Author
lekhue
View
217
Download
0
Embed Size (px)
1
LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS, DA EDUCAO
BSICA AO ENSINO SUPERIOR: INTER-RELAES ENTRE DIDTICA E
SABERES
As obras literrias africanas e afro-brasileiras (alm das brasileiras de temtica africana
e afrodescendente) podem ser abordadas de acordo com uma proposta didtica que
possibilite a construo afirmativa da identidade racial e a valorizao da contribuio
cultural africana e afrodescendente, uma vez que discutem aspectos culturais e
histricos do continente africano e do Brasil, fomentando o pensamento crtico sobre a
diversidade de realidades que permeiam nosso cotidiano. Trabalhar com essas
literaturas em sala de aula permite tambm o contato com literaturas desconhecidas ou
marginalizadas pelos cnones oficializados. A valorizao dessas culturas auxilia na
visualizao da frica como um continente multicultural e permite a construo de
imagens positivas de negras e negros, rompendo com a imagem do negro aculturado,
vtima da destruio pelos brancos dos seus valores culturais, e mostrando-o como um
sujeito histrico, inserido em estratgias de poder, afirmao poltica e reformulao
positiva de sua identidade. Assim, tendo como referencial terico autores ps-coloniais
e inserido no eixo temtico Didtica e Prtica de Ensino nas Diversidades Educacionais,
subeixo1 Didtica e Prtica de Ensino nos Dilogos de Saberes, Currculos e Culturas,
o objetivo deste painel propor dilogos entre a didtica e os diversos saberes advindos
das literaturas africanas e afro-brasileiras.O painel apresenta trs textos que contemplam
propostas didticas que vo desde a educao bsica ao ensino superior, enfocando
aspectos relacionados a leitura e interpretao de textos no cannicos, ensino
aprendizagem de lngua inglesa por meio de textos literrios ditos marginalizados e
reflexes acerca da formao de professores e professoras do curso de licenciatura em
Letras - Ingls/Portugus no que tange ao ensino de literatura de lngua inglesa.
Palavras-Chave: Literaturas Africanas , Inter-Relaes, Didtica
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11609ISSN 2177-336X
2
LITERATURAS AFRICANAS DE LNGUA INGLESA NA UNIVERSIDADE:
POSSVEIS CAMINHOS PARA UMA EDUCAO CRTICA
Joo Felipe Assis de Freitas (IFMT/UFMT)
Sheila Dias da Silva Laverde (SME/UFMT)
Resumo: O objetivo deste artigo propor uma reflexo acerca de possveis caminhos
para o ensino de literaturas africanas de lngua inglesa na universidade, uma vez que
essa instituio ainda parece pautar o ensino de literatura inglesa apenas em textos
cannicos, salvo poucas excees. No estamos, com isso, minimizando a importncia
de tais textos, mas enfatizando que os mesmos devem ser apresentados aos alunos
(neste caso, aos futuros professores que sero tambm formadores de opinio) um leque
de possibilidades a fim de que possam tecer um contraponto entre a literatura cannica e
essas outras literaturas no eurocntricas. Ademais, apesar da promulgao da lei
federal n 10.639/2003, que tornou obrigatrio o ensino de histria e cultura africana e
afro-brasileira nas escolas pblicas de todo o pas, essa lei ainda encontra dificuldades
de exerccio. Por ser um local de formao acadmica de futuros professores, espera-se
que a universidade, especialmente as que oferecem o curso de Letras Portugus/Ingls,
estabeleam diretrizes e criem oportunidades de construo de sentidos a partir do
processo de ensino/aprendizagem de literaturas de lngua inglesa diversas na
contemporaneidade. Desse modo, pretende-se tambm apontar alternativas para o
estabelecimento de dilogos que possam colaborar com a didtica no ensino superior,
uma vez que na formao de professores que se inicia o caminho para que as
transformaes necessrias ocorram. A importncia do ensino e aprendizagem desse tipo de produo literria justifica-se por contribuir para a minimizao dos preconceitos em todas as
suas formas, sejam eles raciais, sociais, culturais, de gnero, ou at mesmo, literrios.
Palavras-chave: universidade; literaturas africanas; educao crtica.
Introduo
A universidade uma instituio social e como tal exprime de maneira
determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. A
presena de opinies, atitudes e projetos conflitantes representa divises e contradies
da prpria sociedade. Essa relao dialtica entre universidade e sociedade o que
explica, por exemplo, a estruturao e a configurao das matrizes curriculares dos
cursos universitrios tanto de graduao quanto de ps-graduao.
Em relao s literaturas africanas de lngua inglesa nos cursos de Letras
Portugus/Ingls, o contato dos acadmicos com textos oriundos das naes africanas
ainda raro, o que, de certo modo, dificulta a formao crtico-dialgica dos futuros
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11610ISSN 2177-336X
3
professores nos estudos literrios. Por outro lado, o contato dos ps-graduandos com as
literaturas no-cannicas est, aos poucos, alargando as esferas de atuao de diferentes
grupos de pesquisa nos nveis de mestrado e de doutorado, bem como promovendo
questionamentos a respeito das relaes ps-coloniais de produo das obras literrias.
A pesquisadora Candida Soares da Costa (2013) entende que a educao
brasileira tem ao longo do tempo seguido a perspectiva de que o Brasil se faz por via de
uma nica histria. Essa viso, segundo ela, contribui para que se entenda a sociedade
de forma uniforme, dificultando que se compreenda a diferena como construo social
e tambm como fator de produo e naturalizao de desigualdades raciais. Para Costa,
esse posicionamento tem privilegiado contedos que valorizam a cultura europeia em
detrimento de conhecimentos acerca das culturas indgenas, africanas e de afro-
brasileiros.
Costa afirma que a educao proposta pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educao das Relaes tnico-Raciais a para o Ensino de Histria e Cultura
Afro-Brasileira e Africana implica o rompimento com essa perspectiva de via de mo
nica medida que prope uma recomposio curricular. Segundo ela, isso possibilita
a reconfigurao do entendimento e do imaginrio social sobre o povo brasileiro, a
compreenso sobre quo importantes foram e so os negros na construo e na contnua
reconstruo da nao brasileira. Ela realizou uma pesquisa com professores de diversas
reas e concluiu que muitos deles no trabalhavam esses temas em suas aulas. Um dos
motivos apurados foi a falta de formao inicial e continuada de professores para
contemplar essas questes. Para a autora, a falta de formao inicial uma das falhas
nos currculos do ensino superior, particularmente dos cursos de licenciaturas, tendo em
vista que a lei j est em vigor h mais de doze anos.
Divanize Carbonieri (2011), pesquisadora na rea de literatura africana de lngua
inglesa, assevera que atravs da literatura produzida no s no Brasil, como tambm nos
pases africanos, indianos, latino-americanos, entre outros, podemos conhecer alguns
aspectos culturais, estticos e histricos do desenvolvimento dessas sociedades. De
acordo com ela:
Em muitas universidades brasileiras, o currculo ainda se concentra
majoritariamente nas literaturas cannicas dos pases desenvolvidos
ou dos grupos dominantes. Isso produz uma situao em que os
estudantes no so instigados a questionar as estruturas atuais de
dominncia no mundo. Eles so at mesmo levados a considerar as
literaturas produzidas por esses pases e grupos como
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11611ISSN 2177-336X
4
hierarquicamente superiores a quaisquer outras. Para evitar esses
preconceitos, os estudantes universitrios brasileiros devem ser
expostos a um corpus literrio to mltiplo quanto possvel, incluindo
as literaturas ps-coloniais, as literaturas de grupos oprimidos e
tambm as literaturas tradicionalmente consideradas como cannicas.
Essas obras diferentes devem ser includas nos currculos
universitrios em termos iguais, desconstruindo quaisquer conceitos
prvios de hierarquia cultural ou literria (CARBONIERI, 2011, p.
12).
Assim, por meio da citao acima, possvel perceber que no h um descarte
da literatura cannica, mas que ela deve ser associada a outras literaturas de modo a
estabelecer dilogos e interaes com diferentes contextos. Concordamos com a
preocupao da autora ao apontar a falta de exposio de outro corpus literrio nos
cursos das universidades brasileiras, uma vez que na formao dos professores que
essas questes devem ser resolvidas de modo a repercutir positivamente em seus alunos
e, consequentemente, na sociedade como um todo.
Literaturas no-cannicas de lngua inglesa na universidade
Como j mencionado, as aulas de literaturas de lngua inglesa na universidade
ainda esto baseadas em cnones literrios. No entanto, tal paradigma de ensino tem-se
alterado em virtude do desenvolvimento e do florescimento dos estudos ps-coloniais.
Por meio da valorizao das diferenas culturais na contemporaneidade, as literaturas de
lngua inglesa, especialmente as oriundas de naes africanas, apresentam narrativas
ficcionais que abordam as hierarquias e as idiossincrasias sociais.
De acordo com Carbonieri (2016):
As obras literrias produzidas em contextos perifricos ou por grupos
marginalizados no podem mais fazer parte dos currculos apenas
numa posio complementar, apenas para sugerir uma diversidade
pacificada. Um corpo majoritrio e diversificado dessas produes
deve ser apresentado aos estudantes brasileiros, at porque o Brasil
um pas cuja maioria da populao composta de pessoas no
brancas, alm de apresentar uma infinidade de grupos sociais em luta
pelo reconhecimento de seus direitos e contra os preconceitos de que
so normalmente vtimas (CARBONIERI, 2016, p. 132-33).
Em virtude das diversidades culturais e sociais do Brasil, torna-se fundamental o
estudo e a pesquisa das obras literrias provenientes de contextos marginais, no s
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11612ISSN 2177-336X
5
como fonte de conhecimento das resistncias fsicas e psicolgicas de alguns povos
colonizados pelas potncias europeias, mas tambm como percepo dos hibridismos
provenientes dos longos processos de ocupao de suas terras e de transformao de
seus valores.
Ao se pensar na funo da literatura, Antonio Candido (2011) afirma que ela:
[e]st ligada complexidade da sua natureza, que explica inclusive o
papel contraditrio mas humanizador (talvez humanizador porque
contraditrio). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos trs
faces: (1) ela uma construo de objetos autnomos como estrutura e
significado; (2) ela uma forma de expresso, isto , manifesta
emoes e a viso do mundo dos indivduos e dos grupos; (3) ela
uma forma de conhecimento, inclusive como incorporao difusa e
inconsciente (CANDIDO, 2011, p. 178-79).
Nesse sentido, essas trs faces da literatura ficam ainda mais evidentes quando
se aborda o continente africano, pois a frica composta por sociedades que se
distinguem umas das outras de acordo com aspectos culturais, polticos, religiosos, etc.
Da mesma forma, o romance produzido por essas sociedades carrega em si suas
especificidades. Esse carter complexo do romance africano de lngua inglesa, com sua
ancestralidade dupla, sua multiplicidade de estilos, lnguas e estratgias literrias, torna-
o um objeto de estudo dos mais importantes na contemporaneidade.
A seguir, procederemos a um breve panorama sobre o romance africano de
lngua inglesa na contemporaneidade e sobre os romances da autora nigeriana
Chimamanda Ngozi Adichie, uma das representantes dessa gama de escritores da
literatura africana que tem se destacado no cenrio da literatura mundial contempornea.
O romance africano de lngua inglesa na contemporaneidade e a relao de
Chimamanda Ngozi Adichie com tal produo
Anna Pys (2011), ao investigar as particularidades dos primeiros romances
europeus (Dom Quixote de la Mancha [1614], de Miguel de Cervantes, e Robinson
Cruso [1719], de Daniel Defoe) e perceber em ambos a presena de heris individuais
em conflito com os valores modernos, constata que os romances africanos tambm
apresentam heris em conflito, embora seja um embate oriundo do movimento de
dominao do colonialismo. Nesse sentido, possvel afirmar que tais romances
carregam em si um tom poltico que, nas palavras da pesquisadora, est relacionado ao
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11613ISSN 2177-336X
6
papel dos escritores, os quais conhecem a fora do imperialismo desde a mais tenra
idade (PYS, 2011, p. 11). Por conseguinte, esses escritores, ao imprimirem
conscientemente, em suas obras, estrias africanas de cunho nacionalista, ampliam o
universo de possibilidades narrativas a respeito de indivduos e de locais dominados sob
feies nefastas ao longo de sculos. Pys tambm averiguou a responsabilidade do
leitor no contato com essa produo africana. No entendimento da estudiosa, o
desconhecimento que o leitor talvez sinta ao ler os romances de escritores africanos
interpretado de algumas maneiras:
Pode ser que, na escolha de se ler autores africanos, o leitor esteja
buscando algo novo, ou esteja procurando informaes sobre um
determinado pas e sua situao, ou esteja at mesmo satisfazendo a
fome pelo extico. Essa viso pode ser alterada por meio de
expresses que no so familiares aos leitores ocidentais. Se ler desse
modo, a dimenso social, que a literatura pode ter, diminuda. Claro
que precisa ser mantido em mente que a sociedade sobre a qual estou
aqui me referindo no a mesma que a expresso literria do leitor, e
pode estar muito longe disso tambm. Um exemplo de leitura
problemtica da literatura africana pode ser encontrado na maneira
como os autores africanos so interrogados sobre a autenticidade
(PYS, 2011, p. 21).
Os escritores africanos veem-se, h algum tempo, diante de situaes concretas
que os levam a se questionar sobre a existncia de uma autenticidade na literatura
africana. O rtulo do autntico ou do no autntico diminui sensivelmente o alcance
social dessa literatura, que se instalou no continente africano com a colonizao das
metrpoles europeias e que se desenvolveu principalmente, na maioria dos casos, a
partir das lutas pelas independncias. Qualquer viso unilateral a respeito da
crioulizao e hibridizao africanas decorrentes da intensa convivncia cultural entre
brancos e negros limita a livre expresso literria de vrios intelectuais africanos
representantes das produes artsticas em lnguas francesa, inglesa ou portuguesa.
Escrever narrativas africanas em lnguas no nativas parece ser um dos pontos centrais
da crtica ps-colonial.
Mia Couto (2005), escritor moambicano de grande participao no cenrio
literrio dos pases africanos de lngua portuguesa, no concorda com a ideia de se
pensar uma literatura africana com base na autenticidade de seu discurso. invivel, na
opinio do autor, reduzir um continente com dezenas de naes historicamente plurais
entre si a uma entidade simples, fcil de entender e de caber nos compndios de
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11614ISSN 2177-336X
7
africanistas (COUTO, 2005, p. 60). Desse modo, tal posicionamento espelha seu
pertencimento ao mundo mestio de sua terra onde os indivduos so urbanos de alma
mista e mesclada (COUTO, 2005, p. 61). A modernidade , por conseguinte, uma
realidade africana estilisticamente rica para o texto literrio. E, por acreditar nessa
concepo, Couto expe seus argumentos a respeito das exigncias em torno do escritor
africano:
Exige-se a um escritor africano aquilo que no se exige a um escritor
europeu ou americano. Exigem-se provas de autenticidade. Pergunta-
se at que ponto ele etnicamente genuno. Ningum questiona
quanto Jos Saramago representa a cultura de raiz lusitana.
irrelevante saber se James Joyce corresponde ao padro cultural desta
ou daquela etnia europeia. Por que razo os autores africanos devem
exibir tais passaportes culturais? Isso acontece porque se continua a
pensar a produo destes africanos como algo do domnio
antropolgico ou etnogrfico. O que eles esto produzindo no
literatura, mas uma transgresso ao que tido como tradicionalmente
africano (COUTO, 2005, p. 63).
Ao apresentar suas reflexes crticas, Couto lembra que uma das razes para a
cobrana de passaportes culturais dos escritores africanos se deve ao fato de que o
assunto ainda aparece como domnio de disciplinas, tais como a antropologia e a
etnografia. Saber o que e o que no africano integra a lista de investigaes
cientficas dessas duas reas do conhecimento humano. E por isso que Couto se
mostra insatisfeito com tal tratamento, pois enquanto a literatura africana estiver sob a
mira de olhos alheios diversidade de suas narrativas, as produes de seus escritores
dificilmente sairo do estigma da autenticidade. Ao direcionar a leitura para a figura do
escritor, Couto encerra seu ensaio com a seguinte afirmao: [o] escritor no apenas
aquele que escreve. aquele que produz pensamento, aquele que capaz de engravidar
os outros de sentimento e de encantamento (COUTO, 2005, p. 63). Em outras palavras,
o escritor caminha alm de sua escrita e nessa caminhada seus leitores captam as
emoes em palavras.
Half of a Yellow Sun considerado, por muitos crticos, como o mais bem
realizado romance de Adichie, de modo que ela delega a um narrador o poder de
apresentar as trajetrias de cinco personagens no contexto da Guerra de Biafra. A autora
inverte a ordem cronolgica dos acontecimentos ao propor a seguinte estrutura de
leitura: Parte 1 Incio dos anos 60; Parte 2 Fim dos anos 60; Parte 3 Incio dos
anos 60; e, enfim, Parte 4 Fim dos anos 60. Essa intermediao dos tempos ficcionais
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11615ISSN 2177-336X
8
contribui decisivamente para a complexidade do enredo, pois a ocorrncia dos fatos
sofre quebras temporais diga-se de passagem, propositais no trnsito de uma parte
outra. Em outras palavras, no h uma sequncia ou melhor, uma continuidade lgica
micro que ligue a parte um parte dois, esta, por sua vez, parte trs, e esta, em
seguida, parte quatro.
Entretanto, o que permite a conexo macro do enredo o encadeamento
posterior dos fatos; ou seja, o narrador, ao relatar determinado acontecimento na parte
um, d o devido prosseguimento na parte trs, sendo que o mesmo ocorre da parte trs
dois e desta quatro. Essa construo do tempo no romance um recurso estratgico
altamente significativo para a investigao da autora a respeito da sobreposio entre
tradio e modernidade no contexto nigeriano, rompendo com qualquer expectativa de
que uma coisa necessariamente surja da outra e de que haja uma evoluo ou
melhoramento no simples decorrer do tempo.
Como o prprio ttulo da obra j nos remete a um dos smbolos da bandeira da
Repblica de Biafra o meio sol amarelo, interpretado como a expectativa de futuro da
nao biafrense , a obra explora em detalhes o lado da populao igbo antes, durante e
imediatamente depois da guerra. Ugwu, Olanna e Richard so as personagens principais
que presenciam, ao lado de outros indivduos coadjuvantes, inmeras mudanas, tanto
internas quanto externas aos seus respectivos meios. Do trio em destaque, apenas o
terceiro no igbo; alis, ele no nem africano. Richard um jornalista britnico, que
subverte o comportamento tpico ingls por no ir at uma ex-colnia europeia com fins
lucrativos. Sua meta inicial escrever um livro sobre a ancestral arte Igbo-Ukwu. Em
sua caminhada instvel pelas terras nigerianas e biafrenses, ele percebe sutilmente, na
companhia de Kainene, a formao de sua identidade prxima do ideal igbo.
Concomitante a isso, ambos enfrentam o drama dos bombardeios areos ocasionados
pelo exrcito inimigo.
Todavia, os caminhos de Ugwu, Olanna e seu companheiro, Odenigbo todos
declaradamente igbos - parecem ser narrativamente mais dramticos do que para o
grupo anterior. O conjunto de Ugwu no financeiramente desprivilegiado, mas, por
renunciarem a privilgios de uma vida de elite, eles encontram mais obstculos no dia a
dia, especialmente aps a sada repentina de Nsukka em virtude dos ataques
provenientes das tropas nigerianas. Em relao a essa abordagem blica sob diferentes
matizes, Adichie assume uma posio crtica no que se refere representao das
situaes conflituosas em seu prprio romance: [q]uando eu escrevo sobre a guerra, eu
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11616ISSN 2177-336X
9
penso: isto somente perpetuar o esteretipo da frica como um lugar de guerra?
(ADICHIE, 2008, p. 47). Esse pensamento da escritora pertinente, pois apesar da
existncia de dezenas de fricas, cada uma com suas particularidades, as sociedades,
tanto ocidentais quanto orientais ainda conservam em seus imaginrios o esteretipo de
uma frica sem qualquer espcie de controle social, onde seus habitantes presenciam
frequentemente conflitos irrelevantes.
Realmente, abordar uma guerra nas pginas de um romance exige daquele que
escreve um cuidado sensvel com diversos elementos discursivos. A representao da
guerra, ao menos assim nos parece, necessita de um olhar humano que trate tal assunto
com o devido conhecimento. Nesse sentido, Adichie enumera, ao final de seu romance,
uma lista com a leitura de mais de 30 obras literrias a respeito da Guerra de Biafra.
provvel que tamanha sede por informaes venha de sua no vivncia direta durante os
meses de massacre, haja vista que ela s nasce em 1977, ou seja, 7 anos aps o
encerramento oficial da contenda entre nigerianos e biafrenses. As lembranas das
perdas materiais e imateriais de indivduos prximos a ela transitam como sombras
cotidianamente. Anderson Bastos Martins (2011), consciente da importncia que a
participao de uma jovem africana tem no atual ambiente ps-colonial de expresso
literria, afirma que:
[Adichie] representa uma das vrias oportunidades que o continente
africano possui hoje de reclamar para si o espao simblico
internacional que os sculos de explorao colonialista lhe negaram.
Ela a mulher negra que desconstri a gama de esteretipos que o
Ocidente disseminou a fim de justificar sua empreitada imperialista
(MARTINS, 2011, p. 111).
Tendo em vista que o professor dos cursos de licenciatura formador de futuros
profissionais que, por ventura, atuaro em sala de aula, deve-se pensar em possveis
caminhos para que esses graduandos possam ensinar seus futuros alunos.
Desse modo, Adichie proporciona a desconstruo de uma srie de ideias
ocidentais historicamente e literariamente incondizentes com os sujeitos africanos. Se
no passado de muitas naes africanas a metrpole inglesa utilizou, em larga escala, o
colonialismo como sua essencial mquina ideolgica de conquista dos indivduos
africanos, hoje, as novas geraes, filhas ou netas desses grupos duramente explorados
pela fora da mo de obra, possuem a chance de alcanar um panorama compatvel com
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11617ISSN 2177-336X
10
suas realidades simblicas em plena era da comunicao virtual. Portanto, Adichie
exemplifica uma dessas possibilidades de ressignificao do continente africano.
Uma das possveis formas de leitura da obra de Adichie o desenvolvimento de
um trabalho de interdisciplinaridade entre Histria e Literatura, especificamente sobre a
frica. Esse trabalho em conjunto levaria os discentes prtica do Letramento Crtico,
pois, ao mesmo tempo em que eles passam a conhecer as dinmicas de estruturao e de
composio dos estudos histricos e literrios, os acadmicos produzem novos sentidos
para as questes de descolonizao e de transculturao.
Consideraes finais
A leitura e o estudo de obras literrias no-cannicas proporcionam discusses e
reflexes fundamentais para a universidade. Esse exame de outros contextos culturais
deve se estender tambm realidade do Brasil, que um pas heterogneo em relao a
vrios aspectos socioculturais. Assim, consideramos de suma importncia que os cursos
de Letras, especialmente de ingls e portugus, incluam em suas grades curriculares
literaturas outras, que no as convencionais, no sentido de contribuir para a formao de
professores mais crticos em relao s estruturas de poder que atuam por trs dos textos
cannicos e que, talvez inconscientemente, so repetidas de gerao em gerao.
Desse modo, propusemos o debate e o trabalho de interdisciplinaridade nas aulas
de literaturas de lngua inglesa por acreditarmos que o mesmo pode auxiliar os
acadmicos a desenvolver uma viso mais tolerante do mundo e de seu prprio
contexto, algo fundamental para suas vidas e tambm para o seu exerccio como
docentes da educao bsica.
Referncias
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Half of a Yellow Sun. New York: Harper Perennial,
2007 [2006].
CARBONIERI, D. O romance africano de lngua inglesa na contemporaneidade.
Projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Estudos da
Linguagem na rea de Estudos Literrios e na linha de pesquisa Literatura, outras artes,
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11618ISSN 2177-336X
11
memrias e fronteiras: faces regionais. Cuiab: UFMT, 2011. Disponvel em:
www.ufmt.br/.../37917fb11fb6c06aa87bf10c5dfba86. Acesso em 15/03/2016.
CARBONIERI, Divanize. O letramento crtico e as teorias ps-coloniais no ensino das
literaturas de lngua inglesa. In: JESUS, Dnie Marcelo de; CARBONIERI, Divanize
(orgs.). Prticas de multiletramentos e letramento crtico: outros sentidos para a sala
de aula de lnguas. Coleo: Novas Perspectivas em Lingustica Aplicada. vol. 47.
Campinas: Pontes Editores, 2016.
COSTA, C. S. LEI N 10.639/2003: dez anos de implementao do currculo de
educao das relaes tnico-raciais. Momento, v. 22, n. 1, jan./jun. 2013, PP. 17-34.
COUTO, Mia. Pensatempos. Textos de Opinio. Lisboa: Caminho, 2005.
MARTINS, Anderson Bastos. Interldio. Duas mulheres nigerianas, uma experincia
privada. Olho dgua, So Jos do Rio Preto, v. 3, n. 2, 2011, p. 105-112.
PYS, Anna. The end of a single story? The post-colonial African novel and society.
2011. Disponvel em:
http://cabodostrabalhos.ces.uc.pt/n6/documentos/01AnnaPoysa.pdf. Acesso em:
15/05/13.
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11619ISSN 2177-336X
http://www.ufmt.br/.../37917fb11fb6c06aa87bf10c5dfba86
12
A LITERATURA MARGINAL COMO MEDIADORA NO ENSINO-APRENDIZAGEM
DE LNGUA INGLESA E NO FOMENTO DO PENSAMENTO CRTICO
Valdirene Baminger Oliveira - UFMT
Joo Felipe Freitas - UFMT
Resumo: Considerando a importncia de se pensar em propostas didticas que contemplem as
demandas advindas das recentes mudanas nos sistemas escolares, em especial no que tange s
interdisciplinaridades e afins e, ainda, diante do desafio que o processo de ensino-
aprendizagem de lngua inglesa nas escolas pblicas de todo pas, este trabalho objetiva tecer
reflexes acerca de uma proposta didtica que alie a literatura considerada marginal, escrita em
ingls, ao processo de ensino-aprendizagem dessa lngua. Associado a isso, pretende-se
demonstrar a relevncia dessa proposta ao contribuir para o fomento do pensamento crtico nos
alunos do ensino mdio, o que bastante profcuo em um momento em que eles esto se
preparando para o Exame Nacional do Ensino Mdio ENEM, ou para o vestibular. Para tanto,
propomos a anlise de recortes de uma obra africana, o romance Maru (1971), escrito em lngua
inglesa pela autora sul-africana Bessie Head. Nesse romance, Head explora temas ligados
diferena, s inter-relaes raciais, ao papel da mulher naquela sociedade, xenofobia e ao
bullying, entre outros. A escolha da obra justifica-se ento pela oportunidade de extrapolar as
fronteiras do campo lingustico, estabelecendo relaes entre a narrativa e o contexto social em
que os alunos esto inseridos, bem como por apresentar, a nosso ver, uma linguagem prxima
da compreenso dos estudantes dessa faixa etria. O embasamento terico ser fornecido por
PIMENTA (2013), PETERSON e COX (2008), CANDIDO (1995), IZARRA e DI CNDIA
(2007), PERIN (2005) e tambm pelas Organizaes Curriculares para o Ensino Mdio -
OCEM (2006).
Palavras-chave: literatura marginal; ensino-aprendizagem; lngua inglesa
Introduo
De acordo com Selma Garrido Pimenta (2013), a didtica uma rea da pedagogia que
estuda o fenmeno ensino. Sendo assim, entendemos que esse fenmeno abrange suas
diversas reas, envolvendo tanto o ensino em lngua materna, quanto em lngua estrangeira. A
autora se refere a uma exploso didtica ao destacar as recentes modificaes nos sistemas
escolares, em especial na formao de professores, e afirma que [s]ua ressignificao aponta
para um balano do ensino como prtica social, das pesquisas e das transformaes que tm
provocado na prtica social de ensinar (PIMENTA, 20131). Ela ainda questiona: em que
medida os resultados das pesquisas tm propiciado a construo de novos saberes e engendrado
novas prticas, superadoras das situaes das desigualdades sociais, culturais e humanas
produzidas pelo ensino e pela escola? Na tentativa de responder a essa pergunta, ela sugere a
unio de foras coletivas em diversos mbitos e contextos, entre pesquisadores e professores e
1 Essa citao foi retirada de uma postagem do site do ENDIPE 2016, conforme descrio nas referncias
e, por isso, no consta o n da pgina.
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11620ISSN 2177-336X
13
instituies vrias, cujo intuito seria o de se efetivar anlises e investigaes que envolvam
equipes multi, inter e transdisciplinares do fenmeno educativo de ensinar, no para a
delimitao de territrios, mas para significar a atividade cientfica que se volta para a educao
como partcipe da construo de uma sociedade humana mais justa e igualitria (PIMENTA,
20132).
Diante dessa perspectiva, nota-se a importncia de propostas didticas que visem
potencializar o ensino de modo a formar cidados mais crticos e participativos em sua
sociedade. Assim sendo, acreditamos que o processo de aquisio de uma nova lngua por
meios no convencionais, como o que est sendo proposto, pode ser uma alternativa interessante
por oferecer a oportunidade de se aprender - por meio de narrativas - no apenas as quatro
habilidades a que geralmente o aluno exposto (ler, escrever, falar e ouvir), mas,
principalmente, a refletir sobre prticas que contribuam para a construo dessa sociedade
humana mais justa e igualitria a que se refere Pimenta. No entanto, necessrio ter em mente
que o processo de ensino-aprendizagem de lngua inglesa no Brasil, especialmente no que tange
escola pblica, tem ainda grandes desafios a serem transpostos.
De acordo com Assis-Peterson e Cox (2008), nunca houve em nenhum outro momento
da histria a necessidade de compartilhamento de uma lngua comum quanto agora, graas
internet e globalizao. Apesar disso, o quadro do ensino-aprendizagem da lngua inglesa nas
escolas pblicas brasileiras ainda deixa muito a desejar. bem verdade que alguma coisa j foi
feita no sentido de melhorar essa situao. Segundo as autoras, ao contrrio do que acontecia no
passado, hoje o ingls tornou-se a lngua estrangeira hegemnica no currculo da escola pblica
brasileira, sendo inclusa na grade curricular a partir da antiga quinta srie do ensino
fundamental (que hoje o sexto ano), e do ensino mdio (ASSIS-PETERSON E COX, 2008, p.
23).
No entanto as condies em que as aulas de lngua so ministradas ainda so bastante
precrias, uma vez que se resumem uma hora-aula semanal, quase sempre dada por um
professor de outra rea, que est ali apenas para completar sua carga-horria. Para completar, a
disciplina no tem carter reprovativo, o que, segundo as autoras, demonstra o descaso com a
mesma (ASSIS-PETERSON E COX, 2008, p. 27; 47).
H ainda que se pensar o problema a partir de uma viso mais especfica sobre o papel
do aluno, uma vez que ele tambm est inserido nesse contexto e muitas vezes no levado em
considerao, em face da diversidade de assuntos que permeiam o universo do ensino-
aprendizagem de lngua inglesa na escola pblica.
Segundo Perin (2005),
2 Idem.
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11621ISSN 2177-336X
14
apesar de reconhecerem a importncia de se saber ingls, os alunos
tratam o ensino de lngua inglesa na escola pblica ora com desprezo,
ora com indiferena, o que causa na maioria das vezes a indisciplina
nas salas de aula [...]. [...] o professor trabalha com a sensao de que
o aluno no cr no que aprende, demonstrando indisciplina e
menosprezo pelo o que o professor se prope a fazer durante a aula.
(PERIN, 2005, apud ASSIS-PETERSON, 2006, p. 150).
Nota-se, portanto, que em alguns casos os alunos nem sabem por que ou para qu eles
precisam aprender ingls e, quando sabem, nem sempre valorizam esse aprendizado. Talvez isso
ocorra devido ao histrico negativo que vem sendo apresentado ao longo dos anos, mas ainda
assim de suma importncia que haja mais reflexes e aes que contribuam para uma
mudana nesse panorama. Dentre essas aes est a proposta de ensino da lngua inglesa
mediado pela literatura.
Entretanto, h ainda outro fator extremamente relevante que sustenta o nosso
argumento: o desafio de tornar a literatura atrativa para os alunos. Segundo Aline Akemi Nagata
(2008) em seu artigo Multiculturalismo e literatura: as fronteiras do currculo oficial
De fato, na mente de muitos alunos, especialmente do Ensino Mdio,
que se vem s voltas com leituras que objetivam o preenchimento de
fichas na escola, ou ao cumprimento de uma imensa lista imposta
pelos grandes vestibulares, a Literatura mesmo amaldioada e intil
(NAGATA, 2008, p. 1).
Diante disso, a escolha da obra a ser utilizada de suma importncia, uma vez que os
alunos parecem ter certa rejeio pelos textos literrios. No entraremos aqui no mrito das
questes que permeiam a situao do ensino de literatura no ensino mdio das escolas pblicas
brasileiras, porque no esse o nosso objetivo neste momento, mas, torna-se necessrio
primeiramente entender qual a funo da literatura, para depois considerarmos de que forma
ela poder ser utilizada para mediar o processo de ensino-aprendizagem da lngua inglesa e no
fomento do pensamento crtico.
A funo da Literatura e a Literatura Marginal
Para Antnio Cndido (1995), a funo da literatura est ligada complexidade da sua
natureza, o que explica o seu papel contraditrio, porm humanizador. Para ele a literatura
confirma e nega, prope e denuncia, apia e combate, fornecendo as possibilidades de vivermos
dialeticamente os problemas (CANDIDO, 1995, p. 243). Assim, a vasta gama de temas
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11622ISSN 2177-336X
15
oferecidos pelo universo literrio corrobora o desenvolvimento e reafirma a relevncia da
formao do pensamento crtico, uma vez que a literatura tem papel formador de
personalidade, mas no segundo as convenes; seria antes a fora indiscriminada e poderosa da
prpria realidade (CANDIDO, 1995, p. 243).
Candido considera ainda o direito literatura to importante quanto os direitos
humanos, ao afirmar que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser
satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e
viso do mundo, ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto nos humaniza (CANDIDO,
1995, p. 256). Ainda segundo o autor, as classes minoritrias so discriminadas por no terem
acesso a uma educao de qualidade, especialmente no que tange literatura que, para ele, um
poderoso instrumento de educao e instruo. Assim, conhecer e aprender literatura permite
que o indivduo tome posio diante das injustias sociais e tenha um carter mais crtico e
desafiador. Portanto, de suma importncia que nossos jovens possam ter acesso a esse
universo to cheio de possibilidades, principalmente em um momento em que esto se
preparando para o vestibular ou para o Exame Nacional do Ensino Mdio ENEM, como o
caso dos estudantes de ensino mdio.
Para as Organizaes Curriculares para o Ensino Mdio - OCEM, uma das marcas da
literatura :
[s]ua condio limtrofe, que outros denominam transgresso, que
garante ao participante do jogo da leitura literria o exerccio da
liberdade, e que pode levar a limites extremos as possibilidades da
lngua:
E nisso reside sua funo maior no quadro do ensino mdio: pensada
(a literatura) dessa forma, ela pode ser um grande agenciador do
amadurecimento sensvel do aluno, proporcionando-lhe um convvio
com um domnio cuja principal caracterstica o exerccio da
liberdade. Da, favorecer-lhe o desenvolvimento de um
comportamento mais crtico e menos preconceituoso diante do mundo.
(OSAKABE, 2004 apud OCEMs 2006, p. 50).
Nesse sentido, o texto aproxima-se do objetivo proposto neste trabalho na medida em
que, ao explicar a funo da literatura, demonstra a sua relevncia para o desenvolvimento da
criticidade dos alunos e a importncia do exerccio da liberdade frente s questes que
permeiam a sociedade na qual eles esto inseridos, o que pode lev-lo a ser um agente
transformador desta sociedade. Mas h que se indagar: de qual tipo de literatura estamos
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11623ISSN 2177-336X
16
tratando? possvel aprender lngua inglesa e, ao mesmo tempo, desenvolver o pensamento
crtico atravs de textos literrios? E de que maneira o professor pode aproximar a literatura do
cotidiano do aluno?
Acreditamos que essa proposta possvel de ser desenvolvida com a maioria dos textos
literrios. No entanto, aqui, estamos priorizando as chamadas literaturas marginais, que so as
literaturas que no esto includas no cnone literrio, geralmente ocidentalizado. So poemas,
narrativas ou outros gneros literrios produzidos na margem do centro hegemnico
eurocntrico. Podemos citar como exemplo as literaturas produzidas na frica, na sia, na
Oceania, na Amrica Latina, entre outras. Dentre essas literaturas, ressaltamos as literaturas
africanas escritas em lngua inglesa, uma vez que so oriundas de pases que foram colonizados
pelos ingleses, como a Nigria e a frica do Sul, por exemplo.
Assim, ao escolher um romance da autora sul-africana Bessie Head, direcionamos o
nosso olhar para esse tipo de literatura, sob uma perspectiva crtica ps-colonial, para analisar as
questes que envolvem a narrativa, bem como para destacar as particularidades de uma lngua
inglesa advinda no do centro, mas da periferia. Tencionamos com isso mostrar aos alunos que
a lngua inglesa, diferentemente do que geralmente ensinado nas escolas de idiomas, tambm
procedente de outros locais que no a Inglaterra, os Estados Unidos, ou o Canad, entre outros
centros hegemnicos. O objetivo aqui lev-los a refletir sobre as questes de poder que
envolvem a aquisio de uma segunda lngua e noo de que, assim como outras lnguas, a
inglesa tambm advm de pases como os da frica, da ndia e de outros continentes. Essa
noo contribui para a formao de cidados mais crticos e atuantes, que lutam pelos prprios
direitos, reivindicam maior liberdade de pensamento e expresso e rejeitam o conformismo
diante das classes dominantes.
Aliando a literatura marginal ao ensino de lngua inglesa
Para Laura Izarra (2007), ao estudar a lngua inglesa por meio do texto literrio, ns
atravessamos as fronteiras das estruturas lingsticas e culturais e rompemos com a mera
repetio do pensamento alheio, construmos novas estruturas interativas que possibilitam
dilogos crticos entre diferentes culturas e sujeitos, alm de permitir que professores e alunos
atuem em um processo de releitura, detectando os discursos dominantes e reescrevendo contra-
discursos que afirmariam suas prprias identidades.
O que pretendemos demonstrar com isso que tanto alunos quanto professores podem
contribuir ensinando e aprendendo a lngua inglesa de uma forma dinmica, interativa e
colaborativa, em que no apenas o professor, mas tambm os alunos tenham a oportunidade de
expressar suas idias e opinies, concordando ou no com aquilo que est sendo ensinado. A
obra de Izarra e di Candia (2007) apresenta uma discusso sobre diversas maneiras de ensinar
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11624ISSN 2177-336X
17
lngua inglesa por meio da literatura, seja por meio de narrativas, contos, romances ou poesia.
Aqui utilizamos o gnero romance como modelo para a elaborao dessa proposta. Izarra (2007)
postula que este formato de aula
[...] uma alternativa inovadora de aprendizagem que permite o
discernimento de diferentes modos culturais e usos da lngua inglesa
nas suas prticas sociais. Conseqentemente, o aluno desenvolver
uma agncia direta na construo do conhecimento e de um
pensamento crtico na interao com as diversas vises de mundo. [...]
o diferencial est no uso do texto literrio como mediador na
transposio das fronteiras do campo lingstico e no acesso ao mundo
das idias, das emoes e do conhecimento das prticas culturais a
partir de um posicionamento crtico contextualizado social e
historicamente (IZARRA, 2007, p. 9).
Assim, por meio do texto literrio e de atividades didticas especficas, previamente
formuladas para interagir com o contexto da obra, os estudantes so estimulados a desenvolver
as habilidades lingusticas e a criticidade, permitindo que eles se tornem sujeitos de seu prprio
discurso, uma vez que podero compreender melhor o seu mundo.
Como mencionado anteriormente, o gnero escolhido para esta proposta a narrativa,
por meio de um recorte da obra Maru, de Bessie Head. O racismo, a xenofobia, as questes de
gnero, diferena e resistncia, so caractersticas marcantes nos romances da escritora sul-
africana Bessie Head. O romance foi publicado pela primeira vez em 1971. No ano seguinte
Maru passou a ser publicado pela editora Heinemann African Writers Series, pela qual, desde
ento, tem sido reimpresso, originando diversas edies. A obra, a princpio, foi escrita para ser
utilizada pelas escolas de Botswana, mas acabou transcendendo esses limites e posteriormente
teve os direitos vendidos para uma pequena empresa cinematogrfica que o transformou em
filme. Maru tambm acabou dando origem a trs peas teatrais, o que demonstra sua grande
aceitao pelo pblico em geral.
Apesar de ser um romance curto, de apenas 103 pginas, Head consegue construir uma
trama slida, com fortes argumentos, pautados principalmente na histria de quatro personagens
centrais, dois homens e duas mulheres, e suas relaes ambguas de amor e dio. As questes
ligadas ancestralidade, s tradies e aos costumes tribais formam o pano de fundo da
narrativa, que tem como foco principal a chegada de Margaret quela comunidade para lecionar
na escola local. Esse fato ser o elemento desestabilizador da rotina na vila de Dilepe e que vai
colocar em cheque os relacionamentos de amor e amizade existente entre os personagens
principais.
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11625ISSN 2177-336X
18
A narrativa comea a partir do final da histria e depois segue para o incio, com o
nascimento de uma menina Masarwa cuja me morre no parto. As pessoas dessa etnia eram
consideradas intocveis pelos habitantes de Botswana, que os viam como seres irracionais,
prximos dos animais. Por isso, as prprias enfermeiras tinham ojeriza de tocar no corpo da
mulher morta. Ao se deparar com aquela situao, a missionria inglesa do hospital, Margaret
Cadmore, assume a funo de preparar o corpo para o enterro e, com pena da criana, decide
adot-la e dar a ela o seu prprio nome: Margaret Cadmore. A missionria tenciona fazer da
pequena Margaret um experimento, educando-a conforme os padres da educao inglesa e
inculcando na mente da garota que ela deve orgulhar-se de sua origem para que, um dia, possa
lutar por seu prprio povo.
Assim, Margaret Cadmore, a filha, cresce aprendendo no apenas a ler e a escrever,
mas tambm a pintar e a comportar-se como uma dama inglesa independente. No entanto, ao
completar a maior idade, a mulher que ela considerou como me, durante toda a vida, parte de
volta para a Inglaterra, deixando-a sozinha com seus conhecimentos. Embora tenha vivido por
longo tempo com a famlia da missionria, Margaret sempre foi uma pessoa solitria. O
isolamento uma das formas frequentemente utilizadas por Head como um recurso para lidar
com a rejeio e o preconceito.
Margaret decide lecionar em Dilepe e a partir desse ponto que a narrativa torna-se
mais complexa. O fator complicador a etnia da personagem, uma vez que o povo Basarwa
compe a maioria dos servos e escravos que trabalham para os moradores daquela comunidade.
Esse fato acaba por dividir as opinies dos habitantes do lugar, especialmente da alta sociedade
da vila. Eles temem pela paz e estabilidade, pois, de seu ponto de vista, como uma mulher do
povo Basarwa poderia ensinar alguma coisa se eles eram considerados um povo que no sabia
pensar? E, se aquela jovem professora conseguiu tal faanha, seria possvel que todos os outros
tambm conseguissem? Assim, ela poderia tornar-se uma herona para seu povo e talvez at
inspirar uma rebelio entre os Basarwa e, nesse caso, quem iria trabalhar para eles? Por isso,
Margaret era vista pela maioria como uma ameaa. possvel nesse ponto fazer correlaes
com a realidade dos estudantes quanto importncia de se refletir sobre as diferenas, sejam
elas de cor, de etnia, de classe, de gnero ou religiosas.
Os quatro personagens principais so fortemente ligados pelo amor de uns pelos outros,
mas tambm pelo dio, uma vez que Dikeledi ama Moleka, que ama Margaret, que tambm o
ama. Simultaneamente, Maru se apaixona por Margaret, dando incio a uma situao silenciosa
insuportvel em que todos se amam em segredo e precisam lutar contra esses sentimentos
contraditrios de amor e dio (provocados pelos cimes).
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11626ISSN 2177-336X
19
A trama revela os traos contrastantes entre as duas amigas: Margaret e Dikeledi. A
primeira precisa lutar para conseguir o seu espao dentro de uma sociedade racista e opressora,
sem abrir mo de sua identidade racial. A segunda, apesar de ser uma mulher independente, que
trabalha, dirige e se relaciona de uma forma bastante liberal com os homens, precisa suportar os
efeitos de uma sociedade machista e patriarcal, ao mesmo tempo em que luta pelo amor de
Moleka, o maior representante dessa sociedade.
Da mesma forma, h um forte contraste entre os dois jovens Moleka e Maru. Enquanto
Moleka conhecido por colecionar casos amorosos e por uma grande quantidade de filhos que
so deixados para serem criados pela me dele (sem, no entanto, assumir nenhuma dessas
mulheres como sua esposa), Maru mais atencioso e consegue entregar-se verdadeiramente ao
amor. Os dois jovens so amigos e o nico motivo pelo qual s vezes se desentendem por
causa das conquistas amorosas em comum, mas isso vai mudar com a chegada de Margaret,
pois dessa vez nenhum dos dois pretende perder. Ambos so ricos pecuaristas e candidatos ao
cargo de futuro chefe da vila de Dilepe, mas esto dispostos a arriscar tudo pelo amor de uma
jovem Masarwa (singular de Basarwa, na lngua Tswana).
De acordo com as OCEM (2006) o desenvolvimento da leitura, da comunicao oral e
da escrita, desde o 1 at o 3 ano do ensino mdio, devem ser priorizados. Contudo, h uma
nfase para que, no terceiro ano, o desenvolvimento da leitura seja intensificado a fim de ajudar
os alunos que esto se preparando para o vestibular. Entendemos, no entanto, que essa opo
no deve desconsiderar o carter da leitura como prtica cultural e crtica de linguagem, um
componente essencial para a construo da cidadania e para a formao dos educandos
(BRASIL, 2006, p. 111; 112).
H tambm uma sugesto para que as aulas de lngua estrangeira sejam trabalhadas a
partir de temas como: cidadania, diversidade, igualdade, justia social,
dependncia/interdependncia, conflitos, valores, diferenas regionais/nacionais. Acreditamos
que o fato de a narrativa tratar da questo da diferena racial e apresentar personagens jovens
que se envolvem sentimentalmente entre si, permite que os alunos team certa identificao com
as personagens, seja positiva ou negativamente, o que poderia despertar um interesse maior do
aluno pela proposta. Alm disso, a obra escolhida atende proposta de temas sugeridos pelas
OCEM, uma vez que ela retrata as diferenas e injustias sociais, a diversidade e os valores dos
indivduos e da sociedade.
Assim, o que propomos, num primeiro momento, a leitura completa do romance em
ingls, uma vez que o mesmo considerado um short novel, com apenas 103 pginas. Essa
leitura pode ser feita em sala de aula, paulatinamente, em voz alta pelos alunos que se
dispuserem voluntariamente para faz-lo, evitando-se assim constranger os alunos mais tmidos
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11627ISSN 2177-336X
20
e criando situaes em que a pronncia pode ser avaliada. A partir da alguns trechos podem ser
recortados da obra a fim de serem trabalhados os aspectos especficos da lngua, bem como de
compreenso e interpretao de texto.
Aqui, escolhemos para citar como exemplo um trecho da narrativa que trata de
uma questo bem prxima da realidade de alguns alunos. A narrativa retrata o horror
que os habitantes de Botswana sentiam em relao ao povo Basarwa, a ponto de nem as
crianas escaparem de se tornarem agentes a servio da discriminao. O excerto abaixo
revela que Margaret, desde menina, sentia literalmente na pele os efeitos do
preconceito racial, como segue:
He walked in at the door and said, softly: "My sweetheart".
They were the most precious words, if you only knew the horror of
what could pour out of the human heart; a horror that seemed most
demented because the main perpetrators of it were children and you
were a child yourself. Children learnt it from their parents. Their
parents spat on the ground as a member of a filthy, low nation passed
by. Children went a little further. They spat on you. They pinched you.
They danced a wild jiggle, with the tin cans rattling: "Bushman! Low
Breed! Bastard! (HEAD, 2008, p. 5). 3
Observamos, por meio do trecho acima citado, que a personagem sofria o que
atualmente conhecemos como bullying. O texto ento pode ser utilizado para se discutir essa
questo, alm de se analisar, obviamente, as questes lingusticas e gramaticais presentes nesse
excerto da obra, como por exemplo: identificar o verbo to be no passado; verificar a presena de
pronomes, adjetivos e conectivos e como e quando so utilizados, etc.
Entretanto, h uma sugesto na obra de Izarra e di Cndia para que seja feita uma
atividade prvia relacionada ao recorte da narrativa que ser trabalhado, que prepare o aluno
para o conhecimento que est por vir. Essa atividade pode envolver tanto as questes voltadas
para a compreenso lingstica quanto para discusses ligadas a um determinado tema. As
3 Ele entrou na porta e disse, em voz baixa: "Minha querida".
Essas eram as palavras mais preciosas, se voc apenas sabia o horror do que poderia sair do corao
humano; um horror que parecia mais demente porque os principais perpetradores eram crianas e voc era
uma criana tambm. As crianas aprendiam com seus pais. Seus pais cuspiam no cho quando um
membro de uma imunda e baixa nao passava. As crianas iam um pouco alm. Elas cuspiam em voc.
Elas beliscavam voc. Elas danavam uma dana selvagem, chacoalhando latas e gritando: "Bushman!
Raa Baixa! Bastarda! (HEAD, 2008, p 5, traduo nossa)
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11628ISSN 2177-336X
21
autoras sugerem tambm que haja uma atividade ps-texto, como por exemplo, solicitar que os
alunos discutam a questo da construo identitria das personagens frente s sociedades
racistas, opressivas e excludentes com as quais elas convivem e relacionando-as com a realidade
deles. Pode-se indagar: quais os efeitos dessas formas de racismo sobre as personagens? Como
construda a identidade racial/social da protagonista? Como as mulheres so representadas na
obra e qual a relevncia dessa representao para as questes de gnero?
Assim, por meio de atividades pr e ps-textuais o professor ou a professora otimiza o
aprendizado do aluno de modo que, ao entrar em contato com a obra, este no sinta um
estranhamento, mas consiga reconhecer alguns aspectos que possibilitem um aprendizado mais
eficaz.
Consideraes Finais
H algum tempo, em uma experincia como professora de ingls no ensino mdio de
uma escola pblica, percebi que o retrato apontado por Assis-Peterson e Cox no era apenas
uma teoria, mas uma triste realidade. Encontrei alunos desmotivados, salas superlotadas, com
estrutura precria e muitas reclamaes dos alunos em relao dificuldade de aprender a
lngua. Percebi que o principal problema, fora os j mencionados, era que o livro que eles
precisavam utilizar era muito bom, no entanto apresentava um contedo para alunos com um
nvel de ingls muito acima do que o que aqueles alunos possuam, que na verdade era quase
nenhum. Havia ento uma distncia enorme entre o ideal e o real e essa distncia parecia
intransponvel naquele momento.
Assim, comecei a refletir sobre uma maneira de ensinar-aprender ingls que aliasse o
aprendizado de lngua a algo que eles de fato se interessassem, o que a meu ver tiraria um pouco
o foco da temida gramtica colocando-o sobre outras questes, sem, no entanto, deixar de
cumprir com o principal propsito de uma aula de ingls. Investigando possveis teorias que
embasassem esse pensamento deparei-me com o livro das pesquisadoras Laura Izarra e Michela
Di Cndia, no qual encontrei exatamente o que precisava para dar forma ao projeto: o ensino de
lngua inglesa mediado por textos literrios. Elaborei ento, juntamente com uma colega
tambm professora de ingls, um mini curso com durao de uma semana, em que tive a
oportunidade de testar essa proposta e no qual, por meio de um questionrio de feedback dos
alunos, percebemos que uma proposta possvel.
No quero afirmar, com isso, que existe uma receita pronta. O que pretendo aqui
apenas sugerir a viabilidade de uma proposta didtica que visa associar o processo de ensino-
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11629ISSN 2177-336X
22
aprendizagem de ingls s literaturas no cannicas de lngua inglesa, ao mesmo tempo em que
forja nos alunos o despertar do senso crtico e, talvez, um interesse maior pela literatura.
Ressaltamos ainda que consideramos essa proposta vivel porque no depende de nada mais
alm do que o que professor j dispe para trabalhar: uma sala de aula, textos literrios
(atualmente obtidos facilmente por meio da internet) e alunos. Assim, ainda que esta seja apenas
uma proposta, a inteno aqui contribuir para o dilogo entre saberes de diversas naturezas a
fim de que, tanto alunos quanto professores, encontrem alternativas para as questes que
envolvem o ensino-aprendizado de lngua inglesa, especialmente para os alunos do ensino
mdio das escolas pblicas brasileiras.
Referncias
ASSIS-PETERSON, A. A. (org.). Lnguas estrangeiras para alm do mtodo. So Carlos:
Pedro & Joo Editores /Cuiab: EdUFMT, 2008.
ASSIS-PETERSON, A. A.; DIAS, M.H.M. O ingls na escola pblica: vozes de pais e alunos.
Polifonia. Cuiab, EdUFMT. V. 12, n. 2, p. 107-128, 2006. Disponvel em:
. Acesso em: 05 mar. 2013.
BRASIL, Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio: conhecimentos de literatura.
Braslia: Ministrio da Educao, 2006.
BRASIL, Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio: conhecimentos de lnguas
estrangeiras e letramento. Braslia: Ministrio da Educao, 2006.
CANDIDO, A. Vrios escritos. 3 ed. rev. e ampl. So Paulo: Duas cidades, 1995.
IZARRA, L. P. Z., Di CNDIA, M. R. (orgs.). Ensino de Lngua Inglesa Atravs do Texto
Literrio. So Paulo: Associao Editorial Humanistas, 2007.
NAGATA, A. A. Multiculturalismo e literatura: as fronteiras do currculo oficial. So Paulo:
Rumores/USP, ed. 3, 2008.
PIMENTA, S. G. Extrato da postagem: Epistemologia da prtica: ressignificando a didtica.
Cuiab: ENDIPE 2016. Disponvel em:
http://www.ufmt.br/endipe2016/?s=Selma+Garrido+Pimenta. Acesso em 15/03/2016.
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11630ISSN 2177-336X
http://www.ufmt.br/endipe2016/?s=Selma+Garrido+Pimenta
23
LITERATURAS DE TEMTICA AFRICANA E AFRODESCENDENTE NA
EDUCAO BSICA: UMA VISO DESCOLONIZADORA DAS QUESTES
RACIAIS
Sheila Dias da Silva Laverde (SME/UFMT)
Valdirene Baminger Oliveira (UFMT)
RESUMO: Pretende-se, com este artigo, apresentar uma proposta didtica, utilizando
as obras literrias de temtica africana e afrodescendente que fazem parte dos
ACERVOS COMPLEMENTARES Alfabetizao e letramento nas diferentes reas do
conhecimento PNLD/PNBE, enviados pelo MEC em 2013 para as escolas pblicas
da Educao Bsica. Vale ressaltar que essas literaturas vieram especificamente para as
turmas dos primeiros anos do primeiro ciclo. Acreditamos que ao trabalhar com essas
literaturas em sala de aula, seja por meio da leitura deleite, seja pelas rodas de histrias,
seja ainda atravs de projetos interdisciplinares, elas possam contribuir na valorizao
das culturas e histrias dos povos africanos e afrodescendentes e na promoo da
igualdade racial. Objetivamos tambm, ao longo do texto, propor novos modos de
anlise e interpretao que auxiliem o professor da educao bsica em seu trabalho
com essas literaturas. A partir de uma abordagem ps-colonial e decolonial, busca-se
tambm verificar em que medida estratgias narrativas escolhidas pelos autores dessas
narrativas foram efetivas para a realizao desses objetivos. Investigaremos ainda de
que forma essas literaturas contribuem para a descolonizao das relaes raciais e da
viso hierarquizada a respeito das culturas africanas e afrodescendentes e, se por
ventura, alguns esteretipos continuam sendo reforados.
Palavras-chave: Questes Raciais, literaturas de temtica africana e afrodescendente,
educao bsica.
Introduo
Em 2003, foi aprovada a lei que torna obrigatrio o ensino de histria e cultura
africana e afro-brasileira nas escolas pblicas de todo o pas. A lei n 10.639/2003
uma pequena vitria nessa incessante luta. Aps cinco anos, foi alterada pela lei n
11.645, com vistas a contemplar no currculo escolar contedos referentes tambm aos
indgenas brasileiros. Essa alterao no anula a lei anterior, mas cumpre o papel de
ampliar aos indgenas os direitos conquistados pelo Movimento Negro que j se
encontravam garantidos na LDB atual. Como afirma Patrcia Teixeira Santos (2012), os
movimentos sociais e antirracistas brasileiros defendiam desde os anos 1970 que esses
temas fossem includos nos currculos das escolas pblicas brasileiras e tambm nas
universidades. Para ela, a lei coloca esse contedo como um importante passo das
polticas de ao afirmativa de reparao histrica dos crimes do racismo. Ao mesmo
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11631ISSN 2177-336X
24
tempo, exige no mesmo nvel o engajamento da pesquisa acadmica em torno do tema
(SANTOS, 2012, p. 116).
Nilma Lino Gomes (2012) considera que a lei fruto da reinvindicao do
Movimento Negro e de organismos da sociedade civil, de educadores e intelectuais
comprometidos com a luta antirracista. Essa pesquisadora, que tambm a atual
ministra da Cidadania, compreende essa lei como uma resposta do Estado s demandas
sociais em prol de uma educao democrtica, que vislumbra no direito diversidade
tnico-racial um dos pilares pedaggicos do pas, sobretudo, quando se valorizam a
proporo significativa de negros na composio da populao brasileira e o discurso
social que apela para a riqueza dessa presena.
Sabemos que, apesar de estabelecido esse marco legal de reconhecimento e
valorizao das influncias africanas na formao da nossa sociedade, muito pouco tem
sido feito para que realmente se d esse enfrentamento efetivo para a eliminao do
racismo. O governo federal at tem contribudo, quando promulgou a lei e tambm ao
enviar s escolas materiais didticos que abordem a questo racial. No entanto, o que se
percebe a falta de conhecimento e muitas vezes at de qualificao dos profissionais
da educao bsica para trabalhar essas questes na escola. Alguns professores at
trabalham os temas nas aulas de histria, porm, costumam apresent-los apenas em
datas comemorativas oficiais, como o 13 de maio (Libertao dos Escravos) e o recente
20 de novembro (Conscincia Negra).
Este texto, por exemplo, traz uma seleo de obras literrias que fazem parte dos
ACERVOS COMPLEMENTARES Alfabetizao e letramento nas diferentes reas do
conhecimento PNLD/PNBE, enviados pelo MEC em 2013 para trabalhar com as
crianas do primeiro ciclo da Educao Bsica. Essas obras foram agrupadas em trs
caixinhas, contendo cerca de trinta e cinco livros aproximadamente em cada uma
delas.O foco de nosso interesse so os contos africanos e brasileiros de temtica africana
ou afrodescendente que fazem parte dessas caixas. Os livros escolhidos para a anlise
desta pesquisa foram os distribudos no trinio 2013-2014-2015.
Essas obras literrias devem permanecer em sala de aula, pois a ideia que o
aluno desde muito cedo tenha contato com o texto literrio, mesmo antes de aprender a
ler, e o fato de esses livros se encontrarem disposio das crianas, geralmente no
cantinho da leitura ou em pequenas estantes ou em bas, faz com que elas tenham mais
liberdade para manipul-los e folhe-los.
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11632ISSN 2177-336X
25
Assim, diariamente, os alunos podem escolher o livro que ser lido pelo
professor ou, no caso dos que j sabem ler, ler eles mesmos, na hora da leitura deleite ou
em outro momento propcio. Estudos indicam que a alfabetizao e o letramento se
desenvolvem de forma simultnea nesses trs primeiros anos do ensino fundamental,
portanto, importante o contato das crianas com os textos literrios: a literatura
proporciona criana a vivncia de outros espaos e outros tempos, de contextos
culturais e sociais que desconhece, e assim amplia sua viso de mundo, contribuindo
para seu amadurecimento social e emocional (BRASIL, 2013, p. 17).
Infelizmente, percebemos que, nessas caixas enviadas pelo MEC, h uma
quantidade pequena, de obras que trabalham as questes tnico-raciais e a histria da
cultura africana. Notamos tambm, por nossa experincia na educao bsica, que
muitos professores preferem a leitura de obras clssicas, principalmente por serem mais
conhecidas e com mais atividades prontas para serem trabalhadas com as crianas. As
obras literrias com temtica africana e/ou afro-brasileira ainda so bastante
desconhecidas do pblico geral e de muitos professores que preferem no se arriscar.
Escolhemos para este trabalho dois contos africanos de lngua inglesa que foram
traduzidos para o portugus e dois afro-brasileiros.
Literaturas de temtica africana e afro-brasileira: um caminho para a
descolonizao
Plantando as rvores do Qunia: a histria de Wangari Maathai [Planting the
trees of Kenya: the story of Wangari Maathai] (2008) foi escrito e ilustrado pela
estadunidense Claire A. Nivola. Atravs desse conto, conhecemos a histria de Wangari
Maathai, a primeira mulher africana a receber o Prmio Nobel da Paz, em 2004. O
prmio foi concedido a essa ambientalista queniana pela conexo que ela fez entre a
sade do meio ambiente do seu pas e o bem-estar de seu povo.
A narrativa em terceira pessoa retrata inicialmente a infncia de Maathai,
quando ela vive em meio ao verde de seu pas, nadando nos rios, descansando sob os
baobs, alm de brincar com os pssaros e animais. Posteriormente, ela viaja para os
Estados Unidos e retorna em 1966, aps graduar-se. No entanto, Maathai no acredita
quando v tamanha devastao ambiental em sua terra natal. Nessa poca, o Qunia j
havia passado pelo processo doloroso de independncia e transformaes profundas
ocorreram em seu pas. Seu povo no mais cultiva o que consome. Ao contrrio,
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11633ISSN 2177-336X
26
compram todos os produtos e alimentos no mercado, sendo tudo muito caro, alm de
no ser de boa qualidade. A maior parte das terras pertence agora aos estrangeiros
europeus, sendo destinada plantao de ch para a exportao.
A jovem Maathai resolve atuar em prol de seu pas. Cria o movimento Cinturo
Verde e mobiliza a populao, sobretudo as mulheres, a plantar rvores. Essa iniciativa
resulta em mais de 30 milhes de rvores plantadas. Seu ativismo ambiental tambm
um ativismo poltico e feminista, j que sua revoluo verde comea pela ao das
mulheres e desencadeia diversos conflitos com as autoridades do pas.
Esse conto sobre Maathai pode ser muito explorado sobre vrios aspectos. Um
deles estabelecer uma relao de comparao com a do ambientalista brasileiro Chico
Mendes. J existem dois livros infantis que contam a historia de luta de Chico Mendes.
Tanto ele quanto Wangari Maathai foram perseguidos por seus posicionamentos
ideolgicos. No foi fcil para ela, muitas vezes, seus amigos tiveram que escond-la,
temendo que fosse capturada e levada presa por defender as florestas. Mas Maathai
soube transformar sua conscincia em ao e a memria de suas razes culturais numa
viso crtica do presente. Infelizmente, Chico Mendes no teve a mesma sorte e foi
assassinado. Alm dessas comparaes, pode ser elaborado um projeto interdisciplinar
entre as disciplinas de Histria, Geografia, Cincias, Artes e Lngua Portuguesa e alm
de analisar o texto, podem ser verificadas as semelhanas histricas e geogrficas entre
Qunia e Brasil. As crianas poderiam fazer trabalhos sobre a preservao do meio
ambiente, catalogando, registrando e propondo solues para esse problema, que
comum em quase todos os pases do mundo.
O Qunia ainda o cenrio de outro conto, As panquecas de Mama Panya
[Mama Panyas pancakes] (2010 [2005]) dos americanos Mary e Richard Chamberlin.
O texto narrado em terceira pessoa e poderia se passar em qualquer tempo, pois no h
nenhuma referncia temporal explcita. Atravs desse conto, conhecemos um pouco da
vida simples de Mama Panya e seu filho Adika. Eles se preparam para ir ao mercado. O
menino logo imagina que a me far panquecas, e ela confirma que a inteno
justamente essa. No caminho, eles encontram vrios amigos e vizinhos, entre os quais
Mzee Odolo, Sawandi, Naiman, Gamila, Bwana Zawenna e Rafiki Kaya, que acabam
sendo convidados por Adika a comer panquecas com eles. Mama Panya fica
preocupada, temendo que a comida no seja suficiente para alimentar todos os
convidados. Afinal, ela dispe de apenas duas moedas para comprar os ingredientes de
que necessita para as panquecas. Entretanto, os convidados chegam trazendo, um a um,
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11634ISSN 2177-336X
27
alimentos para incrementar a refeio: leite, manteiga, farinha, peixe, banana, sal e
cardamomo, usado como condimento. Eles comem sombra de um baob, rvore da
qual tudo se aproveita, desde as folhas at o tronco. Em seguida, Rafiki Kaya toca seu
mbira e Mzee Odolo canta para completar a confraternizao. Logo fica claro que as
panquecas satisfazem a todos os convidados e que novos encontros viro para
comemorar a solidariedade na aldeia africana.
Nessa obra, percebemos o quanto compartilhar uma refeio com os amigos
importante. Vrias pessoas contribuem para que essa refeio seja possvel. Podemos
notar ainda que a mensagem principal a de que no importa o quanto uma pessoa tem,
mas sim a sua disposio em compartilhar isso com os outros. Basta querer dividir o
que se possui, sendo pouco ou muito, para receber a mesma gentileza de volta. Ainda
podemos usar a historia de Mama Panya como exemplo de mulher, forte, guerreira, que
mesmo pobre e criando sozinha seu filho, capaz de gestos generosos, como o de
partilhar. Sabemos que no Brasil, muitas famlias so chefiadas por mulheres e muitas
dessas mulheres so negras e sozinhas criam seus filhos e mesmo passando
dificuldades, conseguem compartilhar o pouco que tm.
Entre as obras brasileiras, podemos destacar O senhor das histrias (2011),
escrito por Wellington Srbek e ilustrado por Will. O conto faz parte da srie Mitos
recriados em quadrinhos e conta a histria de dois garotos curiosos por saber de onde
vm as histrias. Ento, decidem perguntar ao av Lobato, que lhes narra a histria de
Anansi, o grande griot africano. O av conta que h centenas anos, Anansi era um
tecelo, chamado por todos de sua aldeia de o Velho Aranha, pois sabia como ningum
tecer com fios e palavras (SRBEK, 2011, p. 5). Durante o dia, ele tecia com fios os
mais belos mantos de sua aldeia, mas era noite, em volta da fogueira, que ele tecia
com palavras histrias que embalavam o povo. No entanto, havia algo que o intrigava,
as roupas tecidas por ele duravam vrias estaes, porm, suas histrias desapareciam
ao amanhecer. Ningum se lembrava das histrias contadas na noite anterior.
Numa ocasio, Anansi est deitado aos ps de um baob gigante e passa a tecer
pensamentos. Tece tanto que cria uma teia que chega at o cu. Resolve, ento, subir
nela e acaba chegando ao palcio do Deus do cu. Ele fica pasmo, pois o lugar era
magnfico e o prprio Senhor dos pensamentos, sonhos e fantasias, chama-o pelo nome.
L, ele fica sabendo que, noite aps noite, suas histrias chegavam at ali e eram
apreciadas por todos. Descobre ainda que essas histrias ficam guardadas dentro de uma
caixa de ouro, cravejada de diamantes e pedras preciosas. No entanto, se ele quiser lev-
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11635ISSN 2177-336X
28
las consigo, tem que realizar trs tarefas, capturar trs terrveis criaturas: o medo (os
dentes afiados do leopardo), a monotonia (um enxame de abelhas enlouquecedor) e a
melancolia (a serpente que pode derrotar o mais forte).
Anansi precisa encontrar essas criaturas logo e derrot-las para poder voltar para
sua aldeia. Fica ali pensando, pensando, desiludido, com receio de nunca mais voltar e
ficar preso para sempre naquele lugar. Mergulha em profunda tristeza. No entanto,
lembra-se que estava no reino dos pensamentos e sonhos e no precisaria caminhar
eternamente para realizar as tarefas que lhe foram impostas. Vai at a presena do
Senhor dos Cus e lhe conta que seu medo desapareceu. Assim, amarra o leopardo.
Percebe que tudo est apenas na sua imaginao. Cala as vespas, colocando-as dentro de
um jarro de coloridas imagens de sonhos. A melancolia logo perde foras tambm.
Assim, o Senhor dos Cus lhe entrega a to desejada caixa dos sonhos. Anansi abre-a e
de l saltam todas as histrias. A partir desse momento, ele passa a ser o Senhor das
Histrias.
Anansi, o velho griot, reaparece em vrias outras obras, inclusive, em um dos
trs contos publicados em Histrias encantadas africanas (2011) da brasileira Ingrid
Biesemeyer Bellinghausen. O ttulo deste conto Anansi e o ba das histrias, mas o
Anansi contado por Bellinghausen diferente do descrito por Srbek. Aqui, ele um
homem velho e fraco que mora num mundo muito triste porque no h histrias. Alis,
as histrias existem, mas esto aprisionadas num ba de ouro, em poder do Deus do
cu, Nyame, e ningum pode chegar perto. Mas Anansi tece uma teia to grande que
chega at o cu e se oferece para comprar as histrias e espalh-las pelo mundo. Nyame
lana quatro desafios ao homenzinho e duvida que ele ser capaz de cumpri-los. Mas o
velho tecelo, ao chegar a casa, conta tudo para sua esposa, Aso. Ela o ajuda, dando-lhe
ideias de como derrotar Onini, a jiboia que engole um homem inteiro; Osebo, o
leopardo com dentes de sabre; Mmoboro, o enxame de vespas de ferres mortais; e
Mmoatia, a fada que nunca vista (BELLINGHAUSEN, 2011 p. 12). Aps completar
os desafios, Anansi retorna ao Deus do Cu e recebe as histrias que ele prontamente
compartilha com o mundo.
Esses dois ltimos textos podem ser lidos e representados pelos alunos. Ainda
podero perceber que, nessas histrias, h uma valorizao aos mais velhos, pois eles
so aqueles que detm o conhecimento e so os responsveis por passar adiante as
tradies. Cada um dos textos discutidos acima traz referncias positivas e tambm
permitem que as histrias e tradies dos povos africanos e de seus descendentes sejam
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11636ISSN 2177-336X
29
conhecidas. sua histria sendo contada sob outro vis. Quando pensamos em enfocar
em nosso projeto essas obras, tivemos a compreenso de que, desde muito cedo, as
crianas comeam a ter contato com narrativas que fomentam seu imaginrio. Durante
muito tempo, o universo das obras infantis era permeado por personagens com
caractersticas fsicas europeias e, quando o negro era representado nessas histrias, era
normalmente de forma estereotipada. A literatura africana, a afro-brasileira e a mais
recente literatura brasileira infanto-juvenil de temtica africana ou afrodescendente vm,
por sua vez, contrapor a hegemonia dos contos tradicionais medida que apresentam
personagens negras como sujeitos histricos participantes ativos e orgulhosos de sua
cultura e de seu pertencimento racial.
A escritora nigeriana Chimamanda Nigozi Adichie (2009), em sua palestra
registrada no Youtube e intitulada The danger of a single story, relata que, durante sua
infncia, lia muitos livros britnicos e americanos e que, aos sete anos, comeou a
escrever e ilustrar com giz de cera. As personagens representadas em seus desenhos
eram todas pessoas brancas de olhos azuis que comiam mas e falavam sobre o tempo.
A realidade na Nigria era muito diferente, no havia neve, a fruta tpica era a manga,
nunca falvamos sobre o tempo porque no era necessrio. Meus personagens tambm
bebiam muita cerveja de gengibre porque as personagens dos livros britnicos que eu lia
bebiam cerveja de gengibre (ADICHIE, 2009, traduo nossa) Pelas prprias palavras
dessa escritora, percebemos que ela reproduzia o que lhe era ensinado. E, como ela
declara mais frente na mesma palestra,
ns somos impressionveis e vulnerveis em face de uma histria,
principalmente quando somos crianas. Porque tudo que eu havia lido
eram livros nos quais as personagens eram estrangeiras, eu convenci-
me de que os livros, por sua prpria natureza, tinham que ter
estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu no podia
me identificar (ADICHIE, 2009 traduo nossa).
Somente quando teve contato com as obras literrias de Achebe e Camara Laye
que Adichie percebeu que as meninas com a pele da cor de chocolate, cujos cabelos
crespos no poderiam formar rabos-de-cavalo, tambm podiam existir na literatura
(ADICHIE, 2009, traduo nossa). A partir da, ela passou por uma mudana mental na
percepo da literatura. Esses escritores mencionados por Adichie so autores ps-
coloniais e trazem tona formas diferentes de representar a literatura. Nas literaturas
ps-coloniais, os africanos no so mais representados como as bestas sem cabea e
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11637ISSN 2177-336X
30
sem casa descritas por John Lock e/ou outros autores ocidentais (ADICHIE, 2009,
traduo nossa). Ao contrrio, eles so retratados como povos com tradies e histrias
prprias, como vimos nas obras relacionadas acima ou ainda como podemos encontrar
no romance de Achebe, Things fall apart (1958), que retrata uma aldeia igbo pouco
antes da chegada do colonizador europeu.
Assim como Adichie, muitas crianas negras ao longo da histria de suas vidas,
passaram a reproduzir aquilo que lhes era ensinado. No entanto, depois de muitas lutas,
hoje, j podemos vislumbrar uma luz no fim do tnel, porque essas crianas atualmente
tm contato com as literaturas no cannicas, que trazem temticas prximas de suas
realidades, como visto nos textos j mencionados.
Gilmara Santos Mariosa e Maria da Glria dos Reis (2011) nos dizem que a
construo da identidade da criana algo que vai passar inevitavelmente pelos
referenciais que forem a ela apresentados (MARIOSA; REIS, 2011, p. 42). Ainda, para
essas pesquisadoras, os brinquedos, os desenhos animados e as histrias infantis
contadas ou lidas fazem parte desses referenciais. Portanto, se a criana negra no se v
representada ou se sua realidade retratada apenas atravs de esteretipos, ela no
desenvolver uma imagem positiva de si mesma.
Simone Moreira de Moura et al. (2012) aludem que os contos de fadas ainda
tm uma presena muito forte em nossa sociedade (MOURA et al., 2012, p. 8). Talvez
seja porque esses textos trazem um mundo encantado, mgico, e o imaginrio dos
pequenos seja permeado por heris, heronas, prncipes, princesas, fadas, duendes. No
entanto, nesse tipo de literatura, quase nunca encontramos princesas ou prncipes
negros. A ausncia de negros nesses papis dificulta a valorizao da diversidade
cultural e racial.
Nelly Coelho (2000) afirma que os contos de fadas passaram por diversas
adaptaes atravs dos tempos, mas ainda hoje trazem em sua essncia caractersticas
da cultura europeia, apresentando valores como os conceitos de bem/mal, certo/errado,
felicidade/infelicidade, belo/feio. Esses valores esto presentes no s na literatura
infantil, mas permeiam todas as esferas sociais e representam a histria de opresso de
um povo sobre outro, na qual os supostamente superiores impem sua cosmoviso.
Para Gomes (2012), construir uma identidade negra positiva um desafio muito
grande em nossa sociedade, pois historicamente foi ensinado maioria das pessoas
negras que, desde muito cedo, para ser aceito preciso negar-se a si mesmo. No
estamos aqui afirmando que as literaturas europeias ou cannicas no devam mais ser
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11638ISSN 2177-336X
31
lidas em sala de aula, mas o que no se pode aceitar que as crianas tenham contato
apenas com esses tipos de textos. necessrio descentralizar essas literaturas cannicas
e trazer para o centro das discusses as literaturas antes marginalizadas.
Para Kabenguele Munanga (2004), no sculo XIX, a cor da pele foi critrio para
a classificao da espcie humana em trs raas: branca, negra e amarela. Sendo os
indivduos da raa branca privilegiados e considerados superiores aos outros, em funo
de suas caractersticas fsicas hereditrias, tais como a cor clara da pele, o formato do
crnio, a forma dos lbios, do nariz, do queixo, etc. O que Munanga assevera que, para
esses povos brancos, essas caractersticas os tornavam mais bonitos, mais inteligentes e
muito mais capazes de dominar as outras raas, principalmente a negra, mais escura de
todas e, consequentemente, considerada como a mais estpida, mais emocional, menos
honesta, menos inteligente e, portanto, a mais sujeita escravido e a todas as formas de
dominao (MUNANGA, 2004, p. 19).
Foi somente no sculo XX, com os avanos das cincias, que os prprios
bilogos chegaram concluso de que a raa no uma realidade biolgica. Para
Munanga, por mais que esse conceito no se refira aos aspectos biolgicos, existem
ainda os ideolgicos, polticos e sociais. Embora a raa no exista biologicamente, isso
insuficiente para fazer desaparecer as categorias mentais que a sustentam: O difcil
aniquilar as raas fictcias que rondam em nossas representaes e imaginrios
coletivos (MUNANGA, 2004, p. 26).
J, para Anbal Quijano (2005), a classificao racial da populao mundial
sinaliza a continuidade da colonialidade que teve sua origem no colonialismo, mas que
provou ser duradora e estvel, persistindo at os dias atuais. A colonialidade seria esse
regime de poder que, fundado em uma ideia de desenvolvimento, impe padres
econmicos, polticos, morais e epistemolgicos sobre outros povos. Ainda segundo
esse terico, essa ideia de raa em seu sentido moderno, no tem histria conhecida
antes da Amrica (QUIJANO, 2005 p. 107). Foi com a constituio da Amrica que se
produziram as primeiras identidades raciais de indgenas, negros e mestios. Para
Quijano, foi a partir de diferenas fenotpicas entre conquistadores e conquistados que
se estabeleceu uma hierarquizao entre esses grupos.
Essa diviso racial permitiu aos europeus que os povos conquistados e
dominados fossem postos numa situao natural de inferioridade e, como argumenta
Quijano, enquanto havia uma relao estabelecida de servido e reciprocidade entre
indgenas e brancos, restava aos negros a escravido. A codificao da diferena entre
XVIII ENDIPEDidtica e Prtica de Ensino no contexto poltico contemporneo: cenas da Educao Brasileira
11639ISSN 2177-336X
32
dominantes e dominados em termos de raa e a articulao de todas as formas histricas
de controle do trabalho em torno do mercado mundial estiveram conectados e se
reforaram mutuamente. Com efeito, a partir da constituio da Amrica, toma lugar
uma identificao da distribuio do trabalho com a raa, o que Quijano denomina de
colonialidade do poder:
Na atualidade, esse estado de coisas ainda perdura, pois aos grupos
racializados so normalmente atribudas as formas de trabalho menos
valorizadas dentro das sociedades da maioria dos pases do mundo.
Entre as naes, as diferenas tambm se estabelecem nesses termos:
aquelas de maioria branca estariam normalmente entre as mais
desenvolvidas e as de maioria no branca ainda fariam parte da esfera
dos grupos que lutam para atingir melhores patamares econmicos e
sociais (CARBONIERI, 2016, p. 8).
Para Quijano (2005), a permanncia da colonialidade do poder em alguns pases
da Amrica Latina fator impeditivo para a construo de um estado-nao, que tem
como pressuposto uma participao poltica e civil democrtica, o que, por sua vez,
requer a democratizao das relaes sociais. A soluo seria, para o autor, uma radical
devoluo do controle sobre o trabalho, sexo, autoridade e conhecimento s pessoas,
sobretudo aos indgenas, negros e mestios. Tal distribuio,