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Lenin

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  • Lenin

  • Lenin

  • Anderson DeoAntonio Carlos Mazzeo

    Marcos Del Roio(Organizadores)

    Lenin:

    Teoria e Prtica Revolucionria

    Marlia/Oicina UniversitriaSo Paulo/Cultura Acadmica

    2015

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS

    Diretor: Dr. Jos Carlos MiguelVice-Diretor:Dr. Marcelo Tavella Navega

    Conselho EditorialMaringela Spotti Lopes Fujita (Presidente)Adrin Oscar Dongo MontoyaAna Maria PortichClia Maria GiachetiCludia Regina Mosca GirotoGiovanni Antonio Pinto AlvesMarcelo Fernandes de OliveiraMaria Rosangela de OliveiraNeusa Maria Dal RiRosane Michelli de Castro

    Ficha catalogr caServio de Biblioteca e Documentao Unesp - campus de Marlia

    Editora a liada:

    Cultura Acadmica selo editorial da Editora Unesp

    L566 Lenin : teoria e prtica revolucionria / Anderson Deo, Antonio

    Carlos Mazzeo, Marcos Del Roio (organizadores). Marlia :

    O cina Universitria ; So Paulo : Cultura Acadmica, 2015. 418 p. : Inclui bibliogra a.

    ISBN:

    1. Lenin, Vladimir Ilitch, 1870-1924. 2. Cincia poltica. 3. Revolues e socialismo. 4. Comunismo. I. Deo, Anderson. II.

    Mazzeo, Antonio Carlos. III. Del Roio, Marcos.

    CDD 320.5322

  • SUMRIO

    Apresentao ................................................................................... 7

    PrefcioMiguel Vedda ................................................................................... 11

    PARTE I

    Possibilidades Lenineanas para uma Paidia ComunistaAntonio Carlos Mazzeo ..................................................................... 31

    Lutas de Classes, Luta Revolucionria e Partido em Lenin: Signiicado e Atualidade do Que Fazer?Marcelo Braz .................................................................................... 57

    O Partido Revolucionrio, Vanguarda Consciente do Proletariado:a Concepo de LninRonaldo Coutinho ............................................................................ 83

    Lenin e a InternacionalMarcos Del Roio ............................................................................... 105

    PARTE II

    Lenin: da Poltica Cultural e dos Artigos Sobre L. TolstoiJos Paulo Netto ............................................................................... 131

    As Divergncias entre Lnin e Trotsky e Seu Contexto HistricoOsvaldo Coggiola .............................................................................. 165

  • Lnin e a Crtica ao ChauvinismoJeferson Rodrigues Barbosa................................................................ 199

    A Questo do Direito em LninJair Pinheiro .................................................................................... 223

    Lenin e a Crtica Viva da Economia PolticaFernando Leito Rocha Junior ........................................................... 245

    PARTE III

    Maritegui e a Traduo Latino-Americana do LeninismoLeandro Galastri .............................................................................. 281

    Clausewitz, Marx, Engels e Lenin: Rupturas, Continuidades ou Parentescos Intelectuais na Relao entre Guerra e Revoluo?Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos.................................................. 299

    Lenin: Dogmtico e Doutrinrio ou Protagonista de uma Hegemonia Realizada?Gianni Fresu .................................................................................... 315

    Sobre o Leninismo de GramsciMarco Vanzulli ................................................................................. 345

    Lukcs, Lenin e o Caminho para Marx: ApontamentosAnderson Deo ................................................................................... 367

    Lukcs Intrprete de LeninAntonino Infranca ............................................................................ 385

    Sobre os Autores .............................................................................. 413

  • 7APRESENTAO

    Vladimir Ilitch Ulyanov ou se quiserem, Lnin, foi a maior ex-presso revolucionria marxista do sculo XX. Nascido em 10 de abril de

    1870, em Simbirsk, de um pai professor e diretor de escola e de uma me

    muito culta, Lnin cresceu em contato com a msica e a literatura, lendo

    os escritores proibidos como Dobroliubov, Pissarev e Tchernychevsky,

    cujo romance Que Fazer? o impactou com profundidade. Outra inlun-cia decisiva na vida do jovem Vladimir foi a de seu irmo mais velho,

    Alexandre, militante do populismo russo, executado pelo governo do Czar,

    em 1887, que lhe deu o primeiro volume de O Capital de Marx.

    Terminado o liceu, de onde saiu com a medalha de ouro de me-

    lhor aluno, Lnin inscreve-se na Faculdade de Direito da Universidade de

    Kazan, em agosto de 1887. Ali entra em contato com grupos revolucion-

    rios e em meio s agitaes estudantis, acaba sendo expulso da universida-

    de em dezembro. A partir de ento, Lnin ser permanentemente vigiado

    pela polcia czarista. Em 1889 ixa-se em Samara e frequenta um crculo

    populista, em que realiza crticas a seus mais expressivos dirigentes, tendo

    por referncia as obras Marx e de Engels. Em 1890 consegue autorizao

    para inscrever-se na faculdade de Direito de So Petersburgo, onde forma-

    -se advogado. Naquela cidade advoga para trabalhadores e entra em con-

    tato com grupos marxistas. Ali conhece a jovem universitria e militante,

    Nadejda Krupskaja, com quem se casar mais tarde. Em So Petersburgo

    sua militncia ser intensa, participando de reunies com operrios, escre-

    vendo panletos e textos para subsidiar operrios em greve.

    Em 1895 encontra Plekhanov na Sua e, de volta a So Petersburgo,

    depois de uma breve estada em Paris, funde aproximadamente vinte crcu-

    los marxistas formando a Unio de Luta, organizao militante fortemente disciplinada, que age unindo o pensamento socialista ao movimento ope-

    rrio. A Unio rapidamente publica um jornal. Pode-se dizer que a est o

  • Anderson Deo; Antonio Carlos Mazzeo &

    Marcos Del Roio

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    8

    embrio de sua organizao revolucionria. Em 9 de dezembro de 1895 a

    polcia invade a sede da Unio e prende Lnin, que passa quatorze meses na priso. Entre sua estada nas prises de Petersburgo e Kranoiarsk, na Sibria

    e depois, na aldeia de Chuchenskoie, s margens do rio Ienissei, escreve O Desenvolvimento do capitalismo na Rssia, alm de outros escritos, como As Tarefas dos Socialdemocratas Russos e A Que Herana Renunciamos. Alm dis-so, l intensamente Marx e Engels, Kant, Helvtius e Holbach. Tambm

    dedica-se leitura de revisionistas como Berstein e dos economistas. A

    partir da Lnin passa a ser um expoente da socialdemocracia, de oposio

    ao reformismo, ao revisionismo e ao dogmatismo.

    Lnin no foi um apenas revolucionrio routinier, praticista e em-pirista. Tampouco um elaborador teoricista, mas que em sua prxis articula

    umbilicalmente ao e relexo sobre a realidade concreta. Na formulao do jovem Lukcs, j em 1924, Lenin realizou na era do imperialismo o que

    Marx havia feito ao analisar a primeira fase do desenvolvimento global do ca-

    pitalismo.1 Nesse sentido, muitos tericos marxistas, antes e depois de Stalin,

    consideraram o leninismo o marxismo da era imperialista, como Gyrgy

    Lukcs, Henri Lefebvre, Luciano Gruppi e Louis Althusser, entre outros.

    Lnin foi idealizador e organizador do partido de Novo-Tipo, que transcendeu o que at ento, entendia-se como partido poltico, isto , as

    tradicionais organizaes polticas voltadas para a atuao institucional e

    parlamentar. A novidade da concepo de organizao poltica, nucleava-

    -se numa forma-organizao revolucionria que pressupunha a formao intelectual de seus militantes, particularmente dos trabalhadores, elevan-

    do-os condio de intelectuais de sua classe. Esse fundamento foi o ele-

    mento basilar para as posteriores formulaes do dirigente comunista ita-

    liano Antonio Gramsci, considerado o seguidor de Lnin que ir atualizar

    e aprofundar seu conceito de partido de Novo-tipo. No podemos deixar de ressaltar que Lenin est inserido no aceso debate da II Internacional

    no perodo que medeia a Comuna de 1871, em Paris, e a realizao da

    Revoluo Russa de 1917 , o confronto central contra o dogmatismo e

    o reformismo, representado por Bernstein e Kautsky e suas consequentes

    interpretaes deterministas, que mesclavam o positivismo, principalmen-

    1 Veja-se, G. Lukcs, Lenin teoria e prassi nella personalit di um rivoluzionario, Roma, Einaudi, 1976, pg. 13 e segts

  • 9Lenin: teoria e prtica revolucionria

    te as formulaes de Darwin e Spencer com as teorias marxianas,2 que

    incidiam tambm, nas interpretaes a cerca dos caminhos da ao revo-

    lucionria3. De um lado, o evolucionismo, principalmente o de expresso

    kautskysta e de outro o revolucionarismo nas mais variadas correntes.4

    Lnin empreende uma dura luta terica, escrevendo textos dire-

    cionados no somente ao combate da inluncia positivista no movimento

    operrio e crtica do espontanesmo, etc, mas tambm e ao mesmo tem-

    po, contra interpretaes que ossiicavam a teoria social de Marx. E como

    consequncia do embate terico travado no seio do movimento operrio,

    Lnin apresenta sua proposta de Partido Revolucionrio de Novo-Tipo. Mas a elaborao de sua teoria do imperialismo que permite ao revolucionrio russo vislumbrar a possibilidade de revolues proletrias em todas as par-

    tes do mundo, pondo a atualidade da revoluo na ordem do dia para o

    movimento socialista e comunista. O conceito da atualidade da revolu-

    o o fundamento de toda uma poca. Como deine Lukcs,5 a atuali-

    dade da revoluo signiica, que toda problemtica singular atual deve ser considerada na relao com a totalidade histrico-social, que deve ser vista como um momento de emancipao do proletariado. Nesse sentido, Lnin

    diferencia-se por seu pensamento soisticado, em que imbricam-se conhe-

    cimentos econmicos, ilosicos, polticos e organizativos. Isso o fez o

    grande pensador revolucionrio, um intelectual militante que no somente

    pensou a revoluo em suas complexidades, como tambm a realizou.

    2 Como ressalta E. Hobsbawm: [...] a estranha mistura de Marx com Darwin, Spencer e outros pensadores positivistas que com tanta frequncia passava por marxismo [...] Com efeito, no Ocidente, a primeira gerao convertida ao marxismo. De modo geral jovens nascidos por volta de 1860, tendia a mesclar Marx com as inluncias intelectuais predominantes na poca [...] Em contraste, na Europa Oriental, socialmente explosiva, nenhuma outra explicao do fenmeno que transformou o sculo XIX em modernidade podia competir com a do marxismo, cuja inluncia tornou-se correspondentemente profunda, antes mesmo que esses pases hou-vessem desenvolvido uma classe operria, quanto mais movimentos operrios ou ideologias burguesas relevantes alm de nacionalismo locais. Como Mudar o Mundo Marx e o Marxismo, SP, Cia. Das Letras, 2011, pg. 203. 3 Na deinio de E. Ragionieri: [...] por marxismo da Segunda Internacional, entende-se, em geral, uma interpretao e elaborao do marxismo que reivindica um carter cientico para a sua concepo da histria, na medida em que indica nela o desenvolvimento segundo uma necessria sucesso de sistemas de produo econmica, conforme um processo evolutivo que s no limite considera a possibilidade de rupturas revolucio-nrias emergentes do desenvolvimento das condies objetivas, apud F. Andreucci, A Difuso e a Vulgarizao do Marxismo, in E. Hobsbawm (org) Histria do Marxismo O Marxismo na poca da Segunda Internacional (primeira parte), RJ, Paz e Terra, 1982, pg. 24 vol. 2. Ver tambm, K. kautsky, A Ditadura do Proletariado in Kautsky/Lenin, Ed. Cincias Humanas, SP, 1979, pgs. 03 87. 4 Veja-se A. Deo, As Anomalias da Social-Democracia Brasileira, in Revista Novos temas, SP, ICP, 2012, pg. 96 e segts, n 075 Lukcs, op. cit. , pg. 15

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    O livro que hora apresentamos ao pblico o resultado de um esfor-

    o coletivo que teve incio com o VI Seminrio Internacional Teoria Poltica

    do Socialismo Lenin 90 anos depois: poltica, ilosoia e revoluo, realizado nos dias 25, 26 e 27 de novembro de 2014, nas dependncias da Faculdade de

    Filosoia e Cincias da Unesp/Marlia. A iniciativa para organizao do even-

    to partiu do Grupo de Pesquisa Ncleo de Estudos de Ontologia Marxiana

    Trabalho, Sociabilidade e Emancipao Humana (NEOM), do Grupo de

    Pesquisa Cultura e Poltica do Mundo do Trabalho, do Instituto Caio Prado

    Jnior, do Instituto Astrojildo Pereira e do Programa de Ps-Graduao em

    Cincias Sociais da Unesp/Marlia. O evento contou com o imprescindvel

    inanciamento da Fapesp, do CNPq e da Capes, s quais agradecemos.

    Academicamente conhecido como Seminrios TPS, a sexta

    edio de nossa atividade s foi possvel devido ao envolvimento notvel

    dos estudantes de Graduao Douglas de Melo Justino da Silva, Luana

    Braga Batista, Samuel Estevo Vieira da Silva e aos estudantes do Programa

    de Ps-Graduao Alexandre Barbosa Pinto Jnior, Eder Fernando dos

    Santos, Eder Renato de Oliveira, Joo Vicente Nascimento Lins, Leonardo

    Sartoretto, Rodrigo Bischof Belli e Rodolfo Sanches. Tambm imprescin-

    dvel realizao do evento, o trabalho de toda a equipe do STAPE/Marlia

    deve ser reconhecido. Para tanto agradecemos ao Rogrio Seibel, em nome

    do qual estendemos nossos agradecimentos a todos os funcionrios da se-

    o. O trabalho de Maria Rosangela de Oliveira e Edvaldo D. dos Santos,

    do Laboratrio Editorial da Unesp, foi fundamental edio do presente

    livro, a quem tambm registramos nossos agradecimentos.

    Os captulos que compem a presente obra resultam das comunica-

    es e debates ministrados pelos conferencistas durante esse seminrio. Cabe

    notar que, no ano que marca a efemride do nonagsimo aniversrio da morte

    de Lenin, pouqussimas foram as iniciativas acadmicas ou de outra ordem

    que se dedicaram ao exame e debate de sua obra terica e poltica. O que faz

    desse livro uma importante iniciativa para o resgate e difuso da problemtica

    terica e prtica proposta por Lenin, sobretudo entre as novas geraes.

    Os organizadoresMarlia, Primavera de 2015.

  • 11

    PREFCIO1

    Miguel Vedda

    Ubi Lenin ibi Jerusalem onde est Lenin, al est Jerusalm -: a frmula de Ernest Bloch, uma das vrias expresses da conluncia entre messianismo e marxismo que perpassaram boa parte do sculo XX, quali-ica muito bem a funo que o lder bolchevique cumpriu exemplarmente como smbolo e signo para as lutas revolucionrias em todo o planeta. Inmeras vozes de Geroges Sorel a Gyrgy Lukcs, de Bertold Brecht a Pablo Neruda, de Jos Carlos Maritegui a Slavoj iek se lanaram, em lnguas e circunstncias muito diversas, em defesa da pessoa e da obra de Lenin: de sua efgie poltica ao seu legado terico e organizativo. As mais variadas mudanas que esse quadro sofreu, em particular durante as ltimas dcadas, no se devem, essencialmente, descoberta das falhas que Lenin, sendo mortal, incorreu; devem-se, sobretudo, lgubre sombra que falsamente o perodo stalinista projeta sobre o passado sovitico e, ain-da mais, ao efeito devastador que tiveram, sobre o pensamento e a prxis revolucionrios, a poltica econmica e os estratagemas polticos e ideol-gicos do neoliberalismo, ante os quais, amplos setores da intelectualidade internacional resolveram capitular. Em artigo includo nesse volume que apresentamos, Gianni Fresu airma acertadamente: O sculo XX tem sido descrito como o sculo dos horrores, das ditaduras e, nessa leitura apoca-

    1 Traduo: Soia Manzano: Economista e professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB. Autora do livro Economia poltica para trabalhadores (So Paulo, ICP, 2013).

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    apresentamos, Gianni Fresu airma acertadamente: O sculo XX tem sido descrito como o sculo dos horrores, das ditaduras e, nessa leitura apoca-lptica, Lenin representado como a origem do pecado, o diabo respons-vel pelas desgraas e os lutos de um sculo ensanguentado ( ). Porm, ao mesmo sculo XX pertence aquela esplndida sada do sol que representou, para a histria humana, a ecloso da Revoluo de 1917. A essa reminis-cncia hegeliana poderia seguir outra: como se sabe, na Fenomenologia do Esprito se l que ningum um heri para seu criado, no porque o pri-meiro no seja um heri, e sim porque o segundo apenas um criado, que no v naquele o heri, mas to somente o homem que come, bebe e se veste. Isto nos diz algo acerca do ponto de vista sobre o qual tantos intelec-tuais do nosso tempo julgam um homem de ao como foi Lenin: reclusos em campi, defrontados com minsculos dramas de cmara como os que envolvem a busca de inanciamento para as prprias investigaes ou na maquinao de pequenas intrigas com seus colegas, encontram compre-ensveis diiculdades para entender algum que decidiu consagrar sua vida luta para transformar em realidade a emancipao humana. Hegel to respeitado por Lenin no s qualiicou as crticas moralizantes contra os grandes homens de vil porque divide a ao e produz e retm sua desigual-dade com ela mesma, como tambm de hipcrita, j que no apresenta tal juzo como sendo outra maneira de ser mau, seno como a conscincia justa da ao, que se sobrepe a si mesma na sua irrealidade e vaidade de bem saber e melhorar os fatos desdenhados, e querem que seus discursos imperantes sejam tomados como uma excelente realidade3. E maldade e hipocrisia o que caracteriza, justamente, a intelectualidade hegemnica de nosso tempo, empenhada em ocultar inclusive perante ela mesma a pe-quenez de seus objetivos e em escamotear a evidncia de que a perseguio de uma inalidade verdadeiramente importante para a humanidade pode, muito bem, conter, como possibilidades, o erro e o fracasso, momentos de cega obstinao e inclusive de intolerncia dogmtica. No entanto, esses fracassos no implicam que este compromisso com o gnero humano seja ininitamente mais legtimo que uma condescendncia indolente ante o status quo que se cr nobre porque no sujou suas mos com nenhuma prxis orientada a transform-lo.

    3 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, Fenomenologa del Esptitu. Trad. de Wenceslao Poces, com a colaborao de Ricardo Guerra. Mxico: FCE, 1966, p. 388.

  • 13

    Lenin: teoria e prtica revolucionria

    Nesse contexto, seria possvel examinar, a partir de uma pers-pectiva contempornea, a inteira isionomia de Lenin. Aquele que queira estuda-lo de forma sria e, tambm, comprometida, deparar-se-, nas atu-ais circunstncias, com um contexto singularmente propcio: extinto em grande medida o conceito sectrio, dogmtico de partido que contami-nou a militncia marxista internacional durante as pocas stalinista e ps--stalinista, est aberto o caminho para uma prtica poltica experimental, ensastica, que no concebe a luta terica e prtica como a aplicao de uma receita dada. Sobre as bases de um modelo de explorao livre de tais caractersticas, Marx procurou desenvolver suas relexes desde o comeo; e a imperecvel riqueza de suas investigaes se deve, em grande medida, a seu empenho em rastrear a verdade no na escritura sagrada de Hegel ou de Ricardo, mas no exame livre e no tendencioso do concreto real. Lukcs escreveu que todo grande realista pode reagir negativamente no plano poltico, moral, etc. frente a muitos fenmenos de sua poca e frente evoluo histrica; mas, em certo sentido, est enamorado da realidade, considera-a sempre com os olhos de um enamorado, ainda que, eventual-mente, escandalizado e indignado4. Nesse sentido pode-se falar de Marx como um pensador realista; nesse sentido pode-se dizer que o realismo sem fronteiras um trao de identidade fundamental do autor de O Capital que deveria incorporar todo marxista como princpio metodolgico bsico. Em certa ocasio escreveu Siegfried Kracauer diferenciando-se daqueles que degradam o pensamento revolucionrio com adaptaes conformistas aos aparatos doutrinrios herdados que deveria ser um imperativo dos in-telectuais marxistas colocar radicalmente em dvida todas as posies da-das. Quer dizer, devem confrontar seus conceitos herdados, e precisamente aqueles que so, na aparncia, irremovveis, com os resultados da teoria revolucionria e, em seguida, dar conta da realidade concreta que preserva aqueles conceitos5. A solidariedade genuna do intelectual com a causa do socialismo no se apoia, pois, na repetio de ladainhas, mas na contnua reviso das ferramentas do pensamento, j que a airmao rgida, adial-tica dos ideais socialistas enumerados degenera facilmente em sabotagem

    4 Lukcs, Gyrgy. Was ist das Neue in der Kunst? (1939-1940). In Benseler, Frank und Jung, Werner (eds.), Lukcs 2003. Jahrbuch der Internationalen Georg-Lukcs-Gesellschaft. Bielefesld: Aistheses, 2003, pp. 11-102; aqui p. 44.5 Kracauer, Siegfried. Minimalforderung na die Intellektuellen [Die Neue Rundschau 2/7, ano 42 (julho de 1931), pp. 71-75]. In: Schriften 5, vol. 2, pp. 352-356; aqui, p. 354.

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    do socialismo e os intelectuais que cedem ante o dado real, depem suas armas ante uma utopia6. Em concordncia com esta proposta, cabe ainda ressaltar, entre as diversas facetas de Lenin, o lder poltico avesso a aplicar prescries que precisamente possuam estatuto de lei para a doutrina marxista e preocupado, ao contrrio, em examinar minuciosamente as circunstncias histricas com as quais se faz urgente enfrentar. sugestivo que sejam justamente estes traos os que aparecem destacados com maior intensidade nas anlises mais lcidas e produtivas que se tem escrito sobre Lenin. Em seu conhecido opsculo desaiou, por exemplo, Lukcs qual-quer tentativa de encontrar nas declaraes e aes de Lenin receitas ou instrues aplicveis a casos especicos; o lder bolchevique no ofereceu verdades universais, mas atuou sempre sobre a base de uma anlise concre-ta sobre uma realidade concreta, sobre a base de uma considerao dialtica da histria. signiicativo que, luz de posies lukacsianas anteriores, o autor do opsculo condene as generalizaes mecnicas das indicaes de Lenin, das que unicamente poderia derivar um leninismo vulgar, quer dizer: uma imagem grotescamente distorcida do original.

    De um modo prximo ao de Lukcs, Fresu assinala em seu artigo, que possvel identiicar um io vermelho na atividade terica e poltica de Lenin, exatamente na recusa metodolgica das orientaes mais esque-mticas e rgidas do determinismo marxista, predominante no movimento socialista na passagem do sculo XIX para o sculo XX [...]. E, de fato, parte da importncia histrica de Lenin reside na sua determinao em colocar continuamente prova os prprios axiomas tericos luz da rea-lidade contempornea; determinao baseada no imperativo de aprender a partir do real, no lugar de tratar de impor sobre o real uma perspectiva abstrata. Coerente com tais pontos de vista de princpios a averso de Lenin a um determinismo pelo qual se sentiam cativados numerosos revi-sionistas; sem cair no voluntarismo recordemos suas intervenes sobre os debates sobre o parlamentarismo; da maneira mais notria, no cle-bre Esquerdismo, doena infantil do comunismo (1920) -, Lenin no deixou de insistir na transcendncia do fator subjetivo. Enquanto tantos outros marxistas acreditavam melhor atender aos mandamentos do materialismo histrico ao superestimar os fatores objetivos e concluir, consequentemente,

    6 Id.

  • 15

    Lenin: teoria e prtica revolucionria

    que a prpria dinmica interna do capitalismo uma via de direo nica que conduzir diretamente emancipao, tornando-se cada vez mais im-possvel a delagrao de guerras e crises econmicas, Lenin compreendeu que a marcha do imperialismo, se deixada por sua prpria conta, s pode-ria conduzir a humanidade a uma catstrofe sem precedentes. Em nossa opinio, entre o aborrecimento leniniano ante as receitas e esquemas e sua oposio ao economicismo em suas diversas expresses: o ultraimperia-lismo, o proudhonismo russo existe uma raiz comum: ambas provm do impulso de sacudir as condies sociais fossilizadas e coloca-las em mo-vimento, encaminhando-as em direo ao melhor. Contra o objetivismo positivista de vrias iguras dirigentes da Segunda Internacional, Lenin es-tava convencido de que se exigia uma interveno ativa e contnua para retirar as condies histricas s longas divagaes que se lhes induziu as iluses do progresso. Nisto est mais de acordo com a teoria de Marx que muitos discpulos presumidamente ortodoxos; de fato, a obra marxiana est integralmente recortada pelo af de desmantelar as estruturas ossi-icadas que impedem o desenvolvimento livre dos homens. Isto se pode perceber j nos escritos iniciais, nos quais o ilsofo deplora as condies da Alemanha: no em vo que em Para uma crtica da Filosoia do Direito de Hegel. Introduo (1844) o artigo em que, pela primeira vez, Marx menciona o proletariado como classe destinada a converter-se em agente da revoluo social e, por im, opresso de classe se l que se devem obrigar a estas circunstncias petriicadas a danar cantando sua prpria melodia7. A ediicao constante de um pensamento dinmico concen-trado em rastrear os meios para introduzir um dinamismo libertador sobre a realidade que se encontra explcito em numerosos escritos marxianos, e que assume formas esttica e argumentativa brilhantes no Manifesto est arraigada em uma aposta a favor da prxis que encontra sua mais conheci-da expresso aforstica na proposio segundo a qual no se trata somente de descobrir o mundo, mas, antes de tudo, transform-lo.

    A nfase sobre a prxis transformadora a base para as frequentes acusaes de blanquismo que Lenin teve que enfrentar. Rosa Luxemburgo e os mencheviques, em particular, associaram o bolchevismo e seu lder

    7 Marx, Karl. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung. In Marx, Karl / Engels, Friedrich, Werke (=MEW). Edio do Institut fr Marxismus-Leninismus (ZK/SED). 43 vols. Berlim: Diets-Verlang, 1956ss., vol. 1, p. 381.

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    com uma poltica do Putsch; isto : com a reduo de uma prtica revo-lucionria derrocada da ordem poltica vigente mediante a conspirao. Se assim, Lenin havia representado um retrocesso diante a poltica dos conspirateurs de profession, da qual o Manifesto Comunista havia rompido, com a conhecida frmula segundo a qual chegado o momento de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos, suas tendncias, opondo um manifesto do prprio partido lenda do espectro do comunismo8. De maneira pontual, Marx havia deinido a quem, diga-se de passagem, tambm recebeu acusaes de blanquismo os traos essenciais da poltica conspirativa:

    A nica condio da revoluo , para eles, a suiciente organizao da sua conspirao [...]. Se lanam sobre invenes que produzam mi-lagres revolucionrios: bombas incendirias, mquinas de destruio de efeito mgico; inovaes que iro atuar de maneira tanto mais mi-lagrosas e surpreendentes quanto menos possuem uma base racional. Ocupados com tal fabricao de projetos, no tem outro im que a derrocada imediata do governo existente, e depreciam da maneira mais profunda os conhecimentos tericos dos trabalhadores acerca de seus interesses de classe. Por isso seu dio no proletrio, mas plebeu aos habit noirs (trajes pretos), as pessoas mais ou menos formadas, que representam essa ala do movimento, dos quais aqueles, no entanto, no podem se tornar completamente independentes, na medida em que estes so os representantes oiciais do partido.9

    Uma leitura mais atenta desta deinio j ressalta importantes ele-mentos para entender por que o leninismo no uma reedio do blanquis-mo. No s pela insistncia permanente de Lenin sobre a necessidade de ilustrar teoricamente as massas e o partido, mas tambm por sua convico de que as revolues no so atos que podem ser traados e executados, em qualquer conjuntura, por uma pequena elite de conspiradores. Por isso que seu objetivo, tendo em vista as circunstncias russas, no tenha sido produ-zir uma insurreio ex nihilo; substancialmente realista, Lenin sabia em consonncia com a airmao marxiana de que os homens fazem sua pr-pria histria, mas em condies que no foram criadas por eles que uma

    8 Marx, Karl / Engels, Friedrich, Maniiesto del Partido Comunista. Apndice: Friedrich Engels, Principios del

    comunismo. Introduccin, traduccin y notas de Miguel Vedda. Buenos Aires: Herramienta, 2008, pp. 22 e ss.9 Marx, Karl y Engels, Friedrich. Bespr von Adolphe Chenu. Les conspirateurs, Paris, 1850, und Lucien de la Hodde. La naissance de la Republique en fevrier 1848, Paris 1850. In Die Neue Zeit (1886), p. 555.

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    Lenin: teoria e prtica revolucionria

    situao revolucionria s pode ser o resultado de um complexo processo, dentro do qual a existncia de condies objetivas possui uma funo capi-tal. O realismo poltico de Lenin, to celebrado pelo velho Lukcs, consiste justamente em haver sabido ler a possibilidade objetiva da transformao revolucionria dentro das circunstncias russas, de um modo parecido a um artista que consegue ver a esttua escondida, como uma latncia, dentro do bloco de mrmore. E assim como necessrio desbastar a madeira bruta para que surja, com contornos precisos, a obra perfeita que dorme na pedra, assim tambm entendia Lenin necessrio o trabalho consciente do partido para que o proletariado no permanea restringido sua conscincia espontnea que, abandonada a si mesma, no se transformar em uma cons-cincia socialista, ser no mximo uma conscincia tradeunionistas. Para que o proletariado efetivamente se converta no que essencialmente para que logre situar-se altura de sua misso histrica faz-se necessrio o trabalho formador do partido. Em um artigo escrito em 1968, o velho Lukcs faz referncia importncia que possua, para Lenin, a dimenso educativa e autoeducativa dos lderes polticos; assim disse, em aluso ao modo como Lenin se apropria das Teses sobre Feuerbach:

    A constatao de que o educador (o estamento dos lderes sociais da revoluo socialista) deve, ele mesmo, ser educado, se dirige, por um lado [em Lenin] contra todo utopismo que airma que o desenvol-vimento da humanidade pode ser substitudo por uma compreenso espirituosa e certamente imaginada de um estado concludo e alm de toda problemtica -; por outro lado, contra o materialismo histri-co concebido mecanicamente que pretende estabelecer cada soluo como um simples produto espontneo e necessrio do desenvolvimen-to da produo -.10

    Para Lenin, o fator subjetivo no somente uma condio ine-vitvel do movimento ao socialismo, tambm o verdadeiro promotor da conscincia revolucionria; embora seja impossvel, claro, fazer a revo-luo sem o apoio do proletariado. Com seu trabalho incessante, deveria se diferenciar o partido e, em especial, seus lderes, daqueles dirigentes da

    10 Lukcs, Gyrgy, Lenin und die Fragen der bergangsperiode. O artigo foi escrito por Lukcs em 1968, e publicado pela primeira vez em Georg Lukcs zum 13. April 1970 (Goethepreis). Neuwied y Berln: Luchter-hand, 1970, pp. 71-88.

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    Segunda Internacional que, nas palavras de Lenin, so revolucionrios nas palavras e reformistas nas aes.

    As principais diretrizes da teoria leniniana foram traadas entre 1901 e 1903. A partir da, foi assumindo contornos ntidos, uma concepo que foi se aprofundando e se ampliando nos anos seguintes e que representa uma autntica renovao do marxismo. Como aspecto central dessa teoria, pode-se mencionar a proposta de aliana entre proletariado e campesinato como condio indispensvel para a vitria da revoluo na Rssia, a insis-tncia sobre a transcendncia da questo nacional, as relexes j mencio-nadas por ns acerca do papel do partido, face ao movimento espontneo da classe trabalhadora e a caracterizao do perodo imperialista do capitalis-mo como um cenrio histrico diferente do capitalismo clssico. O ponto de vista sugerido pelo lder bolchevique frente a cada uma destas questes valeu a Lenin os qualiicativos de revisionista ou de antimarxista. E esta ava-liao to errada quanto a dos stalinistas, que se obstinaram a postular uma conluncia perfeita e sem issuras mgica, religiosa entre os postulados de Marx e os de Lenin, como se pela boca de ambos a mesma divindade pro-ferisse verdades. Para o leitor atento, nos escritos de Lenin pode-se observar como continuao, diante do passado, uma produtiva dialtica de conserva-o e inovao. Nas polmicas contra Bogdanov e os proletkultistas pode-se perceber at que ponto Lenin valorizava a importncia de que o proletariado se aproprie de todos os resultados valiosos da herana cultural humana, in-cluindo os da era burguesa. Assim, quando disse

    O marxismo alcanou sua importncia histrica universal, como ide-ologia do proletariado revolucionrio, porque no rechaou, de modo algum, os mais valiosos feitos da era burguesa, mas, ao contrrio, se apropriou e reelaborou tudo que havia de valioso nos mais de dois mil anos de desenvolvimento do pensamento e da cultura humanos.11

    Por outro lado, Lenin se diferencia nitidamente daqueles marxis-tas que, observando na obra de Marx e Engels uma espcie de escrita sa-grada, obstinam-se em repeti-las como ladainhas e fecham seus olhos para a observao sem preconceitos da realidade histrica. Com razo escreveu

    11 Lenin, V.I. ber die proletarische Kultur. In -, Werke. Vol. 21. Berlim: Dietz, 1959, p. 308.

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    o velho Lukcs, no ensaio citado por ns anteriormente, que na atitude de Lenin diante da tradio

    Coloca-se manifestamente a metodologia leniniana, que o une to profundamente com Marx e que o separa to radicalmente de Stalin e de seus seguidores: a relao orgnica entre o reconhecimento da continuidade de certas tendncias histricas de desenvolvimento e sua necessria mudana de funo radical, nas transies e subverses revolucionrias.12

    Da a disposio de Lenin para revisar suas posies, incorporan-do ao seu pensamento e sua prxis poltica elementos que alteram s vezes, de maneira exaustiva as perspectivas anteriores. Assim, em conso-nncia com este esprito, a leitura da Lgica hegeliana o levou a assumir posies epistemolgicas muito diferentes (e notavelmente mais profun-das) que aquelas colocadas pelas discusses com o empiriocriticismo de Bogdanov e consortes.

    IIAs contribuies do volume que prefaciamos mostram, de maneira

    eloquente, o empenho em reavaliar o legado leniniano tratando, ao mes-mo tempo, de compreend-lo historicamente e de examinar sua vigncia. Destacam a versatilidade de Lenin, que foi capaz de formular relexes inteli-gentes e pessoais sobre literatura e ilosoia, sobre direito e histria, sobre eco-nomia e pedagogia. Muitas vezes tais relexes foram diminudos sublinhan-do que no eram pensamentos de um especialista. A questo, colocada nesses termos, chama a ateno pelo que h de pueril. Dizer que as ideias estticas de Lenin no tm a profundidade das de Ernest Bloch ou Walter Benjamim, ou que suas consideraes epistemolgicas no esto altura das de um Isaac Ilich Rubin ou de um Alfred Sohn-Rethel implica, no melhor dos casos, em trivialidade. Cremos que seria possvel colocar em seu lugar outras pergun-tas; por exemplo: Quantos lderes mundiais, entregues de corpo e alma ao combate poltico, estiveram em condies de desenvolver ideias to agudas como as que formulou Lenin sobre Tolstoi ou sobre Hegel? Imaginemos,

    12 Lukcs, Gyrgy, Lenin und die Fragen der bergansgsperiode, p. 86.

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    praticando um admissvel reductio ad absurdum, um ensaio de George Bush sobre a narrativa de Herman Melville ou a poesia de Walt Whitman; em Carlos Menem proferindo uma conferncia sobre os contos de Jorge Luis Borges; em Angela Merkel realizando observaes crticas acerca das obras dramticas de Johann Wolfgang Goethe, Georg Bchner ou Bertold Brecht. Mesmo esse exerccio obliquamente satrico pode ajudar a compreender a dimenso de Lenin como homem da cultura.

    Em sua contribuio dedicada a examinar as anlises consagradas por Lenin obra de Tolstoi, Jos Paulo Netto mostra, com seu brilhantis-mo habitual, em que medida o lder russo era capaz de abordar de maneira lcida um corpus literrio. Mas no s isso: examinando amplamente o tema que d ttulo ao artigo, Netto desenha um panorama vasto e preciso sobre a poltica cultural de Lenin e do partido bolchevique, antes da cada na larga noite do perodo stalinista. Contra a monotonia cinza do realis-mo socialista impulsionado por Zdhanov e outros burocratas da cultura, Lenin sem renunciar sua confessada predileo pelo realismo literrio empenhou-se em resguardar a pluralidade de estilos; e essa orientao foi seguida inicialmente pelo partido que, na sequncia imediata da morte de seu autor, prosseguiu por um tempo defendendo para a literatura a existncia da pluralidade de correntes artsticas, recusando o monoplio da direo da arte a qualquer tendncia[...]. Em uma linha consistente com a que mo-destamente traamos anteriormente neste prefcio, Netto se apoia em um ensaio leniniano de 1913 para mostrar de que modo Lenin salientou duas notas peculiares ao legado marx-engelsiano: o seu carter aberto, avesso a qualquer esprito de seita e, a despeito da sua originalidade, o fato de constituir-se numa relao de continuidade com o acervo/patrimnio cul-tural precedente[...]. Alm da diversidade temtica, o artigo de Antonino Infranca apresenta vrias coincidncias com o de Netto: profundo e origi-nal estudioso da obra lukcsiana, Infranca revisa, pormenorizadamente, as apropriaes que fez da teoria leniniana o ilsofo hngaro e mostra que o que este admirava no autor de O Estado e a revoluo a capacidade para apreender o ser-precisamente-assim da realidade histrica, sem submet-la rigidamente a esquemas preconcebidos: da que

    Para Lukcs, Lenin nunca deiniu as leis gerais do processo revolucio-nrio e, antecipando a crtica Stalin de trinta anos depois, Lukcs chama de leninismo vulgar qualquer pretenso de encontrar no pen-

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    samento do revolucionrio russo, regras gerais, como por exemplo, a economia planejada, que Lenin jamais considerou uma medida tpica da economia socialista [...].

    Acertada e exata tambm a maneira em que Infranca destaca, em Lukcs, o interesse posto em examinar a dialtica entre continuidade e mudana, entre o velho e o novo, a dialtica entre os tempos histricos do presente e do passado domina no mtodo do marxismo autntico de Marx e Lenin [...]. Esta dialtica, unida mencionada relutncia em reduzir a realidade a moldes abstratos, um atributo deinidor de Lenin e que o distingue nitidamente de um Stalin. O sistema conduzido por este, o qual o velho Lukcs qualiicou de hiperracionalismo, est fundado na determi-nao de submeter o presente aos imperativos rgidos do pasado, obstacu-larizando a captao e elaborao concretas da realidade contempornea e procurando paralizar os cidados em uma cotidianidade coisiicada, des-provida de vnculos com uma hierarquia partidria burocratizada. No em vo, em suas crticas Stalin, Lukcs invoca sempre, como contraexemplo, a Lenin; nas palavras de Infranca:

    Quase sempre, quando Lukcs critica Stalin, o ponto de partida com-par-lo a Lenin, e uma escolha cautelosa, porque questiona uma fonte de legitimidade de Stalin: o fato de considerar-se o melhor herdeiro de Lenin. Lukcs, no entanto, aponta que sobre as grandes questes polti-cas enfrentadas por Stalin, ele nunca seguiu os ensinamentos de Lenin, pelo contrrio, muitas vezes tomou decises opostas s de Lenin [...].

    O artigo de Anderson Deo forma um produtivo pendant com o de Infranca; nele se revisa com escrupulosidade a relao precoce de Lukcs com a teoria leniniana e mostra a maneira em que a mudana de posio a respeito de Lenin acompanha a superao, por parte do grande ilsofo hngaro, do rigorismo tico e o voluntarismo poltico juvenis. Nas pala-vras do autor do artigo, Lukcs, projetando um modelo quase platnico de uma moral comunista pura, em seus primeiros estudos marxistas. Lukcs constri, assim, uma espcie de muralha intransponvel, dira-mos entre a orden burguesa e a pureza tica comunista [...]. O opsculo escrito por ocasio da morte de Lenin representa, como indica Anderson

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    Deo, alguns indcios signiicativos de superao das falhas juvenis; assim, o Lenin mostra uma determinao por preocupar-se com a questo da vida cotidiana dos homens e, sobretudo, com as questes sociais pertinentes ao proletariado. O ilsofo hngaro

    comea a superar sua conceituao anterior de vida cotidiana como si-nnimo de alienao no sentido mesmo de falsa-conscincia que impossibilitaria qualquer forma cientica de compreenso da realida-de, sobretudo ao proletariado, que estaria impossibilitado de enxer-gar para alm das falsiicaes de sua vida imediata [...].

    A constribuio de Leandro Galastri d conta, no s das aini-dades entre Lenin e Maritegui, mas tambm de alguns aspectos em que o primeiro inluenciou o segundo. signiicativo que entre tais inluncias se assinale o princpio de no considerar o edifcio terico do marxismo como um corpo monoltico que deveria ser recebido e aplicado en masse, mas como um mtodo vivo, que necessita ser atualizado e ampliado a partir do enfren-tamento com aquela realidade histrica que se trata de transformar em senti-do revolucionrio. Segundo Galastri, inspirado em Lenin que Maritegui declarara que o socialismo no Peru no deveria ser decalque ou cpia [...], apesar da deinio do socialismo indoamericano sonhado pelo ensasta peruano como uma criao herica denotar, de maneira ostensiva, a inlu-ncia de Sorel. Vrias declaraes de Maritegui asseveram a dvida que este tinha com o autor de O Estado e a revoluo; assim, quando Considera o Partido Bolchevique como a expresso mais evidente da unio entre teoria socialista e prtica revolucionria, concedendo a Lenin o mrito principal de sua conduo [...]. Tambm mostra a inluncia de Lenin, como indica Galastri, o fato de que Maritegui no analise o desenvolvimento do capi-talismo do Peru como um caso nico, limitado ao territrio de um pas, mas como parte de um processo mundial: a alada do capitalismo sua etapa imperialista. Na base destas inluncias leninianas, cabe reconhecer, por outro lado, um substrato social comum Rssia e ao Peru; neste senti-do, mencionam-se dois aspectos das respectivas sociedades: uma populao camponesa enormemente majoritria, submetida a relaes ainda semifeu-dais de trabalho, e um proletariado urbano de formao recente e pouco nomeroso, concentrado em determinados centros[...].

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    De carter comparativo tambm o artigo de Marco Vanzulli, dedicado a examinar o leninismo gramsciano. Examina o modo como o Gramsci logo encontra em Lenin, no uma continuao direta, mas uma superao de Marx, na medida em que a crtica da economia poltica se encontraria substituda, em Lenin, por uma ilosoia da vontade, entendida esta ltima como ato poltico. Empenhado em superar o economicismo evo-lucionista da Segunda Internacional, o jovem Gramsci que neste aspecto mostra semelhanas profundas com o joven Lukcs e Karl Korsch interpre-ta a revoluo bolchevique como uma revoluo contra O Capital de Marx. No desenvolvimento posterior de Gramsci, este ativismo sede passo a uma perspectiva diferente, na qual ocupa lugar central a preocupao pela orga-nizao do partido. Para este Gramsci, imprescindvel a existncia de um partido comunista slido e disciplinado, capaz de coordenar e centralizar toda a ao revolucionria do proletariado. Substancial , no Gramsci madu-ro, o conceito do partido como educador do proletariado. Uma comparao original a que Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos estabelece entre von Clausewitz, Marx-Engels e Lenin. Sobre a base de uma anlise especica, o artigo mostra a natureza essencialmente dialtica do pensamento de von Clausewitz e sugere algumas ainidades entre este e Hegel que poderia ter ajudado a despertar o interesse pelo militar prussiano nos fundadores do materialismo histrico. A continuao no s estuda a recepo marxiana e engelsiana do Da guerra, como tambm examina a inluncia deste trabalho sobre a teoria poltica leniniana. A leitura de von Clausewitz havia assegu-rado, em Lenin, a convico de que as revolues e as guerras so o ponto alto da poltica e se entrecruzam em vrias outras anlises e contextos[...].

    Tambm insiste sobre a transcendncia que possui, para Lenin, a educao, Antonio Carlos Mazzeo, em um artigo que fundamenta, de ma-neira rigorosa e persuasiva, a importncia de uma paideia comunista. Ele reconstri a evoluo histrica das consideraes ilosicas acerca da edu-cao do indivduo para a vida social, desde Plato at Hegel, e indica em que medida os germes progressistas do conceito foram anulados, conserva-dos e superados no triplo sendido da Aufhebung hegeliana pela tradio marxista. Mostra que, para a tradio fundada por Marx, fundamental a ideia de educao em permanente movimento, de modo que os homens se formam continuamente a si mesmos a partir da interao dialtica com

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    a vida natural e a social. Como demonstra Mazzeo, este modelo de forma-o, que Marx elabora a partir de uma leitura crtica da tradio ilosica precedente, retomado e ampliado por Lenin, a quem se situa rigorosa-mente no mbito das concluses marxianas, expressas na ltima tese sobre Feuerbach, isto , a necessidade da prxis no processo do conhecimento e como crtica objetiva ao mero conhecimento interpretativo[...]. Lenin se ocupou de sublinhar que o marxismo no deveria ser entendido como uma ilosoia fantica e sectria, das frmulas prontas e petriicadas pois, segundo sua viso, a teoria social de Marx resulta de rupturas e continuida-des (continuao-dialtica) das doutrinas dos maiores pensadores[...].

    Marcos del Roio coloca a teoria e a prxis leninianas em relao com o desenvolvimento histrico da Internacional Comunista. Apresenta, de maneira detalhada e extremamente precisa, as divergncias fundamen-tais que separavam Lenin dos tericos tais como Karl Kautsky, Rudolf Hilferding ou Rosa Luxemburgo; mas tambm enquadra toda esta pintura histrica na situao da luta de classes no plano internacional. Resenha as discusses em Zimmerwald e detalha a forma em que elas conduziram Lenin a realizar uma crtica radical Social-democracia e proposta de fundao de uma nova internacional. Explica as origens e a justiicao his-trica da Nova Poltica Econmica e a coloca na perspectiva relacional com as posies sustentadas por Lenin no III Congresso da Internacional. Na medida em que o social reformismo amplamente difundido pela Europa naqueles anos era um sustentculo decisivo da dominao burguesa e um anteparo a inluncia dos comunistas [...], Lenin se viu induzido a des-tacar a importncia que se prev da ao das imensas massas subjugadas pelo colonialismo, que podero corroer o consenso interno de que gozam as burguesias imperialistas [...]. Finalmente, del Roio comenta a breve in-terveno de Lenin no IV Congresso, o ltimo que iria assistir o lder bol-chevique. A contribuio de Osvaldo Coggiola tambm est consagrada anlise histrica; o estudioso argentino se apoia em diversas fontes e numa vasta bibliografa para desenvolver, em suas diferentes inlexes, as posies de Lenin e Trotsky diante da realidade de seu tempo. Graas a esta anlise escrupulosa, Coggiola logra desarticular infundados preconceitos sobre a relao entre os dois revolucionrios russos e aportar uma fundamentao precisa para as posies adotadas por um e por outro.

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    Lenin: teoria e prtica revolucionria

    Fernando Leito Rocha jnior se ocupa de questes do pensa-mento de Lenin que reencontramos em outras contribuies neste volume, porm numa perspectiva diferente e muito original. Seu artigo se encar-rega, preliminarmente, de mostrar como Lenin se utilizou da crtica da economia poltica iniciada por Marx para dar conta da realidade russa de seu tempo. Para isso, realiza uma resenha pormenorizada dos escritos le-ninianos, com vistas a apresentar suas continuidades e alteraes atravs do tempo. Coloca em evidncia a centralidade da categoria capital inan-ceiro, como termo chave para compreender a dinmica do capitalismo do sculo XX; segundo o autor do artigo, na fase imperialista do capitalismo a forma de capital bancrio torna-se o grande fornecedor essencial do capital, pois esta forma de capital, ao centralizar o crdito, tambm passa a controlar os investimentos e o ciclo econmico em sua totalidade [...], Leito Rocha Jnior argumenta convincentemente que a categoria capital inanceiro no de ndole epistemolgica; , por um lado, uma categoria heurstica, que abarca o conjunto das manifestaes e das formas de ser do capital. Por outro lado:

    Trata-se, na verdade, de uma categoria ontolgica prpria da fase impe-rialista, que por sua vez, sintetiza a totalidade contraditria que englo-ba os ciclos do capital (capital produtivo capital mercadoria e capital dinheiro), bem como, as formas autnomas e luidas de capital, em especial, a forma de capital portador de juros e o capital ictcio [...].

    O trabalho resenha as contribuies de Lenin crtica da economa poltica desde os incios, passando pelo comunismo de guerra e chegando Nova Poltica Econmica. Em todos os perodos, mas em particular neste ltimo, pode-se constatar que Lenin mantem-se iel ao lema: marxismo anlise concreta de situao concreta, assim, nesta direo, percebemos que a chamada crtica viva da economia poltica se faz presente nas suas elabora-es tericas [...]. Jeferson Rodrigues Barbosa examina as crticas de Lenin ao chauvinismo, num arco temporal que se estende desde 1913 at 1918, no perodo da escalada nacionalista que teve lugar na Europa no comeo do sculo XX, e que teve um de seus pontos culminantes na poca da Grande Guerra. Barbosa realiza uma breve exposio ilolgica e histrica sobre a gnese do termo chauvinismo, o qual interpreta, apoiando-se na Ontologia lukacsiana, como uma posio teleolgica secundria, posta em prtica com

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    ins manipulatrios. Para o autor, as ideologias autocrticas chauvinistas so uma forma de ontologias ictcias, manifestaes ideolgicas que servem para tornar conscientes e operativas a prxis social dos homens [...]. O coment-rio dos principais artigos de Lenin sobre o chauvinismo permite evidenciar a maneira pela qual o lder bolchevique, iel ao internacionalismo comunista, tratou de combater uma ideologia, na poca, em plena expanso, ainda na social-democracia europeia.

    Jair Pinheiro empreende a tarefa de examinar as ideias de Lenin sobre o Direito, em contraste com as teorias jurdicas liberais e assinalando sua novidade e autonomia a respeito destas. Inicia por um comentrio de-talhado de um corpus de artigos leninianos posteriores a 1917; em seguida, desenvolve uma interpretao formal-normativa de diversas perspectivas jurdicas, a im de avanar, por im, algumas proposies sobre uma con-cepo do direito concebida a partir do ponto de vista da classe trabalhado-ra. De acordo com o autor, Lenin enfrentou uma dupla tarefa: transformar a ideologia jurdica burguesa em uma nova forma ideolgica, e aplica-la organizao do Estado, da economia e da vida social em geral. Nas diversas teorias do direito burgus, a norma assume uma posio central; o direito pensado como um sistema que gira em torno de uma norma central: a Constituio que, por sua vez, tambm opera de maneira sistemtica. Em tais teorias, o aparato jurdico visto como um sistema hierarquiza-do, no qual a norma inferior encontra sua validade na norma superior e a Constituio situa-se na parte superior da hierarquia. Em contraponto com as concepes burguesas, Lenin assinala Pinheiro pensa em um sistema jurdico no qual o sujeito declarante do direito concreto; cujo fundamento ideolgico o livre desenvolvimento de cada um e de todos; cujo objeto a satisfao das necesidades; que possui como primeira fonte normativa os produtores diretos, como constituintes originrios; e cuja autoridade legisladora so os trabalhadores organizados. O cumprimento destes objetivos deveria ser o papel especico do Comissariado do Povo para a Justia. Pinheiro tambm enfrenta a questo abordada por vrios pensadores marxistas se a lei deveria continuar existindo na sociedade co-munista. Apoiando-se em uma penetrante leitura de Marx, conclui que o direito deveria continuar existindo durante as fases iniciais do comunismo, ainda que, transformado e sob novas condies, ningum pode dar nada

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    Lenin: teoria e prtica revolucionria

    alm do que seu trabalho, e nada pode ser apropriado pelos indivduos alm dos meios individuais de consumo.

    O artigo de Marcelo Braz se dedica a investigar o signiicado his-trico e a atualidade do livro O que fazer? De maneira perspicaz e provoca-tiva, expe as razes pelas quais o tratado de Lenin sofreu um exlio inte-lectual e poltico do qual ainda no se recuperou. Menciona, como razes fundamentais para esse exlio, a canonizao de Lenin, do partido por ele idealizado e, por conseguinte, de sua obra. O marxismo-leninismo, tor-nado o marxismo oicial de Stalin, tratou de ossiicar as teorias de Lenin, especialmente aquelas voltadas para a prtica poltica [...]. Por outro lado, o total desprezo como tem sido tratado o opsculo nos meios acadmicos; desprezo que se estende por boa parte da obra leniniana. A estes dois mo-tivos, cabe ainda somar a falncia das experincias socialistas nos pases do Leste europeu e o desenvolvimento do capitalismo durante as ltimas qua-tro dcadas que alterou, profundamente, seus processos de produo, mu-dou o peril da clase trabalhadora e estabeleceu uma enorme diiculdade ao salto da conscincia em si para a conscincia para si da classe, ou seja, ps na ordem do dia uma evidente crise de identiicao do sujeito poltico revolucionrio[...]. Com comprometida sutileza, Braz observa as diicul-dades que um projeto socialista tem que enfrentar em nossos dias, tendo em vista que vive-se uma vaga histrica ela mesma pouco propcia (mas urgente!) para se reconstruir uma projeo societria assentada em valores radicalmente antagnicos aos burgueses [...]. Acrescenta-se a estas diicul-dades, o fato de que as lutas sociais contemporneas estejam assumindo um carter cada vez mais particularista em detrimento de seus contedos universais. E tal quadro se agrava, e estimulado, por correntes do pensa-mento social contemporneo que veem nelas (nas lutas particularistas) a sada no interior da prpria ordem burguesa [...]. Frente a um estado de coisas semelhante, Braz airma que a proposta no pode consistir em mera reedio das prticas polticas correspondentes a outras pocas: as formas de luta, para se airmar um projeto socialista, devem se ajustar aos conte-dos atuais das lutas de classes [...]. O duplo desaio que identiica o autor deste artigo , em primeiro lugar, continuar a renovao e atualizao das anlises marxistas clssicas e, em segunda instncia, levar adiante a tarefa mais difcil e importante: transformar a armadura terico-crtica ediicada

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    em fora material real enraizada nas massas [...]. Na realizao dessa tarefa, Lenin se entregou em O que fazer?, tal como demonstra Braz a partir do exame minucioso do tratado. Da dimenso prtica e organizativa tambm se ocupa Ronaldo Coutinho, que se interroga acerca da atualidade das concepes de Lenin sobre o partido. O autor consciente das constantes crticas ao modelo de uma vanguarda consciente da classe trabalhadora; particularmente daquelas que o qualiicam de obsoleto, na medida em que foi construdo a partir das conjunturas histricas concretas da Rssia do comeo do sculo XX. Por esse motivo, se detm a examinar o desenvolvi-mento das ideias de Lenin, com vistas a determinar o que, nelas, est vivo e o que est morto. Com especial mordacidade, questiona os autonomismos e, em geral, queles que creem que possvel levar adiante uma prxis re-volucionria efetiva prescindindo do partido, ou ainda, de qualquer forma de organizao institucional. Por isso se negam a realizar relexes

    mais ou menos soisticadas sobre a falncia da forma partido, da nova sociedade civil da nova emergncia das multides e do im das lutas de clases, das concepes do antipoder (John Holloway), do retro-cesso romntico das organizaes comunitrias e dos transformismos nada ingnuos da economia solidria, entre outras artimanhas da ima-ginao burguesa [...].

    A transformao do mundo requer, sustenta Coutinho, um sis-tema de aparatos de comunicao, informao e formao poltica que implica no partido e suas mediaes. As inlexes que adotou o capitalismo durante as ltimas dcadas exige, sobretudo, o aprofundamento da educa-o poltica, no s no que concerne militncia interna, mas o reconhe-cimento efetivo da necessidade do recrutamento e da formao continuada de quadros oriundos diretamente da classe operria e dos diversos setores do proletariado. Desta maneira ser possvel superar um anticomunismo que no se difundiu somente entre os meios burgueses e pequeno-burgueses, mas tambm na prpria classe operria.

  • PARTE I

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    POSSIBILIDADES LENINEANAS PARA UMA PAIDIA COMUNISTA

    Antonio Carlos Mazzeo

    A conscincia social relete o ser social: tal a doutrina de Marx. Lnin

    1 OS PRESSUPOSTOS

    Buscando polemizar com os que deinem Lnin como um pragmtico homem de ao, ou como entende Gerratana, um operador taticista da poltica, este texto tem por objetivo demonstrar que o de-senvolvimento da prxis lenineana aparece integrada no scopus das grandes contribuies que procuraram dar solues de prxis ou respostas civiliza-trias s questes candentes postas pela realidade concreta, ressaltando ainda, seu rigoroso vnculo ao conjunto categorial-analtico da teoria social de Marx.

    Quando pensamos sob a tica marxista, numa ao poltica que tem como ncleo a transformao da sociedade, implcita e intrnseca a noo de uma educao em permanente movimento, porque esse conceito parte integrante da teoria social marxiana. Para Marx o homem produto de seu trabalho, isto , a prxis humana constitui o elemento central que o transforma em homem, ou seja, o homem produto de sua prxis. A ideia de prxis, que aparece dialeticamente articulada como ao-pensamento/pensamento-ao, coloca no campo da lgica educacional a noo de apren-dizado permanente do homem enquanto ser individual conectado umbili-

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    cal e dialeticamente ao ser social. A idia da conexo e da auto-mediao, que a sociedade faz consigo mesma, isto , o processo auto-mediativo do ser social, tem como premissa a existncia de um processo permanente do co-nhecimento que se objetiva em dois momentos dialeticamente articulados: 1) o que podemos chamar de apreenso racional imediata da realidade; 2) e aquele que brota dessa imediaticidade, que a apreenso racional-mediativa do mundo. Essa conexo entre o mundo mediativo e o mundo imediato, fundamental para a compreenso do processo permanente do aprendizado.

    O mundo imediato pode ser deinido como a cotidianidade, a imediaticidade, o mundo pragmtico-operativo do ser social. E o mundo da mediao quando o ser social sai do plano de sua imediaticidade, e passa a reletir sobre a sua prpria cotidianidade. Como podemos deinir essa me-diao? A mediao nada mais que o pensamento terico de si, a teoria ou a abstrao que o ser social faz de si mesmo, do seu prprio mundo cotidiano. Portanto, a mediao a conexo entre o mundo imediato e pragmtico em que vivemos e a relexo permanente que os homens realizam atravs de sua prxis.1 A mediao e a prpria ao social pragmtica, constituem momentos de aprendizado dialeticamente articulados. Como deine Engels, h na prxis humana uma conexo dialtica e permanente entre o quantum socialmente realizado e as qualidades geradas e conquistadas por essas realizaes a re-lao entre quantidade e qualidade , nesse sentido, o processo de acmulo social gera saltos qualitativos de carter ontolgico e, desse modo, novas conquistas sociais (ENGELS, 1979, p. 34 et seq.). esta conexo que con-igura o permanente processo social do conhecimento. Portanto, nada mais correto do que vincular o pensamento marxiano noo de conhecimento ligado ao aprendizado, como resultado da prxis humana.

    Como acentua Marx, ao longo de sua histria, a humanidade desenvolveu diversas formas de prxis e at o surgimento do capitalismo, a questo central da compreenso da realidade objetiva eram os limites postos pela predominncia do idealismo e da metafsica nas formas de construes mediativas que s comeam a ser resolvidas e diga-se, apenas em parte, com o advento da sociabilidade burguesa. Mas inegvel, como ressalta Lukcs, que as formas-prxis (histricas) do ser social procuraram

    1 A esse respeito, ver LUKCS, G. Estetica. Barcelona: Grijalbo, 1966, cap. I, item 2 (Principios y Comienzos de La diferenciacin), v. I, p. 81145.

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    responder aos problemas advindos dos prprios processos de objetivao de si, quer dizer, o processo de trabalho social produziu modos cognosciti-vos que possibilitaram, principalmente no plano prtico, o conhecimento, ainda que depois esse prprio conhecimento tenha propiciado um distan-ciamento de si (LUKCS, 1966; 1990, p. 14). Objetivamente, os grandes saltos qualitativos que a humanidade deu no plano da relexo sobre seu prprio mundo cotidiano sua imediaticidade , tiveram de certo modo uma preocupao, in limine, de cunho pedaggico, se entendermos a edu-cao como prtica de auto-conhecimento social e de superao aqui, no sentido da Aufhebung.

    Como ponto de partida tomemos, por exemplo, os gregos anti-gos. O desenvolvimento da polis, na Grcia antiga, possibilitou por diver-sos elementos histrico-objetivos, o nascimento de uma ontologia, sendo que os ilsofos pr-socrticos descobriram rapidamente, suas categorias mais importantes (LUKCS, 1981a, v. I, p. 10). Mas a ilosoia jnica mantinha-se conectada s analises do mundo fsico a incluindo--se ai a sociedade humana, compreendida como pertencente ao mundo da matria fsica. Somente a crise da polis, em sua particularidade ate-niense, por o humano no centro da ilosoia e correlatamente a questo da prxis correta (MAZZEO, 2009, p. 104 et seq.). Se Scrates procura dar respostas crise de dissoluo de uma polis coletiva baseada no cam-pesinato , confrontando-se com os soistas, e nucleando suas crticas prpria emergncia da nova sociabilidade arrimada na escravido, contra-pondo a necessidade do homem coletivo ao surgente homem privado, Plato ser, como ressaltou Lukcs, o primeiro ilsofo a tentar responder o que fazer? diante de uma polis (coletiva) em crise de dissoluo.2 O corte so-crtico-platnico apresentou a proposta da construo de um conceito de Paidia, uma cosmologia (Weltanschauung), contendo em si um intrnseco ncleo pedaggico de transformao, que no pode ser restrito somente religio, ainda que seja parte integrante dela.3 Quanto voltamos ao Scrates traduzido e interpretado por Plato, podemos perceber que o ncleo do

    2 Idem, especialmente p. 142-167. Ver tambm PLATO. Lettera VII (Carta VII). In: ______. Platone Tutte le Opere. Roma: Newton & Compton, 1997a. 235c a 328c, v. V. 3 Na deinio de Jaeger, a Paidia constitui-se numa clara ideia de si da identidade grega antiga, resultado de um esforo para justiicar a noo de comunidade e ao mesmo tempo, de individualidade humana que nasce com a polis. Veja-se JAEGER, W. Paidia: los ideales de La cultura griega. Mxico: FCE, 1987. Introduo, p. 7 et seq.

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    embate Socrtico com os soistas embate esse que inda em sua priso e, depois, sua condenao morte , composto por dois elementos chaves: primeiro, a ideia de que s possvel compreender o conjunto da cultura, a Paidia, como resultado de uma produo social, quer dizer, coletiva. Segundo, o combate mercantilizao do conhecimento e imoralidade (e impossibilidade) de transformar o conhecimento socialmente produzi-do em mercadoria. Na concepo socrtico-platnica o conhecimento era concebido como prxis produto da construo coletiva da Polis. Mas alm do problema da mercantilizao do conhecimento, havia a questo da da virtude. Para Scrates e Plato a virtude, produto do conhecimento construdo na prxis politia, no poderia ser objeto de compra ou venda. Da a nfase platnica ao ressaltar as palavras de Scrates para quem o soista vende seu conhecimento como mercadoria e a contraposio do ilsofo tico que oferecia seus conhecimentos a todos sem distino, como um cidado de vida e de deveres pblicos.4

    Mais tarde Plato, muito amargurado e envergonhado com o des-fecho do julgamento e a condenao morte de Scrates, ir explicitar seu convencimento sobre a necessidade de dar forma prtica s ideias, e crtica ao estado das coisas, no desabafo feito na Carta VII, aos amigos de Dione: [...] pela grandssima vergonha que sentia de mim mesmo, pensando em mim mesmo como nada mais que um discurso, nica e simplesmente, e nunca um homem disposto a empenhar-se em alguma ao [...]5 Esse o mo-tivo fundamental para a fundao de sua Academia, por volta de 387 a.C. Pioneiramente Plato inaugura no pensamento ocidental a possibilidade da conexo entre construo do conhecimento e a transformao da sociedade, a construo do conhecimento e o combate a qualquer tipo de corrupo que o mercado coloca na sociedade. Obviamente, falamos de uma socieda-de arrimada na escravido e de um mercado no capitalista que circulava apenas o excedente da produo. Mas essa sociabilidade foi responsvel pelo surgimento e sedimentao da democracia Antiga e exatamente a contraposio crtica essa forma societal faz com que Scrates e Plato se coloquem criticamente diante da democracia escravista que pressupu-nha, tambm, a desigualdade e a prevalncia dos ricos e poderosos sobre

    4 Ver PLATO, op. cit., Protagora, 313, v. III e Apologia di Socrate, 32a 33b, v. I 5 PLATO, Lettera VII, op. cit., 328b 328c, v. V

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    os cidados comuns e sem recursos. Obviamente a ideia de prxis no era uma novidade para o pensamento grego, ela surge implicitamente junto com a noo de energia (), que dava os contedos fundamentais da moral, ligada visceralmente outra noo, a techn (x), atividade social plena de contedos morais, conceitos que ganham expressividade a partir do surgimento da Tragdia e que conformam a conexo entre energia, prxis e conhecimento.

    De formas distintas e ganhando, ao longo da histria, maior ampli-tude, essas noes estaro presentes em todos os pensadores que se colocaram a necessidade de fundas transformaes societais, e a necessidade de justia social, constituindo uma linha prtico-especulativa que estar radicada no conjunto do pensamento ocidental. J os primeiros tericos do cristianismo, principalmente Clemente de Alexandria e seu discpulo Orgenes, assumiro a ideia de uma prxis universal e de transformao.6 O cristianismo, ilho di-reto do helenismo, ganha universalidade com sua insero no debate cultural e ilosico gregos, o que possibilita que ele se coloque como alternativa de construo de uma nova Paidia no contexto da crise do imprio romano e de dissoluo do escravismo , onde o conhecimento, ainda que mistiicado e pleno de hierofanias (manifestaes do sagrado), aponta para a necessidade de construo de ncleo de prxis agora, materializado na Igreja, que vem para substituir a polis universal dos gregos clssicos. Nesse sentido, emerge nessa viso de prxis uma outra ideia de igualitarismo, no mais aquela dos cidados da polis, mas agora a dos cidados dos cus,7 mais rebaixada e mitiicada sem dvida e que no entanto prega a noo de igualdade entre os homens mesmo que abstratamente num mundo de formas sociais e de relaes de trabalho hierarquicamente rgidas.8 6 Nessa bela passagem de Orgenes: nosso desejo instruir todos os homens na palavra de Deus, apesar da negao de Celso, e queremos comunicar aos adolescentes a exortao que lhes convm e indicar aos escravos como podem ser engrandecidos pelo Logos recebendo um esprito de liberdade [...] E sobre esse ponto eu poderia dizer em resposta s palavras de Celso: ser que os ilsofos no convidam os adolescentes a ouvi-los? No exortam a que deixem uma vida desregrada para abraarem os bens superiores? Ento no querem que os escravos vivam como ilsofos? Vamos tambm ns censurar os ilsofos por terem conduzido escravos virtude, como fez Pitgoras com Zamolxis, Zenon com Perseu e, ontem ou anteontem, os que conduziram Epiceto ilosoia? Ou vos ser permitido, gregos, chamar ilosoia adolescentes, escravos, idiotas, ao passo que para ns seria desumanidade fazer isto, quando aplicando-lhes o remdio do Logos, queremos curar toda natureza racional ou conduzi-la familiaridade com Deus. ORGENES. Contra Celso. So Paulo: Paulus, 2004. Livro III, 54. 7 Como vemos em Paulo de Tarso: [...] Ns, porm, somos cidados dos cus [...]. In: BBLIA Sagrada. So Paulo: Ave-Maria, 1998. Filipenses, III-20. 8 Obviamente fazer o complexo debate sobre o igualitarismo no caberia nesse texto, mas necessrio ressaltar que a prpria noo grega de igualitarismo e, mais adiante a de democracia, pressupunha a desigualdade entre

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    O projeto de uma Paidia crist de tal importncia, que ir basilar todas as questes sobre o problema da igualdade entre os homens, incidindo diretamente nos debates sobre a conexo entre os limites do conhecimento humano frente a deus e ao esprito, inluenciando a prpria construo da disputa entre a ratio e a irratio no contexto da construo do racionalismo burgus.9 De qualquer modo, as construes tericas e as pro-postas de prxis expressam o papel que a ilosoia chamada cumprir, no sentido de dar respostas s necessidades histricas do ser social. Mas essas respostas, que aparecem nas articulaes complexas da sociedade, no se expressam em sentido linear. No devemos esquecer que as formas mediati-vas se objetivam em sociedades divididas em classes sociais e por isso mes-mo, representam vises de classe, no caso e em sua esmagadora maioria, das dominantes. Como salienta Lukcs, s a tica inaugurada pela ontolo-logia marxiana, que pressupe a conexo entre as ideias e a materialidade do ser social, nos possibilita compreender os zigue-zagues de importantes pensadores que por muitas vezes chegaram aos limiares da resoluo de um problema mas acabaram por fugir de suas potenciais resolues pelos prprios limites que a determinao ou opo de classe lhes impuseram (LUKCS, 1972, p. 80 et seq.). Esses pensadores que estiveram sempre nos umbrais histricos do embate entre a ratio e a irratio, como, dentre ou-tros, os revolucionrios Giordano Bruno, Galileu, Maquiavel, Descartes, Kant e principalmente Hegel, primaram por lutar pela conquista do real, e bvio, dentro dos limites concretos de seus tempos histricos. No entanto, mais do que nunca esses pensadores estiveram nas trincheiras da constru-o de uma nova prxis, aquela da sociabilidade que poria abaixo grande parte dos entraves para o conhecimento e para a liberdade humana.

    No plano da cincia moderna, principalmente a que se desenvolve aps o sculo XVI, a busca de solues de prxis impuseram vitrias da racio-nalidade sobre o obscurantismo a ponto do conhecido cardeal Bellarmino o inquisidor santiicado que condenou fogueira Giordano Bruno e que foi tambm um dos inquisidores de Galileu Galilei cinicamente, como

    camponeses pobres e ricos proprietrios terratenentes, no perodo da polis igualitria, fundada sobre a produo camponesa e mais tarde, a democracia clssica, baseada na escravido. Veja-se MAZZEO, A. C. O Voo de Minerva, op. cit, especialmente Parte II.9 Sobre a disputa entre a Ratio e a Irratio, ver especialmente LUKCS, G. El asalto a la razn (Die Zerstrung Der Vernunft. Berlin: Aufbau-Verlag, 1953), Mxico: Grijalbo, 1972. cap. II.

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    bem descreveu Brecht, ser obrigado a dizer que se j no podia evitar que os marinheiros utilizassem os novos mapas astronmicos, pelo menos man-teria a vigilncia sobre os que falsiicavam as Escrituras (BRECHT, 1970, cena VII). O fato que na objetivao de uma nova prxis, a corrente que ir construir o racionalismo burgus estar permanentemente contrapon-do a possibilidade de apreenso ontolgica dos avanos do conhecimento como produto de conquistas dos homens, fundadas sobre a cincia , viso meramente gnosiolgica que fraciona a prxis e submete o primado ontolgico ao mundo dos espritos e da religiosidade. Hegel ser o maior representante da racionalidade revolucionria burguesa mas, apresentando como frisou Engels, um pensamento dividido entre o materialismo e o ide-alismo mstico (ENGELS, 1977, v. I, p. 75 et seq.), fundado na oposio entre sistema e mtodo que encerra em si uma contradio interna, supervel no entanto, pela dialeticidade presente em seu mtodo. Do ponto de vista do sistema, como enfatiza Lukcs, aparece uma harmonizao ideal-lgica entre sociedade e Estado, de modo que na esfera moral, o dever-ser abstrato perde qualquer senso de autenticidade, porque no plano da idealidade aparece con-ciliada com A Idia o Esprito. Mas no plano metodolgico, desdobrando a anlise dialtica interna dos elementos componentes desta harmonia inextri-cvel, Hegel consegue dar um passo adiante, porque introduz na ilosoia as conexes entre o particular e o universal (HEGEL, 1975, 181). Se o universal apresenta-se como Esprito, a categoria da particularidade, por outro lado, potencialmente se revela como uma materialidade componente do univer-sal. O fato de que Hegel tenha incorporado em suas anlises ilosicas os resultados das pesquisas dos economistas clssicos ingleses, como parte da objetividade e das relaes entre a abstrao e a materialidade, possibilita sua percepo objetiva sobre as contradies dialticas existentes na relao do Estado com a sociedade civil, e nas relaes contraditrias da sociedade civil consigo mesma, deinidas como o campo de batalha dos interesses entre indivduos privados e das corporaes proissionais, no limite hobbesiano de todos contra todos.10 O jovem Marx percebe agudamente esse aspecto qualitativo de Hegel e enfatiza exatamente esse elemento, ao ressaltar que Hegel havia pressuposto a separao da sociedade civil do Estado poltico

    10 Como podemos ver em Hegel:[...] Bem como a sociedade civil o campo de batalha do interesse privado individual de todos contra todos, est nela a sede do conlito entre esse interesse e os interesses particulares comuns e entre ambos interesses juntos [...] idem, 289

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    e, ao mesmo tempo, ops o interesse em si e para si do Estado ao interesse particular e s necessidades da sociedade civil (MARX, 1987, v. I, p. 354 et seq.). Mas a viso hegeliana subsumida noo do movimento realizado pela objetivao da ideia, o desenvolvimento do Esprito, pressupe um processo de autoconhecimento do Esprito/Conscincia universal. Nesse sentido a so-luo de prxis proposta por Hegel ainda est vinculada noo testa de que a razo humana evolui como parte da prpria evoluo da Razo Universal. Da a noo do Estado como a manifestao encarnada do Esprito.

    De todo modo, h em Hegel o que Engels ir denomiar de mate-rialismo de cabea para baixo que comea a ser dissolvido com Feuerbach, como diretiva de soluo de prxis que se pleiteia materialista, no entanto, ainda permeada por uma noo sensorial da atividade humana e que ape-sar de conter avanos em relao ao idealismo hegeliano, considerado por Engels e Lnin como contemplativa e imensamente inferior ao conjunto da construo do corpo terico hegeliano.11

    Efetivamente a Aufhebung decisiva, em relao ao idealismo ser construda pela soluo de prxis contida na teoria social desenvolvida por Marx e Engels, ainda que esse ltimo tenha modesta e exageradamente se colocado no papel de coadjuvante.12 Nessa ruptura com a concepo metafsica e contemplativa, o ncleo da prxis situa-se no prprio homem, como o realizador de si e de sua histria. A teoria social marxiana estrutura--se na ontologia do trabalho como forma-prxis fundamental da existncia, dissipando qualquer soluo mistiicada. Essa interpretao, que releva a materialidade inerente e constitutiva do ser social, conforma-se como uma compreenso radicalmente nova, em relao tradio intelectual e de prxis

    11 Veja-se ENGELS, Ludwig Feuerbach, op.cit, p. 99-100. No comentrio de Lenin sobre as Lies sobre a Essncia da Religio: Feuerbach brilhante mas no profundo [...] LENIN, V. I. Cuadernos ilosicos. In: ______. Obras completas. Madri: Akal, 1976a. v. XLII, p. 53.12 Como podemos veriicar na nota de Engels:Seja-me permitido aqui um pequeno cometrio pessoal. Ultimamente, tem-se aludido, com frequncia, minha participao nessa teoria; no posso, pois, deixar de dizer aqui algumas palavras para esclarecer este assunto. Que tive certa participao independente na fundamen-tao e sobretudo na elaborao da teoria, antes e durante os quarenta anos de minha colaborao com Marx, coisa que eu mesmo no posso negar. A parte mais considervel das ideias diretrizes principais, particularmente no terreno econmico e histrico, e especialmente sua formulao ntida e deinitiva, cabem, porm a Marx. A contribuio que eu trouxe com exceo, quando muito, de alguns ramos especializados Marx tambm teria podido traz-la, mesmo sem mim. Em compensao, eu jamais teria feito o que Marx conseguiu fazer. Marx tinha mais envergadura e via mais longe, mais ampla e mais rapidamente que todos ns outros. Marx era um gnio; ns outros, no mximo, homens de talento. Sem ele, a teoria estaria hoje muito longe de ser o que . Por isso, ela tem, legitimamente, seu nome. Nota de F. Engels in idem, p. 103.

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    do Ocidente. Na concepo marxiana todas as formas de objetivao do ser social materializadas pelos modos-de-produo que deram a morfologia histrico-material das sociabilidades implicaram, tambm em constru-es mediativas do mundo e consequentemente, em teleologias, no so-mente enquanto relexos da realidade, mas tambm como respostas s ne-cessidades intrnsecas dos processos histricos de objetivao do ser social.13 O elemento basilar da dialtica materialista marxiana, presente na forma dialtica onto-gnoso metodolgica de apreenso das categorias histricas, pos-sibilitou ver nas formas societais os aspectos constitutivos das contradies e das lutas entre classes com seus diversos matizes e em suas expresses temporais superando o mero impressionismo emprico resultante de suas determinaes fenomnicas. Essa nova conceptualidade permite tambm considerar a apreenso da totalidade do ser social. No como arbitrariedade ou produo formal de carter subjetivista, e sim como resultado das ml-tiplas determinaes e da articulao e interao dos diversos complexos constitutivos das formas de ser e dos movimentos do real em sua concretu-de.14 Relevamos aqui a advertncia de Lukcs de que nesse momento, em que a ilosoia idealista deinitivamente superada, ao mesmo tempo, a ilosoia em sua modalidade dialtico-materialista continua sendo

    [...] o princpio diretivo dessa nova cientiicidade. Por isso, no ca-sual, no uma peculiaridade surgida das contingncias histricas da cincia, o fato de que o Marx maduro tenha intitulado suas obras eco-nmicas no como Economia, mas como Crtica da economia poltica. (LUKCS, 1981a, p. 276, grifos do autor).

    Mas se h um elemento de ruptura radical na concepo dialtica onto-gnoso metodolgica da teoria social marxiana com a tradio ocidental no plano das formas de apreenso do real , em que a cincia deixa para trs o dogma absoluto, agora historicizado e considerado absoluto e relativo ao mesmo tempo, no escopo de sua historicidade concreta, essa descontinuidade

    13 Na clebre passagem de Marx em 1859: Minhas investigaes me levaram concluso de que tanto as relaes jurdicas como as formas de Estado, no podem ser compreendidas por si mesmas nem pela chamada evoluo geral do esprito humano mas, ao contrrio, tem suas razes nas condies materiais da vida [...]. MARX, K. Contribucin a La Crtica de La Economia Poltica. Buenos Aires: Estudio, 1970. Prefcio, p. 8. 14 Como acentua Marx: O concreto concreto porque a sntese de mltiplas determinaes, por tanto, a unidade da diversidade. Por isso, aparece no pensamento como processo de sntese, como resultado, no como ponto de partida, ainda que seja o verdadeiro ponto de partida e, por conseguinte, mesmo assim, o ponto de partida da viso imediata e da representao. Idem, p. 213, grifos nossos.

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    apresenta-se tambm como continuidade aggiornata e recolocada das buscas de solues das prxis que relevaram conhecimento/educao e transformao social. O signiicado da ruptura de grande vulto e resulta, como procura-mos demonstrar, de uma longa e dialeticamente descontinua e continua proces-sualidade.15 Rompia-se ali com a uma milenar discusso da relao do pensa-mento com o ser social, onde a materialidade subsumia-se s determinaes de espritos divinos e a razo como parte constitutiva de uma razo universal, existente em um esprito supremo. A tarefa de Marx e de Engels foi a de por abaixo os entraves para o conhecimento da materialidade das relaes sociais, na ruptura e continuidade de Hegel e de Feuerbach.

    O elemento central marxiano, de aplicao metodolgica, foi tambm a descontinuidade-contnua de ruptura com a conceptualidade dos mtodos fechados e com seus consequentes desdobramentos que direcio-navam viso de im da histria. At Hegel as tentativas de solues de prxis apareciam como conexo a um suposto nexo racional ligado uma histria em-si teolgica e teleolgica, vinculado concepo metafsica de Esprito Racional extra-humano a ser desvendado para ento, chegar-se verdade absoluta, sendo que a partir do Renascimento, pressupunha-se tambm, o Contrato Social e o Estado, como expresses de Razo trans-cendente, fundados no escatolgico Direito Natural. A crtica demolidora da teoria social de Marx pe como soluo de prxis a noo de histria sem im, de movimento em permanente processo de objetivao, de construo e reconstruo do ser social. Mas se j no existe a realizao da histria atravs da razo escatolgica de um Esprito o sujeito do processo histrico passa ser o prprio homem, libertado do misticismo. Est implcito e explcito nesse recompor da conceptualidade das dinmicas do ser social o novo car-ter da prxis, que pressupe ainda, sujeitos sociais realizando materialmente suas processualidades histrico-sociais. No como realizao da vontade ou de circunstncias de sua escolha, como acentua Marx, mas por deter-minao das contradies engendradas pela prpria sociabilidade, legadas

    15 Como ressalta Engels: [...] Logo que descobrimos e ainal de contas ningum mais do que Hegel nos ajudou a descobri-lo que, assim colocada, a tarefa da ilosoia se reduz a pretender que um ilsofo isolado realize aquilo que somente a humanidade em seu conjunto poder realizar, em seu desenvolvimento progressivo assim que descobrimos isso a ilosoia no sentido tradicional da palavra, chega a seu im. J no interessa a verdade absoluta inatingvel por este caminho e inacessvel ao nico indivduo, e o que se procura so as verdade relativas, adquiridas atravs das cincias positivas e da generalizao de seus resultados por meio do pensamento dialtico. ENGELS, Ludwig Feuerbch, op. cit., p. 85, grifos nossos.

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    e transmitidas pelo passado (MARX, 1978, p. 329). Se o capitalismo se constituiu como a organizao societal mais desenvolvida de toda a hist-ria da humanidade, sua objetivao abriu tambm a possibilidade para o aprofundamento da conscincia dos homens sobre si, tanto do seu prprio passado como das potencialidades futuras.

    Na forma social burguesa, as relaes sociais ainda encontram li-mites para seu amplo desenvolvimento, fundamentalmente por ser o capi-talismo um modo-de-produo baseado na propriedade privada dos meios de produo e na explorao da fora de trabalho, materializada na extra-o de mais-valia do trabalhador e na produo de mercadoria, enquanto valor de troca. A produo de mercadorias, realizada sob a forma de valor de troca, retira o essencial humano do trabalho, quer dizer, a mercadoria circula em um meio social descolado das reais necessidades de uso das mercadorias, sendo o trabalho coletivo apenas um meio estranhado e alienado de rela-es sociais que no se concretizam entre homens produtores, mas entre coisas. o que Marx chama de fetichismo da mercadoria (MARX, 1973, v. I, p. 36 et seq.). Na sociabilidade burguesa o trabalho apresenta-se para o trabalhador como exterioridade, como se no fosse parte de sua essn-cia, na qual o trabalhador ao invs de airmar-se com seu trabalho, nega--se, ao colocar a possibilidade de sua realizao (humana) fora dele. Nesse sentido, o trabalhador encontra-se estranhado de sua essencialidade do trabalho. Mas, nas contradies engendradas pela sociabilidade burguesa, o trabalhador potencialmente possui as condies de superao do estra-nhamento e da alienao, porque a atividade alienada no produz somente a conscincia alienada, mas tambm a conscincia de ser alienado. Em outras palavras, criam-se alm das foras que depauperam e desiguram a conscincia, dentro de uma dialtica contraditria entre o pensamento co-tidiano e a perspectiva da superao de sua conscincia tautolgica, posta pela existncia de uma relao imediata entre teoria e prtica outras foras que possibilitam o aloramento da conscincia e a perspectiva de ruptura com o pensamento estranhado, como a prpria cincia, que permite, por meio do conhecimento da realidade objetiva, o distanciamento da lgica cotidiana (MAZZEO, 1999).16 No Manifesto Comunista de 1848, Marx e Engels apontam para a contradio que se desenvolve na sociabilidade

    16 Ver Questes Preliminares.

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    burguesa e, na medida em a burguesia aprofunda as relaes sociais capi-talistas, desenvolve tambm o proletariado, como seu contrrio-antagnico.

    Nas primeiras dcadas dos Oitocentos, ainda reverberava o im-pulso revolucionrio da burguesia e sua luta pela construo de uma for-ma-poltico-jurdica, onde seu ncleo tinha por fundamento a liberdade consubstanciada no livre mercado e a igualdade nucleada no formalismo jurdico de vezo metafsico, assentado na formalidade do Direito Universal genrico. Antes mesmo de escrever o Manifesto de 1848, juntamente com Engels, Marx j havia apontado esses limites em sua polmica com Bruno Bauer, nA Questo Judaica, acentuando que no plano igualitrio a sociabi-lidade burguesa vivia a dicotomia entre o citoyen de vida pblica e o bour-geois ou proletire de vida privada, evidenciando que essa dualidade reletia a limitao de uma liberdade formal reduzida emancipao poltica, ou se quisermos, no ser-precisamente-assim da morfologia ideo-jurdica da so-ciabilidade burguesa (MARX, [19--?a], p. 18 et seq.). No entanto, ao inal do primeiro quartel do sculo XIX e ao longo das dcadas de 1830 e 1840, o desenvolvimento das relaes de produo capitalistas e a agudizao da diviso da sociedade em duas classes fundamentais, gera uma clivagem que possibilita por na vida poltica das sociedades civis burguesas europeias, particularmente na Frana, o proletariado moderno como um sujeito que rompe com o bloco histrico composto pela burguesia e pelo campesinato constitudo no processo mesmo das revolues burguesas e, consequen-temente com os limites restritos da emancipao poltica, pondo no centro de uma contradio claramente deinida na relao entre capital e trabalho e nas relaes da propriedade, a superao da emancipao poltico-cidad no projeto da emancipao humana. Esgota-se ai, o perodo do protagonis-mo revolucionrio burgus agora, tornado conservador de sua ordem. Ao mesmo tempo, conforma-se o novo sujeito que levar adiante as tradies ocidentais de liberdade, mas na perspectiva de construo de um projeto societrio baseado em relaes sociais de produtores associados, ou se qui-sermos, o comunismo. O ncleo do projeto desenhado no Manifesto de 1848: A inalidade imediata dos comunistas a mesma de todos os demais partidos proletrios: formao do proletariado em classe, derrubamento do do-mnio da burguesia, conquista do poder poltico