letramento literário

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Marta Passos Pinheiro

Letramento literrio na escola: um estudo de prticas de leitura literria na formao da comunidade de leitores

Belo Horizonte Faculdade de Educao da UFMG 2006

Marta Passos Pinheiro

Letramento literrio na escola: um estudo de prticas de leitura literria na formao da comunidade de leitores

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Geriais, como requisito obteno do ttulo de Doutora em Educao. Linha de pesquisa: Espaos educativos, produo e apropriao de conhecimento Orientadora: Profa. Dra. Maria das Graas Rodrigues Paulino

Belo Horizonte Faculdade de Educao da UFMG 2006

Tese defendida e aprovada, em 27 de setembro de 2006, pela banca examinadora constituda pelas professoras:

_____________________________________________________ Profa. Dra. Maria das Graas Rodrigues Paulino (Orientadora) Faculdade de Educao UFMG

_____________________________________________________ Profa. Dra. Maria de Lourdes Dionsio Universidade do Minho Braga, Portugal

_____________________________________________________ Profa. Dra. Ivete Lara Camargos Walty Pontifcia Universidade Catlica PUC Minas

_____________________________________________________ Profa. Dra. Magda Becker Soares Faculdade de Educao UFMG

_____________________________________________________ Profa. Dra. Aparecida Paiva Faculdade de Educao UFMG

_____________________________________________________ Profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca (suplente) Pontifcia Universidade Catlica PUC Minas

_____________________________________________________ Profa. Dra. Aracy Alves Martins (suplente) Faculdade de Educao UFMG

A todos os que acreditam na Educao comprometida com a liberdade de ser Aos washingtons, de todas as salas de aula brasileiras

AGRADECIMENTOS Ao CNPq, pela bolsa de estudos concedida, que tornou possvel esta pesquisa. Ao Marco Antnio Vieira que, em terras baianas, me apresentou ao Ceale, me fazendo acreditar que valia a pena continuar... Graa Paulino, pela confiana de sempre, pela construo de pontes entre literatura e educao. Maria de Lourdes Dionsio, pela orientao em terras portuguesas, pela dedicao, pelas conversas, que ficaram... Ao Antnio Branco e ao Rui Vieira de Castro, pelos dilogos enriquecedores. Aos professores, que me receberam em suas salas de aula, e aos alunos, que me receberam em suas leituras... banca do exame de qualificao, Ivete Walty, Magda Soares e Maria de Lourdes Dionsio, pelas sugestes, fora e inspirao. A todo o Ceale, pelo apoio de sempre, principalmente Aracy, pela presena solidria, Cidinha, pela confiana e por todo o carinho, Zlia, pela presteza de sempre, Lalu, pela paz que ilumina, Ana, Avani, Bruna, Carmem, Cris, Flvia, Helen, Juliana, Mariana, Micheline, Sulamita, companheiras de caminhada. A todo o pessoal da secretaria da ps-graduao, especialmente Rose, pela ateno e alegria. Ao Hrcules, que me apresentou Bel, pela leitura dedicada, reviso comentada e amizade. Aos amigos, prximos e distantes, pela presena em minha vida, especialmente Andra, ngela, ao Antnio, Carol, Clenice, ao Flvio, Guita, ao Gustavo, Helena, Janana, ao Jlio, Lu, ao Marcelo, ao Marquinho, Mnica, Nora, Paula, ao Tarcsio e ao Yuriy. Aos familiares, especialmente minha querida v, Martha, eterno presente. Beatriz, por toda fora que me transmitiu. Ao Damio, pela ateno e pelo apoio distncia. Clara e Aninha, pela alegria cotidiana. Luiza, que tem esperado tanto para chegar, por toda a luz que me faz ter certeza de que a vida muito mais do que trabalhos acadmicos. Ao Luiz Augusto, pela presena e por todo amor...

Queremos que as nossas escolas nos ensinem logo a voar. Chega de ficar s aprendendo quem descobriu Caturama, por que minhoca no tem osso, que proibido ciscar na grama ou que todo gavio um colosso! Chico Alencar, no livro didtico Portugus atravs de textos, de Magda Soares.

RESUMO

Esta pesquisa descreve e analisa como ocorre o processo de formao do jovem (pr-adolescente) como leitor de literatura, atravs de suas prticas de leitura em livros didticos e em outros suportes impressos usados em sala de aula. Para a anlise proposta, foi realizado um estudo de caso de abordagem etnogrfica. Foram acompanhadas, durante um ano escolar, as aulas de Portugus de uma turma de 5 srie do Ensino Fundamental de uma escola da rede pblica municipal, na cidade de Belo Horizonte. Trs facetas so analisadas: os textos literrios propostos para leitura na sala de aula, as prticas de leitura na sala de aula e as prticas de leitura realizadas, por uma amostra de trs alunos, fora de sala de aula. Para a coleta e a anlise dos dados, foram utilizadas a observao de aulas e de prticas de leitura realizadas na biblioteca escolar, a anlise de documentos e a realizao de entrevistas semi-estruturadas. Esta pesquisa apresenta ainda, com um vis comparativo, uma anlise das prticas de leitura de literatura realizadas nas aulas de Portugus de uma turma do 6 ano (correspondente 5 srie investigada) do Ensino Bsico de uma escola da rede pblica da cidade de Braga, em Portugal. O livro didtico de Lngua Portuguesa utilizado tambm foi analisado. Observou-se que, na escola pblica brasileira investigada, o leitor que se pretende formar deve ler o que permitido, seguindo os valores transmitidos por essa importante formadora da comunidade de leitores. Esses valores so veiculados, principalmente, atravs do livro didtico, que costuma guiar as prticas de leitura realizadas na sala de aula. Na anlise das prticas de leitura de textos literrios, observou-se que os alunos devem identificar-se passivamente com os personagens, ficar emocionados com os textos poticos, tornando-se indivduos mais sensveis e, talvez, mais controlveis pela escola e pela sociedade. O objetivo esttico mistura-se a um objetivo instrucional, de constituio de formas de sentir da comunidade de leitores. A literatura reduzida a um dispositivo que tem como objetivo orientar os indivduos a se comportarem de uma determinada maneira na escola e na sociedade. As leituras realizadas, pelos alunos, fora da sala de aula apresentam, em geral, um alto grau de dependncia em relao s prticas de leitura escolares. As possibilidades de realizao de leituras autnomas pelos alunos so influenciadas pelas possibilidades de acesso a livros. Nas prticas de leitura observadas, destacam-se algumas estratgias e tticas de escolarizao da literatura desenvolvidas pela professora. Ressalta-se ainda que a biblioteca da escola constitui-se em um espao que propicia e controla leituras. Esta pesquisa aponta para a importncia de se conhecer melhor a realidade das escolas, o dia-a-dia da sala de aula e da biblioteca escolar, as prticas de leitura desenvolvidas nesses espaos, os sujeitos envolvidos no processo de formao de leitores, as tticas e as estratgias desenvolvidas por esses sujeitos e as condies de possibilidade em que a leitura realizada por eles.

ABSTRACT

The present research describes and analyzes how the formation process of the youth (pre-adolescents) as readers of literature occurs by means of their reading practice of didactic books as well as other written material used as supporting tools in the classroom. In order to carry out the proposed analysis, a case study of ethnographic approach was put into practice. During a whole year, the Portuguese classes of a 5th grade group in a municipal public school of the city of Belo Horizonte were monitored. Three aspects were analyzed: the literary texts used for reading practice in the classroom, the reading practice in the classroom and the reading practices outside the classroom realized by three individual students. The collection of data was based on the observation of classes and of reading practice in the school library, the analysis of documents and the semistructured interviews. The research also includes a comparative view by means of analyzing the reading literary practices realized in the Portuguese classes of a 6th Grade Group (which corresponds to the Brazilian 5th Grade) of a public school in the city of Braga, Portugal. The Portuguese Language didactic book was also analyzed. It was observed that, in the Brazilian public school chosen for the research, the reader they are supposed to forge should read the material allowed according to the values transmitted by that important forger of reader community. Those values are conveyed, mainly, through the didactic book, which usually guides the reading practices that take place in the classroom. The analysis of the reading practices of literary texts showed that the students are supposed to passively identify with the characters, be moved by the poetic texts, thus becoming more sensitive individuals and, perhaps, more easily controlled by the school and society. The aesthetic motive is mixed with an instructional objective of creating types of feeling in the reader community. Literature is reduced to a device whose purpose is to guide the individuals to behave in a specific way at school and in society. The readings conducted by the students outside the classroom presented a high level of dependence on the school reading practices. The possibility of autonomous reading practices is influenced by the possibility of book access. The monitored reading practices revealed some strategies and tactics used by the teacher in school-related activities. It is worth mentioning that the school library is a space which offers and controls readings. The present research highlights the importance of knowing better the school realities, the everyday routine of classrooms and school libraries, the reading practices developed in those places, the subjects involved in the process of reader formation, the tactics and strategies developed by those subjects and the conditions of possibility in which they realize their readings.

RESUMEN

Esta investigacin describe y analiza como ocurre el proceso de formacin del joven (pre-adolescente) como lector de literatura, a travs de sus prcticas de lectura en libros de texto y en otros soportes impresos usados en clase. Para el anlisis propuesto, fue realizado un estudio de caso de abordaje etnogrfico. Fueron observadas, durante un ao escolar, clases de Portugus de un grupo de 5 srie de Ensino Fundamental de una escuela de la rede pblica municipal, en la ciudad de Belo Horizonte. Tres facetas son analizadas: los textos literrios propuestos para lectura en clase, las prcticas de lectura en clase y las prcticas de lectura realizadas, por una muestra de tres alumnos, fuera de clase. Para colectar y analizar los datos, fueron utilizados la observacin de clases y prcticas de lectura realizadas en la biblioteca escolar, el anlisis de documentos y la realizacin de entrevistas semi-estructuradas. Esta investigacin presenta, adems, con un sesgo comparativo, un anlisis de las prcticas de lectura de literatura realizadas en las clases de Portugus de un grupo de 6 ano (correspondiente a la 5 srie investigada) de Ensino Bsico de una escuela de la rede pblica de la ciudad de Braga, en Portugal. El libro de texto de Lngua Portuguesa utilizado tambin fue analizado. Se observ que en la escuela pblica brasilea investigada, el lector que se pretende formar debe leer lo que es permitido, siguiendo los valores transmitidos por esa importante formadora de la comunidad de lectores. Esos valores son vehiculados, principalmente, a travs del libro de texto, que acostumbra guiar las prcticas de lectura realizadas en clase. En el anlisis de las prcticas de lectura de textos literrios, se observ que los alumnos deben identificarse pasivamente con los personajes, emocionarse con los textos poticos, tornndose individuos ms sensibles e, quiz, ms controlables por la escuela y por la sociedad. El objetivo esttico se mezcla con un objetivo instruccional, de constitucin de formas de sentir de la comunidad de lectores. La literatura es reducida a un dispositivo que tiene como objetivo orientar a los individuos a comportarse de una determinada manera en la escuela y en la sociedad. Las lecturas realizadas por los alumnos fuera de clase presentan un alto grado de dependencia en relacin a las prcticas escolares de lectura. Las posibilidades de realizacin de lecturas autnomas por los alumnos son influenciadas por las posibilidades de acceso a los libros. En las prcticas de lectura observadas, se destacan algunas estrategias y tcticas de escolarizacin de literatura desarrolladas por la profesora. Tambin se resalta que la biblioteca de la escuela se constituye en un espacio que propicia y controla lecturas. Esta investigacin seala la importancia de conocer mejor la realidad de las escuelas, el cotidiano del aula y de la biblioteca escolar, las prcticas de lectura realizadas en esos espacios, los sujetos involucrados en el proceso de formacin de lectores, las tcticas y estrategias desarrolladas por esos sujetos y las condiciones de posibilidad en que la lectura es realizada por ellos.

SUMRIO

Introduo .................................................................................................... Captulo 1 Letramento literrio: a escolarizao da literatura ...................... 1.1 Leitura e letramento: o dever da escola............................................... 1.2 Literatura e canonizao: (in)definindo o necessrio ............................. 1.3 Literatura infantil e literatura juvenil: prisioneiras do processo de formao da criana e do jovem ................... 1.4 A escolarizao da literatura: uma reflexo sobre o discurso pedaggico..................................................

11 23 23 30 37 48

Captulo 2 Fundamentos metodolgicos e campo investigado .................... 2.1 As concepes orientadoras................................................................ 2.2 A abordagem etnogrfica ....................................................................... 2.3 O campo investigado.............................................................................. 2.4 Anlise das prticas de leitura de textos literrios ................................. 2.5 Objetos de estudo no livro didtico ........................................................ 2.6 Classificao dos textos no livro didtico: categorias de anlise ........... 2.7 A literatura no Guia de livros didticos do PNLD (Brasil) e no Currculo Nacional e Programa de Lngua Portuguesa (Portugal)...............................

62 62 69 71 77 79 85 92

Captulo 3 Livro didtico de Lngua Portuguesa........................................... 3.1 Definindo o mestre mudo..................................................................... 3.2 O que lido e como a leitura realizada............................................... 3.2.1 Livro didtico de Lngua Portuguesa Brasil ...................................... 3.2.2 Livro didtico de Lngua Portuguesa Portugal..................................

103 103 114 116 128

Captulo 4 Anlise de textos literrios e atividades...................................... 4.1 Livro didtico de Lngua Portuguesa Brasil.......................................... 4.1.1 "Identidade": Projeto Identidade........................................................ 4.1.2 "O menino no espelho" e O auto-retrato: Projeto Identidade.......... 4.1.3 Na escola: Projeto Da escola que temos escola que queremos..

138 138 139 151 163

4.2 Livro didtico de Lngua Portuguesa Portugal...................................... 4.2.1 Na aula de Portugus......................................................................... 4.2.2 "A Sementinha das tranas verdes......................................................

173 174 177

Captulo 5 Aula de Portugus: prticas de leitura de literatura...................... 5.1 A classe de Portugus da escola pblica brasileira................................. 5.1.1 Textos literrios no livro didtico........................................................... 5.1.2 Textos literrios retirados de outros livros didticos............................ 5.1.3 Textos literrios em livros de literatura................................................ 5.1.4 Textos literrios retirados de livros de literatura.................................... 5.2 A classe de Portugus da escola pblica portuguesa.............................. 5.2.1 Texto literrio no livro didtico e em livro de literatura...........................

184 185 187 196 205 210 217 218

Captulo 6 A voz dos sujeitos da pesquisa e as leituras extraclasse............ 6.1 A classe de Portugus da escola pblica brasileira: a voz da professora...................................................................................... 6.1.1 Sobre o livro didtico na perspectiva da professora............................ .. 6.1.2 Sobre os alunos na perspectiva da professora ................................... .. 6.2 A classe de Portugus da escola pblica portuguesa: a voz do professor......................................................................................... 6.2.1 Sobre o livro didtico na perspectiva do professor................................ 6.2.2 Sobre os alunos na perspectiva do professor ....................................... 6.3 A biblioteca da escola brasileira: a voz dos auxiliares de biblioteca....... 6.4 Leitura fora da sala: os bastidores da escola brasileira............................. 6.4.1 Brbara: a leitora obediente.................................................................... 6.4.2 Rafael: o leitor anrquico .................................................................. .. 6.4.3 Washington: o leitor perspicaz ............................................................ ..

226 227 228 231 232 234 236 241 246 247 255 259

Consideraes finais......................................................................................... 268 Referncias Bibliogrficas................................................................................. 276 Anexos............................................................................................................... 296

INTRODUO

Nesta pesquisa sobre o letramento literrio na escola, descrevo e analiso como se d o processo de formao do jovem (pr-adolescente) como leitor de literatura, por meio de suas prticas de leitura em livros didticos e em outros suportes impressos usados em sala de aula. Parto do seguinte problema: Como vem ocorrendo, no Ensino Fundamental, a formao de leitores de literatura? Para a anlise desse objeto, o processo de formao de leitores de literatura na escola, realizei um estudo de caso exploratrio, utilizando uma abordagem etnogrfica. Acompanhei, durante um ano escolar, as aulas de Portugus de uma turma de 5 srie do Ensino Fundamental da rede pblica municipal, na cidade de Belo Horizonte. Como meu objetivo no era investigar a alfabetizao dos alunos o processo de aquisio da tecnologia do ler e do escrever (SOARES, 2003) , selecionei para a investigao a 5 srie, que corresponde, nas escolas municipais, ao ltimo ano do 2 ciclo do Ensino Fundamental. Estou partindo do pressuposto de que so necessrios no mnimo quatro anos de escolaridade para a apropriao da leitura e da escrita e de seus usos sociais1. Esse pressuposto vem sendo utilizado, como nos informa Soares (2001, p. 57), pelas poucas pesquisas, no Brasil, que procuram avaliar o nvel de letramento de jovens e adultos. De maro a julho de 2003, assisti s aulas de Portugus da turma de 5 srie selecionada. Durante o primeiro semestre, foram acompanhadas 45 aulas, praticamente todas as aulas dessa disciplina. Diante da quantidade de dados obtidos para a anlise, decidi, durante o segundo semestre, substituir o acompanhamento dirio pelo semanal. Sendo assim, permaneci em campo durante um ano escolar, sendo que no segundo semestre intercalei acompanhamento de aulas com entrevistas e conversas informais com alunos e professores. Para a investigao proposta, muitas escolhas se fizeram necessrias. Aps a delimitao da escola e da turma que acompanharia, selecionei uma1

Este pressuposto apresentou-se no muito confivel. Encontrei na turma de 5 srie investigada

amostra de 15 alunos cujas prticas de leitura realizadas em contextos extraclasse seriam investigadas. Em um segundo momento, foi necessrio selecionar, dentre as aulas observadas, aquelas que seriam analisadas neste trabalho e, dentre os alunos cujas prticas de leitura acompanhei, atravs de observaes na biblioteca e de entrevistas, aqueles que seriam mantidos na pesquisa. Optei por uma anlise pormenorizada de cada aluno, cruzando os dados obtidos nas observaes das aulas, nas observaes de suas escolhas e leituras na biblioteca, nas entrevistas, nas conversas informais com seus familiares, na anlise de seus cadernos e atividades realizadas na aula. Pelo tipo de anlise utilizado, foi selecionada uma amostra de trs alunos. Nas aulas de Portugus, investiguei o que era lido (quais textos literrios eram trabalhados na aula) e como as prticas de leitura eram desenvolvidas. A mediao realizada pelo professor e a recepo dos textos pelos alunos guiaram a anlise das prticas de leitura assistidas. Nesta pesquisa, os leitores esto sendo considerados enquanto membros de uma comunidade que partilha determinados cdigos de interpretao de textos, cdigos estes que foram aprendidos na prpria comunidade. A escola destaca-se entre as instituies formadoras da comunidade, denominada por Fish (1980) de comunidade interpretativa e por Culler de comunidade de leitores (1980 e 1981). Essa concepo de leitura como prtica social utilizada pela pesquisadora Dionsio (2000) em seu estudo sobre a construo escolar de comunidades de leitores. Para ampliar este estudo, dialogando com outros pesquisadores em outro contexto sociocultural, desenvolvi parte da pesquisa em Portugal. Nesse pas, selecionei, sob a orientao da Professora Maria de Lourdes Dionsio, uma escola da rede pblica bem conceituada da cidade de Braga. Nessa escola, acompanhei, durante um ms, as aulas de Portugus, nas quais o texto literrio estava sendo trabalhado, em uma turma do 6 ano (correpondente 5 srie investigada nesta pesquisa) do Ensino Fundamental e entrevistei o professor de Portugus da turma. O livro didtico de Lngua Portuguesa utilizado tambm foi analisado, com um vis comparativo. importante destacar que meu objetivo no foi fazer uma pesquisa comparativa, entre a turma observada no Brasil e a turmaum aluno analfabeto e dois alunos apresentando grandes dificuldades de leitura e de escrita.

observada em Portugal. Isso exigiria o mesmo tempo em campo, alm de outros procedimentos que no estavam previstos nesta pesquisa. A histria do livro didtico no Brasil est marcada pelos manuais portugueses que, durante o sculo XIX, circularam pela escola brasileira. Como observam Lajolo e Zilberman, somente no fim do sculo XIX os livros didticos comearam a ser abrasileirados (1996, p. 183). Durante o sculo XX, no Brasil, o livro didtico de Lngua Portuguesa passou por muitas mudanas. Na dcada de 70, quando se constitui a disciplina de Comunicao e Expresso, os livros didticos tiveram que responder s novas exigncias (ZILBERMAN, 1999, p. 80). Foi nessa poca fim dos anos 60 e durante os anos 70 que eles receberam o feitio que possuem hoje: com textos, vocabulrio, interpretao, gramtica, redao e ilustraes (BEZERRA, 2001, p. 33). Na dcada de 90, a partir de 1995, com a interveno do governo no PNLD programa que desde sua criao, em 1985, era responsvel apenas pela compra e distribuio de livros didticos para as escolas pblicas , os livros didticos passaram a ser avaliados por grupos de professores e especialistas ligados a universidades e a distribuio dos livros deixou de ser irregular, passando a atender a todas as escolas pblicas brasileiras. Desde ento, os livros didticos brasileiros vm passando por mudanas, tentando atender s exigncias dos avaliadores do PNLD, e o governo brasileiro tornou-se o maior comprador de livros didticos do mundo2. Desde o incio do sculo XX, o livro didtico de Lngua Portuguesa vem construindo no Brasil uma histria particular independente dos manuais portugueses com caractersticas determinadas, entre outros fatores, por fatores polticos. separao ocorrida nas histrias dos livros didticos de Lngua Portuguesa se seguiu uma falta de interesse, no Brasil, pelos manuais portugueses e pelos estudos que vm sendo realizados, sobre esse suporte, em Portugal. Acredito que o dilogo com esses estudos enriqueceu este trabalho. Nesta pesquisa, entre os elementos constituintes do processo de formao de leitores de literatura investigado, destaco o professor3, enquantoBATISTA, Antnio Augusto Gomes. Belo Horizonte: Faculdade de Educao da UFMG, 2002. Notas de aula. 3 Sobre a investigao das condies scio-histricas que contribuem para a formao do professor como leitor e como formador de leitores, consultar a tese de doutorado de Evangelista2

mediador da leitura na sala de aula, os alunos, os sujeitos-leitores que esto sendo formados, e o livro didtico de Portugus, importante dispositivo pedaggico de formao de leitores. Como o aprofundamento em todos esses elementos envolvidos no processo investigado inviabilizaria a pesquisa, optei por priorizar, para um maior aprofundamento, o livro didtico de Portugus. Ele revela-se como o principal suporte de textos literrios trabalhados na sala de aula e como orientador das prticas de leitura realizadas. Sendo assim, dois captulos desta pesquisa esto voltados para a anlise dos livros didticos utilizados pelas turmas investigadas a anlise dos textos literrios e das prticas de leitura de literatura propostas nos livros. O fato de o texto literrio estar presente em um tipo de suporte especfico como o livro didtico de Lngua Portuguesa me faz pensar na seguinte questo: esse suporte poderia determinar uma leitura didtica do texto literrio? Culler (1999, p. 30), ao tratar do conceito de literatura, destaca a importncia do suporte para a definio de um texto como literrio. Quando a linguagem removida de outros contextos, destacada de outros propsitos, ela pode ser interpretada como literatura (CULLER, 1999, p. 32), embora deva possuir algumas qualidades que a tornam sensvel a tal interpretao. Para Culler, a literatura linguagem descontextualizada, cortada de outros propsitos, constituindo-se ela prpria como um contexto, que promove ou suscita tipos especiais de ateno (1999, p. 32). Partindo dessa colocao, proponho uma inverso desse raciocnio e indago: se um texto literrio for contextualizado em um suporte com propsitos informativo-pragmticos definidos, como o livro didtico, ele pode deixar de ser interpretado como literatura? importante destacar que esses propsitos devem ser analisados e que no so os mesmos em todos os livros. Porm, pode-se afirmar que o principal objetivo de um livro didtico de Portugus ensinar a lngua materna, embora a forma e a prpria concepo desse ensino possam variar de um livro para outro. Segundo Dionsio, o texto, literrio ou no, no livro didtico, adquire o estatuto de um exemplo:(2000). Essa pesquisadora procura compreender quem so os professores, enquanto leitores, social e historicamente constitudos, na sua trajetria de formao social, familiar e escolar/acadmica (2000, p. 24).

O fato de ter sido selecionado para o manual confere-lhe o estatuto e o poder de um exemplo. Este uso especfico para fins educacionais acaba, por um lado, por ampliar e, por outro, por reforar o poder do texto no seu papel de moldador e, concomitantemente constrangedor do que os sujeitos aprendem sobre o mundo e sobre os modos de o apresentar. Muitas vezes tambm, a prpria deslocao de um texto do seu contexto de origem para o contexto pedaggico acaba por criar essa funo que antes no se antevia. (2000, p. 117)

Dessa forma, os textos dos manuais so textos transformados (DIONSIO, 2000, p. 117), uma vez que foram recontextualizados. Levando em considerao o objetivo do livro didtico de Lngua Portuguesa e suas caractersticas especficas, possvel, nesse tipo de suporte, que a proposta bsica de interao entre os textos literrios e o leitor seja a ficcional, proposta que caracteriza a recepo literria de um texto? Enquanto a escola vem mantendo em quarentena4 a criana, o livro didtico viria mantendo em quarentena a literatura, j que ela submetida didatizao da leitura? Ou seria a prpria leitura, de qualquer tipo e gnero textuais, que estaria em quarentena na escola? Batista (1998, p. 43) aponta para essa questo ao afirmar que a dimenso educativa do ler na escola se encontra em algo que no est na leitura mesma, mas no contedo educativo dos textos lidos (nos valores ou aspectos instrutivos que podem transmitir) ou em sua linguagem (que exemplifica valores lingsticos ou conhecimentos literrios). Como destaca Chartier (1996, p.235), existem vrias vias possveis para traar uma histria da leitura. Podem-se interrogar leitores, quando estes esto vivos, ou os objetos lidos. Este trabalho pretende seguir pelos dois caminhos, sendo que o primeiro (interrogar leitores) abarca tambm uma observao de suas prticas de leitura em sala de aula. Investigo como o texto literrio trabalhado, nas aulas de Portugus e no livro didtico, e como esse tipo de suporte utilizado, pela professora e pelos alunos. Na investigao do processo de formao de leitores de literatura na escola, objeto desta pesquisa, esto sendo analisadas trs facetas: os textos4

Este termo utilizado por Philippe Aris, ao definir a escolarizao como o processo de enclausuramento das crianas (1981, p.11).

literrios propostos para leitura na sala de aula, sua prtica de leitura na sala de aula e a leitura realizada fora da sala de aula. Para a investigao da primeira faceta, organizei os textos por categorias definidas pelo suporte em que se encontram, uma vez que o suporte pode interferir no sentido que ser construdo, pelo leitor, para o texto. As seguintes categorias foram criadas: textos literrios trabalhados no livro didtico de Lngua Portuguesa adotado, textos literrios retirados de outros livros didticos de Lngua Portuguesa (geralmente apresentados no suporte xerox ou no quadrogiz, para os alunos copiarem no caderno), textos literrios trabalhados em livros de literatura e, por ltimo, textos literrios retirados de livros de literatura (geralmente transcritos, pela professora, no quadro-giz, para os alunos copiarem). As seguintes questes esto sendo investigadas: Quais so os textos que esto sendo lidos na escola? Como a leitura est sendo realizada? Quais prticas de leitura esto sendo apropriadas pelos alunos? Como essas prticas esto sendo apropriadas? Quais so as operaes interpretativas, formas de interpretar o texto, que esto sendo apreendidas pelos alunos? Como o livro didtico contribui para a definio dessas operaes interpretativas? Podemos afirmar que, no Ensino Fundamental, os alunos ultrapassam as orientaes pragmticas presentes no livro didtico de Lngua Portuguesa, desenvolvendo, assim, o tipo literrio de letramento? Podemos afirmar que, no Ensino Fundamental, leitores de literatura esto sendo formados? Para a investigao proposta, estou me guiando pela seguinte questo: como e para qu a literatura est sendo trabalhada na escola? Acredito que, buscando respostas para essas questes atravs da observao do cotidiano escolar, pode-se entender melhor o processo de escolarizao da literatura e apontar, quem sabe, algumas alternativas para que a literatura seja trabalhada na escola como arte, como proposta esttica. Se, como destaca Soares, as relaes entre letramento e escolarizao so ainda imprecisas e obscuras (2003, p. 111), as relaes entre letramento literrio e escolarizao so mais obscuras ainda. Investigando a forma como o letramento literrio desenvolvido na escola, busco compreender as conseqncias da escolarizao da literatura sobre as prticas sociais de leitura de forma geral e, mais especificamente, sobre as prticas sociais de leitura

literria. Em um pas, como o Brasil, que ainda apresenta altos ndices de analfabetismo, pesquisas sobre o letramento e, principalmente, sobre o letramento literrio, para alguns educadores, podem parecer no muito adequadas. Contudo, acredito que, em um pas democrtico, o letramento literrio no deve ser privilgio de uma minoria. No apenas a alfabetizao deve ser discutida como um direito de todo cidado, mas tambm o letramento, e dentro dele: o letramento literrio. Lajolo enfatiza a importncia de a literatura estar presente no currculo escolar:

...a leitura literria tambm fundamental. literatura, como linguagem e como instituio, que se confiam os diferentes imaginrios, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos atravs dos quais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias. (2001, p. 106)

Como destaca Lajolo, o cidado, para exercer plenamente sua cidadania, precisa apossar-se da linguagem literria, tornar-se seu usurio competente (2001, p. 106). preciso garantir o acesso a essa produo cultural. Cabe ao cidado preteri-la ou preferi-la. Essa deciso no deve partir de educadores. importante lembrar, como destaca Walty, que muitas vezes a escola o nico lugar em que a criana tem acesso ao livro e ao texto literrio (2001, p. 54). Candido, no clssico ensaio O direito Literatura, focaliza a relao da literatura com os direitos humanos de dois ngulos diferentes:

Primeiro verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e viso do mundo, ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruio da literatura mutilar a nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situaes de restrio dos direitos, ou de negao deles, como a misria, a servido, a mutilao espiritual. Tanto num nvel quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos

direitos humanos. A organizao da sociedade pode restringir ou ampliar a fruio deste bem humanizador. O que h de grave numa sociedade como a brasileira que ela mantm com a maior dureza a estratificao das possibilidades, tratando como se fossem compressveis muitos bens materiais e espirituais que so imcompressveis. (2004, p. 186)

Ao defender o direito igualdade de acesso aos bens culturais, Candido destaca a importncia da comunicao entre as esferas da produo literria. Sendo assim, importante que a literatura chamada erudita deixe de ser privilgio de pequenos grupos, da mesma forma que importante que a literatura chamada popular, folclrica, seja tambm conhecida e valorizada por esses grupos, que costumam discrimin-la. Para Candido, em uma sociedade estratificada, como a nossa, a fruio da literatura se estratifica de maneira abrupta e alienante (2004, p. 187). Ao pesquisar o letramento literrio, procuro contribuir para a investigao que vem sendo desenvolvida por alguns pesquisadores da Faculdade de Educao da UFMG sobre a leitura literria na escola. Dentre eles, destaco as professoras Aparecida Paiva, Aracy Martins, Graa Paulino, Zlia Versiani e os demais pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Literatura Infantil e Juvenil do CEALE, dentre eles Hrcules Toldo Corra, ex-orientando da professora Graa Paulino e professor do Uni-BH, e Paula Cristina Rodrigues, que, sob a orientao da professora Aparecida Paiva, defendeu, recentemente, dissertao de mestrado intitulada A literatura no livro didtico de lngua portuguesa: a escolarizao da leitura literria. Para investigar as relaes entre letramento e escolarizao, o livro didtico de Lngua Portuguesa constitui um importante objeto de estudo. Ao pesquisar como o livro didtico de Portugus contribui para a formao de leitores de literatura, pretendo ampliar os estudos que vm sendo realizados sobre literatura no livro didtico. Como nos informa Freitag, no Brasil, a maioria dos crticos e analistas tm se ocupado dos contedos veiculados pelo livro didtico, atravs dos textos (1997, p.85). Osman Lins (1977), um dos pioneiros a estudar a literatura no livro didtico de Portugus, priorizou a escolha dos textos literrios presentes nos livros. O autor denuncia em sua pesquisa a inatualidade dos

textos que compem as coletneas, a sua marginalidade em relao aos clssicos da literatura portuguesa e brasileira, e sua distncia com relao aos problemas da realidade quotidiana do povo brasileiro (Freitag, 1997, p.68). O trabalho de Lins, segundo Freitag, foi tido como padro para todos os trabalhos que o sucederam, na dcada de 80. O importante papel do livro didtico no ensino tem sido reconhecido por pesquisadores e instituies de vrios pases. A pesquisadora portuguesa Maria de Lourdes Dionsio, em seu estudo sobre a construo escolar de comunidades de leitores, destaca esse reconhecimento, citando a existncia de instituies e redes de instituies como a International Textbook Research Network da UNESCO; a International Association for Research on Textbooks and Educational Media (IARTEM); o Institute for Textbook Research de Viena; o instituto sueco de Harnosand. A pesquisadora tambm destaca a existncia de publicaes peridicas especialmente dedicadas a este assunto, como a revista PARADIGM, e o desenvolvimento de projetos e programas, como o programa EMMANUELLE levado a cabo no Institut National de Recherche Pdagogique, o recentemente fundado programa de pesquisa europia Intelligence de L'Europe, o projeto espanhol MANES e o portugus EME, desenvolvido no Centro de Estudos em Educao e Psicologia da Universidade do Minho (Dionsio, 2000, p. 12). Pode-se observar, em vrios pases, o desenvolvimento de pesquisas, projetos e programas envolvendo o livro didtico. No Brasil, em 1985, foi criado, por iniciativa do Ministrio da Educao (MEC), o PNLD (Programa Nacional do Livro Didtico). Esse programa o responsvel pela compra e distribuio de livros didticos para as escolas da rede pblica. Em 1995, os livros escolhidos pelas escolas e distribudos pelo PNLD passaram a ser avaliados por grupos de pesquisadores vinculados a universidades. Desde que comearam a ser avaliados pelo PNLD, os livros vm passando por mudanas. Pode-se observar um aumento da qualidade dos livros didticos brasileiros. Contudo, em relao ao trabalho com o texto literrio, os livros didticos continuam deixando muito a desejar. Os Guias do PNLD onde encontramos a avaliao dos livros didticos , distribudos para as escolas, no apresentam critrios de avaliao suficientemente detalhados para o ensino de

literatura5. Nesta pesquisa, proponho uma investigao sobre a formao de leitores de literatura na escola, analisando as formas de apresentao do livro didtico (desde o aspecto fsico at as conversas do autor com o leitor), os textos literrios, a forma como o professor trabalha com esses textos e sua recepo pelos alunos. Com isso, investigando tambm o uso do livro didtico, pretendo contribuir para as pesquisas que vm sendo realizadas sobre esse importante suporte didtico. Na Faculdade de Educao da UFMG, destaco o estudo que vem sendo desenvolvido pelos pesquisadores do grupo de estudo sobre livro didtico, coordenado pelo professor Antnio Augusto Gomes Batista. No primeiro captulo, delimito e discuto o problema proposto, apresentando o referencial terico do trabalho. No segundo, estabeleo o referencial metodolgico da pesquisa, apresento o objeto de estudo e os conjuntos de categorias construdos para a anlise do objeto. Nesse captulo, apresento ainda uma breve anlise da forma como o trabalho com o texto literrio destacado, no Brasil, no Guia de Livros Didticos de Lngua Portuguesa do PNLD e, em Portugal, no Currculo Nacional e Programa de Lngua Portuguesa. No terceiro captulo, aprofundo algumas reflexes sobre a definio de livro didtico e analiso as estruturas dos livros didticos selecionados, o manual brasileiro e o manual portugus. No quarto captulo, apresento uma anlise detalhada de alguns textos literrios e das atividades de leitura e compreenso de texto relacionadas a eles presentes no livro didtico adotado no Brasil Tecendo Textos: ensino de lngua portuguesa atravs de projetos, de autoria de SILVA, A.S., OLIVEIRA, Tnia A. e BERTOLIN, R., da coleo Novo Tempo, da IBEP e no livro didtico adotado em Portugal Lngua Portuguesa 6 ano, volume 1, de autoria de CARDONA, Irene, ALMEIDA, Maria Amlia e GALHOZ, Maria Eduarda, da Texto Editora. Analiso cinco textos literrios no livro brasileiro e dois no livro portugus. No quinto captulo, apresento a anlise de algumas prticas de leitura do texto literrio realizadas na classe de portugus investigada da escola pblica brasileira e, com um vis comparativo, na classe de portugus investigada da5

Atualmente, h um movimento, por parte da coordenao do PNLD de Lngua Portuguesa, de ampliar a discusso sobre a leitura literria nos livros didticos.

escola pblica portuguesa. Nas aulas de Portugus, os textos esto sendo analisados por categoria definida pelo suporte de onde foram retirados. As seguintes categorias foram criadas: texto literrio trabalhado no livro didtico de Portugus; texto literrio trabalhado em livro de literatura; texto literrio retirado de outros livros didticos de Portugus e texto literrio retirado de livro de literatura. No sexto captulo, apresento, primeiramente, a anlise da entrevista realizada com a professora brasileira e com o professor portugus. Em um segundo momento, apresento algumas informaes importantes sobre a organizao e o funcionamento da biblioteca da escola pblica brasileira, a partir do que foi informado pelos auxiliares de biblioteca. Logo a seguir, investigo as prticas de leitura realizadas fora da sala de aula por trs alunos da classe de Portugus da escola pblica brasileira. Para isso, acompanhei, durante um semestre, as visitas dos alunos biblioteca da escola e realizei uma entrevista semi-estruturada, cujas perguntas encontram-se no anexo deste trabalho. Procurei saber sobre os livros que os alunos selecionados liam fora da sala de aula e sobre a forma como a leitura era realizada. Meu objetivo foi observar, no discurso dos alunos, o grau de dependncia entre suas leituras e as prticas de leitura escolares.

CAPTULO 1

A poesia est guardada nas palavras - tudo que eu sei. Meu fado o de no saber quase tudo. Manoel de Barros

1 Letramento literrio: a escolarizao da literatura

1.1 Leitura e letramento: o dever da escola

A escola a instituio responsvel pela alfabetizao dos indivduos e a ela que a sociedade delega a responsabilidade de prover as novas geraes das habilidades, conhecimentos, crenas, valores e atitudes considerados essenciais formao de todo e qualquer cidado (SOARES, 2001, p. 84). Dentre essas habilidades, valores e atitudes, destacam-se as relacionadas formao de leitores. Para se formar leitores no basta que os indivduos saibam ler, preciso que eles faam uso dessa habilidade. Essa preocupao com o uso resultou no aparecimento do termo letramento6. Como nos informa Soares, letramento a verso para o portugus da palavra da lngua inglesa literacy, que significa o estado ou condio que assume aquele que aprende a ler e escrever (2001, p.16-17). Ser alfabetizado no significa ser letrado (na acepo de letramento). Como destaca Soares, alfabetizado nomeia aquele que apenas aprendeu a ler e a escrever, no aquele que adquiriu o estado ou a condio de6

Esse termo vem sendo utilizado no lugar do termo alfabetismo, que no de uso corrente, ao contrrio de seu antnimo, analfabetismo.

quem se apropriou da leitura e da escrita, incorporando as prticas sociais que as demandam (2001, p. 19). O conceito de letramento complexo. Ele abarca dois fenmenos muito diferentes, apesar de complementares: a leitura e a escrita. Esses dois fenmenos, por sua vez, so constitudos por um conjunto de habilidades, comportamentos, conhecimentos que compem um longo e complexo continuum (SOARES, 2001, p. 48-49). Uma pessoa pode ser capaz de ler um bilhete e no ser capaz de ler um romance, pode ser capaz de escrever o nome e no ser capaz de escrever uma carta, e assim por diante. H diferentes tipos e nveis de letramento, dependendo das necessidades, das demandas do indivduo e de seu meio, do contexto social e cultural (SOARES, 2001, p. 48-49). Soares destaca duas amplas categorias de definio de letramento: uma individual e outra social. A leitura do ponto de vista individual de letramento, ou seja, como tecnologia adquirida pelo indivduo,

estende-se da habilidade de traduzir em sons slabas sem sentido a habilidades cognitivas e metacognitivas; inclui, dentre outras: a habilidade de decodificar smbolos escritos; a habilidade de captar siginificados; a capacidade de interpretar seqncias de idias ou eventos, analogias, comparaes, linguagem figurada, relaes complexas, anforas; e, ainda, a habilidade de fazer previses iniciais sobre o sentido do texto, de construir significado combinando conhecimentos prvios e informao textual, de monitorar a compreenso e modificar o significado do que foi lido, tirando concluses e fazendo julgamentos sobre o contedo. (SOARES, 2001, p. 69)

importante destacar que, na perspectiva do letramento, as habilidades de leitura devem ser aplicadas diferenciadamente a diversos tipos de suportes e textos: literatura, livros didticos, obras tcnicas, dicionrios, listas, enciclopdias, quadros de horrio, catlogos, jornais, revistas, anncios, cartas formais e informais, rtulos, cardpios, sinais de trnsito, sinalizao urbana, receitas (SOARES, 2001, p. 69). Em sua dimenso social, o letramento no um atributo unicamente pessoal, mas , sobretudo, uma prtica social: letramento o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita, em um contexto especfico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e prticas sociais

(SOARES, 2001, p. 72). Porm, h interpretaes conflitantes dentro da dimenso social de letramento. Soares aponta uma interpretao progressista, liberal a qual ela denomina de verso fraca dos atributos e implicaes dessa dimenso e uma interpretao radical, revolucionria denominada pela autora de verso forte. De acordo com a primeira, as habilidades de leitura e escrita no podem ser dissociadas de seus usos, o letramento definido em termos de habilidades necessrias para que o indivduo funcione adequadamente em um contexto social (SOARES, 2001, p. 72). Como nos informa Soares, vem da o termo letramento funcional (ou alfabetizao funcional), difundido a partir da publicao do estudo internacional sobre leitura e escrita realizado por Gray7, em 1956, para a UNESCO (SOARES, 2001, p. 72). Scribner8, outro representante dessa interpretao social liberal, props para letramento funcional a metfora adaptao, enfatizando seu valor pragmtico ou de sobrevivncia:

A necessidade de habilidades de letramento na nossa vida diria bvia; no emprego, passeando pela cidade, fazendo compras, todos encontramos situaes que requerem o uso da leitura ou a produo de smbolos escritos. No necessrio apresentar justificativas para insistir que as escolas so obrigadas a desenvolver nas crianas as habilidades de letramento que as tornaro aptas a responder a estas demandas sociais cotidianas. (apud SOARES, 2001, p. 73, grifos meus)

Podemos observar que, segundo essa concepo, cabe escola instrumentalizar os indivduos para que eles possam sobreviver na sociedade. J a concepo de letramento em sua dimenso social radical, revolucionria,

no pode ser considerado um instrumento neutro a ser usado nas prticas sociais quando exigido, mas essencialmente um conjunto de prticas socialmente contrudas que envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e responsveis por reforar ou questionar valores, tradies e formas de distribuio de poder presentes nos contextos sociais.GRAY, W.S. The Teaching of Reading and Writing. Paris: UNESCO, 1956. SCRIBNER, S. Literacy in three metaphors. American Journal of Education, v. 93, n.1, 1984. p.621.8 7

(SOARES, 2001, p. 75)

Assim sendo, nem sempre o letramento trar conseqncias desejveis, benficas, crticas. Quando a natureza e a estrutura das prticas e relaes sociais so questionadas, o letramento visto como um instrumento da ideologia, utilizado com o objetivo de manter as prticas e relaes sociais correntes, acomodando as pessoas s condies vigentes (SOARES, 2001, p. 76). Como ressalta Soares (2001, p. 76), Paulo Freire foi um dos primeiros educadores a realar o poder 'revolucionrio' do letramento, apesar de esse termo ter aparecido posteriormente s suas publicaes. Esse educador afirmava que ser alfabetizado tornar-se capaz de usar a leitura e a escrita como um meio de tomar conscincia da realidade e de transform-la (SOARES, 2001, p.76). Para Freire, a alfabetizao pode contribuir para a libertao do homem ou para sua domesticao. A palavra alfabetizao utilizada por esse educador em um sentido mais amplo, envolve a formao do sujeito crtico, o uso da leitura e da escrita e no apenas a aquisio da tecnologia da escrita. Para que o uso do termo letramento no acabe com a especificidade do processo de alfabetizao, Soares distingue esses dois processos:

Embora correndo o risco de uma excessiva simplificao, pode-se dizer que a insero no mundo da escrita se d por meio da aquisio de uma tecnologia a isso se chama alfabetizao, e por meio do desenvolvimento de competncias (habilidades, conhecimentos, atitudes) de uso efetivo dessa tecnologia em prticas sociais que envolvem a lngua escrita a isso se chama letramento. (2003, p. 90)

A pesquisadora ressalta a leitura do ponto de vista social de letramento. O domnio da tecnologia separado de seu uso efetivo e competente. Segundo Soares, para programas de insero de indivduos no mundo da escrita, essa distino til, sobretudo em pases que ainda enfrentam altos ndices de analfabetismo, como o caso do Brasil (2003, p. 91). A pesquisadora (p. 92) destaca a alfabetizao e o letramento como processos distintos, de

naturezas essencialmente diferentes, porm, interdependentes e indissociveis:

A alfabetizao a aquisio da tecnologia da escrita no precede nem pr-requisito para o letramento, isto , para a participao em prticas sociais de escrita, tanto assim que analfabetos podem ter um certo nvel de letramento: no tendo adquirido a tecnologia da escrita, utilizam-se de quem a tem para fazer uso da leitura e da escrita; alm disso, na concepo psicogentica de alfabetizao que vigora atualmente, a tecnologia da escrita aprendida no, como em concepes anteriores, com textos construdos artificialmente para a aquisio das tcnicas de leitura e de escrita, mas atravs de atividades de letramento, isto , de leitura e produo de textos reais, de prticas sociais de leitura e de escrita. (SOARES, 2003, p. 92)

Como ressalta Soares, os analfabetos, para terem acesso ao mundo da leitura e da escrita, e assim apresentarem um certo nvel de letramento, dependem de um intermedirio, de algum que possua a tecnologia da escrita, ou seja, de um indivduo alfabetizado. Vale destacar que, nesse caso, sempre haver uma dependncia externa: para que o letramento seja desenvolvido no indivduo analfabeto necessrio que um indivduo alfabetizado exera o papel de intermedirio entre o analfabeto e o mundo da escrita. O ideal que um mesmo indivduo desenvolva os dois processos, a alfabetizao e o letramento. O conceito de letramento tambm pode ser pensado em relao literatura. Paulino define o letramento literrio: como outros tipos de letramento, continua sendo uma apropriao pessoal de prticas de leitura/escrita, que no se reduzem escola, embora passem por ela (1998, p.16). Vale destacar que esse tipo de letramento, de modo geral, acaba envolvendo somente o fenmeno da leitura. As habilidades de escrita literria no costumam ser cobradas dos indivduos, uma vez que so concebidas como escolhas individuais. Como destaca Paulino:

A formao de um leitor literrio significa a formao de um leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie construes e significaes verbais de cunho artstico, que faa disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor tem de saber usar estratgias

de leitura adequadas aos textos literrios, aceitando o pacto ficcional proposto, com reconhecimento de marcas lingsticas de subjetividade, intertextualidade, interdiscursividade, recuperando a criao de linguagem realizada, em aspectos fonolgicos, sintticos, semnticos e situando adequadamente o texto em seu momento histrico de produo. (2004, p. 56)

Podemos observar que o letramento literrio extrapola um valor pragmtico, de sobrevivncia na sociedade, como nas situaes apontadas por Scribner. importante enfatizar ainda, como j foi destacado, que o letramento, entendido sob o ponto de vista social revolucionrio, nem sempre ter conseqncias desejveis, benficas. Ele tambm pode ser utilizado com o objetivo de manter as prticas e relaes sociais correntes e, portanto, no deve ser tratado como algo autnomo. necessrio levar em conta o que est sendo lido e, principalmente, a forma como a leitura est sendo feita. consenso, como j foi destacado anteriormente, atribuir escola a responsabilidade de formar leitores. Contudo, preciso definir o seguinte: leitores de qu? O verbo ler, como muito bem destaca Soares9 (2005), necessita de complemento: ler o qu? Seguindo esse raciocnio, Paulino enfatiza que a leitura, assim como o verbo ler, tambm necessita de complemento: leitura de qu? (2005, p. 55) Em se tratando da leitura do texto literrio, importante refletirmos, segundo Paulino, sobre suas especificidades, sem deixarmos de levar em conta o que h de comum (as semelhanas) entre essa leitura e a de textos no-literrios, j que, numa perspectiva contempornea, todos os domnios discursivos, sem exceo, exigiriam e desenvolveriam habilidades complexas e competncias sociais de seus leitores (PAULINO, 2005, p. 61). Para Paulino, assim como para Soares (2005), da mesma forma que existe diversidade de textos, existe, em funo desses textos, diversidade de leituras, de modos de ler. No basta defendermos a presena de diversos tipos e gneros textuais na escola, se no levarmos em conta os diferentes modos de leitura, de acordo com determinadas especificidades do texto. Paulino ressalta que as diferenas se localizariam nos objetos lidos e se definiriam a partir deles,Soares chama a ateno para a necessidade de se dar complemento ao verbo ler: quando se diz que o brasileiro l pouco ou l mal, o que se est entendendo por ler? L pouco o qu? L mal o9

mas seriam tambm estabelecidas pelos sujeitos em suas propostas, espaos sociais e aes de leitura (2005, p.56). Sendo assim, se textos literrios forem lidos apenas com o objetivo de aprender anlise sinttica objetivo esse presente, at pouco tempo, em muitos livros didticos de lngua portuguesa , que tipo de leitura est sendo realizado? Textos literrios, para Paulino, devem ser lidos de forma literria. Isso no quer dizer, como destaca a pesquisadora, que os objetivos e os modos do prprio ato de ler literariamente esses textos no devam ser repensados. Assim como o conceito de literatura no algo esttico, as formas de ler literariamente tambm no o so. Enquanto Paulino10 destaca a importncia de se refletir sobre as diferenas entre a leitura de textos literrios e a de outros textos, Dionsio chama a ateno para as semelhanas, uma vez que, para ela, o mais importante a formao de leitores crticos. Assim, o que interessa para Dionsio (2005) no o complemento nominal de leitura (leitura de literatura, leitura de texto informativo etc.), mas o adjunto adverbial de modo, implcito na questo que parece orientar seu raciocnio: como a leitura est sendo feita? Dionsio ressalta que o entendimento do que leitura varia, assim como, e principalmente, o de suas funes num dado contexto social:

as formas que toma a escolarizao da leitura variam em funo do ideal do sujeito que, em cada momento histrico e social, se quer formar e, naturalmente, depende do projeto poltico-social para a escola, enquanto instituio que assume essa formao. (2005, p. 72)

O projeto poltico-social defendido por Dionsio deve valorizar a dimenso crtica das prticas de leitura (no apenas a operativa ou a cultural) e tem como objetivo a formao de sujeitos/leitores cosmopolitas, no sentido emqu? (2005, p. 30) 10 Graa Paulino, Ivete Walty, Maria Nazareth Fonseca e Maria Zilda Cury trabalham com os diversos modos de ler a partir de diferentes gneros textuais e domnios discursivos no livro Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato, 2001.

que o mundo em que habita no apenas a rua onde mora (2005, p.78). Esse leitor definido como:

aquele que compreende o local luz do global e vice-versa, o presente luz do passado, aquele que se serve dos textos, de todos os textos, sejam eles de livros ou eletrnicos, sejam eles do quotidiano ou artsticos, para perceber o que se passa sua volta, uso esse filtrado por um ideal de uma vida digna e de realizao pessoal para todos. (DIONSIO, 2005, p. 78)

Sendo assim, para Dionsio, mais importante do que a escolha dos textos para a leitura escolar a definio de que tipo de leitura deve ser desenvolvido, ou melhor, que leitor se pretende formar na escola. Essa dimenso crtica destacada por Dionsio muito tem a contribuir para esta pesquisa, visto que meu objeto a leitura de literatura, uma das leituras crticas que deve estar presente na escola, interessando-me investigar a forma como essa leitura est sendo realizada. Para que o letramento, sob o ponto de vista social revolucionrio, destacado por Soares, seja de fato desenvolvido, a escola no s deve se ater aos objetos lidos mas tambm e, principalmente, forma como a leitura est sendo provocada/incentivada pelos professores e realizada pelos alunos.

1.2 Literatura e canonizao: (in) definindo o necessrio

Ao

acreditar

que

existe

um

letramento

literrio,

como

uma

especificidade do letramento artstico (que envolve tambm o letramento musical, o teatral, o cinematogrfico, dentre outros), no se pode fugir da discusso terica sobre o que, nesta pesquisa, est sendo considerado literrio, sobre o campo discursivo da literatura. Apesar de no ser meu objetivo teorizar sobre o conceito de literatura, muito menos listar nem caracterizar teorias, apresento aqui a reflexo terica que embasa a concepo de literatura presente nesta pesquisa.

Neste primeiro momento, gostaria de ressaltar que a literatura exige de ns uma busca constante, na tentativa sempre recomeada por uma definio, definio essa que nos foge a cada vez como a asa de uma abelha ou como borboletas no ar (CHIAPPINI, 2005, p. 260). O que se convencionou chamar de literatura pode ser observado, no mundo ocidental economicamente desenvolvido, a partir de meados do sculo XVIII. Nesses pases, o aumento do nmero de alfabetizados e uma maior concentrao urbana (ABREU, 2005, p. 16) levou a um relevante aumento do nmero de leitores. A prtica da leitura, ou pelo menos o domnio dessa capacidade, deixou de distinguir a elite letrada da massa leitora11. Como destaca Abreu:

A definio moderna de literatura se fez no momento em que entraram em cena novos leitores, novos gneros, novos escritores e novas formas de ler. Escritores e leitores eruditos interessavamse fortemente em diferenciar-se de escritores e leitores comuns a fim de assegurar seu prestgio intelectual, abalado pela disseminao da leitura. Isso os levou a eleger alguns autores, alguns gneros e algumas maneiras de ler como os melhores. Convencionaram chamar a isso de literatura. (2005, p. 28)

Como podemos observar, a definio moderna de literatura veio acompanhada de um processo de canonizao dos textos: um determinado grupo de obras e autores foi selecionado como representante do que se convencionou chamar de literatura. O fundamento ideolgico da nacionalidade foi um importante orientador desse processo seletivo, e estratgias eram concebidas para que o contato com esses escritos fosse garantia de distino social (ABREU, 2005, p. 47).Nessa mesma poca, desenvolve-se fortemente uma literatura que atinge muitos leitores, circulando, por exemplo, em jornais e edies baratas. No sculo XX, at os anos 60, denominava-se essa literatura de literatura de massa. A partir de contribuies da Antropologia Cultural (anos 70 e 80), foi abandonada a caracterizao que desqualificava essa produo. No Brasil, isso se torna claro na obra, de Affonso Romano de Sant'Anna, Por um novo conceito de literatura brasileira, publicada pela Eldorado, em 1977, que inclui letras de msica, cordel, histria em quadrinhos e outras manifestaes verbais como literrias.11

A formao das identidades nacionais veio acompanhada pela escritura das histrias literrias. Coube Histria da Literatura, qual muitos intelectuais do sculo XIX se dedicaram, selecionar, hierarquizar e organizar cronologicamente os textos, estabelecendo relaes estreitas entre Literatura e Histria. Fruto dessa estreita relao foi a nfase dada biografia dos autores, que costumava orientar a leitura de suas obras (as famosas interpretaes vida e obra). No oitocentos brasileiro, durante o Romantismo como ocorreu no sculo XVIII em pases europeus , o fundamento ideolgico da nacionalidade foi um importante orientador do processo realizado pela Histria da Literatura de seleo, hierarquizao e organizao de obras e autores, de canonizao da literatura brasileira. No nosso Romantismo, a literatura contribuiu para a construo de uma identidade nacional, buscando definir nossas origens (nos romances indianistas), resgatando (inventando) um pouco de nossa histria, definindo (nos romances urbanos e crnicas- textos que apresentavam caractersticas desse gnero cuja consolidao data do final do XIX) hbitos e costumes de nossa sociedade, inventando tradies. (PINHEIRO, 2000) O Brasil nao foi construdo discursivamente atravs da "unio" de vrias reas de conhecimento, como a Histria, a Geografia, a Literatura e o Jornalismo, que comeava a ascender. Em nosso Romantismo, enquanto a Histria definia o Brasil no tempo, passado e presente, projetando um futuro, a Geografia definia o Brasil no espao, e a Literatura aproximava essas definies da realidade dos leitores, utilizando sua caracterstica de fico, de criao, apresentando, assim, uma urgente utilidade12. Como ocorreu no sculo XVIII em pases europeus, a nacionalizao, como fundamento ideolgico, foi um importante orientador do processo de canonizao de nossa literatura. Contemporaneamente, como destaca Vianna (1996, p. 26), a formao12

Afinal, como observa Maria Helena Rouanet: Por mais completo e bem delineado que fosse o quadro (definido pela Histria e Geografia), haveria sempre o risco de que o espectador, a quem ele se destinava, permanecesse 'estrangeiro' diante do que ali se representava. (Aquarelas de um Brasil in Histria, Cincia, Sade- Manguinhos, v.I, n1. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1994, p. 103.) Da o importante papel da literatura, que deveria, atravs do discurso ficcional, contribuir para a identificao do leitor com a realidade que estava sendo construda. Sobre a fundao de uma literatura nacional, consultar ROUANET, Maria Helena. Eternamente em Bero

de cnones se d, de certa maneira, de forma bem diferenciada. Essa pesquisadora chama a ateno para a convivncia de clssicos e contemporneos nas listas de leitura de universidades americanas e salienta a importncia de se questionar o elemento poltico no interior do processo de formao de cnones, de analisar a que interesses ele atende.

Na era do politicamente correto o risco que ele se sobreponha de maneira to avassaladora que passe a ser o nico critrio adotado, sem que o prprio texto seja sequer considerado. Ilustrativo desta informao so os cnones formados em universidades americanas, sob a viglia de certos grupos representativos de minorias, que, como numa propaganda que no se quer racista, tenta salpicar um pouco de tudo. O resultado no , infelizmente, a possibilidade de entrada de escritores de naes perifricas ou pertencentes a minorias nos cnones formados por grandes centros. O critrio mais uma vez o da exemplificao, sendo que aqui no so escolhidos exemplos, mas exemplares. Ento, a presena de um negro, de um ndio, de uma mulher negra ou ndia, de um gay, serve apenas para simular que a nova ordem mundial hoje bem mais tolerante. (VIANNA, 1996, p. 26)

Portanto, no se trata (de nada adianta) de destruir os cnones, mas fazer deles uma leitura no-cannica (VIANNA, 1996, p. 26). O questionamento do elemento poltico, ou seja, uma anlise dos interesses a que esse elemento atende, faz parte dessa leitura. A valorizao de minorias, destacada acima por Vianna, ocorreu na rea de cincias humanas como um todo, sob a influncia dos Estudos Culturais. Nos estudos literrios, essa valorizao veio acompanhada do questionamento (e muitas vezes negao) dos cnones literrios. Como destaca Paulino:

Os textos, produes culturais de linguagem, foram confundidos com a prpria realidade a que se referiam, diretamente ou no. Entra em cena, com fora total nos estudos literrios, a dominncia de alguns novos cnones multiculturalistas de significao. Nesse processo, os cnones estticos foram negados (...) Meros documentos culturais se tornaram todos osEsplndido: a fundao de uma literatura nacional. So Paulo: Siciliano, 1991.

textos literrios, sendo ignorados os critrios de qualidade, tanto de construo quanto de significao13. (2004, p. 51)

O questionamento do cnone ocidental em nome do politicamente correto valorizao de textos representantes das chamadas minorias: classes, etnias, gneros sexuais como ressalta Perrone-Moiss (2000, p. 349), resultou em censuras e excluses nos currculos escolares. Essa pesquisadora, assumindo uma posio de defesa do cnone ocidental, destaca as obras que foram expulsas da escola:

as obras menos exemplares para essas posies ideolgicas (de defesa das minorias), isto , aquelas que no passam de obras de arte; ou, pior, aquelas que se propem como arte, atividade considerada pelos culturalistas como idealista, eurocntrica, anacrnica e ideologicamente suspeita. (2000, p. 349)

Entre questionamentos que negam o cnone ocidental e defesas das virtudes literrias desse cnone, possvel seguir uma terceira via? Paulino (2004, p. 52) destaca na investigao de Chiappini em Invaso da catedral: literatura e ensino em debate, publicado em 1983 a proposta de uma terceira via. Em vez de repudiar obras cannicas do ponto de vista esttico ou se limitar a defend-las, Chiappini questiona certa escolarizao restritiva dos cnones literrios (PAULINO, 2004, p. 53), criticando o carter paradoxal do autoritrio tratamento escolar da literatura no Brasil. Essa terceira via proposta por Chiappini embasada em uma postura terica que busca o equilbrio entre concepes oriundas de dois extremos da teoria literria14: de um lado o formalismo e o estruturalismo e de outro o ps13

Paulino utiliza as categorizaes de Todorov e Genette. Textos modelares por seus elementos coerentes e relevantes se destacam em duas modalidades: a de construo, que abrange qualidades do trabalho de linguagem, do modo de contar, e a de significao, que abrange os componentes de uma narrativa social e existencialmente relevante, capaz de ampliar as dimenses dos mundos vividos e imaginados pelo leitor (2004, p.50). Segundo a pesquisadora, essas duas modalidades s fazem sentido se levarmos em conta as instncias de recepo, o repertrio textual e os horizontes de expectativas dos leitores (Jauss, apud PAULINO, 2004, p. 50). Levando em conta essas instncias, Paulino destaca a expresso cnones estticos de produo e recepo. 14 Para Chiappini, as diferentes tendncias da teoria literria oscilam entre duas direes contraditrias. De um lado, a nfase na especificidade e na autonomia, de outro, em sua capacidade para a representao, sua representatividade. De um lado, a literariedade, de outro, a mmesis (2005, p. 245).

estruturalismo e suas diversas correntes tericas. Esses dois extremos so criticados pela pesquisadora:

Enquanto formalistas e estruturalistas tinham a iluso de poder identificar os fatores definidores da literariedade, o psestruturalismo e suas diversas correntes tericas pem no centro a figura do leitor e o dilogo intertextual, problematizando a autonomia da obra literria, a especificidade do discurso literrio em relao ao no-literrio, buscando esclarecer os processos sociais e institucionais que definem a canonizao dos textos literrios e excluem outros do cnone. Do plo de concentrao do texto passa-se ao diametralmente oposto, o plo do leitor. Se os formalistas muitas vezes absolutizavam a autonomia do literrio, no apenas distinguindo os discursos pela forma e esquecendo os fatores institucionais e sociais dessa distino, mas tambm afirmando sua independncia em relao realidade e histria, os ps-estruturalistas absolutizam muitas vezes o plo do leitor, defendendo a leitura deriva e concebendo a produo de sentido como ato individual e at arbitrrio. (2005, p. 249)

Para Chiappini, deve existir um equilbrio entre a defesa da autonomia absoluta do texto literrio e a descrena em qualquer nvel de autonomia. Essa descrena est presente quando se defende a livre produo de sentido dos leitores individuais ou de leitores socialmente ou institucionalmente localizados (CHIAPPINI, 2005, p. 250). Buscando um equilbrio, a pesquisadora defende, com o respaldo terico de Antonio Candido15, o direito forma, ao destacar a literatura como arte de profunda elaborao formal, atravs das possibilidades que a lngua oferece, e, ao mesmo tempo, descreve algumas funes sociais da literatura, destacando a necessidade de:

distinguir os textos que servem a um lazer produtivo e ativo daqueles que favorecem um lazer alienado, passivo; a literatura que enriquece e desafia a imaginao e a inteligncia, dos produtos que as embotam na repetio e na facilidade. Se nos cegamos na luta contra o cnone, camos num vale-tudo e no distiguimos esses nveis que o prprio mercado e suas agncias, dentre elas as editoras, distinguem. (CHIAPPINI, 2005, p. 259)

CANDIDO, Antonio. O direito literatura in CANDIDO, Antonio. Vrios escritos. So Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995, p. 244.

15

Nesta pesquisa, busco a terceira via proposta por Chiappini. Sendo assim, ao analisar os textos literrios, considero sua forma (a construo com a linguagem) e sua funo social (a capacidade de instigar o leitor a repensar o mundo em que vive), buscando um equilbrio entre o plo do texto e o plo do leitor. Essa terceira via terica sustenta a terceira via, na esteira de Chiappini, que me proponho a discutir: a escolarizao da literatura. importante destacar que a maioria dos textos literrios escolarizados para a faixa etria investigada nesta pesquisa (leitores em torno de 11 anos de idade)16 costumam ser veiculados no mercado e na escola sob a designao de literatura infantil e/ou juvenil. Presena dominante na escola, at a 8 srie pelo menos, a produo para crianas e jovens marginalizada no meio acadmico. So poucas as faculdades de Letras e Pedagogia que oferecem, mesmo como optativas, disciplinas que proponham uma discusso da literatura infantil e juvenil. Quando isso ocorre, em muitos casos, em nome do politicamente correto, do dar voz s minorias, do questionar o cnone, do permitir o popular, o folclrico, o infantil, o indgena etc. No nessa perspectiva que a literatura designada como infantil e/ou juvenil interessa a esta pesquisa. Muito pelo contrrio: esse gnero maioria na escola, no minoria. E para pesquisar a formao de leitores de literatura nessa instituio, necessrio dar voz maioria. Vale destacar que esse gnero vem ocupando um lugar cada vez maior no mercado editorial e vem passando por um processo de canonizao que merece ser investigado. Na maioria das vezes, os cnones legitimados pela escola se distanciam dos legitimados pelos crticos (PAULINO, 2004). Para a escola, o fundamento ideolgico da formao moral da criana e do jovem que est na origem do prprio gnero parece ser um importante orientador de seu processo seletivo. Para os poucos crticos literrios que se dedicam ao estudo desses textos, a literatura, como arte, no deve ser prisioneira dessa ideologia. Portanto, eles defendem, para a anlise do gnero em questo, o uso dos mesmos referenciais tericos vlidos para a anlise de qualquer texto literrio. Essa tenso no atual processo de canonizao dos textos literrios16

Nesta pesquisa, investigo a formao de leitores definidos, pelo consenso, entre a infncia e a adolescncia, leitores da 5 srie escolar, que tm em torno de 11 anos de idade.

para crianas e jovens pode ser melhor compreendida atravs de uma reflexo sobre a formao da literatura infantil e juvenil. Esse gnero apresenta, desde sua origem, uma relao de dependncia com a escola, uma vez que nessa instituio que a infncia e a juventude (adolescncia) esto sendo desenvolvidas e controladas.

1.3 Literatura infantil e literatura juvenil: prisioneiras do processo de formao da criana e do jovem

Certas produes para crianas, publicadas sob a rubrica de literatura infantil, participam do processo de formao da criana ao fornecer a esta normas de comportamento social. Como nos informa Zilberman, os primeiros textos para crianas so escritos por pedagogos e professores, com marcante intuito educativo (1998, p. 13). A relao entre literatura para crianas e escola pode ser observada desde a primeira metade do sculo XVIII, poca em que a construo da idia

de infncia como uma fase especfica da vida, distinta da fase adulta , acompanhada da construo da escola moderna aparecem mais definidas. Como afirma Gouva:

a idia moderna da criana percebida como distinta psquica, cognitiva e afetivamente do adulto fruto de um longo processo. A construo da idia da especificidade da infncia diretamente relacionada constituio da escola moderna, espao privilegiado de aprendizagem e preparao para o mundo adulto. (2003, p. 14)

A escola moderna contribuiu para a construo da idia da especificidade da infncia como uma fase distinta da fase adulta ao tornar-se o espao adequado, e privilegiado, para a formao intelectual e moral das crianas da classe burguesa. dentro do modelo familista burgus que podemos observar a construo dessa infncia. Em nossa cultura contempornea, o modelo tido como ideal de infncia corresponde criana de classe mdia que possui uma famlia e que submetida a um longo perodo de escolarizao. esse modelo que est presente no discurso de religiosos, de professores, de pais, de apresentadores de TV, de psiclogos. A criana burguesa frgil fisicamente, precisa de muitos cuidados da famlia em relao sua sade e alimentao. No apenas seu corpo, mas tambm sua mente est em formao. Portanto, a criana burguesa deve ser orientada pelos adultos, deve ser educada, disciplinada, afastada de determinados assuntos e prticas. A escola, reformulada no sculo XVII, foi consagrada, ao longo do tempo, como o lugar ideal para a formao dessa infncia. Lugar de criana (burguesa) na escola! Guardando as devidas peculiaridades de cada tempo, como negar a presena dessa infncia em nossos dias? importante ressaltar que as diversas vivncias dessa fase da vida, em uma determinada sociedade, no se encaixam nesse modelo. No Brasil, diferentes modelos de infncia so destacados por Gouva:

as mltiplas vivncias da infncia e seu processo de aprendizagem para a vida adulta deram-se historicamente a partir de seu pertencimento sociorracial e de gnero. Assim que, por exemplo, a criana escrava exercia seu aprendizado para a vida adulta atravs do trabalho, iniciado j aos seis, sete anos de idade. O menino branco de elite tinha sua formao nos colgios, onde adquiria sua instruo intelectual, ao mesmo tempo que se preparava para o exerccio do mando. J as meninas brancas de elite tinham um aprendizado mais restrito, voltado para a aquisio de saberes tidos como femininos. (2003, p. 14)

As diversas vivncias da infncia so definidas pela insero social, por pertencimentos raciais e de gnero (GOUVA, 2003, p. 14). A pesquisadora ainda destaca que a insero social continua definindo a vivncia da infncia. Crianas da classe mdia tm na escola o seu espao 'natural' de aprendizagem e preparao para a vida adulta (p. 16). J as crianas de camadas populares estabelecem uma relao diferenciada com a escola: a escolarizao se dar num perodo de menor durao e a entrada nas responsabilidades do mundo adulto ocorrer num perodo anterior (p. 16). Na escola, a criana passa a ser introduzida aos poucos, e de modo selecionado, no mundo dos adultos. Para isso, a pedagogia, novidade que estava em ascenso, utiliza como um de seus instrumentos, a partir do sculo XVIII, a literatura infantil. Esse novo gnero literrio contribuiu para a formao moral das crianas e para a definio de um determinado tipo de infncia, a infncia burguesa, que passou a ser naturalizado como o nico existente.

As primeiras obras destinadas ao pblico infantil foram publicadas na primeira metade do sculo XVIII, porm algumas histrias escritas no sculo XVII, na Frana, foram consideradas apropriadas infncia e incorporadas ao novo gnero literrio que surgia: as Fbulas, de La Fontaine, editadas entre 1668 e 1694, As aventuras de Telmaco, de Fnelon, publicadas em 1717, e Histrias ou narrativas do tempo passado com moralidades, publicada por Charles Perrault em 1697. O livro de Perrault acabou sendo considerado o inaugurador do gnero literatura infantil. O autor faz uma adaptao de antigas narrativas folclricas, com o objetivo de moralizar as crianas, transmitir-lhes normas a serem seguidas,

ensin-las a se comportar na sociedade. No Brasil, a literatura infantil comeou a aparecer em livros didticos e em tradues. Segundo Almeida, o primeiro livro do gnero surgiu em 1894: Os contos da Carochinha, do jornalista Alberto Figueiredo Pimentel. O autor adaptou histrias do folclore mundial e de nossa tradio oral. Como nos informa Almeida, as tiragens de Os contos da Carochinha excederam a cem mil exemplares. Pimentel publicou tambm Histrias da avozinha, Histrias da baratinha, colees de contos de fadas, Teatrinho infantil e Meus brinquedos (ALMEIDA, 1986, p. 207), alm de uma antologia potica, publicada em 1897, intitulada lbum das crianas (PAULINO, 1998b, p. 78). Coelho destaca a publicao de os Contos Infantis, de Jlia Lopes de Almeida e Adelina A. Lopes Vieira, como anterior a de Os contos da Carochinha. Publicado em 1886, o livro apresenta sessenta narrativas em verso ou prosa, destinadas diverso e instruo da infncia (COELHO, 1991, p. 211). O carter utilitrio-pedaggico est na origem do novo gnero que, por esse motivo, j nasceu com o estatuto artstico contestado. Segundo Zilberman:

...o novo gnero careceu de imediato de estatuto artstico, sendo-lhe negado a partir de ento um reconhecimento de valor esttico, vale dizer, a oportunidade de fazer parte do reduto seleto da literatura. A degradao de origem motivou a identificao apressada da literatura infantil com a cultura de massa, com a qual compartilha a excluso do mundo das artes. (2003, p. 34)

Alguns crticos afirmam que at hoje, de forma geral, a literatura infantil continua presa a sua origem, atrelada funo utilitrio-pedaggica que a faz ser mais pedagogia do que literatura (PALO & OLIVEIRA, 1992, p. 9). Muitos textos da literatura infantil apresentam propostas de interao pragmticas e informativas. Paulino denuncia a forma como a fico utilizada em algumas histrias para crianas:

Propostas pragmticas e informativas vm sendo mescladas a propostas ficcionais. Entretanto, o imaginrio controlado na recepo, de modo que o ficcional se limita ao emprego de recursos, que passam a ser retricos, desligados de objetivos prprios da narrativa de fico. (2000, p. 45)

A pesquisadora esclarece que toda narrativa traz aos leitores uma proposta bsica de interao, que geralmente se apresenta misturada a outras, mas que funciona de modo a utiliz-las segundo o propsito dominante do texto (2000, p. 43). Dessa forma, uma proposta pragmtica que tem como objetivo conduzir comportamentos, interferindo de modo direto na vida dos destinatrios pode apresentar recursos prprios da narrativa de fico, mas no deve ser confundida com a proposta ficcional. Esta envolve o imaginrio, a produo potica de linguagem, a ausncia de objetivos comportamentais diretos. Alguns crticos tambm tm apontado, como algo que precisa ser revisto, a designao infantil para a literatura. Soares recorda a questo formulada por Carlos Drummond de Andrade no incio dos anos 40, ressaltando que a mesma permanece at hoje irrespondida:

O gnero literatura infantil tem, a meu ver, existncia duvidosa. Haver msica infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literria deixa de constituir alimento para o esprito da criana ou do jovem e se dirige ao esprito do adulto? Qual o bom livro para crianas, que no seja lido com interesse pelo homem feito? Qual o livro de viagens ou aventuras, destinado a adultos, que no possa ser dado criana, desde que vazado em linguagem simples e isento de matria de escndalo? Observados alguns cuidados de linguagem e decncia, a distino preconceituosa se desfaz. Ser a criana um ser parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura tambm parte? Ou ser a literatura infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado porque coisa primria, fabricada na persuaso de que a imitao da infncia a prpria infncia ? (apud SOARES, 1999, p. 18)

Como destaca Souza (1997, p. 15), h quem diga que no existiria o livro infantil a priori, ou seja, que qualquer livro, sendo bem escrito, sendo obra de arte, pode ser lido por uma criana com proveito. Peres (1997), seguindo essa

definio, faz a seguinte proposta:

Em vez de perseguir o que significa esse infantil acrescentado literatura, em vez de cercar suas caractersticas e fechar a questo, por que no abrir o jogo, expor as crianas aos mais diferentes tipos de textos (infantis ou no) e permitir que elas faam suas leituras, segundo a verdade do seu desejo? (p. 39)

A crtica que vem sendo feita literatura infantil tambm pode ser observada em relao literatura juvenil. Lajolo destaca a instabilidade dos conceitos infantil e juvenil e afirma que os catlogos das editoras nos ensinam que:

juvenil o texto que consta nos catlogos de editoras voltados para o inventrio da produo "juvenil" daquela editora. Ou seja, com o mesmo direito que Mrio de Andrade usou para dizer conto tudo aquilo que o autor achar que conto, pode-se dizer que juvenil toda obra que assim for considerada pelo seu editor. (2001, p. 29)

Nos catlogos de literatura infantil e juvenil da maioria das editoras, os livros so classificados por sugesto de faixa etria e por srie. Como exemplo, o sumrio do Catlogo de Literatura Infantil 2003 da tica (p. 4-5) apresenta a seguinte classificao dos livros: de 0 a 5 anos (Educao Infantil); a partir de 6/7 anos (Educao Infantil/1 srie); a partir de 8/9 anos (2/3 srie); a partir de 10/11 anos (4/5 srie) e de 1 a 4 srie (poesia e literatura informativa). Os poemas so apresentados na Coleo Poesia para crianas e so sugeridos para alunos de 1 a 4 sries. Podemos observar que esse gnero literrio possui um pblico-alvo maior que o estabelecido para os textos literrios em prosa, j que ele sugerido para quatro sries do Ensino Fundamental. Contudo, os textos poticos so classificados parte, juntamente com a literatura informativa, com livros como os da coleo Perguntas e respostas o que as crianas querem saber, que no devem ser confundidos com livros de literatura propriamente dita. No Catlogo Juvenil 2002/2003 da tica, os livros so classificados por

faixa escolar: livros para a 4 e a 5 sries; livros para a 5 e a 6 sries; livros para a 7 e a 8 sries e livros para a 8 srie em diante. Pode-se observar que a 4 e a 5 sries aparecem no catlogo infantil e no juvenil, demonstrando que os alunos dessas sries atravessam uma fase da vida de difcil definio, podendo ser considerados crianas ou jovens. Os alunos dessa faixa escolar, entre 10 e 11 anos, costumam ser classificados como pr-adolescentes. A literatura juvenil herdou de seu pblico-alvo a falta de fronteiras nitidamente definidas. Como determinar o trmino da infncia e o comeo da adolescncia? O que faz com que um texto pertena literatura infantil ou juvenil? O pblico-alvo desta ltima, o adolescente, tem sua emergncia no sculo XX. A escola contribui assim como ocorreu com a infncia para a definio da adolescncia como construo histrica, como uma fase especfica da vida. Segundo Aris (1981, p. 176), a definio dessa fase da vida pode ser observada no final do sculo XIX, com a separao dos alunos, por idade, em classes escolares. A difuso, entre a burguesia, de um ensino superior universidade ou grandes escolas provocou uma separao entre a segunda infncia e a adolescncia (ARIS, 1981, p. 176). O resultado (os objetivos) da construo da nova categoria de no-adultos destacado por Lajolo:

A construo da imagem do jovem ou do adolescente parece ter sido o passo seguinte, prosseguindo a segmentao com especificaes esquerda e direita, dando concretude e visibilidade tanto a faixas etrias anteriores idade escolar, quanto seccionando os anos finais da adolescncia em novas categorias e subcategorias. O resultado uma viso cada vez mais ntida dos indivduos e dos segmentos populacionais que, recobertos por tais categorias, tornam-se mais conhecidos e, conseqentemente, mais acessveis, controlveis, manipulveis. (2001, p. 26)

A construo de categorias, referentes s fases da vida, permite um maior controle dos indivduos. Enquadrados nelas, os indivduos devem apresentar comportamentos, sentimentos, gostos e hbitos compatveis com os que foram definidos como determinantes da categoria a qual fazem parte. Como construes sociais, essas definies so instveis, mudam com o tempo. A adolescncia vem sendo definida como a fase inicial da juventude

(MELUCCI, 1997, p. 8), como uma idade de transio, da infncia para a fase adulta, marcada por sentimentos de insegurana, de indeciso. O adolescente vem sendo construdo como um ser em conflito, pejorativamente chamado de aborrecente. O discurso da Psicologia, da Pedagogia e algumas representaes da adolescncia presentes na Literatura, entre outros discursos e imagens, nos mostram essa construo. O adolescente tido como o ser que precisa ser orientado pelos adultos, precisa ser vigiado, controlado, para que no se perca em sua adolescncia: para que no consuma drogas, para que no transe sem camisinha, para que estude, para que no engravide (no caso da adolescente). A adolescncia, pelo senso comum e pelo Estatuto da Criana e do Adolescente17, dura at os 18 anos: Considera-se criana, para os efeitos desta Lei, a pessoa at doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade (2003, p. 15). A concepo do jovem como rebelde, que deu origem imagem de adolescente apresentada acima, est presente desde o final do sculo XIX, nos Estados Unidos. Segundo Passerini, a obra Adolescence, publicada em 1904 pelo psiclogo G. Stanley Hall, anuncia a descoberta do adolescente americano (1996, p. 352). A pesquisadora observa a inveno da adolescncia nesse momento, na virada do sculo XIX para o XX. Essa poca retoma em termos psicolgicos e sociolgicos a idia da juventude como turbulncia e renascimento, germe de nova riqueza para o futuro, fora capaz de aniquilar a misria do passado (1996, p. 319). Passerini destaca a dcada de 1960 como fase final desse conceito de adolescncia e inclui os movimentos estudantis dessa dcada como os ltimos estertores. Segundo a pesquisadora:

No plano terico, os estudantes de 1968 polemizaram duramente contra as concepes sociolgicas da revolta enquanto revolta juvenil, mas na prtica e na imaginao privilegiaram a figura do jovem andrgino em verso masculina, rebelde ordem existente e portador do futuro, com f numa igualdade fundada no fato de pertencerem a uma mesma classe de idade. O discurso sobre o jovem e o adolescente, compreendido entre aqueles dois perodos, foi caracterizado principalmente pela17

Lei 8.069/90

nfase no gnero masculino e nas classes mdias, no porque tomasse como objeto s aqueles jovens, mas por adotar sua imagem como modelo privilegiado. (PASSERINI, 1996, p. 319)

Esse modelo do jovem, de classe mdia, rebelde ordem existente chegou ao Brasil em torno de 1950:

No foi muito antes dos anos cinqenta que chegou ao Brasil a idia de que a juventude (adolescncia) constituiu faixa etria determinada, com comportamentos, hbitos, sentimentos e problemas especficos, distintos dos problemas, hbitos, sentimentos e comportamentos de criana e de adulto. A argamassa mais visvel a cimentar tal identidade foram os hbitos de consumo que, com a cultura de massa dos anos cinqenta, aqui desembarcaram essa noo de juventude. (LAJOLO, 2001, p. 27)

Segundo Lajolo (2001, p.28), os primeiros modelos de comportamentos que caracterizariam o jovem vieram de Hollywood: o jeito rebelde de ser presente na juventude sadiamente transviada representada por James Dean e Elvis Presley. O modelo destacado por Lajolo corresponde a uma determinada vivncia da adolescncia. As diversas vivncias dessa fase da vida, assim como ocorre com a infncia, so definidas pela insero social, por pertencimentos raciais e de gnero (GOUVA, 2003, p. 14). A adolescncia rebelde de classe mdia cabe escola controlar. Esses adolescentes, assim como as crianas da classe mdia, tm na escola o seu espao natural de aprendizagem e preparao para a vida adulta. J os adolescentes de camadas populares estabelecem uma relao diferenciada com a escola. Durante