, que são realmente lindos, ou pelos seus gestos. A senhora não imagina como fiquei maravilhada ao vê-la servir o chá sem derramar uma gota!

—São catorze anos de treino, minha querida. Claro que, quando um aparelho se quebra, e isso acontece, sempre levo algum tempo para me acostumar de novo. Mas me recuso a entregar esta obrigação a outra pessoa. Eu devo aprender; isto me deixa com minha cabeça levantada.

— E a senhora realmente consegue!— Você é bondosa demais para indagar o que aconteceu, não é, minha

querida? — disse a velha senhora, depois de breve pausa, como sê estivesse lendo os pensamentos de Myrna. — Eu não me importo em conversar sobre isto, se você estiver disposta a ouvir. Meu marido costumava criar cavalos de raça aqui nestes campos mesmo; animais nobres e belos, antigamente usados na guerra e depois para o serviço de polícia. Eles tinham de ser treinados por pessoal altamente especializado. Aprendi a montar logo depois que me casei, e muitas vezes ajudei nesses treinamentos. Eu amava os cavalos tanto quanto o meu querido Philippe os amava. E Raoul, então, tinha que ser proibido de ir até os estábulos para não faltar à escola.

Fez uma pausa, depois, continuou:— Eu ainda montava quando fiz cinqüenta anos; a gente tem a idade que

sente e eu me sentia bastante moça para isso. Talvez meus reflexos já não fossem tão rápidos, não sei; um dia, quando eu estava treinando um garanhão, belo, mas nervoso, pelas alamedas, um carro esporte apareceu de repente, fazendo um barulho ensurdecedor. Não era comum aparecerem automóveis por aqui, e esse cavalo, ainda no começo do treinamento, assustou-se e me atirou no chão.

Madame de la Rue estava muito emocionada. — Eu parecia estar perfeitamente bem, mas não conseguia enxergar

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nada. O motorista do carro pegou o cavalo e me levou para um hospital. Passei por uma imensidão de especialistas. Fiquei internada durante algum tempo, pois os vários exames confundiam cada vez mais os médicos que tomavam conta de mim. Não havia, aparentemente, razão alguma para a minha cegueira. Poderia ter sido por causa do choque, mas, por alguma razão desconhecida, o nervo ótico não funcionava. Disseram que eu poderia recuperar a visão tão rapidamente quanto a havia perdido, mas isto nunca aconteceu, e agora já não me importo mais. O que mais me preocupava, quando voltei do hospital, eram os cavalos. Meu marido os havia vendido, todos eles. Ele não tinha mais condições de tê-los aqui.

Myrna apertou carinhosamente as mãos da velha senhora. — Obrigada por ter me contado. A senhora tem sido muito corajosa, e

não mencionou as coisas difíceis e desagradáveis, que não devem ter sido poucas. Deve ter sofrido por não poder ver seu marido, seu filho, sua linda casa…

Por um breve momento os olhos azuis ficaram cheios de lágrimas, que foram afastadas antes de caírem.

— Não deve fazer com que sinta pena de mim mesma, enfermeira Hope. Existem tantas outras compensações! Eu me lembro do meu marido como um homem vigoroso e bonito, ele era mesmo muito bonito. Também lembro de mim mesma com algum orgulho. Estes catorze anos não afetaram minhas lembranças visuais.

Myrna ficou em silêncio, e, ainda dessa vez, parecia que madame de la Rue havia adivinhado seus pensamentos.

— Naturalmente gostaria de ver meu filho. Há catorze anos ele ainda era um garoto. Agora deve ser…

— Muito bonito e atraente, madame! Deve ter muito orgulho dele!— Tenho sim, muito orgulho, mas também muita preocupação, como

qualquer mãe que sabe que é dependente do filho. Desejo a felicidade dele; não quero ficar em seu caminho.

— Eu acho que seu filho se sente feliz com o trabalho, e tem planos que poderá realizar aqui mesmo.

— Seu hospital infantil. Oh, sim. Sabe que ele raramente comenta sobre isto com estranhos? Raoul deve ter muita consideração por você. Ele precisará da ajuda financeira do governo, e está tentando consegui-la. O clima daqui é particularmente bom para doenças respiratórias, especialmente durante o inverno.

Madame de la Rue continuou confidenciando:— Naturalmente, se Yvonne não tivesse morrido, tudo teria sido bem

mais simples. Ela também la ser médica, e os dois planejavam trabalhar juntos, como marido e mulher. Foi uma coisa deplorável o que aconteceu com ela, e desde então Raoul não se interessou por nenhuma outra mulher. Eu me sentiria mais feliz se meu filho estivesse casado, mas sei que ele precisa de alguém especial. Alguém com quem partilhe sua profissão. Compreende?

— Há tantos médicos que se casam com colegas porque têm os mesmos interesses!

— Ou com enfermeiras — disse ela, pensativa. — Uma enfermeira seria uma ótima esposa para Raoul.

Myrna sêntiu-se aliviada quando, naquele instante, o dr. de la Rue chegou.

— Pedi mais chá para mim, mamãe —avisou ele alegremente. — Acabei de fazer o parto da sra. le Brun; ela teve uma menina. Esta é a número cinco.

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Pobre le Brun! Ele tem guardado champanhe na adega, todos estes anos, para celebrar o nascimento de um filho. E não acredito que ele a abra hoje, em homenagem à pequena. Mas ela é uma coisinha linda!

— Penso que foi um francês que disse: “Graças aos céus pelas menininhas” —disse Myrna, e mãe e filho sorriram.

— Tenho que me lembrar de dizer isto a le Brun — comentou Raoul. Sentou-se satisfeito, esperando outro bule de chá, comendo um pãozinho e olhando para as duas, muito contente.

— Vocês fofocaram muito?— Lógico que sim! Fofocas, conversas, confidencias, tudo isto. Myrna e

eu nos demos' muito bem, e nos entendemos melhor ainda. — Verdade? — Raoul olhou maliciosamente para a visitante. —Você e eu

vamos ter muito o que conversar depois que ela for embora, mamãe. Precisa me contar uma porção de coisas. Eu simplesmente não a entendo! .

— O senhor me surpreende, dr. de la Rue — respondeu Myrna. — Eu sou uma pessoa muito simples.

— Nenhuma mulher jovem tenta ser compreendida por qualquer homem. Como um iceberg, ela mostra somente uma parte de si, na superfície. Não é, Myrna?

— Devo pensar com cuidado no que disse. Parece que uma boa parte de mim esteve dedicada a aprender o meu ofício, nos últimos três anos. Mas, se ainda existe alguma coisa sob a superfície, nem eu mesma sei disto! — Levantou-se e sorriu. — Devo voltar agora para o castelo. Foi uma tarde adorável, madame.

— E eu também apreciei muito tê-la aqui comigo! Espero que volte antes de partir. Raoul precisa combinar outra visita.

— Quanto tempo ainda pretende ficar na França? — perguntou ele, enquanto a acompanhava até o carro.

— Somente mais duas semanas. Ela teve a impressão de ter revelado a tristeza que sentia naquela

resposta. Mas de onde vinha essa tristeza? Era por causa do castelo e de um estilo de vida que nunca conhecera antes, por lady Vésper e família, ou por qualquer outra coisa ou pessoa?

— Somente mais duas semanas?— Sim. E tenho o pressentimento de que vão voar!Raoul resolveu levá-la. Guiava o carro lentamente, tão lentamente que

dava a impressão de que nunca chegariam ao castelo. — E por que não procura um emprego aqui na França?— Eu tenho um emprego me esperando, quando voltar — explicou ela. —

E não tenho realmente uma razão forte para ficar aqui. — E que tal aprender melhor o idioma? A melhor maneira de aprender

um idioma é viver entre o povo. Eu mesmo teria condições de lhe oferecer um emprego, mais tarde. Quando construírem minha casa para crianças convalescentes. Você daria uma ótima enfermeira-chefe!

São somente devaneios, disse ela a si mesma. Se houvesse uma oferta concreta, não hesitaria em aceitá-la. Não podia pensar em nada mais maravilhoso do que trabalhar junto ao dr. Raoul de la Rue por toda a sua vida.

— Chegamos! — exclamou ela, quando o carro parou em frente aos lindos degraus de mármore do castelo. — Muito obrigada por ter me apresentado à sua mãe. Ela é uma pessoa encantadora e extremamente corajosa. Gostaria mesmo de vê-la antes de partir, se for possível.

— Eu providenciarei, enfermeira. —Eles estavam se tratando com

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cerimônia. Era como se nunca tivessem se tornado amigos… Mas ambos se inclinaram ligeiramente, um para o outro, na hora da despedida, e logo se afastaram.

Myrna subiu correndo a escadaria. Nem mesmo se voltou para ver o médico se afastar. Subiu para seu quarto, vestiu o uniforme e foi ver a sua paciente.

Havia uma certa hostilidade nas maneiras de lady Vésper, e ela tratou-a num frio silêncio, enquanto Myrna a preparava para a massagem.

— Como passou o dia, senhora?— Está mesmo interessada? Não estou nada bem, se quer saber. E muito

aborrecida. — Myrna tomou-lhe o pulso e achou-o acelerado. — Acho que é um atrevimento você e Raoul saírem juntos deste jeito. Ele parece se esquecer de que você é minha enfermeira, e que espero que esteja à minha disposição quando eu precisar, especialmente quando ele não se interessa nem mesmo em me visitar.

— Ele não veio vê-la?— Sabe muito bem que ele nem chegou perto de mim hoje. Estou muito

aborrecida e ofendida. Evidentemente, Raoul acha que é mais importante dar atenção a você do que cuidar de seus pacientes.

Myrna ficou algum tempo calada, enquanto massageava a paciente. — Eu mal vi o dr. de la Rue — disse afinal, com calma. — Tomei chá com

a mãe dele. Quando voltou, estava muito esgotado e disse que tinha atendido a um parto. Acredito que agora tenha ido visitar um doente em estado grave. Não há dúvidas de que ele vai aparecer ou então telefonar mais tarde, para saber como vai a senhora.

Havia ainda Louise para enfrentar. Uma Louise com os olhos violeta brilhando de despeito, que cruzou com Myrna no hall.

— Você é uma hipócrita! — exclamou ela. — Sabia que eu estava esperando Raoul para o chá, com bolo e tudo, e prendeu-o com você. A algumas pessoas, basta dar os dedos e elas logo querem as mãos!

Mais uma vez, Myrna explicou que o dr. de la Rue estivera ocupado por causa de um parto.

— Ele não estava ocupado quando trouxe você aqui. Pensei que o carro estivesse quebrado e que os dois tivessem vindo a pé, tal o tempo que demoraram!

Agora, as outras garotas estavam apreciando a discussão, soltando risinhos abafados.

— Parece que você estava prestando mesmo muita atenção em nós — respondeu Myrna friamente. — Acontece que eu tenho preocupações mais importantes em vez de ficar tentando descobrir o que pode irritar você. O dr. de la Rue e eu estávamos discutindo a situação da enfermagem na França. Ah! Se você guardar seu bolo numa lata bem fechada, ele ficará ainda melhor amanhã. Com licença.

Saiu sem olhar para trás, deixando Louise parada, os olhos brilhando de raiva. Agora, suas amigas estavam rindo dela e aquilo a desagradava mais do que tudo!

CAPÍTULO VIII

Myrna sentiu-se um pouco insegura nos dias que se seguiram. Não desejava ofender lady Vésper, deixando-a só por muito tempo novamente. Sabia que, embora a jovem senhora tivesse insistido para que ela se sentisse à

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vontade para sair quando desejasse, e até a tivesse encorajado a passear com Verian, não ficara satisfeita com a aproximação entre ela e o dr. de la Rue.

Assim, Myrna resolveu não se afastar da casa dali para a frente, o que acabou lhe trazendo vários problemas porque Louise e seus amigos tinham resolvido fazer brincadeirinhas à custa dela.

— Aposto que, como enfermeira, você conhece uma porção de médicos maravilhosos como Raoul, não é? — foi a pergunta aparentemente inocente de Fanny Herring.

— Conheço muitos médicos, sim. — E tem casos com muitos deles?— É claro que não. Esse tipo de coisas só acontecem em livros. — Mas você deveria soltar seus cabelos algumas vezes, descontrair-se,

entende? Senão vai acabar ficando frustrada, querida. Verian já comentou comigo que você é uma garota e tanto!

Imaginando exatamente o que Verian teria comentado, Myrna sentiu que estava enrubescendo.

— Está vendo, Lulu? — disse Fanny, triunfante. — Ela está praticamente admitindo que teve um caso com Verian.

Toda esta pança de moça certinha é só fingimento! Myrna virou-se para ela:

— Acho que seria inútil se eu dissesse que não existe nada entre nós dois, porque vocês estão querendo é se divertir com isto. Não sou uma garota inocente, mas não acho que ter casos seja o único objetivo da vida, como vocês parecem achar. Penso que um dia de trabalho mataria qualquer uma de vocês, e me parece particularmente patético que percam tanto tempo pensando em amor e romance sem que tenham a menor idéia do que é a vida. Agora, por favor, deixem-me em paz, porque tenho trabalho a fazer.

Fez meia-volta e quase deu um encontrão em Verian. — Escute — disse ele, segurando-a nos braços —, onde vai com essa cara

fechada? Essa gente está atormentando você?— Ela se ofende por tão pouco… — disse Sarah Willesdon, satisfeita:— Consciência culpada — completou Louise, ressentida. — Eu quebro a cara de todas elas, se você quiser, Myrna. — Não ligue, Verian. Não quero que as machuque porque depois elas

seriam minhas pacientes e isto eu não seria capaz de agüentar!Ele fez uma careta para a irmã e saiu com Myrna, segurando-a pelo

braço. — Você não devia dar importância a elas. Na verdade, são umas

crianças. — Crianças que brincam com dinamite — respondeu ela. — São

absolutamente indiferentes aos sentimentos dos outros. — Eu estou precisando de um bom papo, Myrna. Que tal conversar

comigo?— Isso seria como me atirar na cova das serpentes! Acabei de ser

acusada de ter um caso com você!— E também com Raoul de la Rue! Lulu anda dizendo que você está de

olho nele. — Que gente! — queixou-se ela, zangada. Verian olhou para Myrna,

intrigado. — Você mudou muito. Antes era tranqüila, serena. Agora vive nervosa,

inquieta…

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Mais tarde, Myrna pensava nas palavras de Verian enquanto descansava um pouco em seu quarto.

Reconheceu ter mudado durante aquelas últimas semanas e achou que não deveria se deixar irritar com as brincadeiras idiotas de Louise e de seus amigos, porque era isso que os divertia. Ela havia deixado que percebessem o quanto era vulnerável a um assunto que costumavam discutir sem o menor constrangimento.

Não estava preocupada com as insinuações feitas em relação a ela e Verian, mas a idéia de estar sendo perseguida por quatro mulheres curiosas, que queriam a todo custo descobrir algo sobre a sua vida, a deixava mais do que mortificada.

Agora admitia para si mesma que estava realmente apaixonada por Raoul de la Rue. Perdidamente apaixonada. Não tinha a menor esperança de que ele correspondesse àquele amor, mas a proposta para que ficasse na França provava, pelo menos, que o médico não era tão indiferente assim a ela. Mas o interesse dele era apenas profissional… Não, melhor não ter ilusões.

Os olhos de Myrna se encheram de lágrimas. Sempre pensara que estar apaixonada fosse uma experiência maravilhosa, mas, agora, sabia que não era assim. Sabia que a paixão estava ligada ao sofrimento.

Verian a havia convidado para ir até Aurillac depois do chá. Assim, Myrna certificou-se de que lady Vésper estava bem acomodada,e pediu permissão para fazer o passeio.

— Com Verian?Naturalmente que pode, minha querida. Você faz muito bem a ele, eu já disse, isto antes.

— Na verdade, eu gostaria de comprar um presente de aniversário para ele. A senhora tem alguma sugestão?

Mas lady Vésper não podia realmente ajudar. Limitou-se a contar a Myrna o que a família daria a ele, e gentilmente insinuou que, depois de um carro esporte italiano e de uma cigarreira de ouro maciço, sem falar das abotoaduras com diamantes e de uma casa de campo em Cornwall, não havia mais nada para se dar.

Apesar de tudo, Myrna levou algum dinheiro, certa de que uma criança que tem todos os brinquedos que o dinheiro pode comprar às vezes se diverte imensamente abrindo uma caixa de biscoitos.

Devia haver alguma coisa que ela tivesse condições de comprar e que desse prazer para o pobre e mimado Verian. O magoado Verian.

Verian, que contava as tristezas de seu coração ferido, enquanto guiava seu Jaguar pela estrada que levava a Aurillac.

— Está praticamente tudo acabado entre Celeste e eu — disse ele. —Ela continua a insistir em querer tempo para pensar e. quanto mais eu cedo,mais certeza tenho de que existe outra pessoa. Ainda acho que ela é a moça mais linda do mundo, mas estou começando a acreditar que não foi feita para mim. Naturalmente, mamãe vai ficar encantada. Bem… dizem que a gente supera estas coisas; de quanto tempo você acha que vou precisar?

— Oh, eu não sei! — Myrna sentia-se solidária com Verian. — Como enfermeira, sei que o corpo humano é capaz de superar as

aflições físicas mais terríveis. Pessoas que estão literalmente morrendo num dia, no outro estão sentadas, fazendo as refeições, conversando normalmente. Espero que as emoções funcionem da mesma maneira!

Em Aurillac, enquanto Verian comprava algumas camisas, Myrna encontrou uma livraria repleta de livros em inglês. Ficou muito satisfeita ao encontrar o presente perfeito para um jovem. Eram vinte e um contos de

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heroísmo da época moderna, ricamente encadernados em ouro e azul. Ela já saía da livraria com b presente embrulhado, quando Verian veio a seu encontro.

— O que andou comprando? — perguntou ele, malicioso. — Algum livro impróprio em francês?

Ela ficou contente ao ver que ele ainda podia sorrir depois de abandonado por Celeste. Provavelmente Verian iria se apaixonar pelo novo carro e esquecer as mágoas de amor.

Mas, quando chegaram a St. Jude, e ele viu que Celeste descia a rua principal, perguntou imediatamente a Myrna se ela se importava em voltar sozinha para o castelo.

— Lógico que não, Verian!Desceu do carro e começou a caminhar, distraída. Já estava chegando ao

castelo quando encontrou Michael Smith. — Como vai? — cumprimentou ele. — Eu acabei de estar com…— Não terminou a frase e tossiu, procurando disfarçar. — Ouvi dizer que

você esteve doente. Recebeu os meus bombons?Myrna não tinha recebido nenhum bombom, mas resolveu não dizer a

ele. — Obrigada, estavam deliciosos. Mas eu não estive realmente doente.

Foi somente uma gripe, mas o dr. de la Rue me obrigou a ficar na cama. Começaram então a comentar a festa de aniversário de Verian. — Eu recebi um convite — disse Michael —, mas nem sei por quê. Festas

não fazem o meu gênero, e não sei dançar nada. Mãs, como Celeste vai, eu…Novamente parou de falar, e Myrna sentiu uma suspeita crescer dentro

dela. Era estranho que tanto Celeste quanto Michael estivessem na vila àquela hora, e que Michael se atrapalhasse tanto com suas próprias observações.

— Gostei de ver você — disse ela finalmente —, e obrigada pelos bombons.

Existe algo entre Celeste e Michael, pensou Myrna, enquanto continuava o seu caminho para o castelo. Aquela mocinha parece que está tendo uma vida amorosa bem movimentada, e manobra com muita facilidade os homens que se apaixonam por ela.

Quando Myrna chegou ao castelo, surpreendeu-se com a agitação incomum que havia nele, e logo soube que a causa de tudo fora a chegada de sir William. Ele tinha trazido dois cachorrinhos rodesianos que estavam irritando madame Durand a ponto de serem levados para os fundos do castelo.

— William, você é realmente teimoso! — dizia lady Vésper, irritada. — Sabe muito bem como os Durand detestam animaizinhos! É sabe que não vou poder levá-los comigo para a Inglaterra. Por isso, vai precisar levá-los de volta para… para a Rodésia, ou sei lá de onde eles vieram!

— Só se for por cima do meu cadáver! — exclamou Louise. — Os Durand são meros empregados e acontece que eu gosto de cachorros.

— Muito bem, então você vai arranjar outro casal para tomar conta disto aqui depois que eles forem embora, combinado?

Myrna percebeu sinais de preocupação no rosto da sua paciente. Já tinha sentido bastante emoção para um só dia.

— Com licença, senhor — interferiu, dirigindo-se a sir William. — Devo ajudar a sua esposa a se preparar para dormir. Já é bem tarde.

— Certamente, minha querida! Você é uma mocinha muito bonita, sabe? E não é verdadeiramente uma enfermeira, é?

— Sou sim, senhor, e quero lhe pedir que saia agora mesmo.

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— Vamos, papai — disse Louise intencionalmente. — Raoul deve estar chegando para ver você e tomar um drinque conosco. Eu o convidei. — Olhava para Myrna enquanto falava, depois conduziu o pai para fora do quarto e fechou a porta com força.

Um dia antes do aniversário de Verian já se percebia que a festa não seria uma pequena reunião de família, como ele chegara a sugerir. Além dos amigos de Louise, que estavam hospedados na casa, vários rapazes e moças, amigos de infância de Verian, começaram a aparecer no castelo, vindos dos mais diversos lugares. Também chegaram alguns parentes e empregados extras foram contratados.

Além da numerosa colônia inglesa, também os grandes proprietários da região haviam sido convidados, e, assim, era esperada muita gente para a comemoração.

A quadra de tênis era constantemente requisitada pelos que apreciavam o esporte, assim como o campo de croqué e o de tiro ao alvo.

Lady Vésper tinha sido praticamente isolada em sua suíte privada, e somente os membros da família tinham permissão de visitá-la.

A jovem senhora fora obrigada a manter-se em repouso porque corria o risco de não poder apreciar a festa do filho, caso não se poupasse ao máximo. Mesmo assim, ela se recolhia, exausta, a cada noite, e Myrna estava continuamente tomando a sua pulsação e sendo acusada de ser metida demais. Sir William não ajudava muito. Embora adorasse a esposa, e ela a ele, sir William não se importava muito com os cuidados a tomar com lady Vésper e, sempre que ficava algumas horas fazendo companhia à esposa, deixava-a exausta.

— Você é muito cuidadosa, enfermeira — comentou lady Vésper, carinhosamente, quando Myrna a acomodou na cama, na véspera do grande dia. — Só agora vejo como me sinto segura quando você está por perto. Amanhã à noite você não vai se afastar de mim, promete?

— Prometo, senhora. — Naturalmente, você deve procurar se divertir. Gente moça gosta de

dançar e namorar, mas fique de olho em mim, assim eu me sentirei mais segura. Estou com tanto medo de estragar a festa com um de meus ataques!

— O dr. de la Rue também estará presente e tenho certeza de que nós dois poderemos tomar conta da senhora. Vou pedir a ele que lhe dê um sedativo, para deixá-la mais calma.

— Oh, ótimo! Boa menina! Bem, estou com sono agora. Myrna ficou ao lado da paciente até que ela estivesse adormecida. Em seguida, telefonou para a casa do médico, a fim de informá-lo sobre

os receios de lady Vésper. Ele não estava, e ela deixou o recado com a secretária. Depois, resolveu dar o presente a Verian, enquanto ainda podia chegar perto dele.

A casa estava um pandemônio. Uma parte da família jogava bridge na sala de café; Louise e seus amigos escutavam música no jardim de inverno. Na pequena sala de jantar, um idoso membro da família estava levando um difícil diálogo com vovó Vésper, que aparentemente tinha problemas de audição. Ondas de fumaça de charuto na varanda indicavam que sir William e seu irmão mais novo estavam ocupados em dar a refeição da noite aos cachorros.

Myrna não encontrou Verian em lugar algum, e já estava pensando que ele tinha saído, quando ouviu um som de música vindo da ala oeste, onde ficavam os aposentos do rapaz.

Ela subiu rapidamente a escada e bateu à porta, apesar de um aviso:

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“Não perturbe”, em quatro línguas, estar pendurado nela. — Abra, Verian, por favor! Sou eu, Myrna!— Oh entre! — convidou ele, e trancou a porta depois. — Estou muito

sentimental hoje — explicou, apontando para um disco de Tchaikovsky. Myrna evitou olhar para Verian. Teve a impressão de que ele estivera chorando e ela não gostaria de demonstrar que tinha percebido.

— Acho que nem precisava dizer — falou ela —, sua mãe está muito agitada e eu quero ficar ao lado dela, mas, antes, quis lhe trazer isto. — Entregou o pacote e deu meia-volta, em direção à porta. — Desejo o melhor para você amanhã e no futuro, Verian.

— Espere! — Ele tinha rasgado o papel e estava lendo o título do livro. — Obrigado, Myrna. Foi muita bondade sua. Vou começar a ler esta noite mesmo. Eu sei que… não vou dormir muito.

— Agitação, eu espero — disse ela, destrancando a porta e segurando a maçaneta.

— Myrna, espere! — suplicou. — Por favor, antes de ir… me dê um beijo!Ela queria recusar, mas Verian parecia tão triste, tão desamparado, que

não conseguiu negar. Deixou a porta aberta e virou o rosto para ele, que lhe cobriu os lábios delicadamente, a princípio, mas depois com violência. Myrna tentou desvencilhar-se e deu um pequeno grito de susto.

— Desculpe-me, Myrna. Não devia ter me vingado em você. Sabe, decidi odiar todas as mulheres.

— Obrigada por me avisar! — disse ela, esfregando os lábios, ainda assustada. Virou-se e deu de cara com Raoul de la Rue, que os olhava, impassível.

— Eu a segui até aqui, enfermeira Hope. Chamei-a, mas aparentemente não me escutou. Pensei que seu recado fosse urgente, mas…

Ela gostaria de explicar a cena do beijo, que, sem dúvida, ele presenciara, mas pensou que seria dar importância demais ao fato.

— Lady Vésper está com os nervos à flor da pele. Tem medo de estragar a festa, amanhã, e achei que o senhor precisaria saber disso.

— Sim, realmente. Fez bem em me informar. Ela está dormindo?— Creio que sim. — Vamos vê-la juntos, está bem? Ou tem outros planos?— Não, não tenho. Ela corou violentamente. Por que ele sempre tinha o poder de fazê-la

sentir-se tão culpada quando era completamente inocente?Lady Vésper estava tendo um sono muito agitado. Eles a acordaram e de

la Rue examinou-a. Em seguida, deu-lhe um sedativo. Myrna presenciava tudo à distância. Levantou-se quando o médico se

aproximou e ficou à espera de instruções. — Naturalmente ela deseja participar de tudo amanhã, mas, na

realidade, deveria permanecer na cama, ou até mesmo num hospital, a milhas daqui! — Ele encolheu os ombros. — Eu virei vê-la outra vez amanhã de manhã. Verian e seu aniversário! Bolas!

— Verian tem direito à sua festa — comentou ela. — Ele não queria tanta confusão, mas não pôde evitar.

— É mesmo? Pois então você o conhece bem melhor do que eu. Aliás, nós nunca nos demos muito bem. Boa noite, enfermeira Hope.

— Boa noite, doutor — respondeu ela friamente, mas estremeceu quando ele saiu.

O que havia de errado com uma pessoa que tinha o poder de trazer o

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céu e o inferno para outra? Se ele sorria ela sentia-se transportada para o paraíso, mas uma cara fechada a fazia mergulhar num abismo de infelicidade, de onde só conseguia sair novamenteatravés de Raoul.

— Vou detestar voltar para casa! — suspirou enquanto la novamente vigiar sua paciente. — Mas também será um alívio!

Naquela noite, uma violenta tempestade fez com que Myrna acordasse, assustada, e não conseguisse mais conciliar o sono. Ela ficou imaginando se Verian também estaria acordado, como tinha dito. Pobre Verian… Estava recebendo presentes valiosos mas sofria por causa de uma moça que não o amava.

Myrna enfiou um roupão e foi até o quarto de lady Vésper, que dormia serenamente. Havia uma pequena cozinha ao lado do banheiro da paciente, e Myrna resolveu fazer um chá quente. Estava tomando a bebida revigorante devagar, sentada numa poltrona ao lado da janela, quando a aurora surgiu por trás das montanhas, num espetáculo de rara beleza. Ela observava, encantada, o cinza se transformar em rosa, laranja, amarelo, uma centena de tonalidades que iluminavam os campos.

Myrna teve a sensação de que nunca tinha assistido ao nascer do sol com tanto enlevo e sentiu-se tomada pelo espetáculo grandioso. Era como se o despertar de seu jovem coração para o amor apurasse todos os outros sentidos, fazendo com que ela visse o mundo com outros olhos.

Os eletricistas estendiam fios com lâmpadas coloridas pelo terraço e pela escadaria de mármore. Algumas árvores também estavam sendo enfeitadas, e dois holofotes eram colocados no jardim, onde haveria danças ao ar livre. Jardineiros traziam para dentro as flores mais belas, cultivadas durante o ano todo para aquela ocasião, além de enormes vasos com plantas ornamentais, que eram colocados em lugares estratégicos para enfeitar ainda mais o luxuoso ambiente.

Uma perua azul-escura despejou três sacos de correspondência e numerosos pacotes na porta do castelo, e Verian, acompanhado de seus amigos, passou horas no jardim de inverno, ocupado com cartas e presentes.

Quando Myrna comentou com lady Vésper que seu filho era realmente muito querido, a jovem senhora explicou que a maioria dos cartões eram de pessoas que provavelmente Verian nem conhecia, e que isso era normal em seu meio social.

— As pessoas têm uma lista dos aniversários e secretárias que cuidam disso. Na verdade, essas pessoas nem tomam conhecimento umas das outras.

— Eu… compreendo — disse Myrna. Mas, na realidade, não compreendia. Gostava de pensar que os cartões que recebia em seu aniversário eram enviados com amor pelos seus amigos. Como uma pessoa poderia desejar um feliz aniversário quando não sabia nada sobre a outra?

Lady Vésper estava se sentindo tão bem na manhã da festa que Myrna teve que impedi-la de tomar parte nos últimos preparativos.

— Se a senhora pretende participar da festa desta noite, acho melhor que descanse o dia todo, lady Vésper.

— Descansar, descansar — resmungou a outra. — Será que eu não faço outra coisa?

— Seu marido está combinando um almoço em família, aqui em seus aposentos, para quebrar um pouco a monotonia. Sei que deve ser muito ruim ver todos participando e ficar de fora. Eu compreendo.

Os olhos de lady Vésper ficaram úmidos, mas, em questão de segundos,

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estavam secos novamente. — Você é uma boa menina, e vou sentir sua falta quando for embora.

Sabe, acostumei minha família a ser tão independente de mim e de minhas fraquezas que, às vezes, acho que eles se esquecem que sou uma pessoa real, que se importa em estar assim doente e que pode se sentir solitária e deprimida. William me adora desde que não precise ficar muito tempo comigo e acho que tanto Louise quanto Verian poderiam arranjar tempo para me fazerem companhia.

— Acho que todos estão muito ocupados, senhora. Estão dando atenção aos hóspedes e coisas assim.

— Você também já pode ir — disse lady Vésper, sorrindo para Marie, que chegava. — Vá reunir-se a eles, veja o que está acontecendo e depois volte para me contar. Estarei à espera.

Myrna não tinha vontade nenhuma de se misturar aos hóspedes e, por isso, procurou um lugar sossegado no jardim, de onde podia observar sem ser observada. De lá, viu a chegada do novo carro de Verian e o ar de surpresa e encantamento no rosto do amigo. Viu os jovens cercarem o automóvel; viu quando alguém apareceu com uma garrafa de champanhe para “batizar” o presente; viu a animação de Verian e sorriu. Sabia que ele já nem se lembrava mais de Celeste.

Estando de fora, Myrna podia participar da alegria dos outros sem fazer parte daquilo. Ela observava tudo com atenção para depois contar a lady Vésper o que tinha acontecido, pois ninguém mais se daria a esse trabalho.

O velho Jaguar de Verian foi trazido da garagem para ser leiloado, mas acabou sendo retirado quando as maiores ofertas chegavam, penosamente, a ser negativas. A brincadeira logo acabou e todos se dispersaram em busca de outras distrações.

Durante a tarde, alguns jovens se reuniram e partiram em diversos carros para invadir a piscina da casa do vizinho mais próximo. Os mais velhos aproveitaram para descansar.

Myrna divertiu sua paciente contando sobre o episódio do carro de Verian e todo o cerimonial que o envolveu.

— Ele é realmente um bom garoto. Ou será que agora ele é um homem? Acredito que, aos vinte e um anos, ele já seja um “homem”. Agora quero que ele faça um bom casamento e que me dê netos. Estou tão contente por ele ter terminado o namoro com aquela moça! Fiz tudo que pude para desencorajá-la a vir à festa, mas Louise disse que Celeste vem. Sabe se ela e Verian têm se encontrado ultimamente?

— Não, não sei, senhora. Myrna cortou o assunto ali, pedindo licença para se retirar. Aproveitou o

silêncio da casa para escrever algumas cartas. Comentou sobre sua volta como se estivesse fora há anos, e não somente há cinco semanas.

O dr. de la Rue apareceu mais cedo do que de costume e comentou que a enfermeira Hope tinha a aparência de quem não tinha dormido direito.

— Sim — concordou lady Vésper. — Hoje parece que ela é a doente!— Estou me sentindo muito bem — disse Myrna. — Normalmente durmo

a noite toda, mas ontem fiquei um pouco inquieta. Uma festa de aniversário, como a de Verian, conseguiu me abalar.

— Vai estar presente à festa? — perguntou Raoul. Myrna deu uma olhada para a paciente. — Estarei acompanhando lady Vésper. — Tolice! — protestou a jovem senhora. — Ontem eu estava triste e

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deprimida, mas hoje estou bem, e você vai poder dançar bastante, minha cara, como todos os outros jovens. Tem um vestido? Se não tiver, Louise poderá lhe emprestar um.

— Tenho um vestido, sim, muito obrigada. Mas realmente prefiro ficar observando a senhora.

— Assim, você pareceria uma Cinderela, e eu não vou gostar disso. Você é uma linda moça, e tenho certeza de que os jovens não irão ignorá-la. Verian dançará com você, e Raoul também.

— Ficarei encantado — disse o médico, inclinando-se galantemente. Myrna enrubesceu, embaraçada. Não queria que ninguém dançasse com

ela por ordem de lady Vésper. Mas não podia perder a oportunidade de ficar entre os braços de Raoul antes de partir para sempre.

Depois do chá, a enorme casa entrou em rebuliço. Os hóspedes, em seus aposentos, eram atendidos por um exército de manicures, cabeleireiros e costureiros, vindos da cidade de Lyon. Detetives protegiam as jóias dos hóspedes e as riquezas da casa. Os eletricistas verificavam a iluminação, e uma pequena orquestra afinava os instrumentos e testava os amplificadores. Um conjunto local daria um pequeno espetáculo de música típica, usando as roupas tradicionais, e bailarinos espanhóis haviam sido contratados para números de dança.

Era o tipo do acontecimento que, depois, seria comentado nas colunas sociais. Havia pessoas com cartões de imprensa presos às lapelas, tirando fotos do castelo e conversando com os hóspedes.

Myrna afastou-se da confusão e resolveu preparar-se para a festa. Achou que ficaria muito bem com um vestido longo, vermelho, que tinha trazido da Inglaterra. Olhou-se no espelho e gostou do que viu. Estava se enfeitando para uma só pessoa, e pretendia impressioná-la. Por sorte, seus cabelos loiros, semi longos não precisavam dos cuidados de profissionais, ela mesma enrolou-os nas pontas. Passou uma sombra discreta nas pálpebras, um batom que contrastava agradavelmente com a sua pele, e uma leve camada de rimei nos cílios. Para completar, escolheu sandálias douradas e pôs uma pulseira de ouro no pulso.

Sentindo-se suficientemente elegante, à altura da ocasião, foi ver se lady Vésper necessitava de ajuda.

— Você está linda! — elogiou a aristocrata com condescendência. — lei, Marte! lei, vite!

A velha criada aproximou-se rapidamente e lady Vésper ordenou que lhe trouxesse uma caixa que estava em cima da penteadeira.

— Enfermeira Hope, venha ver as minhas jóias. Myrna ficou extasiada ao ver a coleção de pendants, colares, braceletes

e anéis das pedras mais valiosas e variadas, que brilhavam e refletiam sob as luzes do quarto.

— Lady Vésper, que maravilha!— São mesmo lindas, não são?E naturalmente muito valiosas. William

retirou-as do banco esta manhã. O que devo usar hoje?— Que tipo de traje vai vestir?Lady Vésper mostrou uma criação Dior, protegida por uma capa de

plástico que havia sido entregue aquela manhã. Myrna viu, fascinada, um vestido de um rico brocado azul, que combinava maravilhosamente com lady Vésper.

— Estas ametistas, senhora Combinam perfeitamente!— Que mocinha mais engraçada! Estas não são nada valiosas, custaram

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somente algumas centenas de libras. E se usasse meus diamantes?Mjrna sorriu. — Também são lindos, senhora. Mas ainda acho que a cor das ametistas

combina mais com o vestido. De repente, aquela decisão transformou-se num caso. Louise acabara de

entrar no quarto, vestida num roupão, e pediram que ela desse a sua opinião. — A enfermeira acha que as ametistas combinam mais com meu vestido,

e devo confessar que gosto muito delas porque realçam a cor dos meus olhos, mas os diamantes impressionam muito mais. O que você acha?

— Use seus diamantes, mãezinha,Lady Vésper experimentou o colar e os brincos de diamantes, olhando-se

com atenção no espelho. — Oh, não sei! Vou resolver mais tarde, quando puser o vestido. Acho os

diamantes terrivelmente frios, você não concorda? Eles não têm alma, somente um brilho duro. Não acha que a enfermeira está linda, Louise?

— Muito — respondeu a moça depois de examinar Myrna. — Bem, acho que está na hora de eu me vestir, também.

Depois de pôr o vestido, lady Vésper resolveu usar o conjunto de ametistas. Myrna colocou o colar nela, elogiando-o mais uma vez.

— Acho que agora está ótimo — disse. — A senhora está muito bonita, lady Vésper.

— Obrigada, minha querida. Eu estou mesmo me achando muito bem, hoje. E você gostou tanto deste colar que vou mandar fazer uma cópia para lhe dar quando partir. Gostaria disso?

— Oh, mas eu não quero…— Veremos, veremos…No terraço, a orquestra já tocava uma valsa. Myrna deixou-se contagiar

pela atmosfera de festa, e sentiu as pernas trêmulas. — Pode ir, menina, e divirta-se. Eu irei mais tarde. William vem me

buscar. Myrna não precisou de uma segunda ordem. Era jovem, havia música no

ar e a noite estava cheia de promessas…

CAPÍTULO IX

Os homens, a maioria a rigor, com as costumeiras gravatas brancas, e as damas, quase todas com vestidos longos, protegidas por peles luxuosas e enfeitadas pelas jóias mais caras, já se espalhavam pelos salões. A festa era sofisticadíssima.

Louise e as suas amigas dançavam a valsa, enquanto esperavam por ritmos mais agitados. Os dois americanos, que tinham ficado no castelo, à espera da festa, andavam por todas as partes, procurando parecer muito refinados em suas roupas alugadas:

Um deles, Rod, convidou Myrna para dançar, o que desagradou profundamente Chrystabel Pryce-Jones. Mas ela não estava interessada apenas em dançar. Assistia, satisfeita, à chegada dos convidados, que subiam a escadaria onde, no topo, Verian e seus pais os recebiam.

Lady Vésper parecia uma rainha sentada numa cadeira francesa antiga, de espaldar alto e braços torneados dourados que lembrava um trono.

Os empregados passavam o paté de fois gras em diminutos biscoitos, e enchiam continuamente os pratos com frango ou salmão defumado. A

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champanhe e o conhaque eram servidos como água. Raoul de la Rue se atrasou, e só apareceu às dez e meia. Myrna, que já

estava desesperada com a demora, ficou discretamente atrás de lady Vésper enquanto ele a cumprimentava, elogiando-a pela aparência maravilhosa e pela linda festa.

— St. Jude comentará este acontecimento por muitos anos, Caroline!Myrna afastou-se ainda mais, camuflando-se entre as pregas de uma

cortina de veludo vermelha, como seu vestido. Olhava para ele extasiada, achando-o mais elegante do que qualquer outro homein ali presente.

Assim que Raoul saiu para o terraço, Louise enfiou seu braço no dele e puxou-o para dançar. Myrna viu então que ele dançava muito bem e sentiu-se extremamente insegura, invejando a jovem dona da casa por sua autoconfiança.

Ela estava se afastando um pouco da cortina quando levou um susto, pois um par de mãos tapou seus olhos.

— Peguei! — exclamou Verian. — O que está fazendo aí escondida, menina bonita?

Ela se virou com um sorriso. — Feliz aniversário, Verian! Eu não tive oportunidade de conversar com

você até agora!— Obrigado. Puxa, foi um dia agitado demais, não foi? Preciso reconhecer

que a família se movimentou. Se organizar este tipo de coisas é a única coisa que Lulu sabe fazer, está de parabéns! Está vendo por aí alguém que você conhece?

— Ele estava se referindo a Celeste. — Não, ainda não vi. Raoul ainda dançava com Louise, que irradiava felicidade. Então viram

Celeste. Michael Smith passou com ela nos braços, e a moça olhava para ele como se estivesse nas nuvens. Myrna sentiu que Verian estava muito infeliz.

— Sabe de uma coisa? — disse ele, afastando a tristeza. — Aquele livro que você me deu, Vinte e um Contos de Heroísmo, me fez muito bem. Eu o estava lendo na hora de dormir e simplesmente não consegui parar. Você acha que eu poderia me transformar num herói?

— Acho que sim. Mas o heroísmo necessita da ocasião certa e de uma disposição natural, suponho. Deve haver algo que uma pessoa tenha de vencer dentro de si mesma antes de agir corajosamente. Mas, por favor, não pule no lago para salvar alguém, esta noite. Você está tão elegante!

— Eu gosto como você pula do poético para o prático, linda menina. Venha, vamos dançar.

Era uma música rápida, e Verian mostrou-se um ótimo dançarino. Myrna gostou de acompanhá-lo e viu que lady Vésper os observava com um olhar aprovador. Eles não haviam percebido que aquela era uma dança em que havia troca de pares e riram muito quando o animador ordenou, ao microfone:

— Por favor, damas e cavalheiros, troquem de par agora!Ele repetiu a frase em francês, enquanto o ritmo mudava para uma valsa

e Myrna viu-se momentaneamente sozinha no meio do terraço. Mas logo foi envolvida pelos braços de Raoul de la Rue. De certa maneira, ela não se surpreendeu. Aquilo tinha que acontecer, precisava acontecer. Estivera esperando por aquele momento há muito tempo.

— Raoul! — gritou Louise. — Você virou para o lado errado, Devia ter ficado com Sarah! — Mas ele nem prestou atenção.

A música acabou e Raoul continuou ao lado de Myrna, com um braço

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ainda em volta de sua cintura. — Estive procurando você desde que cheguei — disse ele, e Myrna sentiu

uma alegria quase infantil. — E eu pensei que nunca fosse chegar, doutor — disse ela

impulsivamente. — EU perdi um paciente esta noite. Quase não pude vir. Mas resolvi

aparecer só para ver você, Myrna. — Ele estendeu as mãos e apertou as dela, em silêncio.

Isto deve ser um sonho, ela pensou, um lindo sonho, e não quero acordar, não ainda.

— Venha — disse ele com uma voz quente e terna. Eles se afastaram das luzes e da música e procuraram o jardim de

inverno que estava deserto, na penumbra. — Raoul… quero dizer, doutor, eu…— Myrna, por favor, ouça o que tenho a dizer. Venho tentando vencer um

sentimento que você pode achar até absurdo, mas não consigo. E acho que vou estourar se não confessar que estou irremediavelmente apaixonado por você, e me torturo cada vez que a vejo. Está chocada? Eu detesto a mim mesmo por aborrecer você,-mas a verdade é que… que eu a amo!

Myrna tinha a impressão de que sinos tocavam no céu. Sentia-se flutuar. Uma declaração de amor conseguira afetá-la mais que qualquer outra

coisa,e ela mal sabia o que dizer, e como dizer. — Mas eu não estou aborrecida, Raoul! Ao contrário! Sinto-me

incrivelmente feliz! Sempre senti a mesma coisa por você, mas nunca pensei que soubesse que eu existia. Se eu tivesse suspeitado…

— Myrna, você está dizendo.…Ela levantou as mãos e enlaçou a cabeça morena que, sem hesitação,

curvou-se sobre a dela e tocou seus lábios, a princípio suavemente, como a brisa, e depois com firmeza. Enquanto se beijavam, nada mais existia para eles, nem música, nem gente, somente o amor profundo que os unia.

Myrna encostou-se em Raoul, sentindo o pulsar violento e selvagem daquele coração apaixonado.

— Myrna. não consigo acreditar que você também me ama! Precisa me dizer outra vez, de dia, amanhã de manhã. Estou tão feliz! Não pode ser verdade!

Ela pressionou novamente seus lábios contra os dele, também mal acreditando que aquilo estava realmente acontecendo. De repente, uma voz ferina quebrou o encanto.

— Quem está se escondendo aqui? — A luz foi acesa e imediatamente apagada. — Desculpem! — O tom era insolente. — Vocês deviam ter usado a chave. Há uma na fechadura.

— Essa xereta da Louise! — disse Raoul, irritado. — Ela não passa de uma menina rebelde!

— Que também está apaixonada por você. — E Verian? Ele costuma beijá-la, não é? — Está falando sobre ontem à

noite?— Falo de ontem à noite sim, e também de uma outra vez. Eu sou muito

ciumento, sabia?— Não precisa ter ciúmes de Verian, doutor! Na noite passada eu deixei

que me beijasse porque estava infeliz e solitário. Mas não foi um beijo de amor. E ontem eu não sabia sobre você.

Eles tinham muita coisa para falar, mas Louise tinha estragado o

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ambiente. Raoul parecia nervoso e preocupado. — Não posso mais ficar aqui, Myrna, quando tudo que desejo é amar

você. Não podemos nos esconder no escuro por mais tempo. Amanhã contarei a todos e faremos nossos planos.

— Não, Raoul, não tão depressa, por favor. Vamos manter o segredo entre nós dois por mais alguns dias, até que eu prepare o ambiente e as pessoas aqui no castelo.

— Como quiser, minha adorada. Bem, então vou me despedir e voltar para a casa da família enlutada. Acho que a esposa de meu paciente vai precisar de um sedativo ainda esta noite. Eles eram muito unidos. Como você e eu seremos. Então, boa noite e até amanhã, chérie!

Ela ainda tentou detê-lo, tentou não ter medo de que alguma coisa pudesse acabar quando ele partisse, tentou convencer-se de que aquilo não era um sonho do qual poderia acordar. Não havia nada mais valioso que o amor de Raoul. Nada.

CAPÍTULO X

Depois que Raoul a deixou, Myrna ainda ficou na penumbra do jardim de inverno, recobrando a calma. Sentia que, depois daqueles momentos sagrados de amor, seria difícil voltar ao mundo real, conversar com as pessoas. De repente, parecia que só aquilo lhe dava forças e razão para viver. E isso a deixava assustada, apreensiva, insegura. Sentia-se como uma menininha, com o nariz colado à vitrine de brinquedos, adorando diariamente a linda boneca sem acreditar que algum dia ela seria sua. Mas agora a boneca estava em seus braços, e sua felicidade mesclava-se com confusão e medo. Medo de deixá-la cair. De perdê-la. O brinquedo não estava mais protegido pela vitrine. Agora estava sob sua responsabilidade, e isto a aterrorizava.

O medo da perda quase fez desaparecer a felicidade da posse. Raoul a amava. Parecia mentira! Raoul a amava! Talvez ele tivesse lutado contra seus sentimentos, a princípio, por não querer dar a outra o que tinha sido de Yvonne. Myrna sentiu-se emocionada ao pensar nisso, e prometeu a si mesma nunca ter ciúmes de Yvonne e do amor que um dia ele lhe devotara. O passado não importava. O presente e o futuro estavam em suas mãos.

Ela sabia que tinha que voltar à festa, por mais que desejasse ficar sozinha e sonhar, sonhar para sempre! Mas ainda era a enfermeira de lady Vésper, e já era tempo de ver como estava passando sua paciente.

Para se recompor, deu antes uma volta pelos jardins do castelo, pelos caminhos que conhecia tão bem. Suas sandálias leves mal faziam barulho, e ela deu um encontrão em dois homens que estavam conversando baixo, em francês. Achou que deveriam ser convidados, provavelmente procurando um canto isolado para fumar e conversar.

— Pardon, mademoiselle, espero que não a tenhamos assustado — disse um deles.

— Absolutamente! — foi a resposta, e Myrna seguiu seu caminho, sentindo-se ofuscada ao entrar no recinto fartamente iluminado.

— Está se divertindo muito? — perguntou lady Vésper. — Demais, obrigada!Louise, que estava perto, deu uma risadinha e se afastou. — Louise está com dor de cabeça — explicou lady Vésper. — Foi um dia

árduo para todos nós.

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À meia-noite, sir William pediu a atenção de todos e fez um discurso em homenagem a Verian. Todos beberam à saúde do rapaz e cantaram em sua homenagem. Verian, que tinha bebido muita champanhe e estava sentimental, respondeu à saudação:

— E agora, senhoras e senhores, o que inclui a minha querida família, eu tenho uma comunicação a fazer… — Calou-se, fez um gesto com as mãos e Celeste apareceu ao lado dele, maravilhosa num vestido verde-escuro de cetim, que combinava com seus cabelos ruivos, cor-de-cobre, e com seus olhos verdes. — Estávamos comemorando ,um aniversário, e agora vamos comemorar também um noivado…

Ouvindo um ruído estranho, Myrna olhou para lady Vésper e viu que ela havia sofrido um colapso. Correu até ela e tomou sua pulsação. Estava quase imperceptível e, através dos lábios descorados, a doente ainda balbuciou:

— Oh, Verian! Como pôde?Mas, na verdade, Verian tinha sido somente descuidado. Ao anunciar o

noivado de Celeste, tinha demorado um instante para juntar o nome de Michael ao dela, causando à mãe um choque que poderia ter posto um fim à sua vida.

Myrna lembrou-se de que tinha consigo algumas ampolas de coramina que Raoul lhe dera e que ainda não tinham sido usadas. Felizmente, era suficientemente bem treinada para ter trazido uma delas, juntamente com a agulha hipodérmica, em sua bolsinha. Aplicou imediatamente a injeção e sentiu, pelo pulso, que sua paciente voltava lentamente à vida.

O tom azulado sumiu dos lábios de lady Vésper, que suspirou e olhou à sua volta. Myrna, sir William e alguns amigos tinham feito um círculo em torno dela, e, assim, ninguém havia percebido o que se passara.

— O senhor poderia levá-la para o quarto? — pediu ela a sir William. Imediatamente ele tomou a esposa nos braços e a carregou até o quarto.

Marie, que estava cochilando numa cadeira, logo ajudou Myrna a tirar as jóias e as roupas de lady Vésper, enquanto Louise foi telefonar a Raoul.

— Quando o dr. de la Rue vier, por favor, diga a ele para tomar conta de minha mãe — disse Louise com arrogância e cerimônia, saindo do quarto.

Myrna não respondeu. Estava ocupada demais, tentando fazer com que lady Vésper compreendesse o mal-entendido.

— Eu pensei que tivessem combinado tudo em segredo — confidenciou ela a Myrna — e que Verian havia apenas esperado o dia de seu aniversário para me enfrentar. Eu me prejudiquei inutilmente não foi? Estou tão envergonhada!

— Acho que a senhora já teve muitas emoções para um só dia afirmou Myrna.

— Espero não ter estragado as coisas para aqueles dois jovens. — Não, eles nem perceberam. Felizmente eu estava perto e notei tudo a

tempo. A festa continua, e são poucas as pessoas que sabem o que houve. Mas agora fique quietinha e descanse. O dr. de la Rue deverá chegar logo.

Quando Raoul de la Rue chegou, não deu a perceber que havia alguma coisa especial entre eles, e Myrna aprovou esta atitude. O quarto de uma mulher enferma não era o lugar apropriado para a troca de olhares; naquele instante,, a paciente era a única coisa que importava. Louise, que acompanhara Raoul até a suíte, estava alerta para qualquer gesto ou sinal de emoção e, como não visse nada, acabou ficando em dúvida sobre o que vira no jardim de inverno.

Felizmente, lady Vésper tinha reagido melhor do que se esperava. Tomou

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alguns sedativos e foi acomodada para dormir, com instruções para não deixar a cama no dia seguinte.

Raoul partiu, ainda acompanhado de perto por Louise, e Myrna arrastou uma espreguiçadeira para junto da cama da doente, preparada para passar a noite ali, tão vigilante quanto possível.

Quando lady Vésper acordou, cerca de sete horas da manhã, a primeira coisa que viu foi a enfermeira no seu quarto.

— O que está fazendo aí de pé, ainda vestida, depois de uma noite de festa?

— Estive aqui a noite toda, lady Vésper, tomando conta da senhora. Está se sentindo melhor hoje?

— Estou, minha querida, e obrigada por tudo. Agora, você deve ir descansar um pouco, Marie logo estará aqui, e pode me ajudar. Prometo não sair desta. cama sem a sua ordem; portanto, descanse em paz.

Myrna foi para o quarto ao lado, onde, exausta, caiu na cama e adormeceu em questão de minutos. Mas foi acordada rudemente, depois de algum tempo, por Marie, que lhe disse para ir falar imediatamente com lady Vésper.

Pensando que sua paciente tivesse tido outro colapso, Myrna levantou-se depressa, vestiu o roupão e foi até lá, o sono desaparecendo completamente.

Lady Vésper a olhou com aqueles orgulhosos olhos azuis. Sir William, Verian e Louise também estavam no quarto, olhando para ela, desconfiados.

— O que foi que aconteceu? — perguntou, espantada. — O que acha que poderia ter acontecido? — replicou Louise, mas Verian

a fez calar-se. — Você confirma que passou a noite toda em meu quarto, enfermeira? —

perguntou lady Vésper. — Sim, sim! Passei sim. Por quê?— E ficou acordada?— O tempo todo. Lá pelas quatro horas senti sono e tomei uma xícara de

café, que me despertou. Por quê? Aconteceu alguma coisa?— Minha caixa de jóias desapareceu. Marie garante que ainda estava

aqui quando ela saiu, a noite passada. Com toda a confusão da festa, a caixa ficou em cima da mesinha em vez de ser colocada no cofre. E sumiu. Espero que tenha alguma explicação a dar, enfermeira.

— Não, sinto muito, mas não tenho. — Myrna sentia-se abalada, mas mesmo assim tentou lembrar-se da última vez em que vira a caixa. — Não me lembro de tê-la visto ontem à noite, quando entramos aqui. Acho que me lembraria se a tivesse visto, mas na verdade, não estava preocupada com ela.

Lady Vésper interrogou novamente Marie, que começou a chorar e a se defender, muito nervosa.

— Ela insiste em que a caixa estava aqui quando saiu. Conheço Marie há muitos anos e me recuso a desconfiar dela. Tem certeza de que mais ninguém entrou aqui além de você, enfermeira?

— Ninguém, senhora. — Bem… — Lady Vésper estendeu para ela o colar de ametistas —, ainda

me resta este, que você achou tão lindo!— E se tivesse me escutado, mamãe, em vez de dar ouvidos à

enfermeira Hope, teria usado seus diamantes e ainda estaria com eles. Não sei como pôde deixar que alguém a influenciasse tanto!

— Acho melhor informarmos a polícia — resolveu sir William. Felizmente tudo estava no seguro, meu amor, mas temos que agir como manda a lei.

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— Não acha que devíamos revistar todos antes? — sugeriu Louíse. — Quem não for culpado, não vai se negar.

— Nada disso, Louise. A polícia fará o que for necessário. Pode ir agora, enfermeira Hope, mas ficará em seu quarto aqui ao lado, não é?

— Estarei às suas ordens senhora — respondeu Myrna, esforçando-se para manter a calma, pois percebera que a família estava se controlando, tentando não acusá-la abertamente de estar envolvida no roubo das jóias.

Agora, ela não tinha condições de dormir outra vez. Vestiu-se, pensando se deveria continuar ou não a desempenhar suas atividades normais, uma vez que era a suspeita número um.

Uma hora depois chegava uma dupla de detetives, com mais dois investigadores que tinham estado em serviço durante a festa. Fecharam-se com a família Vésper durante algum tempo, e Myrna foi a primeira a ser chamada. Um dos detetives estava segurando um anel, com uma pedra enorme, uma esmeralda, embrulhada num pano branco de algodão,

— Sabe alguma coisa sobre isto, enfermeira?— Não, não sei — respondeu ela, apreensiva. — Foi encontrado em seu quarto. A empregada o achou quando estava

fazendo a limpeza. É uma das jóias de lady Vésper.

CAPÍTULO XI

Mais uma vez a família Vésper olhou, desconfiada, para a jovem enfermeira. Louise deu um risinho maldoso.

— Gostaria de dizer que acho melhor que este assunto fique somente entre nós — pediu lady Vésper. — Temos hóspedes que poderiam sentir-se aborrecidos e embaraçados com tudo isto, e gostaria de não envolvê-los com a polícia. Eu não agüentaria um escândalo. Tenho certeza de que isto não passou de um roubo feito por pessoas estranhas, que alguém entrou no quarto enquanto a enfermeira cochilava e que ela terá uma boa explicação para a presença de meu anel em seu quarto. Talvez a enfermeira Hope o tivesse tomado emprestado. Talvez eu até lhe tenha dito para usá-lo. Estou mesmo um pouco confusa.

Lady Vésper olhou encorajadoramente para Myrna que a encarou muito séria.

— A senhora não me deu permissão alguma para que eu “usasse” o seu anel ou qualquer de suas jóias, lady Vésper — respondeu com firmeza. — E não tenho nenhuma explicação para a presença do anel em meu quarto. Quem sabe o resto das jóias está lá, escondido debaixo do colchão?

— Calma, Myrna! — exclamou Verian, muito sem jeito. — Ninguém está acusando você.

— Não mesmo? Pois não é o que parece. — Ora, se eu tivesse passado a noite perto das jóias, e depois uma delas

tivesse sido encontrada em meu quarto, também pensaria que estava sendo acusada — disse Louise. — Acho que depende somente de você, enfermeira Hope, explicar tudo isto.

— E, enquanto ficam esperando — respondeu ela, irritada —, os verdadeiros ladrões estão fugindo com as jóias. Vocês todos estão acreditando demais nas palavras de Marie. Ela está ficando velha, adormece com muita facilidade, e quase nem percebe isso. Quando nós trouxemos sua mãe aqui para cima ontem à noite, Marie estava dormindo e levou um susto. Naquela

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hora, ninguém estava preocupado com as jóias, e é possível que elas já tivessem desaparecido. E agora me lembro que vi dois homens atrás do castelo um pouco antes da meia-noite.

— Então a senhorita estava dando uma volta atrás do castelo um pouco antes da meia-noite, certo? — disse um dos detetives.

— Sim. Fui dar uma volta. Achei esquisito que os dois estivessem ali no escuro, mas…

— Mas não achou esquisito que a senhorita também estivesse lá, certo?— Não, não achei. — Talvez não estivesse só, senhorita. Myrna mordeu os lábios, sem saber o que responder. — Estava só quando eu vi os dois homens. Eles conversavam na parte de

trás do castelo. Estavam até olhando para cima. — Vai ver que eles subiram pelas paredes! — exclamou Louise,

impaciente. — Vamos ficar nos fatos, pelo amor de Deus! Não se esqueça de que eu a vi no jardim de inverno e de que não estava só. Por que esconder o que realmente estava fazendo?

— Eu não estou dizendo mentiras!— Você esteve no jardim de inverno com alguém? — perguntou lady

Vésper. Myrna sentiu-se encurralada. Não queria envolver o nome de Raoul em

tudo aquilo. — Vá em frente! — insistiu Louise. — Não se acanhe! Quem era o

felizardo, enfermeira Hope? Não seja tão tímida. Nós todos aqui temos mentalidade aberta.

— Não acho que a identidade de meu acompanhante tenha algo a ver com este interrogatório. Gostaria de dizer o nome dele, Louise? Tenho certeza de que ele apreciaria sua falta de tato.

— Crianças! — interrompeu lady Vésper, que estava corada, e agora divertia-se imensamente com tudo aquilo.

— Oh mamãe! Pobre mamãe!Pensa que sua enfermeira é uma pobre inocente, mas ela bem poderia ter introduzido um cúmplice aqui durante a noite. Eu a vi no jardim de inverno, mas não reconheci o seu acompanhante. Quando acendi a luz, ele estava de costas para mim e, como a cena era um tanto embaraçosa, eu a apaguei imediatamente. Não afirmo que ela seja uma criminosa, mas sabe muito bem o que as moças podem fazer quando estão apaixonadas.

— Não fale uma coisa destas, Lulu! — disse Verian subitamente, ao perceber a confusão e o abatimento de Myrna. — Eu era o misterioso cavalheiro que estava com Myrna ontem à noite, e ela não está apaixonada por mim. Eu a obriguei a me abraçar. Estava um pouco bêbado e, como sempre, ela estava sendo paciente, tentando me convencer a voltar para os meus convidados. Agora, me acuse de ter roubado as jóias de mamãe!

Ele olhou, rindo, para a irmã, que, furiosa, o esbofeteou. — Verian seu idiota! Você agora estragou tudo. Você… Lágrimas de frustração escaparam dos olhos de Louise ao perceber que

agora não poderia mais falar no nome de Raoul sem admitir que tinha mentido: queria que a própria Myrna desse a informação, para que ele se sentisse humilhado ao saber dos fatos. Agora, ela odiava a ambos. E a tal ponto que se o nome dos dois aparecessem nas notícias dos jornais, ligado a um escândalo como o do roubo das jóias, Louise ficaria feliz. Porque eles acabariam se desentendendo e aquele maldito caso teria fim. Sabia que Raoul odiaria ver a

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sua intimidade invadida, e Verian tinha usado uma arma poderosa para impedir que isso acontecesse.

— Nós chamamos estes homens aqui — disse sir William, apontando para os detetives, que estavam observando a briga entre os dois irmãos — para que resolvessem o caso. Quem se importa com o que aconteceu no maldito jardim de inverno? Todos nós já fomos jovens um dia.

— Concordo — disse um deles, sorrindo. — A senhorita Hope pode nos deixar agora.

— Está bem — respondeu Myrna e caminhou, furiosa, para a porta. — E não comente este caso com ninguém! — Lady Vésper ainda gritou

para ela. — Posso ir também? — perguntou Verian, esfregando o rosto vermelho.

— Vou ficar quieto também, mamãe. O detetive concordou e Verian piscou para Myrna antes de sair,

deixando-a profundamente agradecida, apesar de triste, pois a afirmação dele para ajudá-la fora uma mentira. Se aquele caso chegasse à Justiça, ele teria que se retratar e contar a verdade. Quem sabe, com alguma sorte, os ladrões seriam encontrados e as pessoas da casa não teriam que passar por nenhum interrogatório?

Louise estivera ansiosa por envolver o nome de Raoul no caso, e Myrna não entendia por quê. Ela tentou protegê-lo e deixá-Lo fora de tudo. Sabia que ele odiaria que lady Vésper soubesse por outras pessoas que estavam apaixonados, e que o próprio Raoul fazia questão de contar tudo à família, depois que a data do casamento estivesse marcada. Era assim o temperamento dele, e Myrna sabia disso. Não entendia como Louise, estando apaixonada por ele, quisesse prejudicá-lo.

Sir William também havia saído, pois precisava dar atenção ao hóspedes, muitos dos quais se preparando para deixar o castelo procura de diversões em outros lugares.

Myrna foi deixada em companhia de sua paciente e dos detetives, imaginando o que aconteceria em seguida, sentindo grande apreensão. Se os verdadeiros ladrões nunca fossem apanhados, ela estaria eternamente sob suspeita. Louise, com certeza, iria fazer de tudo para não deixá-la impune.

— Monsieur le superintendent? — disse lady Vésper, puxando Myrna para perto de si e segurando o ombro da moça. — Quero declarar aqui que tenho toda confiança na enfermeira Hope. Eu, realmente, pensei que pudesse ter emprestado o anel, mas, se ela disse que não, acredito nela. O senhor deve procurar os verdadeiros culpados. E bem depressa.

— Sim, madame. Existe algum lugar onde possamos conversar a sós com mademoiselle?

Lady Vésper indicou o próprio quarto de Myrna e a jovem foi para lá em companhia dos dois investigadores. Ficou um longo tempo tirando impressões digitais, seu depoimento sendo tomado, checado e rechecado. Os policiais estavam interessados nos dois homens que 1 10

Myrna tinha visto pois embora estivesse escuro, ela talvez pudesse dar uma idéia de como eles eram.

— Peço que não se afaste do castelo de lady Vésper, mademoiselle, pelo menos por enquanto — sugeriu o mais velho dos investigadores. — A senhorita foi de muita utilidade, mas poderão surgir outras dúvidas e precisamos saber onde encontrá-la. Por favor, obedeça às nossas ordens para que não tenhamos que prendê-la.

— Prender-me, monsieur? — perguntou ela. — Está querendo dizer que

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sou suspeita de ser cúmplice neste roubo?— Não seja tão severa conosco, mademoiselle. Somos policiais e não

devemos ser sentimentais. Tenho certeza de que as coisas acabarão bem e que logo tudo será explicado. Mas as circunstâncias, a senhorita deve concordar, não estão a seu favor. Uma das jóias foi encontrada em seu quarto por uma mulher que não tinha idéia do valor da peça e, se fosse desonesta, poderia tê-la guardado para si.

O outro policial continuou:— Foi pelo seu quarto que os ladrões entraram e saíram. Será que

tinham algum entendimento com a senhorita? Naturalmente, a senhorita diz que não. Por enquanto devemos somente tomar nota dos fatos. Iremos estudar nossos arquivos e ver se conseguimos identificar os dois homens que viu. Eu, como homem e como pai, diria: Não tema, minha filha, se for realmente inocente deste crime, mas como policial eu lhe digo apenas: espere.

Sentindo-se abalada com o que ouvira, Myrna voltou para perto de lady Vésper.

— Suponho que eles lhe tenham contado que devo ficar confinada no castelo — disse ela amargamente. — Eu já me sinto como uma criminosa, e vou acabar me sentindo culpada se isto durar mais um pouco!

— Não seja tola, minha querida. Confesso que a princípio pensei que pudesse ser culpada… por descuido. Você poderia ter adormecido e estar com medo de confessar. Mas logo percebi que estava falando a verdade, e insistindo nela. Quanto à pobre Marie, mudou a história pelo menos meia dúzia de vezes. Ah, Raoul veio me ver enquanto você estava aí ao lado, com a polícia. Espero que não se importe, mas eu disse a ele que tinha saído. Não quis contar o que havia acontecido. Não há necessidade de que mais ninguém saiba disto.

Foi um choque ouvir o nome de Raoul. De algum modo, Myrna havia evitado pensar nele e em tudo que tinham representado um para o outro naquele tempo tão curto e tão doce. Ela havia visitado o paraíso, mas agora estava vivendo num inferno, onde as pessoas a atacavam, acusando-a e deixando-a mercê dos acontecimentos. Era horrível, e ela ainda não conseguia acreditar que estivesse tão envolvida naquele pesadelo. De certo modo, gostaria que Raoul soubesse de seu drama, gostaria de ter dele o apoio, a força e a compreensão; mas, por outro lado, sentia-se aliviada por Raoul desconhecer toda aquela humilhação. Imagine se ele, por um instante, desconfiasse dela. Como conseguiria sobreviver, depois disto? Estar apaixonada por uma pessoa era uma coisa, mas conhecer o caráter desta pessoa era outra, completamente diferente.

— Eu ainda continuo como sua enfermeira, lady Vésper? Não precisa, se não quiser. Peço que me diga com franqueza.

— Minha querida, mas lógico que continua sendo a minha enfermeira! Tenho toda confiança em você. Não me ouviu dizer isto à polícia?

— Mas não pareceu impressioná-los. Eles ainda querem que eu fique à disposição, para outros interrogatórios.

— Oh, isto é só jargão policial. E deve admitir que ficar passeando lá fora, a noite passada, e permitir a Verian certas liberdades, foram coisas que me deixaram muito surpresa, enfermeira.

Lady Vésper estava sorrindo, mas Myrna não. — Seu filho não estava comigo no jardim de inverno, senhora. Ele viu que

eu estava numa encrenca e quis me ajudar. E não tenho intenção de revelar quem estava comigo, não importa o que aconteça.

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Depois desta confissão, Myrna sentiu-se aliviada porque lady Vésper não a pressionou mais.

— Havia vários rapazes atraentes na festa — disse ela —, e você estava realmente muito linda de vermelho. Mas por que Verian ficou tão solidário de repente? Até parece que ele anda lendo alguma história sobre heróis. — Myrna sorriu, apesar do desespero. — Ele sempre se influencia pelas coisas que lê. Depois de ler O Médico e o Monstro era capaz de estar um anjo na hora do café e um diabo na hora do jantar!

Apesar de tudo, o tempo la passando rapidamente. Myrna sempre achara a suíte da sua paciente extremamente grande e confortável mas, agora, tinha a impressão de que as paredes a abafavam, e algumas vezes sentia um desejo quase irresistível de fugir, correr ao ar livre. Mas limitava-se a abrir um livro, embora não conseguisse se encontrar na leitura. Observava o lindo dia de verão com ansiedade e tristeza.

Naquele dia, os detetives voltaram logo depois do almoço e mais uma vez se fecharam no quarto com Myrna. Desta vez, tinham trazido fotos de marginais, conhecidos como ladrões especializados; e, quando a moça separou dois dos retratos, o inspetor pareceu muito animado. Submeteu-a a mais um teste. Ela havia escutado os homens falando em francês. A França, como a Inglaterra, era dividida em distritos, cada um deles com seu dialeto e seu sotaque. Por isso, um jovem detetive começou a recitar poemas em vários dialetos, e Myrna, de costas, deveria avisar qual deles lhe era mais familiar. Ela apontou três, e o superintendente explicou-lhe que havia reconhecido o sotaque mais aristocrático.

— Obviamente, estes homens, ou pelo menos um deles, têm muita cultura.

— Ele também falou num inglês tão perfeito que eu também já tinha pensado nisso — disse Myrna, já cansada de tudo aquilo. — O senhor não esperava que qualquer um pudesse se misturar aos convidados, não é?

— Tenha um pouco mais de paciência conosco, mademoiselle. Estes homens que apontou nas fotos costumam trabalhar juntos, o que a senhorita não poderia saber. O mais alto é a ovelha negra de uma ótima família. O outro é a parte profissional da dupla. Consegue se meter em um cano e sair por ele, se for necessário. — Alguém bateu à porta. — O que é?

— Estão querendo falar com mademoiselle ao telefone. — Eu espero — disse o inspetor. A chamada fora transferida para o quarto de lady Vésper, e Myrna sabia

que alguém poderia estar escutando na extensão. — Myrna? — perguntou a voz inconfundível de Raoul. — Onde esteve

estes dias? Está fugindo, ou é impressão minha?— Como vai? — respondeu ela, sabendo que lady Vésper estava ali, ao

lado, e que os detetives a escutavam pela porta aberta. Provavelmente um deles estava gravando a ligação, pois teve a impressão de ouvir um ruído diferente. — Dr. de la Rue? Em que posso ajudá-lo? Quer falar com lady Vésper? — Do outro lado houve uma pausa.

— Myrna? — perguntou Raoul intrigado — É você mesma?— Sim, aqui é a enfermeira Hope. — Oh! Você não está só, minha querida. Gostou de me ouvir dizer

“querida”? Estou praticando. Bem, escute então: pode vir até aqui tomar chá, esta tarde?

— Sinto muito… mas não posso. — Por que não?

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— É impossível, doutor. — Está querendo me dizer que vai sair com outra pessoa?— Tenho outro compromisso. Realmente é impossível, doutor. — Mas que diabo você quer dizer com… impossível? Você me ama ou

não?Myrna sentiu um aperto no coração. — É só, doutor? Vou continuar com as injeções, como antes. — Recolocou

o fone no gancho sem dizer mais nada, sem ousar imaginar a expressão no rosto de Raoul.

Foi levada pelos investigadores até a delegacia local para fazer uma declaração oficial e assiná-la. Enquanto isso, um Raoul furioso chegava ao castelo pela segunda vez num mesmo dia.

— Onde está a enfermeira Hope? — perguntou a lady Vésper, tomando automaticamente seu pulso e percebendo que estava muito mais acelerado do que nos outros dias.

— Ela saiu, Raoul querido. — Mas ela também saiu de manhã!— Por que não, meu caro? Não mantenho a garota prisioneira aqui. Lady Vésper vacilou, pensando se contava ou não o segredo ao médico,

mas acabou decidindo calar-se. Ela mesma havia pedido discrição a todos e, assim, não deveria quebrar o sigilo. Teve a impressão de que Raoul estava aborrecido, mas não quis ser indiscreta.

— Vou voltar para casa, para fazer companhia à minha mãe. — Ah, como vai ela?— Levou um tombo feio esta manhã. Felizmente não quebrou nenhum

osso, mas está muito abalada. Imagine que voltou a enxergar!— Que maravilha! Realmente é maravilhoso! Estou feliz por você!— Mas pode não durar. Fomos aconselhados pelo médico que cuida dela

para não termos muitas esperanças. Por outro lado, a queda pode ter-lhe devolvido para sempre a visão. Tudo isto poderá interessar à enfermeira Hope, do ponto de vista profissional. A senhora poderia lhe contar?

— Contarei, meu rapaz. Diga à sua mãe que lhe envio meus parabéns. Deve trazê-la para me visitar o mais cedo possível.

Myrna já tinha voltado há algum tempo, quando lady Vésper lembrou-se do recado.

— Raoul esteve aqui duas vezes, hoje. Ele parecia aborrecido. E disse que talvez você estivesse interesse em saber que a mãe dele… ela era cega, você sabia? Pois sofreu uma queda e recobrou a visão.

— Que bom! — exclamou ela, pensando que, pelo menos, alguma coisa boa acontecera desde o roubo. — Gostaria de ir até lá para lhe dar um abraço, ver como está.

— Bem… acha que pode?— Sair? O que a senhora acha? Eles me disseram para ficar de prontidão

como antes. Droga! Pois eu vou! A senhora poderá lhes dizer onde estou, lady Vésper.

Mas, quando Myrna estava saindo pelo portão, um homem saiu detrás de uns arbustos e a abordou:

— Ou allez-vous, mademoiselle?Ela disse, mas o homem lembrou-a de que estava quebrando a palavra e

deveria retornar à casa. Monsieur le docteur poderia ser avisado pelo telefone, acrescentou ele. Myrna obedeceu, contrafeita, e notou que havia um policial à

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paisana postado na porta de seu quarto. Começou a sentir-se prisioneira numa solitária. Tentou ligar para Raoul enquanto lady Vésper dormia. Ouviu Louise conversando com alguém, bloqueando a linha. Ligou mais tarde e não obteve resposta. Foi informada de que, naquela noite, outro médico estava recebendo os chamados destinados a Raoul. Resignou-se e foi dormir.

No dia seguinte, um domingo, Raoul não apareceu no castelo. O outro médico ainda estava recebendo as chamadas destinadas ao dr. de la Rue, e era evidente que, se alguém desejasse falar com ele, teria que ir até a sua casa. E, provavelmente, Raoul esperava que Myrna fizesse isso.

Que encrenca terrível! Se ao menos ela pudesse explicar por que não podia pôr os pés para fora da casa! Mas prometera manter segredo até tudo estar esclarecido e sabia que devia honrar a sua palavra.

Myrna tinha permissão para passear pelo jardim, mas um policial seguia todos os seus passos. Myrna resolveu perguntar a ele se poderia visitar um amigo, e recebeu como resposta um delicado, mas firme, “não”.

Myrna sentiu-se aliviada quando a segunda-feira amanheceu. Aquele era um dia em que alguma coisa poderia ser feita e os acontecimentos se precipitariam outra vez. O superintendente visitou-a novamente, para dizer que a qualquer momento os ladrões tentariam passar adiante o produto do roubo e ela poderia ser inocentada.

— Sir William está oferecendo uma recompensa tão grande por qualquer informação, que não acredito que ela demore — conto ele. — E, se forem agarrados, a senhorita também receberá um parte da recompensa.

— Não quero nada! — respondeu ela, zangada. — Tudo isto foi bastante humilhante, e não preciso de nenhuma recompensa. Que idéia!

Para alívio de Myrna, chegaram várias cartas, e uma delas era da enfermeira-chefe do hospital onde Myrna esperava trabalhar quando voltasse.

Peço que confirme se poderá começar a trabalhar como chefe da enfermaria de doenças cardíacas no dia 25 de setembro, como tínhamos combinado. Espero sua resposta dentro de uma semana, pois, se por acaso mudou de planos, terei tempo de tomar outras providências.

Mais uma vez, Myrna entrou em pânico. O que poderia dizer à enfermeira-chefe sem, antes, conversar com Raoul? Era tudo uma incrível confusão!E será que o hospital ainda a receberia, se toda aquela história não estivesse,esclarecida?Todo o seu futuro parecia estar em suspenso, mas a vida continuaria, talvez com bons empregos como aquele, para chefiar uma enfermaria num ótimo hospital.

Teria que responder à enfermeira-chefe, mas… o quê? Sim ou não? Tudo dependia de Raoul, e parecia que já tinham se passado anos desde que ele a envolvera nos braços e lhe dissera todas aquelas palavras apaixonadas.

Aquele completo silêncio tinha um ponto positivo. Talvez o amor dele tivesse esfriado e o raciocínio tomado seu lugar. Será que ambos ainda sentiam a mesma coisa um pelo outro, com um destino tão cruel colocando barreiras e dificultando o amor entre eles?

Será que o amor sobreviveria àquela separação e a todo aquele desencontro?

Myrna duvidava. Nunca estivera tão desesperançada em toda sua vida, e acreditava que seu caso pudesse ter um final feliz.

CAPÍTULO XII

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Raoul entrou no quarto de lady Vésper e sequer se dignou a olhar para Myrna. Seu rosto estava sombrio e arrogante, seus olhos demonstravam frieza e indiferença. Magoado e ferido, ele tentava esconder a todo custo seus sentimentos, sua raiva, sua dor. Não, ele não iria deixar transparecer o inferno em que tinha vivido nos últimos dias. Dias de ansiedade, apreensão, dúvida e medo.

Ele passara exatamente esses dias esperando que Myrna o procurasse, telefonasse, tentasse explicar o que estava acontecendo, por que o havia tratado tão friamente ao telefone e por que, simplesmente, o evitara depois daqueles belos momentos de amor. Ela desprezara esses momentos, desprezara esse amor. Talvez tivesse ficado assustada com a perspectiva de jogar a sua juventude num casamento que implicaria viver numa terra estranha, e assumir uma nova forma de vida. Mas… por que ela não o procurara para dizer pelo menos isso? Para explicar por que não o queria mais?

Raoul resolvera não atender ao telefone naquele fim de semana de propósito. Esperava que Myrna o procurasse pessoalmente, que tudo continuasse do lugar onde tinha parado: daquela noite no jardim de inverno, que agora parecia tão distante… Mas Myrna não o procurava. Nem mesmo se interessava pela saúde da velha sra. de la Rue, de quem gostara, e com quem passara horas de infinita ternura. Não, Myrna sequer se importara com o fato de a velha senhora voltar a enxergar o mundo que tanto amava, não se importara com absolutamente nada. Desprezara a tudo e a todos sem explicações ou justificativas, e a única pergunta que Raoul se fazia era: por quê?

Mas ele não iria exigir nada. Não iria se humilhar ainda mais fazendo-lhe perguntas ou exercendo qualquer tipo de pressão. Se ela quisesse dizer alguma coisa, que o fizesse por vontade própria.

Assim, Raoul evitava inclusive o olhar suplicante de Myrna. Fechara-se em si mesmo, em suas defesas, e escondia-se de seus próprios problemas, conversando animadamente com lady Vésper, fazendo-a rir a todo instante com seus casos e anedotas. Era como se Myrna não estivesse presente. Ele evitara olhar para ela inclusive nos momentos em que precisava da ajuda profissional da enfermeira.

Myrna sofria em silêncio. Queria lhe falar, explicar a Raoul tudo que se passara, dizer que vivera um pesadelo e que precisara terrivelmente dele naqueles momentos cruéis, mas que não pudera fazer nada porque estava detida. Porque um acaso infeliz jogara sobre ela dolorosas suspeitas. Porque estava sendo controlada pela polícia. Mas como poderia explicar qualquer coisa àquele homem que parecia ter se esquecido das juras de amor que lhe fizera? Por que haveria de se explicar a um estranho? Estava tudo acabado, e o melhor que tinha a fazer era aceitar este fato, escrever à enfermeira-chefe confirmando que assumiria o posto no St. Oswald, deixando a França para,sempre.

— Como está passando sua mãe, Raoul? — perguntou lady Vésper. — Sim, como vai ela? — emendou Myrna, infeliz. O médico pensou que aquele ar tristonho e infeliz da moça fosse causado

pelo embaraço que ela devia estar sentindo, por não ter demonstrado nenhum interesse pelo assunto antes. Olhou-a de relance e voltou sua atenção para Caroline Vésper.

— Ela está bem melhor — respondeu. — Um oftalmologista a examinou e disse que ela vai enxergar normalmente, mas precisará de óculos. Mamãe está feliz, lady Vésper, muito feliz.

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— E tenho certeza de que você está radiante! — exclamou ela, e Myrna, que se sentia completamente inibida, repetiu:

— Sim, deve estar radiante. — Acredito que sua estadia aqui está chegando ao fim, não é, enfermeira

Hope? — disse ele, com descaso aparente. — É verdade — foi lady Vésper quem respondeu, enquanto Myrna

hesitava. — Prometi a Hugo Merhn-Smythe que a mandaria de volta, sã e salva, durante esta semana. Mas a enfermeira Hope ainda nào está em condições de ir, não é, querida?

O olhar da jovem senhora advertiu-a de que não deveria dizer nada mais do que fora dito.

— Mais… mais alguns dias — balbuciou ela, os olhos fixos no chão. — Bem, senhoras, preciso fazer mais algumas visitas. Será que vai

querer uma carona até a cidade?Desta vez ele olhou diretamente para Myrna e ela enrubesceu

imediatamente. — Não… não, obrigada. — Então, adeus — disse ele, encolhendo os ombros. Mas ela se adiantou

e chegou até a porta antes dele. — Você… você não compreende… — sussurrou. — Oh, acho que sim. Compreendo perfeitamente, enfermeira!Ela ainda tentou detê-lo, mas desistiu ao ver Louise aparecer no fim do

corredor. — Adeus — repetiu ele. Depois, cumprimentou Louise e desceu a escada. Aquele deveria ter sido o caso de amor mais rápido do mundo. Durara

somente uns vinte e cinco minutos, num jardim de inverno…Myrna escreveu à enfermeira-chefe dizendo que estava interessada no

emprego, mas que possivelmente teria que ficar na França mais algum tempo. Não explicou por que, mas estava determinada a contar tudo ao dr. Hugo logo que voltasse para a Inglaterra. Mas queria muito perguntar a ele o que aconteceria com sua carreira se aquele assunto humilhante do roubo não fosse esclarecido.

Na sexta-feira seguinte, ela já perdera todas as esperanças de que alguma coisa fosse descoberta. Mas, um dia antes, uma pulseira de diamantes foi localizada em Monte Cario, e em conseqüência os ladrões foram agarrados em vinte e quatro horas, ainda portando muitas das peças roubadas.

Descobertos, eles contaram toda a história, e riram muito ao saber que a jovem enfermeira fora envolvida. Disseram que já estavam abandonando o local quando Myrna os viu, e que tinham entrado na casa sem qualquer dificuldade. No quarto havia somente uma' velha criada adormecida, e a caixa de jóias estava sobre uma mesa. Simples e fácil.

Myrna foi logo avisada do esclarecimento do caso e ficou aliviada por se ver livre da vigilância. Agora, estava ansiosa para voltar para casa e retornar ao trabalho no hospital, pois isso era tudo que podia esperar da vida.

Lady Vésper ainda ficaria no castelo, até que Louise e Verian voltassem à escola. Sir William estava planejando uma viagem à Caldéia e, assim, ela passaria o inverno na casa de repouso em Surrey. Insistiu muito para que Myrna não perdesse o contato com ela mas a moça duvidava que a jovem senhora sentisse algum prazer em revê-la já que não precisava mais de seus serviços.

Assim, depois de alguns dias, Myrna comprou a passagem de volta para Londres. Tinha somente seis horas para fazer as malas e despedir-se de todos.

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Raoul não aparecia no castelo já há alguns dias. Em seu lugar viera um médico de Lyon e, quando Myrna procurou saber o-porquê daquilo, lady Vésper explicou que Raoul tinha outras preocupações e estava pensando em abandonar a sua clínica.

Mil perguntas vieram à cabeça de Myrna, e ela decidiu o que fazer com pelo menos duas das seis horas que lhe restavam. Vestiu um lindo vestido branco e foi visitar madame de la Rue. Se Raoul estivesse presente, tanto melhor. Afinal, ela prometera visitar a velha senhora antes de voltar para a Inglaterra e não pretendia faltar com a palavra.

Madame estava recostada numa espreguiçadeira, no jardim antigo cheio de gerânios e primaveras, e ficou visivelmente emocionada ao ver Myrna.

— Venha sentar-se perto de mim, minha querida. Raoul não tem falado de você ultimamente, e eu pensei que já tivesse voltado para casa.

— Volto esta noite, madame. Por isso vim vê-la. Para me despedir. — Então vamos tomar chá e conversar um pouco, querida. Agora eu

posso ver o quanto você é linda! Exatamente como Raoul tinha descrito. Mas está trabalhando demais, meu bem. Parece cansada e… tensa.

— As coisas não foram fáceis ultimamente, madame. — Mas agora você deve descansar. Raoul também tem estado muito

abatido, querida. Como já deve saber, um outro médico está atendendo os clientes dele, agora. Raoul foi convidado para dirigir um hospital pediátrico que será instalado numa mansão do outro lado de Aurillac. Exatamente o que ele sempre sonhou. Pensei que ele ficaria extremamente feliz com o convite, mas não foi o que aconteceu. Mas você e eu ficaremos alegres por ele, não é, enfermeira Hope?

— Sim. Sim, claro! Seu filho voltará logo para casa, madame?— Ele não disse, querida. Sabe, agora que não dependo tanto dele. Raoul

sente-se mais livre para ficar fora mais tempo. Estou tão feliz por isso!Conversaram por mais uma hora, e Raoul não apareceu. Myrna teve

vontade de chorar ao se despedir e, esquecida de que madame de la Rue agora enxergava, deixou escapar uma lágrima.

— Contarei a Raoul que você esteve aqui — disse a velha senhora docemente, apertando as mãos da moça. Ela demonstrou saber muito bem,que algo havia começado, mas não conseguia entender por que terminara. — Gostaria de deixar algum recado para ele, querida?

Myrna sentia-se desesperada. — Deixarei meu endereço — disse, rabiscando o nome e a rua do

hospital. — Se algum dia seu filho for à Inglaterra, peça-lhe que me procure. Bem, agora preciso ir. Tenho que acabar de arrumar as malas.

Madame então aproximou-se e beijou-a. — Você sempre me faz bem, sabe? Se ao menos Raoul… — parou de

falar e sorriu. — Se as mães escolhessem as esposas para os filhos, eu escolheria alguém exatamente como você. Bon voyage, minha querida. Seja feliz!

Raoul voltou para casa um pouco depois das dez, e ficou surpreso ao saber que Myrna tinha visitado sua mãe e que já fora para o aeroporto. Olhou para a tira de papel com o endereço do hospital e quis saber tudo que ela dissera, mesmo as coisas mais irrelevantes.

— Por que ela veio somente agora, quando poderia muito bem ter vindo logo depois do acidente? Talvez porque os rapazes do castelo já tenham ido embora… — comentou ele, com amargura.

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— Deixe de agir como uma criança, Raoul — disse a mãe. — Myrna não é uma cabeça-de-vento. Alguma coisa a impediu de vir, pois tenho certeza de que ela seria a minha primeira visita.

— Você é muito ingênua, mamãe, e eu agora sou um descrente, um desiludido. E por que deveria procurá-la quando for à Inglaterra? Tenho certeza de que não faltarão médicos ingleses à volta dela, e parece que é isto o que Myrna quer.

Madame suspirou, mas viu que ele guardava o papel com cuidado.

CAPÍTULO XIII

Aquele dia de outubro estava nublado e frio, e Myrna sentou-se, aliviada, na sala de refeições do hospital. Tudo que queria era tomar uma xícara de chá. Seus pés doíam, e ela sabia que isso se devia ao tempo que passara longe do hospital; levaria algumas semanas até que seu corpo se acostumasse novamente àquele ritmo de vida.

Cathy juntou-se a ela na mesa e falou, decidida:— Ei, mocinha! Agora resolveu viver sozinha, é?— Lógico que não, sua boba! — respondeu Myrna, depressa. — Por que

está dizendo isso?— Porque você é outra pessoa desde que voltou. Francamente, Hope!

Nós todas tivemos inveja e achamos que estava se divertindo muito, mas você voltou tão triste. Age como se tivesse crescido, de repente, achando que nós todas não passamos de crianças. O que aconteceu? Afinal, sou sua amiga, ou não?

— Mas lógico que é, Cathy! Só não quero falar sobre algumas coisas. Ainda rião. Tente compreender, está bem?

— Está bem, não vou mais amolar você. Mas antes quero perguntar uma coisa que está me deixando curiosa. Masie Walker gosta de ler o The Tatler, e conhece todos os bons partidos da alta sociedade. E parece que os Vésper têm um filho muito bonito, alto e loiro. Será que você e ele não…

— Verian é exatamente tudo que Walker disse, mas não tivemos nada. Se um dia nos reunirmos depois do trabalho, posso contar tudo sobre ele. É um rapaz muito simpático. — Sentiu um vazio ao lembrar-se dessas coisas e resolveu mudar de assunto: — Como vão indo os seus pequenos na enfermaria, Cathy?

— Oh, uns perfeitos diabinhos! Temos uma miniatura do Steve McQueen agora, ele é incrivelmente arteiro. O danado já esvaziou um vidro de tinta na lata de biscoitos; arrancou fora a cabeça do ursinho de uma das crianças para ver como era por dentro, e usou o estetoscópio do dr. Higgins como estilingue. Nós todos vamos merecer o reino dos céus depois que Ian for embora…

Myrna percebeu que, apesar de tudo, Cathy parecia tranqüila e feliz. O trabalho significava muito para a amiga. Por que o mesmo não acontecia com ela?

Havia perdido o lugar na enfermaria de cardiologia porque a enfermeira-chefe não pudera esperar que voltasse da França. Mas, depois que Myrna esclareceu a situação, a mulher mostrou solidariedade, mesmo não podendo voltar atrás, decepcionando a enfermeira Morris, que assumira o posto e estava fazendo o trabalho com competência.

— Compreendo, senhora — concordara Myrna. — Compreendo muito bem. Suponho que terei que procurar uma colocação em outro hospital.

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A enfermeira-chefe pensara um instante. — Sim, enfermeira, acho que seria melhor. Mas eu posso lhe arranjar

alguma coisa até que encontre um trabalho, num hospital especializado em doenças cardíacas. Tenho certeza de que fará uma bela carreira. Por enquanto, creio que gostará de auxiliar a enfermeira Koenig com os pacientes externos.

E, assim, Myrna já estava trabalhando há dez dias na enfermaria de pacientes externos, o que envolvia atender às pessoas que queriam informações sobre outros departamentos, assistir aos médicos em suas consultas e também exercer a enfermagem.

Até agora, ela não se decidira a responder os anúncios do Jornal de Enfermagem: encontrara algumas ofertas para enfermeiras com prática, mas queria tempo para pensar, tempo para saber o que realmente desejava fazer de sua vida. Por enquanto, estava satisfeita com a eterna confusão na enfermaria dos pacientes externos, que, apesar de lhe cansar o corpo, evitava que se entregasse ao desespero. Sentia-se anestesiada emocionalmente, e aliviada por isso.

Sabia que algum dia teria que falar sobre Raoul com Cathy, mas ainda não estava na hora. Havia tão pouco para dizer, mas fora tanto para Myrna, que algumas vezes não sabia como conseguiria viver sem ele.

Nunca mais tivera notícias de Raoul, e não esperava, na verdade, saber nada. O que ele sentira não fora algo suficientemente forte para fazê-lo lutar por ela. Era triste que esse amor tivesse se perdido; mas apesar de tudo, tinha sido maravilhoso amar. Ninguém poderia lhe tirar o que sentia ainda, nem apagar aquelas belas lembranças.

Escutava, meio distraída, Cathy falar sobre seus pequenos pacientes, e teve um sobressalto quando a amiga acusou:

— Você acabou de concordar que Boris Karloff seria uma ótima enfermeira! Francamente, Myrna, o que está acontecendo com você?

— Oh, Cathy, perdoe-me. Sei que estou chata, mas tenha um pouco de paciência, querida.

Cathy apertou as mãos da amiga e levantou-se. — Tenho que voltar ao trabalho. Vai sair?— Sim, acho que vou ao cinema — decidiu impulsivamente. — Procuro

você à noite, para tomarmos uma xícara de chocolate, combinado?Nesse instante um funcionário do hospital aproximou-se e disse que a

enfermeira-chefe queria falar com Myrna imediatamente. Chamadas assim urgentes geralmente significavam uma reprimenda… O que seria? Curiosa, ela ajeitou o uniforme, a touca e atravessou os corredores, apreensiva, quase correndo. Bateu à porta, decidida a resolver o caso qualquer que fosse ele.

— Entre — ordenou a voz da enfermeira-chefe num tom que estava longe de ser zangado.

Myrna entrou na saleta e teve a impressão de que o mundo inteiro girava. A chefe das enfermeiras não estava sozinha. De uma cadeira em frente à mesa levantou-se um homem, e um leve sorriso iluminou seu rosto ao ver o olhar incrédulo da moça.

— Myrna? — E, quando viu que os olhos dela se enchiam de lágrimas, perguntou: — Não está contente em me ver?

Ela agora estava ao lado dele, as mãos entre as dele, mas ainda não conseguia acreditar que fosse verdade. Seus lábios tremiam, as pernas mal a sustentavam em pé.

— Oh, Raoul! Estou tão contente! Eu não pensei… eu não esperava… Mas que surpresa! — respondeu, confusa.

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— Muito bem, enfermeira, o dr. de la Rue quer lhe falar. Se eu fosse você, pediria uma folga e lembraria de me portar como uma enfermeira, pelo menos até trocar o uniforme… disse a enfermeira-chefe, sorrindo e olhando para as mãos dadas dos dois jovens.

Acompanhou-os até a porta e completou:— Boa sorte, Myrna Hope!Fora do gabinete, ambos se esqueceram completamente de que estavam

num hospital e se atiraram um nos braços do outro, rindo e chorando entre abraços, beijos e murmúrios, sem se importarem com os olhares surpresos e condescendentes das pessoas que passavam.

Naquele pequeno restaurante, Myrna e Raoul tinham esclarecido as tristezas do passado e afastado o medo do futuro.

— Foi Louise quem me contou sobre o roubo — explicou Raoul. — Minha mãe disse que os jornais noticiaram depois, mas eu raramente leio o jornal inteiro. Louise descobriu que havia algo entre nós dois e apressou-se a explicar tudo. Ela disse que achou muito engraçado o seu envolvimento que obrigou-a a ficar praticamente presa dentro do castelo. Eu perguntei por que ninguém tinha me contado, e soube que fora um desejo de lady Vésper. Foi então que eu soube . . , que eu deduzi o que tinha realmente acontecido. Oh, minha querida, eu pensei que você não quisesse viver comigo, casar comigo, trabalhar comigo! E eu fui orgulhoso demais para exigir uma explicação sua. Mas o tempo todo…

— O tempo todo eu queria explicar, Raoul. E depois eu também pensei que você não me quisesse mais.

— Orgulho… — Raoul balançou a cabeça. — Que triste substituto para o amor é o orgulho! Mas agora…

— Agora o quê? — perguntou ela, sorrindo. — Agora escolha o dia. Voltarei dentro de um mês para me casar com

você. Acha que o mês de novembro serve para casamentos?— Para o meu é perfeito!— Combinado, amor! E depois viajaremos pela Europa inteira, e você irá

trabalhar comigo. Prometi isto à srta. Wattkyn quando lhe disse que queria casar com você.

— Então vamos trabalhar juntos! — concordou Myrna, satisfeita. — Acho que devemos ir, agora — decidiu ele, ajudando-a a levantar-se.

— Aquele homem está olhando muito para nós. Acho que ele quer fechar o restaurante…

Lá fora, na escuridão da noite, eles passearam a esmo, abraçados. Não se importavam para onde iam; só queriam estar juntos e em harmonia, agora e por toda a vida.

Finalmente chegaram ao St. Oswald, e Myrna levantou os olhos para o céu numa prece silenciosa.

— Algum problema, chérie?— Não. Estava somente agradecendo meu destino de ter aceito aquele

trabalho na França. Se não fosse por causa dele, nós nunca nos encontraríamos…

— Eu a teria encontrado de qualquer maneira, querida. Porque sem você não existe vida.

Os olhos de Myrna brilhavam tanto quanto as estrelas que enfeitavam a noite. Raoul tomou-a nos braços e ela beijou apaixonadamente o homem que seria seu para sempre!

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FIM

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BIANCA 101

PERFUME DOS LÍRIOS DO ORIENTE

Sue Peters

Como esquecer os lírios do Oriente, que tinham inundado com um perfume inebriante a sala da embaixada, no dia do seu casamento? Um casamento de favor, é verdade, para salvar a vida de Netta, pois daquela guerra ela só escaparia se casasse com Joseph de Courcey. Ele não a amava, mas séria o dono de seus atos, de sua vida, de seu corpo, até que o compromisso terminasse. E agora, a salvo, Netta aguardava, desesperada, esse momento. Carregava o filho de Joseph no ventre e, no coração, uma paixão irremediável. Mas as palavras dele tinham sido bem claras: “Este casamento é uma mentira, é só para tirá-la daqui com vida”.

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