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[Julio Medaglia] Música Impopular(BookZZ.org)

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  • Jlio MedagliaMSICA IMPOPULAR

    1 edio digital

    So Paulo

    2012

  • Quand jtais jeune on me disait:Vous verez quand vous aurez cinquante ans!Jai cinquante ans.Jnai rien vu

    Erik Satie

    Some have written a book for money;I have not.Some for fame;I have not.Some for love;I have not.Some for kindling;I have not.In fact, I have not written a book at all.I have merely cleaned house.All that is left is out on the clothes line

    Charles Ives

  • Orquestra e cmaras da rdio e televiso de Baden-Baden descobrindo Villa-Lobos, sob a regncia de Jlio Medaglia.

    Jlio Battaglia MedagliaDcio Pignatari

    Num momento como este, quando a resposta esterilizante No vale a pena parecesubstituir a pergunta criativa E agora, que fazer? , bom de ver-se um maestro queescreve (e sabe escrever) batalhar pela cultura brasileira, a partir do nosso pobre horizontemusical.

    Jlio Medaglia sempre soube que o terceiro-mundismo uma realidade mas sempresoube que preciso resgat-lo da garra fisiolgica dos nacionaloides, que sempredefenderam a necessidade de uma subcultura para o subdesenvolvimento (alguns dessespregadores de ontem so, hoje, endinheirados assessores do poder). Jlio Medaglia sempresoube, tambm, que a luta, nestes pases, tem de ir junto com o ensino mas no o ensinobaseado em pretensas autenticidades nacionais (os nossos valores), mas sim em padres erepertrios internacionais.

    O universo no uma variedade ou modalidade brasileira: o Brasil que uma modalidadedo universo. Primeiro, somos humanos; depois, brasileiros.

    A elevao do repertrio deixa os nacionaloides, tanto os sinistrofrnicos quanto osdestrofrnicos, sem falar naquela maioria mediana que adora sentir-se encravada na geleiageral nacional, possessos. A elevao do repertrio, em qualquer campo ou setor, desmascaraa incompetncia ideolgica dos nacionaloides. Sim, porque eles costumam escudar-se atrsde uma suposta competncia ou verdade ideolgica para encobrir sua nulidade artstica (quesempre acaba por confluir com um lumpesinato artstico de natureza populista e varguista,mesmo quando sindicalizado... por desconto em folha!).

    Os nossos sociologoides e professoroides ainda no engoliram sequer a chamada artemoderna. O mximo que conseguem alcanar Portinari, um certo Villa-Lobos, um certoDrummond, um certo Joo Cabral. Imagine falar-se de uma sensibilidade ps-moderna aeles, que jamais ouviram uma pea de Boulez, Cage, Stockhausen ou Gilberto Mendes!

    Pois aqui est o Jlio Medaglia batalhando e ensinando... modernidade ( preciso irdevagar, para no provocar traumas). O que temos aqui uma mini-histria crtica da msicamoderna, naquilo que ela teve de tecnologia de ponta de Debussy ao rock. Este rock que,hoje, no Brasil, exerce o papel de bolero dos anos 50, do qual s a Bossa Nova nos livrou aelitista, alienada e aliengena Bossa Nova!

    um percurso de dcadas, terico e prtico. Medaglia regeu conjuntos e orquestras pequenas, mdias, grandes em feiras, mercados, teatros municipais e auditrios de TV. Feztrilhas sonoras para filmes, peas de teatro e sries televisuais. E arranjos para os tropicalistasdos anos 60, sem falar nos primeiros arranjos para oralizaes da poesia concreta. Formou-semaestro na Alemanha. Foi discpulo de Sir John Barbirolli.Vem tentando, durante todo essetempo, extrair o melhor da simbiose entre baixos, mdios e altos repertrios.

    A msica de alto repertrio a mais sofrida das artes, neste pas, onde qualquer roqueiro

    FernandoHighlight

  • plvico ou cantora gatanhuda ganha mais e tem mais tempo e espao nas mdias do que umobosta, que precisa estudar oito anos para ser minimamente competente. Para que sobreviva,muita orquestra obrigada a tocar arranjos sinfnicos de Mame eu quero em inauguraesoficiais!

    E como pobre a nossa bibliografia musical! Com esta sua Msica impopular, o maestroJlio Medaglia est ajudando a torn-la menos carente. Muitos sonhos murcharam nosdesejos, nestes anos de luta. Mas o tom de Jlio Medaglia no de desalento. Quanta msicamaravilhosa ainda no foi ouvida no Brasil!

  • Prefcio segunda edioCatorze anos aps a publicao deste Msica impopular, surge agora uma nova edio,

    revista e ampliada. Revista, pois alguns trabalhos estavam por demais ligados aacontecimentos momentneos e por isso foram retirados, e ampliada, pois nesse perodosurgiram informaes e acontecimentos no universo da msica que no poderiam deixar deaqui constar. De qualquer forma, permanece a maioria dos artigos, frutos de publicaes emjornais (Folha de S.Paulo, Estado, Pasquim e outros), entrevistas, palestras e algunsespecialmente escritos, todos retrabalhados, para fornecer uma viso crtica abrangente doque foram os tortuosos labirintos da inveno sonora em diversos repertrios no revolucionriosculo que recm-findou.

    O artigo sobre o Barroco Mulato pega uma carona nestas pginas, pois seureconhecimento recente no apenas foi precedido de um injusto esquecimento de quaseduzentos anos, como seu renascimento, acompanhado de perto por mim, esteve envolvido empolmicas, s vezes to complicadoras como as que se depararam os autores quecomparecem ao longo destas pginas.

    Quero agradecer a colaborao de amigos que nos ajudaram em alguns momentos destareelaborao a dra. Leniza Castello Branco, os compositores Rodolfo Coelho de Souza eLino de Almeida assim como o entusiasmo do grande escritor e crtico literrio Leo GilsonRibeiro, que durante todos estes anos circulou com este livro debaixo do brao,supervalorizando meu trabalho como autor, quando, na realidade, este escrivinhador nadamais quis que trazer informaes e provocar debates sobre a dura tarefa de criar msica numapoca to privilegiada como contraditria, caracterizada pelo domnio e fascnio daendemoniada tecnologia, diferente daquela onde este livro se inicia, impulsionada pelascoisas da arte e da cultura apropriadamente chamada de Belle poque.

    Maestro Jlio Medaglia

  • Claude Debussy A BaseExistem certas manifestaes artsticas to arraigadas a seus contextos de origem, que se

    torna, s vezes, difcil apreci-las e, em alguns casos, compreend-las sem se considerar, ounelas identificar, toda uma cultura que as motivou. Wagner to alemo quanto Puccini italiano; Ravi Shankar to hindu quanto Miles Davis americano. Mas, se alguns mestresforam criativos e atingiram a universalidade a partir de um conjunto de valores regionais,parece-nos que a esttica e toda a postura intelectual de Claude Debussy, ao contrrio,possuam essa universalidade a priori. Todos que se ocupavam com msica no fim do sculoXIX perceberam a crise que se instaurou no cdigo da composio ocidental, o chamadosistema tonal. Alguns no tiveram foras para reagir a essa crise, e tentaram reciclar antigastcnicas e concepes artsticas. Outros, como Schnberg, atravs de obras experimentais edialticas, realizaram um paciente e penoso labor que se resumia na substituio de pea porpea daquela mecnica composicional agonizante, edificando, assim, ao longo de vriasdcadas, uma gramtica musical inteiramente nova. Debussy cedo detectou essa crise, masse negou a penetrar em seus congestionados labirintos at encontrar uma sada para a suaconcepo musical. Ao contrrio, distanciou-se dela a fim de no envenenar o seu sensocrtico que iria lhe apontar o caminho da msica do futuro. E dessa posio no hesitou emlanar ouvidos a outros repertrios musicais no ocidentais que iriam arejar ainda mais suaintuio criadora. A participar daquele estado de coisas, Debussy preferiu, s vezes, comoMallarm, o isolamento, a reflexo e a prpria inatividade. Parecem suas as palavras dogrande poeta: A atitude do artista em uma poca como esta, onde ele est em greve perante asociedade, pr de lado todos os meios viciados que se possam oferecer a ele. Tudo o que selhe pode propor inferior sua concepo e ao seu trabalho secreto. E, certa vez, aoparticipar como testemunha da solenidade de casamento de um amigo, ao preencher osdocumentos, onde dizia profisso, Debussy escreveu: jardineiro.

    Apesar de ter iniciado muito cedo o seu contato com a msica quando criana j cantavano coral da igreja de St. Gervais em Paris , apenas aos 32 anos de idade que ele fariadetonar a sua primeira bomba revolucionria, to silenciosa quo devastadora. E, se Debussy,aps o lanamento de seu Laprs-midi dun faune, como Rimbaud, tivesse abandonado avida artstica, os destinos do pensamento musical do sculo XX j teriam sido alteradossubstancialmente.

    Para a melhor compreenso do significado da obra desse mestre, parece interessanteperseguir um pouco a sua biografia, pois ela nos revela dados de uma poca muito especial(os ltimos anos do sculo XIX e os primeiros do XX), onde mudanas radicais seprocessavam na prpria base da arquitetura musical do Ocidente. Se Mozart fosse o objetodeste trabalho, isto no seria necessrio, pois, aos nove anos de idade este Debussy-rococj tinha pronta, amadurecida e executada a sua primeira sinfonia... Aos nove anos, tambm, avida de Claude-Achille ganha novos rumos. Madame de Fleurville, conhecida personalidadeda vida cultural parisiense, sogra de Verlaine e pianista famosa, sobretudo por ter sido alunade Chopin, descobre o talento invulgar do adolescente e convence seus pais a deix-loestudar msica seriamente. E ela no apenas lhe d aulas gratuitamente, mas transfere aoaluno os ensinamentos herdados de seu mestre, cuja tcnica se baseava numa articulaoprecisa e num toucher macio e aveludado. preciso esquecer-se que o piano uminstrumento de martelos, como queria Chopin. E quem conhece a obra de Debussy sabeavaliar a importncia que teve essa conceituao. Dois anos mais tarde Debussy aceito naclasse superior do Conservatoire de Paris. A despeito da faanha que isso representava, porsua pouca idade, inicia-se a um longo calvrio na vida do jovem msico. Sua visoprecocemente crtica do processo composicional vigente e suas primeiras tentativas criadoras

    FernandoHighlight

  • fazem nascer entre Debussy e os imortais da academia uma insupervel barreira. At mesmoa oportunidade de estudar composio lhe foi vedada. Por fim, um pargrafo do estatuto doconservatrio, que permitia o acesso ao estudo dessa matria a todo o aluno que vencesseuma competio interna, proporcionou-lhe essa chance ele vence um concurso para pianode acompanhamento. Isto mais parece uma competio esportiva do que a busca de novostalentos... dizia. E, mais tarde, ao iniciar seus estudos de composio: No Conservatriono se aprende a desenvolver a criatividade, mas, a entrar numa camisa de fora.

    Debussy havia percebido, tambm, a distncia que separava seus mestres famososcompositores da poca da prpria tradio musical francesa, seduzidos e divididos queestavam entre a densidade harmnico-contrapontstica, orquestral e dramtica dowagnerianismo, e o verismo meldico-sentimental bel-cantista italiano. J no perodo deaprendizado ele tentava descontrair a narrativa musical, desenvolvendo encadeamentosharmnicos e meldicos que no se baseavam nos cdigos de tenso afrouxamento(dissonncia consonncia) e nas reaes em cadeia do discurso musical linear tradicional.Cedo ele descobriu a harmonia-cor e experimentou sequncias de blocos sonorosindependentes e emancipados do determinismo da lgica tonal.

    Por que razo se pergunta sempre o nome de cada acorde? Por que se precisa saber deonde ele vem e para onde vai? Ouam-se estas harmonias. No so belas?

    Sim dizia o mestre mas, teoricamente erradas. Se elas me agradam, me servem! Se me do prazer, as usarei. Alis, o prazer a lei.Como uma forma de escapar ao jugo do Conservatrio, Debussy candidata-se ao Prix de

    Rome. Essa distino permitia ao vencedor uma estada de trs anos na capital italianafinanciada pelo governo. E representava, tambm, na volta, a melhor credencial para o incioda vida profissional. Mas, como vencer um concurso com obras veementemente refutadaspelos dignssimos da academia? Debussy competiu vrios anos, mas sempre sem sucesso.Finalmente, a perspectiva de viver trs anos sem preocupaes financeiras seu pai era ummodesto funcionrio pblico numa estrada de ferro o levou a fazer concesses e a compor acantata solicitada pelo Conservatrio, de caractersticas prximas aos parmetros artsticosdaqueles canastres: Lenfant prodigue (mais tarde ele faria uma reviso dessa obra). Assimmesmo, seu trabalho foi muito questionado. No fosse o entusiasmo de alguns pintores,poetas e escultores que faziam parte de um jri de 28 pessoas, o prmio lhe teria sido negadomais uma vez.

    Uma cantata! Que fazer com uma cantata? Ser que eles no perceberam que essasformas clssicas j eram? Beethoven j levou a forma da sinfonia s ltimas consequncias; oprprio Wagner, que eles tanto amam, j deixou claras novas perspectivas formais e aindadizem que Beethoven era o surdo...

    Roma, porm, torna-se para Claude Debussy mais um pesadelo do que uma boaoportunidade para trabalho e reflexo. A vida musical italiana se apresenta para ele nomenos reacionria, as competies canoras daquele operismo lhe atacam os nervos e todo ogigantismo, aquela orgia arquitetnica de So Pedro e dos jardins do Vaticano so para mimmuito teatrais, me do a ideia de um histrico misticismo e mesmo de uma grande farsa. Elepreferia frequentar a pequena igreja de SantAnima, numa estreita rua de bairro e l ouvirmsica renascentista a-capella. Aqui dizia ele por carta a um amigo tanto a arquiteturado pequeno templo como a msica que se ouve, so de uma pureza e simplicidade estilsticas,que, com elas, conseguiria viver o resto de minha vida. E em vez de frequentar o Coliseu oupenetrar na mstica daqueles tempos e vigorosas colunas representativas do suntuoso ImprioRomano, Debussy prefere visitar lojas de antiguidades e admirar a delicadeza de pequenaspeas de porcelana oriental.

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  • Livre de problemas financeiros, sim, mas no do Conservatrio. Regularmente, o alunoprecisava enviar obras a seus mestres de Paris e ele sabia que suas composies noobteriam boa repercusso. Tendo inmeras obras vetadas ou duramente criticadas, eleescreve uma fantasia para piano e orquestra bem ao gosto de M. dIndy famoso compositorda poca e diretor do Conservatrio. Indignado com todos esses acontecimentos, Debussyapressa seu retorno a Paris. Como era costume, o Conservatrio organiza um conserto comsuas obras, verdadeira cerimnia da qual participavam mestres, alunos, crticos, editores,empresrios e altas personalidades da vida artstica. Esse concerto deveria representar oincio de uma carreira de compositor. Tendo uma obra proibida pela direo do Conservatrio Printemps e execrando a tal fantasia a la manire de..., Debussy resolve, no ltimominuto, mandar tudo s favas fugindo do teatro com as partituras debaixo do brao. Impedindoa realizao do concerto, rompe definitivamente com a plutocracia musical francesa.

    Dando aulas e acompanhando solistas, Debussy obtm recursos para manter um padro devida modesto, porm, independente pessoal e artisticamente. Distante de tudo e de todos,ele passa a levar uma vida solitria e bomia, frequentando, diariamente, os cabars deMontmartre, fervilhante ponto de encontro da marginlia artstica de Paris do fin de sicle.

    Paris, nessa poca, era a prpria vanguarda, a capital espiritual do mundo. Os efeitos etraumas da guerra franco-prussiana j estavam esquecidos. A moda por ela ditada eraconsiderada padro internacional de elegncia. A promenade no Bois-de-Boulogne era osonho de qualquer mortal deste planeta. Os pintores impressionistas j eram menosdiscutveis e tinham campo livre e no poucas motivaes para a sua criatividade. Eratambm a cidade na nova poesia, esta mais polmica, mas no menos considerada. E osmbolo da Frana moderna era erguido: a Torre Eiffel. Em comemorao ao centenrio daRevoluo Francesa, a cidade organiza uma grande exposio internacional. Com isso, a vidacultural parisiense intensificada, inclusive com a vinda de um grande nmero de artistasestrangeiros.

    Debussy passa a frequentar, regularmente, os espetculos artsticos da exposio. A elepouco interessam os concertos de msica europeia e as atuaes do Sr. Rimsky-Korsakov,com suas sinfonias repletas de folclore original, que mais parecem os psteres de publicidadeturstica da Cook & Son que qualquer outra coisa.... Os espetculos, com msica e teatro daChina, ndia, Indochina, Indonsia e outros pases daquela regio do mundo, o seduziammuito mais. Debussy, que h muito se interessava pela cultura do Oriente, l permanecia diasinteiros. Apreciava aquelas formas de execuo extremamente delicadas, a tcnica sutil deseus frgeis instrumentos, a msica fluente e etrea daquelas prticas milenares, cujaexemplar transparncia e economia de recursos conseguia envolver e quase hipnotizarinteiramente artistas e espectadores numa densa atmosfera espiritual de reflexo e xtasecontido. No menos significativo para ele era a graa das coreografias. To leves edescontradas elas eram, que um simples piscar de olhos, uma singela movimentao dosdedos ou os passos lentos e macios dos danarinos davam ideia da prpria superao da leida gravidade. Assistindo ontem a um espetculo teatral da Indochina comentava ele porcarta a um amigo encontrei uma curiosa analogia com o drama do Anel dos Nibelungos, deWagner. S que no espetculo havia muito mais deuses que inteis decoraes! Alis,comparando-se a maneira como esses primitivos manipulam seus delicados instrumentos debambu, pequenos sinos e tambores com as nossas manifestaes artsticas, chego tristeconcluso que, no Ocidente, nada mais se ouve do que um brbaro rudo circense... Maisadiante: ... e o contraponto rtmico que tive oportunidade de ouvir, se comparado ao dePalestrina, este parecer uma ingnua brincadeira infantil.

    As experincias vividas por Debussy nessa exposio internacional permaneceram

  • presentes e atuantes em seu pensamento e em seu trabalho durante toda a sua existncia.No que ele achasse que o Ocidente deveria orientalizar-se, assim como no pretendiaabandonar Paris e se integrar meditao transcendental dos monges do Tibete ou se tornarbudista. Os ensinamentos que ele colheu vivenciando outros repertrios culturais, porm,propiciaram-lhe uma considervel dilatao de seu horizonte artstico e apontaram inmerassolues oportunas e incomuns, sobretudo naquele perodo de alta saturao do cdigocentenrio da tonalidade.

    No incio da dcada de 1890, numa de suas andanas noturnas pelos becos de Montmartre,Debussy vai ao cabar Chat Noir e surpreende-se com a figura do pianista local: nada maisnada menos do que o precursor do impressionismo Erik Satie. Compositor j conhecido, essarebelde e sarcstica figura da msica francesa marginal, seria, inclusive nesse aspecto, no dorompimento com a legio de honra, um precursor de Debussy. A nasce uma amizade que setornaria a mais fiel e duradoura cultivada por esse homem de pouco amigos em sua existncia quase trs dcadas. Os detratores falavam num relacionamento homossexual entre ambos.Satie passava dias inteiros em casa de Debussy, compondo e usando o seu piano, pois, naespelunca onde morava em Arcueil, bairro pobre, distante 16 km de Paris, de onde vinha a pdiariamente cidade, nem sequer um instrumento existia. Satie exerceu uma saudvelinfluncia sobre a personalidade e as ideias de Debussy. Alm de ter chegado h mais tempoa vrias solues estruturais que estariam mais tarde na base do impressionismo musical eque colocaria disposio do amigo, Satie, com seu esprito irreverente e revolucionrio porexcelncia, contribuiu fortemente para sacudir os princpios e o talento do jovem compositor,encorajando-o a impor suas ideias. Lembre-se que, nesse perodo, Debussy ainda viajavaanualmente a Bayreuth e se comovia s lgrimas ao ouvir as toneladas sinfnicaswagnerianas. Ao voltar, Satie mostrava-lhe a partitura de uma antiga composio sua, adelicada e cristalina Gymnopdie que Debussy, mais tarde, orquestraria e regeria emhomenagem ao amigo e dizia-lhe, em tom de blague: Precisamos fazer uma msica aosabor de chucrute! ironizando a verdadeira praga wagneriana que se abatia por toda aFrana na segunda metade do sculo XIX. Satie chama a ateno de Debussy para aimportncia dos pintores impressionistas, apresentando-lhe vrios deles, entre os quais Monet,Czanne e Toulouse-Lautrec. O mesmo aconteceu em relao poesia da poca, osimbolismo, cujo auge se deu no incio dos anos 90. Nessa poca, como nico msico,Debussy passa a frequentar as reunies semanais realizadas na casa de Mallarm, onde osmais representativos autores desse estilo se encontravam para troca de ideias e ouvir asmensagens desse grande mestre. Debussy exerce forte influncia na conceituao musicaldaqueles autores, que, at ento, acreditavam, tambm, no wagnerianismo como nicasoluo musical para seus propsitos literrios. Impregnado que estava daquelas ideias, oprprio compositor escreve uma srie de textos para depois music-los. Com as suas ProsesLyriques Debussy revelou o claro isomorfismo que havia entre sua concepo musical eaquele gnero potico. Em 1892, Mallarm oferece a Debussy o seu poema Laprs-midi dunfaune para musicar. Aps as experincias vividas ao longo de seus trinta anos de existncia intempestiva formao tcnica e artstica, tomada de uma posio contestatria diante dopensamento musical francs da poca, vivncia de outras formas e concepes sonoras edramticas na Exposio Internacional de 1889, contato com artistas de outras reas e umaexcitante convivncia dialtica com Satie Debussy havia reunido suficientes elementos paraimplantar, de obra a obra, a sua concepo esttica, base de um novo pensamento musical. curioso notar que alguns gnios criadores provocaram alteraes radicais na evoluo doprocesso artstico no incio de suas carreiras, mas, com o passar do tempo, suas obras voapresentando um saldo renovador cada vez menor e redundante. Este no foi o caso de

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  • Debussy que, aps fincar o seu primeiro marco revolucionrio, desencadeou uma avalancharenovadora cujo pice foi atingido, praticamente, no final da sua vida com composio de suamais arrojada partitura, o bal Jeux. E esse processo s foi interrompido em consequncia deuma terrvel enfermidade que lhe subtraiu as melhores energias fsicas e mentais nos ltimoscinco anos de vida.

    Dois anos aps a tomada de contato com o texto de Mallarm dezembro de 1894 Laprs-midi ouvida pela primeira vez. Apesar de alguns problemas com os msicos, quese sentiam perdidos em meio quela tessitura musical rarefeita e com algumas alteraes queo autor ainda fazia no decorrer do ensaio como se dois anos de trabalho tivessem sidopouco para criar e lapidar aquela preciosidade de 10 minutos de durao (dez anos no levouo prprio poeta para conclu-la?) a obra obteve um grande sucesso de pblico, chegando aser bisada. Mallarm declara que aqueles sons no haviam desafinado o seu poema, mas,ao contrrio, conferido a ele uma nova dimenso, transplantando-o para outras esferas porele inimaginadas.

    Praticamente todos os elementos da revoluo musical debussyana j estavam presentesnessa pea. Sua estrutura formal bastante livre e no se baseia naquele princpio tradicionalde exposio desenvolvimento. O material temtico bsico, o toque do fauno, que surgelogo de incio, executado pela flauta solista, nos d mais a ideia de um motivo, umachamada, do que uma melodia constituda para posteriores desenvolvimentos. Esse motivovai-se repetindo inmeras vezes dez, para ser preciso sempre com harmonizaes etratamentos orquestrais diferentes, sugerindo uma contnua improvisao. Despojando assequncias harmnicas de seus pontos de apoio, do conflito tonal constante e motor datenso afrouxamento (dissonncia consonncia), dos impulsos emotivos romnticos, elaspassam a fluir livres e descontraidamente, numa flutuao esttica. Em sua msica, nem adissonncia agressiva, nem a consonncia pura, repouso (esta caracterstica comumna msica oriental).

    Paul Dukas viu bem: Debussy possui o imcomparvel talento de, apenas fazendo o uso dafantasia, construir um todo lgico e autossuficiente. evidente que essa obra no se enquadraem nenhum esquema composicional clssico. Debussy descobre uma ideia e esta lhe d osentido formal. Outra obra, imediatamente posterior a Laprs-midi que merece algunscomentrios a sute sinfnica Noturno, para orquestra e coral feminino. Aqui, ele revela suamais ampla maturidade e versatilidade no tratamento da cor orquestral e do material temtico,numa obra inspirada em elementos da natureza: Nuvens, Festas e Sereias. A palavranoturno tem aqui um sentido amplo e decorativo, em nada se relacionando com a conhecidaforma musical romntica. So impresses imaginrias de efeitos naturais luminosos. Nuvens: a viso da imobilidade celeste, sob a qual, lenta e melancolicamente, deslizam imensosblocos de nuvens cinzas, deixando transparecer, no percurso, longas e iluminadas tirasbrancas. Festas: o movimento danante dos ritmos da atmosfera em meio a brilhantesfachos luminosos. a impresso visionria de um ofuscante episdio, onde um cenrio, deformas fantsticas e gigantescas que surgem e desaparecem, movimenta-se como umaverdadeira festa. Sereias: o ritmo da eterna movimentao dos mares. Sobre as ondas,prateadas pela luz da lua, ouve-se o som, o sorriso e o silncio do misterioso canto dassereias.

    Convm dedicar aqui algumas palavras, de uma vez por todas, a respeito desse ntimorelacionamento de Debussy com a natureza, que to equivocadas interpretaes temprovocado. Alguns o interpretam como aspecto de um resduo romntico da personalidade docompositor, da mesma forma que o seu culto pela arte oriental, uma tentativa de fuga para oextico em meio decadncia de um ciclo cultural europeu. Quanto a isto, quem analisar com

  • cuidado a obra do mestre, vai perceber, facilmente, que seu relacionamento com a arte orientalno foi meramente epidrmico e sim estrutural, e nem o resultado um simples pster tursticosonoro daqueles pases. Da mesma forma como ele no pretendeu envolver o ouvinte emsonhos exticos de culturas longnquas, no quis copiar, descrever ou fixar fragmentospictricos da natureza, como ocorria com os pintores seus contemporneos. Suascomposies no tinham enredo como a msica programtica dos romnticos. Certa vez,chegou a pedir ao editor que colocasse o ttulo de uma srie de obras no no incio, mas no fimde cada composio, como que sugerindo ao executante que tomasse contato, antes de maisnada, com as prprias notas, delas extraindo a sua interpretao, em vez de partir de umainformao verbal para compreend-las. Assim como a pesquisa de outras linguagensmusicais significava para ele um distanciamento daquelas tcnicas composicionais comuns ea tentativa de conhecer e experimentar novos universos sonoros, o comportamento e aevoluo de certos fenmenos naturais, igualmente o motivaram a novas solues formaisdistantes daquelas a que todos, em seu tempo, invariavelmente, se apegavam. Ele acreditava,isto sim, que como a natureza tinha a capacidade de exercer influncias e provocar sensaesno esprito humano, subjetivas e dificilmente decifrveis, a msica, com sua linguagemabstrata, possua o mesmo poder. Por essa razo, ele a considerava a arte mais prxima danatureza. E, seguindo esse raciocnio do abstrato em msica, ele revelou em sua arte, como ogrande mestre da baixa definio atravs dos sons, a proposta de seu idolatrado Mallarm:On ne dit pas, on suggre.

    Do ponto de vista tcnico, a importncia de seus Noturnos no reside em sua estruturaharmnica, esta j bastante dilatada e liberta do dualismo tonal. Aqui, tal como um matre dechai francs, que, com uma habilidade nica na mistura de diversos vinhos, consegue os maisinigualveis buqus, ou, um chefe perfumista, que chega a mesclar at quarenta delicadasessncias na composio de uma sofisticada fragrncia, Debussy passa a operar com a corinstrumental num nvel de sutileza, versatilidade e amplitude, at ento desconhecidos namsica ocidental. Desrespeitando os princpios de orquestrao das chamadas famliasinstrumentais, por afinidade de timbres, ele, praticamente, cria uma nova sintaxe sinfnica. Damesma forma que a cor, o elemento meldico tambm se emancipa. Aqui, ele deixa de ter ascaractersticas e as propores do fraseado convencional e nem se constitui matria-primapara posteriores desenvolvimentos. Esses fragmentos meldicos surgem, desaparecem, sebastam. Alis, esse tratamento do som puro revela uma ntida afinidade precursora dessemestre com a cristalina obra de Anton Webern. Com Noturnos, no apenas o nome, mas,tambm, as ideias de Debussy se tornaram conhecidos e respeitados internacionalmente.

    Um gnero musical pelo qual Debussy cultivava verdadeira averso era o drama lrico. Eisto, por vrias razes. Em primeiro lugar, porque o texto possui uma forte capacidade dedefinio e uma lgica discursiva linear, exatamente os elementos que ele tentava afastar desua linguagem composicional. Por outro lado, o formalismo, os maneirismos e vcios que apera havia assimilado naqueles ltimos cem anos, que se transformaram quase em sinnimodesse gnero, chegavam, para Debussy, s raias do ridculo. E no por ltimo, pelo fato de ocompositor operstico que mais o interessava, pelo seu talento criador, embora fizesse umamsica de caractersticas diametralmente opostas sua, Richard Wagner, exercer umainfluncia quase neutralizadora sobre a evoluo do pensamento musical de seu pas. Entrarno terreno da composio operstica significava para Debussy, portanto, uma aventura muitoarrojada, pois, para ter sentido, ela teria de abranger uma reformulao quase total nastcnicas e conceitos que orientavam a criao desse gnero to popular da poca, em toda aEuropa. Nada menos de dez anos de intenso labor criativo, progressos e retrocessos, dvidasatrozes, tentativas de abandono da ideia e polmicas acirradas, separaram o primeiro contato

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  • de Debussy com o texto escolhido em 1893 e a premire mundial, na pera-Comique deParis, de Pellas et Mlisande. Debussy tomou contato com esse texto do entodesconhecido Maeterlinck numa representao de um grupo num pequeno teatro marginalparisiense, La Maison de lOeuvre, e que se dedicava exibio de obras de carterexperimental e sobretudo distantes dos efeitismos dramticos do teatro convencional francsda poca. Em conversa com um amigo, Debussy revela sua identidade com aquele texto erepresentao, sobretudo porque aqui o contedo exteriorizado atravs de uma linguagemextremamente sutil e quase inteiramente implcita no comportamento de cada personagem.Nele no existe o pathos romntico e nem fortes exploses dramticas, e sim a poesia dasnuanas e de uma comunicao quase hipntica. A composio da Pellas foi para Debussyo mais penoso de todos os seus trabalhos foram dez anos de noites de insnia. s vezes,ele tinha uma ideia que lhe parecia interessante, mas, ao desenvolv-la, sentia que, aospoucos, o fantasma de Wagner ia-se apossando de seus atos, j que at bem pouco tempoesse mestre alemo era para ele um verdadeiro deus. Debussy rasgava a partitura ecomeava tudo de novo. Mesmo porque havia um elemento da composio opersticawagneriana do qual Debussy no iria escapar, embora manipulando-o sua maneira. Era odesenvolvimento musical contnuo, sem compartimentos separados, sem rias, e, at mesmo atroca de cenrios, ele pretendia resolver sem interrupo da fluncia dramtica. Essedesenrolar como um todo era uma sria preocupao de Debussy. Em uma entrevista,declarou: Eu pretendi criar um desenvolvimento ininterrupto da ao, sem momentos dedecrscimo de interesse ou tenso. Para isso eliminei todas as frases musicais parasitas. Noque se tem visto ultimamente, o ouvinte obrigado a assimilar duas diferentes coisas, umaatrs da outra de um lado a msica, de outro a representao. Eu procurei integrar o maispossvel esses dois elementos e faz-los render ao mximo como uma s coisa. A minhamelodia antilrica. Eu tambm nunca permiti que qualquer elemento da natureza tcnica oumaneirismo do gnero perturbasse a natural expanso do comportamento de algumpersonagem. No raro, a msica se coloca num segundo plano, caso isso permita ao atormaior liberdade expressiva. Alis, nesse trabalho descobri um elemento musical da maiorimportncia por favor no riam!: o silncio! Wagner tambm o usou mas sempre para atingiro clmax dramtico. No meu caso no. Aqui, msica e no msica passam a fazer parte deuma mesma forma de narrativa. Este , sem dvida, mais um dado que Debussy legou sfuturas geraes, ou seja, o silncio como elemento estrutural da composio (lembre-se dobranco da pgina no poema-estrutura de Mallarm Um lance de dados).

    Outro elemento igualmente herdado de Wagner e de que Debussy faria uso, de uma formamuito peculiar, o leitmotiv (motivo condutor). Debussy criticou muito o tratamento que omestre de Tristo e Isolda dera a esse elemento construtor e, numa de suas friasantiwagnerianas, chegou a declarar: Deus meu! Imaginem como deve ser cansativo aturar, jno segundo ato, a chegada desses heris com seus elmos e trajes de pele animal... s elescolocarem a cara no palco e j se ouve o maldito leitmotiv... E alguns inclusive o cantam! Issoresulta to inspido e idiota, como uma pessoa que te d um carto de visita e ainda declama otexto nele contido.... E, em outra oportunidade: Alm do mais, essas fotografias sonoras queperseguem os personagens eram, s vezes, to carregadas de efeitos sinfnicos, que oresultado chegava a contradizer o prprio conflito moral ou o contexto dramtico no qual ele seencontrava. Mais um formalismo exagerado, portanto....

    No caso Wagner, o leitmotiv representa um forte elemento construtor meldico-rtmico-harmnico que conferia ao discurso operstico uma unidade formal bsica. Debussydesvincula o leitmotiv desse seu compromisso construtor, manipulando-o com maior liberdadee riqueza, e de uma maneira mais sutil e oportuna, no raro lanando mo apenas de um de

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  • seus elementos. claro que o leitmotiv em Pellas se liga tambm a pessoas e a situaes,mas ele pode comparecer, por exemplo, em momentos onde o seu personagemcorrespondente est ausente, como mera lembrana deste, resultando num dilogo entre aao dramtica e a sonora. Debussy sempre foi muito cuidadoso na manipulao dos signosmusicais. E foi exatamente esse rigor na manipulao do material sonoro, que evitavaqualquer espcie de efeito suprfluo, que conferia s suas partituras o mximo de rendimentoe densidade expressiva. Para ele a inteligibilidade do texto literrio e a fidelidade suaestrutura dramtica, por exemplo, eram mais importantes do que qualquer pirueta vocal oudemagogia sinfnica. Por isso, ele evitava longos desenvolvimentos meldicos, virtuosismosvocais ou mudanas bruscas de intensidade que perturbassem o tom coloquial e a unidade danarrativa.

    Com essa pera, Debussy no apenas atingiu seus propsitos de reformulao do dramalrico, mas deixou claras as novas possibilidades de composio nesse gnero, que AlbanBerg to bem saberia usar e desenvolver sculo XX adentro. E, na composio dessa obra,Debussy chega a fazer uma proposta que seria concretizada dcadas depois: Como atingir aflexibilidade da psicologia humana e da ao dramtica com os recursos que possumos hoje?A msica ocidental tem de se libertar o mais depressa possvel do d-r-mi-f-sol-l-si!.Depressa era a sua imaginao, pois, cinquenta anos ainda, a escala temperada iria sermatria-prima nica para a composio deste lado do mundo.

    Seria desnecessrio dizer que o despojamento do drama lrico de seus elementoscircenses seu atletismo canoro, aberturas sinfnicas bombsticas, mil coxas de bailarinasexpostas logo no primeiro ato (lembre-se que nem Wagner escapou de escrever um bal paraTannhuser a fim de ganhar uma premire em Paris...) fechavam as portas da pera paraPellas. Mas era de se esperar dizia Debussy pois o pblico que ali vai digno damsica que l se faz e se enquadra muito bem naquela arquitetura, que por fora parece umaestao de estrada de ferro e por dentro uma casa de banhos turcos...

    Apesar das dimenses reduzidas, Debussy queria mesmo ver Pellas levada cena nopequeno teatro Maison de lOeuvre, onde ele havia travado contato com aquele texto e cujarepresentao ainda pairava em sua memria. Nesse meio tempo, um grande amigo eadmirador seu, o regente Andr Messager, a quem Debussy dedicaria a obra, assume adireo da pera Comique e, nesse palco, a 27 de abril de 1902, Pellas e Mlisande ouvida pela primeira vez. A primeira reao foi de perplexidade, mas, medida que a pera iase repetindo, ela conquistava o pblico parisiense, constituindo-se, por fim, um enormesucesso. Seu carter revolucionrio aliado ao sucesso obtido conferem, definitivamente, aoautor, o reconhecimento geral como a grande figura da vanguarda musical francesa e europeiada virada do sculo. A virada se d tambm na vida profissional e pessoal de ClaudeDebussy. O editor Durand assina com ela um satisfatrio contrato de exclusividade, oConservatrio o convida para dar aulas e conferncias, assim como a integrar o jri do Prix deRome; forma-se, em torno dele, uma verdadeira legio de admiradores os debussystas eat mesmo os habitantes da pequena vila onde ele passava suas frias o convidam para serprefeito. Aos quarenta anos, Debussy atinge o auge da fama e do sucesso profissional eartstico.

    Paralelamente aos bons resultados que sua carreira vinha obtendo, Debussy assume adireo da publicao mensal sobre msica de vanguarda, a Revue Blanche. Aqui,parodiando o Monsieur Teste, personagem fictcio criado por Paul Valry, que no poupavaataques e ironias a respeito dos aspectos decadentes da vida cultural parisiense da poca,Debussy inicia a publicao de uma srie de artigos sob o pseudnimo de Monsieur Croche(j o nome encerrava um sutil trocadilho, pois croche em francs, ao mesmo tempo que

  • significa frao rtmica colcheia, quer dizer tambm torto, fora da linha). Numa linguagemcharmosa, s vezes irnica e outras fortemente sarcstica, ele coloca seu ponto de vista sobreas reais possibilidades de criao musical na poca, de um lado, e de outro assesta suasbaterias contra tudo que lhe parecia reacionrio, decadente e desonesto naquele ambientemusical. Respaldado pelo sucesso e reconhecimento recm-conquistados, M. Croche nodeixa pedra sobre pedra no edifcio da msica oficial francesa. Arrasa com os crticos,aconselha a todo interessado em criao musical a fugir do Conservatrio, ridiculariza asreunies sociais da pera de Paris, onde a burguesia se encontrava para exibicionismo efofocas e consumir a msica mais retrgrada possvel; liquida com o Prix de Rome, com o f-clube francs da sinfonia; exalta a personalidade de Bach que, apesar de ter sido um dosmaiores engenheiros e legisladores da histria da composio, agiu com liberdade e fantasiacriadora, tornando-se o oposto de todos os academismos e formalismos artsticos; ironiza oaspecto circense do virtuosismo instrumental e vocal que levava as pessoas ao delrio fcil eno msica; analisa as nefastas consequncias que o arremedo wagneriano provocou namsica de seu pas e demonstrava claramente que o mestre de Tristo e Isolda haviaencerrado, h vinte anos, um ciclo da histria da msica e que o importante era super-lo eno copi-lo; no poupa do massacre, tambm, a forte onda folclorista que se abatia por toda aEuropa: insuportvel a maneira arrogante com que certos mandarins da cultura superiortratam a inveno popular. Eles pinam aqui ou ali ingnuas melodias da boca de um simplescampons, as trituram com suas complicadas mquinas contrapontsticas e sinfnicas que, seeste pobre homem fosse convidado a ouvi-las numa sala de consertos, tudo teria paraesquecer sua cultura e regio de origem! Existem povos prossegue M. Croche que noconhecem conservatrios, mas aprendem msica como a respirar. O seu compndio decomposio o ritmo eterno do movimento dos mares, do vento, das folhas; o canto dospssaros e os milhares de rudos que a natureza coloca sua disposio....

    Em meados de 1903, para mais um idlio com a sua querida natureza, Debussy retira-separa a pequena vila de Bichain e de l, poucos dias depois, envia a seu editor o ttulo de maisum projeto composicional: De laube midi sur la mer, Jeux de vagues e Dialogue du ventavec la mer. Dois anos mais tarde foi concluda e executada a maior e mais famosa obrasinfnica do mestre: La Mer (Trois esquisses symphoniques). Todas as severas crticas emordazes ironias que ele vinha desfechando sobre o sinfonismo europeu do fim do sculoXIX, excessivamente dependente de modelos clssicos, ganham, de estalo, um profundosentido quando Debussy demonstra na prtica, com a composio dessa grande obra, as reaise modernas possibilidades da criao orquestral. La Mer nada tem a ver com a estrutura dasinfonia, mas possui toda a grandiosidade e o impacto dos mais expressivos exemplaresdesse gnero. Nela, Debussy no hesitou em lanar mo de nenhum recurso que a evoluosinfnica havia conquistado e at em super-los: dos mais delicados e transparentespianssimos aos mais carregados fortssimos, do mais singelo fraseado mais complicadapolifonia rtmica; do mais puro lirismo mais intensa dramaticidade.

    Com La Mer Debussy enfrenta e resolve definitivamente um dilema que se haviainstaurado um sculo antes na rea da composio sinfnica: o da forma. Beethoven que,inicialmente, comps sinfonias haydnianas, dilatou seu esquema formal e apontou novassolues para o seu desenvolvimento, as quais a maioria dos compositores romnticossimplesmente ignorara, preferindo apoiar-se na solidez daquela forma acabada. A ideia bsicada sinfonia clssica a da exposio desenvolvimento. Em La Mer, Debussy consegueelaborar um discurso sinfnico onde esses dois elementos caminham paralelamente,autoalimentando-se e livres dos suportes bsicos da estrutura formal tradicional. La Merdesrespeita no apenas a simetria formal, mas tambm a regularidade do andamento, a

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  • constante mtrica. Aqui vo algumas anotaes da partitura de Jogo das ondas no decorrerde alguns poucos compassos: Allegro (dans um rythme trs souple); Anim; Assez anim;Cdez un peu; au Mouvement; Cdez; Anim; En serrant; En animant beaucoup; Trs animetc.

    As primeiras execues de La Mer (1905) desapontaram profundamente o autor.Insatisfeito com as embrulhadas que faziam os regentes da poca, no acostumados comaquela liberdade formal e flexibilidade narrativa, o prprio Debussy empunha a batuta algoque ele nunca pretendeu fazer a fim de demonstrar queles toureiros da msica a suaverdadeira concepo. Particularmente, a extrema complexidade polirrtmica do Dilogo dovento e o mar se diluam na indefinida interpretao dos regentes ainda no versados nessetipo de linguagem. Aquela intrincada estrutura rtmica seria compreendida e devidamentevalorizada quando, pouco tempo depois, a interpretou um dos mais brilhantes e fanticos dorigor e preciso de toda a histria da regncia sinfnica, Arturo Toscanini.

    Com La Mer, Debussy renega a msica programtica que, com seu roteiro descritivo, maisse aproxima de uma materializao pictrica da natureza do que de uma concepo subjetiva.Com sua obra seguinte, Images, onde lana mo de elementos folclricos franceses eespanhis, ele contesta, sobretudo, os russos, que veem na utilizao de motivos popularesum verdadeiro sentido filosfico (algo como, politicamente, o realismo socialista veio nosmostrar anos mais tarde).

    Esse distanciamento que Debussy conseguiu manter ao operar com o material folclrico,onde esses elementos surgem e desaparecem como verdadeiras sugestes ou evocaes deum contexto pictrico ou humano, foi mal-entendido pelos crticos, que achavam que Debussycopiava seus prprios seguidores (Ravel) ou teria regredido em relao s suas prpriasafirmaes anteriores. Nessa obra, porm, o mais importante o verdadeiro exerccio rtmicoque realiza, indo bem mais adiante das experincias do final de La Mer sobretudo comsuperposio de diversos modelos rtmicos se preparando, assim, para a composio de suamais arrojada obra, o bal Jeux.

    Nessa primeira dcada do sculo, os franceses e os russos cultivavam um excelenterelacionamento poltico, o que motivava, tambm, um vasto intercmbio cultural entre ambosos pases. Bem mais atualizados e tecnicamente desenvolvidos que os franceses, osbailarinos russos causam verdadeira sensao nos palcos parisienses a partir de 1907. Poroutro lado, as ideias avanadas do grande empresrio, msico e mentor espiritual do BalRusso, Sergei Diaghlev, que eram recebidas com reservas na corte czarista de SoPetersburgo, encontram, na Paris da poca, campo aberto para seus altos voos criativos. Osbailarinos Nijinski, Karsavina e Pavlova, o coregrafo Fokine e o cengrafo Bakst,deslumbram os franceses pelo brilhantismo e alto nvel tcnico de suas apresentaes etambm por revelarem uma nova concepo coreogrfica onde a msica no servia apenas deplataforma para as piruetas e vedetismos das etoiles, mas formava com a dana um todoorgnico e compacto. Completando a trupe, Diaghlev descobre e agrega ao Bal Russo umfilho de So Petersburgo que, com trs obras consecutivas, Pssaro de Fogo (1910),Petruska (1911) e Sagrao da Primavera (1913) se transforma no maior compositor dessegnero no sculo XX: Igor Stravinsky.

  • Bal puro?

    Com grande atuao em Paris, Diaghlev no poderia deixar de relacionar-se com osmsicos locais e muito menos com Debussy, a mais expressiva figura da composio francesada poca. Depois de apresentar um projeto que no chega a entusiasmar o compositor,Diaghlev, para iniciar um relacionamento profissional com Debussy, encena Laprs-midicom Nijinski no papel de Fauno (1911). Esse trabalho foi da maior importncia para o BalRusso, pois a leveza cristalina da msica de Debussy sugeria outro tratamento cnico ondeno se enquadrava o virtuosismo e a frentica desenvoltura coreogrfica que o grupo vinhademonstrando. E Diaghlev soube, no apenas desarmar os espritos em funo de umaconcepo mais sutil e introspectiva, como encomendou a Debussy uma nova obra, esta sim,baseada na esttica musical do autor e numa ideia simples e despojada do prprio Nijinski:Jeux.

    Uma bola de tnis cai no palco. Um jovem de raquete em punho adentra a cena como se aestivesse procurando e desaparece em seguida. Depois, entram duas jovens procura de umlugar tranquilo para conversar. Primeiro uma, depois outra, comea lentamente a danar. Derepente, ambas param ao contemplar uma folha de rvore que cai. Ao fundo, v-se novamenteo rapaz, que as observa a distncia. Querem sair, mas ele as traz, delicadamente, de volta cena. Comea a danar com uma delas e chega a beij-la. A outra, enciumada, dana s emuito graciosamente. Ele a convida para danarem juntos e comeam a rodopiar cada vezmais intensamente, chegando ao xtase. De repente, saltando bem alto, cai no palco maisuma bola perdida. Os trs param, a observam e saem correndo atrs dela. Isto tudo,acrescentou o redator do programa, quando Jogos foi apresentado, no ano seguinte suapremire, em forma de concerto. Pouco ou quase nada aparentava oferecer queles que,perplexos e sem saber como reagir, assistiram a ele, coreografado, a 15 de maro de 1913 duas semanas antes da escandalosa premire da Sagrao, no mesmo Teatro dos CamposElsios. Uma nova realidade eu pretendo criar e no isso que os idiotas por a chamam deimpressionismo.

    A msica de Jeux no uma mera cortina sonora indefinida que envolve o bal, e muitomenos pretexto para exibicionismos sinfnicos ou coreogrficos dizia Debussy. E a ideiato propagada de Nijinski de fazer um bal realista que fosse uma apologia autntica do serhumano de 1913 vinha a se coadunar inteiramente com as de Debussy ao contrrio do quepensavam alguns, que interpretavam Jeux como uma forma de bal puro.

    De fato, a ao e a msica perfazem, nesse bal, um todo rigorosamente indissolvel eabsolutamente claro em suas pretenses. E o tema era to inusitado (esportistas como figuras

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  • de bal), como atual: a ginstica rtmica de Jaques Dalcroze fazia muito sucesso na poca.Mais do que isso, porm, nessa obra, Debussy leva s ltimas consequncias todos oselementos que compunham a sua alquimia revolucionria. A ideia de forma aberta ou da noescravizao da msica a esquemas, atinge aqui o seu superlativo chegava-se a falar numaritmizao do tempo. Forma e contedo perfazem um s todo e a noo de um constanteimproviso ou variao se realiza aqui plenamente. Vinte e trs diferentes fragmentos oumotivos surgem e desaparecem sem ser desenvolvidos, sem nenhum parentesco entre si esem retornarem no decorrer da obra com exceo do primeiro que comparece vrias vezes,mas por questes puramente coreogrficas e no estruturais. Eles no se constituem polosatrativos como na composio tradicional. No existem pontos caractersticos de partida ouchegada a fluncia absoluta e motivada pelo entrecho. Essa flexibilidade formal efluncia constante se refletem tambm na maleabilidade dos andamentos, que, extraindo-seuma mdia, conclui-se que a cada 8 segundos existe uma alterao no andamento. Quanto dinmica (intensidades) ela possui a mesma flexibilidade. Em primeiro lugar, ela maisinstrumentada do que expressa atravs de indicaes de f (forte) ou p (piano). igualmente variada, pois no chega a durar quatro compassos a execuo de uma mesmaindicao de intensidade, no criando sequncias ou regularidades.

    Jeux foi escrito para uma sinfnica convencional (cem msicos aproximadamente), masem nenhum momento o tutti orquestral est presente, podendo-se afirmar que se trata da obramais transparente desse autor. Os efeitos musicais brotam dos mais diversos pontos daorquestra em verdadeiras ondas sonoras, cuja agregao instrumental no obedece aoscdigos da instrumentao tradicional. o timbre puro, livre e fluente. A harmonia bastantedilatada e, embora no seja atonal, em nada se relaciona com os processos tradicionais deagrupamentos sonoros. Ela sugere a atonalidade e chega politonalidade, to usada porseus sucessores na Frana (Milhaud principalmente). Como resultado dessa harmonia livre,os tipos de encadeamentos meldicos resultantes so os mais diversos e bem mais prximosdo modo da msica oriental que do d-r-mi-f-sol do Ocidente. Veja-se a escala pentatnicaque serve de apoio a um momento da composio: si, d-sustenido, mi, f-sustenido e l. Aestrutura rtmica da obra igualmente livre de sequncias ou regularidades motricas, tocaractersticos do bal e da dana em geral. Os agrupamentos rtmicos mais diversos inclusivese superpem, chegando a uma plasticidade que lembra a msica aleatria de dcadasdepois. Um dado extremamente curioso dessa obra que a delicadeza e a sutileza dorelacionamento entre os personagens da histria sugeriram a Debussy a composio de umamsica igualmente serena, introspectiva e quase silenciosa, 79% da partitura so escritos emp (piano) e pp (pianssimo). Apenas 0,3% em ff (fortssimo) e 9% em f (forte) o restanteem dinmicas mistas. Alis, essa introverso extremada da linguagem debussyana to ligadaquelas experincias por ele vividas com a msica oriental, revelava tambm a sua maneirade contestar as formas de expresso individualistas e quase patolgicas, tpicas doromantismo j agonizante da virada do sculo. E, se Debussy o artista da sutileza, da msicado silncio, da baixa definio, entende-se completamente a sua identidade e verdadeirafixao pelo argumento de A queda da casa dos Ushers de Edgar Allan Poe, o qualpermaneceu em sua mente como o mais ambicioso projeto operstico dos ltimos dez anos desua vida esse poeta exerce uma verdadeira tirania sobre mim.

    Vtima de cncer no intestino, porm, os seus ltimos anos, aps a composio de Jeux,foram tortuosos e poucas energias lhe restavam para enfrentar o projeto Usher, embora tivessej preparado o roteiro para a composio e elaborado alguns esboos. Nesse perodo, omximo que conseguiu fazer foi algumas peas curtas para piano, os 12 estudos, que, comoos de Chopin, pretendiam colocar o pianista em contato com as ltimas conquistas tcnicas do

  • instrumento. Escreveu algumas sonatas e canes, mas nenhuma obra de flego ouinovadora. Tudo que escrevo agora me soa como algo de ontem e no de amanh. E, maisadiante: Sinto-me como um verdadeiro habitante da casa dos Ushers, o que no de todoruim, pois o dilogo entre as pedras do velho castelo abandonado me interessa muito mais doque o da maioria das pessoas que andam por a....

    Magoado com a incompreenso e indiferena com que foram recebidas suas ltimas obras,traumatizado com a queda de bombas alems sobre Paris e seminarcotizado pelos efeitos damorfina que era obrigado a tomar, a fim de poder suportar as dores causadas por suaenfermidade, Debussy viveu angustiadamente os ltimos momentos de sua existncia. Se amorta-viva, irm de Roderick Usher, penetrasse em meu quarto eu no me surpreenderia einiciaria com ela um sereno dilogo...

    A 25 de maro de 1918, no momento em que corre em Paris a notcia da destruio da igrejade St. Gervais, local onde o menino cantor Claude Achille havia despertado o seu interessepela msica, desfila, de um extremo a outro da cidade vazia, a p, e com pouco mais de dezpessoas, o cortejo fnebre daquele que foi a mais importante personalidade da msicaeuropeia na virada do sculo.

    Observando a obra de Debussy como um todo, poderamos afirmar, em certo sentido, queele foi o menos revolucionrio entre os grandes revolucionrios e principais arquitetos dahistria da msica ocidental. Debussy no foi atonal como Arnold Schnberg (que eratambm muito mais jovem), mas questionou e subverteu toda a mecnica tonal, tornando-aquase ilusria e obsoleta. Debussy no chegou a criar um novo conceito rtmico, mas relegoutodos os esquemas que serviam composio ocidental naqueles ltimostrezentos/quatrocentos anos. Ele no operou com os timbres como Webern, que compunhacomo um criador de mosaicos abstratos, que lana mo de pedras coloridas e as colocaaleatoriamente aqui ou ali at chegar a formar uma nova lgica colorstica e composicional.Isto no. Mas Debussy desmembrou todas as famlias instrumentais e associaes timbrsticasconsolidadas em sculos de composio musical e deu um tratamento to livre e rico corsonora que Webern o considerava o seu grande mestre. Quanto sua concepo formal, seusarmos os mtodos da anlise tradicional, mais fcil dizer como ela no do que comoela . Grosso modo, poderamos dizer que Debussy no substituiu as peas do jogocomposicional da msica do Ocidente, mas destruiu rigorosamente todas as que eram usadas.Ele no semeou novas ideias, mas limpou o campo e o preparou minuciosamente,entregando tambm, de bandeja, as ferramentas certas para o trabalho da nova gerao decriadores que o seguiu. A msica de Stravinsky, para dar um exemplo, possui caractersticasradicalmente opostas sua, mas o mestre do Sacre no hesitava em afirmar, inclusive emsuas Memrias, que Debussy foi o msico mais importante de sua vida. E, para a geraoposterior de compositores, a obra de Debussy possui uma importncia fundamental. Mais queisso. Apenas com os recursos e com o vocabulrio da anlise estrutural dos dias de hoje quese pode compreender e codificar devidamente aquilo que na forma de Debussy, anteriormente,aparentava no ser. Por essa razo, todos os compositores de hoje no deixam de esmiuaraos ltimos detalhes o seu trabalho e afirmam, unanimemente, que Jeux foi a obra que deu oreal ponto de partida no sculo XX musical. Dessa maneira, ele assume a posio do primeirocompositor moderno.

  • Debussy o msico mais importante para mim Igor Stravinsky.

    No perodo entre as duas guerras uma onda de nostalgia que se abateu pela Europa muitocontribuiu para afastar a msica de Debussy dos programas de concertos na Frana. E aincompreenso de seu trabalho por parte de alguns crticos, levava-os at mesmo a afirmarque Claude Debussy no seria mais que um Richard Strauss francs. O sentido universalistada sua msica, porm, soube motivar artistas em todas as partes do mundo a executarem suasobras e, nesse perodo, as mais corretas abordagens de seu trabalho foram feitas fora daFrana, mais precisamente por dois tericos alemes: H. Strobel e H. H. Stuckenschmidt.Alemo, igualmente, foi o seu maior intrprete pianstico, Walter Giesiking.

    Depois da Segunda Guerra, quando a nova gerao de msicos franceses, prostrada diantede suas partituras, com lupas e esquadros tentava entender o sentido de cada semifusagravada pelo mestre; quando Boulez declarava que a msica de Claude Debussy irradiaforas arrebatadoras de misteriosa e encantadora magia e que sua posio no panoramasonoro contemporneo se assemelha de uma flecha que, solitria e vigorosa caminha para oalto, o governo francs fez erigir em sua homenagem um vultoso monumento no Bois-de-Boulogne, prximo residncia do compositor, com a seguinte inscrio: Claude Debussy musicien franais. A era tarde. A obra do Monsieur Croche j era patrimnio universal.

  • Igor Stravinsky Le Massacre du PrintempsOitenta e quatro anos, passos lentos e medidos, apoiado em uma bengala, adentra mais

    uma vez o Palco do Royal Festival Hall um dos maiores revolucionrios da arte musical dosculo XX. A plateia que superlota a principal casa de espetculos londrina levanta-se entrada da veneranda figura e uma longa ovao acompanha-a em sua caminhada at o pdiode regncia. Igor Stravinsky realizara uma viagem transatlntica para mostrar ao ouvinteeuropeu sua mais recente criao. Como que contradizendo energicamente a lenda medievaldo Doktor Faustus, o mestre, na plena e humana assuno de sua velhice vigorosa e criadora,faz questo de, em pessoa, levar ao pblico sua ltima obra, marcada de um carteragudamente experimental.

    No , portanto, to somente o esforo fsico que impressiona o observador. A Variaesem memria de Aldous Huxley, executada em primeira audio europeia pela NewPhilarmonic Orchestra sob a regncia do autor, na noite de 14 de setembro de 1965, revelam amesma disposio experimental e renovadora que moveu esse mestre em toda a sua vidaartstica. Nessa Variaes, Stravinsky emprega as mais novas e discutidas tcnicascomposicionais, no titubeando tambm em fazer declaraes polmicas imprensa, vazadasem vocabulrio atualizado, o mesmo que emprega a mais jovem gerao de pesquisadores.

    Como que tentando mostrar que o ponto de partida e aquele a que chegava fazem parte deum mesmo universo criador; como se a msica tornasse possvel trazer seis dcadas quelanoite, precedendo o evento central do concerto, Stravinsky rege a sua fantasia sinfnicaFogos de artifcio. Esta obra, escrita em 1908, em homenagem s bodas da filha de Rimsky-Korsakov, seu nico mestre, tambm uma das mais estimadas pelo autor. Embora ela notivesse provocado o impacto inovador do Sacre, foi atravs de uma nica audio dessapartitura que Sergei Diaghlev, esta notvel personalidade da cultura russa e empresrio,identificou no jovem compositor o colaborador ideal para o seu Ballet Russe, oferecendo-lhe,assim, condies para o incio de sua carreira.

    Diaghlev foi o mais interessante animador cultural que o incio do sculo europeu veio aconhecer. J em So Petersburgo ele organizava concertos de msica moderna, promoviaexposies de pintores impressionistas, editava revistas polmicas e era, de modo geral,responsvel pelo denso fogo cruzado de ideias, nem sempre bem aceitas pela corte imperial.Paris lhe oferece as condies materiais e espirituais para o desenvolvimento de sua energiacriadora. E atravs dos seus projetos para o Bal Russo que a msica nova encontra o seuveculo ideal de expresso. E no apenas esta, pois sua concepo artstica de bal era ummisto de coreografia, histrionismo, msica e pintura, todos esses componentes com igualdadede importncia. Por essa razo, todos os artistas verdadeiramente criativos de outras reasparticipavam ativamente de sua aventura revolucionria.

    Os trabalhos de Stravinsky anteriores a Fogos de artifcio revelam a influncia dos autoresrussos do fim do sculo passado, assim como de Wagner e Richard Strauss. Via Moussorgskye Skriabin, os mais progressivos autores russos da poca, ele chega a Debussy e, atravsdeste, liberta-se do romantismo.

  • Bakst, Diaghlev, Stravinsky e Prokofief (quem diria que tais almofadinhas...).

    A provocao de Diaghlev, porm, representou um verdadeiro curto-circuito na mente dojovem autor, desencadeando assim sua trajetria inovadora. Pssaro de fogo, sua primeiraobra escrita para o Bal Russo, mostra nitidamente essa transio. Se, de um lado, elademonstra fortes resduos romnticos e impressionistas, na seo Dana infernal dos sditosdo mgico Kastchei revela um potencial rtmico at ento desconhecido na msica deconcerto ocidental, oriundo, segundo o autor, das formas de dana da Rssia primitiva.Convm dedicar algumas palavras ao procedimento de Stravinsky ao fazer uso de materiaisfolclricos. Ele no objetivava, com isso, adotar uma posio filosfica ou paternalista comrelao criatividade popular, como era costume na poca, onde alguns autores pretendiamcomo que levar a srio ou conferir status artstico ou cultural s manifestaes autnticasda verdadeira alma do povo. Toda a vasta matria-prima que ele colheu das mais variadasformas da dana de estirpes perdidas nas estepes da Rssia Central, transportava para omundo da fantasia. Sua impetuosidade criadora imaginava rituais dantescos, nos quais tribosprimitivas da Rssia pag se exorcizavam atravs da msica e da excitao fsica, ou, comono caso da Sagrao, em que uma virgem era sacrificada, danando at a morte, a fim dehomenagear os deuses que traziam de volta a to esperada primavera. Essa concepo algodemonaca da primavera, inteiramente oposta interpretao romntica ou impressionista dosfenmenos naturais como elementos de inspirao musical, era conscientemente usada porStravinsky como forma de agresso ao universo sonoro da poca.

    Diaghlev Stravinsky (a chama e o talento).

    Com Petrusca, a histria de uma boneca de marionete que ganha vida prpria danandocada vez mais freneticamente e levando ao delrio todos os integrantes do espetculo, at

  • despedaar-se por completo, Stravinsky liberta-se de influncias externas e molda seu prprioestilo pessoal, repleto de experimentaes rtmicas e colorsticas. A Sagrao da primavera uma obra-marco do sculo XX. Seria difcil apontar uma outra criao artstica em nosso tempoque poderia ser, com tanta propriedade, assim caracterizada. No s pelo que representaplstica, histrinica, coreogrfica, mas, sobretudo, musicalmente, ela pode ser comparada aobras como Fausto de Goethe, Capela Sistina de Michelangelo, a Romeu e Julieta deShakespeare, Divina comdia de Dante, ou Ilada de Homero. O brbaro primitivismodessas cenas da Rssia pag expresso atravs de uma selvagem cacofoniapolitonal/atonal, de uma superposio extremamente densa de complicadas estruturasrtmicas, de uma constante mudana de compassos que chega a sugerir a mais rebeldeanarquia e de uma organizao formal que contesta tudo que se conhecia at ento. Suaescandalosa premire, em 29 de maro de 1913, foi o despertar de nossa era musical. Depoisdo Sacre tudo o que era novo passou a ter vida. No s a carreira de Stravinsky, aps essaobra divisria de guas, estava consolidada, mas tambm o relacionamento com Diaghlev,que se estendeu at 1929, com a morte deste, e do qual resultaram ainda as seguintes obras:Chante du Rossignol, Les Noces, Pulcinella, Mavra (pera bufa), Apollon Musagte,Le baisir de la fs e Oedipu-Rex.

    Ao assistir aquela apresentao no Royal Festival Hall de Londres em setembro de 1965 ever o mestre ser efusivamente aplaudido exatamente pelo fato de ousar em msica aos 84anos, pude refletir, extasiado diante da emotiva cena, sobre as reviravoltas a que foramsubmetidos a movimentao cultural e seus agentes, naquele excitante sculo XX. Nessemomento vieram mente os fatos a mim narrados pelo maestro Pierre Monteux trs anosantes, ele que foi o regente da premire da Sagrao. Quando estudante de msica numauniversidade alem soube que o grande maestro francs iria reger umconcerto em Stuttgart. Dirigi-me quela cidade e consegui penetrar na sala onde ele ensaiavaa sinfnica local. Ao trmino, persegui sorrateiramente o casal Monteux e quando surgiu umachance, me aproximei e fiz uma pergunta queima-roupa: Maestro, conte-me como foi aquelanoite de 29 de maro de 1913 no Champs-lyses. Surpreso com a intempestiva indagao,aps uma pausa e um discreto sorriso, deslanchou uma longa e descontrada narrativa,enquanto o carro, j de portas abertas, o esperava: O mundo vinha, literalmente, abaixo.Caam ininterruptamente coisas sobre a orquestra e o palco. Os apupos mal permitiam ouvir aexecuo, que eu, bravamente, levava adiante. De diversos pontos da orquestra, msicos, quetambm no acreditavam na obra, tocavam, mesclando com os sons do Sacre; a Marselhesa,Frre Jaques e coisas assim. Ao trmino da apresentao, com receio de sermos linchados,Stravinsky, Diaghlev, Nijinsky e eu, ao som dos ruidosos gritos de protestos, escapamos poruma sada subterrnea. A primeira sensao era a de fugitivos que acabaram de cometer umcrime. Pouco tempo depois, numa rua escura e deserta, j distante do teatro, paramos e nosentreolhamos. Num dado momento, sem dizer uma s palavra, sentimos uma correntevibratria que nos fornecia uma segura sensao de autoconfiana que nos revelava: Eraaquilo mesmo que queramos. E mais: acreditamos ter cometido um ato histrico! Emsegundos, nossos semblantes se descontraram e nos abraamos aos gritos e beijos. Emseguida, entramos num bar, compramos todo o estoque de vodka, pegamos um txi ecirculamos, s gargalhadas, por Paris a noite toda at esvaziarmos a ltima garrafa....

    Aps o Sacre, Stravinsky reduz o aparato instrumental de suas composies. Les Nocesj foi escrita para quatro pianos, percusso e coros, e a Histria do soldado, apenas parasete msicos. Ele se integra naquilo que os alemes chamavam de neue Sachlichkeit (novaobjetividade), uma postura que propunha um maior rigor e conscincia composicional por setratar de uma poca de transio e reviso de valores, em consequncia da diluio da

  • centenria tonalidade, que se caracterizava pelo antirromantismo, antissubjetivismo e pelabusca de novas linguagens composicionais. Abandonando em parte a utilizao de materiaisde origem folclrica, ele realiza, atravs de suas obras posteriores a 1920, um curiosodilogo com elementos extrados da tradio. A tradio dizia ele no umcompartimento fechado, morto e sim uma conquista do pensamento universal que ensina eestimula a criatividade.

    Nesse perodo, que foi chamado de neoclssico, ele trata os elementos da msicaocidental com a mesma sabedoria e irreverncia com que tratou o material folclrico.Realizando uma curiosa simbiose estilstica extremamente fantasiosa, cheia de humor e nodogmtica, ele chega a um resultado moderno e criativo onde estilos e personagens datradio distante e alguns j consolidados deste sculo comparecem como verdadeirosfantasmas em sua alquimia musical. Assim aconteceu com Pergolesi em Pulcinella, Glinkaem Mavra, Tschaikowsky em Le baisir de la fe, Weber em Capriccio, Bach no Concertopara violino, a escala diatnica tradicional em Apollon Musagte, a msica circense emCircus-polca, a revista musical americana em Cenas de bal em 11 partes para aBroadway, o jazz em Ebony Concert para a big-band de Woody Herman e, em 1957, no balAgon, a msica serial e pointlista de Schnberg e Webern, para a grande surpresa geral. Operfil de sua obra foi, portanto, extremamente irregular, tendo, inclusive, provocado as maiscontrovertidas reaes por parte dos observadores. Ele foi taxado de romntico e deantirromntico, de impressionista e de expressionista, de tonal, politonal e de atonal, deprimitivista, telrico e de refinado, intelectual, universalista, de catico e de frio calculista, dehipermoderno e de arcasta ou ecltico classicista. Num nico aspecto de sua personalidadeartstica todos foram unnimes: a rica, intrincada e explosiva estrutura rtmica de suas obras foibsica e representa a mais importante contribuio de seu trabalho tcnica e ao pensamentomusical do sculo XX. E essa versatilidade na trajetria artstica de Stravinsky foi consciente ea forma por ele encontrada para evitar a rotina, fixando o desenvolvimento de seu trabalhosempre numa mesma direo. Para ele, cada composio deveria representar, como dizia aseu amigo Picasso, um salto mortal no desconhecido. De fato, se analisarmos Petrusca,Lhistoire du soldat, Apollon Musagte, Trois pices pur quatuor cordes, Sinfonia em de a Missa, teremos a ntida impresso de que se trata de obras de seis diferentescompositores. E a Variaes em memria de Aldous Huxley nos revela ainda um novoStravinsky, mais racional e preciosista. Essa pea, que lhe trouxe de novo ao VelhoContinente para, na cidade natal do grande escritor por ela homenageado, realizar a primeiraaudio pblica, tem pouco mais que 5 minutos de durao. E nessa joia sucinta de rigorosalapidao, o mestre trabalhou nada menos de um ano e meio.

    Variaes foi estruturalmente baseada numa srie dodecafnica. Segundo suas prpriaspalavras, numa sequncia de doze diferentes sons que para mim possuem o sentido de umamelodia. Aps escrev-la, fui descobrindo as inmeras possibilidades de variao. A srie foidividida em dois grupos iguais e, no decorrer da elaborao, foi invertida, retrogradada eespelhada. O vocabulrio da composio foi abundante... Com a ausncia de variaesharmnicas ou meldicas no sentido tradicional, outros recursos contrastantes foramempregados, tais como a Klangfarbenmelodie (melodia de timbres). Na primeira variao, porexemplo, os violinos, violas, violoncelos e contrabaixos so subdivididos, individualmente, porestantes. O desenrolar das figuras musicais se desloca, de maneira alternada, de estante emestante, formando uma melodia timbristicamente variada e provocando, ao mesmo tempo, umcurioso efeito estereofnico. Este um dos aspectos mais interessantes dessa variao. Nasvariaes seguintes continua Stravinsky existe praticamente uma disputa entre blocoscolorsticos sonoros que se entrechocam. Noutra, eu opero com o ritmo de uma forma absoluta.

  • Um ritmo que chamaria de sinttico, pois no prope nenhum agrupamento reconhecvel ouregularidades. Dessa maneira, a estrutura rtmica extremamente variada, fornecendo a ideiade um andamento flexvel, que vai de um extremo a outro sem quebrar a narrativa e nem criarpontos de apoio. Alis, eu tenho usado muito o processo de Vernderungen (modificaes) expresso usada por Bach em suas Variaes Goldberg. No meu caso, as modificaes vobem mais adiante do sentido bachiano, a ponto de se tornar irreconhecvel o material-ponto departida. A minha matria-prima uma srie, um alicerce sobre o qual eu edifico a minha obrae no um motivo meldico-harmnico cujos elementos devem ser percebidos durante toda aobra. E assim por diante, segue Stravinsky analisando o seu engenho quase geomtrico, aodar uma entrevista a jornalistas londrinos.

    Seria interessante recordar aqui um curioso fato ligado vida e evoluo da obra e aosdiversos saltos mortais no desconhecido do procedimento artstico desse polmico autor.Como se sabe, Arnold Schnberg, o criador do dodecafonismo, emigrou para os EUA emconsequncia da perseguio nazista nos anos 30, fixando residncia na Califrnia. Porcoincidncia, dois dos mais importantes polos da criao musical de sculo XX Schnberg eStravinsky viveram durante anos na mesma cidade. A inimizade artstica, porm umainimizade que perdurou at a morte do autor de Pierr Lunar , fez que ambos jamais sevisitassem. Hoje em dia, como consequncia de uma entre as muitas metamorfoses estticasque se sucederam e na prpria intimidade da obra do autor do Sacre, vemos o velhoStravinsky conciliar com suas ideias a linguagem dodecafnica, assim como toda umaconceituao serial que lhe correlata, o que parecia, em poca no muito remota,inimaginvel. Na segunda metade do sculo XX, quando a polmica que se instaurou nacomposio musical do Ocidente em consequncia do esfacelamento do reinado absolutistada tonalidade havia sido superada e substituda por novas tcnicas composicionais; nomomento em que a nova gerao, sucessora de Schnberg e Webern se esmerava numcontrole quase total do acaso, num rigor construtivo geomtrico, o octogenrio msico aindaencontra energias e condies espirituais suficientes para reformular sua atitude perante acriao artstica.

    Sonhei com um grande ritual pago! Tive uma soberba viso repleta dos mais inusitadosefeitos sonoros indefinveis... O Stravinsky que assim se referia criao da Sagrao daPrimavera, parece no ser o mesmo que, na era da ciberntica, visita a capital inglesa.Estrutura, srie, equilbrio, inverso, retrogradao, Klangfarbenmelodie weberniana,unidade na variedade e outros conceitos racionais e construtivistas orientam o seu atualcritrio esttico. Se sua escrita serial mais se aproxima de Boulez ou de Schnberg; se maisse achega de Webern ou de Alban Berg; se mais ou menos rigorosa na sua obedincia aoscnones da Escola de Viena, isto no o que nos preocupa. A irreverncia desse espritoperenemente jovem, a fora de sua imaginao que no sucumbe ao do calendrio, apresena dessa figura exponencial no vivo da polmica da criao musical, ativa, sessentaanos depois de ter, ela prpria, modificado profundamente o curso da histria da msica este o complexo de fatores que nos atrai e nos move a admirao maior. Stravinsky , porexcelncia, o anti-Fausto de nossa poca! Ou, como o exprime Sir Herbert Read: Houvecertos artistas que, pela fora de sua universalidade, caracterizaram-se como representantesde sua poca. Dante, Shakespeare, Michelangelo, Goethe. O artista mais representativo dosculo XX no um poeta nem um pintor. Igor Stravinsky.

  • Arnold Schnberg A Cosmo-Agonia de um Revolucionrio comum as pessoas caracterizarem o gnio criador como um ser humano incompatvel com

    sua poca, seus semelhantes, como maldito, mrtir ou fora do mbito dos mortais, por sercompreendido tardiamente em consequncia de sua capacidade precursora. A grande poetisanorte-americana Gertrud Stein, porm, possui, em relao a estas afirmativas, uma outraopinio. Segundo ela, o gnio aquele que consegue entender e atuar em sua poca, corretae criativamente, antes dos outros. A viso de conjunto da evoluo artstica que nos oferece odistanciamento histrico, permite dar a ela inteira razo. Se analisarmos os principais e maisrevolucionrios acontecimentos artsticos do sculo XX, to convulsionado culturalmentepela rpida e excessiva sucesso de valores, vamos observar que nele nada aconteceu forado local e do momento histrico adequados.

    A simples constatao deste fato, porm, jamais facilitou a vida daqueles que, ainda queabsolutamente convictos de suas posies, tenham questionado com vigor os valorescorrentes de seu tempo e, no raro, a incompreenso de seus contemporneos tem levadoartistas criadores a srios atritos com intrpretes, editores, promotores de espetculo, crticos epblico em geral. O passar do tempo e o espao de uma vida humana, porm, tm sidosuficientes para colocar os fatos nos devidos lugares e, com raras excees, os grandesinventores acabaram por experimentar o devido reconhecimento e a admirao geral. Se, peloritmo da mudana, essa rejeio pelo novo tem sido mais comum em nossos dias, convmlembrar que o responsvel pelo mais famoso escndalo musical do sculo XX, IgorStravinsky, com o lanamento em Paris de sua Sagrao da Primavera em 1913, viveu boaparte de sua vida coberto de glrias e honrarias e morreu milionrio numa bela manso emBeverly Hills, na ensolarada Califrnia.

    Este no foi o caso da controvertida e angustiada figura de Arnold Schnberg, seja pelaprpria natureza de seu projeto artstico como por sua origem judaica, fato este que o obrigou aabandonar a Europa Central em consequncia da perseguio nazista quando se encontravano auge de sua maturidade criadora. Quando operava e inventava conceitos e recursossonoros abstratos, formas puras, tcnicas composicionais autossuficientes e despojadas dequalquer engajamento no estritamente musical na busca de uma nova gramtica criadora,vinha em sua mente uma incontrolvel necessidade de expressar, atravs de sua arte, odrama vivido por seus concidados, vtimas da mais brbara chacina de que se tem notcianestes 6 mil anos de histria registrada.

    Outro conflito vivido por Schnberg era de natureza esttica. Tendo nascido em Viena noano de 1874, sua formao deu-se em pleno apogeu do romantismo alemo, perodo em que osangue wagneriano circulava livre e impetuosamente, ocupando praticamente todas asartrias do pensamento musical centro-europeu e no apenas deste. A fim de romper comesse envolvente universo, o qual representava tambm o clmax de um cdigo composicionalinstaurado a partir da Renascena, e rumar para a descoberta de uma nova semnticamusical, Schnberg teve que se autoviolentar e angariar inusitadas energias criadoras, nodetectadas pela quase totalidade de seus contemporneos, exceto por aqueles que, como ele,desviaram o curso da histria das artes. Quem souber apreciar a cristalina, abstrata e rigorosaarquitetura dodecafnica, quase geomtrica, de sua Sute para piano opus 25 ou de seuQuinteto de sopros, jamais poder imaginar que a frase que se segue foi dita por ArnoldSchnberg: Aquele que no possuir o romantismo em seu corao, um ser humanodecrpito.

    Na anlise da dura trajetria entre esses dois extremos da personalidade de Schnberg que reside o material deste trabalho.

    Dentre as tendncias renovadoras que se delineavam na msica do incio do sculo XX,

  • aquela que Schnberg representava era, sem dvida, a mais polmica. Ela pretendiaestilhaar a prpria estrutura tonal, ou seja, o cdigo de entrelaamento sonoro que vigorava,h sculos, quase como um sinnimo da prpria msica ocidental. Sejamos um poucodidticos: desde a Grcia antiga, o ser humano deste lado do mundo se havia habituado aouvir melodias, a pensar linear, horizontalmente, em msica. Do fim da Idade Mdia emdiante, ele passou a ouvir tambm harmonias, acordes, a pensar tambm verticalmente. Dorelacionamento desses dois pensamentos surgiu um terceiro: a tonalidade. O tom (o dmaior, f sustenido menor etc.) era um polo imantado de onde partia e onde chegava acomposio. A narrativa passou a ter uma lgica, um fraseado, uma estrutura. At ento, amelodia, ou as melodias, fluam descomprometidamente. Se estancssemos um cantogregoriano num ponto qualquer o ouvinte no saberia distinguir se aquele seria ou no overdadeiro final. A partir da tonalidade, a audio musical adquiriu pontos de referncia ebaseava-se em princpios como incio-meio-e-fim, tenso afrouxamento, consonncia dissonncia. A narrativa musical ganhava forma, tanto quanto a literria, a partir da instauraodo soneto com Petrarca. O advento da tonalidade coincide com o da perspectiva na pinturafigurativa ocidental da Renascena.

    Esse sistema tonal de composio, que chegou ao aprimoramento absoluto a partir de Bach,atingiu na obra de Wagner o seu ponto mximo de dilatao cita-se, em geral, o Preldio dapera Tristo e Isolda como smbolo desse estgio, pois nele o autor consegue ludibriar atal ponto o ouvinte que, tendo como polo, como ponto de referncia a tonalidade de lmenor, esta nunca comparece na obra. Aqui era dada, portanto, a senha sutil e precisa para asubverso do imprio tonal e o simblico ponto de partida de um novo caminho para aorganizao sonora.

    Mas, no compor em d maior seria o mesmo que tentar trocar o idioma de um pas paradepois mostrar-lhe uma nova literatura. E, de fato, a partir dessa senha wagneriana, mais desessenta anos seriam necessrios, ou seja, o espao de tempo de uma gerao, para que oartista ocidental chegasse a compor efetivamente com uma nova linguagem. Alm dessamudana do cdigo composicional propriamente dito, havia tambm o aspecto estilstico. Nofim daquele sculo, o romantismo havia atingido o seu ponto mximo de saturao. Masgrande era a quantidade de autores, inclusive os que faziam msica de boa qualidade, comoRichard Strauss ou Mahler, que pretendiam arrast-lo para dentro de nosso sculo, ainda quetachados, com certa ironia, de Sptromantiker romnticos tardios.

    Schnberg soube entender e mesmo exercitar muito bem o pathos wagneriano, mas, em vezde tentar espich-lo ou moderniz-lo, como o fez Richard Strauss, ele provocou a suaimploso. Ao contrrio de Debussy, que assumiu um radical distanciamento daquele estilo etcnicas composicionais, tecendo por fora e lentamente a sua contribuio renovadora,Schnberg provocou um envenenamento na engrenagem das formas, levando-as aosuperlativo da expressividade, ao conflito, a uma neurtica e impulsiva subjetividade onde oindivduo situava-se como centro absoluto, intrprete e juiz do universo. A evoluo dessecomportamento espiritual, que veio desembocar em nosso sculo no expressionismo; quecontou com figuras como Nolde, Kokoschka, Kandinsky, Chagal e Roualt na pintura;Wedekind, Werfel e Kafka na literatura; Wiene, Lang, Pabst, Dreyer e Murnau, no cinema, teve,em msica, na obra de Arnold Schnberg, o seu carro-chefe.

    A atividade artstica do chamado Mestre de Viena se deu, inicialmente, no apenas atravsda msica, mas tambm da pintura e literatura. Certa vez, ao visitar em Viena a exposio deobras de dois malditos da poca, Klimt e Kokoschka, Schnberg sentiu um incrvel desejo deexpressar tambm pictoricamente seu conturbado mundo interior suas angstias, suasvises. Em muito pouco tempo ele adquiriu a tcnica da pintura e realizou inmeros quadros,

  • alguns figurativos paisagens, retratos e outros abstratos, que foram muito admirados porseus contemporneos, particularmente por Kandinsky. Sua ligao com a literatura j vinha dealgum tempo. Ele foi o autor do argumento de vrias de suas composies e o desejo deescrever texto e msica havia herdado tambm de Wagner. Essa identidade de Schnbergcom a literatura lhe foi muito importante, chegando a declarar que texto e msica formam umaunidade mstica. Embora nem sempre seus textos tivessem o valor artstico de sua msica ouda melhor literatura da poca, eles enquadravam-se perfeitamente dentro de seus propsitosexpressivos. Composies como Die Glckliche Hand (A mo feliz), Erwartung(Expectativa) ou Von Heute auf Morgen (De hoje para amanh), todas com argumentos desua autoria e vazadas numa linguagem exacerbadamente expressionista, plena dealucinaes, angstia e pessimismo, formariam a base esttica do drama musical modernoque atingiu com Alban Berg, seu aluno, seu ponto mais elevado.

    Schnberg, autorretrato e duas mscaras pintadas por ele mesmo.

    Artisticamente, um dos momentos mais dramticos da carreira de Schnberg foi aquele emque se deu conta de que seria necessria a criao de um novo cdigo composicional, sejapara a expanso de suas ideias como do prprio repertrio da msica ocidental. Nessemomento, ele percebe que isso representaria uma ruptura em seu trabalho, que significavano apenas um rompimento belicoso com a legio de seguidores da tradio tonal, mas aadoo de uma postura intelectual hiperconstrutivista, fria e objetiva, ligada prpria raiz dalinguagem sonora e bem distante da convivncia com os fantasmas que populavam sua almae excitavam sua imaginao. Mas ele chegou l. O seu engenho dodecafnico constituiu-se amais compacta tcnica de composio moderna, com milhares de seguidores nos quatrocantos deste planeta.

    Em linhas gerais, a obra de Schnberg evoluiu da seguinte maneira:No primeiro perodo, nota-se, nas obras mais importantes, uma clara influncia das ideias e

    da tcnica de Brahms menos de seu estilo, propriamente (Brahms foi um arquiteto, umclssico-romntico). No sexteto Verklrte Nacht(Noite transfigurada) op. 4, em sua primeiraKammersymphonie (Sinfonia de cmara) op. 9, nos quartetos op. 7 e 10 Schnberg revela odesejo de escrever uma msica pura, evitando deliberadamente a presena de elementosextramusicais literrios ou pictricos. Nessas obras compostas na virada do sculo, nota-seo emprego de uma harmonia densa e supercromtica, de base wagneriana, porm, bastantemais evoluda tecnicamente. O uso da polifonia constante e a manipulao da escritacamerstica magistral. Paralelamente criao dessas obras, Schnberg dedicou dez anos

  • de sua vida (1900 a 1910) composio das Gurre Lieder (Canes de Gurre). Essa obra foicomposta para o maior conjunto vocal-sinfnico de que se tem notcia na histria da msica(outra forma, talvez, encontrada por Schnberg para ironizar a febre supersinfnica to comumnaquele fim de sculo). Essa obra representava para o autor uma espcie de terapia esttica.Nela ele extravasava todos os resduos romnticos-ps-wagnerianos de seu temperamento,ora homenageando-os ora criticando-os.

    Essas canes, acompanhadas de orquestra mamute, que sacudiam o iderio oficial dapoca e cujo permetro era composto por uma amlgama de Wagner, Mahler e Csar Franck,foi apresentada pela primeira vez em Viena em 1913 com enorme sucesso, alis, o nicosucesso de pblico que Schnberg vivenciou em sua existncia.

    Um segundo perodo iniciou-se na obra de Schnberg a partir da composio das suas 3peas para piano, Op. 11 (1908). Aqui nota-se claramente a efetiva ruptura com a tonalidadeclssica e sua estrutura correspondente. Ao compor essas trs pequenas peas, Schnberg jestava exorcizado do ps-wagneriano-romantismo e das tcnicas oitocentistas, e iniciava,com alguma objetividade, a construo de uma nova e despojada linguagem composicional.Neste marco zero do atonalismo inicia-se tambm o longo calvrio de atritos e angstias,derivado da incompreenso da crtica e pblico em geral. Nos termos seguintes expressou-seo mais importante peridico musical berlinense a propsito da primeira audio dessas trsminsculas obras para piano: Schnberg hoje (1910) o mais radical entre os compositoresmodernos. Essas peas para piano representam uma sistemtica negao de todos osconceitos musicais vlidos. Negao da sintaxe musical e do prprio sistema tonal. Nelas agente percebe apenas uma sequncia de sons, distante de qualquer organizao. Schnbergmata o discurso convencional. A construo sonora ininteligvel. Debussy apenas ameaa.Schnberg executa. Seus sons pairam anarquicamente na atmosfera. Sua obra nos deixaatnitos. Elas so o resultado do mais evidente equvoco. Como se v, o crtico ouviu certo,mas entendeu errado. Consultado a respeito desse parecer, Schnberg retrucou, aqui numatraduo livre: O momento de virar a mesa este. As pessoas no percebem ou no tmcoragem de faz-lo. Deixem comigo essa tarefa....

    A reviravolta proposta pelo Mestre de Viena neste segundo perodo, chamado de atonal,incluiu a transformao do conceito de melodia. Esta deixava de ser simtrica e cadencial. Osmotivos meldicos eram curtos e no se repetiam. Os melismas fluam livremente, incluamgrandes saltos e a inexistncia de pontos de apoio, iniciais ou finais. Havia tambm mudanasbruscas de entoao e intensidades vocal ou instrumental. As sequncias rtmicas perdiam aregularidade e a harmonia no se baseava mais no acorde de trs sons, o qual,tradicionalmente, formava os campos imantados nos quais se apoiava o discurso tonal. Oagrupamento de notas passou a ser livre, e mesmo comum a superposio de blocos sonoros.Nas obras dessa fase, Schnberg consegue superar uma srie de procedimentos bsicos daestrutura tradicional tais como: a formao de temas, o princpio da consonncia dissonncia, os pivs harmnicos referenciais, a orquestrao por associaes ou afinidadede timbres, as chamadas famlias instrumentais, a preponderncia da escrita polifnica,assim como o culto do virtuosismo da execuo. Com a queda desses princpios tradicionais,de uma outra forma tambm sugeridos por Debussy, Schnberg passa a compor durante bomtempo baseado apenas na intuio e livre expresso. Por cautela e para no cometerpecados tonais, ele passa a escrever peas pequenas e para conjuntos menores. Aimpresso que se tinha, como bem observou o crtico berlinense, era de se presenciar umaconstante improvisao. Erwartung uma importante obra desse perodo. Nesse monogramaele narra a histria de uma jovem que busca, noite adentro, seu amado numa floresta,encontrando-o, por fim, morto na soleira da porta de uma rival. Aqui, o manuseio livre e sem

  • arestas do material sonoro e o uso da instrumentao como elemento puramente timbrsticofornecem o colorido necessrio para externar o contedo dramtico da narrativa.

    Representativa dessa fase tambm a sua op. 16, as Fnf Orchesterstcke (5 peas paraorquestra). Numa delas, Schnberg estabelece um bloco de notas sem sentido tonal. Essecacho executado ininterruptamente por toda a obra, variando apenas a instrumentao, ocolorido das notas. A transformao lenta dos timbres oferece-nos a ideia da movimentaosutil de um caleidoscpio sonoro. Eis as notas desse cluster:

    Essa composio revelava tambm o incio de uma tcnica que se tornou muito comum naobra de Schnberg, que se resumia na metamorfose da cor sonora, pura e simples, e que elemais tarde chamou de Klangfarbenmelodie (melodia de timbres). De grande significadohistrico, pela maturidade e fora expressiva daquelas ideias, por representar um pontoculminante de uma tentativa de levar as pessoas alucinao sonora, como diziam, assimcomo o grande impacto causado, foi o melodrama Pierrot Lunaire (1913) considerado pormuitos a obra mais importante desse compositor. Nela Schnberg solidifica a tcnica doSprechgesang (canto falado), uma forma de interpretao onde o solista vocal se expressaatravs de um misto de canto e fala. A partir de suas Fnf Klavierstcke (5 peas para piano)op. 23 (1923), inicia-se no raciocnio de Schnberg um processo de busca de umaorganizao composicional, de uma sistemtica. O empirismo comea a ceder lugar a umaconscincia estrutural, e a livre expresso a ganhar disciplina, um cdigo. Aps quinhentosanos de imperialismo absoluto do sistema tonal, iniciam-se, aqui, as bases de um novo idiomamusical. A partir desse estgio chamado de atonal organizado revela-se na personalidade deSchnberg um agudo senso lgico, estrutural, cartesiano, caracterstica aparentementeinexistente naquele ser humano recm-egresso do mais impulsivo subjetivismo, de umexpressionismo sem parmetros.

    No decorrer dos anos 20, Schnberg trabalha integradamente com seus dois ex-alunos,Anton Webern e Alban Berg, estes tambm j fam