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Marxismo Analítico Funcionalismo Prof Luis Boeira Faculdade de Comunicação e Artes - FACOART Universidade do Vale do Itajai Doutorando do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas Sociedade e Meio Ambiente - CFH UFSC Resumo Este artigo tem por objetivo participar do debate sobre marximo analítico funcionalismo e teoria dos jog os, iniciado por Jon Elster, Cohen e Andrés de F rancisco entre 1988 e 1990. A s teses destes autores são confrontadas e hierarqui- zadas com base na pertinência de seus princip is conceitos (individualismo m etodológico, holismo radical, funcionalismo, etc.). A questão da interdis- ciplinaridade é enfatizada, com Abstract This article aims to contribute to the debate on analytical marxism, functiona- lism , and gam e theory as begun by Jon Elster, Cohen and André de F ranci sco between 1988 and 1990. These authors' theses are contrasted and hierarchically organ ized accor- ding to the relevance of their m ain concepts (m ethodological individualism, radical holism, fu n ction alism, etc.). The inter- disciplinary issue is em phasized Agradeço os comentários do Dr. Paulo Krischke a primeira versão deste trabalho. Revista de Ciências Humanas Florianópolis v. 4 .20 .9 34 996

Marxismo Analítico e Funcionalismo

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Este artigo tem porobjetivo participar do debatesobre marxismo analítico,funcionalismo e teoria dos jogos,iniciado por Jon Elster, Cohen eAndrés de Francisco entre 1988e 1990. As teses destes autoressão confrontadas e hierarquizadascom base na pertinênciade seus principais conceitos(individualismo metodológico,holismo radical, funcionalismo,etc.). A questão da interdisciplinaridadeé enfatizada, com uma análise critica da relaçãoentre marxismo analítico(principalmente o conceito deforças produtivas) e meio ambiente.

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  • Marxismo Analtico & Funcionalismo

    Prof. Srgio Luis Boeira* Faculdade de Comunicao e Artes - FACOART Universidade do Vale do Itajai

    Doutorando do Programa Interdisciplinar em Cincias Humanas Sociedade e Meio Ambiente - CFH UFSC

    Resumo

    Este artigo tem por objetivo participar do debate sobre marximo analtico, funcionalismo e teoria dos jogos, iniciado por Jon Elster, Cohen e Andrs de Francisco entre 1988 e 1990. As teses destes autores so confrontadas e hierarqui-zadas com base na pertinncia de seus principais conceitos (individualismo metodolgico, holismo radical, funcionalismo, etc.). A questo da interdis-ciplinaridade enfatizada, com

    Abstract

    This article aims to contribute to the debate on analytical marxism, functiona-lism, and game theory as begun by Jon Elster, Cohen and Andr de Francisco between 1988 and 1990. These authors' theses are contrasted and hierarchically organized accor-ding to the relevance of their main concepts (methodological individualism, radical holism, functionalism, etc.). The inter-disciplinary issue is emphasized

    * Agradeo os comentrios do Dr. Paulo Krischke a primeira verso deste trabalho.

    Revista de Cincias Humanas Florianpolis v. 14 n.20 p.9-34

    1996

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  • uma anlise

    critica da relao entre marxismo

    analtico (principalmente o conceito de foras

    produtivas) e meio am-biente.

    Palavras-chave: Funciona-lismo, Marxismo, Teoria dos Jogos, Meio Ambiente.

    by means of a critical analysis of the relation between the environment and analytic marxism (mainly the concept of productive forces). Keywords: Funcionalism, marxism, Theory of games, environment.

    Introduo

    0 presente artigo tem como objetivo participar do debate sobre marxismo, funcionalismo e teoria dos jogos (Elster, 1989a e 1989b; Cohen, 1990; Francisco, 1988).

    1 Funcionalismo 2 Marxismo analitico e tica 3 Individualismo metodolgico e anti-reducionismo 4 Elster e a crtica ao funcionalismo em Marx 5 Cohen e a teoria da histria em Marx 6 Contribuies ao debate

    1 Funcionalismo:

    O termo funcionalismo no designa uma teoria, mas uma tendncia metodolgica que perpassa as cincias naturais e sociais. No mbito destas ltimas, a trajetria do termo constitui-se de trs fases: de valorizao, de depreciao e de revalorizao critica.

    Na primeira fase, ainda no sculo XIX, a nog -do de funo

    (mas no de funcionalismo) est presente nas cincias sociais na medida em que estas procuram imitar o mtodo das cincias naturais e exatas, particularmente a biologia e a

    fsica. Os

    paradigmas newtoniano (mecanicista), darwiniano (evolucionista,

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  • organicista), cartesiano (dualista), positivista e liberal formam o contexto no qual os cientistas sociais pensam as regras de funcionamento das sociedades, ou melhor, os seus segredos revelados em forma de leis (estruturais) e funes correspon-dentes. Por exemplo: a lei de oferta/demanda e preo, no

    mbito da economia.

    O termo funcionalismo surge na dcada de 1930, por iniciativa de antroplogos e etnlogos, como Malinowski e Radcliffe-Brown, enquanto este concebe a ordem social como essencialmente normativa (seguindo Durkheim), Malinowski v na mesma a satisfao das necessidades humanas (alimentao, abrigo, segurana, etc.). Nos anos 40 estes dois autores trabalham na Universidade de Chicago e contribuem para o reforo

    da ideologia dominante ao conceber a sociedade como um sistema basicamente harmnico, em que os conflitos podem ser tratados como inocentes tenses. Tais perturbaes so desvendadas pela cincia como simples preparao para uma ordem mais satisfatria.

    Depois destes, outros dois funcionalistas norte-americanos marcam poca: Talcott Parsons e Robert Merton. Parsons intitula seus primeiros escritos (at meados dos anos 50) de "estrutural-funcionalismo" . 0 sistema normativo apresentado por ele como funcional na medida em que resolve os problemas provocados pela situao ou estrutura (contexto definido como conjunto de restries estveis e coerentes no qual esta colocado o sistema de ao). Parsons abandona a expresso estrutural-funcionalismo em 1960, talvez devido ao risco de cair no tautologismo, ao forar a congruncia entre estrutura/situao e funo (ou soluo funcional), ou ao fazer da primeira o decalque (reproduo mimtica) da segunda. Com

    Parsons, portanto, termina a fase de valorizao e tem inicio a da depreciao do termo. Robert Merton empenha-se em dissociar a nog -do de funo

    da de finalidade. Para isso ele destaca alguns fenmenos cujos resultados, sem corresponder As expectativas iniciais dos atores, procedem de suas iniciativas e de suas intenes ou, antes, da maneira pela qual se combinam e das diversas

    coeres a que esta sujeita sua ao. Merton

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  • aplica o mtodo no sociedade como um todo, mas a partes especificas da estrutura social. Ele distingue entre

    funes explicitas e latentes.

    Buscar a funo latente de uma regra ou de um costume no procurar sua finalidade o lugar que ela ocuparia no contexto social; investigar seu sentido, a maneira pela qual esse sentido se constituiu e se mantm. Por isso, "o conceito de

    funo sai ileso das criticas dirigidas ao funcionalismo", concluem Boudon e Bourricaud (1993).

    O funcionalismo tem sido apontado como ideologia conservadora, mas Merton sustenta que, se h um vis de direita, tambm h uma interpretao de esquerda. Com

    o reconhecimento deste fato, tem inicio uma revalorizacdo critica da nog -6o de funcionalismo, com o debate sobre sua

    presena e validade ou no nos textos de Marx.

    Enquanto Elster se destaca como critico do funcionalismo nas cincias sociais e particularmente no marxismo, Cohen critica Elster por interpretar superficialmente a anlise funcional e reconhece que, de fato, h explicaes funcionais em Marx. Mas veremos isso por partes.

    2 Marxismo analtico e tica:

    Andrs de Francisco (1988), concordando com P Anderson, afirma que o marxismo ocidental tem sido vitima de dois grandes desvios: da pratica politica do movimento operrio, por um lado, e em direo a filosofia, a esttica e

    a teoria do conhecimento, por outro. A causa bsica destes desvios parece ser a ausncia de revolues nos 'Daises capitalistas avanados e a ausncia de um proletariado autnomo desde a

    ultima grande guerra. Assim, a

    Escola de Frankfurt desenvolveu, diz ele, uma teoria critica que resultou na reduo da cincia e da politica a filosofia. A sociedade capitalista teria, segundo esta critica, chegado a integrao via implantao da razo instrumental, do principio formal do clculo, com o conseqente desencantamento do mundo contemporneo.

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  • Assim, para a Escola de Frankfurt a especulao filosfica substituiria a investigao

    emprica, j que estava dissolvida toda

    unido entre teoria e praxis. Entretanto, assinala Francisco, desde meados dos anos 700

    panorama do marxismo tem dado uma guinada de 180 graus. Surge um

    outro tipo de cultura marxista, orientada primordialmente

    no sentido das questes de ordem econmica, poltica

    ou social. Nisto o autor v a superao da chamada "crise do marxismo". Ele observa, tambm, que tem havido simultaneamente um deslocamento geogrfico da criao marxista em direo ao mundo de lingua inglesa, paralelo ao colapso da tradio latina, francesa e principalmente italiana.

    0 marxismo analtico

    que, assim, emerge critica o "primitivism() metodolgico" da cincia social do sculo XIX. E avana

    interdisciplinariamente, estabelecendo uma distino bsica

    entre teoria e mtodo. Para os marxistas analticos no h um mtodo marxista, um procedimento explicativo

    caracterstico com

    origem em Marx. 0 que h de especifico o "conjunto de pressupostos tericos contidos no corpus doutrinal do materialismo histrico" (Francisco, 1988:220).

    Mas a distino

    entre teoria e mtodo deve ser vista como problemtica, sustenta Francisco, observando diferenas entre os marxistas

    analticos. HA quem aceite a anlise funcional como

    inerente ao materialismo histrico (Cohen) e quem utilize a teoria dos jogos (Elster) como ncleo de atualizao do marxismo.

    Andrs de Francisco observa tambm que o marxismo analtico

    acaba por isolar a reflexo sobre tica daquela que feita sobre teoria e mtodo. "Com efeito, toda teoria cientifica independentemente do mtodo aplicado aspira a explicar a realidade, no a valor-la", diz ele, acrescentando que "a tica patrimnio da filosofia, no da

    cincia". 0 autor se conforma em

    constatar o fato, reconhecendo mas no analisando a fragmentao ontolgica que esta posio supe.

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  • O filsofo Karl-Otto Apel, um herdeiro contemporneo da Escola de Frankfurt, certamente discordaria da passividade de Francisco quanto a este tema. A principal preocupao de Apel encontrar uma soluo democrtica e racional para a tica. Ele analisa as tradies iluministas, particularmente a obra de Kant, e conclui que h uma contradio inerente s cincias, na medida em que a tica foi associada a irracionalidade e vida privada, enquanto a racionalidade, em si, pressupe acordo quanto a normas ticas. (Ape!, 1994).

    No marxismo, observa Apel, o partido revolucionrio que impe uma moral altrusta. Tanto as cincias naturais ou exatas quanto as sociais e empricas surgiram afastando-se dos juizos de valor, mas s6 o fizeram porque explica ele encobriram a necessidade de acordo sobre valores que todo discurso racional requer. A argumentao neste sentido consistente e coloca em xeque a honestidade dos cientistas. Apel aposta na constituio de uma comunidade de comunicao e numa tica do discurso, semelhana do que faz Habermas.

    Resta, portanto, o alerta: o marxismo analtico, na sua guinada de 180 graus em relao filosofia, pode estar deixando pelo caminho contribuies fundamentais desta.

    3 Individualismo metodolgico e anti-reducionismo:

    Andrew Levine, Elliot Sober e Erik Olin Wright (Levine et a1,1989) definem algumas expresses que permeiam o marxismo analtico, tais como "individualismo metodolgico", "anti-reducionisrno", "holismo radical" e "atomismo'. O objetivo dos autores criticar a posio de Jon Elster que defende o individualismo metodolgico e, a partir deste, a teoria dos jogos como forma de encontrar microfundamentos e superar o funcionalismo.

    No debate terico, os que defendem o individualismo metodolgico rotulam os anti-reducionistas como holistas radicais e os defensores de posies anti-reducionistas s vezes

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  • tratam os adeptos do individualismo metodolgico como atomistas. Levine, Sober e Wright partem destas constataes.

    O atomismo, dizem eles, uma concepo metodolgica que nega toda capacidade explicativa as relaes, quer se dem entre

    indivduos, quer se produzam entre entidades sociais. Os

    autores argumentam que as relaes entre as pessoas, e no somente as

    crenas e desejos destas, so fatores importantes na explicao dos

    fenmenos sociais.

    0 individualismo metodolgico (IM) compartilha com o atomismo a concepo de que a explicao sociolgica 6, em ltima instncia,

    redutvel ao

    nvel individual. Elster define o IM como:

    a doutrina de que todos os fenmenos sociais sua estrutura e sua mudana so, em

    princpio, explicveis por fatores que envolvem apenas as pessoas, suas propriedades, seus objetivos, suas crenas e suas aes. Passar das instituies sociais e dos padres agregados de comportamento para os

    indivduos uma operao semelhante passagem das clulas s molculas. (Elster, 1989a). Note-se que Elster utiliza o termo "doutrina" na sua

    definio.

    E veja-se a comparao que Edgar Morin faz entre ideologia, teoria e doutrina:

    0 que uma ideologia do ponto de vista informacional? um sistema de idias feito para controlar, acolher, rejeitar a informao. Se a ideologia teoria, ela 6, em principio, aberta informao que no conforme a ela, que a pode questionar. Se doutrina, ela 6, em principio, fechada a toda informao no-conforme. (Morin, 1986:45). Levine, Sober e Wright esclarecem que Elster no um

    atomista porque aceita que muitas propriedades individuais, como a de ser poderoso, so inerentemente relacionais, de modo que a descrio correta de um

    indivduo pode implicar a referncia a

    outros. O IM distingue-se, tambm, do holismo radical (HR) e do

    anti-reducionismo (AR) por sua insistncia em que apenas as relaes entre indivduos so

    irredutveis. Nega que categorias

    sociais agregadas tambm o sejam. Para o IM, se uma

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  • propriedade social explicativa porque pode ser reduzida propriedades das relaes entre indivduos particulares.

    O holismo radical (HR), dizem os criticos de Elster, contrasta com o IM afirmando que as relaes individuais so essencialmente epifenmenos das explicaes macrossocio-lgicas. Estas relaes so geradas pela operao do todo por si mesmas nada explicam. "No se trata, apenas, de que "o todo mais do que a soma de suas partes", mas de que o todo a causa exclusiva e as partes so meros artefatos, ainda que constitudos a partir de relaes sociais. As categorias macrossociais, como capitalismo, Estado, relaes de classe, no so apenas irredutveis a processos microssociais: elas no so afetadas por esses processos" (Levine et al.,1989). Os autores consideram que na tradio marxista, devido a sua nfase na "totalidade" , esta presente o HR. Citam como exemplos o raciocinio teleolgico na teoria da historia, as formulaes extremadas em defesa da causalidade estrutural e o que se pode chamar de argumento da "ao coletiva". Concluem que, neste tipo de interpretao, os fatos sociais explicam os fatos sociais diretamente, sem que haja qualquer funo interpretativa para os mecanismos que agem no plano individual.

    Levine, Sober e Wright, e tambm Elster, trabalham sobre critrios apenas metodolgicos, mas mostram-se bastante desatualizados quanto a histria do termo "holismd (BrCiseke, 1995; Weil, 1987; Brando e Crema, 1991; Ribeiro, 1989 e Koestler, 1981). Desde 1926, com o livro Holism() e Evoluo, de Jean Smuts, o termo holismo tem sido associado a idia de complexidade mais do que de todo ou inteiro, como indica a raiz grega holos. Certamente houve distores no sentido do globalisrno, do predomnio do todo sobre as partes, mas Koestler, em 1968, no Simpsio Beyond Reductionism, apresentou o conceito de hlon, tornando o debate mais rico e consistente (na medida em que define hlon como estrutura intermediria e dinmica entre um todo e suas partes). Finalmente, em 1986, a UNESCO promoveu em Veneza o colquio A cincia face aos

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  • confins do conhecimento (Weil, 1987), no qual a abordagem holistica foi associada interdisciplinaridade e

    transdisci-plinaridade.

    Em sua Carta Magna a Universidade Holistica Internacional (UnHI) declara-se "consciente dos perigos do englobamento e da fragmentao (totalitarismo e reducionismo)". Portanto, a UnHI "pretende combinar o rigor necessrio

    anlise do particular e a

    abertura necessria intuio da interrelao inerente a todas as

    coisas (holos)". O anti-reducionismo (AR) segundo Levine, Sober e Wright

    reconhece a importncia do plano micro de anlise na explicao dos fenmenos sociais, mas defende a irredutibilidade das interpretaes de nvel macro. Para o IM, explicar um fenmeno apenas fornecer uma descrio dos microme-canismos que o produzem, resumem. O AR, ao contrrio, no prejulga, diante de um problema, se as explicaes macrossociais so redutveis afinal a anlises individualistas. Banir os tipos sociais como objetos de pesquisa empobrecer as finalidades explicativas da cincia social, bem como contraditar prticas racionais de anlise, dizem os autores, assumindo-se como marxistas analticos anti-reducionistas.

    4 Elster e a critica ao funcionalismo em Marx:

    No artigo "Marxismo, Funcionalismo e Teoria dos Jogos" e no livro "Marx Hoje" Jon Elster sustenta que:

    ao assimilar os princpios da sociologia funcionalista, reforada pela tradio hegeliana, a anlise social marxista adquiriu uma teoria aparentemente slida que na verdade encoraja o pensamento indolente e a ausncia de polmica.

    Alm disso, acusa os marxistas de terem rejeitado a teoria da escolha racional e em particular a teoria dos jogos, que de "valor inestimvel para qualquer anlise do processo histrico centrado na explorao, conflito, alianas e revoluo" (Elster, 1989b). Ele suspeita que a recusa esteja relacionada 6 idia de

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  • que o individualismo metodolgico (IM) traduz o individualismo no sentido tico ou politico e, por isso, argumenta em favor do IM tal como foi definido anteriormente.

    Elster tem por objetivo encontrar microfundamentos para a anlise social e por isso critica a teoria marxista do Estado ou da ideologia que esto em "estado lastimvel". Em particular, diz ele, os marxistas no aceitaram o desafio de mostrar como a hegemonia ideolgica se gera e se consolida no plano individual. Portanto, a psicologia social, no seu entender, deveria ser para a teoria marxista da ideologia o que a microeconomia para a economia marxista. Sem um conhecimento "slido sobre os mecanismos que operam em

    nvel individual" as teses marxistas

    de amplo alcance sobre rnacroestruturas e as mudanas de longo prazo

    "esto condenadas a permanecer como especulaes"

    (Elster, 1989b:165). Elster passa, ento, anlise do funcionalismo, cuja origem

    esta:

    provavelmente na teodicia crista, que alcana seu apogeu em Leibniz: tudo para o melhor no melhor dos mundos

    possveis. Os males tm

    conseqncias positivas de um ponto de vista mais amplo, e devem ser explicados por estas conseqncias.

    Vimos anteriormente que o funcionalismo passou por trs fases. Elster, no entanto, discordaria desta percepo seqencial, afirmando que na realidade existem trs paradigmas funcionalistas: um fraco, um principal e um forte. Ele considera que todos permeiam as cincias sociais e que isto uma falha grave, j que, nestas, s deveriam ter lugar as explicaes causais e as intencionais.

    Nas cincias sociais, segundo esta posio,

    pode-se fazer distino entre causalidade subintencional e causalidade supra intencional.

    A primeira se refere a processos causais que ocorrem dentro do

    indivduo, na formao ou perverso de suas

    intenes.

    A ltima se refere a interao causal entre individuos. 0 comportamento humano e o comportamento animal

    devem ; segundo Elster, ser estudados com as

    noes de

    funo e

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  • de inteno

    como idias reguladoras. Nem todo comportamento animal funcional e nem todo comportamento humano racional ou intencional. 0 autor apenas presume que esses casos sejam tpicos.

    Na anlise da metodologia marxista (Elster, 1989a:35 a 55), o autor rejeita em bloco trs elementos formadores desta: o holismo metodolgico, a explicao funcional e a deduo dialtica. Todos tendem a bloquear a busca de microfundamentos, que devem ser investigados a partir de dentro, "endogenamente", diz Elster, na defesa do individualismo metodolgico. Este considerado "uma forma de reducionismo", que "nos leva a explicar fenmenos complexos em termos de seus componentes mais simples". Este principio reducionista, prprio do paradigma dominante nas cincias (Santos, 1993), visto por Elster como uma "estratgia fundamental da cincia", responsvel pela criao de disciplinas como a biologia molecular e a

    fsico-qumica. Na perspectiva deste autor, Marx falha ao utilizar a explicao

    funcional tanto para dar conta da estabilidade das sociedades como para

    demonstrar sua tendncia inerente a desenvolver-se na direo

    do comunismo. Apesar disso, afirma que Marx tambm teve "intuies extremamente inovadoras".

    1-16 na obra marxista "duas instncias principais de holismo metodolgico": o capital, como entidade coletiva

    irredutvel

    firmas individuais, e

    humanidade, que aparece no materialismo histrico como sujeito coletivo, cujo florescimento no comunismo, constitui o fim da histria.

    Marx freqentemente aponta para as necessidades dessas entidades coletivas a fim de explicar eventos e instituies que aparecem, como que por magia, para atender aquelas necessidades. Sua

    crena na lgica

    independente dos agregados s vezes enfraquece sua motivao ao estudo mais fino da estrutura e das mudanas sociais. Elementos especulativos coexistem, muitas vezes no mesmo trabalho, com proposies mais solidamente fundamentadas (Elster, 1989a:39). At aqui, Elster parece combater toda forma de

    estruturalismo. Mas ele reconhece que:

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  • sabemos alguma coisa sobre: como crenas e preferncias so moldadas pela estrutura social. Existem, em particular, evidncias de que as pessoas ajustam seus desejos ou crenas de modo a reduzir a dissonancia cognitiva, isto 6, a tenso produzida quando se acredita que no se pode alcanar aquilo que se quer. Os oprimidos freqentemente acabam por aceitar sua situao porque muito dificil viver a alternativa. Mas sabemos muito pouco sobre os limites dentro dos quais esse mecanismo opera, e alm dos quais a revolta se torna uma possibilidade real. (Op.cit.:43). Com esta afirmagdo, o autor se contradiz, reconhecendo a

    forte influncia das estruturas sociais. A causa da aceitao da opresso e da dissonncia cognitiva acima referidas ultrapassa a causalidade subintencional e a supra-intencional, j que h uma moldagem estrutural implicada. Quer sejam encontrados ou no os micro fundamentos neste caso, Elster j conhece sua causa contraditria com relao ao dogma do individualismo metodolgico.

    Cabe lembrar a anlise de Michael Taylor sobre as revolues francesa, chinesa e russa, nas quais o autor mostra a forte relao entre ao coletiva, racionalidade e estruturas sociais em contextos histricos especficos. (Taylor, 1990).

    Elster, alm deste reconhecimento em abstrato da influncia das estruturas, aponta a maior contribuio metodolgica de Marx como sendo a "anlise da estrutura de conseqncias no pretendidas" que ele considera "uma ferramenta de preciso para o estudo da mudana social" (Elster, 1989a:53).

    Para exemplificar esta contribuio, o autor se afasta das "contradies psicolgicas" e passa a tratar das "contradies sociais":

    urn paradoxo central do capitalismo que cada capitalista queira que seus empregados tenham baixos salrios, porque isso bom para os seus lucros, mas que os trabalhadores empregados por todos os outros capitalistas tenham salrios altos, porque isso cria demanda por seus produtos. (...) cada capitalista quer ocupar uma posio que, por razes puramente lgicas, nem todos podem ocupar. Embora o desejo de cada capitalista seja internamente consistente, os desejos dos capitalistas em seu conjunto so contraditrios. No existe mundo possvel em que todos possam ver seus desejos satisfeitos. (Elster, 1989a:52).

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  • Teria sido melhor para todas as firmas se tivessem deixado de reduzir os salrios, mas cada uma "sempre ver a reduo de salrios como uma alternativa atraente".

    Como aceitar que a ao neste caso segundo a teoria dos jogos racional e portanto tpica, se, na realidade, ela se mostra irracional? Andrs de Francisco afirma que necessrio um conceito mais amplo de racionalidade que inclua os processos de formao de nossas crenas, desejos e aspiraes. Ele conclui que "os parmetros institucionais da ao social restringem e constrangem substancialmente a autonomia individual que est na base da teoria da escolha racional" (Francisco, 1988:242).

    O individualismo metodolgico de Elster pode ter sido eficaz na explicao de fenmenos como alianas no terreno politico e de certas condutas no sistema econmico. Entretanto, parece-nos unilateral e contraditrio na medida em que defende um reducionismo psicolgico e uma concepo de racionalidade que simultaneamente racional e irracional, mas que tomada, ainda que apenas para efeitos de investigao, como puramente racional. Os fatos da conscincia por exemplo, o clculo econmico de cada capitalista no podem ser tomados como realidades dadas. A rigor, no existem tais realidades. Toda percepo implica em algum grau de concepo. Isto j est claro desde Kant. Os dados na realidade so tomados, so, em parte, projees do sujeito observador. Esta concluso, entretanto, tambm parcial e hipottica. As obras de Edgar Morin (1986b e 1991) contm contribuies consistentes sobre este aspecto em particular.

    5 Cohen e a teoria da histria em Marx:

    Na sua "Resposta ao Artigo Marxismo, Funcionalismo e Teoria dos Jogos, de Jon Elster" Cohen resume suas posies, que so mais desenvolvidas no seu livro Karl Marx' Theory of History (1978):

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  • 1 Explicaes funcionais esto no ncleo do materialismo histrico (MH);

    2 A teoria dos jogos, portanto, no pode substituir as explicaes funcionais no contexto da anlise marxista da sociedade;

    3 No ha tampouco lugar para a teoria dos jogos no ncleo do MH ao lado das explicaes funcionais;

    4 Mas a teoria dos jogos til com respeito a proposies

    que esto prximas do centro do MH; 5 No h erro metodolgico nas teses explicativas funcionais

    do MK 6 Mas os marxistas no tm feito muita coisa para

    demonstrar que elas so verdadeiras. Se a explicao funcional permanece to insuficiente na pratica (por oposio a sua adequao na alta teoria), as proposies fundacionais do MH podero ser severamente modificadas. Posies de grande autoridade tradicional talvez tenham que ser abandonadas.

    Para demonstrar a primeira posio, Cohen cita o "Prefcio" Contribuio Critica da Economia Poltica,

    de 1859, em que Marx escreve:

    Na produo social de suas vidas os homens entram em relaes necessrias e independentes de suas vontades; essas relaes de produo correspondem a um estgio definido do desenvolvimento de suas

    foras produtivas materiais. A soma total dessas relaes constitui a estrutura econmica da sociedade, a base sobre a qual se eleva uma superestrutura legal e poltica.

    Ao analisar o texto Cohen observa que as foras

    produtivas so os vrios recursos usados no processo de trabalho: meios de produo, por um lado, e fora

    de trabalho, por outro. Meios de produo so recursos produtivos

    fsicos,

    como ferramentas, mquinas, matrias-primas e instalaes. A fora

    de trabalho inclui no apenas a fora dos produtores,

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  • mas sua habilidade e o conhecimento tcnico que eles no precisam compreender utilizado no trabalho. A dimenso subjetiva das foras produtivas "mais importante que a dimenso objetiva, ou seja, que os meios de produo" afirma Cohen, concordando com Marx. Alm disso, nesta dimenso mais importante a parte mais suscetvel de desenvolvimento o conhecimento. Nos seus estdios mais avanados, portanto, o desenvolvimento das foras produtivas funde-se ao desenvolvimento da cincia aplicada produo.

    Cohen ressalta um pressuposto de Marx, de que "as foras produtivas crescem continuamente". E argumenta que o critrio mais relevante para medir esse crescimento "6 quanto (ou melhor, quo pouco) trabalho deve ser despendido por uma determinada fora de trabalho para produzir o necessrio para satisfazer as necessidades fsicas inescapveis dos produtores imediatos". Em defesa deste critrio, Cohen afirma que se tipos de estrutura econmica correspondem a nveis de poder produtivo ento essa maneira de medir o poder produtivo torna a tese da correspondncia mais plausvel. Ele no sustenta que a nica caracterstica explicativa do poder produtivo 6 sua quantidade: "suas caractersticas qualitativas tambm ajudam a explicar o carter das estruturas econmicas". Conclui que "se o que importa a quantidade de poder produtivo, a quantidade relevante o tempo de reproduo da fora de trabalho".

    Neste ponto preciso fazer uma referncia a Andrs de Francisco (1988), que tangencia um problema relevante o fato de que "el desarrollo produtivo va intimamente ligado a la creacin de fuerzas destrutivas del entorno natural: destruccin de ecosistemas y agotamiento de recursos. Y en este sentido, el capitalismo es maximamente irracional". De outra parte, o capitalismo maximamente racional diz ele porque no pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produo, sendo, portanto, o modelo econmico "que ms eficazmente promueve el desarrollo de ias fuerzas produtivas

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  • (dejando al margen, naturalmente, el problema social)" (Francisco, 1988:226).

    H um problema bsico, neste aspecto, que revela falta de uma

    analise interdisciplinar do conceito de foras produtivas. Ao

    incluir as matrias-primas como parte dos meios de produo, feita uma leitura economicista, portanto redutora, da natureza e dos ecossisternas. Mesmo que utilizssemos a noo instrumental de "recursos" para analisar em que consistem as matrias-primas, teriamos que distinguir entre recursos renovveis e outros no renovveis (em relao ao tempo de vida na escala humana). Com esta distino seria improcedente considerar as matrias-primas como capital constante (ou ilimitado). E isto teria certamente vrias conseqncias tericas. Elster faz algumas consideraes sobre este aspecto das

    foras produtivas. A mais relevante delas a seguinte:

    A crescente sofisticao tecnica pode ser contrabalanada, por exemplo, pelo esgotamento de recursos exauriveis. Numa formulao completa da teoria de Marx devemos levar em considerao tanto o nivel real de produtividade quanto o

    nvel hipottico que seria alcanado sob condies

    externas constantes (Elster, 1989a:123). Sobre este tema, observam dois autores ecossocialistas que los esquemas marxistas de "reproduccin simple" y de "reproduccin ampliada" no tienen en cuenta si la falta de recursos agotables puede poner un limite incluso a la "reproduccin simple". Eso refleja el estatus metaffsico que el concepto de "produccin" ha tenido en la economia marxista, al igual que en la cincia econmica convencional (Alier e Schltipmann, 1991). No capitulo XIII da obra citada os autores analisam a relao

    entre o marxismo e a economia ecolgica, com particular ateno correspondncia entre Podolinsky, Marx e Engels sobre as leis

    da termodinmica no setor produtivo. Apesar da insistncia de Podolinsky para que a lei de entropia e o clculo de fluxos de matria-energia fossem incorporados anlise materialista da produo, no houve receptividade a idia, particularmente por parte de Engels, que dissuadiu Marx de inovar neste sentido:

    24

  • Engels pens que la ley de entropia de Clausius era contraditria con la ley de la conservacin de la energia, y expres la esperanza de que se hallaria una manera de utilizar de nuevo el calor irradiado al espacio (Alier e Schltipmann, 1991:272). Parece necessrio, alm disso, rever a nog -do de "meios"

    de produo: so apenas instrumentos? No ha em principio nenhuma diferena entre um martelo e um explosivo na area da construo civil? A idia implcita de que as ferramentas so neutras decorre de uma percepo equivocada. Nela se basearam os governos ditos proletrios do Pacto de Varsvia para degradar seus ecossistemas, tanto ou mais que os pases capitalistas do Ocidente. A anlise marxista, neste ponto, deveria distinguir entre tecnologia de alto impacto ambiental e a de baixo impacto (que gera menos eniropia e que, fundamentalmente, no leva nenhum ecossistema ao chamado ponto de no retorno, a partir do qual o desequilbrio se torna irreversvel e tem conseqncias imprevisveis).

    Com estas observaes, assinalo que Cohen falha ao privilegiar o aspecto quantitativo sobre o qualitativo na anlise do crescimento das foras produtivas.

    Cohen define as relaes de produo como relaes de poder econmico que as pessoas tm (ou no) sobre a fora de trabalho e os meios de produo. A totalidade destas relaes constitui a estrutura econmica numa determinada sociedade base ou fundao da superestrutura. A estrutura econmica, acentua o autor, "no inclui as foras produtivas". E a superestrutura, embora tenha demarcao controversa, inclui certamente as instituies legais e estatais. "Com certeza no verdade que todo fenmeno social no-econmico superestrutural", conclui e quanto a este aspecto Elster com ele concordaria.

    A partir deste ponto Cohen se limita a analisar a relao da ordem legal com as relaes de produo e com as foras produtivas, a fim de demonstrar que entre elas existe de fato

    25

  • uma explicao marxista de tipo funcional. Nas suas palavras, "o grau de desenvolvimento das

    foras produtivas explica a natureza das relaes de produo", que por sua vez "explicam o

    carter da superestrutura". Uma explicao funcional para o autor consiste "numa

    explicao em que um fato no mbito

    de uma certa ordem explica a ocorrncia do evento tipo prprio dessa ordem, a qual construmos previamente como hiptese. Eu chamo as leis que justificam as explicaes funcionais de leis de conseqncia".

    Exemplifica de forma abstrata: "Suponhamos uma causa, E, e seu efeito, E A causa da explicao no 'E ocorreu porque F ocorreu " porque neste caso ha o defeito de explicar-se um evento por outro que lhe posterior. A forma correta, diz ele, "E ocorreu porque causaria F" ou "E ocorreu porque a situao era tal que um evento do tipo E causaria um evento do tipo F".

    O autor resume assim seu argumento:

    1 0 grau de desenvolvimento das foras produtivas numa sociedade

    explica a natureza da sua estrutura econmica; 2 A estrutura econmica explica a natureza da superestrutura.

    "Considero as proposies 1 e 2 explicaes funcionais porque de

    outra forma no posso reconcilia-las com duas outras teses marxistas, a saber";

    3 A estrutura econmica de uma sociedade promove o desenvolvimento de suas

    foras produtivas; 4 A superestrutura estabiliza sua estrutura econmica. Das

    proposies 3 e 4 decorre que a estrutura econmica funcional para o desenvolvimento das

    foras produtivas, e que a superestrutura funcional para a estabilidade da estrutura econmica. Isso no implica por si s que as estruturas econmicas e as superestruturas so explicadas pelas referidas

    funes (Cohen, 1990:186).

    Elster coloca em dvida a tese de Cohen ao escrever que a teoria da base-estrutura no afirma que para que existam

    poltica e ideologia

    preciso que haja produo. Ela afirma que tipos

    especficos

    26

  • de atividades polticas e intelectuais observadas em sociedades de classes podem ser explicadas por referncia a formas igualmente especificas de organizao

    econmica. Longe de ser trivialmente verdadeira, essa teoria

    falsificvel e, de fato, falsa. Fenmenos politicos tm um considervel grau de autonomia (Elster, 1989a:130).

    Afinal, as teses centrais do materialismo histrico so ou no funcionais? Esta pergunta s pode ser respondida depois de uma definio do que seja uma explicao funcional. Mas Cohen e Elster tm percepes e objetivos diferentes quanto a isto, o que torna bastante complexo o debate. Enquanto Cohen v na explicao funcional mais precisamente definida um fato no censurvel nas cincias sociais e no marxismo, Elster ataca todas as formas de funcionalismo, talvez encontrando mais explicaes funcionais do que na realidade existem. Mas inegvel seu interesse em abrir um espao no materialismo histrico para a teoria dos jogos. Neste sentido sua critica da correspondncia da superestrutura base econmica (relaes de produo) genrica, mas em alguns pontos tambm mais precisa do que a defesa que Cohen faz do texto de Marx. E o caso do "considervel grau de autonomia" da atividade poltica. Elster, na busca de micro fundamentos, mais arguto do que seu adversrio ao tratar da superestrutura. Talvez este seja de fato um campo frtil para a teoria dos jogos.

    Contestando Elster, Cohen argumenta que a teoria dos jogos pode iluminar o comportamento de classe, mas o marxismo tem a ver fundamentalmente com as foras e relaes que condicionam e orientam o comportamento, "no com o comportamento em si". Quando se analisa o conflito de classe em termos de longo prazo, "a teoria dos jogos perde utilidade" (Op .cit. :188) .

    Elster interviria aqui para responder que "na falta de uma teoria que circunscreva os limites do longo prazo, essa afirmao infalsificvel e, portanto, no cientifica" (Elster, 1989a:131). Mas pode-se contra argumentar observando que o prazo-limite

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  • dado pela revoluo, que no um produto da teoria, mas da praxis politica e de vrios outros fatores histricos e econmicos. Seria correto impor ao materialismo histrico a tese da falsificabilidade de Popper7

    E uma questo das mais complexas, mas me inclino, neste caso e provisoriamente, a favor da posio de Cohen, porque Marx no teve propsito exclusivamente cientifico e porque o saber cientifico pode ser diferente, mas no superior a qualquer outro.

    A teoria da luta de classes mistura intenes politicas e

    cientificas. Seria preferivel distingui-las, mas no separ-las. At que ponto, no entanto, isto possivel?

    Cohen prossegue no seu ataque a teoria dos jogos: "A dialtica entre foras e relaes de produo, que constitui o pano de fundo da luta de classes, "no analisvel em termos de jogo".

    A teoria dos jogos ajuda a explicar as vicissitudes da luta, e as estratgias ali adotadas, mas no pode dar uma resposta marxista questo de por que as guerras de classe (por oposio a suas batalhas) tm tal desenlace e no outro. A resposta marxista que a classe que governa num period, ou emerge triunfalmente dos conflitos de uma poca, consegue faz-lo porque 6 a classe mais adequada, mais capaz e disposta, para presidir o desenvolvimento das foras

    produtivas num dado momento. (Op.cit.:188). Sobre isto Andres de Francisco faz uma observao aguda.

    Ele no v no proletariado um equivalente funcional da burguesia durante o perodo de

    transio, justamente porque as

    foras

    produtivas so tambm parte de um sistema destrutivo.

    No hay una clase aparte la actualmente dominante que ms pudiera impulsar la productividad del sistema hasta hacerle entrar en contradiccin com las relaciones capitalistas de propriedade (Francisco, 1988:227). Com esta

    combinao entre as divergncias de Cohen e Elster

    e a ltima observao de Francisco chegamos a um grave problema, provavelmente central para a continuidade do debate sobre o marxismo

    analtico.

    28

  • Se a teoria dos jogos insuficiente para tratar das relaes de classe em termos de longo prazo, ento ela no um instrumento de anlise realmente estratgico pode ser apenas ttico. A argumentao de Cohen no clara quanto a isto, nem detecta o problema apontado por Francisco. Procurando dialogar diplomaticamente com Elster, escreve Cohen:

    Quando confrontados a um problema estratgico, tal como o problema de transformar a sociedade, ns necessitamos de um pensamento estratgico, no funcionalista. Mas quando Marx conclama os trabalhadores a revolucionar a sociedade, ele no estava pedindo a eles que realizassem aquilo que explicaria as suas aes, ou seja, a exausto da capacidade de progresso da ordem capitalista e a disponibilidade de poder produtivo suficiente para instalar uma ordem socialista. (Op.cit.:189). Este me parece o ponto mais frgil de todo o artigo de

    Cohen. 0 autor parece esquecer que quando Marx faz a referida e famosa convocao aos trabalhadores ele no esta fazendo teoria ou anlise, mas um manifesto O Manifesto Comunista. A transformao da sociedade capitalista em socialista, sob a liderana da classe operria, requer sem dvida um pensamento estratgico e democrtico, no funcionalista. Mas ento o que dizer da racionalidade desta estratgia, se verdade que o sistema produtivo a um s tempo maximamente racional e maximamente irracional?

    Andrs de Francisco mais uma vez vai alm de Elster e Cohen ao reconhecer que "no es fcil encontrar esa o esas clases capaces de actuar racionalmente contra la destructividade ecolgica del capital" (...)

    ...tampoco es fcil imaginar a un proletariado industrial de los 'Daises avanzados reconvertido ecologicamente, pues es intuitivamente inmediata la contradiccin entre la dindmica de la lucha sindical (inserta en la nueva divisin internacional del trabajo) y la lucha ecolgicamente orientada que de seguro supondria el desmantelarniento y reconversin de gran parte de la indstria contaminante, con la subsiguiente prdida masiva de puestos de trabajo. (Francisco, 1988: 227).

    29

  • 6 Contribuies ao debate:

    No que foi dito destaca-se a problemtica da racionalidade utilizada no marxismo

    analtico e suas conseqncias para a anlise da hiptese de superao das sociedades capitalistas.

    No caso de Elster, h um reducionismo evidente, assumido. A normatividade do seu individualismo metodolgico se afasta dos juizos de valor e se restringe 6 racionalidade instrumental objetiva e lgica apenas aparentemente. Os juizos de valor so inerentes ao trabalho cientifico, j que a percepo das informaes s ganha sentido na medida em que acompanhada de um processo de recontextualizao imaginaria (Kant, 1996), que historicamente reconhecido como um processo de formao da ideologia. Elster parece intuir este fato, mas o encobre assumindo o individualismo metodolgico como doutrina. Assim, em vez de avanar em relao teoria, ele recua, fechando ainda mais sua ideologia 6.

    informao desviante. Este fechamento, por sua vez, prprio do reducionismo, o impede de ver e compreender a complexa relao entre racionalidade e irracionalidade. Dai seu apego 6 aparente ordem que deve ser buscada nos micro fundamentos, vistos como mecanismos internos.

    Com isto Jon Elster instala-se comodamente no paradigma dominante. Ele parece incapaz de tratar do desvio como algo no necessariamente irracional, mas a-racional e potencialmente formador de uma nova forma de racionalidade. A relao ordem-desordem e as

    caractersticas holonmicas, hologramticas e holoscpicas da percepo-rememorao-concepo (Morin, 1986:100) no so sequer discutidas pelo autor. A separao que ele parece conceber (isto no est explcito nas suas obras) entre biologia e psicologia implica em tomar a mente ou a conscincia individual como entidade separada dos neurnios e do crebro. A separao entre a mente e a natureza desmistificada, por exemplo, em Steps to an Ecology of Mind, em que Gregory Bateson afirma que o sistema mental que governa o modo como pensamos e aprendemos do mesmo tipo de sistema que governa a evoluo e a ecologia de toda a vida na Terra.

    30

  • A interpretao que Elster faz da teoria da escolha racional s aparentemente trata dos indivduos como seres racionais, porque ao restringir-lhes a racionalidade a um conjunto vivel de opes (timas ou subtimas) o que ele est fazendo, na realidade, restringir a concepo de liberdade ao direito de escolha e a racionalidade 'a sua face instrumental e descontextualizada historicamente (por meio da abstrao em jogos idealizados). Ora, basta concebermos a liberdade como inerente razo, tal como no Iluminismo (Kant, 1996), para ultrapassarmos o direito de escolha e visualizarmos a liberdade tambm como o poder de criar possibilidades, inventar caminhos, regras, jogos.

    A realidade fenomnica nunca dada, mas inevitavelmente tomada, ou seja, em algum grau interpretada e criada. E, neste ato de criar, emerge a questo da tica, dos juizos de valor e de suas conseqncias polticas de curto, mdio e longo prazos. A teoria dos jogos, bem criticada por Cohen, no cla conta das questes ticas nem das que envolvem o longo prazo. E uma teoria mais da ttica (meios) do que da estratgia (meios-fins) de transformao histrica. Por isso, e pelos argumentos elaborados por Cohen e Francisco, no se pode substituir no marxismo as teses funcionais do materialismo histrico.

    Quanto resposta de Cohen, ha tambm que perguntar-se sobre o paradigma que orienta sua racionalidade. Suas criticas a Elster parecem em geral argutas, mas sua defesa da explicao funcional no interior das cincias humanas e particulatmente no materialismo histrico no vo muito longe, na medida em que recorre a um abstracionismo justificatrio das idias de Marx. Cohen defende uma interpretao da explicao funcional e a transforma em leis de conseqncia. E difcil avaliar o alcance desta "lei" apenas pela leitura de seu artigo. Mas est clara sua inteno ideolgica na medida em que, como ele prprio expressa, trata-se de uma justificao: "Eu chamo as leis que justificam as explicaes funcionais de leis de conseqncia" (Cohen, 1990:183). Seu objetivo explicito dar coerncia ao materialismo histrico. Mas

    31

  • nesse intento ele se considera um solitrio, no recorre a nenhum outro marxista e, pelo contrrio, critica seus colegas de forma genrica e contundente ao afirmar que "a maioria dos marxistas so metodologicamente inconscientes de si". (Op.cit.:192). Por este caminho de defesa e ataque, ele chega a comparao do materialismo histrico (MH) com a teoria darwinista da histria natural, concluindo que o MH "est, no melhor dos casos, na situao da histria natural antes de Darwin" (Op.cit.:191).

    Os pensamentos tanto de Elster quanto de Cohen esto a meu ver enredados no contexto do paradigma dominante da racionalidade moderna. Suas obras privilegiam a anlise sobre a sintese de uma forma unilateral e redutora. Sua abertura interdisciplinaridade ainda muito acanhada e seu apego a frmulas sirnplificadoras da realidade fenomnica exagerado. A relao individuo-sociedade-meio ambiente 6 muito mais complexa do que aquela que aparece nas suas anlises.

    "Um pensamento de organizao que no compreende a relao auto-eco-organizadora, isto 6, a relao profunda e intima com o meio ambiente, que no compreende a relao hologramtica entre as partes e o todo, que no compreende o principio de recursividade, um tal pensamento est condenado insipidez, trivialidade, isto 6, ao erro" (Morin,1990:179).

    Andrs de Francisco o mais perspicaz dos trs e o que mais contribui, nesta comparao preliminar, para o avano

    do marxismo analitico. Andres de Francisco percebe as limitaes da racionalidade tanto de Elster quanto de Cohen. Seu equivoco a respeito da tica precisa ser relativizado, na medida em que ele claramente optou por no questionar a fragmentao ontolgica do marxismo

    analtico. Como conseqncia do que foi dito cabe perguntar: a

    chamada "crise do marxismo" foi realmente superada pelo marxismo

    analtico? Este esta de fato aberto ao desafio da

    interdisciplinaridade? At

    que ponto?

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