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LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS, DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR: INTER-RELAÇÕES ENTRE DIDÁTICA E SABERES As obras literárias africanas e afro-brasileiras (além das brasileiras de temática africana e afrodescendente) podem ser abordadas de acordo com uma proposta didática que possibilite a construção afirmativa da identidade racial e a valorização da contribuição cultural africana e afrodescendente, uma vez que discutem aspectos culturais e históricos do continente africano e do Brasil, fomentando o pensamento crítico sobre a diversidade de realidades que permeiam nosso cotidiano. Trabalhar com essas literaturas em sala de aula permite também o contato com literaturas desconhecidas ou marginalizadas pelos cânones oficializados. A valorização dessas culturas auxilia na visualização da África como um continente multicultural e permite a construção de imagens positivas de negras e negros, rompendo com a imagem do negro aculturado, vítima da destruição pelos brancos dos seus valores culturais, e mostrando-o como um sujeito histórico, inserido em estratégias de poder, afirmação política e reformulação positiva de sua identidade. Assim, tendo como referencial teórico autores pós-coloniais e inserido no eixo temático Didática e Prática de Ensino nas Diversidades Educacionais, subeixo1 Didática e Prática de Ensino nos Diálogos de Saberes, Currículos e Culturas, o objetivo deste painel é propor diálogos entre a didática e os diversos saberes advindos das literaturas africanas e afro-brasileiras.O painel apresenta três textos que contemplam propostas didáticas que vão desde a educação básica ao ensino superior, enfocando aspectos relacionados a leitura e interpretação de textos não canônicos, ensino aprendizagem de língua inglesa por meio de textos literários ditos marginalizados e reflexões acerca da formação de professores e professoras do curso de licenciatura em Letras - Inglês/Português no que tange ao ensino de literatura de língua inglesa. Palavras-Chave: Literaturas Africanas , Inter-Relações, Didática XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 11609 ISSN 2177-336X

LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS, DA …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10978_36346.pdf · nos currículos do ensino superior, particularmente dos cursos de licenciaturas,

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LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS, DA EDUCAO

BSICA AO ENSINO SUPERIOR: INTER-RELAES ENTRE DIDTICA E

SABERES

As obras literrias africanas e afro-brasileiras (alm das brasileiras de temtica africana

e afrodescendente) podem ser abordadas de acordo com uma proposta didtica que

possibilite a construo afirmativa da identidade racial e a valorizao da contribuio

cultural africana e afrodescendente, uma vez que discutem aspectos culturais e

histricos do continente africano e do Brasil, fomentando o pensamento crtico sobre a

diversidade de realidades que permeiam nosso cotidiano. Trabalhar com essas

literaturas em sala de aula permite tambm o contato com literaturas desconhecidas ou

marginalizadas pelos cnones oficializados. A valorizao dessas culturas auxilia na

visualizao da frica como um continente multicultural e permite a construo de

imagens positivas de negras e negros, rompendo com a imagem do negro aculturado,

vtima da destruio pelos brancos dos seus valores culturais, e mostrando-o como um

sujeito histrico, inserido em estratgias de poder, afirmao poltica e reformulao

positiva de sua identidade. Assim, tendo como referencial terico autores ps-coloniais

e inserido no eixo temtico Didtica e Prtica de Ensino nas Diversidades Educacionais,

subeixo1 Didtica e Prtica de Ensino nos Dilogos de Saberes, Currculos e Culturas,

o objetivo deste painel propor dilogos entre a didtica e os diversos saberes advindos

das literaturas africanas e afro-brasileiras.O painel apresenta trs textos que contemplam

propostas didticas que vo desde a educao bsica ao ensino superior, enfocando

aspectos relacionados a leitura e interpretao de textos no cannicos, ensino

aprendizagem de lngua inglesa por meio de textos literrios ditos marginalizados e

reflexes acerca da formao de professores e professoras do curso de licenciatura em

Letras - Ingls/Portugus no que tange ao ensino de literatura de lngua inglesa.

Palavras-Chave: Literaturas Africanas , Inter-Relaes, Didtica

XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira

11609ISSN 2177-336X

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LITERATURAS AFRICANAS DE LNGUA INGLESA NA UNIVERSIDADE:

POSSVEIS CAMINHOS PARA UMA EDUCAO CRTICA

Joo Felipe Assis de Freitas (IFMT/UFMT)

Sheila Dias da Silva Laverde (SME/UFMT)

Resumo: O objetivo deste artigo propor uma reflexo acerca de possveis caminhos

para o ensino de literaturas africanas de lngua inglesa na universidade, uma vez que

essa instituio ainda parece pautar o ensino de literatura inglesa apenas em textos

cannicos, salvo poucas excees. No estamos, com isso, minimizando a importncia

de tais textos, mas enfatizando que os mesmos devem ser apresentados aos alunos

(neste caso, aos futuros professores que sero tambm formadores de opinio) um leque

de possibilidades a fim de que possam tecer um contraponto entre a literatura cannica e

essas outras literaturas no eurocntricas. Ademais, apesar da promulgao da lei

federal n 10.639/2003, que tornou obrigatrio o ensino de histria e cultura africana e

afro-brasileira nas escolas pblicas de todo o pas, essa lei ainda encontra dificuldades

de exerccio. Por ser um local de formao acadmica de futuros professores, espera-se

que a universidade, especialmente as que oferecem o curso de Letras Portugus/Ingls,

estabeleam diretrizes e criem oportunidades de construo de sentidos a partir do

processo de ensino/aprendizagem de literaturas de lngua inglesa diversas na

contemporaneidade. Desse modo, pretende-se tambm apontar alternativas para o

estabelecimento de dilogos que possam colaborar com a didtica no ensino superior,

uma vez que na formao de professores que se inicia o caminho para que as

transformaes necessrias ocorram. A importncia do ensino e aprendizagem desse tipo de produo literria justifica-se por contribuir para a minimizao dos preconceitos em todas as

suas formas, sejam eles raciais, sociais, culturais, de gnero, ou at mesmo, literrios.

Palavras-chave: universidade; literaturas africanas; educao crtica.

Introduo

A universidade uma instituio social e como tal exprime de maneira

determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. A

presena de opinies, atitudes e projetos conflitantes representa divises e contradies

da prpria sociedade. Essa relao dialtica entre universidade e sociedade o que

explica, por exemplo, a estruturao e a configurao das matrizes curriculares dos

cursos universitrios tanto de graduao quanto de ps-graduao.

Em relao s literaturas africanas de lngua inglesa nos cursos de Letras

Portugus/Ingls, o contato dos acadmicos com textos oriundos das naes africanas

ainda raro, o que, de certo modo, dificulta a formao crtico-dialgica dos futuros

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professores nos estudos literrios. Por outro lado, o contato dos ps-graduandos com as

literaturas no-cannicas est, aos poucos, alargando as esferas de atuao de diferentes

grupos de pesquisa nos nveis de mestrado e de doutorado, bem como promovendo

questionamentos a respeito das relaes ps-coloniais de produo das obras literrias.

A pesquisadora Candida Soares da Costa (2013) entende que a educao

brasileira tem ao longo do tempo seguido a perspectiva de que o Brasil se faz por via de

uma nica histria. Essa viso, segundo ela, contribui para que se entenda a sociedade

de forma uniforme, dificultando que se compreenda a diferena como construo social

e tambm como fator de produo e naturalizao de desigualdades raciais. Para Costa,

esse posicionamento tem privilegiado contedos que valorizam a cultura europeia em

detrimento de conhecimentos acerca das culturas indgenas, africanas e de afro-

brasileiros.

Costa afirma que a educao proposta pelas Diretrizes Curriculares Nacionais

para a Educao das Relaes tnico-Raciais a para o Ensino de Histria e Cultura

Afro-Brasileira e Africana implica o rompimento com essa perspectiva de via de mo

nica medida que prope uma recomposio curricular. Segundo ela, isso possibilita

a reconfigurao do entendimento e do imaginrio social sobre o povo brasileiro, a

compreenso sobre quo importantes foram e so os negros na construo e na contnua

reconstruo da nao brasileira. Ela realizou uma pesquisa com professores de diversas

reas e concluiu que muitos deles no trabalhavam esses temas em suas aulas. Um dos

motivos apurados foi a falta de formao inicial e continuada de professores para

contemplar essas questes. Para a autora, a falta de formao inicial uma das falhas

nos currculos do ensino superior, particularmente dos cursos de licenciaturas, tendo em

vista que a lei j est em vigor h mais de doze anos.

Divanize Carbonieri (2011), pesquisadora na rea de literatura africana de lngua

inglesa, assevera que atravs da literatura produzida no s no Brasil, como tambm nos

pases africanos, indianos, latino-americanos, entre outros, podemos conhecer alguns

aspectos culturais, estticos e histricos do desenvolvimento dessas sociedades. De

acordo com ela:

Em muitas universidades brasileiras, o currculo ainda se concentra

majoritariamente nas literaturas cannicas dos pases desenvolvidos

ou dos grupos dominantes. Isso produz uma situao em que os

estudantes no so instigados a questionar as estruturas atuais de

dominncia no mundo. Eles so at mesmo levados a considerar as

literaturas produzidas por esses pases e grupos como

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hierarquicamente superiores a quaisquer outras. Para evitar esses

preconceitos, os estudantes universitrios brasileiros devem ser

expostos a um corpus literrio to mltiplo quanto possvel, incluindo

as literaturas ps-coloniais, as literaturas de grupos oprimidos e

tambm as literaturas tradicionalmente consideradas como cannicas.

Essas obras diferentes devem ser includas nos currculos

universitrios em termos iguais, desconstruindo quaisquer conceitos

prvios de hierarquia cultural ou literria (CARBONIERI, 2011, p.

12).

Assim, por meio da citao acima, possvel perceber que no h um descarte

da literatura cannica, mas que ela deve ser associada a outras literaturas de modo a

estabelecer dilogos e interaes com diferentes contextos. Concordamos com a

preocupao da autora ao apontar a falta de exposio de outro corpus literrio nos

cursos das universidades brasileiras, uma vez que na formao dos professores que

essas questes devem ser resolvidas de modo a repercutir positivamente em seus alunos

e, consequentemente, na sociedade como um todo.

Literaturas no-cannicas de lngua inglesa na universidade

Como j mencionado, as aulas de literaturas de lngua inglesa na universidade

ainda esto baseadas em cnones literrios. No entanto, tal paradigma de ensino tem-se

alterado em virtude do desenvolvimento e do florescimento dos estudos ps-coloniais.

Por meio da valorizao das diferenas culturais na contemporaneidade, as literaturas de

lngua inglesa, especialmente as oriundas de naes africanas, apresentam narrativas

ficcionais que abordam as hierarquias e as idiossincrasias sociais.

De acordo com Carbonieri (2016):

As obras literrias produzidas em contextos perifricos ou por grupos

marginalizados no podem mais fazer parte dos currculos apenas

numa posio complementar, apenas para sugerir uma diversidade

pacificada. Um corpo majoritrio e diversificado dessas produes

deve ser apresentado aos estudantes brasileiros, at porque o Brasil

um pas cuja maioria da populao composta de pessoas no

brancas, alm de apresentar uma infinidade de grupos sociais em luta

pelo reconhecimento de seus direitos e contra os preconceitos de que

so normalmente vtimas (CARBONIERI, 2016, p. 132-33).

Em virtude das diversidades culturais e sociais do Brasil, torna-se fundamental o

estudo e a pesquisa das obras literrias provenientes de contextos marginais, no s

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como fonte de conhecimento das resistncias fsicas e psicolgicas de alguns povos

colonizados pelas potncias europeias, mas tambm como percepo dos hibridismos

provenientes dos longos processos de ocupao de suas terras e de transformao de

seus valores.

Ao se pensar na funo da literatura, Antonio Candido (2011) afirma que ela:

[e]st ligada complexidade da sua natureza, que explica inclusive o

papel contraditrio mas humanizador (talvez humanizador porque

contraditrio). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos trs

faces: (1) ela uma construo de objetos autnomos como estrutura e

significado; (2) ela uma forma de expresso, isto , manifesta

emoes e a viso do mundo dos indivduos e dos grupos; (3) ela

uma forma de conhecimento, inclusive como incorporao difusa e

inconsciente (CANDIDO, 2011, p. 178-79).

Nesse sentido, essas trs faces da literatura ficam ainda mais evidentes quando

se aborda o continente africano, pois a frica composta por sociedades que se

distinguem umas das outras de acordo com aspectos culturais, polticos, religiosos, etc.

Da mesma forma, o romance produzido por essas sociedades carrega em si suas

especificidades. Esse carter complexo do romance africano de lngua inglesa, com sua

ancestralidade dupla, sua multiplicidade de estilos, lnguas e estratgias literrias, torna-

o um objeto de estudo dos mais importantes na contemporaneidade.

A seguir, procederemos a um breve panorama sobre o romance africano de

lngua inglesa na contemporaneidade e sobre os romances da autora nigeriana

Chimamanda Ngozi Adichie, uma das representantes dessa gama de escritores da

literatura africana que tem se destacado no cenrio da literatura mundial contempornea.

O romance africano de lngua inglesa na contemporaneidade e a relao de

Chimamanda Ngozi Adichie com tal produo

Anna Pys (2011), ao investigar as particularidades dos primeiros romances

europeus (Dom Quixote de la Mancha [1614], de Miguel de Cervantes, e Robinson

Cruso [1719], de Daniel Defoe) e perceber em ambos a presena de heris individuais

em conflito com os valores modernos, constata que os romances africanos tambm

apresentam heris em conflito, embora seja um embate oriundo do movimento de

dominao do colonialismo. Nesse sentido, possvel afirmar que tais romances

carregam em si um tom poltico que, nas palavras da pesquisadora, est relacionado ao

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papel dos escritores, os quais conhecem a fora do imperialismo desde a mais tenra

idade (PYS, 2011, p. 11). Por conseguinte, esses escritores, ao imprimirem

conscientemente, em suas obras, estrias africanas de cunho nacionalista, ampliam o

universo de possibilidades narrativas a respeito de indivduos e de locais dominados sob

feies nefastas ao longo de sculos. Pys tambm averiguou a responsabilidade do

leitor no contato com essa produo africana. No entendimento da estudiosa, o

desconhecimento que o leitor talvez sinta ao ler os romances de escritores africanos

interpretado de algumas maneiras:

Pode ser que, na escolha de se ler autores africanos, o leitor esteja

buscando algo novo, ou esteja procurando informaes sobre um

determinado pas e sua situao, ou esteja at mesmo satisfazendo a

fome pelo extico. Essa viso pode ser alterada por meio de

expresses que no so familiares aos leitores ocidentais. Se ler desse

modo, a dimenso social, que a literatura pode ter, diminuda. Claro

que precisa ser mantido em mente que a sociedade sobre a qual estou

aqui me referindo no a mesma que a expresso literria do leitor, e

pode estar muito longe disso tambm. Um exemplo de leitura

problemtica da literatura africana pode ser encontrado na maneira

como os autores africanos so interrogados sobre a autenticidade

(PYS, 2011, p. 21).

Os escritores africanos veem-se, h algum tempo, diante de situaes concretas

que os levam a se questionar sobre a existncia de uma autenticidade na literatura

africana. O rtulo do autntico ou do no autntico diminui sensivelmente o alcance

social dessa literatura, que se instalou no continente africano com a colonizao das

metrpoles europeias e que se desenvolveu principalmente, na maioria dos casos, a

partir das lutas pelas independncias. Qualquer viso unilateral a respeito da

crioulizao e hibridizao africanas decorrentes da intensa convivncia cultural entre

brancos e negros limita a livre expresso literria de vrios intelectuais africanos

representantes das produes artsticas em lnguas francesa, inglesa ou portuguesa.

Escrever narrativas africanas em lnguas no nativas parece ser um dos pontos centrais

da crtica ps-colonial.

Mia Couto (2005), escritor moambicano de grande participao no cenrio

literrio dos pases africanos de lngua portuguesa, no concorda com a ideia de se

pensar uma literatura africana com base na autenticidade de seu discurso. invivel, na

opinio do autor, reduzir um continente com dezenas de naes historicamente plurais

entre si a uma entidade simples, fcil de entender e de caber nos compndios de

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africanistas (COUTO, 2005, p. 60). Desse modo, tal posicionamento espelha seu

pertencimento ao mundo mestio de sua terra onde os indivduos so urbanos de alma

mista e mesclada (COUTO, 2005, p. 61). A modernidade , por conseguinte, uma

realidade africana estilisticamente rica para o texto literrio. E, por acreditar nessa

concepo, Couto expe seus argumentos a respeito das exigncias em torno do escritor

africano:

Exige-se a um escritor africano aquilo que no se exige a um escritor

europeu ou americano. Exigem-se provas de autenticidade. Pergunta-

se at que ponto ele etnicamente genuno. Ningum questiona

quanto Jos Saramago representa a cultura de raiz lusitana.

irrelevante saber se James Joyce corresponde ao padro cultural desta

ou daquela etnia europeia. Por que razo os autores africanos devem

exibir tais passaportes culturais? Isso acontece porque se continua a

pensar a produo destes africanos como algo do domnio

antropolgico ou etnogrfico. O que eles esto produzindo no

literatura, mas uma transgresso ao que tido como tradicionalmente

africano (COUTO, 2005, p. 63).

Ao apresentar suas reflexes crticas, Couto lembra que uma das razes para a

cobrana de passaportes culturais dos escritores africanos se deve ao fato de que o

assunto ainda aparece como domnio de disciplinas, tais como a antropologia e a

etnografia. Saber o que e o que no africano integra a lista de investigaes

cientficas dessas duas reas do conhecimento humano. E por isso que Couto se

mostra insatisfeito com tal tratamento, pois enquanto a literatura africana estiver sob a

mira de olhos alheios diversidade de suas narrativas, as produes de seus escritores

dificilmente sairo do estigma da autenticidade. Ao direcionar a leitura para a figura do

escritor, Couto encerra seu ensaio com a seguinte afirmao: [o] escritor no apenas

aquele que escreve. aquele que produz pensamento, aquele que capaz de engravidar

os outros de sentimento e de encantamento (COUTO, 2005, p. 63). Em outras palavras,

o escritor caminha alm de sua escrita e nessa caminhada seus leitores captam as

emoes em palavras.

Half of a Yellow Sun considerado, por muitos crticos, como o mais bem

realizado romance de Adichie, de modo que ela delega a um narrador o poder de

apresentar as trajetrias de cinco personagens no contexto da Guerra de Biafra. A autora

inverte a ordem cronolgica dos acontecimentos ao propor a seguinte estrutura de

leitura: Parte 1 Incio dos anos 60; Parte 2 Fim dos anos 60; Parte 3 Incio dos

anos 60; e, enfim, Parte 4 Fim dos anos 60. Essa intermediao dos tempos ficcionais

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contribui decisivamente para a complexidade do enredo, pois a ocorrncia dos fatos

sofre quebras temporais diga-se de passagem, propositais no trnsito de uma parte

outra. Em outras palavras, no h uma sequncia ou melhor, uma continuidade lgica

micro que ligue a parte um parte dois, esta, por sua vez, parte trs, e esta, em

seguida, parte quatro.

Entretanto, o que permite a conexo macro do enredo o encadeamento

posterior dos fatos; ou seja, o narrador, ao relatar determinado acontecimento na parte

um, d o devido prosseguimento na parte trs, sendo que o mesmo ocorre da parte trs

dois e desta quatro. Essa construo do tempo no romance um recurso estratgico

altamente significativo para a investigao da autora a respeito da sobreposio entre

tradio e modernidade no contexto nigeriano, rompendo com qualquer expectativa de

que uma coisa necessariamente surja da outra e de que haja uma evoluo ou

melhoramento no simples decorrer do tempo.

Como o prprio ttulo da obra j nos remete a um dos smbolos da bandeira da

Repblica de Biafra o meio sol amarelo, interpretado como a expectativa de futuro da

nao biafrense , a obra explora em detalhes o lado da populao igbo antes, durante e

imediatamente depois da guerra. Ugwu, Olanna e Richard so as personagens principais

que presenciam, ao lado de outros indivduos coadjuvantes, inmeras mudanas, tanto

internas quanto externas aos seus respectivos meios. Do trio em destaque, apenas o

terceiro no igbo; alis, ele no nem africano. Richard um jornalista britnico, que

subverte o comportamento tpico ingls por no ir at uma ex-colnia europeia com fins

lucrativos. Sua meta inicial escrever um livro sobre a ancestral arte Igbo-Ukwu. Em

sua caminhada instvel pelas terras nigerianas e biafrenses, ele percebe sutilmente, na

companhia de Kainene, a formao de sua identidade prxima do ideal igbo.

Concomitante a isso, ambos enfrentam o drama dos bombardeios areos ocasionados

pelo exrcito inimigo.

Todavia, os caminhos de Ugwu, Olanna e seu companheiro, Odenigbo todos

declaradamente igbos - parecem ser narrativamente mais dramticos do que para o

grupo anterior. O conjunto de Ugwu no financeiramente desprivilegiado, mas, por

renunciarem a privilgios de uma vida de elite, eles encontram mais obstculos no dia a

dia, especialmente aps a sada repentina de Nsukka em virtude dos ataques

provenientes das tropas nigerianas. Em relao a essa abordagem blica sob diferentes

matizes, Adichie assume uma posio crtica no que se refere representao das

situaes conflituosas em seu prprio romance: [q]uando eu escrevo sobre a guerra, eu

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penso: isto somente perpetuar o esteretipo da frica como um lugar de guerra?

(ADICHIE, 2008, p. 47). Esse pensamento da escritora pertinente, pois apesar da

existncia de dezenas de fricas, cada uma com suas particularidades, as sociedades,

tanto ocidentais quanto orientais ainda conservam em seus imaginrios o esteretipo de

uma frica sem qualquer espcie de controle social, onde seus habitantes presenciam

frequentemente conflitos irrelevantes.

Realmente, abordar uma guerra nas pginas de um romance exige daquele que

escreve um cuidado sensvel com diversos elementos discursivos. A representao da

guerra, ao menos assim nos parece, necessita de um olhar humano que trate tal assunto

com o devido conhecimento. Nesse sentido, Adichie enumera, ao final de seu romance,

uma lista com a leitura de mais de 30 obras literrias a respeito da Guerra de Biafra.

provvel que tamanha sede por informaes venha de sua no vivncia direta durante os

meses de massacre, haja vista que ela s nasce em 1977, ou seja, 7 anos aps o

encerramento oficial da contenda entre nigerianos e biafrenses. As lembranas das

perdas materiais e imateriais de indivduos prximos a ela transitam como sombras

cotidianamente. Anderson Bastos Martins (2011), consciente da importncia que a

participao de uma jovem africana tem no atual ambiente ps-colonial de expresso

literria, afirma que:

[Adichie] representa uma das vrias oportunidades que o continente

africano possui hoje de reclamar para si o espao simblico

internacional que os sculos de explorao colonialista lhe negaram.

Ela a mulher negra que desconstri a gama de esteretipos que o

Ocidente disseminou a fim de justificar sua empreitada imperialista

(MARTINS, 2011, p. 111).

Tendo em vista que o professor dos cursos de licenciatura formador de futuros

profissionais que, por ventura, atuaro em sala de aula, deve-se pensar em possveis

caminhos para que esses graduandos possam ensinar seus futuros alunos.

Desse modo, Adichie proporciona a desconstruo de uma srie de ideias

ocidentais historicamente e literariamente incondizentes com os sujeitos africanos. Se

no passado de muitas naes africanas a metrpole inglesa utilizou, em larga escala, o

colonialismo como sua essencial mquina ideolgica de conquista dos indivduos

africanos, hoje, as novas geraes, filhas ou netas desses grupos duramente explorados

pela fora da mo de obra, possuem a chance de alcanar um panorama compatvel com

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suas realidades simblicas em plena era da comunicao virtual. Portanto, Adichie

exemplifica uma dessas possibilidades de ressignificao do continente africano.

Uma das possveis formas de leitura da obra de Adichie o desenvolvimento de

um trabalho de interdisciplinaridade entre Histria e Literatura, especificamente sobre a

frica. Esse trabalho em conjunto levaria os discentes prtica do Letramento Crtico,

pois, ao mesmo tempo em que eles passam a conhecer as dinmicas de estruturao e de

composio dos estudos histricos e literrios, os acadmicos produzem novos sentidos

para as questes de descolonizao e de transculturao.

Consideraes finais

A leitura e o estudo de obras literrias no-cannicas proporcionam discusses e

reflexes fundamentais para a universidade. Esse exame de outros contextos culturais

deve se estender tambm realidade do Brasil, que um pas heterogneo em relao a

vrios aspectos socioculturais. Assim, consideramos de suma importncia que os cursos

de Letras, especialmente de ingls e portugus, incluam em suas grades curriculares

literaturas outras, que no as convencionais, no sentido de contribuir para a formao de

professores mais crticos em relao s estruturas de poder que atuam por trs dos textos

cannicos e que, talvez inconscientemente, so repetidas de gerao em gerao.

Desse modo, propusemos o debate e o trabalho de interdisciplinaridade nas aulas

de literaturas de lngua inglesa por acreditarmos que o mesmo pode auxiliar os

acadmicos a desenvolver uma viso mais tolerante do mundo e de seu prprio

contexto, algo fundamental para suas vidas e tambm para o seu exerccio como

docentes da educao bsica.

Referncias

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Half of a Yellow Sun. New York: Harper Perennial,

2007 [2006].

CARBONIERI, D. O romance africano de lngua inglesa na contemporaneidade.

Projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Estudos da

Linguagem na rea de Estudos Literrios e na linha de pesquisa Literatura, outras artes,

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11618ISSN 2177-336X

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memrias e fronteiras: faces regionais. Cuiab: UFMT, 2011. Disponvel em:

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CARBONIERI, Divanize. O letramento crtico e as teorias ps-coloniais no ensino das

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COSTA, C. S. LEI N 10.639/2003: dez anos de implementao do currculo de

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COUTO, Mia. Pensatempos. Textos de Opinio. Lisboa: Caminho, 2005.

MARTINS, Anderson Bastos. Interldio. Duas mulheres nigerianas, uma experincia

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XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira

11619ISSN 2177-336X

http://www.ufmt.br/.../37917fb11fb6c06aa87bf10c5dfba86

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A LITERATURA MARGINAL COMO MEDIADORA NO ENSINO-APRENDIZAGEM

DE LNGUA INGLESA E NO FOMENTO DO PENSAMENTO CRTICO

Valdirene Baminger Oliveira - UFMT

Joo Felipe Freitas - UFMT

Resumo: Considerando a importncia de se pensar em propostas didticas que contemplem as

demandas advindas das recentes mudanas nos sistemas escolares, em especial no que tange s

interdisciplinaridades e afins e, ainda, diante do desafio que o processo de ensino-

aprendizagem de lngua inglesa nas escolas pblicas de todo pas, este trabalho objetiva tecer

reflexes acerca de uma proposta didtica que alie a literatura considerada marginal, escrita em

ingls, ao processo de ensino-aprendizagem dessa lngua. Associado a isso, pretende-se

demonstrar a relevncia dessa proposta ao contribuir para o fomento do pensamento crtico nos

alunos do ensino mdio, o que bastante profcuo em um momento em que eles esto se

preparando para o Exame Nacional do Ensino Mdio ENEM, ou para o vestibular. Para tanto,

propomos a anlise de recortes de uma obra africana, o romance Maru (1971), escrito em lngua

inglesa pela autora sul-africana Bessie Head. Nesse romance, Head explora temas ligados

diferena, s inter-relaes raciais, ao papel da mulher naquela sociedade, xenofobia e ao

bullying, entre outros. A escolha da obra justifica-se ento pela oportunidade de extrapolar as

fronteiras do campo lingustico, estabelecendo relaes entre a narrativa e o contexto social em

que os alunos esto inseridos, bem como por apresentar, a nosso ver, uma linguagem prxima

da compreenso dos estudantes dessa faixa etria. O embasamento terico ser fornecido por

PIMENTA (2013), PETERSON e COX (2008), CANDIDO (1995), IZARRA e DI CNDIA

(2007), PERIN (2005) e tambm pelas Organizaes Curriculares para o Ensino Mdio -

OCEM (2006).

Palavras-chave: literatura marginal; ensino-aprendizagem; lngua inglesa

Introduo

De acordo com Selma Garrido Pimenta (2013), a didtica uma rea da pedagogia que

estuda o fenmeno ensino. Sendo assim, entendemos que esse fenmeno abrange suas

diversas reas, envolvendo tanto o ensino em lngua materna, quanto em lngua estrangeira. A

autora se refere a uma exploso didtica ao destacar as recentes modificaes nos sistemas

escolares, em especial na formao de professores, e afirma que [s]ua ressignificao aponta

para um balano do ensino como prtica social, das pesquisas e das transformaes que tm

provocado na prtica social de ensinar (PIMENTA, 20131). Ela ainda questiona: em que

medida os resultados das pesquisas tm propiciado a construo de novos saberes e engendrado

novas prticas, superadoras das situaes das desigualdades sociais, culturais e humanas

produzidas pelo ensino e pela escola? Na tentativa de responder a essa pergunta, ela sugere a

unio de foras coletivas em diversos mbitos e contextos, entre pesquisadores e professores e

1 Essa citao foi retirada de uma postagem do site do ENDIPE 2016, conforme descrio nas referncias

e, por isso, no consta o n da pgina.

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instituies vrias, cujo intuito seria o de se efetivar anlises e investigaes que envolvam

equipes multi, inter e transdisciplinares do fenmeno educativo de ensinar, no para a

delimitao de territrios, mas para significar a atividade cientfica que se volta para a educao

como partcipe da construo de uma sociedade humana mais justa e igualitria (PIMENTA,

20132).

Diante dessa perspectiva, nota-se a importncia de propostas didticas que visem

potencializar o ensino de modo a formar cidados mais crticos e participativos em sua

sociedade. Assim sendo, acreditamos que o processo de aquisio de uma nova lngua por

meios no convencionais, como o que est sendo proposto, pode ser uma alternativa interessante

por oferecer a oportunidade de se aprender - por meio de narrativas - no apenas as quatro

habilidades a que geralmente o aluno exposto (ler, escrever, falar e ouvir), mas,

principalmente, a refletir sobre prticas que contribuam para a construo dessa sociedade

humana mais justa e igualitria a que se refere Pimenta. No entanto, necessrio ter em mente

que o processo de ensino-aprendizagem de lngua inglesa no Brasil, especialmente no que tange

escola pblica, tem ainda grandes desafios a serem transpostos.

De acordo com Assis-Peterson e Cox (2008), nunca houve em nenhum outro momento

da histria a necessidade de compartilhamento de uma lngua comum quanto agora, graas

internet e globalizao. Apesar disso, o quadro do ensino-aprendizagem da lngua inglesa nas

escolas pblicas brasileiras ainda deixa muito a desejar. bem verdade que alguma coisa j foi

feita no sentido de melhorar essa situao. Segundo as autoras, ao contrrio do que acontecia no

passado, hoje o ingls tornou-se a lngua estrangeira hegemnica no currculo da escola pblica

brasileira, sendo inclusa na grade curricular a partir da antiga quinta srie do ensino

fundamental (que hoje o sexto ano), e do ensino mdio (ASSIS-PETERSON E COX, 2008, p.

23).

No entanto as condies em que as aulas de lngua so ministradas ainda so bastante

precrias, uma vez que se resumem uma hora-aula semanal, quase sempre dada por um

professor de outra rea, que est ali apenas para completar sua carga-horria. Para completar, a

disciplina no tem carter reprovativo, o que, segundo as autoras, demonstra o descaso com a

mesma (ASSIS-PETERSON E COX, 2008, p. 27; 47).

H ainda que se pensar o problema a partir de uma viso mais especfica sobre o papel

do aluno, uma vez que ele tambm est inserido nesse contexto e muitas vezes no levado em

considerao, em face da diversidade de assuntos que permeiam o universo do ensino-

aprendizagem de lngua inglesa na escola pblica.

Segundo Perin (2005),

2 Idem.

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apesar de reconhecerem a importncia de se saber ingls, os alunos

tratam o ensino de lngua inglesa na escola pblica ora com desprezo,

ora com indiferena, o que causa na maioria das vezes a indisciplina

nas salas de aula [...]. [...] o professor trabalha com a sensao de que

o aluno no cr no que aprende, demonstrando indisciplina e

menosprezo pelo o que o professor se prope a fazer durante a aula.

(PERIN, 2005, apud ASSIS-PETERSON, 2006, p. 150).

Nota-se, portanto, que em alguns casos os alunos nem sabem por que ou para qu eles

precisam aprender ingls e, quando sabem, nem sempre valorizam esse aprendizado. Talvez isso

ocorra devido ao histrico negativo que vem sendo apresentado ao longo dos anos, mas ainda

assim de suma importncia que haja mais reflexes e aes que contribuam para uma

mudana nesse panorama. Dentre essas aes est a proposta de ensino da lngua inglesa

mediado pela literatura.

Entretanto, h ainda outro fator extremamente relevante que sustenta o nosso

argumento: o desafio de tornar a literatura atrativa para os alunos. Segundo Aline Akemi Nagata

(2008) em seu artigo Multiculturalismo e literatura: as fronteiras do currculo oficial

De fato, na mente de muitos alunos, especialmente do Ensino Mdio,

que se vem s voltas com leituras que objetivam o preenchimento de

fichas na escola, ou ao cumprimento de uma imensa lista imposta

pelos grandes vestibulares, a Literatura mesmo amaldioada e intil

(NAGATA, 2008, p. 1).

Diante disso, a escolha da obra a ser utilizada de suma importncia, uma vez que os

alunos parecem ter certa rejeio pelos textos literrios. No entraremos aqui no mrito das

questes que permeiam a situao do ensino de literatura no ensino mdio das escolas pblicas

brasileiras, porque no esse o nosso objetivo neste momento, mas, torna-se necessrio

primeiramente entender qual a funo da literatura, para depois considerarmos de que forma

ela poder ser utilizada para mediar o processo de ensino-aprendizagem da lngua inglesa e no

fomento do pensamento crtico.

A funo da Literatura e a Literatura Marginal

Para Antnio Cndido (1995), a funo da literatura est ligada complexidade da sua

natureza, o que explica o seu papel contraditrio, porm humanizador. Para ele a literatura

confirma e nega, prope e denuncia, apia e combate, fornecendo as possibilidades de vivermos

dialeticamente os problemas (CANDIDO, 1995, p. 243). Assim, a vasta gama de temas

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oferecidos pelo universo literrio corrobora o desenvolvimento e reafirma a relevncia da

formao do pensamento crtico, uma vez que a literatura tem papel formador de

personalidade, mas no segundo as convenes; seria antes a fora indiscriminada e poderosa da

prpria realidade (CANDIDO, 1995, p. 243).

Candido considera ainda o direito literatura to importante quanto os direitos

humanos, ao afirmar que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser

satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e

viso do mundo, ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto nos humaniza (CANDIDO,

1995, p. 256). Ainda segundo o autor, as classes minoritrias so discriminadas por no terem

acesso a uma educao de qualidade, especialmente no que tange literatura que, para ele, um

poderoso instrumento de educao e instruo. Assim, conhecer e aprender literatura permite

que o indivduo tome posio diante das injustias sociais e tenha um carter mais crtico e

desafiador. Portanto, de suma importncia que nossos jovens possam ter acesso a esse

universo to cheio de possibilidades, principalmente em um momento em que esto se

preparando para o vestibular ou para o Exame Nacional do Ensino Mdio ENEM, como o

caso dos estudantes de ensino mdio.

Para as Organizaes Curriculares para o Ensino Mdio - OCEM, uma das marcas da

literatura :

[s]ua condio limtrofe, que outros denominam transgresso, que

garante ao participante do jogo da leitura literria o exerccio da

liberdade, e que pode levar a limites extremos as possibilidades da

lngua:

E nisso reside sua funo maior no quadro do ensino mdio: pensada

(a literatura) dessa forma, ela pode ser um grande agenciador do

amadurecimento sensvel do aluno, proporcionando-lhe um convvio

com um domnio cuja principal caracterstica o exerccio da

liberdade. Da, favorecer-lhe o desenvolvimento de um

comportamento mais crtico e menos preconceituoso diante do mundo.

(OSAKABE, 2004 apud OCEMs 2006, p. 50).

Nesse sentido, o texto aproxima-se do objetivo proposto neste trabalho na medida em

que, ao explicar a funo da literatura, demonstra a sua relevncia para o desenvolvimento da

criticidade dos alunos e a importncia do exerccio da liberdade frente s questes que

permeiam a sociedade na qual eles esto inseridos, o que pode lev-lo a ser um agente

transformador desta sociedade. Mas h que se indagar: de qual tipo de literatura estamos

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tratando? possvel aprender lngua inglesa e, ao mesmo tempo, desenvolver o pensamento

crtico atravs de textos literrios? E de que maneira o professor pode aproximar a literatura do

cotidiano do aluno?

Acreditamos que essa proposta possvel de ser desenvolvida com a maioria dos textos

literrios. No entanto, aqui, estamos priorizando as chamadas literaturas marginais, que so as

literaturas que no esto includas no cnone literrio, geralmente ocidentalizado. So poemas,

narrativas ou outros gneros literrios produzidos na margem do centro hegemnico

eurocntrico. Podemos citar como exemplo as literaturas produzidas na frica, na sia, na

Oceania, na Amrica Latina, entre outras. Dentre essas literaturas, ressaltamos as literaturas

africanas escritas em lngua inglesa, uma vez que so oriundas de pases que foram colonizados

pelos ingleses, como a Nigria e a frica do Sul, por exemplo.

Assim, ao escolher um romance da autora sul-africana Bessie Head, direcionamos o

nosso olhar para esse tipo de literatura, sob uma perspectiva crtica ps-colonial, para analisar as

questes que envolvem a narrativa, bem como para destacar as particularidades de uma lngua

inglesa advinda no do centro, mas da periferia. Tencionamos com isso mostrar aos alunos que

a lngua inglesa, diferentemente do que geralmente ensinado nas escolas de idiomas, tambm

procedente de outros locais que no a Inglaterra, os Estados Unidos, ou o Canad, entre outros

centros hegemnicos. O objetivo aqui lev-los a refletir sobre as questes de poder que

envolvem a aquisio de uma segunda lngua e noo de que, assim como outras lnguas, a

inglesa tambm advm de pases como os da frica, da ndia e de outros continentes. Essa

noo contribui para a formao de cidados mais crticos e atuantes, que lutam pelos prprios

direitos, reivindicam maior liberdade de pensamento e expresso e rejeitam o conformismo

diante das classes dominantes.

Aliando a literatura marginal ao ensino de lngua inglesa

Para Laura Izarra (2007), ao estudar a lngua inglesa por meio do texto literrio, ns

atravessamos as fronteiras das estruturas lingsticas e culturais e rompemos com a mera

repetio do pensamento alheio, construmos novas estruturas interativas que possibilitam

dilogos crticos entre diferentes culturas e sujeitos, alm de permitir que professores e alunos

atuem em um processo de releitura, detectando os discursos dominantes e reescrevendo contra-

discursos que afirmariam suas prprias identidades.

O que pretendemos demonstrar com isso que tanto alunos quanto professores podem

contribuir ensinando e aprendendo a lngua inglesa de uma forma dinmica, interativa e

colaborativa, em que no apenas o professor, mas tambm os alunos tenham a oportunidade de

expressar suas idias e opinies, concordando ou no com aquilo que est sendo ensinado. A

obra de Izarra e di Candia (2007) apresenta uma discusso sobre diversas maneiras de ensinar

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lngua inglesa por meio da literatura, seja por meio de narrativas, contos, romances ou poesia.

Aqui utilizamos o gnero romance como modelo para a elaborao dessa proposta. Izarra (2007)

postula que este formato de aula

[...] uma alternativa inovadora de aprendizagem que permite o

discernimento de diferentes modos culturais e usos da lngua inglesa

nas suas prticas sociais. Conseqentemente, o aluno desenvolver

uma agncia direta na construo do conhecimento e de um

pensamento crtico na interao com as diversas vises de mundo. [...]

o diferencial est no uso do texto literrio como mediador na

transposio das fronteiras do campo lingstico e no acesso ao mundo

das idias, das emoes e do conhecimento das prticas culturais a

partir de um posicionamento crtico contextualizado social e

historicamente (IZARRA, 2007, p. 9).

Assim, por meio do texto literrio e de atividades didticas especficas, previamente

formuladas para interagir com o contexto da obra, os estudantes so estimulados a desenvolver

as habilidades lingusticas e a criticidade, permitindo que eles se tornem sujeitos de seu prprio

discurso, uma vez que podero compreender melhor o seu mundo.

Como mencionado anteriormente, o gnero escolhido para esta proposta a narrativa,

por meio de um recorte da obra Maru, de Bessie Head. O racismo, a xenofobia, as questes de

gnero, diferena e resistncia, so caractersticas marcantes nos romances da escritora sul-

africana Bessie Head. O romance foi publicado pela primeira vez em 1971. No ano seguinte

Maru passou a ser publicado pela editora Heinemann African Writers Series, pela qual, desde

ento, tem sido reimpresso, originando diversas edies. A obra, a princpio, foi escrita para ser

utilizada pelas escolas de Botswana, mas acabou transcendendo esses limites e posteriormente

teve os direitos vendidos para uma pequena empresa cinematogrfica que o transformou em

filme. Maru tambm acabou dando origem a trs peas teatrais, o que demonstra sua grande

aceitao pelo pblico em geral.

Apesar de ser um romance curto, de apenas 103 pginas, Head consegue construir uma

trama slida, com fortes argumentos, pautados principalmente na histria de quatro personagens

centrais, dois homens e duas mulheres, e suas relaes ambguas de amor e dio. As questes

ligadas ancestralidade, s tradies e aos costumes tribais formam o pano de fundo da

narrativa, que tem como foco principal a chegada de Margaret quela comunidade para lecionar

na escola local. Esse fato ser o elemento desestabilizador da rotina na vila de Dilepe e que vai

colocar em cheque os relacionamentos de amor e amizade existente entre os personagens

principais.

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A narrativa comea a partir do final da histria e depois segue para o incio, com o

nascimento de uma menina Masarwa cuja me morre no parto. As pessoas dessa etnia eram

consideradas intocveis pelos habitantes de Botswana, que os viam como seres irracionais,

prximos dos animais. Por isso, as prprias enfermeiras tinham ojeriza de tocar no corpo da

mulher morta. Ao se deparar com aquela situao, a missionria inglesa do hospital, Margaret

Cadmore, assume a funo de preparar o corpo para o enterro e, com pena da criana, decide

adot-la e dar a ela o seu prprio nome: Margaret Cadmore. A missionria tenciona fazer da

pequena Margaret um experimento, educando-a conforme os padres da educao inglesa e

inculcando na mente da garota que ela deve orgulhar-se de sua origem para que, um dia, possa

lutar por seu prprio povo.

Assim, Margaret Cadmore, a filha, cresce aprendendo no apenas a ler e a escrever,

mas tambm a pintar e a comportar-se como uma dama inglesa independente. No entanto, ao

completar a maior idade, a mulher que ela considerou como me, durante toda a vida, parte de

volta para a Inglaterra, deixando-a sozinha com seus conhecimentos. Embora tenha vivido por

longo tempo com a famlia da missionria, Margaret sempre foi uma pessoa solitria. O

isolamento uma das formas frequentemente utilizadas por Head como um recurso para lidar

com a rejeio e o preconceito.

Margaret decide lecionar em Dilepe e a partir desse ponto que a narrativa torna-se

mais complexa. O fator complicador a etnia da personagem, uma vez que o povo Basarwa

compe a maioria dos servos e escravos que trabalham para os moradores daquela comunidade.

Esse fato acaba por dividir as opinies dos habitantes do lugar, especialmente da alta sociedade

da vila. Eles temem pela paz e estabilidade, pois, de seu ponto de vista, como uma mulher do

povo Basarwa poderia ensinar alguma coisa se eles eram considerados um povo que no sabia

pensar? E, se aquela jovem professora conseguiu tal faanha, seria possvel que todos os outros

tambm conseguissem? Assim, ela poderia tornar-se uma herona para seu povo e talvez at

inspirar uma rebelio entre os Basarwa e, nesse caso, quem iria trabalhar para eles? Por isso,

Margaret era vista pela maioria como uma ameaa. possvel nesse ponto fazer correlaes

com a realidade dos estudantes quanto importncia de se refletir sobre as diferenas, sejam

elas de cor, de etnia, de classe, de gnero ou religiosas.

Os quatro personagens principais so fortemente ligados pelo amor de uns pelos outros,

mas tambm pelo dio, uma vez que Dikeledi ama Moleka, que ama Margaret, que tambm o

ama. Simultaneamente, Maru se apaixona por Margaret, dando incio a uma situao silenciosa

insuportvel em que todos se amam em segredo e precisam lutar contra esses sentimentos

contraditrios de amor e dio (provocados pelos cimes).

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A trama revela os traos contrastantes entre as duas amigas: Margaret e Dikeledi. A

primeira precisa lutar para conseguir o seu espao dentro de uma sociedade racista e opressora,

sem abrir mo de sua identidade racial. A segunda, apesar de ser uma mulher independente, que

trabalha, dirige e se relaciona de uma forma bastante liberal com os homens, precisa suportar os

efeitos de uma sociedade machista e patriarcal, ao mesmo tempo em que luta pelo amor de

Moleka, o maior representante dessa sociedade.

Da mesma forma, h um forte contraste entre os dois jovens Moleka e Maru. Enquanto

Moleka conhecido por colecionar casos amorosos e por uma grande quantidade de filhos que

so deixados para serem criados pela me dele (sem, no entanto, assumir nenhuma dessas

mulheres como sua esposa), Maru mais atencioso e consegue entregar-se verdadeiramente ao

amor. Os dois jovens so amigos e o nico motivo pelo qual s vezes se desentendem por

causa das conquistas amorosas em comum, mas isso vai mudar com a chegada de Margaret,

pois dessa vez nenhum dos dois pretende perder. Ambos so ricos pecuaristas e candidatos ao

cargo de futuro chefe da vila de Dilepe, mas esto dispostos a arriscar tudo pelo amor de uma

jovem Masarwa (singular de Basarwa, na lngua Tswana).

De acordo com as OCEM (2006) o desenvolvimento da leitura, da comunicao oral e

da escrita, desde o 1 at o 3 ano do ensino mdio, devem ser priorizados. Contudo, h uma

nfase para que, no terceiro ano, o desenvolvimento da leitura seja intensificado a fim de ajudar

os alunos que esto se preparando para o vestibular. Entendemos, no entanto, que essa opo

no deve desconsiderar o carter da leitura como prtica cultural e crtica de linguagem, um

componente essencial para a construo da cidadania e para a formao dos educandos

(BRASIL, 2006, p. 111; 112).

H tambm uma sugesto para que as aulas de lngua estrangeira sejam trabalhadas a

partir de temas como: cidadania, diversidade, igualdade, justia social,

dependncia/interdependncia, conflitos, valores, diferenas regionais/nacionais. Acreditamos

que o fato de a narrativa tratar da questo da diferena racial e apresentar personagens jovens

que se envolvem sentimentalmente entre si, permite que os alunos team certa identificao com

as personagens, seja positiva ou negativamente, o que poderia despertar um interesse maior do

aluno pela proposta. Alm disso, a obra escolhida atende proposta de temas sugeridos pelas

OCEM, uma vez que ela retrata as diferenas e injustias sociais, a diversidade e os valores dos

indivduos e da sociedade.

Assim, o que propomos, num primeiro momento, a leitura completa do romance em

ingls, uma vez que o mesmo considerado um short novel, com apenas 103 pginas. Essa

leitura pode ser feita em sala de aula, paulatinamente, em voz alta pelos alunos que se

dispuserem voluntariamente para faz-lo, evitando-se assim constranger os alunos mais tmidos

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e criando situaes em que a pronncia pode ser avaliada. A partir da alguns trechos podem ser

recortados da obra a fim de serem trabalhados os aspectos especficos da lngua, bem como de

compreenso e interpretao de texto.

Aqui, escolhemos para citar como exemplo um trecho da narrativa que trata de

uma questo bem prxima da realidade de alguns alunos. A narrativa retrata o horror

que os habitantes de Botswana sentiam em relao ao povo Basarwa, a ponto de nem as

crianas escaparem de se tornarem agentes a servio da discriminao. O excerto abaixo

revela que Margaret, desde menina, sentia literalmente na pele os efeitos do

preconceito racial, como segue:

He walked in at the door and said, softly: "My sweetheart".

They were the most precious words, if you only knew the horror of

what could pour out of the human heart; a horror that seemed most

demented because the main perpetrators of it were children and you

were a child yourself. Children learnt it from their parents. Their

parents spat on the ground as a member of a filthy, low nation passed

by. Children went a little further. They spat on you. They pinched you.

They danced a wild jiggle, with the tin cans rattling: "Bushman! Low

Breed! Bastard! (HEAD, 2008, p. 5). 3

Observamos, por meio do trecho acima citado, que a personagem sofria o que

atualmente conhecemos como bullying. O texto ento pode ser utilizado para se discutir essa

questo, alm de se analisar, obviamente, as questes lingusticas e gramaticais presentes nesse

excerto da obra, como por exemplo: identificar o verbo to be no passado; verificar a presena de

pronomes, adjetivos e conectivos e como e quando so utilizados, etc.

Entretanto, h uma sugesto na obra de Izarra e di Cndia para que seja feita uma

atividade prvia relacionada ao recorte da narrativa que ser trabalhado, que prepare o aluno

para o conhecimento que est por vir. Essa atividade pode envolver tanto as questes voltadas

para a compreenso lingstica quanto para discusses ligadas a um determinado tema. As

3 Ele entrou na porta e disse, em voz baixa: "Minha querida".

Essas eram as palavras mais preciosas, se voc apenas sabia o horror do que poderia sair do corao

humano; um horror que parecia mais demente porque os principais perpetradores eram crianas e voc era

uma criana tambm. As crianas aprendiam com seus pais. Seus pais cuspiam no cho quando um

membro de uma imunda e baixa nao passava. As crianas iam um pouco alm. Elas cuspiam em voc.

Elas beliscavam voc. Elas danavam uma dana selvagem, chacoalhando latas e gritando: "Bushman!

Raa Baixa! Bastarda! (HEAD, 2008, p 5, traduo nossa)

XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira

11628ISSN 2177-336X

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autoras sugerem tambm que haja uma atividade ps-texto, como por exemplo, solicitar que os

alunos discutam a questo da construo identitria das personagens frente s sociedades

racistas, opressivas e excludentes com as quais elas convivem e relacionando-as com a realidade

deles. Pode-se indagar: quais os efeitos dessas formas de racismo sobre as personagens? Como

construda a identidade racial/social da protagonista? Como as mulheres so representadas na

obra e qual a relevncia dessa representao para as questes de gnero?

Assim, por meio de atividades pr e ps-textuais o professor ou a professora otimiza o

aprendizado do aluno de modo que, ao entrar em contato com a obra, este no sinta um

estranhamento, mas consiga reconhecer alguns aspectos que possibilitem um aprendizado mais

eficaz.

Consideraes Finais

H algum tempo, em uma experincia como professora de ingls no ensino mdio de

uma escola pblica, percebi que o retrato apontado por Assis-Peterson e Cox no era apenas

uma teoria, mas uma triste realidade. Encontrei alunos desmotivados, salas superlotadas, com

estrutura precria e muitas reclamaes dos alunos em relao dificuldade de aprender a

lngua. Percebi que o principal problema, fora os j mencionados, era que o livro que eles

precisavam utilizar era muito bom, no entanto apresentava um contedo para alunos com um

nvel de ingls muito acima do que o que aqueles alunos possuam, que na verdade era quase

nenhum. Havia ento uma distncia enorme entre o ideal e o real e essa distncia parecia

intransponvel naquele momento.

Assim, comecei a refletir sobre uma maneira de ensinar-aprender ingls que aliasse o

aprendizado de lngua a algo que eles de fato se interessassem, o que a meu ver tiraria um pouco

o foco da temida gramtica colocando-o sobre outras questes, sem, no entanto, deixar de

cumprir com o principal propsito de uma aula de ingls. Investigando possveis teorias que

embasassem esse pensamento deparei-me com o livro das pesquisadoras Laura Izarra e Michela

Di Cndia, no qual encontrei exatamente o que precisava para dar forma ao projeto: o ensino de

lngua inglesa mediado por textos literrios. Elaborei ento, juntamente com uma colega

tambm professora de ingls, um mini curso com durao de uma semana, em que tive a

oportunidade de testar essa proposta e no qual, por meio de um questionrio de feedback dos

alunos, percebemos que uma proposta possvel.

No quero afirmar, com isso, que existe uma receita pronta. O que pretendo aqui

apenas sugerir a viabilidade de uma proposta didtica que visa associar o processo de ensino-

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aprendizagem de ingls s literaturas no cannicas de lngua inglesa, ao mesmo tempo em que

forja nos alunos o despertar do senso crtico e, talvez, um interesse maior pela literatura.

Ressaltamos ainda que consideramos essa proposta vivel porque no depende de nada mais

alm do que o que professor j dispe para trabalhar: uma sala de aula, textos literrios

(atualmente obtidos facilmente por meio da internet) e alunos. Assim, ainda que esta seja apenas

uma proposta, a inteno aqui contribuir para o dilogo entre saberes de diversas naturezas a

fim de que, tanto alunos quanto professores, encontrem alternativas para as questes que

envolvem o ensino-aprendizado de lngua inglesa, especialmente para os alunos do ensino

mdio das escolas pblicas brasileiras.

Referncias

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Pedro & Joo Editores /Cuiab: EdUFMT, 2008.

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. Acesso em: 05 mar. 2013.

BRASIL, Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio: conhecimentos de literatura.

Braslia: Ministrio da Educao, 2006.

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CANDIDO, A. Vrios escritos. 3 ed. rev. e ampl. So Paulo: Duas cidades, 1995.

IZARRA, L. P. Z., Di CNDIA, M. R. (orgs.). Ensino de Lngua Inglesa Atravs do Texto

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Rumores/USP, ed. 3, 2008.

PIMENTA, S. G. Extrato da postagem: Epistemologia da prtica: ressignificando a didtica.

Cuiab: ENDIPE 2016. Disponvel em:

http://www.ufmt.br/endipe2016/?s=Selma+Garrido+Pimenta. Acesso em 15/03/2016.

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http://www.ufmt.br/endipe2016/?s=Selma+Garrido+Pimenta

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LITERATURAS DE TEMTICA AFRICANA E AFRODESCENDENTE NA

EDUCAO BSICA: UMA VISO DESCOLONIZADORA DAS QUESTES

RACIAIS

Sheila Dias da Silva Laverde (SME/UFMT)

Valdirene Baminger Oliveira (UFMT)

RESUMO: Pretende-se, com este artigo, apresentar uma proposta didtica, utilizando

as obras literrias de temtica africana e afrodescendente que fazem parte dos

ACERVOS COMPLEMENTARES Alfabetizao e letramento nas diferentes reas do

conhecimento PNLD/PNBE, enviados pelo MEC em 2013 para as escolas pblicas

da Educao Bsica. Vale ressaltar que essas literaturas vieram especificamente para as

turmas dos primeiros anos do primeiro ciclo. Acreditamos que ao trabalhar com essas

literaturas em sala de aula, seja por meio da leitura deleite, seja pelas rodas de histrias,

seja ainda atravs de projetos interdisciplinares, elas possam contribuir na valorizao

das culturas e histrias dos povos africanos e afrodescendentes e na promoo da

igualdade racial. Objetivamos tambm, ao longo do texto, propor novos modos de

anlise e interpretao que auxiliem o professor da educao bsica em seu trabalho

com essas literaturas. A partir de uma abordagem ps-colonial e decolonial, busca-se

tambm verificar em que medida estratgias narrativas escolhidas pelos autores dessas

narrativas foram efetivas para a realizao desses objetivos. Investigaremos ainda de

que forma essas literaturas contribuem para a descolonizao das relaes raciais e da

viso hierarquizada a respeito das culturas africanas e afrodescendentes e, se por

ventura, alguns esteretipos continuam sendo reforados.

Palavras-chave: Questes Raciais, literaturas de temtica africana e afrodescendente,

educao bsica.

Introduo

Em 2003, foi aprovada a lei que torna obrigatrio o ensino de histria e cultura

africana e afro-brasileira nas escolas pblicas de todo o pas. A lei n 10.639/2003

uma pequena vitria nessa incessante luta. Aps cinco anos, foi alterada pela lei n

11.645, com vistas a contemplar no currculo escolar contedos referentes tambm aos

indgenas brasileiros. Essa alterao no anula a lei anterior, mas cumpre o papel de

ampliar aos indgenas os direitos conquistados pelo Movimento Negro que j se

encontravam garantidos na LDB atual. Como afirma Patrcia Teixeira Santos (2012), os

movimentos sociais e antirracistas brasileiros defendiam desde os anos 1970 que esses

temas fossem includos nos currculos das escolas pblicas brasileiras e tambm nas

universidades. Para ela, a lei coloca esse contedo como um importante passo das

polticas de ao afirmativa de reparao histrica dos crimes do racismo. Ao mesmo

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tempo, exige no mesmo nvel o engajamento da pesquisa acadmica em torno do tema

(SANTOS, 2012, p. 116).

Nilma Lino Gomes (2012) considera que a lei fruto da reinvindicao do

Movimento Negro e de organismos da sociedade civil, de educadores e intelectuais

comprometidos com a luta antirracista. Essa pesquisadora, que tambm a atual

ministra da Cidadania, compreende essa lei como uma resposta do Estado s demandas

sociais em prol de uma educao democrtica, que vislumbra no direito diversidade

tnico-racial um dos pilares pedaggicos do pas, sobretudo, quando se valorizam a

proporo significativa de negros na composio da populao brasileira e o discurso

social que apela para a riqueza dessa presena.

Sabemos que, apesar de estabelecido esse marco legal de reconhecimento e

valorizao das influncias africanas na formao da nossa sociedade, muito pouco tem

sido feito para que realmente se d esse enfrentamento efetivo para a eliminao do

racismo. O governo federal at tem contribudo, quando promulgou a lei e tambm ao

enviar s escolas materiais didticos que abordem a questo racial. No entanto, o que se

percebe a falta de conhecimento e muitas vezes at de qualificao dos profissionais

da educao bsica para trabalhar essas questes na escola. Alguns professores at

trabalham os temas nas aulas de histria, porm, costumam apresent-los apenas em

datas comemorativas oficiais, como o 13 de maio (Libertao dos Escravos) e o recente

20 de novembro (Conscincia Negra).

Este texto, por exemplo, traz uma seleo de obras literrias que fazem parte dos

ACERVOS COMPLEMENTARES Alfabetizao e letramento nas diferentes reas do

conhecimento PNLD/PNBE, enviados pelo MEC em 2013 para trabalhar com as

crianas do primeiro ciclo da Educao Bsica. Essas obras foram agrupadas em trs

caixinhas, contendo cerca de trinta e cinco livros aproximadamente em cada uma

delas.O foco de nosso interesse so os contos africanos e brasileiros de temtica africana

ou afrodescendente que fazem parte dessas caixas. Os livros escolhidos para a anlise

desta pesquisa foram os distribudos no trinio 2013-2014-2015.

Essas obras literrias devem permanecer em sala de aula, pois a ideia que o

aluno desde muito cedo tenha contato com o texto literrio, mesmo antes de aprender a

ler, e o fato de esses livros se encontrarem disposio das crianas, geralmente no

cantinho da leitura ou em pequenas estantes ou em bas, faz com que elas tenham mais

liberdade para manipul-los e folhe-los.

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Assim, diariamente, os alunos podem escolher o livro que ser lido pelo

professor ou, no caso dos que j sabem ler, ler eles mesmos, na hora da leitura deleite ou

em outro momento propcio. Estudos indicam que a alfabetizao e o letramento se

desenvolvem de forma simultnea nesses trs primeiros anos do ensino fundamental,

portanto, importante o contato das crianas com os textos literrios: a literatura

proporciona criana a vivncia de outros espaos e outros tempos, de contextos

culturais e sociais que desconhece, e assim amplia sua viso de mundo, contribuindo

para seu amadurecimento social e emocional (BRASIL, 2013, p. 17).

Infelizmente, percebemos que, nessas caixas enviadas pelo MEC, h uma

quantidade pequena, de obras que trabalham as questes tnico-raciais e a histria da

cultura africana. Notamos tambm, por nossa experincia na educao bsica, que

muitos professores preferem a leitura de obras clssicas, principalmente por serem mais

conhecidas e com mais atividades prontas para serem trabalhadas com as crianas. As

obras literrias com temtica africana e/ou afro-brasileira ainda so bastante

desconhecidas do pblico geral e de muitos professores que preferem no se arriscar.

Escolhemos para este trabalho dois contos africanos de lngua inglesa que foram

traduzidos para o portugus e dois afro-brasileiros.

Literaturas de temtica africana e afro-brasileira: um caminho para a

descolonizao

Plantando as rvores do Qunia: a histria de Wangari Maathai [Planting the

trees of Kenya: the story of Wangari Maathai] (2008) foi escrito e ilustrado pela

estadunidense Claire A. Nivola. Atravs desse conto, conhecemos a histria de Wangari

Maathai, a primeira mulher africana a receber o Prmio Nobel da Paz, em 2004. O

prmio foi concedido a essa ambientalista queniana pela conexo que ela fez entre a

sade do meio ambiente do seu pas e o bem-estar de seu povo.

A narrativa em terceira pessoa retrata inicialmente a infncia de Maathai,

quando ela vive em meio ao verde de seu pas, nadando nos rios, descansando sob os

baobs, alm de brincar com os pssaros e animais. Posteriormente, ela viaja para os

Estados Unidos e retorna em 1966, aps graduar-se. No entanto, Maathai no acredita

quando v tamanha devastao ambiental em sua terra natal. Nessa poca, o Qunia j

havia passado pelo processo doloroso de independncia e transformaes profundas

ocorreram em seu pas. Seu povo no mais cultiva o que consome. Ao contrrio,

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compram todos os produtos e alimentos no mercado, sendo tudo muito caro, alm de

no ser de boa qualidade. A maior parte das terras pertence agora aos estrangeiros

europeus, sendo destinada plantao de ch para a exportao.

A jovem Maathai resolve atuar em prol de seu pas. Cria o movimento Cinturo

Verde e mobiliza a populao, sobretudo as mulheres, a plantar rvores. Essa iniciativa

resulta em mais de 30 milhes de rvores plantadas. Seu ativismo ambiental tambm

um ativismo poltico e feminista, j que sua revoluo verde comea pela ao das

mulheres e desencadeia diversos conflitos com as autoridades do pas.

Esse conto sobre Maathai pode ser muito explorado sobre vrios aspectos. Um

deles estabelecer uma relao de comparao com a do ambientalista brasileiro Chico

Mendes. J existem dois livros infantis que contam a historia de luta de Chico Mendes.

Tanto ele quanto Wangari Maathai foram perseguidos por seus posicionamentos

ideolgicos. No foi fcil para ela, muitas vezes, seus amigos tiveram que escond-la,

temendo que fosse capturada e levada presa por defender as florestas. Mas Maathai

soube transformar sua conscincia em ao e a memria de suas razes culturais numa

viso crtica do presente. Infelizmente, Chico Mendes no teve a mesma sorte e foi

assassinado. Alm dessas comparaes, pode ser elaborado um projeto interdisciplinar

entre as disciplinas de Histria, Geografia, Cincias, Artes e Lngua Portuguesa e alm

de analisar o texto, podem ser verificadas as semelhanas histricas e geogrficas entre

Qunia e Brasil. As crianas poderiam fazer trabalhos sobre a preservao do meio

ambiente, catalogando, registrando e propondo solues para esse problema, que

comum em quase todos os pases do mundo.

O Qunia ainda o cenrio de outro conto, As panquecas de Mama Panya

[Mama Panyas pancakes] (2010 [2005]) dos americanos Mary e Richard Chamberlin.

O texto narrado em terceira pessoa e poderia se passar em qualquer tempo, pois no h

nenhuma referncia temporal explcita. Atravs desse conto, conhecemos um pouco da

vida simples de Mama Panya e seu filho Adika. Eles se preparam para ir ao mercado. O

menino logo imagina que a me far panquecas, e ela confirma que a inteno

justamente essa. No caminho, eles encontram vrios amigos e vizinhos, entre os quais

Mzee Odolo, Sawandi, Naiman, Gamila, Bwana Zawenna e Rafiki Kaya, que acabam

sendo convidados por Adika a comer panquecas com eles. Mama Panya fica

preocupada, temendo que a comida no seja suficiente para alimentar todos os

convidados. Afinal, ela dispe de apenas duas moedas para comprar os ingredientes de

que necessita para as panquecas. Entretanto, os convidados chegam trazendo, um a um,

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alimentos para incrementar a refeio: leite, manteiga, farinha, peixe, banana, sal e

cardamomo, usado como condimento. Eles comem sombra de um baob, rvore da

qual tudo se aproveita, desde as folhas at o tronco. Em seguida, Rafiki Kaya toca seu

mbira e Mzee Odolo canta para completar a confraternizao. Logo fica claro que as

panquecas satisfazem a todos os convidados e que novos encontros viro para

comemorar a solidariedade na aldeia africana.

Nessa obra, percebemos o quanto compartilhar uma refeio com os amigos

importante. Vrias pessoas contribuem para que essa refeio seja possvel. Podemos

notar ainda que a mensagem principal a de que no importa o quanto uma pessoa tem,

mas sim a sua disposio em compartilhar isso com os outros. Basta querer dividir o

que se possui, sendo pouco ou muito, para receber a mesma gentileza de volta. Ainda

podemos usar a historia de Mama Panya como exemplo de mulher, forte, guerreira, que

mesmo pobre e criando sozinha seu filho, capaz de gestos generosos, como o de

partilhar. Sabemos que no Brasil, muitas famlias so chefiadas por mulheres e muitas

dessas mulheres so negras e sozinhas criam seus filhos e mesmo passando

dificuldades, conseguem compartilhar o pouco que tm.

Entre as obras brasileiras, podemos destacar O senhor das histrias (2011),

escrito por Wellington Srbek e ilustrado por Will. O conto faz parte da srie Mitos

recriados em quadrinhos e conta a histria de dois garotos curiosos por saber de onde

vm as histrias. Ento, decidem perguntar ao av Lobato, que lhes narra a histria de

Anansi, o grande griot africano. O av conta que h centenas anos, Anansi era um

tecelo, chamado por todos de sua aldeia de o Velho Aranha, pois sabia como ningum

tecer com fios e palavras (SRBEK, 2011, p. 5). Durante o dia, ele tecia com fios os

mais belos mantos de sua aldeia, mas era noite, em volta da fogueira, que ele tecia

com palavras histrias que embalavam o povo. No entanto, havia algo que o intrigava,

as roupas tecidas por ele duravam vrias estaes, porm, suas histrias desapareciam

ao amanhecer. Ningum se lembrava das histrias contadas na noite anterior.

Numa ocasio, Anansi est deitado aos ps de um baob gigante e passa a tecer

pensamentos. Tece tanto que cria uma teia que chega at o cu. Resolve, ento, subir

nela e acaba chegando ao palcio do Deus do cu. Ele fica pasmo, pois o lugar era

magnfico e o prprio Senhor dos pensamentos, sonhos e fantasias, chama-o pelo nome.

L, ele fica sabendo que, noite aps noite, suas histrias chegavam at ali e eram

apreciadas por todos. Descobre ainda que essas histrias ficam guardadas dentro de uma

caixa de ouro, cravejada de diamantes e pedras preciosas. No entanto, se ele quiser lev-

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las consigo, tem que realizar trs tarefas, capturar trs terrveis criaturas: o medo (os

dentes afiados do leopardo), a monotonia (um enxame de abelhas enlouquecedor) e a

melancolia (a serpente que pode derrotar o mais forte).

Anansi precisa encontrar essas criaturas logo e derrot-las para poder voltar para

sua aldeia. Fica ali pensando, pensando, desiludido, com receio de nunca mais voltar e

ficar preso para sempre naquele lugar. Mergulha em profunda tristeza. No entanto,

lembra-se que estava no reino dos pensamentos e sonhos e no precisaria caminhar

eternamente para realizar as tarefas que lhe foram impostas. Vai at a presena do

Senhor dos Cus e lhe conta que seu medo desapareceu. Assim, amarra o leopardo.

Percebe que tudo est apenas na sua imaginao. Cala as vespas, colocando-as dentro de

um jarro de coloridas imagens de sonhos. A melancolia logo perde foras tambm.

Assim, o Senhor dos Cus lhe entrega a to desejada caixa dos sonhos. Anansi abre-a e

de l saltam todas as histrias. A partir desse momento, ele passa a ser o Senhor das

Histrias.

Anansi, o velho griot, reaparece em vrias outras obras, inclusive, em um dos

trs contos publicados em Histrias encantadas africanas (2011) da brasileira Ingrid

Biesemeyer Bellinghausen. O ttulo deste conto Anansi e o ba das histrias, mas o

Anansi contado por Bellinghausen diferente do descrito por Srbek. Aqui, ele um

homem velho e fraco que mora num mundo muito triste porque no h histrias. Alis,

as histrias existem, mas esto aprisionadas num ba de ouro, em poder do Deus do

cu, Nyame, e ningum pode chegar perto. Mas Anansi tece uma teia to grande que

chega at o cu e se oferece para comprar as histrias e espalh-las pelo mundo. Nyame

lana quatro desafios ao homenzinho e duvida que ele ser capaz de cumpri-los. Mas o

velho tecelo, ao chegar a casa, conta tudo para sua esposa, Aso. Ela o ajuda, dando-lhe

ideias de como derrotar Onini, a jiboia que engole um homem inteiro; Osebo, o

leopardo com dentes de sabre; Mmoboro, o enxame de vespas de ferres mortais; e

Mmoatia, a fada que nunca vista (BELLINGHAUSEN, 2011 p. 12). Aps completar

os desafios, Anansi retorna ao Deus do Cu e recebe as histrias que ele prontamente

compartilha com o mundo.

Esses dois ltimos textos podem ser lidos e representados pelos alunos. Ainda

podero perceber que, nessas histrias, h uma valorizao aos mais velhos, pois eles

so aqueles que detm o conhecimento e so os responsveis por passar adiante as

tradies. Cada um dos textos discutidos acima traz referncias positivas e tambm

permitem que as histrias e tradies dos povos africanos e de seus descendentes sejam

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conhecidas. sua histria sendo contada sob outro vis. Quando pensamos em enfocar

em nosso projeto essas obras, tivemos a compreenso de que, desde muito cedo, as

crianas comeam a ter contato com narrativas que fomentam seu imaginrio. Durante

muito tempo, o universo das obras infantis era permeado por personagens com

caractersticas fsicas europeias e, quando o negro era representado nessas histrias, era

normalmente de forma estereotipada. A literatura africana, a afro-brasileira e a mais

recente literatura brasileira infanto-juvenil de temtica africana ou afrodescendente vm,

por sua vez, contrapor a hegemonia dos contos tradicionais medida que apresentam

personagens negras como sujeitos histricos participantes ativos e orgulhosos de sua

cultura e de seu pertencimento racial.

A escritora nigeriana Chimamanda Nigozi Adichie (2009), em sua palestra

registrada no Youtube e intitulada The danger of a single story, relata que, durante sua

infncia, lia muitos livros britnicos e americanos e que, aos sete anos, comeou a

escrever e ilustrar com giz de cera. As personagens representadas em seus desenhos

eram todas pessoas brancas de olhos azuis que comiam mas e falavam sobre o tempo.

A realidade na Nigria era muito diferente, no havia neve, a fruta tpica era a manga,

nunca falvamos sobre o tempo porque no era necessrio. Meus personagens tambm

bebiam muita cerveja de gengibre porque as personagens dos livros britnicos que eu lia

bebiam cerveja de gengibre (ADICHIE, 2009, traduo nossa) Pelas prprias palavras

dessa escritora, percebemos que ela reproduzia o que lhe era ensinado. E, como ela

declara mais frente na mesma palestra,

ns somos impressionveis e vulnerveis em face de uma histria,

principalmente quando somos crianas. Porque tudo que eu havia lido

eram livros nos quais as personagens eram estrangeiras, eu convenci-

me de que os livros, por sua prpria natureza, tinham que ter

estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu no podia

me identificar (ADICHIE, 2009 traduo nossa).

Somente quando teve contato com as obras literrias de Achebe e Camara Laye

que Adichie percebeu que as meninas com a pele da cor de chocolate, cujos cabelos

crespos no poderiam formar rabos-de-cavalo, tambm podiam existir na literatura

(ADICHIE, 2009, traduo nossa). A partir da, ela passou por uma mudana mental na

percepo da literatura. Esses escritores mencionados por Adichie so autores ps-

coloniais e trazem tona formas diferentes de representar a literatura. Nas literaturas

ps-coloniais, os africanos no so mais representados como as bestas sem cabea e

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sem casa descritas por John Lock e/ou outros autores ocidentais (ADICHIE, 2009,

traduo nossa). Ao contrrio, eles so retratados como povos com tradies e histrias

prprias, como vimos nas obras relacionadas acima ou ainda como podemos encontrar

no romance de Achebe, Things fall apart (1958), que retrata uma aldeia igbo pouco

antes da chegada do colonizador europeu.

Assim como Adichie, muitas crianas negras ao longo da histria de suas vidas,

passaram a reproduzir aquilo que lhes era ensinado. No entanto, depois de muitas lutas,

hoje, j podemos vislumbrar uma luz no fim do tnel, porque essas crianas atualmente

tm contato com as literaturas no cannicas, que trazem temticas prximas de suas

realidades, como visto nos textos j mencionados.

Gilmara Santos Mariosa e Maria da Glria dos Reis (2011) nos dizem que a

construo da identidade da criana algo que vai passar inevitavelmente pelos

referenciais que forem a ela apresentados (MARIOSA; REIS, 2011, p. 42). Ainda, para

essas pesquisadoras, os brinquedos, os desenhos animados e as histrias infantis

contadas ou lidas fazem parte desses referenciais. Portanto, se a criana negra no se v

representada ou se sua realidade retratada apenas atravs de esteretipos, ela no

desenvolver uma imagem positiva de si mesma.

Simone Moreira de Moura et al. (2012) aludem que os contos de fadas ainda

tm uma presena muito forte em nossa sociedade (MOURA et al., 2012, p. 8). Talvez

seja porque esses textos trazem um mundo encantado, mgico, e o imaginrio dos

pequenos seja permeado por heris, heronas, prncipes, princesas, fadas, duendes. No

entanto, nesse tipo de literatura, quase nunca encontramos princesas ou prncipes

negros. A ausncia de negros nesses papis dificulta a valorizao da diversidade

cultural e racial.

Nelly Coelho (2000) afirma que os contos de fadas passaram por diversas

adaptaes atravs dos tempos, mas ainda hoje trazem em sua essncia caractersticas

da cultura europeia, apresentando valores como os conceitos de bem/mal, certo/errado,

felicidade/infelicidade, belo/feio. Esses valores esto presentes no s na literatura

infantil, mas permeiam todas as esferas sociais e representam a histria de opresso de

um povo sobre outro, na qual os supostamente superiores impem sua cosmoviso.

Para Gomes (2012), construir uma identidade negra positiva um desafio muito

grande em nossa sociedade, pois historicamente foi ensinado maioria das pessoas

negras que, desde muito cedo, para ser aceito preciso negar-se a si mesmo. No

estamos aqui afirmando que as literaturas europeias ou cannicas no devam mais ser

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lidas em sala de aula, mas o que no se pode aceitar que as crianas tenham contato

apenas com esses tipos de textos. necessrio descentralizar essas literaturas cannicas

e trazer para o centro das discusses as literaturas antes marginalizadas.

Para Kabenguele Munanga (2004), no sculo XIX, a cor da pele foi critrio para

a classificao da espcie humana em trs raas: branca, negra e amarela. Sendo os

indivduos da raa branca privilegiados e considerados superiores aos outros, em funo

de suas caractersticas fsicas hereditrias, tais como a cor clara da pele, o formato do

crnio, a forma dos lbios, do nariz, do queixo, etc. O que Munanga assevera que, para

esses povos brancos, essas caractersticas os tornavam mais bonitos, mais inteligentes e

muito mais capazes de dominar as outras raas, principalmente a negra, mais escura de

todas e, consequentemente, considerada como a mais estpida, mais emocional, menos

honesta, menos inteligente e, portanto, a mais sujeita escravido e a todas as formas de

dominao (MUNANGA, 2004, p. 19).

Foi somente no sculo XX, com os avanos das cincias, que os prprios

bilogos chegaram concluso de que a raa no uma realidade biolgica. Para

Munanga, por mais que esse conceito no se refira aos aspectos biolgicos, existem

ainda os ideolgicos, polticos e sociais. Embora a raa no exista biologicamente, isso

insuficiente para fazer desaparecer as categorias mentais que a sustentam: O difcil

aniquilar as raas fictcias que rondam em nossas representaes e imaginrios

coletivos (MUNANGA, 2004, p. 26).

J, para Anbal Quijano (2005), a classificao racial da populao mundial

sinaliza a continuidade da colonialidade que teve sua origem no colonialismo, mas que

provou ser duradora e estvel, persistindo at os dias atuais. A colonialidade seria esse

regime de poder que, fundado em uma ideia de desenvolvimento, impe padres

econmicos, polticos, morais e epistemolgicos sobre outros povos. Ainda segundo

esse terico, essa ideia de raa em seu sentido moderno, no tem histria conhecida

antes da Amrica (QUIJANO, 2005 p. 107). Foi com a constituio da Amrica que se

produziram as primeiras identidades raciais de indgenas, negros e mestios. Para

Quijano, foi a partir de diferenas fenotpicas entre conquistadores e conquistados que

se estabeleceu uma hierarquizao entre esses grupos.

Essa diviso racial permitiu aos europeus que os povos conquistados e

dominados fossem postos numa situao natural de inferioridade e, como argumenta

Quijano, enquanto havia uma relao estabelecida de servido e reciprocidade entre

indgenas e brancos, restava aos negros a escravido. A codificao da diferena entre

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dominantes e dominados em termos de raa e a articulao de todas as formas histricas

de controle do trabalho em torno do mercado mundial estiveram conectados e se

reforaram mutuamente. Com efeito, a partir da constituio da Amrica, toma lugar

uma identificao da distribuio do trabalho com a raa, o que Quijano denomina de

colonialidade do poder:

Na atualidade, esse estado de coisas ainda perdura, pois aos grupos

racializados so normalmente atribudas as formas de trabalho menos

valorizadas dentro das sociedades da maioria dos pases do mundo.

Entre as naes, as diferenas tambm se estabelecem nesses termos:

aquelas de maioria branca estariam normalmente entre as mais

desenvolvidas e as de maioria no branca ainda fariam parte da esfera

dos grupos que lutam para atingir melhores patamares econmicos e

sociais (CARBONIERI, 2016, p. 8).

Para Quijano (2005), a permanncia da colonialidade do poder em alguns pases

da Amrica Latina fator impeditivo para a construo de um estado-nao, que tem

como pressuposto uma participao poltica e civil democrtica, o que, por sua vez,

requer a democratizao das relaes sociais. A soluo seria, para o autor, uma radical

devoluo do controle sobre o trabalho, sexo, autoridade e conhecimento s pessoas,

sobretudo aos indgenas, negros e mestios. Tal distribuio,