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221 EDITORIAL Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):221 Medicina e Arte Medicine and Art Apesar de todas as dificuldades vivenciadas no âmbito político, econômico e administrativo no Brasil, o ano de 2017 trouxe importantes avanços estruturais para a Sociedade Brasileira de Clínica Médica. A nossa revista científica completou 15 anos de exis- tência o que nos é motivo de imenso orgulho. Hoje a publicação se destaca como uma das principais referências científicas na esfera da Clínica Médica no nosso país. Tudo isso, fruto de um imenso esforço do corpo editorial, ao qual prestamos o nosso profundo agradecimento pela dedicação e esmero no trabalho realizado. Também expressamos nossa enorme gratidão aos milhares de autores que publicaram seus trabalhos na Revista da SBCM, colaborando sobremaneira para o incremento da qualidade da publicação. Nesta época de reflexões, lembramos que quando escolhemos ser médicos, nos comprometemos em estudar obstinadamente e dedicar anos e mais anos de nossas vidas à atualização científica, pois a ciência nos traz novidades a cada dia. Cuidar do outro é o que nos move e faz da medicina a nossa arte. É inquestionável, contudo, que o exercício da medicina em nosso País torna-se a cada instante mais desafiador, uma autên- tica guerra de titãs. Ante a cegueira social de expressiva parcela da classe política e à total falta de compromisso com os direitos elementares, vícios antes só presentes no universo estatal são transportados de forma recorrente para o mundo privado. Na saúde suplementar, o equilíbrio de mercado/econômico é solapado por maus empresários que buscam lucro fácil subtraindo direitos de usuários e sub-remunerando prestadores de serviço, como os médicos. Diante desse conjunto de complicadores, o cotidiano parece conspirar contra aquilo que almejamos para nossas vidas como mé- dicos. Aqui, tomo para mim não a oportunidade de um testemunho, mas a licença para respirar fundo e compartilhar da experiência de décadas e décadas de cuidado aos meus pacientes, de entrega a meus alunos e de convicção em princípios. Sempre há um jeito de assistir, de atender bem, a despeito de todas as adversidades, por maiores que sejam. Aí está o nosso maior bem, não é a sabedoria inflada por teorias, mas a prática alicerçada no amor ao outro, na satisfação de cuidar na alegria de salvar vidas. Desejamos a todos um natal pleno de harmonia e um ano novo repleto de novas conquistas. Prof. Dr. Antonio Carlos Lopes Presidente da SBCM © Sociedade Brasileira de Clínica Médica

Medicina e Arte - sbcm.org.br · Pancitopenia em pacientes com anemia perniciosa. Estudo descritivo de 33 casos ... pacientes com este quadro clínico evoluíam com língua robusta,

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221

EDITORIAL

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):221

Medicina e ArteMedicine and Art

Apesar de todas as dificuldades vivenciadas no âmbito político, econômico e administrativo no Brasil, o ano de 2017 trouxe importantes avanços estruturais para a Sociedade Brasileira de Clínica Médica. A nossa revista científica completou 15 anos de exis-tência o que nos é motivo de imenso orgulho. Hoje a publicação se destaca como uma das principais referências científicas na esfera da Clínica Médica no nosso país. Tudo isso, fruto de um imenso esforço do corpo editorial, ao qual prestamos o nosso profundo agradecimento pela dedicação e esmero no trabalho realizado. Também expressamos nossa enorme gratidão aos milhares de autores que publicaram seus trabalhos na Revista da SBCM, colaborando sobremaneira para o incremento da qualidade da publicação.

Nesta época de reflexões, lembramos que quando escolhemos ser médicos, nos comprometemos em estudar obstinadamente e dedicar anos e mais anos de nossas vidas à atualização científica, pois a ciência nos traz novidades a cada dia. Cuidar do outro é o que nos move e faz da medicina a nossa arte.

É inquestionável, contudo, que o exercício da medicina em nosso País torna-se a cada instante mais desafiador, uma autên-tica guerra de titãs. Ante a cegueira social de expressiva parcela da classe política e à total falta de compromisso com os direitos elementares, vícios antes só presentes no universo estatal são transportados de forma recorrente para o mundo privado. Na saúde suplementar, o equilíbrio de mercado/econômico é solapado por maus empresários que buscam lucro fácil subtraindo direitos de usuários e sub-remunerando prestadores de serviço, como os médicos.

Diante desse conjunto de complicadores, o cotidiano parece conspirar contra aquilo que almejamos para nossas vidas como mé-dicos. Aqui, tomo para mim não a oportunidade de um testemunho, mas a licença para respirar fundo e compartilhar da experiência de décadas e décadas de cuidado aos meus pacientes, de entrega a meus alunos e de convicção em princípios. Sempre há um jeito de assistir, de atender bem, a despeito de todas as adversidades, por maiores que sejam.

Aí está o nosso maior bem, não é a sabedoria inflada por teorias, mas a prática alicerçada no amor ao outro, na satisfação de cuidar na alegria de salvar vidas.

Desejamos a todos um natal pleno de harmonia e um ano novo repleto de novas conquistas.

Prof. Dr. Antonio Carlos LopesPresidente da SBCM

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

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artigo original

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):222-5

Pancitopenia em pacientes com anemia perniciosa. Estudo descritivo de 33 casosPancytopenia in patients with pernicious anemia: descriptive study of 33 cases

João Carlos Saraiva Wenceslau1, Herivaldo Ferreira da Silva2, Deivide de Sousa Oliveira2

Recebido da Universidade Etadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.

1. Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.2. Hospital Geral Dr. César Cals de Oliveira, Fortaleza, CE, Brasil.

Data de submissão: 11/09/2016 – Data de aceite: 15/09/2016Fontes de auxílio à pesquisa: nenhuma.Conflitos de interesse: não há.

Endereço para correspondência: João Carlos Saraiva WenceslauAvenida do Imperador, 545 – Centro CEP: 60015-152 – Fortaleza, CE, BrasilTel.: (85) 99670-0969 – E-mail: [email protected]

Número de aprovação no CEP: Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Geral Dr. César Cals/SES/SUS.Número do projeto (CAAE): 56750216.6.0000.5041.Número do parecer: 1.603.043.

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

ObjEtivO: Discriminar as variáveis de sexo e idade nos pa-cientes com anemia perniciosa; estudar seu perfil hematimé-trico; verificar a prevalência de outras doenças autoimunes e anemia perniciosa; analisar a incidência da pancitopenia e sua relação com alterações laboratoriais comum na doença; e avaliar a frequência dos autoanticorpos anticélulas parietais e antifator intrínseco. MétODOs: Estudo transversal descritivo, de base clínica e laboratorial, de 33 prontuários de pacientes com ane-mia perniciosa, diagnosticados em um ambulatório de hospital terciário de atenção à saúde, no período de junho de 2009 a junho de 2014. Para analisar a relação da presença e da ausência de pancitopenia com os níveis da enzima lactato desidrogenase e vitamina B12, foi utilizado o teste qui quadrado. O programa utilizado foi o software Epi Info, versão 7. REsuLtADOs: Na amostra, 63,6% eram mulheres, e a idade média geral foi de 47,3 anos. Doenças autoimunes estavam associadas em 30,3% dos pacientes. A pancitopenia esteve presente em 39,4% dos pacientes. Houve significância estatística na relação da pancito-penia com os níveis de enzima lactato desidrogenase (p<0,05). A prevalência do antifator intrínseco foi de 69,7% e dos autoan-ticorpos anticélulas parietais foi de 72,7%. COnCLusãO: A pancitopenia mostrou-se um achado significante na população com anemia perniciosa, assim como níveis elevado de LDH, acrescentando a anemia perniciosa como um diagnóstico dife-rencial de tais alterações laboratoriais.

Descritores: Anemia perniciosa; Pancitopenia; Doenças au-toimu nes; Vitamina B12

ABSTRACT

ObjECtivE: To discriminate the gender and age variables in patients with pernicious anemia; to study erythrocyte profile; to check the prevalence of other autoimmune diseases and pernicious anemia; to analyze the incidence of pancytopenia and its relationship with common laboratory abnormalities in the disease; to evaluate the frequency of anti-gastric parietal cell antibodies, and anti-intrinsic factor antibodies. MEthODs: Descriptive, cross-sectional study of clinical and laboratory-based medical records of 33 patients with pernicious anemia diagnosed in an outpatient’s department of a tertiary healthcare center, in the period between June 2009 and June 2014. To analyze the relationship between the presence and absence of pancytopenia with levels of lactate dehydrogenase enzyme and levels of Vitamin B12 we used the chi-squared test. The software used was Epininfo version 7. REsuLts: The sample showed 63.6% women and 36.4% men with a mean age of 47.3 years. Autoimmune diseases were associated in 30.3% of the patients. Pancytopenia was present in 39.4% of patients. There was statistically significant relationship of pancytopenia with lactate dehydrogenase enzyme levels (p <0.05). The frequency of anti-intrinsic factor antibodies was 69.7%, and the anti-gastric parietal cell antibodies was 72.7%. COnCLusiOn: Pancytopenia proved to be a significant finding among the population with pernicious anemia and high levels of LDH, which includes pernicious anemia as a differential diagnosis of such laboratory alterations

Keywords: Anemia, pernicious; Pancytopenia; Autoimmune diseases; Vitamin B12

INTRODUÇÃO

Os aspectos históricos da anemia perniciosa remontam ao ano de 1855, quando Thomas Addison descreveu um caso de um paciente com palidez, languidez e indisposição progressiva aos esforços.(1) Passados 30 anos, tornou-se aparente que vários pacientes com este quadro clínico evoluíam com língua robusta, dolorosa, avermelhada, lisa e alguns tinham dormência das digi-tais, evoluindo, em alguns casos, para espasticidade e ataxia. No final do século 19, demonstrou-se que pacientes com estas ma-

Pancitopenia em pacientes com anemia perniciosa

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nifestações clínicas tinham atrofia da mucosa gástrica e ausência de acidez no suco gástrico, assim como anemia caracterizada por eritrócitos grandes e ovais. Desde então, o termo “anemia perniciosa” (AP) adentrou na linguagem médica para designar pacientes com esta constelação de sinais clínicos e laboratoriais descritos anteriormente.(2)

A AP é uma doença imunomediada, que pode se apresen-tar como anemia megaloblástica. A deficiência de vitamina B12 ocorre pela carência de fator intrínseco (FI) secundária à presen-ça de anticorpos anti-FI e gastrite atrófica do corpo (GAC), a qual é resultante da destruição mediada pelo ataque linfocitário das células parietais, que produzem ácido clorídrico e FI.(3,4) A AP é considerada um estágio final da GAC.

A origem autoimune da AP é baseada na presença de autoan-ticiorpos contra células parietais e FI. Frequentemente, ocorre associação de AP com outras doenças autoimunes, como tireoi-dite de Hashimoto, diabetes mellitus tipo 1 (DM1), vitiligo, ti-reoidopatia de Graves, doença celíaca e doença de Addison.(3,5,6)

A etiologia mais comum de deficiência de vitamina B12 é a AP, que é uma das doenças autoimunes mais comuns nos países ocidentais.(5,7,8) Na população geral, a razão de incidência entre homens e mulheres brancos é de cerca de 1:1,6, e o pico etário é de 60 anos, tendo apenas 10% dos pacientes menos que 40 anos de idade. Em alguns grupos étnicos, porém, notavelmente em negros e latino-americanos, a AP costuma ser detectada mais precocemente.(9)

Pesquisas mostram que, em países ocidentais, a prevalência e a incidência anual de AP têm sido de aproximadamente de 150 a cada 100 mil habitantes e de 10 a cada 100 mil habitantes, respectivamente.(8,10)

As manifestações clínicas da AP são de síndrome anêmica, porém, como o principal fator etiológico é a deficiência de B12, podem existir outros sinais e sintomas não relacionados à anemia.

Em consequência da deficiência B12, podemos encontrar al-terações hematológicas, como pancitopenia; alterações neuroló-gicas, como degeneração combinada subaguda da medula espi-nhal, polineuropatia periférica e neuropatia óptica; e alterações neuropsiquiátricas, como alteração do humor, excitação, mania, depressão, alterações da personalidade, delírios, alucinações e défice de memória progressiva.(6)

A pancitopenia é um achado importante de muitas doenças sistêmicas e hematológicas, levando o médico a ter em mente vários possíveis diagnósticos diferenciais. Dentre eles estão as doenças infecciosas, como calazar, até graves doenças hema-tológicas, como a síndrome hemofagocítca. Neste contexto, é importante a correta interpretação de tal entidade, bem como, no que diz respeito à AP, estar ciente que esta enfermidade pode evoluir para pancitopenia.

Os objetivos desse estudo foram discriminar as variáveis de sexo e de idade nos pacientes com AP; estudar o perfil hema-timétrico no momento do diagnóstico; descrever a associação de outras doenças autoimunes com AP; analisar a incidência da pancitopenia e a relação desta com alterações laboratoriais comum na doença; e avaliar a frequência dos autoanticorpos anticélulas parietais (anti-CP) e anti-FI.

MÉTODOS

O estudo foi de natureza descritiva, do tipo transversal, pre-dominantemente quantitativo, envolvendo 33 pacientes com AP diagnosticados e assistidos em um serviço de clínica médica ambulatorial de hematologia de um hospital terciário de aten-ção à saúde, em Fortaleza (CE), no período de junho de 2009 a junho de 2014.

Os pacientes tiveram seus prontuários revisados por meio de uma ficha de coleta de dados pertinentes ao estudo.

Foram investigadas as principais comorbidades associadas, considerando positivo o diagnóstico da doença se esta estives-se devidamente laudada no prontuário. Foram avaliados: sexo, idade, índices hematimétricos, níveis da enzima lactato desidro-genase (LDH) e da vitamina B12 no momento do diagnóstico. Foram considerados com diagnóstico de pancitopenia pacientes com hemoglobina abaixo de 13g/dL, para homens, e abaixo de 12g/dL, para mulheres, juntamente de leucometria abaixo de 4.000/mm³ e plaquetometria abaixo de 150.000/mm³ para ambos os sexos.

Os critérios de inclusão foram pacientes do ambulatório com diagnóstico de AP, designada como deficiência de B12, GAC em esofagogastroduodenoscopia e presença do autoanti-corpos anti-CP e antifator intrínseco (anti-FI). Foram excluí-dos pacientes sem diagnóstico para AP ou com prontuário sem condições de coleta de dados.

Após levantamento dos valores hematimétricos, foi realizada inferência estatística por meio do software Epi Info, versão 7. Os dados listados na avaliação foram presença e ausência de panci-topenia, como variável independente, e, como variáveis depen-dentes, níveis de LDH acima e abaixo de 450U/L e de vitamina B12 acima e abaixo de 200pg/mL. Houve significância estatísti-ca na relação da pancitopenia com os níveis de LDH (p<0,05). A correlação de tais dados foi feita com o teste qui quadrado, com posterior inferência de chance de acontecimentos pela odds ratio. O nível de significância adotado foi de 95%.

O presente estudo segue os aspectos éticos da resolução 466, de 12 dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde e da Declaração de Helsinque. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Geral Dr. César Cals de Oliveira.

RESULTADOS

Foram analisados 33 prontuários de pacientes diagnostica-dos com AP, sendo 63,6% mulheres. A relação entre homens e mulheres foi de 1:1,8. A média de idade do diagnóstico entre homens e mulheres foi de 47,3 anos, sendo 45,4 anos para mu-lheres e 50,3 anos para homens. O paciente mais jovem do estu-do tinha 19 anos e o mais velho, 78 anos. A porcentagem diag-nóstica no paciente abaixo de 30 anos foi de 11,7% e, naqueles abaixo de 60 anos, 79%. No transcurso de 5 anos, a média de casos novos foi de 6,8/ano.

Em nosso estudo, laboratorialmente, o paciente com AP apresentou média de hemoglobina de 8,0g/dL, leucometria de 3.938/mm³ e plaquetometria de 195.581/mm³ (Tabela 1).

Wenceslau JC, Silva HF, Oliveira DS

224 Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):222-5

Nos pacientes estudados, AP esteve associada a diversas doenças autoimunes, como DM1, tireoidite de Hashimoto, ti-reoidopatia de Graves e vitiligo. A prevalência de doenças au-toimunes associadas foi de 30,3%, sendo 24,4% casos de tireoi-dopatias autoimunes, 3% de vitligo e 3% de DM1.

A pancitopenia esteve presente em 39,4%, sendo distribuída conforme mostra a Figura 1.

Os níveis de vitamina B12 foram dosados em 32 pacientes. Dos pacientes com pancitopenia, 76,92% tinham níveis de vita-mina abaixo de 200pg/mL (Tabela 2). Não houve significância estatística na avaliação da pancitopenia como fator de exposição para níveis de vitamina B12 abaixo de 200pg/mL (p=0,42).

Os níveis de LDH foram dosados em 31 pacientes; 92,86 % dos pacitopênicos mostraram-se com níveis de LDH acima de 450U/L (Tabela 3). Houve significância estatística na avaliação da pancitopenia como fator de exposição para níveis de LDH acima de 450 U/L (p=0,02).

No presente estudo, a prevalência do autoanticorpo anti-FI foi de 69,7% e do anti-CP foi de 72,7%. Apresentaram positi-vidade para ambos 42,4% dos pacientes.

DISCUSSÃO

A AP é frequentemente descrita como uma doença de adul-tos acima de 60 anos, conforme estudo com 177 pacientes, no qual 50% tinham idade abaixo de 60 anos, 4% abaixo de 30 anos e 10% entre 30 e 40 anos. No presente estudo, o diagnósti-co em pacientes abaixo de 30 anos foi de 11,7% e, abaixo de 60 anos, foi de 79%. A média de idade foi de 47,3 anos, conforme a média de idade de outros estudos, em torno de 59 a 62 anos.(3,10,11) A relação entre homens e mulheres, no presente estudo, foi de 1:1,8, corroborando a literatura, que estipula uma média de 1:1,6 entre homens e mulheres.

Nos pacientes estudados, a AP esteve associada a diversas doenças autoimunes, como DM1, tireoidite de Hashimoto, tireoidopatia de Graves e vitiligo. A prevalência de doenças au toimunes associadas foi de 30,3 %, sendo 24,2% casos de tireoidopatias autoimunes, 3% de vitligo e 3% de DM1. Em estudo multicênctrico coreano, foi evidenciada prevalência de tireoidopatias autoimunes em 10,2% da população. Há diferen-ça na incidência de doenças da tireoide em séries ocidentais e orientais. Em países ocidentais, estima-se em 24 a 27% a presen-ça de tireoidopatias associadas a AP,(12,13) corroborando evidência deste estudo.

Houve correlação positiva entre níveis baixos de vitamina B12 e pancitopenia, porém sem valor estatístico significante (p=0,42). Isso traduz a probabilidade de pacientes pancitopêni-cos estarem mais suscetíveis a níveis deficientes de B12 e, assim,

tabela 1. Caracterização dos índices hematimétricos da amostraAmostra hemoglobina média (g/dL) volume corpuscular médio médio (fl) Leucócitos médio (mm³) Plaquetas média (mm³)Homens (n=12) 8 98 3.787 179.525Mulheres (n=21) 8 95 4.024 204.757Total (n=33) 8 96 3.938 195.581

tabela 2. Associação da pancitopenia com os níveis de vitamina B12

Pancitopenia

vitamina b12 (pg/mL)

OR iC valor de p*

Abaixo de 200

n (%)

Acima de 200

n (%)Com 10 (76,92) 3 (23,08) 1,18 0,21-7,26 0,42sem 14 (73,68) 5 (26,32)* Teste do qui quadrado. OR: odds ratio; IC: intervalo de confiança.

tabela 3. Associação do pancitopenia com níveis de lactato desi-drogenase (LDH)

Pancitopenia

LDh (u/L)

OR iC valor de p*

Abaixo de 450

n (%)

Acima de 450

n (%)Com 1 (7,14) 13 (92,86) 0,11 0,004-0,926 0,02sem 7 (41,18) 10 (58,82)* Teste do qui quadrado. OR: odds ratio; IC: intervalo de confiança.

Figura 1. Pancitopenia em pacientes com anemia perniciosa (AP).

expostos a mais sintomas da síndrome, bem como serem condu-zidos baseados em outras hipóteses diagnósticas, tendo em vista que não é comum, no meio médico, a valorização do fato de a deficiência grave de cianocobalamina evoluir para tricitopenia.

Encontrou-se outra correlação positiva entre pancitopenia e os níveis elevados de LDH (p=0,02). O achado significa que pa-cientes com AP pancitopênicos estão mais suscetíveis aos níveis elevados de LDH, mostrando que o nível aumentado de LDH poder ser um fator que nos faça pensar em AP com pancitopenia além de outros diagnósticos diferenciais já conhecidos.

Pancitopenia em pacientes com anemia perniciosa

225Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):222-5

No presente estudo, a prevalência do autoanticorpo contra o FI foi de 69,7% e, contra as células parietais, foi de 72,7%. Apresentaram positividade para ambos 42,4% dos pacientes. Segundo estudo coreano multicêntrico, anti-FI esteve presente em 77,5% dos pacientes, e o anti-CP, em 43,2%.(7)

Nos países ocidentais, a frequência do anti-FI está em tor-no de 70% e do anti-CP, entre 35 a 40%.(7,14) A disparidade estatística, quanto à detecção dos autoanticopros, pode ser ex-plicada por sua evolução na detecção laboratorial. Em especí-fico ao anti-CP, há hipóteses de que o anticorpo diminui sua titulação de acordo com a destruição da mucosa gástrica. Esta informação favorece o fato de que, neste estudo, mostrou-se média de idade ao diagnóstico mais jovem do que a descrita na literatura e, portanto, uma presença maior de mucosa íntegra, gerando mais positividade de anti-CP.(14-16)

CONCLUSÃO

Foi notável a presença de associação entre anemia pernicio-sa e outras doenças autoimunes, fazendo necessário o diagnós-tico precoce destas. Devem ser realizados mais estudos, a fim de avaliar se a anemia perniciosa vinha sendo subdiagnosticada e o que é necessário para melhorar a acurácia deste diagnósti-co, considerando a faixa etária média para o diagnóstico deste estudo. A pancitopenia se mostrou achado significante entre a população com anemia perniciosa, possuindo relação com tendência à deficiência de B12 e aos níveis elevados da enzima lactato desidrogenase, o que nos acrescenta a anemia perniciosa com pancitopenia como diagnóstico diferencial de tais altera-ções laboratoriais.

REFERÊNCIAS

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226

ARTIGO ORIGINAL

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):226-9

1. Universidade Comunitária da Região de Chapecó, Chapecó, SC, Brasil.

Data de submissão: 14/02/2017 – Data de aceite: 16/02/2017Fontes de auxílio à pesquisa: nenhuma.Conflitos de interesse: não há.

Endereço para correspondência: Mariana Lora HennAvenida Senador Atílio Fontana, 591-E – Engenho BraunCEP: 89809-000 – Chapecó, SC, BrasilTel.: (49) 99976-7035 – E-mail: [email protected]

Número de aprovação no CEP: protocolo 170/14.

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

ObjEtivO: Conhecer as características e o perfil clínico dos indivíduos em tratamento de hepatite B crônica. MétODOs: Participaram do estudo 65 pacientes com hepatite B crônica que iniciaram o tratamento entre os anos de 2010 a 2012. RE-suLtADOs: Todos os pacientes eram da raça branca. Houve predomínio do sexo masculino (60%), e a maioria tinha entre 41 e 50 anos (32,8%). Grande parte dos pacientes (87,9%) não foi imunizada; 10,3% receberam as três doses da vacina e 43,1% possuíam familiar de primeiro grau ou parceiro com hepatite B crônica. A maioria (70,8%) relatou contato com algum fator de risco, sendo que 61,5% referiram ter realizado tratamento dentário. COnCLusãO: A implantação da vacina para toda população menor de 1 ano de idade, em 1996, pode ser uma explicação para a alta média de idade encontrada e pela inexis-tência de indivíduos menores de 23 anos no estudo. A vacinação completa, entretanto, ainda apresenta baixa adesão.

Descritores: Hepatite B/epidemiologia; Vírus da hepatite B; Perfil de saúde; Vacinação

ABSTRACT

ObjECtivE: To get to know the characteristics and clinical profile of subjects being treated for chronic hepatitis B. MEthODs: Sixty-five patients with chronic hepatitis B who started treatment between the years 2010 to 2012 participated in the study. REsuLts: All patients were white; there was a predominance of males (60%), and most of them were between 41 and 50 years (32.8%). Most patients (87.9%) were not immunized; 10.3% received all the three doses of the vaccine, and 43.1% had a first-degree relative or a partner with chronic

hepatitis B. Most of them (70.8%) reported contact with a risk factor, with 61.5% reporting having had dental treatment. COnCLusiOn: The implantation of the vaccine for all the population lower than 1 year of age, in 1996, can be an explanation for the high average age found, and the non-existence of individuals younger than 23 years in the study. Complete vaccination, however, still presents low adherence.

Keywords: Hepatitis B/epidemiology; Hepatitis B virus; Health profile; Vaccination

INTRODUÇÃO

A hepatite B crônica é uma doença causada pelo vírus da he-patite B (VHB), sendo seu diagnóstico confirmado pela persis-tência por mais de 6 meses do antígeno de superfície HBsAg no plasma, associado ou não a níveis elevados de enzimas hepáticas e achados histológicos.(1) Visto que tratar-se de uma doença sem cura e que pode dar origem a complicações tanto em sua fase aguda quanto crônica, e considerando sua grande prevalência e incidência, ela representa um grande problema de saúde pública a nível mundial.(2)

Segundo dados do Ministério da Saúde,(3) entre os anos de 1999 a 2011, foram notificados 120.343 casos de hepatite B no Brasil. A Região Sul registrou os maiores índices desde 2002. Entre os anos de 2007 a 2013, foram notificados, no município de Chapecó (SC), 904 casos de hepatite B, sendo esta conside-rada a cidade de Santa Catarina com o maior número de indiví-duos portadores da doença.

O presente estudo teve como objetivo conhecer as caracterís-ticas e o perfil clínico dos indivíduos em tratamento de hepatite B crônica. Este estudo justifica-se pelo intento de, a partir dele, ser possível identificar grupos de risco e fatores envolvidos na gênese e na evolução da doença.

MÉTODOS

Foi realizado um estudo observacional, descritivo do tipo transversal. Para a amostra, foram considerados pacientes crô-nicos de hepatite B. Os dados foram coletados a partir de pron-tuários e dados eletrônicos no Setor de Hepatites da Secretaria Municipal de Saúde em Chapecó, por meio do protocolo pre-viamente estabelecido pelos pesquisadores.

Foram incluídos neste estudo portadores de hepatite B crô-nica que iniciaram o tratamento entre os anos de 2010 a 2012 no Setor de Hepatites da Secretaria Municipal de Saúde de Cha-pecó, tendo sido considerados apenas aqueles monoinfectados

Perfil clínico de pacientes portadores de hepatite B crônica Clinical profile of patients with chronic hepatitis B

Mariana Lora Henn1, Rafaela Zarpelon Kunz1, Arlete Ferrari Rech Medeiros1

Recebido da Universidade Comunitária da Região de Chapecó, Chapecó, SC, Brasil.

Perfil clínico de portadores de hepatite B crônica

227Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):226-9

para a hepatite B crônica, sororreagentes para hepatite B há mais de 6 meses e que residiam em Chapecó. Foram excluídos pa-cientes que iniciaram o tratamento para hepatite B crônica em outros anos, que não 2010, 2011 e 2012; portadores de outras coinfecções (hepatite C e HIV); pacientes crônicos que ainda não iniciaram o tratamento por não se enquadrarem nos crité-rios de inclusão do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para hepatite B; portadores de hepatite B crônica acompanha-dos por outros profissionais ou instituições, como gastrentero-logistas e infectologistas; e que iniciaram o tratamento em ou-tras instituições ou em outra cidade que não Chapecó.

Para a análise do perfil clínico dos pacientes em tratamen-to da hepatite B crônica foram consideradas as variáveis: idade, sexo, raça, escolaridade, vacinação contra hepatite B, e os sinais e sintomas iniciais. O esquema vacinal foi classificado em com-pleto (três doses da vacina), incompleto ou não vacinado. Além disto, procurou-se verificar se o paciente possuía algum parente de primeiro grau ou parceiro que também apresentasse hepatite B crônica, e se ele já teve algum tipo de contato com a doença ou com algum portador do vírus (sexual, domiciliar e ocupacio-nal). Foi verificado se houve algum tipo de contato de risco para transmissão desta infecção, como: transfusão sanguínea; uso de drogas ou medicamentos injetáveis; tratamento dentário; rela-ção sexual com indivíduos previamente infectados; transplante de órgãos; ou procedimentos envolvendo acupuntura, piercings ou tatuagem.

O banco de dados foi construído no programa Excel® e, posteriormente, importado para o Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 19.0® para análise e interpretação das va-riáveis. Os resultados da pesquisa foram considerados estatisti-camente significantes quando o nível de significância foi menor ou igual a 5% (p≤0,05). Para análise das variáveis qualitativas, foram utilizados o teste qui quadrado, teste de Friedman test e teste de Mann-Whitney, enquanto que, para análise das variáveis quantitativas, foi utilizado o teste t de Student.

Os termos de declaração de ciência e concordância das ins-tituições envolvidas, de compromisso para uso de dados em ar-quivo e de termo de confidencialidade foram obtidos junto à Secretaria Municipal de Saúde de Chapecó. Após, o estudo foi enviado para o Comitê de Ética (CEP) em pesquisa da Unocha-pecó para análise e autorização, sob o protocolo 170/14.

RESULTADOS

Foram incluídos no estudo 65 pacientes em tratamento de hepatite B crônica entre os anos 2010, 2011 e 2012 no Setor de Hepatites da Secretaria Municipal de Saúde de Chapecó. Todos eles eram da raça branca, com predomínio do sexo masculino (60%) e a maioria com 41 a 50 anos (32,8%), com idade média de 49,14, variando de 23 a 82 anos. Os dados referentes à faixa etária estão expostos na tabela 1.

Em relação à escolaridade, a maioria (42,1%) dos pacientes tinha entre 4 e 7 anos de estudo, e não foi encontrado nenhum paciente analfabeto. Os dados referentes a esta variável estão ex-postos da figura 1.

Quanto ao esquema vacinal, 10,3% dos indivíduos fizeram as três doses da vacina (vacinação completa); 1,7% fez uma ou duas doses (vacinação incompleta) e 87,9% não foram imuni-zados. Todos os pacientes com menos de 3 anos de escolaridade não receberam qualquer tipo de esquema de vacinação (com-pleto ou incompleto). A relação entre vacinação e escolaridade, no entanto, não apresentou significância (p<0,396).

Dos pacientes em análise, 56,9% não tinham familiar de primeiro grau ou parceiro com hepatite B crônica, e nenhum deles recebeu vacinação completa, ao passo que pacientes que tinham esta relação integraram todos os casos de vacinação com-pleta da amostra do estudo. Este cruzamento apresentou uma significância de p<0,007, calculado pelo teste de qui quadrado.

Em relação ao tipo de contato com algum paciente com he-patite B ou portador do VHB, a maioria (n=39) referiu não ter contato. Nenhum paciente referiu ter contato ocupacional. Os dados estão expostos na figura 2.

A presença de sinais e sintomas foi verificada nos prontuá-rios de apenas 31 pacientes. Destes, 90,3% apresentaram-se assintomáticos; 3,2% apresentaram anorexia; 3,2%, astenia e cefaleia; 3,2%, acolia e dor abdominal. Não foram verificados os seguintes sinais e sintomas: febre, colúria e hepatomegalia.

A possível forma de transmissão do vírus e de instalação da doença foi avaliada de acordo com possíveis fatores de risco aos quais o paciente pudesse ter sido exposto anteriormente à in-fecção. Dos 65 pacientes, 70,8% relataram contato com algum fator de risco (Tabela 2).

tabela 1. Faixa etária dos pacientes em tratamento de hepatite B

Faixa etária (anos) indivíduos (n=64) n (%)

0-10 011-20 021-30 3 (4,7)31-40 13 (20,3)41-50 21 (32,8)51-60 15 (23,4)61-70 9 (14,1)>71 3 (4,7)

Figura 1. Anos de escolaridade dos pacientes em tratamento de hepatite B crônica (n=57).

Henn ML, Kunz RZ, Medeiros AF

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DISCUSSÃO

Em relação ao sexo, este estudo encontrou prevalência do masculino. Em estudo que avaliou os casos de hepatite B noti-ficados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) em todo o Brasil entre os anos de 2009 a 2012, tam-bém foi encontrada uma prevalência do sexo masculino, com 52,62% das notificações.(4) Em análise do perfil epidemiológico de portadores de hepatite B em um serviço público de São Pau-lo foi evidenciado que o sexo masculino também foi predomi-nante, correspondendo a 62,5% dos casos.(5)

Quanto à raça, 100% da amostra do nosso estudo corres-pondia a caucasianos. Cruz et al.(5) encontraram 75,7% de indi-víduos da raça branca. Um dos fatores que pode ter contribuído para este resultado faz referência à colonização das duas regiões: Chapecó é uma região em que prevaleceu a colonização europeia (predominantemente caucasianos), ao contrário de São Paulo, em que existe uma maior heterogeneidade de etnias.

Nosso estudo encontrou idades variando entre 23 e 82 anos, ou seja, dados muito próximos aos encontrados em um estudo de coorte entre pacientes cronicamente infectados pela hepatite B em um hospital de Porto Alegre (RS), em que a idade dos pacientes variou entre 23 a 79 anos.(6) Este resultado semelhante pode ser devido à relativa proximidade entre as duas cidades e ao fato de que ambos os trabalhos atendiam a vários critérios de inclusão e exclusão semelhantes. A implantação da vacina da hepatite B para toda população menor de 1 ano de idade em 1996(3) foi um avanço importantíssimo na prevenção desta in-

fecção, e isto pode ser uma explicação para a alta média de idade na amostra do estudo, que foi de 49,14 anos.

Não foram encontrados indivíduos com menos de 20 anos de idade em nosso estudo; 20,3% tinham entre 31 a 40 anos; e 4,7% tinham mais de 71 anos. A faixa etária prevalente concentrou-se entre 41 a 50 anos, correspondendo a 32,8%. Foi verificado que, no Brasil, a maior incidência de hepatite B encontrava-se entre a faixa etária de 40 a 59 anos e, em Santa Catarina, na faixa etária entre 20 a 39 anos.(7)

A não ocorrência de indivíduos cronicamente infectados pela hepatite B em menores de 23 anos pode ser um reflexo da implantação da vacinação anteriormente ao nascimento destes, tornando-os possivelmente imunes, visto que a taxa de proteção em indivíduos submetidos ao esquema completo de imunização é de aproximadamente 95%.(8) Desta maneira, é esperado que os índices de hepatite B crônica diminuam sua incidência com o passar das gerações. Ainda, o aumento verificado com a idade associa-se às populações em que os mecanismos mais importan-tes envolvem aspectos comportamentais adquiridos ao longo da vida,(9) como a maior frequência de cirurgias e outros procedi-mentos invasivos que possam induzir a transmissão parenteral, o uso de drogas injetáveis e relações sexuais desprotegidas.(10)

Neste trabalho, a maioria da amostra (42,1%) apresentava entre 4 a 7 anos de estudo, e não houve relação entre infecção e menor taxa de escolaridade. No estudo de Dias et al.,(11) 72,1% dos indivíduos infectados tinham menos de 8 anos de escolari-dade e, ao contrário do presente estudo, foi evidenciada associa-ção entre o analfabetismo e maiores taxas de infecção pelo VHB.

Quanto à vacinação contra a hepatite B, neste estudo 10,3% dos indivíduos realizaram a imunização completa e a maioria (87,9%) não foi vacinada. Um estudo avaliou o perfil epide-miológico de pacientes infectados pelo VHB no município de São Miguel do Oeste, cidade do oeste de Santa Catarina muito próxima a Chapecó, e averiguou que 67,5% dos pacientes não apresentavam nenhuma das três doses da vacina, e que 25% re-feriam vacinação completa.(12) Em uma análise do perfil epide-miológico de portadores de hepatite B em Chapecó, foi encon-trado que 83,3% dos portadores não apresentavam o esquema de vacinação contra o agravo.(13) Os dois estudos realizados em Chapecó encontraram valores bastante semelhantes a respeito da vacinação e demonstraram que, mesmo com as campanhas a favor da imunização e da obrigatoriedade da vacinação em menores de 1 ano, não houve melhora significativa nos índices de vacinados ao longo dos anos.

No presente trabalho, 43,1% dos indivíduos tinham algum familiar de primeiro grau ou parceiro portador da doença. Ou-tro estudo encontrou maior significância nesta relação, visto que 83,3% dos indivíduos HBsAg reagentes possuíam pelo menos um familiar com sorologia positiva na mesma moradia, sugerin-do que o ambiente familiar possa ter contribuído para a disse-minação do vírus.(14)

Nosso estudo demonstrou grande associação com fatores de risco, principalmente em relação à realização de tratamento den-tário, que esteve presente em 61,5% da amostra. Outro estudo realizado em Chapecó corroborou mais uma vez nossos resulta-dos: em 56,3% da amostra o tratamento dentário foi encontra-

tabela 2. Fatores de risco prévios à infecção pelo vírus da hepatite B no município de Chapecó entre os anos de 2010 a 2012 (n=46)

Fator de risco indivíduos (n=46)n (%)

Tratamento dentário 40 (61,5)Transfusão de sangue 5 (7,7)Transplante de órgãos 0Atividade sexual 3 (4,6)Acupuntura, tatuagens ou piercings 10 (15,4)Drogas ou medicamentos injetáveis 2 (3,1)Sem fator de risco 19 (29,2)

Figura 2. Contato dos pacientes em tratamento de hepatite B crônica com outros portadores da infecção (n=58).

Perfil clínico de portadores de hepatite B crônica

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do como possível fonte e mecanismo de infecção.(13) Os outros fatores de risco encontrados em nosso estudo não apresentaram tanta significância, visto que apenas 9,2% referiram realização de transfusão e 3%, uso de drogas injetáveis. No estudo de Zatti et al.(4) foi encontrado que 28,6% dos casos de hepatite B foram adquiridos pelo uso de drogas injetáveis, 16,2% por transmissão sexual e 8,4% por transmissão transfusional.

CONCLUSÃO

A implantação da vacina para toda população menor de 1 ano de idade, em 1996, pode explicar a alta média de idade encontrada e a inexistência de indivíduos menores de 23 anos neste estudo. A prevenção, por meio da imunização, apresen-tou-se muito evidente em indivíduos que possuíam familiar de primeiro grau com a infecção, mas a vacinação completa ainda apresenta baixa adesão, mesmo em Chapecó, considerada uma das cidades mais endêmicas do Brasil.

Diante dos resultados encontrados, sugere-se a implantação de estratégias que visem à redução dos casos de infecção, o que inclui aumento da cobertura vacinal, campanhas de conscien-tização dos fatores de risco, estratégias para redução de danos por meio da disseminação de informações para os profissionais de saúde e manejo precoce dos pacientes portadores do vírus da hepatite B crônicos.

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230

artigo original

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):230-4

Queda em idosos: estudo de base populacional Falls in the elderly: a population-based study

Inês Gullich1, Davi Dorval Pereira Cordova1

Recebido da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.

1. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.

Data de submissão: 25/10/2016 – Data de aceite: 27/10/2016Fontes de auxílio à pesquisa: não há.Conflitos de interesse: não há.

Endereço para correspondência: Davi Dorval Pereira CordovaRua Gomes Carneiro, 1 – CentroCEP 96010-610 – Pelotas, RS, Brasil Fone: (53) 99102-0561 – Email: [email protected]

Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde da Universidade Federal de Pelotas (Processo 320.865 /2013).

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

ObjEtivO: Avaliar a prevalência de quedas em idosos e possí-veis fatores associados. MétODOs: Estudo transversal de base populacional realizado por meio da aplicação de questionário domiciliar a todos os idosos com 60 anos ou mais residentes nas zonas urbana e rural do município de Arroio Trinta (SC), em 2013. Realizou-se análise bivariada, buscando medir o nível de associação entre as variáveis independentes com o desfecho “presença de quedas”. Para a comparação entre proporções, foi utilizado o teste qui quadrado. REsuLtADOs: Do total de 568 idosos, 552 participaram do estudo. A prevalência de quedas foi de 28,3%; a prevalência de três ou mais quedas (38,5%) foi li-geiramente superior a de uma única (35,9%), sendo o próprio lar (49,3%) o local de maior ocorrência. Em 13,5% das quedas, ocorreram fraturas. O aumento da idade mostrou-se associado às quedas nos idosos (p=0,04). COnCLusãO: A prevalência encontrada, mesmo dentro dos padrões brasileiros, é elevada, considerando que se trata de um desfecho evitável. A idade avançada foi a única variável associada ao desfecho neste estudo. As quedas em idosos são multifatoriais e de complexa análise, sendo necessários mais estudos para se definirem os fatores asso-ciados, bem como comparar as diferentes realidades brasileiras.

Descritores: Idosos; Acidentes por quedas; Índice de massa corporal; Estudos transversais; Inquéritos epidemiológicos, Fatores de risco

ABSTRACT

ObjECtivE: To evaluate the prevalence of falls in the elderly, as well as the possible associated factors. MEthODs: Cross-

sectional, population-based study performed through the application of a household questionnaire to every person of 60 years of age or older living in the urban and rural areas of the city of Arroio Trinta (state of Santa Catarina) in 2013. A bivariate analysis was performed to evaluate the association level among independent variables and the outcome (occurrence of falls). The Chi-square test was performed for proportion comparison. REsuLts: There were 568 elderly people, of whom 552 participated in the study. The prevalence of falls was 28.3%;the prevalence of three or more falls (38.5%) was slightly above that of one single fall (35.9%), with the own home (49.3%) being the place of greatest occurrence of falls. Fractures occur in 13.5% of falls. Age increase was associated with falls (p=0.04). COnCLusiOn: The prevalence found, even though within Brazilian standards, is high because it is a preventable outcome. The advanced age was the only variable associated with the outcome in this study. Falls in the elderly are multifactorial and of complex analysis; therefore, more studies are necessary to define the associated factors, as well as to compare the different realities in Brazil.

Keywords: Aged; Accidental falls; Body mass index; Cross-sectional studies; Health Surveys; Risk factors

INTRODUÇÃO

A transição demográfica, outrora fenômeno típico de países desenvolvidos, já se tornou parte da história dos países em de-senvolvimento, incluindo o Brasil. No entanto, ao contrário dos países desenvolvidos, houve pouco tempo para adequar os ser-viços de saúde às novas demandas da população; por exemplo, até o ano de 2050, estima-se que existirão mais idosos do que crianças abaixo de 15 anos.(1) Esta realidade aumenta o interesse da saúde pública para a área geriátrica.

Com a mudança do perfil epidemiológico brasileiro, perce-be-se a necessidade de alterar o foco das orientações de saúde, para que a população tenha uma melhor qualidade de vida na terceira idade. Para os indivíduos idosos, em especial, as quedas são muito preocupantes, pela prevalência e pelas consequências que geram na qualidade de vida.(2) Além das sequelas físicas no idoso decorrentes de uma queda, há ainda a perda de autono-mia, o medo de cair novamente e o custo para o sistema de saúde público, principalmente quando há necessidade de internação.

A taxa de pessoas idosas que caem a cada ano é cerca de 30%. Este porcentual cresce conforme a idade, atingindo 40% acima de 80 anos, com influência de outros fatores,(1) como uso de medicamentos(3) ou sexo feminino, o qual possui prevalência de queda maior até os 75 anos − igualando-se às quedas mas-

Queda em idosos

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culinas a partir dessa idade.(1) Embora existam muitas publica-ções sobre quedas em idosos, há grande diversidade nos critérios adotados para análise do evento,(4) e a maior parte dos estudos utiliza amostras de grandes e médios centros urbanos.

O objetivo do presente estudo foi avaliar a prevalência de que-das em idosos e possíveis fatores associados.

MÉTODOS

O presente estudo foi conduzido no município de Arroio Trinta (SC), localizado na região centro oeste do Estado. Re-gistrava, na época do estudo, população estimada em 3.500 ha-bitantes, sendo composta em sua maioria por descendentes de italianos.

A população alvo deste estudo foi constituída por todas aquelas pessoas com 60 anos ou mais de idade residentes neste município entre os meses de setembro e dezembro de 2013. Foram excluídos idosos que, por alguma limitação física ou cognitiva, estivessem impedidos de responder o questionário. Idosos que se encontravam hospitalizados, viajando ou que se recusaram a participar do estudo foram contabilizados como perdas.

O delineamento utilizado neste estudo foi do tipo trans-versal (ou de prevalência). O instrumento aplicado constou de questionário padronizado, pré-codificado que buscava infor-mações sobre características demográficas, socioeconômicas, ambientais, comportamentais, de morbidade e utilização de serviços de saúde. A variável dependente (desfecho) foi cons-truída a partir pergunta: “O Sr.(a) caiu/sofreu alguma queda nos últimos 12 meses?”. Para aplicar este questionário, foram recrutados 14 alunos provenientes da única escola de Ensino Médio do município. Estes alunos receberam treinamento ao longo de 5 dias consecutivos, visando à aplicação deste ques-tionário nos domicílios. Ao final do período de treinamento, dez deles foram escolhidos para realizar as entrevistas. Inicial-mente, o município foi dividido em microáreas. Na área ur-bana, a divisão foi feita com base em ruas, enquanto que, nas áreas rurais, esta divisão se deu com base em povoados, rios, pontes, montanhas ou estradas vicinais.

Em cada um dos domicílios existentes nestas áreas, o entre-vistador visitava e perguntava a um adulto a idade das pessoas que ali residiam. Esta reposta era anotada em uma planilha impressa (folha de conglomerado). Caso houvesse alguém com 60 anos ou mais de idade, o estudante apresentava o estudo e convidava para participar dele. Neste caso, um Termo de Concordância Livre e Esclarecido era dado para o morador assinar. Em caso de aceitação e após a assinatura deste termo, procedia-se à aplicação do questionário.

Ao final de cada dia de trabalho, os entrevistadores revisa-vam os questionários aplicados e, no dia seguinte, os entregavam na sede do projeto, onde eram revisados e tinham as questões abertas codificadas. Em seguida, estes questionários foram du-plamente digitados e comparados, utilizando-se dos programas Epidata 3.1(5) e Epi Info™,(6) respectivamente. Após, os dados foram analisados no pacote estatístico Stata 11.2,(7) no qual se realizou análise bivariada, buscando medir o nível de asso-

ciação entre as variáveis independentes e com o desfecho (presença de quedas). Para a comparação entre proporções, foi utilizado o teste qui quadrado. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde (CEPAS) da Universidade Federal de Pelotas (Processo 320.865 /2013).

RESULTADOS

Da amostra de 552 idosos, dois terços moravam na área ur-bana do município, e a maior parte dos entrevistados (59,1%) tinha entre 60 e 69 anos. Pouco mais da metade dos indivíduos era do sexo feminino, e mais de 90% da amostra relatou ter cor de pele branca. Grande parte dos idosos (71,7%) era casada, cerca de 40% tinham 4 anos completos de escolaridade, e aproxima-damente 53% dos idosos da amostra possuíam renda familiar superior a três salários mínimos. Nos últimos 7 dias anteriores ao questionário, 28,4% tinham praticado alguma forma de ati-vidade física.

A prevalência de queda no ano anterior à pesquisa foi de 28,3%. Dentre os indivíduos que sofreram quedas, a prevalên-cia de três ou mais delas (38,5%) foi ligeiramente superior a de uma única (35,9%), sendo o próprio lar o local de ocorrência de quase metade das quedas. Em 13,5% das quedas, ocorreram fraturas. Em torno de 70% dos idosos usavam óculos ou lentes (Tabela 1).

Dentre os fatores associados a quedas, a idade avançada mos trou-se associada ao desfecho, com quase 40% dos idosos com 80 anos ou mais tendo sofrido alguma queda nos 12 me-ses anteriores a pesquisa. As outras variáveis independentes não demonstraram diferença estatística por apresentarem um valor de p superior a 0,05. Tais variáveis foram: área de residência, sexo, cor da pele, estado civil, escolaridade em anos completos, tipo de moradia, renda familiar em salários mínimos, prática de atividade física nos últimos 7 dias, uso diário de algum medica-mento, índice de massa corporal (IMC) e uso de óculos (Tabela 2).

DISCUSSÃO

A prevalência de quedas no presente estudo foi de 28,3% na amostra de idosos de Arroio Trinta. Tal valor está próximo ao encontrado em outros estudo brasileiros,(2,4,8) mas este grupo pode ter um risco de quedas recorrentes de até quatro vezes.(9) Entretanto, não houve diferença estatística em relação à área ur-bana ou rural, e há uma carência de estudos para correlacionar este achado com de outras regiões do Brasil.

Em relação à idade dos idosos que sofreram queda no ano anterior, a pesquisa mostrou tendência linear e proporcional à idade, o que está de acordo com a literatura.(2,8) Isto se dá pro-vavelmente pelo processo de envelhecimento ser acompanhado por perda de massa muscular e óssea, o que facilita a ocorrência de quedas, mas que pode ser amenizado com a prática de ativi-dade física regular.(8)

Mulheres idosas apresentam maior prevalência de queda do que homens idosos,(2,4,10) porém não houve significância estatís-tica no resultado obtido neste estudo. Um fato a se considerar

Gullich I, Cordova DD

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tabela 1. Características dos idosos Característica n (%)Área de residência

Urbana 370 (67,0)Rural 182 (33,0)

Idade, anos60-69 326 (59,1)70-79 169 (30,6)≥80 57 (10,3)

SexoMasculino 251 (45,5)Feminino 301 (54,5)

Cor da pele autorreferidaBranca 513 (92,9)Parda/morena 37 (6,7)Preta 2 (0,4)

Estado civilCasado 396 (71,7)Separado/viúvo 126 (22,8)Solteiro 30 (5,4)

Escolaridade, anos Nenhum 52 (9,4)1-3 196 (35,5)4 222 (40,2)≥5 82 (14,9)

Renda familiar, salário mínimoAté 1,9 35 (6,4)2-2,9 222 (40,2)≥3 295 (53,4)

Prática atividade física, últimos 7 dias 157 (28,4)Uso diário de algum medicamento 432 (78,3)Queda nos últimos 12 meses 156 (28,3)Número de quedas

1 56 (35,9)2 40 (25,6)≥3 60 (38,5)

Local das quedasPrópria casa 77 (49,3)Casa de terceiro 6 (3,9)Na rua 50 (32,1)Na própria casa e na rua 23 (14,7)

Tipo de moradiaPrópria 514 (93,12)Alugada 21 (3,80)Emprestada 17 (3,08)

Fratura após queda 21 (13,5)Uso de óculos ou lentes 398 (72,0)

na análise é que a literatura retrata principalmente a população de cidades maiores do que a observada, havendo consequente-mente diferenças nas características das amostras estudadas. Por exemplo, podem existir diferenças nas prevalências de doenças

tabela 2. Prevalência de quedas em idosos nos últimos 12 meses segundo variáveis independentesvariável % valor de pÁrea de residência 0,890

Urbana 28,4Rural 27,8

Idade, anos 0,04160-69 24,570-79 31,9≥80 38,6

Sexo 0,132Masculino 25,1Feminino 30,9

Cor da pele autorreferida 0,060Branca 27,7Parda ou morena 32,4Preta 100

Estado civil 0,189Casado 25,7Solteiro 30,0Viúvo 35,4Separado/divorciado 38,4

Escolaridade, anos 0,3480-3 26,64 31,5≥5 24,3

Tipo de moradia 0,806Própria 28,0Alugada 28,5Emprestada 35,2

Renda familiar, salários mínimos 0,706Até 1,9 34,22-2,9 27,4≥3 28,1

Prática de atividade física nos últimos 7 dias 0,938Não 28,3Sim 28,0

Uso diário de algum medicamento 0,242Não 21,6Sim 30,2

Índice de massa corporal 0,93213-21,9 26,122-26,9 28,3≥27 27,3

Usa óculos ou lentes 0,212Não 24,6Sim 29,9

como osteoporose, que atuam como fatores de risco para queda em idosos.(9) Cor da pele autorreferida não apresentou signifi-cância estatística, e vale ressaltar que, na pesquisa, apenas dois indivíduos se declararam de cor preta.

Queda em idosos

233Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):230-4

Quanto ao estado civil dos idosos, a principal hipótese era de que morar sozinho ou ser viúvo e, portanto, não haver al-guém para ajudar nas tarefas diárias, seria um fator a quedas, mas esta hipótese não se confirmou. Pesquisa realizada com mais de 4.000 idosos apresentou resultados diferentes, associando se-paração ou viuvez com quedas em idosos.(2) Por outro lado, o presente estudo condiz com o de Gai et al.(11) Uma hipótese é a de que em municípios pequenos exista um núcleo familiar mais preservado e que a presença próxima dos familiares compense a separação ou viuvez.

O Ministério da Saúde considera o ambiente como um im-portante fator na ocorrência de quedas em idosos,(1) sendo, por-tanto, plausível que idosos que morassem em casa própria ou que tivessem maior renda familiar sofressem menos quedas em relação àqueles que habitam casa alugada/emprestada ou com menor renda, devido à capacidade de poder reformá-la e evitar a presença de pisos escorregadios, escadas íngremes ou outros obs-táculos. No entanto, estas variáveis não apresentaram significân-cia estatística. A explicação possível é que, mesmo quem mora em casa própria ou tem maior renda, pode não ter consciência da necessidade de alterações para garantir a segurança do idoso.

Ter praticado alguma forma de atividade física foi uma variá-vel que não demonstrou diferença estatística, o que difere de ou-tros estudos, os quais relatam geralmente o sedentarismo como fator de risco para quedas.(2,10) No entanto, estes estudos avaliam a prática regular de atividade física. Já na amostra pesquisada, foi questionado o exercício em relação aos 7 dias anteriores à aplicação do questionário, o que pode ter englobado pessoas se dentárias (mas que fizeram alguma atividade física recente) e não sedentárias em um mesmo grupo.

Fazer uso diário de medicamentos é considerado por vários estudos fator associado a quedas em idosos;(2,3,8) por exemplo: em pesquisa com 410 idosos, o uso de medicamentos como captopril ou clonazepam foi muito mais prevalente nos idosos que sofreram alguma queda.(3) Já no presente estudo, não houve significância estatística no uso diário de medicamentos, mas não foi perguntado qual medicamento era usado pelo entrevistado, anotando-se apenas se era feito ou não uso diário de qualquer medicamento, o que pode ter influenciado nos resultados.

Ao questionar os entrevistados sobre o uso de óculos, não foi exigido saber o distúrbio de visão presente, o que também pode ter influenciado no resultado. Neste estudo, não houve as-sociação desta variável com o desfecho, porém, na pesquisa con-duzida por Perracini, demonstrou-se que distúrbios de visão ti-nham influências diferentes no desfecho: a diminuição severa da acuidade visual foi associada a uma chance 2,2 maior de queda, enquanto que redução da sensibilidade ao contraste associou-se à chance de 1,1 vez maior de queda.(4)

Poucos estudos buscaram associar o IMC e a ocorrência de quedas, geralmente focando-se apenas no sedentarismo. Nos re-sultados obtidos, os grupos com baixo peso (IMC entre 13 e 21,9, conforme critério do Ministério da Saúde), peso adequa-do (IMC entre 22 a 26,9) ou sobrepeso (IMC maior que 27) tiveram distribuição parecida, com um pouco menos de 30% dos idosos divididos em cada um destes grupos, mas, ainda assim, não houve significância estatística para esta variável. Um estudo de 2010 também tentou associar IMC e ocorrência de

quedas em uma amostra de 102 idosos, no entanto, mesmo que 67,65% apresentassem sobrepeso, também não houve diferença estatística.(12)

Este estudo pode estar sujeito a limitações metodológicas, por ter um delineamento transversal, não sendo possível estabe-lecer relações de causalidades. Ainda, como os resultados foram obtidos a partir de um questionário aplicado aos entrevistados, ele pode estar sujeito a vieses, como o de memória. A capacidade cognitiva e a memória do entrevistado podem ter afetado alguns dos resultados.

CONCLUSÃO

Mesmo a prevalência de quedas encontrada estando den-tro dos padrões brasileiros, ainda se trata de um valor muito elevado, principalmente ao se considerar as consequências que causam na qualidade de vida de um idoso e por serem um des-fecho que pode ser evitado, ao se considerar um ambiente mais adequado a uma pessoa idosa. A idade avançada foi a única va-riável associada ao desfecho; as demais não tiveram significância estatística. Independente de um idoso morar no meio rural ou urbano, sempre há obstáculos que podem proporcionar riscos a esta população. Portanto, é necessário conhecê-los melhor, por meio de mais estudos, em uma quantidade maior de ambientes variados, uma vez que a ocorrência de quedas em idosos é um processo multifatorial.

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235

ARTIGO ORIGINAL

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):235-9

Associação de vitiligo com autoanticorpos tireoidianos Vitiligo and its association with thyroid autoantibodies

Viviane Gonçalves Furtado1, Othelo Amaral de Oliveira1, Silvia Ferreira Rodrigues Muller2

Recebido da Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.

1. Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil. 2. Universidade do Estado do Pará, Belém, PA, Brasil.

Data de submissão: 24/11/2016 – Data de aceite: 29/11/2016Fontes de auxílio à pesquisa: nenhuma.Conflitos de interesse: não há.

Endereço para correspondência: Viviane Gonçalves FurtadoServiço de Dermatologia da Universidade Federal do ParáFundação Santa Casa de Misericórdia do ParáRua Bernaldo Couto, s/n – UmarizalCEP: 66050-380 − Belém, PA, BrasilTel.: (91) 4009-2300 − E-mail: [email protected]

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

ObjEtivO: Analisar a presença de autoanticorpos antitireoi-dianos (anti-TPO) no soro de pessoas acometidas por vitiligo. MétODOs: Estudo do tipo caso-controle retrospectivo re-alizado em serviço de dermatologia de referência na Amazô-nia, com amostra constituída por dois grupos: Grupo Vitiligo (n=56), com diagnóstico clínico de vitiligo, e Grupo Controle (n=30), que se declarou sadio, não portador de vitiligo, de ou-tra dermatose e/ou doença autoimune diagnosticada. O registro dos dados foi feito pelo preenchimento de protocolo específico usado em entrevista para ambos os grupos, além de coleta de sangue para dosagem de autoanticorpos anti-TPO para os dois grupos. O teste qui quadrado e a odds ratio (OR) foram utiliza-dos para variáveis qualitativas; para as quantitativas, foi utiliza-do o teste t de Student, e o nível de significância foi de p≤5%. REsuLtADOs: A história pessoal de doença autoimune esteve presente em 7,14% dos portadores versus 0% dos controles. Não houve diferenças estatisticamente relevantes com relação aos an-tecedentes familiares entre os grupos (OR: 0,5704; p=0,4146). Quanto à positividade para os autoanticorpos anti-TPO (níveis superiores ao ponto de corte), não houve relevância estatística (qui quadrado 2,844; p=0,229). Entretanto, na comparação dos níveis séricos absolutos de autoanticorpos anti-TPO entre os grupos, foram obtidos 129,49±323,88 para o portador da doen-ça e 35,85±13,16 para o controle, com t=2,1602 e p=0,0351. COnCLusãO: Embora não tenha sido relevante a diferença entre os Grupo Vitiligo e Controle quanto à positividade para o autoanticorpos anti-TPO, ao se considerar a comparação com os valores séricos absolutos do Grupo Vitiligo, estes foram maio-

res que os apresentados pelos controles, sendo esta diferença es-tatisticamente relevante.

Descritores: Vitiligo; Doenças autoimunes; Autoanticorpos; Glândula tireoide; Imunossupressores

ABSTRACT

ObjECtivE: To analyze the presence of antithyroid autoantibodies (anti-TPO) in the serum of people affected by vitiligo. MEthODs: This is a study of retrospective case-control, performed in a reference dermatological center in Amazonia, with a sample consisting of two groups: Vitiligo group (n=56), with clinical diagnosis of vitiligo, and the Control Group (n=30), who was self-declared as healthy, non-vitiligo carrier, with no other dermatosis and/or diagnosed autoimmune disease. The data recording was made with specific protocol completion in an interview for both groups, and blood collection for antithyroid autoantibodies dosage for both groups. Chi-square and odds ratio (OR) tests were used for qualitative variables; for the quantitative ones, t-Student test, and significance level of p≤5%. REsuLts: The personal history of autoimmune disease was present in 7.14% of patients compared to 0% of controls. There were no statistically significant differences in relation to family history between the groups (odds ratio: 0.5704; p=0.4146). As for the positivity for antithyroid autoantibodies (levels above the cutoff point), there was no statistical significance (chi-square=2.844, p=0.229). However, when comparing the absolute serum levels of antithyroid autoantibodies between the groups, 129.49±323.88 was obtained for the carrier of the disease, and 35.85±13:16 to controls, with t=2.1602, and p=0.0351. COnCLusiOn: Although the difference between vitiligo and control groups were not significant regarding positivity for antithyroid autoantibodies, when the comparison with the absolute serum levels of the group with vitiligo was considered, they were higher than those presented by the controls, with this difference being statistically significant.

Keywords: Vitiligo; Autoimmune diseases; Antibodies; Thyroid gland; Immunosuppressive agents

INTRODUÇÃO

O vitiligo é conhecido há milhares de anos, devido ao seu fenótipo típico. Afeta cerca de 2% da população, independente de raça, idade e sexo. É uma doença adquirida, de etiopatogenia

Furtado VG, Oliveira OA, Muller SF

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não esclarecida, com hipóteses genéticas, autoimunes e ambien-tais, caracterizada pela ausência do pigmento melanina devido à destruição ou à inativação dos melanócitos (células responsáveis pela formação da melanina, que dá cor à pele), alteração obser-vada na histopatologia.(1-6)

Estudos têm demonstrado um aumento significativo da frequência de várias doenças autoimunes, incluindo doença au-toimune da tireoide, anemia perniciosa, doença de Addison e lúpus eritematoso sistêmico em pacientes com vitiligo.(7) O viti-ligo pode estar presente em vários tipos de síndromes poliglan-dulares autoimunes (SPGA), porém a associação mais frequente parece ser em SPGA-3, que é definida como a associação entre tireoidites autoimunes e outras doenças autoimunes. Esta dis-cromia precede a disfunção da tireoide por vários anos, dando a oportunidade de rastrear o risco individual antes do desenvolvi-mento da doença tireoidiana.(8)

Anticorpos específicos para tireoide (antitireoperoxidase e an-titireoglobulina), foram encontrados no soro de pacientes com vitiligo mais do que na população em geral. Observa-se que a presença da discromia em questão eleva os riscos individuais para o desenvolvimento de uma afecção na glândula tireoide.(7,9,10)

O vitiligo é considerado a hipomelanose adquirida mais comum,(10) e a tireoidite autoimune é a principal causa de hi-potireoidismo primário na idade adulta.(11) Evidenciam-se, com isso, a necessidade e a significância no rastreamento de pacientes com vitiligo para a função tireoidiana e anticorpos antitireoide, a fim de diagnosticar precocemente alterações na função desta glândula.

A presente pesquisa objetivou analisar a presença de auto-anticorpos antitireoidianos (anti-TPO) no soro de pessoas aco-metidas por vitiligo em ambulatório de hospital de referência na Amazônia, ao considerar que existe pouco enfoque na epide-miologia do vitiligo e de sua relação com outras doenças autoi-munes nesta região e na literatura brasileira.

MÉTODOS

O estudo realizado foi do tipo caso-controle prospectivo, sendo a amostra constituída por dois grupos: o Grupo Vitili-go foi composto por 56 pacientes matriculados no Serviço de Dermatologia da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará no período entre janeiro de 2005 a janeiro de 2013, com idade maior ou igual a 18 anos, de ambos os sexos, com diagnóstico clínico de vitiligo, e a devida assinatura do Termo de Consen-timento Livre e Esclarecido (TCLE). Já o Grupo Controle foi formado por 30 indivíduos voluntários e a assinatura devida do TCLE, com idade maior ou igual a 18 anos, de ambos os sexos, que se declararam sadios não portadores de vitiligo, de outra dermatose e/ou outra doença autoimune diagnosticada.

O registro dos dados da amostra foi feito pelo preenchimen-to de protocolo específico aplicado em forma de entrevista para ambos os grupos, e intervenção direta por meio de exame der-matológico das lesões de vitiligo em portadores. Para ambos os grupos, houve a coleta de sangue para dosagem de anticorpo anti-TPO. O teste para a detecção de autoanticorpos contra a peroxidase tireoidiana (anti-TPO) baseia-se na técnica de ELISA

(do inglês Enzyme-Linked Immunosorbent Assay), e o tipo utili-zado neste estudo foi o da marca Siemens. Foi estabelecido valor de 60U/mL como ponto de corte para diferenciar entre anti--TPO positivo (>60U/mL) e anti-TPO negativo (<60U/mL). Os gastos referentes ao material de laboratório necessário foram de responsabilidade dos pesquisadores, sem nenhuma forma de patrocínio ou conflito de interesses.

O teste qui quadrado e a odds ratio (OR) foram utilizados para verificar a significância entre as variáveis qualitativas. As variáveis quantitativas foram comparadas entre os grupos por meio do teste t de Student, sendo o intervalo de confiança esta-belecido de p ≤5%.

A pesquisa seguiu as recomendações contidas na resolução 196/96, de acordo com Conselho Nacional de Saúde, respei-tando as normas do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, e foi submetido à aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará.

RESULTADOS

O grupo de pacientes com a doença foi constituído predo-minantemente por mulheres (69,64%), e a faixa etária variou de 18 a 78 anos, com média de 45 anos para ambos os sexos. O grupo controle foi formado a partir de voluntários, ocorrendo igualmente predominância do sexo feminino em 66,67% dos participantes, com idade média de 39,34 anos, máxima de 72 e mínima de 19 anos (Tabela 1).

A história pessoal de doença autoimune esteve presente em 7,14% dos casos, sendo 75% deles por tireoidopatias e 25% devido ao diabetes mellitus tipo 1. A história familiar positiva de patologias autoimunes em familiares de primeiro grau foi re-latada por 19,64% dos doentes, e, dentre estes, a maior parte era acometida por vitiligo (63,63%), em seguida por hiperti-reoidismo (18,1%), lúpus eritematoso sistêmico (9,09%) e dia-betes mellitus tipo 1 (9,09%). Os pacientes do Grupo Controle não possuíam história pessoal de doença autoimune, entretanto 30% relataram antecedentes familiares de patologias imunome-diadas (Tabela 2).

A análise comparativa entre o Grupo Vitiligo e Controle não demonstrou diferenças estatisticamente relevantes com relação aos antecedentes familiares de doença autoimune (OR: 0,5704; p=0,4146).

tabela 1. Perfil epidemiológico dos grupos de estudo quanto a sexo e idadevariáveis Grupo vitiligo Grupo ControleSexo, n (%)

Masculino 17 30,36 10 33,33Feminino 39 69,64 20 66,67

Idade, anosMédia 45 39,43Mediana 46 38,00Desvio padrão ±16,1 15,17

Vitiligo associado com anticorpos tireoidianos

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A análise do perfil laboratorial dos pacientes estudados de-monstrou níveis acima dos valores de referência em cinco indi-víduos do Grupo Vitiligo e em nenhum do Controle, não sendo esta diferença relevante estatisticamente (qui quadrado 2,844; p=0,229). No entanto, os níveis séricos de anti-TPO no Grupo Vitiligo foram superiores aos do Controle, com significância es-tatística (t=2,1602; p=0,0351), como demonstrado na tabela 3.

DISCUSSÃO

Estudos demonstram que o vitiligo seria a manifestação cutânea de um espectro de doenças autoimunes.(12-14) Segundo Van den Driessche et al.,(15) 15 a 30% dos pacientes com esta dermatose apresentariam tireoidite autoimune em alguma fase da doença; 5 a 10% poderiam desenvolver gastrite autoimune ou anemia perniciosa; 4 a 9%, doença celíaca; e 0,5%, doença de Addison.

A presente pesquisa identificou história pessoal de doença autoimune em 7,14% pacientes com vitiligo e, dentre estes, 75% apresentaram tireoidite autoimune e 25% diabetes mellitus tipo 1. Igualmente, Handa e Kaur,(16) em estudo com 1.436 in-dianos, encontraram baixa prevalência de outras doenças autoi-munes concomitantes ao vitiligo, estando o eczema atópico pre-sente em 1,4% dos estudados, o diabetes mellitus tipo 1 em 0,6% e a doença tireoidiana em 0,5% dos pacientes. Do contrário, Birlea et al.(17) identificaram a presença de tireoidite autoimune em 31% dos pacientes por eles estudados, sendo principalmen-te manifesta por meio da tireoidite de Hashimoto (16%) e do hipotireoidismo subclínico; artrite reumatoide esteve presente em 14% dos pacientes; ediabetes mellitus autoimune em 12% dos casos.

A presença de tireoidite foi comprovada em 15,4% dos pacientes nos estudos de Boone et al.,(18) enquanto nenhum paciente apresentava outras doenças autoimunes. Já Nunes e Esser(10) identificaram 5,9% de casos de outras doenças au-toimunes (anemia perniciosa, esclerodermia, hepatite autoimu-ne, parotidite autoimune e artrite reumatoide).

Este estudo constatou história familiar de doença autoimu-ne em 19,64% dos pacientes, com antecedentes de vitiligo em parentes do primeiro grau em 63,63% dos entrevistados e de tireoidites em 18,10%. No Grupo Controle, a história de ante-cedentes familiares de doenças autoimunes foi evidenciada em 30% dos entrevistados, sendo 33,33% de tireoidites e 11,11% de vitiligo. Não houve diferenças significativas quando da com-paração dos dois grupos estudados, concordando com Kakou-rou et al.,(19) que não encontraram divergências importantes en-tre o grupo de pacientes (40%) e o de controles (56,1%).

Conforme pesquisa de Boone et al.,(18) 30,8% de pacientes com vitiligo apresentaram história familiar da doença e 19,2% de outras doenças autoimunes. Fernandes e Campos(20) mostraram 27,78% de crianças com histórico familiar de vitiligo, enquanto Handa e Kaur(16) encontraram prevalência mais baixa de vitiligo entre os parentes de primeiro grau dos pacientes (11,5%). Da-dos semelhantes de Nunes e Esser(10) identificaram prevalência de 10,7% de vitiligo entre os familiares dos estudados.

A associação entre vitiligo e doença autoimune da tireoide é bem estabelecida entre adultos(7,12,21-24) e crianças.(20,25) A pre-sente pesquisa procurou correlacionar os níveis de anti-TPO em pacientes do Grupo Vitiligo aos apresentados por controles do grupo sadio. Do Grupo Vitiligo, 8,93% apresentaram positi-vidade para o anti-TPO (níveis superiores ao ponto de corte) e nenhum (0%) no Grupo Controle, mas esta diferença não foi relevante estatisticamente (qui quadrado 2,844; p=0,229). Dentre os pacientes estudados, 5,36% apresentavam hiper-

tabela 2. Antecedentes pessoais e familiares entre os grupos de estudo

variáveisGrupo vitiligo n (%)

Grupo Controle

n (%)História pessoal de doença autoimune

Sim 4 (7,14) -Tireoidianas 3 (75) -DM tipo 1 1 (25) -Não 52 (92,86) 30 (100)

História familiar de doença autoimuneSim 11 (19,64) 9 (30,00)

Vitiligo 7 (63,63) 1 (11,11)DM tipo 1 1 (9,09) 2 (22,22)Lúpus eritematoso sistêmico 1 (9,09) -Tireoidianas 2 (18,10) 3 (33,33)Tireoidopatias + DM - 3 (33,33)

Não 45 (80,36) 21 (70,00)Comorbidades

Sim 19 (34) 3 (10)HAS 12 (63,15) 3 (100)Osteoporose 1 (5,27) -DM tipo 2 1 (5,27) -Pneumopatia 2 (10,52) -Neuropatia 1 (5,27) -HAS + DM 2 (10,52) -

Não 37 (66) 27 (90)DM: diabetes melittus; HAS: hipertensão arterial sistêmica.

tabela 3. Positividade e titulação de anticorpos antitireoidianos (anti-TPO) no sangue dos Grupos Vitiligo e Controle

variáveis Grupo vitiligo

Grupo controle

anti-TPO, n (%)Positivo 5 8,93 0 0Negativo 51 91,07 30 100

Dosagem sérica de anti-TPO*Média† 129,49 35,85Máximo 1.300 59Mínimo 2 7Desvio padrão ±323,88 ±13,16

*Significância estatística (p<0,05); † valores na unidade U/mL.

Furtado VG, Oliveira OA, Muller SF

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tireoidismo já instalado. No entanto, ao se considerar a com-paração entre os valores séricos absolutos do Grupo Vitiligo (129,49±323,88), estes foram maiores que os apresentados pe-los controles (35,85±13,16), tendo esta diferença importância estatística (t=2,1602; p=0,0351).

Altaf et al.,(7) em estudo caso-controle conduzido com 192 pacientes, encontraram 31 pacientes acometidos por distúrbios tireoidianos, sendo 2 hipertireoideos e 29 com hipotireoidismo. Do total estudado, 21 pacientes do grupo vitiligo apresenta-vam resultados positivos de anti-TPO em comparação a cinco controle, tendo sido este resultado significativamente relevante (p=0,001). Kumar et al.(9) encontraram prevalência mais elevada para as doenças tireoidianas (28%) em 50 pacientes indianos portadores de vitiligo; deste grupo, 40% apresentavam níveis considerados positivos do anti-TPO, mas esta diferença não foi relevante estatisticamente.

Estudos conduzidos por Daneshpazhooh et al.(26) encontra-ram 18,1% de pacientes portadores de vitiligo com anti-TPO positivo e 7,3% no grupo controle, sendo esta diferença relevan-te estatisticamente. Quando se estratificou a amostra segundo o sexo, esta disparidade se manteve apenas entre as mulheres. Zettinig et al.(24) encontraram níveis médios de anti-TPO iguais a 368±269mU/mL em 22% dos participantes de um estudo que analisou os autoanticorpos e o volume tireoidiano de um grupo de 106 pacientes com vitiligo, sendo estes valores significativa-mente mais elevados que os controles. A pesquisa em questão apresenta resultados que se equiparam com vários estudos que também sugerem aumento dos níveis de anti-TPO associados ao vitiligo.(27)

A baixa positividade de anti-TPO encontrada neste estudo pode ser atribuída ao tamanho amostral, ou pode decorrer de as-pectos genéticos e imunes intrínsecos da região amazônica, uma vez que, segundo estudos, a presença de anticorpos anti-TPO varia de 7 a 58%.(17,27) Em caucasianos, esta taxa é de aproxi-madamente 17%,(21) enquanto na Índia a positividade para an-ti-TPO é de 31,4% no grupo vitiligo e de 10% nos controles sadios, mas as doenças tireoidianas estão presentes neste país somente em 0,5% dos pacientes com vitiligo.(16)

Em estudos realizados com crianças portadoras de tireoidite autoimune, 4,6% das crianças com doença de Graves e 2,0% das crianças com tireoidite de Hashimoto desenvolveram vitili-go. Três dos cinco doentes com Hashimoto (60%) tiveram anti-corpos anti-TPO positivos.(28,29)

Estudos relacionam maior prevalência de tireoidite au-toimune em pacientes com vitiligo ao longo da progressão da doença.(9,11,30) Tem sido sugerido que níveis alterados de anti-TPO devem ser complementados por avaliação de TSH, T3 livre, T4 livre e antitireoglobulina para um melhor rastreio e definição do distúrbio, inclusive com acompanhamento endocrinológico adequado. Idealmente, a literatura sugere que estes exames de rastreio deveriam ser realizados em frequência pelo menos anual em todos os pacientes com vitiligo.(19)

CONCLUSÃO

Os níveis séricos de anticorpos antitireoidianos foram signi-ficativamente mais elevados no Grupo Vitiligo em comparação

ao Controle, o que confirma a associação de autoimunidade tireoidiana e vitiligo nesta população, sugerindo a necessidade de seguimento dos pacientes com esta afecção para rastreio das doenças tireoidianas e, finalmente, prevenção dos danos conse-quentes destas disfunções. A identificação destes autoanticorpos contribui para a divulgação e o incentivo ao desenvolvimento de trabalhos sobre o assunto com maior abrangência, para melhor conhecer os agravos e programar estratégias para aperfeiçoar o diagnóstico, o tratamento e o seguimento destes pacientes pro-porcionando melhor qualidade de vida.

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artigo original

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):240-5

Cuidados paliativos: prevalência de fadiga em pacientes pediátricosPalliative care: the prevalence of fatigue in pediatric patients

Sandra Márcia Carvalho de Oliveira1, Vivian dos Santos Evangelista2, Yasmin Maria Garcia Prata da Silva2

Recebido da Universidade Federal do Acre, Acre, AC, Brasil.

1. Universidade Federal do Acre, Rio Branco, Acre, AC, Brasil. 2. Hospital das Clínicas do Acre, Rio Branco, Acre, AC, Brasil.

Data de submissão: 08/01/2017 – Data de aceite: 10/01/2017Fontes de auxílio à pesquisa: nenhuma Conflito de interesses: não há.

Endereço para correspondência: Sandra Márcia Carvalho de OliveiraUniversidade Federal do AcreCampus Universitário, BR 364, km 4 – Distrito IndustrialCentro de Ciências da Saúde e do Desporto (CCSD)CEP: 69915-900 – Rio Branco, AC, BrasilTel.: (68) 3901-2500 – E-mail: [email protected]

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

ObjEtivO: Avaliar fadiga e qualidade de vida em pacientes pediátricos oncológicos internados em enfermaria, sob a óptica dos cuidados paliativos. MétODOs: Trata-se de estudo trans-versal, quantitativo e descritivo. A amostra foi de 74 partici-pantes, sendo 37 crianças/adolescentes na faixa etária de 5 a 18 anos, internados na referida unidade, e 37 pais ou responsáveis, selecionados por conveniência. Para a coleta de dados, foram aplicados questionários padronizados baseados na escala Pedia-tric Quality of Life™. REsuLtADOs: As taxas de prevalência de fadiga oscilaram de 16,22 a 78,57%. O sexo masculino foi o mais acometido pelas patologias neoplásicas (59,46%), mas 78,57% dos meninos alcançaram escores mais altos (≥80), de-notando maior qualidade de vida relacionada à saúde e menor fadiga. COnCLusãO: Verificaram-se baixa prevalência de fa-diga na amostra estudada e boa qualidade de vida relacionada à saúde, apesar de se tratar de pacientes pediátricos em vigência de tratamento quimioterápico.

Descritores: Cuidados paliativos; Inquéritos e questionários; Criança; Fadiga; Qualidade de vida

ABSTRACT

ObjECtivE: To evaluate quality of life and fatigue in pediatric oncology patients hospitalized in wards, from the perspective of palliative care. MEthODs: This study was cross-sectional, quantitative and descriptive. The sample consisted of 74 participants, 37 children and adolescents aged 5-18 years admitted to the unit, and 37 parents or guardians, selected by

convenience. To collect data, standardized questionnaires based on the Pediatric Quality of Life™ scale were applied. REsuLts: The prevalence rates of fatigue ranged from 16.22 % to 78.57 %. Males were more affected by neoplastic diseases (59.46%); however, 78.57% scored higher (≥ 80), indicating higher health-related quality of life and less fatigue. COnCLusiOn: There was a low prevalence of fatigue in the sample studied, and good health-related quality of life, despite of patients being pediatric patients on chemotherapy.

Keywords: Palliative care; Surveys and questionnaires; Child; Fatigue; Quality of life

INTRODUÇÃO

De acordo com o Consenso Brasileiro de Fadiga, as dimen-sões da fadiga são classificadas em física, cognitiva e afetiva. A dimensão física é expressa por uma sensação de diminuição de energia e necessidade de descanso, interferindo na realização das atividades diárias, relacionada à resposta muscular, ocasionando sensação de fraqueza, mesmo em situação de repouso muscular. No que atine à dimensão cognitiva, há diminuição da atenção, da concentração e da memória, prejudicando a realização de ati-vidades, como a leitura. Na dimensão afetiva, ocorre diminuição da motivação ou interesse, limitando-se especialmente à realiza-ção de atividades que proporcionam prazer.(1-3)

Em relação à temporalidade, a fadiga, em cuidados paliati-vos, é uma condição que ocorre quase diariamente e persiste por mais de 1 mês, caracterizando-a como um sintoma crônico. A fadiga aguda, que regula uma resposta a um estresse físico e/ou psicológico e que tende a melhorar após sua interrupção, não é comum em cuidados paliativos, apesar da possibilidade de agu-dização de fadiga.(1,3)

Ela é classificada em primária e secundária. A fadiga primei-ra é decorrente da própria doença, ou seja, faz parte de seu qua-dro clínico, independentemente da ação de outros fatores. No câncer, a fadiga estaria no trilho, hipoteticamente, do próprio tumor, que provoca aumento da carga de citocinas pró-infla-matórias, as quais figuram papel importante na fisiopatologia de caquexia, anemia, febre e infecção − todos os quais podem causar ou agravar fadiga. Por conseguinte, a fadiga secundária é decorrente de síndromes concomitantes, comorbidades ou do próprio tratamento da doença de base. Em cuidados paliativos, condições como anemia, infecção, febre, desidratação, distúr-bios hidroeletrolíticos, caquexia, distúrbios hormonais (in-cluindo o hipotireoidismo), depressão, ansiedade, distúrbios do

Cuidados paliativos em pacientes pediátricos

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sono, quimioterapia, radioterapia e uso de medicamentos, como opioi des, podem contribuir, inexoravelmente, para a instalação ou o agravamento da fadiga.(4-10)

A avaliação e o diagnóstico da fadiga têm como pilar o relato da criança/adolescente sobre seus sintomas, de forma objetiva, está relacionado ao seu comportamento, e, de maneira subjetiva, perpassando pelas escalas de avaliação.(2,9,10)

Existem vários instrumentos para avaliar a fadiga no cená-rio dos cuidados paliativos. No Brasil, os mais conhecidos pelos profissionais médicos ou por aqueles que lidam com tratamen-tos oncológicos são os Critérios Comuns de Toxicidade (CCT), versão 3.0).(11) Como instrumentos de autorrelato, merecem destaque a Escala de Fadiga Revisada por Piper(12,13) ou o Dutch Fatigue Scale.(14) No campo pediátrico, a avaliação da fadiga é baseada na presença ou na ausência deste sintoma, e em sua intensidade.(2,10)

Tem-se noticia de vários instrumentos disponíveis para ava-liação de fadiga em crianças: a Childhood Fatigue Scale (CFS),(15) é a primeira escala elaborada neste sentido e avalia fadiga em crianças com neoplasias; Parent Fatigue Scale (PFS),(16) para pais e profissionais de saúde; e, por fim, o Pediatric Quality of Life™. Multidimensional Fatigue Scale (PedsQL™),(17) constituída por 18 itens e que avalia a percepção da fadiga no último mês, pela criança e pelos seus pais.

A PedsQL™ tem sido utilizada em diversos estudos para ava-liação do sintoma fadiga em diferentes grupos de crianças/ado-lescentes com patologias crônicas, como fibromialgia,(18) tumor de sistema nervoso central e leucemia linfoide aguda,(19) e artrite reumatoide juvenil.(20) Ela foi validada no Brasil para avaliação de fadiga em crianças com câncer. Ainda, pelo fato de os estudos sobre fadiga em cuidados paliativos no Brasil serem em pequeno número, o registro das avaliações de fadiga torna-se considerável fonte de conhecimento sobre a manifestação do sintoma para pesquisas e, consequentemente, fornece subsídios para educação de profissionais e pacientes/família.(21)

Diante de tal realidade e em meio a efervescência de novos conceitos, insurge esta inovadora pesquisa, que avaliou a preva-lência de fadiga e seu impacto na qualidade de vida de pacientes pediátricos oncológicos.

MÉTODOS

Trata-se de estudo transversal, quantitativo e descritivo, com amostra de 37 crianças/adolescentes, na faixa etária de 5 a 18 anos, internadas no Hospital do Câncer do Acre, e seus respecti-vos pais ou responsáveis (n=37), selecionados por conveniência. Foram incluídas todas as crianças/adolescentes com idade de 5 a 18 anos com fadiga associada ao câncer, internadas em qualquer uma das enfermarias do Hospital do Câncer ou vinculadas a ele. Foram excluídos crianças/adolescentes com idade entre 5 e 18 anos com fadiga associada ao câncer que não estavam interna-dos em leito hospitalar  do Hospital do Câncer do Acre, ou de enfermarias vinculadas a ele; crianças/adolescentes com idade entre 5 e 18 anos com fadiga associada ao câncer internados em outra enfermaria que não tivesse sido selecionada para o estudo; crianças/adolescentes com idade entre 5 e 18 anos com fadi-

ga associada ao câncer que não se encontravam internadas em qualquer uma das enfermarias do Hospital do Câncer do Acre, ou vinculada a ele, no momento da aplicação de questionários; crianças com idade abaixo de 5 anos.

Os pais ou responsáveis assinaram o Termo de Consenti-mento Livre e Esclarecido (TCLE) para que as crianças pudes-sem participar do estudo, bem como para que eles mesmos com-pusessem a amostra. Foram observadas e obedecidas as diretrizes e normas preconizadas pela resolução do Conselho Nacional de Saúde número 466, de 2012, que regulamentam as pesquisas envolvendo seres humanos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), com parecer 437.177, em 17 de no-vembro de 2013.

Foram aplicados aos participantes do estudo questionários padronizados baseados na PedsQL™ em suas versões 3.0 e 4.0, nos módulos sobre qualidade de vida, câncer e multidimensio-nal do cansaço, adaptados para três grupos de faixas etárias (5 a 7 anos; 8 a 12 anos; e 13 a 18 anos), nas versões criança ou adolescente, conforme o caso, como também para os pais ou responsáveis destas crianças.

O PedsQL™ é um instrumento de fácil e breve aplicação, que pode ser utilizado em comunidades, escolas e serviços de saúde. É considerado um instrumento multidimensional capaz de avaliar crianças/adolescentes em diferentes aspectos do coti-diano. O módulo genérico, em sua versão 4.0, contou com 23 questões, que avaliaram a qualidade de vida por meio do registro da impressão das crianças e dos pais, perpassando pelos aspectos físico, emocional social e escolar, e diferindo apenas na lingua-gem utilizada para cada faixa etária. No módulo câncer, a versão utilizada foi a 3.0, com 26 questões, que abordaram a percepção ora da criança, ora dos pais, quanto aos seguintes aspectos: sin-tomas da doença; emocionais, principalmente, no que atine aos procedimentos terapêuticos adotados; dificuldades cognitivas; aparência física; e, relação médico-paciente. Por fim, no módulo multidimensional do cansaço, versão standard, avaliou-se, por meio de 18 itens, a fadiga em seus aspectos comportamentais, afetivos e cognitivos.(1,2)

Em todos os módulos, na faixa etária de 5 a 7 anos, no questionário destinado ao autorrelato da criança, foi utilizado o método “faces”, para facilitar o fornecimento da resposta por parte da criança. Além disto, compôs os referidos questionários o Formulário de Descrição da Amostra, que buscou coletar in-formações acerca da criança, de seu respectivo responsável e da patologia que o acomete. Buscando obter o escore e a análise estatística, os itens dos questionários, em escala Likert, foram pontuados, invertidos e transpostos linearmente para uma escala de zero a 100, como se segue: 0=100; 1=75; 2=50; 3=25 e 4=0. O escore total do instrumento foi calculado pelo somatório dos escores obtidos nos domínios, dividido pelo número de itens respondidos. Escores mais altos indicam melhor qualidade de vida e menor grau de fadiga.

Após a coleta, com o auxílio do software Microsoft Excel, versão 2010, foi elaborado um banco de dados, posteriormente transferido para o programa de Software Stastistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 20.0 para Windows, tendo sido rea lizadas análises estatísticas, em forma de proporções e medi-

Oliveira SM, Evangelista VS, Silva YM

242 Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):240-5

das de tendência central representadas, posteriormente, em ta-belas. Nos possíveis cruzamentos de dados, utilizaram-se testes qui quadrado, observando-se a significância de 5% (p<0,05). Para análise dos dados, fez-se uso da estatística descritiva, por meio do programa Excel.

RESULTADOS

O presente estudo contou com a participação de 74 entre-vistados, sendo 37 crianças/adolescentes com diagnóstico de neoplasia em tratamento internadas em um hospital e seus res-pectivos cuidadores (37 pais ou responsáveis). As características demográficas das crianças/adolescentes entrevistados estão dis-postas na tabela 1. Os mais novos tinham idade média de 10,86 anos, com desvio padrão (DP) de ±4,45 anos e mediana de 12 anos. A maioria era da faixa etária de 13 a 18 anos (48,65%), do sexo masculino (59,46%), acometida por leucemias (48,65%), linfomas (35,14%), neoplasias ósseas (10,81%) e neoplasias de células germinativas (5,41%).

Dentre as crianças entrevistadas, 78,38% cursavam com ne-oplasia primária, 21,62% compatologia em carácter recorren-te, 51,35% em esquema de tratamento com quimioterápicos, 24,32% receberam de forma combinada tratamento cirúrgico e radioterápico, e, 24,32% fizeram sessões de quimioterapia e radioterapia. O tempo médio de diagnóstico da doença foi de 12,08 meses, mediana de 7 meses e DP de ±10,35 meses. O tempo médio entre a constatação do diagnóstico e o início do tratamento foi de ±4,24 meses, mediana de 2 meses e DP de ±5,45 meses.

Com relação ao perfil demográfico dos pais ou responsáveis, 75,68% eram mães, 8,11% avós, 8,11% irmãos; 8,11% tinham outro grau de parentesco com a criança ou adolescente. A ida-de média dos pais ou responsáveis foi de 34,86 anos, mediana

de 31 anos e DP de ±11,64 anos. Quanto à raça, 72,97% se consideravam pardos, 18,92% negros, e 8,11% indígenas. Em relação à escolaridade, 35,14% completaram o Ensino Médio, 35,14% não concluíram o Ensino Fundamental, 16,22% não completaram o Ensino Médio, 8,11% não eram alfabetizados, 2,7% faziam algum curso de Ensino Superior, e 2,7% comple-taram o Ensino Fundamental.

As tabelas 2 e 3 apresentam os resultados referentes à aplica-ção dos questionários genérico PedsQL 4.0, PedsQL 3.0 Câncer e PedsQL Multidimensional do Cansaço.

Levando em consideração o autorrelato de crianças/adoles-centes, os escores mais elevados foram encontrados no aspecto mental (85,7; ±19,06), seguido do emocional e social, ambos de 83,11 (±13,17 e ±26,21, respectivamente). Os escores para o aspecto comunicação (62,16; ±34,85), aparência física (64,86; ±23,1) e náusea (67,30; ±34,81) foram os mais baixos − todos dentro do módulo câncer. Os valores mínimos mais baixos, com escore igual a zero, foram encontrados nos aspectos náusea, preocupações e comunicação. Os valores máximos de escore, correspondente a 100, foram encontrados em todos os aspectos avaliados, com exceção apenas dos cálculos de escore total dos questionários (Tabela 2).

No relato dos pais ou responsáveis, os aspectos que apresen-taram escores mais altos foram mental (80,52; ±23,8), comuni-cação (80,18; ±28,96), sono (76,01; ±17,12) e dores/machuca-dos (76,01; ±23,5). Os escores mais baixos foram encontrados nos aspectos ansiedade (46,28; ±24,86), social (54,46; ±26,21) e náusea (55,54; ±34,81). Os valores mínimos mais baixos, com escore igual a zero, foram observados em cinco aspectos: social, náusea, ansiedade, preocupações e comunicação. Os valores má-ximos de escore, correspondente a 100, foram encontrados em todos os aspectos avaliados, com exceção apenas dos cálculos de escore total dos questionários (Tabela 3).

Quanto às taxas de prevalência de fadiga, encontradas entres crianças/adolescentes entrevistadas, quando questionados sobre a sensação de cansaço nos últimos 30 dias, 8,11% responde-ram que “muitas vezes” se sentiam cansados, sendo que, destes, 100% eram do sexo masculino; 35,14% afirmaram se sentirem cansados “algumas vezes”, com predomínio do sexo feminino (69,24%); 16,22% dos pacientes responderam ao referido que-sito com “quase nunca”, e a razão entre o sexo feminino e mas-culino neste grupo foi de 1:1; e 40,54% afirmaram que “nunca” se sentiam cansados, sendo 80% do sexo masculino. A maioria estava em curso de tratamento com quimioterápicos, com ex-ceção de um paciente no grupo que respondeu “nunca” ter se sentido cansado.

Sobre os escores gerais encontrados no PedsQL Multidi-mensional do Cansaço, levando em consideração o autorrelato das crianças/adolescentes, foi encontrada prevalência de 16,22% com escore entre 50 e 70, sendo 66,67% do sexo masculino e média de idade em anos de 13,17; 45,95% tiveram escore entre 70 e 80, com predomínio do sexo feminino (58,52%) e média 11 anos de idade; e 37,84% tiveram escore ≥80, sendo 78,57% do sexo masculino e média de 9,71 anos de idade. A média do escore de fadiga obtida neste estudo foi de 81,08 e o DP de ±13,69 (Tabela 4).

tabela 1. Crianças/adolescentes entrevistadas, segundo características demográficas e tipo de neoplasia

Características n (%)(n=37)

SexoMasculino 22 (59,46)Feminino 15 (40,54)

Faixa etária, anos5-7 12 (32,43)8-12 7 (18,92)13-18 18 (48,65)

Idade em anosMédia (DP)/mediana 10,86 (±4,45)/12

Tipo de neoplasiaLeucemias 18 (48,65)Linfomas 13 (35,14)Neoplasias ósseas 4 (10,81)Neoplasias de células germinativas 2 (5,41)

DP: desvio padrão.

Cuidados paliativos em pacientes pediátricos

243Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):240-5

tabela 2. Resumo dos escores do questionário genérico PedsQL 4.0, PedsQL 3.0 Câncer e PedsQL Multidimensional do Cansaço sob a perspectiva de crianças/adolescentes Escores Média ± DP Mínimo Máximo nPedsQL 4.0 Genérico

Físico 70,35±25,19 28,13 100 37Emocional 83,11±13,17 55 100 37Social 83,11±26,21 20 100 37Escolar 72,03±17,61 40 100 37

PedsQL 3.0 CâncerDores e machucados 76,69±19,53 50 100 37Náusea 67,3±34,81 0 100 37Ansiedade 72,86±24,86 33,33 100 37Preocupações 74,32±35,59 0 100 37Cognitivo 72,5±16,63 37,5 100 37Aparência física 64,86±23,1 25 100 37Comunicação 62,16±34,85 0 100 37

PedsQL CansaçoSono 79,5±14,99 50 100 37Mental 85,7±19,06 33,33 100 37Geral 78,04±19,94 50 100 37

tabela 3 - Resumo dos escores dos questionários genéricos PedsQL 4.0, PedsQL 3.0 Câncer e PedsQL Multidimensional do Cansaço sob a perspectiva dos pais ou responsáveis Escores Média±DP Mínimo Máximo nPedsQL 4.0 Genérico

Físico 61,99±28,8 6,25 100 37Emocional 65,81±24,48 20 100 37Social 54,46±34,58 0 100 37Escolar 61,89±17,22 30 100 37

PedsQL 3.0 CâncerDores e machucados 76,01±23,5 37,5 100 37Náusea 55,54±29,06 0 100 37Ansiedade 46,28±31,96 0 100 37Preocupações 74,32±34,95 0 100 37Cognitivo 74,56±17,27 25 100 37Aparência física 72,07±18,71 33,33 100 37Comunicação 80,18±28,96 0 100 37

PedsQL CansaçoSono 76,01±17,12 50 100 37Mental 80,52±23,8 33,33 100 37Geral 75,9±21,62 41,67 100 37

tabela 4. Prevalência de fadiga em pacientes pediátricos oncológicos

Crianças <50 n (%)

50-70n (%)

70-80n (%)

≥ 80n (%)

Sexo 0 6 (16,22) 17 (45,95) 14 (37,84)Feminino 0 2 (33,33) 10 (58,52) 3 (21,43)Masculino 0 4 (66,67) 7 (41,48) 11 (78,57)Média de Idade em anos 13,17 11 9,71Pais 1 (2,7) 13 (35,14) 1 (2,7) 22 (59,46)

Oliveira SM, Evangelista VS, Silva YM

244 Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):240-5

Em relação ao relato dos pais ou responsáveis, em resposta ao quesito que fazia menção à sensação de cansaço nos últimos 30 dias, 21,62% responderam que “quase sempre” seu filho/a se sentia cansado; 8,11% afirmaram “muitas vezes”; 27,03% “al-gumas vezes; 8,11% “quase nunca”; e 35,14% afirmaram que “nunca”. No PedsQL Multidimensional do Cansaço, 2,7% apre-sentaram <50 pontos; 35,14% entre 50-70; 2,7% entre 70-80, e 59,46% ≥80.

DISCUSSÃO

No presente estudo, a maior parte da amostra foi composta por indivíduos do sexo masculino. Na literatura científica, a in-cidência do câncer infantil é estimada em 100 a 150 casos por milhão de habitantes por ano, e tem aumentando nos últimos 15 anos. Avaliando-se todos os tipos de neoplasias na infância e ado-lescência, observa-se que a incidência é maior entre os meninos.(22)

A qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) e a fadiga não apresentaram médias dos escores tão baixas, nem da pers-pectiva das crianças/adolescentes entrevistadas, e nem dos pais ou responsáveis. Ainda assim, as taxas de prevalência (16,22 a 78,57%) oscilaram dentro do esperado, em comparação a estu-dos internacionais realizados com pacientes oncológicos. Nes-tes, as taxas variaram entre 4 e 91%, dependendo da população estudada e do método de avaliação − em cuidados paliativos, observou-se prevalência que oscilou entre 57 a 90%. Em âmbito nacional, os índices de prevalência de fadiga não são muitos di-ferentes. Estudo realizado com pacientes com câncer colorretal concluiu que a fadiga foi relatada por 49,9% dos pacientes e foi intensa (escore total ≥6) para 19,7% deles.(23) Pesquisa que visava estimar a prevalência de sedentarismo e fadiga entre por-tadores de doença crônica renal encontrou referência à fadiga em 81,7% dos pacientes avaliados.(2,24)

Sob a perspectiva das crianças/adolescentes entrevistadas, os escores mais baixos foram registrados nos aspectos comuni-cação, aparência física e náusea; sob a perspectiva dos pais ou responsáveis, os aspectos ansiedade, social e náuseas, obtiveram menores escores.

Chama atenção o aspecto náusea ser ponto comum, tanto para as crianças/adolescentes entrevistadas, quanto para os pais ou responsáveis, o que encontra apoio na literatura. Náuseas e vômitos, nas primeiras 48 horas após o início do ciclo de tra-tamento quimioterápico, são relatos frequentes dos indivíduos acometidos por neoplasias. Denota ainda que o controle deste sintoma, nos cuidados paliativos, apesar da prescrição regular de antieméticos, tem sido ineficaz, devendo ser revisado e acres-cido de outras medidas, tendo em vista, o maior conforto do paciente.(25)

Outro aspecto que desperta atenção são os baixos escores encontrados nos quesitos que avaliaram a aparência física, res-saltando a percepção da criança ou adolescente em relação à sua beleza, à presença de cicatrizes e à vergonha do próprio corpo. O tratamento quimioterápico pode implicar em restrições na vida cotidiana, ocorrência de infecções, fadiga, anemia e náusea, den-tre outros. Há ainda aqueles que podem modificar a aparência física, como unhas e cabelos quebradiços, alopecia, diminuição

do turgor da pele etc., o que acarreta baixa autoestima dos pa-cientes. Além disto, distúrbios emocionais podem ser secundá-rios ao tratamento como: diminuição no desempenho escolar ou capacidade de interação social.(25) Quanto a este último, no presente estudo, encontrou-se média de escore 62,16 (±23,10) para o aspecto comunicação, comprovando que a rotina de um tratamento de câncer, envolvendo hospitalização ou não, uma bateria de exames físicos, complexos esquemas de quimioterá-picos, nomes complicados dos medicamentos, efeitos colaterais, entre outros, permeia a criança de sentimentos como medo, an-gústia, impotência e dor, dificultando sua relação e comunicação com a equipe médica, que justamente impõe estas condições estressantes.(26,27)

Os escores do questionário PedsQL 3.0 do módulo câncer, que avaliaram o aspecto ansiedade, sob o ponto de vista dos pais ou responsáveis, foi o que apresentou valores mais baixos. Neste tópico, foi investigado o quanto os pacientes pediátricos ficam ansiosos diante dos procedimentos de seu tratamento, que envolvem infusões intravenosas, coleta de sangue para exa-mes, consulta médica, ida até o hospital, entre outros. Quando comparada com a percepção da criança/adolescente no mesmo aspecto, o grau de ansiedade percebido pelos pais ou responsá-veis foi maior do que aquele sentido ou referido pela criança/adolescente, o que pode denotar insegurança, superproteção ou até mesmo falta de compreensão exata dos detalhes inerentes ao tratamento.(28)

Quando se comparam os escores obtidos na aplicação dos questionários genérico PedsQL 4.0, PedsQL 3.0 Câncer e PedsQL Multidimensional do Cansaço, sob a perspectiva das crianças/adolescentes e dos pais/responsáveis entrevistados, percebem-se nitidamente valores mais baixos no relato destes últimos, e, em três aspectos, os resultados foram bastante díspares: social, an-siedade e comunicação. Deste modo, os relatos das crianças/ado-lescentes e dos pais/responsáveis tendem a se aproximar quando se referem aos sintomas físicos, perceptíveis externamente, mas, quando se trata de questões subjetivas, as opiniões são distintas.(20)

CONCLUSÃO

Neste estudo, a maioria das crianças/adolescentes entrevis-tadas acometidas com câncer infantil era do sexo masculino. As taxas de prevalência de fadiga oscilaram dentro do esperado, em consonância com estudos internacionais e nacionais realizados com pacientes oncológicos. A maior parte da amostra recebia quimioterapia, mas não houve impacto, de forma geral, nas ta-xas de prevalência de fadiga. No entanto, durante o curso do tratamento, as crianças ficam potencialmente sujeitas aos efeitos colaterais indesejáveis; daí a importância dos cuidados paliati-vos, que, na presente pesquisa, demonstrou-se eficaz no controle da dor e da fadiga, porém carente de medidas associadas no que concerne à ocorrência dos episódios eméticos, na vigência do tratamento.

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ARTIGO ORIGINAL

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):246-51

Perfil epidemiológico e qualidade de vida na psoríaseEpidemiological profile and quality of life in psoriasis

Maria Eugênia de Bona Silveira1, Gabriel Pelegrina Neto1, Flávia Regina Ferreira1

Recebido da Universidade de Taubaté, SP, Brasil.

1. Universidade de Taubaté, Taubaté, SP, Brasil.

Data de submissão: 24/04/2017 – Data de aceite: 26/04/2017Fontes de auxílio à pesquisa: não há.Conflitos de interesse: não há.

Endereço para correspondência: Flávia Regina FerreiraServiço de Dermatologia do Hospital Universitário de TaubatéAvenida Granadeiro Guimarães, 270 – CentroCEP: 12020-130 – Taubaté, SP, BrasilFone: (12) 3625-7533 – E-mail: [email protected]

Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Taubaté: nº 215.335.

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

ObjEtivO: Identificar o perfil epidemiológico de pacientes com psoríase e avaliar o impacto da doença na qualidade de vida deles. MétODOs: Estudo transversal e descritivo, realizado em um ambulatório de referência, entre 2013 e 2014. Foram incluídos indivíduos de ambos os sexos com mais de 18 anos. Variáveis clínicas e epidemiológicas foram estudadas. Para análi-se do impacto na qualidade de vida, foi utilizado o Dermatology Life Quality Index. A severidade da psoríase foi determinada pelo uso ou não de terapia sistêmica. REsuLtADOs: Foram in-cluídos 41 indivíduos, sendo a maioria formada por homens (52,2%), com idade média da amostra 54,2 anos (desvio pa-drão 13,0), brancos (76,0%), com predomínio de analfabetos e com Ensino Fundamental incompleto (37,0% cada). O uso de terapia sistêmica foi referido por 73,0% da amostra, sendo o metotrexato a medicação mais utilizada (63,1%). A forma clínica mais prevalente foi a generalizada (62,0%), com pre-domínio de casos de severidade moderada a grave (73,1%). O Dermatology Life Quality Index médio da amostra foi de 5,6 (desvio padrão de 5,1). COnCLusãO: Ressaltam-se a neces-sidade e a importância da avaliação global do paciente psoriáti-co, permitindo individualizar tratamentos, melhorar a relação médico-paciente e obter melhores resultados que satisfaçam a ambos: profissional e paciente.

Descritores: Psoríase/epidemiologia; Qualidade de vida

ABSTRACT

Objective: To identify the epidemiological profile of, and to evaluate the impact on quality of life of patients with psoriasis.

MEthODs: Cross-sectional and descriptive study conducted at a reference outpatient clinic from 2013 to 2014. Individuals of both genders and over 18 years of age were included. Clinical and epidemiological variables were studied. The Dermatology Life Quality Index was used to analyze the impact on quality of life. The severity of psoriasis was determined by the use or not of systemic therapy. REsuLts: Forty-one individuals were included, with most of them being males (52.2%); mean age was 54.2 years (SD=13.0), white (76.0%), predominance of illiteracy and incomplete primary education (37.0% each); the use of systemic therapy was reported by 73.0%. Methotrexate was the most used medication (63.1%). The generalized form was the most prevalent (62.0%), with a predominance of moderate to severe severity (73.1%). The mean Dermatology Life Quality Index of the sample was 5.6 (SD=5.1). COnCLusiOn: The need for the global evaluation of the psoriatic patient, along with its importance, are highlighted, allowing individualization of treatments, improvement of doctor-patient relationship, and achievement of better results that satisfy both the professional and the patient.

Keywords: Psoriasis/epidemiology; Quality of life

INTRODUÇÃO

A psoríase é uma doença inflamatória crônica da pele e das articulações, imunomediada, de base genética e com grande po-limorfismo de expressão clínica.(1) Afeta entre 2 e 3% da popu-lação mundial e acomete igualmente ambos os sexos, principal-mente entre a segunda e a quarta décadas de vida.(2) Associada à rápida proliferação epidérmica, caracteriza-se clinicamente por lesões eritêmato-descamativas, apresentando as formas clínicas vulgar ou em placas (localizada ou generalizada), invertida, go-tada, eritrodérmica e pustulosa, sendo a forma em placas a mais prevalente (90%).(2-4)

A medida da extensão e a gravidade da psoríase baseiam-se na avaliação dos sinais e dos sintomas da doença e de seu impacto na qualidade de vida do indivíduo.(5)

Dermatoses como a psoríase, em geral, apresentam grande impacto na qualidade de vida e, há aproximadamente 10 anos, este fato passou a ser avaliado de forma sistemática. Desde en-tão, houve maior interesse no desenvolvimento de instrumentos para mensurar a qualidade de vida na dermatologia.(5)

O Dermatology Life Quality Index (DLQI) é o instrumen-to mais utilizado para medir a qualidade de vida nos grandes estudos clínicos sobre psoríase. Este instrumento foi desenvol-vido por Finlay e Khan (1994), tendo sido traduzido e validado

Perfil epidemiológico na psoríase

247Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):246-51

para a língua portuguesa.(5,6) Contém dez questões relacionadas às experiências vivenciadas pelo paciente, na semana preceden-te à aplicação do questionário, sendo autoaplicável e podendo ser utilizado para diversas enfermidades dermatológicas, antes e após o tratamento. O escore final pode variar de zero a 30, sendo agrupado conforme o impacto na qualidade de vida em: zero a 1, se nada; 2 a 5, se pouco; 6 a 10, se moderado; 11 a 20, se muito; e 21 a 30, se muitíssimo.(7,8)

Medidas mais acuradas da qualidade de vida podem auxiliar nas tomadas de decisão, como, por exemplo, na introdução ou não de medicamentos de alto custo ou de alto risco. Ainda, o uso de medidas simples de avaliação de qualidade de vida é bem recebido pelos pacientes que desejam expressar suas ansiedades e preocupações.(5)

O objetivo deste estudo foi identificar o perfil epidemioló-gico de pacientes com psoríase e avaliar o impacto da doença na qualidade de vida deles.

MÉTODOS

Trata-se de estudo transversal e descritivo realizado no Am-bulatório de Psoríase do Serviço de Dermatologia do Hospital

Universitário de Taubaté (HUT), em Taubaté (SP), entre abril de 2013 e abril de 2014, com pacientes portadores de psoríase leve, moderada ou grave. O HUT é um hospital geral de ensi-no, considerado referência para o município e a região. Possui ambulatório especializado em psoríase, que tem como finali-dade atender casos moderados a graves desta dermatose, com enfoque multidisciplinar e de multiespecialidades. Trata-se de um ambulatório de frequência semanal e baixa rotatividade de pacientes, por cuidar dos casos mais severos desta dermatose, e pela cronicidade e recorrência próprias da psoríase.

Foram incluídos neste estudo indivíduos de ambos os se-xos e maiores de 18 anos. Foram utilizados dois questionários, sendo um geral e outro específico para qualidade de vida. Os questionários foram aplicados antes da consulta e após o con-sentimento do paciente, que assinou o Termo de Consenti-mento Livre e Esclarecido.

O questionário geral contemplou sexo, idade (analisada de forma contínua e, posteriormente, categorizada em faixas etárias, em décadas), cor da pele, grau de escolaridade, renda familiar, tempo de doença, forma clínica da psoríase e grau de severidade. Para análise do impacto da psoríase na qualidade de vida, foi utilizado o DLQI (Figura 1).(8)

Figura 1. Dermatology Life Quality Index.

Silveira ME, Pelegrina Neto G, Ferreira FR

248 Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):246-51

Foram utilizados os programas computacionais Microsoft Excel 2010 e Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 22.0 (IBM Corp, Armonk, NY), para compilação e análise dos dados. Foram construídas tabelas e gráficos. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNITAU, sob número 215.335.

RESULTADOS

Foram incluídos 41 indivíduos atendidos neste ambulatório de referência no período do estudo, sendo 21 homens (52,2%). No momento da entrevista, a idade variou de 19 a 85 anos, com média de 54,2 anos (desvio padrão – DP de 13,0). A distribui-ção dos casos de psoríase, segundo a faixa etária, encontra-se na figura 2.

A cor da pele predominante na amostra foi a branca (76,0%). Os graus de escolaridade que predominaram na amostra foram o analfabeto e o Ensino Fundamental incompleto (37,0% cada), seguidos pelos Ensinos Fundamental completo (12%), Médio incompleto (10%) e Médio completo e Superior completo (2% cada). O perfil da renda familiar encontra-se na figura 3.

O tempo de doença foi referido por 33 indivíduos (80,5%). O tempo de doença predominante foi o superior a 10 anos (66,7%). Seis indivíduos (18,2%) referiram até 5 anos de doença e cinco (15,1%), entre 5 e 10 anos de doença.

Quanto ao tratamento, dos 41 indivíduos incluídos, 73,1% referiram tratamento sistêmico, e apenas 70,0% sabiam referir o tratamento realizado. Dos 21 pacientes que sabiam referir qual a terapia sistêmica era utilizada, 76,2% faziam uso de medi-cação sistêmica (oral ou injetável), 9,5% faziam fototerapia, e 14,3% combinavam medicação sistêmica e fototerapia. Dentre os medicamentos sistêmicos mais utilizados, encontramos o me-totrexato (63,1%), os imunobiológicos (15,7%) e a acitretina (10,5%). O tratamento tópico isolado foi referido por 26,9% da amostra.

A forma clínica de psoríase mais prevalente foi em placas generalizada (62,0%). A forma em placas localizada esteve pre-sente em 36,0% da amostra e a artropática foi encontrada em apenas um indivíduo da amostra (2%). O grau de severidade da psoríase que predominou foi o de moderada à grave (73,1%).

O DLQI médio da amostra durante o período do estudo foi de 5,6 (DP de 5,1). Entre os pacientes com psoríase de mo-derada à grave, observou-se DLQI médio de 5,7 (DP de 5,4), enquanto nos pacientes com formas leves o DLQI médio foi de 5,4 (DP de 4,6; p=0,9), mostrando que não houve diferença estatisticamente significante entre os grupos.

A distribuição das variáveis analisadas, segundo o grau de severidade da psoríase, encontra-se na tabela 1.

Na tabela 2, pode ser observado o DLQI médio segundo o grau de severidade da psoríase nas diferentes variáveis analisadas e respectivos desvios padrão. Analisando a tabela 2, observamos maior impacto na qualidade de vida dos pacientes com psoríase moderada à grave entre os homens, de pele amarela, com Ensino Médio incompleto, forma clínica localizada, na quarta década de vida, sem renda familiar informada e tempo de doença de 5 a 10 anos. Nos pacientes com psoríase leve, o maior impacto também foi no sexo masculino, entre os indíviduos de pele par-da e na quarta década de vida, porém com nível de escolaridade inferior, forma generalizada da doença e tempo de doença supe-rior a 10 anos.

DISCUSSÃO

A psoríase é uma doença prevalente e crônica, cujas carac-terísticas epidemiológicas em nosso meio ainda estão sendo de-lineadas. Daí a relevância de estudos nacionais e regionais, que revelem informações sobre o perfil clínico e epidemiológico dos pacientes portadores desta dermatose, dados sobre os tratamen-tos utilizados, e informações sobre a evolução da doença e seu impacto na qualidade de vida.

É consenso literário que a psoríase afeta predominantemen-te brancos e ocorre igualmente entre homens e mulheres.(9-13) Os achados deste estudo concordam com a literatura. Santos et al. observaram predomínio do sexo feminino e de indivíduos pardos (faiodérmicos), possivelmente justificado nas diferenças genéticas e de fototipo regionais, por se tratar de um estudo rea-lizado no Estado do Pará, onde a maioria da população, segundo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é parda.(14)

Mais da metade dos indivíduos entrevistados apresentava renda mensal entre um e cinco salários mínimos, e escolaridade

Figura 2. Casos de psoríase, segundo a faixa etária. Taubaté (SP), Brasil, 2013-2014.

Figura 3. Perfil da renda familiar. Taubaté (SP), Brasil, 2013-2014.

Perfil epidemiológico na psoríase

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tabela 1. Variáveis analisadas, segundo grau de severidade da psoríase. Taubaté (SP), Brasil, 2013-2014

variável Moderada a grave n (%)

Leven (%)

Sexo Masculino 14 (46,7) 7 (63,6)Feminino 16 (53,3) 4 (36,4)

Cor de pele Branco 23 (76,7) 8 (72,7)Negro 1 (3,3) -Pardo 4 (13,3) 3 (27,3)Amarelo 2 (6,7) -

Escolaridade Analfabeto 1 (3,3) -Ensino Fundamental incompleto 10 (33,3) 5 (45,5)Ensino Fundamental completo 4 (13,3) 1 (9,1)Ensino Médio incompleto 3 (10,0) 1 (9,1)Ensino Médio completo 11 (36,7) 4 (36,4)Ensino Superior completo 1 (3,3) -

Forma clínica Localizada 7 (23,3) 7 (63,6)Artrite psoriática - 1 (9,1)Generalizada 23 (76,7) 3 (27,3)

Idade, em décadas Segunda - 1 (9,1)Terceira 1 (3,3) -Quarta 2 (6,7) 2 (18,2)Quinta 5 (13,3) 1 (9,1)Sexta 11 (36,7) 2 (18,2)Sétima 9 (30,0) 2 (18,2)Oitava 2 (6,7) 2 (18,2)Nona - 1 (9,1)

Renda familiar, salário mínimo Não informou 9 (30,0) 1 (9,1)<1 - 2 (18,2)1 5 (16,7) -2-5 16 (53,4) 7 (63,6)>5 - 1 (9,1)

Tempo de doença, anos <5 2 (6,7) 4 (36,4)5-10 3 (10,0) 2 (18,2)>10 17 (56,7) 5 (45,4)Não soube informar 8 (26,7) -

tabela 2. Dermatology Life Quality Index (DLQI) médio, segundo grau de severidade da psoríase nas diferentes variáveis analisadas e respectivos desvios padrão, Taubaté (SP), Brasil, 2013-2014

variável Moderada à grave

DLQib média (desvio padrão)

LeveDLQi média

(desvio padrão)Sexo

Masculino 5,7 (6,7) 6,5 (5,4)Feminino 5,6 (4,1) 3,5 (1,9)

Cor de pele Branco 5,8 (5,5) 5,4 (4,6)Negro 0,0 (-) -Pardo 4,8 (2,9) 5,7 (5,7)Amarelo 8,0 (9,9) -

Escolaridade Analfabeto 0,0 (-) -Ensino Fundamental incompleto 5,3 (4,4) 6,6 (4,0)

Ensino Fundamental completo 3,8 (2,8) 3,0 (-)

Ensino Médio incompleto 8,0 (8,7) 2,0 (-)Ensino Médio completo 6,9 (6,2) 5,5 (6,5)Ensino Superior completo 1,0 (-) -

Forma clínica Localizada 6,3 (8,4) 5,3 (4,0)Artrite psoriática - 3,0 (-)Generalizada 5,4 (4,6) 7,0 (7,0)

Idade, em décadas Segunda - 2,0 (-)Terceira 1,0 (-) -Quarta 10,0 (-) 13,5 (2,1)Quinta 6,2 (8,1) 1,0 (-)Sexta 5,7 (4,9) 3,5 (3,5)Sétima 4,6 (5,7) 6,0 (2,8)Oitava 6,5 (0,7) 4,5 (2,8)Nona - 2,0 (-)

Renda familiar, salário mínimoNão informou 7,1 (7,2) 6,0 (-)<1 - 3,0 (1,4)1 5,2 (6,0) -2-5 4,9 (4,1) 5,1 (5,1)>5 - 12,0 (-)

Tempo de doença, anos <5 2,0 (2,8) 3,5 (2,1)5-10 8,0 (5,3) 4 (2,8>10 5,4 (5,4) 7,6 (5,4)Não soube informar 6,3 (6,1) -até o Ensino Fundamental incompleto, indo ao encontro dos

achados de Santos et al.(14) Este achado possivelmente seja ex-plicado pelo fato de ser um serviço público de saúde, refletindo a situação socioeconômica da maioria dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), os quais, em geral, possuem baixas renda e escolaridade. Segundo dados do Departamento de Informática

do SUS (DATASUS), a média de salário per capita no Vale do Pa-raíba e região serrana do Estado de São Paulo é de R$895,15.(14,15)

Silveira ME, Pelegrina Neto G, Ferreira FR

250 Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):246-51

O tempo médio de doença foi variável na literatura. Os achados deste estudo com predomínio do tempo de doença de 10 anos ou mais foram compatíveis com os achados de Martins et al.(5) (11,3 anos) e podem ser explicados pela evolução crôni-ca da psoríase. Santos et al., entretanto, observaram tempo de evolução bem inferior, variando de 1 a 5 anos incompletos.(14)

Em relação à forma clínica da psoríase, o predomínio da apresentação generalizada observada neste estudo é destacado também em outros estudos relevantes.(15) Menegon,(16) entre-tanto, em estudo realizado no Rio Grande do Sul, encontrou predomínio de formas localizadas. Talvez características locais, e diferenças genotípicas e fenotípicas favoreçam as apresentações encontradas. A forma em placas ou vulgar é a observada em cerca de 80 a 90% dos casos (quer de forma localizada ou gene-ralizada).(17) A ausência de indivíduos com formas pustulosas e eritrodérmicas possivelmente seja explicada por se tratarem de apresentações menos comuns e mais graves da doença, em geral, acompanhadas por manifestações sistêmicas, requerendo cuida-dos hospitalares e não ambulatoriais (ambiente deste estudo). A forma artropática foi observada em apenas um indivíduo deste estudo, achado possivelmente justificado pela maior procura destes indivíduos por serviços de reumatologia.(14)

Quanto à severidade da psoríase, a maioria dos indivíduos desta amostra foi classificada como portadora de formas mode-radas a graves, contrapondo os achados de Menegon.(16) Estes indivíduos faziam uso de tratamento sistêmico, no qual a droga mais utilizada foi o metotrexato. Esta droga é a primeira opção no tratamento sistêmico, sendo considerada efetiva, segura e de fácil acesso aos pacientes.(13,18,19)

A expressão “qualidade de vida” foi utilizada pela primeira vez pelo presidente americano Lyndon Johnson, em 1964, quando declarou “os objetivos não podem ser medidos através do balan-ço dos bancos. Eles só podem ser medidos através da qualida-de de vida que proporcionam às pessoas”. A qualidade de vida é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como percepção individual de um completo bem-estar físico, mental e social. Esta percepção varia entre indivíduos e é dinâmica. In-divíduos com expectativas diferentes, que apresentam quadro clínico semelhante, relatam qualidade de vida diversa.(20) Daí, a importância da utilização de instrumentos de avaliação que visem medir objetivamente a gravidade da doença e sua melhora clínica.

O DLQI é o instrumento mais utilizado para medir a quali-dade de vida nos grandes estudos clínicos sobre psoríase. Estudo com 548 pacientes brasileiros com diversas doenças foram ava-liados com o DLQI, sendo a média obtida de 7,7.(20) As doen-ças com maior impacto na qualidade de vida foram a psoríase (mediana 15,5), o vitiligo (13), a dermatite atópica (12) e a acne (10). Os dados deste estudo, em relação ao DLQI médio da amostra, foram bem inferiores ao registrado por Oyafuso e Bortoletto para psoríase. Mesmos nos pacientes com severidade moderada a grave, o DLQI médio não atingiu 6 pontos, re-fletindo pouco impacto desta dermatose na qualidade de vida desta população. Porém, temos que ressaltar possível viés nestes números, uma vez que os pacientes avaliados já se encontravam em acompanhamento e tratamento neste ambulatório de refe-

rência, com melhora do quadro clínico inicial. O DLQI baixo pode refletir, na verdade, o controle da dermatose com a tera-pêutica instituída, objetivo primordial de qualquer tratamento.

Com respeito aos fatores epidemiológicos relacionados à qualidade de vida, Oyafuso e Bortoletto(20) observaram que in-divíduos mais jovens, solteiros e com doença de mais longa du-ração apresentaram pior qualidade de vida, o que foi compatível com os achados deste estudo, no qual adultos jovens (quarta década) e com tempo de doença entre 5 a 10 anos, ou acima disto, apresentaram os maiores escores de DLQI, mostrando maior impacto da dermatose em seu cotidiano. Na literatura, são escassos os trabalhos que analisam o DLQI segundo variá-veis epidemiológicas. A maioria dos estudos avalia o DLQI pe-los domínios mais afetados (por exemplo: lazer, trabalho, escola etc.). Acreditamos, com isto, que este estudo pode servir de base para futuros estudos nesta área e que é de grande importância para complementar conhecimentos até então estudados.

Ainda em relação aos fatores epidemiológicos, neste estu-do observamos as maiores médias do DLQI no sexo masculino (tanto nas formas leves, como nas moderadas a grave). Possivel-mente isto se deva a um fator cultural do nosso país: os homens evitam procurar auxílio médico e, quando o fazem, são menos assíduos e apresentam menor aderência ao tratamento, obtendo resultados inferiores e resultando em pior qualidade de vida.

Quanto à cor da pele, o maior DLQI foi observado nos in-divíduos de pele amarela (8,0). Diferença cultural/expectativa diversa? Ou apenas uma coincidência (amostragem pequena) ou relação com outros fatores nestes indivíduos (por exemplo: extensão e localização) não analisados. Apesar de representarem apenas 5,0% da amostra, estudos maiores seriam interessantes para elucidar esta observação.

O impacto na qualidade de vida, segundo o grau de esco-laridade, mostrou-se maior entre os indivíduos com Ensino Médio incompleto (8,0) e completo (6,9). Este achado pode ser devido a uma maior compreensão da doença por parte dos pacientes com maior grau de escolaridade e também sugere pos-sível dificuldade de compreensão por parte dos pacientes menos alfabetizados do DLQI, resultando em escores menores nesta população.

Quanto à forma clínica, as formas localizada (moderada a grave) e generalizada (leve) apresentaram as maiores médias de DLQI. Este resultado pode ser explicado nas formas localizadas, possivelmente pela região corporal acometida não ocultada pela vestimenta; enquanto que, na generalizada, o maior acometi-mento corporal, por si só, é suficiente para justificar a pior qua-lidade de vida destes pacientes.

A variável renda mostrou DLQI médio mais elevado no gru-po de indivíduos com renda indeterminada (não informada), o que inviabilizou a análise do impacto desta dermatose vinculado à renda desta população.

Este estudo apresenta possíveis limitações e vieses. O primei-ro deles é ser de base hospitalar, sendo o ambulatório no qual este estudo foi realizado de referência para casos de psoríase de maior gravidade; daí, deve-se ter cuidado com a transposição externa destes achados. Pode ter influenciado nos dados encon-trados o fato de os pacientes encontrarem-se em tratamento e a pequena amostragem.

Perfil epidemiológico na psoríase

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CONCLUSÃO

Este estudo permitiu identificar o perfil epidemiológico dos indivíduos com psoríase atendidos neste ambulatório de referên-cia, ressaltando características desta dermatose na população e traçando um paralelo com o Dermatology Life Quality Index, ou seja, com o impacto na qualidade de vida. Constituiu, portanto, estudo pioneiro na região e serve de base para estudos futuros.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Dr. Samuel Henrique Mandelbaum, chefe do Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário de Tau-baté e médico responsável pelo ambulatório de psoríase, pela oportunidade da realização deste estudo.

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252

artigo original

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):252-8

Ensino de técnicas de cirurgia cardiovascular na graduação em Medicina utilizando vísceras de suínosTeaching techniques in cardiovascular surgery for undergraduate students with swine thoracic viscera

Maurício Galantier1, João Galantier1, Aline Riquena da Silva1, Matheus Silva Garbin1, Pedro Luiz Squilacci Leme1, Wagner Koji Aragaki1

Recebido da Universidade Nove de Julho, SP.

1. Universidade Federal do Amazonas, Hospital Universitário Getúlio Vargas, Manaus, AM, Brasil.2. Fundação de Medicina Tropical do Amazonas Doutor Heitor Vieira Doura-do, Manaus, AM, Brasil.

Data de submissão: 16/8/2012 – Data de aceite: 24/10/2012Conflito de interesses: não há.

Endereço para correspondência: Eduardo da Silva RamosAvenida Apurinã, 4 – Praça 14 de JaneiroCEP: 6902-017 – Manaus, AM, BrasilTel./Fax: + 55 (92) 3305-4719 – E-mail [email protected]

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RESUMO

ObjEtivO: Apresentar um método prático de ensino e avaliar o grau de eficácia do aprendizado, comparando alunos que pas-saram pelo curso durante a graduação básica (sétimo semestre) e após 18 meses (décimo semestre), já no internato hospitalar. MétODOs: As vísceras conservadas por refrigeração, com co-ração, estruturas vasculares do mediastino, traqueia e pulmões, foram fixadas em suporte metálico apropriado. Os vasos supra--aórticos foram ligados, e uma sonda de Foley foi introduzida retrogradamente para a infusão de água, permitindo a apresen-tação de procedimentos operatórios. Foram aplicados questio-nários a 40 alunos do sétimo e décimo semestre. As respostas foram submetidas à análise estatística. REsuLtADOs: Foram demonstradas técnicas necessárias para o estabelecimento de circulação extracorpórea, confecção de enxerto aorta-coronária com segmento da artéria carótida obtido no mesmo bloco de vísceras, substituição da valva aórtica por prótese valvar sinté-tica, correção de defeito previamente realizado no septo atrial, posicionamento dos vários tipos de eletrodos utilizados para a estimulação elétrica do coração, demonstração de técnicas em-pregadas para transplante cardíaco, simulação e correção de ferimentos do coração e da aorta. O grau de adequação da fer-ramenta avaliada foi positivo, com valores entre 55 e 95%, e houve retenção dos ensinamentos após 18 meses. Conclusão: Este método de ensino foi de fácil preparação e baixo custo, permitindo a realização de operações complexas e despertando interesse durante a graduação em Medicina.

Descritores: Educação de graduação em medicina; Procedi-mentos cirúrgicos cardiovasculares; Anastomose cirúrgica/edu-cação; Laboratórios hospitalares; Animais

ABSTRACT

ObjECtivE: To present this practical teaching method, and assess the degree of learning effectiveness, comparing students who attended the course during basic undergraduation (seventh semester), and after eighteen months (tenth semester), when already in the Hospital internship. MEthODs: Thoracic viscera, with heart, vascular structures of the mediastinum, trachea and lungs, preserved by refrigeration, were fixed in a metallic device. The supra-aortic branches were connected, and a Foley catheter was introduced backwards for water infusion, allowing the presentation of surgical procedures. Questionnaires were applied to 40 students of the seventh and tenth semesters; the answers underwent statistical analysis. REsuLts: The following techniques were demonstrated: establishment of cardiopulmonary bypass; coronary artery bypass grafting with carotid artery segment obtained in the same block of viscera; aortic valve replacement with synthetic valve; patch made with biological material in order to correct a defect previously held in the atrial septum; positioning of the various types of electrodes used for electrical stimulation of the heart; demonstration of techniques performed in cardiac transplantation and simulation and correction of both heart and aorta injuries. The degree of adequacy of such tool was positive, with values between 55 and 95%, and retention of what was taught after 18 months. COnCLusiOn: This teaching method requires easy preparation and low cost, allowing the performance of complex operations, attracting medical students’ interest.

Keywords: Education, medical, undergraduate; Cardiovascular surgical procedures; Anastomosis, surgical/education; Laboratories, hospital; Animals

INTRODUÇÃO

O ensino das técnicas operatórias empregadas em cirurgia cardiovascular representa um desafio no período de graduação em Medicina. Algumas operações podem ser demonstradas du-

Ensino de técnicas de cirurgia cardiovascular

253Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):252-8

rante a introdução básica, no curso de Técnica Operatória, ou em fases mais avançadas, como no curso de Cardiologia, mas poucos estudos avaliam a efetividade das modalidades didáticas.(1)

Nos laboratórios de simulação virtual, são utilizados disposi-tivos experimentais para treinamento de cirurgia cardiovascular, podendo ser empregados recursos de computação gráfica, mol-des tridimensionais flexíveis sintéticos, ou outros dispositivos que auxiliam o desenvolvimento de habilidades, mas estes recur-sos são empregados em fases mais avançadas de desenvolvimen-to técnico, não sendo descritos para o período de graduação.(2,3)

Modelos de simulação virtual também são utilizados para o treinamento de procedimentos endovasculares, cada vez mais complexos e mais realizados na prática médica. Berry et al.(4,5) demonstraram que esta opção tem menor custo do que o em-prego de animais e é mais efetiva, proporcionando melhor de-sempenho dos alunos quando os mesmos procedimentos são realizados em humanos.

Vários modelos experimentais foram desenvolvidos para en-sino, treinamento ou mesmo validação de técnicas, que devem ser testadas inicialmente em animais,(6,7) como as tecnologias que utilizam conceitos de operações minimamente invasivas e robótica,(8) mas o uso racional de animais de experimentação deve ser considerado, tentando evitar as fases intermediárias de desenvolvimento das habilidades dos alunos em animais vivos,(9) poupando-os de sofrimento desnecessário.(10)

O emprego das vísceras torácicas isoladas de suíno é de valia no ensino e no treinamento de habilidades cirúrgicas em labo-ratório, particularmente para o ensino prático de técnicas em-pregadas em cirurgia cardiovascular, sendo de fácil preparação e baixo custo, permitindo a realização de operações complexas e despertando grande interesse. A participação dos alunos na rea-lização de vários procedimentos propicia o aprendizado sólido dos temas relacionados ao assunto de forma simples e eficaz, oco rrendo retenção dos conceitos ensinados no sétimo semestre do curso de graduação mesmo após 18 meses.

O objetivo deste estudo foi apresentar este modelo de aula prática, e avaliar se os ensinamentos seriam lembrados e se fo-ram úteis para o aprendizado médico quando os alunos desem-penhavam suas atividades no internato hospitalar.

MÉTODOS

Foram empregadas vísceras de suínos com coração, estruturas vasculares do mediastino, traqueia e pulmões isolados, conserva-das por refrigeração (Figura 1). Os ramos supra-aórticos estavam ligados, e uma sonda de Foley foi introduzida retrogradamente até o istmo desta artéria, para a infusão de água, que disten-deu os vasos do sistema descrito, inclusive as artérias coronárias, conferindo aspecto dinâmico ao modelo (Figura 2) e permitindo o ensino da anatomia comparada do coração, aorta e seus ra-mos, circulação coronariana (Figura 3), linfonodos do medias-tino (Figura 4A), pulmões e vias respiratórias. A água injetada e aspirada na aorta e ventrículo esquerdo promoveu a simulação da sístole e diástole, permitindo demonstrar o funcionamento valvar e a revisão da fisiologia do ciclo cardíaco. As vísceras to-rácicas foram fixadas em suporte metálico, desenvolvido para

Figura 2. Preparo do bloco de vísceras torácicas. Os ramos arte-riais maiores estavam ligados, e uma sonda de Foley foi introdu-zida retrogradamente até o istmo da aorta para infusão de água (A), que distendeu os vasos do sistema e as artérias coronárias, conferindo aspecto dinâmico ao modelo (B).

A

b

Figura 1. Bloco com vísceras torácicas de suíno, aspecto anterior (A) e posterior (B). Coração, estruturas vasculares do mediasti-no, traqueia e pulmões isolados e conservados por refrigeração.

A b

esta finalidade, com pontos na traqueia, diafragma e pericárdio, expondo o coração e grandes vasos (Figura 4 B).

Puderam ser realizadas a simulação e a correção de ferimen-tos do coração (Figura 5) e da aorta. Puderam ser demonstra-das as técnicas necessárias para o estabelecimento de circulação extracorpórea e confecção de anastomose aorta-coronária com segmento da artéria carótida obtido no mesmo bloco de vísceras (Figura 6), e as anastomoses realizadas foram testadas com a in-fusão de água na aorta.

Galantier M, Galantier J, Silva AR, Garbin MS, Leme PL, Aragaki WK

254 Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):252-8

Figura 3. Demonstração da dissecção da artéria coronária es-querda: tronco e bifurcação (A). Artéria interventricular esquer-da (descendente anterior) (B).

A

b

Figura 4. Demonstração da dissecção de estruturas mediastinais e linfonodos da carina (A). Abertura do pericárdio e pontos de fixação para exposição do coração em suporte metálico desen-volvido para a aula prática (B).

Figura 5. Simulação de reparo de ferimento cardíaco com in-terposição de esponja hemostática de gelatina absorvível (A) e sutura da lesão do miocárdio (B).

b

A

A técnica de substituição da valva aórtica por prótese valvar sintética pôde ser totalmente demonstrada, sendo possível revi-sar as doenças valvares, as técnicas de aortotomia e rafia da aorta no final da demonstração, a ressecção dos folhetos valvares, os pontos cirúrgicos no anel valvar e a fixação da prótese sintética de forma precisa (Figura 7).

Puderam ser feitos ainda a correção de defeito previamente realizado no septo atrial com material biológico e o posiciona-mento dos vários tipos de eletrodos utilizados para a estimulação elétrica do coração. Também foram demonstradas técnicas em-pregadas para transplante cardíaco.

Embora a anatomia dos brônquios destes animais apresente particularidades específicas, este modelo foi útil para demons-tração da dissecção linfonodal na região da carina, ressecções pulmonares ou ainda técnicas para rafia de brônquios.

Com o intuito de confirmar os resultados do aprendizado adquirido por alunos da graduação em Medicina da Universidade Nove de Julho (São Paulo, SP), foi aplicado um questionário a 20 alunos do sétimo semestre (início do quarto ano) após o término do módulo de Sistema Cardiocirculatório. O mesmo questionário foi aplicado a outros 20 alunos do décimo semestre (final do quinto ano), portanto já no internato hospitalar, 18 meses após o curso regular. Os 40 alunos participantes foram voluntários e assinaram um Termo de Consentimento Livre e

A

b

Ensino de técnicas de cirurgia cardiovascular

255Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):252-8

Figura 7. Demonstração da técnica de substituição da valva aór-tica por prótese sintética. Abertura da aorta e exposição da valva (A). Ressecção dos folhetos valvares (B). Confecção de pontos no anel valvar (C). Simulação de substituição da valva (D).

A

C D

b

Figura 6. Demonstração da realização de enxerto aorta-coronária com segmento da artéria carótida obtido no bloco de vísceras torácicas. Abertura da coronária esquerda (A). Confecção da anastomose distal (B, C e D). Confecção da anastomose proxi-mal com a aorta (E). Aspecto final (F).

b

A

C

E

FD

Esclarecido a respeito do estudo realizado, seguindo as normas de ética em pesquisa vigentes na instituição, que seguem a De-claração de Helsinki de 1975, revisada em 2008, assim como

a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. O ques-tionário consistia de 11 perguntas que deveriam ser respondi-das com uma das cinco opções possíveis, variando de “não sei” (zero) a “concordo plenamente” (5). As respostas obtidas per-mitiram comparar quatro parâmetros considerados básicos para este estudo: se o tema motivou o aluno a participar ou não da atividade prática; se o tema o motivou a estudar após a aula; se a atividade realizada auxiliou na revisão de conteúdo de matérias do ciclo básico; e se a atividade realizada auxiliou na fixação dos conceitos apresentados. Os dados obtidos foram submetidos ao teste t de Student, sendo considerado significativo p<0,05.

RESULTADOS

Este método de ensino utilizado pelo autor sênior (MG) foi realizado em mais de duas centenas de apresentações para alunos da graduação em Medicina e para Técnicos da área de Cirurgia Cardiovascular, estimulando a participação dos alu-nos, despertando grande interesse e sedimentando o aprendi-zado de forma sólida.

Este recurso pedagógico permitiu, de forma prática e ade-quada, a revisão da anatomia comparada do coração, grandes vasos torácicos e artérias coronárias, assim como o estudo de aspectos da fisiologia cardíaca, técnica operatória, cardiologia e cirurgia cardiovascular. A injeção de água na aorta ascendente forneceu um aspecto dinâmico no final das operações e possibi-litou a avaliação da efetividade das suturas realizadas. A injeção e a aspiração de água na aorta e ventrículo esquerdo simularam a sístole e a diástole, e várias operações puderam ser demonstradas e treinadas com este modelo de baixo custo, que permitiu o de-senvolvimento de habilidades em procedimentos tão complexos como os descritos.

Dos 20 alunos que responderam ao questionário após o final do curso, ainda no sétimo semestre, 70% se sentiram motivados para participarem das aulas, mas este número não foi significa-tivo (p>0,05) quando comparado aos que responderam “indife-rente” (25%) ou “não motivado” (5%). Da mesma forma, 55% destes alunos relataram motivação para estudar após a aula, mas este número também não foi significativo (p>0,05), quando comparado às outras respostas possíveis. Duas outras questões básicas apresentaram significância estatística (p<0,05), uma vez que 95% dos alunos consideraram que a aula auxiliou na revisão de matérias do ciclo básico, e o mesmo número considerou que a aula auxiliou na fixação da matéria ensinada.

Quando avaliadas as respostas dos 20 alunos do décimo se-mestre, 18 meses após o curso, os resultados foram excelentes e com significância estatística (p<0,05). Houve confirmação de que foram “motivados” pela aula nos dois primeiros quesitos avaliados: 80% (se o tema motivou o aluno a participar ou não da atividade prática) e 60% (se o tema o motivou a estudar após a aula), assim como foi assinalada uma resposta positiva por 90% dos alunos no quesito (se a atividade realizada auxiliou na revisão de conteúdo de matérias do ciclo básico) e 85% no que-sito (se a atividade realizada auxiliou na fixação dos conceitos apresentados) (Figura 8).

Galantier M, Galantier J, Silva AR, Garbin MS, Leme PL, Aragaki WK

256 Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):252-8

Figura 8. Nas respostas aos quesitos “motivação para participar das aulas” e “motivação para estudar após as aulas”, os resultados não apresentaram significância estatística (p>0,05) no sétimo semestre, mas foram significativos no décimo semestre (p<0,05). Os quesitos “auxiliou a revisão de matérias do ciclo básico” e “auxiliou a fixação da matéria” apresentaram resultados com significância estatística tanto no sétimo quanto no décimo semestre (p<0,05).

DISCUSSÃO

Este método prático de ensino é importante, do ponto de vista didático, porque permite a participação dos alunos e des-perta grande interesse, facilitando a assimilação do conteúdo das aulas referentes ao tema, que é extenso e árido. Embora tenha sido desenvolvido para o período de graduação em Medicina, pode ser utilizado para o treinamento e o aprimoramento dos médicos residentes de cirurgia cardiovascular ou para cursos de capacitação em novas técnicas.

A simulação de fases do ciclo cardíaco, permitindo a revisão da fisiologia do órgão com recursos simples, como a injeção de água sobre pressão nos ventrículos, é um recurso pedagógico in-teressante,(11) particularmente para as fases iniciais da graduação. A possibilidade de demonstração dos diversos tempos operató-rios de procedimentos complexos da cirurgia cardiovascular, e a participação dos alunos interessados no assunto e dos inscritos nos programas de monitoria tornam este método de ensino ain-da mais valioso, uma vez que o emprego de pequenos roedores para a demonstração da fisiologia do coração não é tão efetivo e, embora tenha custos aceitáveis, estes animais são mais utilizados para experimentação.(12)

O treinamento de habilidades para a realização de procedi-mentos invasivos em modelos de simulação virtual é adequado, havendo melhora dos resultados quando as manobras são re-petidas na prática clínica,(5) mas é mais utilizado em situações específicas − não durante o curso de Medicina, principalmente

se considerarmos que o ensino precisa ser abrangente e contem-plando tanto os alunos no início do curso quanto os que estão se preparando para as fases mais avançadas, como o período de internato hospitalar.

Os corações de cadáveres humanos fixados com formol, como os encontrados nos laboratórios de anatomia, não são adequados para este tipo de treinamento. Embora corações não formolizados de cadáver sejam utilizados, a dificuldade de se ob-ter estes órgãos não fixados e as implicações éticas limitam seu emprego, mesmo sendo importantes para o estudo dos orifícios e dos folhetos valvares,(11-13) assim como a avaliação do anel das diferentes valvas de corações humanos.(14)

Classicamente são empregados animais vivos para treinamen-to,(15) mas, durante as fases iniciais do desenvolvimento de ha-bilidades operatórias, o uso de órgãos isolados e não fixados com formol é importante, pelo baixo custo, pela facilidade de obtenção e pelo respeito às normas éticas do uso racional de animais de experimentação.(9)

Os cães sem raça definida, aprendidos pelos Serviços de Con-trole de Zoonoses Municipais, praticamente não são mais uti-lizados para treinamento em escolas de Medicina. Cães criados especificamente para estudo são utilizados, principalmente para testes de materiais de implante sintéticos,(16) mas seu emprego é restrito, e os custos são elevados.

Existe uma tendência atual de utilizar suínos vivos, forneci-dos por criadores específicos, mas estes animais possuem carac-

Ensino de técnicas de cirurgia cardiovascular

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terísticas próprias que dificultam sua utilização, e os custos desta opção não pode ser desprezados. As dificuldades para o acesso venoso e para a intubação orotraqueal nos suínos é conhecida. As vias aéreas dos porcos apresentam características próprias, que exigem o emprego de laringoscópio com lâminas longas. Sua glote é estreita, muito móvel e frágil, sendo indicadas por alguns a traqueostomia e a dissecção venosa com sedação intra-muscular, e complementação com anestesia local, antes do início da anestesia geral, evitando sofrimento desnecessário e perda de muitos animais durante as tentativas de intubação.(10) Modelos experimentais que estudam a circulação extracorpórea(15-17) e o choque hemorrágico(18) também empregam estes animais vivos.

O treinamento para a realização das anastomoses vasculares utilizadas para revascularização do miocárdio é complexo. Várias táticas para aquisição de habilidades foram descritas,(15) inclusi-ve utilizando material de alto custo em laboratório de experi-mentação com animais, como o necessário para realização de toracoscopia.(19) Vários modelos com animais são utilizados para treinamento das técnicas de enxerto aorta-coronária,(20) mesmo sem o uso de circulação extracorpórea.(8) Também têm sido uti-lizados o treinamento de obtenção da artéria gastroepiplóica por via endoscópica ou de enxerto axilar-coronário.(15)

O desenvolvimento das habilidades necessárias para a reali-zação de anastomoses vasculares é complexo. Jensen et al.(1) des-creveram o treinamento com enxertos sintéticos e aorta do porco. Com este recurso, confirmaram, inclusive estatisticamente, que os médicos no início do programa de residência médica se be-neficiam mais deste período no laboratório. Schachner et al.(15) revisaram os modelos habituais empregados no treinamento dos enxertos com a coronária, que também são úteis para a avaliação das novas tecnologias, como a cirurgia robótica e o estudo da fi-siopatologia destes enxertos. Estes autores empregaram corações de suínos obtidos em frigoríficos e realizaram anastomoses entre a coronária direita e o ramo descendente anterior da coroná-ria esquerda do mesmo coração. No modelo aqui empregado, a possibilidade de utilização de um segmento da artéria carótida do animal, obtido no bloco de vísceras, facilitou a realização do enxerto aorta-coronária, representando opção interessante para o treinamento de duas anastomoses vasculares complexas.

A necessidade de substituir uma valva cardíaca com disfunção por uma valva artificial proporciona campo extenso para expe-rimentação em animais e mesmo em estudos em humanos,(21) uma vez que a procura por biomateriais próximos do ideal é constante. A comparação entre materiais usados classicamente para implantes, como o pericárdio e os dispositivos biológicos artificiais mais recentes, como os enxertos descelularizados, me-rece destaque na literatura,(7,22) e mesmo temas consagrados, como o emprego de marca-passos, estão em constante evolução, justi-ficando o estudo prévio em animais.(23)

A opção de levar os alunos da graduação ao hospital para acompanhar procedimentos operatórios de cirurgia cardiovas-cular esbarra em grande dificuldade logística. O tempo é exíguo para matérias específicas na grade curricular e, com os alunos divididos em pequenos grupos, ocorre a fragmentação do ensi-no, uma vez que fortuitamente cada grupo acompanhará apenas algumas operações, e o aproveitamento pedagógico, nesta situa ção,

é escasso, além de trazer maiores riscos de infecção para o doente, que habitualmente apresenta problemas complexos.

Este método de ensino de técnicas empregadas em cirurgia cardiovascular é de fácil preparação e baixo custo, permitindo a realização de operações complexas e despertando grande interesse. A participação dos alunos na realização de vários procedimentos resulta em aprendizado sólido do tema de forma simples e eficaz.

O questionário empregado para avaliar esta metodologia evi-denciou que os alunos do sétimo semestre e do internato hospita-lar obtiveram um aprendizado consistente. O ensino do sistema cardiocirculatório mostrou-se eficaz por meio deste modelo prá-tico, e os conceitos foram lembrados mesmo após certo período, exigindo menos aulas de revisão e corroborando a importân-cia do ensino prático de maneira integrada no curso médico. A principal contribuição deste modelo, simples e barato, ao com-plexo sistema didático necessário à graduação em Medicina é, em única aula prática, a demonstração de conceitos importantes de disciplinas como anatomia, fisiologia, técnica operatória e sistema cardiocirculatório.

CONCLUSÃO

Este método de ensino é de fácil preparação e baixo custo; per-mite a realização de operações complexas; e desperta interesse durante a fase inicial da graduação. Os conceitos ensinados fo-ram lembrados após 18 meses, e a avaliação realizada pelos alunos a respeito do método foi extremamente positiva.

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relato de caso

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Hipercalcemia paraneoplásica de carcinoma anaplásico da tireoideParaneoplastic hypercalcemia of anaplastic thyroid carcinoma: case report

André Valente, César Vieira, Isa Agudo, Ana Serrano, António Murinello, Ana Carvalho, Margarida Albergaria

Recebido do Hospital de Santo António dos Capuchos.

1. Serviço de Medicina 7.1, Hospital Curry Cabral, Centro Hospitalar de Lisboa Central, Lisboa, Portugal.

Data de submissão: 22/12/2016 – Data de aceite: 02/01/2017Fonte de auxílio à pesquisa: não há. Conflito de interesse: não há.

Endereço para correspondência: André Manuel Pinho ValenteServiço de Medicina 2.4 do Hospital de Santo António dos CapuchosAlameda Santo António dos Capuchos − 1169-050Lisboa, Portugal – E-mail: [email protected]

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

A hipercalcemia deve ser considerada no diagnóstico dife-rencial de alterações neuropsiquiátricas agudas. Em 90% dos casos, a etiologia corresponde a hiperparatireoidismo primário ou neoplasias. Valores séricos superiores a 14mg/dL e sinto-máticos são frequentemente tradutores de causa maligna. O carcinoma anaplásico da tireoide consiste em um tumor in-diferenciado, com progressão rápida e prognóstico reservado, que evolui, em alguns casos, a partir de lesões tireóideas pre-existentes, benignas ou malignas (desdiferenciação). Embora a apresentação clínica mais frequente destes tumores consista no desenvolvimento de massa cervical, eles podem ser diag-nosticados no esclarecimento etiológico de metástases ou sín-dromes paraneoplásicos. A hipercalcemia, associada à neoplasia, pode ocorrer em contexto de metástases ósseas, com libertação de citocinas, ou por mecanismo humoral, mediada pela proteí-na relacionada ao hormônio hormônio paratireóideo (PTHrP). Os autores descrevem o caso de uma mulher de 85 anos, com an tecedentes de bócio multinodular benigno, internada para es-clarecimento etiológico de hipercalcemia grave, com manifesta-ções neuropsiquiátricas, diagnosticando-se, após avaliação, car-cinoma anaplásico da tireoide. O caso foi abordado em reunião multidisciplinar, optando-se por limitação terapêutica a cuidados paliativos. A doente faleceu 3 meses após o diagnóstico.

Descritores: Carcinoma; Carcinoma anaplásico da tireoide; Hi-percalcemia; Proteína relacionada ao hormônio paratireóideo; Síndromes paraneoplásicas

ABSTRACT

Hypercalcaemia should be considered in the differential diagnosis of acute neuropsychiatric disorders. In 90% of the

cases, the etiology corresponds to primary hyperparathyroidism or neoplasms. Serum values above 14mg/dL and symptomatic are often indicative of a malignant cause. The anaplastic thyroid carcinoma consists of an undifferentiated tumor, with rapid progression and poor prognosis, which in some cases progresses from pre-existing benign or malignant thyroid diseases (dedifferentiation). Although the most frequent clinical presentation of these tumors consists of the development of a cervical mass, they can be diagnosed in the etiological clarification of metastases or paraneoplastic syndromes. Neoplasm-associated hypercalcaemia may occur in the context of bone metastasis, with release of cytokines, or through a humoral mechanism, mediated by the parathyroid hormone (PTHrP)-related protein. The authors describe the case of an 85-year-old woman with a history of multinodular benign goiter, hospitalized for etiological elucidation of severe hypercalcaemia with neuropsychiatric manifestations, with a final diagnosis of anaplastic thyroid carcinoma, after the diagnostic evaluation. The case was approached in a multidisciplinary meeting, and the therapeutic limitation to palliative care was chosen. The patient died 3 months after the diagnosis.

Keywords: Carcinoma; Thyroid carcinoma, anaplastic; Hypercalcemia; Parathyroid hormone-related protein; Paraneoplastic syndromes

INTRODUÇÃO

A hipercalcemia consiste em um distúrbio iônico que ocor-re quando os níveis de cálcio na circulação sanguínea excedem a excreção na urina ou a deposição a nível ósseo. Em termos sintomáticos, pode ocorrer compromisso da função de vários órgãos e sistemas. A sintomatologia depende essencialmente não só da concentração sérica de cálcio, mas também da velocidade de elevação da mesma.(1)

Níveis de cálcio total sérico <12mg/dL são habitualmente assintomáticos ou expressam sintomatologia inespecífica (fadiga, depressão ou obstipação); níveis entre 12 a 14mg/dL podem ser assintomáticos ou, se decorrentes de elevação sérica aguda, responsáveis por sintomatologia como poliúria, polidipsia, desi-dratação, anorexia, náuseas e alteração do estado de consciência; níveis >14mg/dL são habitualmente sintomáticos, destacando-se a presença de arritmias e disfunção do sistema nervoso central, com depressão do estado de consciência e manifestações neuropsi-quiátricas, que podem evoluir desde letargia e síndrome confu-sional, a estupor e coma.(1)

Em 90% dos casos de hipercalcemia, a causalidade resulta de doentes com hiperparatireoidismo primário ou está associada

Valente A, Vieira C, Agudo I, Serrano A, Murinello A, Carvalho A, Albergaria M

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a neoplasias; neste último caso, geralmente com desenvolvimento rápido e sintomático das mesmas.(1)

A hipercalcemia associada a neoplasia pode classificar-se em dois grupos: hipercalcemia humoral (induzida por fatores hu-morais) e hipercalcemia osteolítica local (induzida por citocinas, como interleucina (IL) 1 alfa, IL-6, fator de necrose tumoral alfa, fator de crescimento tumoral-alfa) e associada a metástases ósseas.(1)

Na hipercalcemia humoral, salienta-se o papel da proteína relacionada com o hormônio paratireóideo (PTHrP) enquanto mediador deste distúrbio iónico, tal como descrito por Albright, em 1941.(1)

A PTHrP é uma proteína constituída por 141 aminoácidos, dos quais os primeiros 13 apresentam 70% de homologia com a sequência correspondente do hormônio paratireóideo (PTH). Ainda que o PThrP e o PTH sejam expressos por genes diferentes, os fragmentos N-terminais de ambos interagem com um receptor comum no osso e no rim, conferindo-lhes propriedades fisioló-gicas semelhantes. Esta homologia traduz-se em repercussão clí-nica semelhante, nomeadamente hipercalcemia.(1)

Salienta-se que o gene da PTHrP não é expresso apenas em células neoplásicas, mas também na maioria das células não neoplásicas. Estudos sugerem, no entanto, que a concentração desta proteína nas células não neoplásicas é inferior à das células neoplásicas, restringindo-se, nestes casos, a funções autócrinas e/ou parácrinas locais.

A hipercalcomia humoral resulta de dois mecanismos causa-dos pelo efeito biológico do PTHrP a nível ósseo e renal, res-pectivamente, disrupção do mecanismo de reabsorção/formação óssea e diminuição da capacidade de excreção renal de cálcio.(1,2)

As alterações laboratoriais típicas em pacientes com hiper-calcemia humoral consistem na elevação sérica dos níveis de PTHrP, com níveis séricos de PTH e 1,25-di-hidroxi-vitamina D normais ou reduzidos.(1)

Embora as neoplasias mais frequentemente associadas a hi-percalcemia sejam mieloma múltiplo, carcinoma da mama e do pulmão, e linfomas, outras neoplasias podem estar associadas a este distúrbio.

O carcinoma anaplásico corresponde a cerca de 1,6% das neoplasias da tireoide, com idade média de cerca de 60 anos e de maior incidência no sexo feminino. Em contraste com os car-cinomas diferenciados, o anaplásico apresenta elevado grau de malignidade, é não capsulado, de crescimento rápido e extensão local acentuada, com prognóstico reservado,(3) estimando-se so-brevivência média de cerca de 4 meses. A taxa de sobrevivência média aos 5 anos é apenas de cerca de 3,6%.(3)

Em 50% dos casos, verificam-se metástases à data de diag-nóstico, sendo o pulmão o principal órgão comprometido, bem como o osso e o sistema nervoso central.(3)

Entre os fatores de risco identificados, encontram-se história pessoal ou familiar de bócio multinodular ou carcinoma dife-renciado da tireoide.(3) Nestes tumores, são detectadas mutações no gene de supressão tumoral p53, resultando na produção de proteína p53 inativa, passo final na oncogênese do desenvolvi-mento destes tumores.

A forma de apresentação mais comum consiste no desen-volvimento de massa tireóidea ou alteração das características

de massas preexistentes, embora o diagnóstico possa também ser estabelecido no estudo etiológico de sintomas compressivos locais, da origem primária de metástases ou na abordagem de síndromes paraneoplásicas.

Entre as principais causas de mortalidade no contexto de car-cinoma anaplásico da tireoide, destacam-se insuficiência respira-tória, hemorragia e obstrução da via aérea.(3)

A abordagem terapêutica da hipercalcemia assenta não só na diminuição da concentração sérica deste íon, mas também na resolução da etiologia responsável.(4) Pacientes assintomáticos ou com sintomas discretos não necessitam de terapêutica imediata. Concentrações séricas superiores a 14mg/dL requerem terapêu-tica imediata, independentemente dos sintomas. Nestes casos, o foco terapêutico deve consistir em expansão adequada de volu-me com soro fisiológico e reforço hídrico oral (se possível), bem como na administração de bifosfonatos, como o pamidronato ou o ácido zoledrônico (este último superior na reversão da hi-percalcemia associada à malignidade).(5)

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, de 84 anos de idade, caucasiana. Viúva, residia com a filha, parcialmente dependente de tercei-ros para Atividades de Vida Diária, na sequência de acidente vascular isquêmico prévio, com sequelas motoras (hemiparesia direita). Nos antecedentes pessoais, referia bócio multinodular benigno, diagnosticado por citologia aspirativa 10 anos antes, hipertensão arterial, dislipidemia e nevralgia do trigêmio.

A doente foi admitida no serviço de urgência, no contexto de quadro clínico com cerca de 3 semanas de evolução de pros-tração de agravamento progressivo, desorientação temporal e espacial, e perda de memória, evoluindo posteriormente para letargia. Notara, anteriormente, tumefação cervical direita, com crescimento progressivo, com 3 meses de evolução e sintomas suspeitos de compressão de órgãos adjacentes (tosse e disfagia). Em consulta de endocrinologia 2 meses antes da admissão, de-monstrou função tireóidea normal, com FT4 0,8ng/dL (0,70 a 1,48ng/dL) e TSH 1,1µUI/mL (0,35 a 4,94µUI/mL), tendo sido realizada citologia aspirativa da tireoide, cujo diagnóstico fora de bócio multinodular benigno. Não descreveu outra sin-tomatologia (febre, toracalgia, dispneia, dor abdominal, outros défices neurológicos, alteração do débito urinário ou das carac-terísticas morfológicas da urina). Sem história de traumatismo craniencefálico.

No exame objetivo, encontrava-se apirética, com hemodinâ-mica estável, eupneica em ar ambiente e com glicemia normal. Sem alterações auscultatórias respiratórias e cardíacas, abdome livre e indolor, sem massas nem organomegalias, membros infe-riores sem edemas nem sinais de trombose venosa profunda. No exame neurológico sumário, destacavam-se prostração, resposta à estimulação táctil com abertura ocular, discurso imperceptível, pupilas isocóricas e isorreativas, hemiparesia direita grau 3, sem alteração de sensibilidade aparente, reflexos cutâneo-plantares em flexão bilateralmente. Na observação e palpação cervical, destacava-se tireoide aumentada de volume, com individualiza-ção no lobo direito de um nódulo de cerca de 3cm de diâmetro,

Hipercalcemia paraneoplásica de carcinoma anaplásico da tireoide

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de consistência pétrea, indolor, aderente aos planos profundos (Figura 1). Não se palpavam adenopatias cervicais, axilares ou subclávias.

Da avaliação analítica, salientava-se anemia normocítica normocrómica: hemoglobina 9,0g/L (13,0 a 17,0g/L), volume globular médio 90,5fL (78,0 a 96,0fL), Hemoglobina lobular média 30,5pg (26,0 a 33,0pg). Sem elevação de parâmetros in-flamatórios. Bioquímica: ureia 22mg/dL (18,0 a 55,0mg/dL), creatinina 1,1mg/dL (0,72 a 1,25mg/dL), hiponatremia 128mEq/L (136 a 145 mEq/L) e hipercalcemia total de 15,0mg/dL (8,40 a 10,20mEq/L). Realizou eletrocardiograma e radiografia de tórax (ambos normais), e tomografia computadorizada cra-niencefálica com evidência apenas de leucoencefalopatia mi-croangiopática.

Na urgência foi instituída terapêutica com soro fisiológico 1.000mL e pamidronato 90mg por via endovenosa em dose única, sob monitorização electrocardiográfica. Após verificação de diminuição dos níveis de cálcio sérico (12,3mg/dL), foi in-ternada para esclarecimento etiológico de hipercalcemia grave sintomática.

Durante o internamento, verificou-se normalização progressi-va da sintomatologia neuropsiquiátrica, além da normali zação dos valores de calcemia, encontrando-se a doente vigil, orientada, co-laborante, com grau de autonomia equivalente ao do domicílio. Iniciou marcha diagnóstica com doseamento de valores de PTH sérico – 12µg/mL (14,76 a 83,10µg/mL) e de 1,25-di-hidroxi--vitamina D − 30,90µg/mL (19,6 a 54,3µg/mL). O valor de PTH diminuído excluiu a hipótese de improvável hiperparati-reoidismo primário. No contexto da doente, assumiu-se a hipóte-se de neoplasia como principal etiologia possível, realizando os seguintes exames complementares de diagnóstico.

Ecografia tireóidea

Volumoso aglomerado nodular ocupando o lobo tireóideo direito, à custa de vários nódulos sólidos, coalescentes e isoeco-gênicos, com o parênquima glandular restante; vários nódulos

sólidos no lobo tireóideo esquerdo, o maior de cerca de 3cm de diâmetro; sem formações ganglionares nas cadeias júgulo-ca-rotídeas com critérios volumétricos valorizáveis.

Tomografia computadorizada cervical-toráxica-ab-dominal-pélvica

Glândula tireóidea de contornos bosselados, assimétrica, de dimensões aumentadas: lobo direito (8x7,5x9,5cm), lobo esquerdo (7x2x2,2cm), com estrutura heterogênea do parênqui-ma, identificando-se múltiplos esboços nodulares coalescentes e áreas de necrose, além de calcificações grosseiras. O aumen-to volumétrico do lobo tireóideo direito condicionava desvio contralateral do eixo traqueal (permeável e de calibre normal) e um desvio medial dos grandes vasos cervicais, não se documen-tando pela técnica permeabilidade da veia jugular interna direita ao contato com a massa descrita, e não se excluindo laminação por compressão extrínseca (Figuras 2 e 3).

Sem adenomegalias nos territórios adjacentes à glândula ti-reóidea, embora os gânglios apresentassem morfologia arredon-dada. Não foram detectadas lesões ao nível pulmonar, hepático e esplénico.

Citologia de nódulo do lobo tireóideo direito

Esfregaços hipercelulares com marcada anisocariose e mar-cado pleomorfismo, com áreas de fundo necrótico, compatíveis com carcinoma anaplásico da tireoide (Figura 4).

Cintigrafia óssea

Sem evidência de lesões metastáticas.

Figura 1. Volumosa hipertrofia bilateral da tireoide.

Figura 2. Tomografia computadorizada do pescoço. Volumoso tumor do lobo direito da tireoide, com desvio contralateral da traqueia.

Valente A, Vieira C, Agudo I, Serrano A, Murinello A, Carvalho A, Albergaria M

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Não foi possível obter doseamento sérico de PTHrP. Tendo em conta o prognóstico reservado, foi discutido o caso clínico em reunião multidisciplinar (endocrinologia oncológica e cirurgia endocrinológica), decidindo-se por limitação terapêutica a cui-dados paliativos, admitindo-se a possível necessidade de coloca-ção de prótese traqueal em caso de dificuldade respiratória. Não se registaram elevações posteriores dos níveis séricos de calcemia.

Cerca de 4 semanas após o diagnóstico, a doente foi internada em contexto de sepse de ponto de partida respiratório, com in-suficiência respiratória global, vindo a falecer. Não foi solicitada necrópsia.

DISCUSSÃO

O doseamento dos níveis séricos de cálcio torna-se impe-rativo na abordagem do doente com sintomatologia neuropsi-quiátrica recente e de evolução progressiva, uma vez que a tera-pêutica adequada e instituída de forma precoce pode restaurar a normalidade do quadro clínico.

No que diz respeito à abordagem diagnóstica, a primeira etapa é a de excluir o hiperparatireoidismo primário e, caso esta condição não se verifique, deve-se considerar a hipótese de neo-plasia. Valores séricos de cálcio muito elevados (>13 a 14mg/dL) e sintomáticos são, habitualmente, expressão de neoplasia, conhecida ou oculta, podendo ocorrer em cerca de 30% das neo plasias.

Embora as neoplasias mais frequentes associadas à hipercal-cemia sejam o mieloma múltiplo, os linfomas, o carcinoma da mama e do pulmão, dada a existência de tumefacção cervical re cente, em doente com antecedentes de bócio multinodular, impunha-se estudo célere dirigido, com diagnóstico de carci-noma anaplásico da tireoide.

Tendo em conta o prognóstico desfavorável desta neoplasia, bem como a idade e o grau de dependência da doente, decidiu-se, após reunião em equipe multidisciplinar e informação à família, pela limitação terapêutica a cuidados paliativos, nomeadamente vigilância laboratorial da calcemia e eventual colocação de próte-se traqueal, no caso de posterior obstrução da via aérea.

A impossibilidade de solução cirúrgica adequada neste tipo de tumor resulta, muitas vezes, da existência de metástases nos gânglios cervicais em mais de 90% dos casos à data do diag-nóstico, indicativas de elevada porcentagem de recorrência e predi tivas de elevado grau de mortalidade. O crescimento muito rápido destes tumores é clinicamente visível em poucos dias. Além da ocorrência precoce de metástases à distância, a inva-são das estruturas adjacentes é muito comum e rápida, podendo observar-se invasão traqueal em 25% dos casos, condicionando, muitas vezes, a necessidade de traqueostomia ou a colocação de prótese respiratória. Pode também verificar-se invasão de estru-turas vasculares cervicais (veia jugular e artéria carótida).

Sugitani et al.(4) estabeleceram índice prognóstico respeitan-te à sobrevida dos doentes com este tumor, e sua correlação com as possibilidades terapêuticas, baseado em quatro fatores de ris-co, a saber: (1) ocorrência de sintomas agudos; (2) dimensões tumorais maiores que 5cm; (3) metástases distantes; (4) con-tagem de leucócitos ≥10x109/L. Os doentes com um índice ≤1 tinham sobrevida de 62% aos 6 meses, enquanto em todos os outros doentes com índice de 3 e 4 verificava-se óbito em 6 e 3 meses, respectivamente.

O carcinoma anaplásico da tireoide é habitualmente resis-tente à quimioterapia. Os fármacos mais frequentemente utili-zados são doxorubicina, cisplatina, paclitaxel, docetaxel, gemci-tabina e vinorelbina, por vezes associados a manumicina,(5) mas

Figura 4. Citologia aspirativa. Agregados de células epiteliais, algumas com clarificação nuclear e nucléolo evidente, e citoplasma vasto. No fundo observam-se alguns neutrófilos. Giemsa 400x.

Figura 3. Tomografia computadorizada do pescoço. Tumor do lobo direito da tireoide, observando-se invasão do espaço vascular, com compressão da veia jugular interna.

Hipercalcemia paraneoplásica de carcinoma anaplásico da tireoide

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os resultados são muito modestos. Nos doentes com possibili-dade de ressecção cirúrgica, a utilização posterior de radiotera-pia, principalmente a técnica de hiperfracionamento, aumenta a sobrevida.(6)

A utilização de terapêuticas emergentes, sobretudo a inibição farmacológica da angiogênese tumoral e a terapêutica genética, está ainda em fase inicial.(6,7)

Embora não tenha sido possível dosear os níveis séricos de PTHrP, assumiu-se, pela ausência de metástases na cintilografia óssea, a etiologia humoral da hipercalcemia.

Porque o diagnóstico foi feito por citologia aspirativa e não por biópsia, nem houve lugar a necrópsia, também não foi pos-sível objetivar por imuno-histoquímica a presença de PTHrP ao nível do tecido tumoral.

Tendo em conta que a maioria dos casos de carcinoma ana-plásico da tireoide é diagnosticada já com evidência de metástases, e sendo o osso um dos principais órgãos comprometidos, a causa humoral da hipercalcemia neste tipo de neoplasia é menos fre-quente que a hipercalcemia osteolítica local.

O carcinoma anaplásico da tireoide é um carcinoma indi-ferenciado de grau muito elevado de malignidade, que histo-logicamente parece total ou parcialmente composto de células indiferenciadas, que exibem aspectos imuno-histoquímicos ou ultraestruturais, indicativos de diferenciação epitelial. O diag-nóstico pode ser obtido por citologia aspirativa. O aspirado é geralmente moderado a marcadamente celular, podendo as cé-lulas aparecerem em grupos celulares de tamanho variável. As células são epitelioides (redondas ou poligonais) e/ou fusifor-mes, e de dimensões pequenas ou gigantes. Os núcleos são vo-lumosos, irregulares, pleomórficos; têm a cromatina compacta e nucléolos proeminentes e irregulares; por vezes ocorre multi-nucleação. Detectam-se, muitas vezes, figuras mitóticas. Podem ocorrer necrose, inflamação extensa de predomínio neutrofílico, acumulação de tecido conjuntivo e células gigantes. semelhantes a osteoclastos. A imunocoloração positiva mais frequente nestes tumores é a panqueratina (50 a 100% dos casos). A vimentina também é frequentemente expressa.(8)

Na nossa paciente, o diagnóstico foi obtido por citologia as-pirativa, não havendo necessidade de recorrer a biópsia de tecido.

CONCLUSÃO

A descrição deste caso clínico permite chamar a atenção para uma causa pouco frequente de síndrome confusional aguda (hi-percalcemia grave), determinada por etiologia rara (carcinoma anaplásico da tireoide) e de apresentação muito pouco frequente

(sem evidência de metástases à distância, assumindo-se assim um mecanismo de base humoral). A hipercalcemia de base hu-moral no carcinoma anaplásico da tireoide foi referida em muitos raros casos por diferentes autores.

Na nossa paciente, não foi possível a intervenção terapêutica ao nível da patologia oncológica, mas a monitorização dos níveis de cálcio e o seu tratamento permitiram garantir melhoria da qualidade de vida da doente durante os 2 meses que mediaram o tempo da admissão até ao óbito.

Um diagnóstico precoce de neoplasia, baseado na possibili-dade de síndrome paraneoplásica, pode condicionar a intervenção precoce em outros casos, com melhoria possível do prognóstico.

Será necessário ter em conta a importância da vigilância de doentes com patologia tireóidea, ainda que benigna, com ava-liação célere, caso se verifique alteração das características das lesões preexistentes.

REFERÊNCIAS

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8. Staerkel G, Ljung BM, Shidham V. Undifferentiated (Anaplastic Carcinoma and Squamous Cell Carcinoma of the Thyroid. In: Ali SZ, Cibas E, editors. The Bethesda system for reporting thyroid cytopathology. Definitions, criteria and explanatory notes. New York: Springer; 2010. p.139-51.

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relato de caso

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Polimiosite no diagnóstico diferencial de dor torácica agudaPolymyositis in the differential diagnosis of acute chest pain: case report

Igor Tadeu Garcia Ferreira1, Thales Henrique Costa Gonçalves1, Caio André Moises de Lima1, Marcia Scolfaro Carvalho1

Recebido do Hospital Municipal Dr. Mário Gatti, Campinas, SP, Brasil.

1. Departamento de Clínica Médica, Hospital Municipal Dr. Mário Gatti, Campinas, SP, Brasil.

Data de submissão: 24/04/2017 – Data de aceite: 25/04/2017Fonte de auxílio à pesquisa: nenhuma. Conflito de interesse: não há.

Endereço para correspondência: Igor Tadeu Garcia FerreiraAv. Prefeito Faria Lima, 340 – Parque ItáliaCEP: 13036-902 – Campinas, SP, BrasilTel.: (35) 988291165 – E-mail: [email protected]

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

As miosites inflamatórias idiopáticas são um grupo heterogêneo de doenças de repercussão sistêmicas. A polimiosite é a mani-festação fenotípica mais comum entre as miosites inflamatórias idiopáticas. A apresentação típica é dor e fraqueza progressiva simétrica da musculatura proximal e flexora do pescoço, com evolução de semanas a meses, associada à elevação dos marcado-res de lesão muscular. O presente relato demonstra um quadro de polimiosite que se manifestou como dor torácica, acompa-nhado de aumento de creatinofosfoquinase e creatinofosfoqui-nase fração MB (CKT-MB), fazendo diagnóstico diferencial com síndrome coronariana aguda. O caso motivou a realização do levantamento bibliográfico, na busca de casos semelhantes e detalhamento dos critérios diagnósticos. Fizemos uma revisão comparando os aspectos clínicos importantes para diagnóstico diferencial das miopatias inflamatórias com os da síndrome co-ronariana aguda, além de discutir critérios diagnósticos da mio-patias inflamatórias e seu tratamento.

Descritores: Dermatomiosite/diagnóstico; Dermatomiosite/quimioterapia; Diagnóstico diferencial; Dor abdominal; Mio-site de corpos de inclusão; Poliomiosite/diagnóstico; Poliomio-site/quimioterapia; Creatina quinase/metabolismo; Creatinina quinase forma MB/metabolismo; Humanos; Relatos de casos

ABSTRACT

Idiopathic inflammatory myositis is a heterogeneous group of diseases with systemic repercussions. Polymyositis is the most common phenotypic manifestation among idiopathic inflammatory myositis. The typical presentation is pain and

progressive symmetrical weakness of the proximal and flexor musculature of the neck, with progression from weeks to months, associated with elevation of the markers of muscle injury. The present report demonstrates a picture of polymyositis that manifested as chest pain, with increased creatine kinase and creatine phosphokinase MB, making a differential diagnosis with acute coronary syndrome, which motivated the bibliographic survey in search for similar cases, and detailing of the diagnostic criteria. Thus, we performed a review comparing the clinical aspects that are important for a differential diagnosis of inflammatory myopathies with those of the acute coronary syndrome, and discussed the diagnostic criteria for inflammatory myopathies and their treatment.

Keywords: Dermatomyositis/diagnosis; Dermatomyositis/drug therapy; Diagnosis, differential; Abdominal pain; Myositis, inclusion body; Polymyositis/diagnosis; Polymyositis/drug therapy; Creatine kinase/metabolism; Creatine kinase, MB form/metabolism; Humans; Case report

INTRODUÇÃO

As miosites inflamatórias idiopáticas (MII) são um grupo heterogêneo de raras doenças com repercussão sistêmica, que cursam com fraqueza muscular proximal, elevação de enzimas musculares e biópsia muscular com sinais de inflamação, além de manifestações extramusculares. São classificadas segundo a forma de apresentação, idade em que se iniciaram os sintomas, características imuno-histoquímicas e resposta ao tratamento.(1)

A polimiosite (PM) é a manifestação fenotípica mais co-mum dentre as MII, com prevalência de 9,7 casos a cada 100 mil pessoas, predomínio no feminino, acima de 20 anos. A inci-dência aumenta com a idade, atingindo pico entre 50 e 59 anos. Esta epidemiologia pode estar superestimada, uma vez que não são todos os estudos que tiveram o diagnóstico baseado na bióp-sia muscular, que é uma ferramenta importante no diagnóstico diferencial das miosites inflamatórias.(2,3)

A apresentação típica é fraqueza progressiva simétrica da musculatura proximal e flexora do pescoço, com evolução de se-manas a meses. Dor muscular é uma queixa comum, e a disfagia ocorre em um terço dos pacientes. As manifestações extramus-culares mais comuns são miocardite e o acometimento intersti-cial do pulmão,(1,4) mas também o esôfago pode ser acometido.

O diagnóstico da PM é baseado em critérios, e o mais antigo e mais utilizado é o de Bohan e Peter, publicado em 1975.(4)

Polimiosite no diagnóstico diferencial de dor torácica aguda

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Em 2003, Dalakas propôs outro critério, que contempla mais detalhadamente o diagnóstico diferencial entre as MII. No ano seguinte, o European NeuroMuscular Centre (ENMC) propôs o modelo diagnóstico mais atual e complexo, com sensibilidade de 84%.(1)

O seguinte relato demonstra um quadro de PM que se ma-nifestou como dor torácica e aumento de marcadores de necrose miocárdica, creatinofosfoquinase (CKT) e creatinofosfoquinase fração MB (CKT-MB), confrontando o diagnóstico de síndro-me coronariana aguda, uma condição muito prevalente, cujo o correto manejo tem grande impacto na sobrevida. Desta manei-ra, é importante que se conheça a história natural das doenças que fazem diagnóstico diferencial com as insuficiências corona-rianas agudas. Com esta revisão, buscamos salientar a importân-cia das miopatias neste diagnóstico diferencial, que são condi-ções pouco lembradas e, talvez, por isso, pouco diagnosticadas.

RELATO DE CASO

Trata-se de um paciente do sexo masculino, de 38 anos, com história de dor e fraqueza muscular proximal em membros inferiores (MMII) há 4 anos, de caráter intermitente, ora sem associação com outros sintomas, ora associado a parestesias lo-cais, e cervicalgia. Nos antecedentes pessoais, negava patologias prévias, tabagismo, uso de medicações e drogas ilícitas. Duran-te todo este tempo, procurou serviços de saúde sem elucidação diagnóstica.

Sua última procura foi no pronto-socorro de um hospital municipal, com queixa de dor torácica em aperto, associada com parestesia do membro superior esquerdo e cervicalgia, que se iniciara há 12 horas. Sem alterações ao exame físico. Foi re-alizado eletrocardiograma (ECG) em ritmo sinusal, sem sinais de isquemia aguda ou crônica (Figura 1), e foram solicitados os exames laboratoriais de admissão que constam no quadro 1. No primeiro atendimento, o paciente recebeu o diagnóstico de síndrome coronariana aguda. Porém, no dia seguinte, após ana-mnese completa, o paciente relatou mudança nas características do quadro álgico, sendo que a dor passou a ser localizada em

membros inferiores, associada à perda de força proximal e à pa-restesia, e mantendo os sintomas cervicais e níveis elevados de CKT e CKT-MB. Com isto, aventou-se a hipótese de miopatia inflamatória e procedeu-se à seguinte investigação.

Primeiramente, foi realizada eletroneuromiografia de mem-bros inferiores e membros superiores, que evidenciou processo miopático agudo, de predomínio proximal e intensidade leve com pouca alteração estrutural. A ressonância magnética das co-xas mostrou áreas focais sugestivas de discreta alteração inflama-tória em alguns ventres musculares de compartimento medial e posterior das coxas, mais evidente à direita.

A ressonância magnética direcionou o local da biópsia de coxa direita, onde demonstrou processo inflamatório, e o ana-tomopatológico constatou lesão morfológica consistente com lesão inflamatória crônica predominantemente linfocitária, as-sociada a elementos de degeneração muscular. O aspecto mor-fológico e a imunomarcação revelaram presença de elementos inflamatórios linfoides, em meio a áreas de tecido muscular com degeneração e proliferação regenerativa, sem critérios para ma-lignidade, sugerindo o diagnóstico de PM (Figura 2).

Considerando o quadro clínico, laboratorial e o anatomopa-tológico, e aplicados os critérios de Bohan e Peter, Dalakas e do ENMC, confirmou-se o diagnóstico de PM, tendo sido iniciado tratamento com prednisona 40mg ao dia e metotrexato 12,5mg semanais. Depois de 30 dias do início do tratamento, o pacien-te apresentou regressão parcial do quadro álgico e diminuição dos níveis de CKT (Figura 3), seguindo em acompanhamento ambulatorial.

DISCUSSÃO

No presente caso, o paciente apresentava história de fra queza proximal e dor em membros inferiores, que faz parte dos crité-rios diagnósticos de PM. Porém, no momento que procurou o pronto-socorro, apresentava dor torácica e cervicalgia, associa-das à parestesia do membro superior esquerdo com 12 horas de evolução, tratando-se de uma história de dor aguda e sem o padrão simétrico esperado para PM. (1)

Para diagnóstico da síndrome coronariana, são utilizados três critérios: quadro clínico, alterações no ECG, e elevação de marcadores de necrose miocárdica (CKT, CKT-MB e troponi-na) − dois deles são suficientes para fechar o diagnóstico.(5) No presente caso, o paciente apresentava dor torácica, sem alteração ao ECG, com marcadores de necrose miocárdica aumentados, mas sem fazer curva e com troponina negativa, o que não cor-robora a hipótese de infarto agudo do miocárdio sem elevação do segmento ST. Com a internação e a anamnese detalhada, fica nítido não se tratar de um quadro cardíaco isquêmico, com o predomínio da dor e fraqueza em membros inferiores. A sinto-matologia prévia do paciente foi colocada em evidência, direcio-nando a hipótese para miosite e seus diagnósticos diferenciais.

Tendo como hipótese miosites inflamatórias, é determinante que se realize biópsia do tecido muscular lesado, pois, embora existam diferentes manifestações clínicas, o conhecimento atual limita o poder do critério clínico nesta diferenciação, sendo a biópsia fundamental para o diagnóstico diferencial entre elas,(6,7) Figura 1. Elecardiograma realizado no dia da admissão.

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como, por exemplo, dermatomiosite (DM) sem acometimento da pele ou miosite por corpúsculo de inclusão (IBM, sigla do inglês inclusion body myositis).(1)

Quadro 1. Exames laboratoriais solicitados na admissão, durante a evolução e após controle depois de 60 dias de tratamentoExames da admissão

Hemograma completo: hemoglobina 16,1g/dL (VR: 12-16g/dL); hematócrito 46,3% (VR: 36-56%); leucócitos totais 6.345/mm³ sem desvio (VR: 5.000-10.000/mm³); plaquetas 312.000 (VR: 140.000-400.000mm³)Na=143mmol/L (VR: 135-145mmol/L)K=3,7 mEq/L (VR: 3,5-5,5mEq/L)Ca=9,53mg/dL (VR: 8,5- 10,2mg/dL)Mg=1,59mg/dL (VR: 1,8-22mg/dL)Ureia=22mg/dL (VR: 10-40mg/dL)Creatinina=0,65mg/dL; clearance de creatinina=142mL/minutoAST=49 U/L (VR até 37U/L); ALT=50U/L (VR até 41 U/L)CKT=1.054U/L (VR até 170U/L); CKT-MB=44,9U/L (VR até 24U/L); troponina=inconclusiva

Complemento da investigação diagnósticaEcocardiograma: prolapso de valva mitral; ausência de défice de contratibilidade e ausência de dilatação das câmaras cardíacas; fração de ejeção 67,4%; átrio esquerdo 34mm e ventrículo direito 23mmRastreio reumatológico: anti-RNP, anti-Ro, antimúsculo liso, anti-SM, FAN, anti-DNA, anti-LA, antimitocôndria, antitireoglobulina, antimicrossomal negativosRastreio infeccioso: HbsAg, anti-HBC, anti-HBS negativos; anti-HCV (hepatite C) negativo; anti-HVA (hepatite A); sorologias para citomegalovírus, toxoplasmose, Epstein bar e HIV todas negativasTSH: 2,67µUI/Ml (VR 0,5-5µUI/Ml)Eletroneuromiografia: exame dos MMSS e MMII evidencia processo miopático agudo, de predomínio proximal e de intensidade leveRM das coxas: áreas focais sugestivas de discreta alteração inflamatória em alguns ventres musculares de compartimento medial e posterior das coxas, mais evidente à direita, que podem estar relacionadas à doença de base do paciente

Exames de controle 60 dias após início do tratamentoHemograma completo: hemoglobina 15,5 (VR: 12-16g/dL); hematócrito 45% (VR: 36-56%); leucócitos totais 7.700/mm³ sem desvio (VR: 5.000-10.000/mm³); plaquetas 136.000/mm³ (140.000-400.000/mm³) TGO=23U/L (VR até 37U/L); TGP=40U/L (VR até 41U/L)CKT=81U/L (VR até 170U/L) Urina tipo I=normalCreatinina=0,75mg/dL; clearance de creatinina=123mL/minuto

VR: valor de referência; RM: ressonância muscular.

Figura 2. Biópsia muscular o anatomopatológico mostrando lesão inflamatória crônica predominantemente linfocitária asso-ciada a elementos de degeneração muscular.

Em se tratando dos critérios diagnósticos, o mais antigo e utilizado é o de Peter e Bohan, que leva em consideração o qua-dro clínico de fraqueza muscular proximal, a elevação de enzi-mas musculares, a eletroneuromiografia com padrão miopático, e a biópsia do tecido evidenciando inflamação, com presença ou não de manifestação na pele, para a diferenciação de PM e DM. Este critério é o mais simples e não leva em consideração outros diagnósticos diferenciais hoje já conhecidos,(5) sendo que o pa-ciente em questão se enquadrou em todos os critérios.

Figura 3. Curva da dosagem sérica de creatinofosfoquinase (CKT, em U/L) no dia de admissão, do início do tratamento e 60 dias após.

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Em 2003, Dalakas propôs um novo critério diagnóstico, que inclui também o quadro clínico de DM sem comprometimento muscular. Além disso, evoluiu do ponto de vista histopatoló-gico e imuno-histoquímico, pontuando as diferenças entre as lesões musculares da PM e da DM: a primeira apresenta pro-cesso inflamatório com linfócitos CD8 no ventre muscular, e a segunda, com infiltrado perivascular ou fascicular.(8) No nosso serviço não foi possível realizar o estudo imuno-histoquímico, devido ao alto custo. Pelo critério de Dalaskas, a não constatação da imunomarcação para linfócitos CD8 classificou o paciente como diagnóstico provável de PM.

Posteriormente, em 2004, o ENMC propôs um novo crité-rio, que apresenta sofisticações, como introdução de critérios de inclusão e exclusão na história clínica, e na eletroneuromiogra-fia, e agregou o uso da ressonância magnética e detecção de an-ticorpos específicos de MII. Além disso, ampliou a análise sobre os achados na biópsia muscular e abarcou mais diagnósticos di-ferenciais: DM sem dermatite, miosite não específica e miopatia necrotizante imunomediada. Conforme proposto pelo ENMC, para confirmação diagnóstica, é necessário que se tenha qua-dro clínico compatível, elevação de CKT e anatomopatológico correspondente (Quadro 2). O paciente apresentava cervicalgia com fraqueza muscular principalmente no compartimento flexor e com 4 anos de evolução, sem critérios de exclusão; elevação de CKT; e anatomopatológico com invasão linfocitária no tecido muscular. Desta maneira, preencheu os critérios para confirma-ção diagnóstica de PM segundo o ENMC. O quadro 3 mostra comparativamente os três critérios diagnósticos.

Embora um dos critérios de exclusão, seja o quadro ser su-gestivo de miosite por corpúsculos de inclusão, apenas em 2011 foram propostos critérios diagnósticos definidos para esta con-dição.(1) Geralmente, o início é mais insidiosos; é mais proemi-nente em região distal do membro, nas musculaturas flexoras; e pode ser assimétrica, com elevação de CKT. O diagnóstico se dá pela biópsia muscular com corpúsculos de inclusão típicas. É a miopatia inflamatória mais comumente confundida como PM e, em casos de PM, refratária, o diagnóstico correto frequente-mente se revela IBM.(9-11)

Considerando as miopatias em geral, além das miosites in-flamatórias idiopáticas, é importante que se destaquem outros diagnósticos diferenciais, principalmente por cursarem com fraqueza muscular, cujas principais etiologias são endocrinoló-gicas, como hipotireoidismo, que cursa com fraqueza muscu-lar proximal, e pode, inclusive apresentar elevação de CKT;(12) distúrbios hidroeletrolíticos, como hipocalemia, hipocalcemia, e hiper ou hiponatremia; desordem metabólicas de carboidra-tos e lipídeos;(13) uso de drogas e outras toxinas, como cocaína, álcool, corticosteroides e estatinas;(14,15) causas infecciosas, virais como HIV, citomegalovírus, Epstein-Barr, e outros organismo como fungos e a toxoplasmose;(16-18) e causas hereditárias, como as distrofias musculares. Além das miopatias, um distúrbio neu-romuscular deve ser ressaltado: a miastenia gravis.(19) Todas estas condições foram descartadas pela propedêutica clínica e armada. O quadro 1 mostra os principais resultados laboratoriais.

Durante o processo diagnóstico, é importante que se pes-quise, tanto na anamnese, quanto laboratorialmente, por meio

da presença de anticorpos antinucleares (anti-Ro/SSA, anti-La/SSB, anti-ribonucleoproteína – RNP e anti-Sm), a presença de outras condições reumatológicas definidas, uma vez que as miopatias inflamatórias podem ser secundárias a elas. Lúpus eritematoso sistêmico, escleroses sistêmicas, artrite reumatoide e síndrome de Sjögren são exemplos de doenças que causam miosites.(20) Existem outros anticorpos que estão relacionados a determinadas manifestações clínicas particulares, marcando subgrupos importantes. O de maior importância é a síndrome antissintetase, caracterizada por anticorpos contra a sintetase do RNAt, o mais conhecido e utilizado é o anti-Jo-1. Esta sín-drome está associada a doença pulmonar intersticial, artropatia, febre, fenômeno de Raynaud e as conhecidas “mãos de mecâni-co”. Dentre estas manifestações, a de morbidade e mortalidade mais expressiva é a pneumopatia intersticial.(21,22) Por isto, todos os pacientes com diagnósticos de PM e DM devem ser investi-gados para esta condição por interrogatório sobre queixas pul-monares e do raio X de tórax. Caso apresentem alterações, está indicada tomografia de tórax e provas e função pulmonar.(23-25) No presente caso, o paciente não apresentava queixa pulmonar ou outra qualquer que pudesse remeter a alguma condição reu-matológica associada, além de raio X de tórax normal e todos os marcadores reumatólogicos realizados estarem negativos.

Na PM pode haver acometimento pulmonar, cardíaco e eso-fágico.(1) Em se tratando do coração, manifesta-se como mio-cardite, cuja clínica é bem variável, abrange formas subclínicas, como dilatação e disfunção ventricular assintomática, até um quadro fulminante de choque cardiogênico. Tendo em vista o caso em discussão, é importante ressaltar que a miocardite aguda pode se manifestar de modo similar à dor anginosa, podendo apresentar inclusive alterações no ECG e elevações de marcado-res de necrose miocárdica, o que leva a questionar se o primei-ro quadro álgico do paciente foi uma manifestação cardíaca de PM.(26-31) Destacamos a miocardite neste caso, porque, embora tenha havido o quadro de dor, em momento algum o paciente queixou de dispneia, tosse e nem apresentou qualquer sintoma que remetesse a insuficiência cardíaca, também sem alterações eletrocardiográficas. Os níveis dos marcadores de necrose mio-cárdica se mantiveram elevados em platô, como se espera em uma miocardite, porém os níveis de troponina foram sempre inferiores aos de CKTMB, enfraquecendo a hipótese de aco-metimento cardíaco e reforçando a de muscular.(26) Além disto, foram realizados dois exames ecocardiogramas durante o acom-panhamento do paciente, um primeiro na vigência do quadro de dor e, posteriormente, no décimo dia de evolução − ambos sem qualquer alteração de contratilidade que denotasse miocar-dite. Considerando todos estes elementos, fica pouco provável que tenha ocorrido uma miocardite secundária a PM.

Os acometimentos esofágico e pulmonar foram descartados pela ausência de queixas clínicas e radiológicas relacionadas.

É importante que se ressalte a relação entre as MII e neopla-sias. Grandes estudos populacionais, em vários países, a com-provaram a partir da observação da temporalidade destas con-dições.(32-34) O pico de incidência do diagnóstico de câncer nas MII é maior no primeiro ano e diminui gradativamente durante 5 anos de seguimento,(34-37) porém acredita-se que o risco ainda

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Quadro 2. Critérios diagnósticos para miosites inflamatórias idiopáticas propostos pelo European NeuroMuscular Centre (ENMC) de 2011(5)

1. Critérios clínicosCritérios de inclusão: (a) Início acima de 18 anos (pós-puberdade); pode ser na infância e na dermatomiosite e miosite não específica (b) Início subaguda ou insidiosa (c) Padrão de fraqueza: simétrico, proximal > distal, da musculatura flexora > extensora do pescoço(d) Erupção típica de dermatomiosite: edema periorbital heliotrópico (roxo); pápulas violáceas (pápulas de Gottron) ou máculas nas articulações metacarpofalangeanas e interfalangeanas e outras proeminências ósseas (sinal de Gottron), escamosa se crônico; eritema do tórax e pescoço (sinal V) e parte superior das costas (sinal do xale)Critérios de exclusão:(a) Características clínicas da IBM (b) Fraqueza ocular, disartria, fraqueza da musculatura flexora e extensora do pescoço isoladas.2. nível sérico elevado de creatina quinase3. Outros critérios laboratoriais:(a) Eletromiografia: Critérios de inclusão: aumento da inserção e da atividade espontânea sob a forma de potenciais de fibrilação, ondas afiladas positivas ou descargas repetitivas complexas; a análise morfométrica revela a presença de PAUMs de curta duração, de pequena amplitude e polifásicosCritérios de exclusão: descargas miotônicas que sugerem distrofia miotônica ou outras canalopatias; análise morfométrica revela predominantemente PAUMs de longa duração e de grande amplitude; diminuição do padrão de recrutamento de PAUMs(b) RM: sinal aumentado difuso ou irregular (edema) dentro do tecido muscular em imagens STIR(c) Anticorpos específicos da miosite detectados no soro4. biópsia muscular(a) Infiltrado de células inflamatórias endomisiais (células T) envolvendo e invadindo fibras musculares não necróticas(b) Células T CD8 endomisiais envolvendo, mas não definitivamente, fibras musculares não necróticas, ou expressão difusa MHC-1(c) Atrofia perifascicular(d) Deposições de MAC em pequenos vasos sanguíneos, ou densidade capilar reduzida, ou inclusões tubuloreticulares em células endoteliais, ou expressão de MHC-1 de fibras perifasciculares(e) Infiltrado perivascular e perimisial de células inflamatórias(f ) Infiltrado endomisial de células T CD8 difuso, que não circunda e nem invade as fibras muscularesg) Muitas fibras musculares necróticas como característica histológica predominante. As células inflamatórias são escassas ou ligeiramente perivasculares; o infiltrado perimisial não é evidente(h) Vacúolos com bordos, fibras vermelhas irregulares, fibras citocromo-oxidase-negativas que sugerem IBM(i) Deposição de MAC no sarcolemma de fibras não necróticas e outras indicações de distrofias musculares com imunopatologiaCritérios diagnósticos para miosites inflamatórias idiopáticas propostos pela ENMC (2011)

PolimiositeDefinitivo

1. Todos os critérios clínicos com a exceção da erupção cutânea

2. CKT sérico elevado3. Critérios da biópsia muscular incluir a;

e excluir c; d; h; iProvável

Todos os critérios clínicos com a exceção da erupção cutânea

2. CKT sérica elevada3. 1 dos 3 outros critérios laboratoriais

4. Os critérios da biópsia muscular incluem b; e excluem c; d; g; h; i

DermatomiositeDefinitivo

1. Todos os critérios clínicos2. Critérios da biópsia muscular

incluem cProvável

1.Todos os critérios clínicos2. Critérios da biópsia muscular incluírem d ou e, ou CKT sérico

elevado ou 1 dos 3 outros critérios laboratoriais

Dermatomiosite amiótica1. Erupção típica de dermatomiosite

2. Biópsia cutânea: densidade capilar reduzida, deposição de MAC em pequenos vasos de

sangue ao longo da junção derme-epidérmica, e coração variável de queratinócitos para MAC

3. Sem fraqueza evidente4. CKT sérico normal

5. EMG normal6. Biópsia muscular, se feito,

não compatível com provável DM

Dermatomiosite sem dermatite1. Todos os critérios clínicos com

exceção da erupção cutânea2. CKT sérico elevado

3. 1 dos 3 outros critérios laboratoriais 4. Biópsia muscular incluir os critérios c ou d

Miosite não específica1. Todos os critérios clínicos com a

exceção da erupção cutânea2. CKT sérico elevado

3. 1 dos 3 critérios laboratoriais4. Biópsia muscular incluir os critérios e

ou f; e excluir todos os outros

Miopatia necrotizante imunomediana1. Todos os critérios clínicos com

exceção da erupção cutânea2. CKT sérico elevado

3. 1 dos 3 outros critérios laboratoriais 4. Biópsia muscular incluir o critério g;

e excluir todos outrosIBM: miosite por corpúsculo de inclusão; PAUMs: potencial de ação de unidade motora; MAC: complexo de ataque a membrana; CKT: creatinofosfoquinase.

seja maior nos anos seguintes. Entre os indivíduos com PM, a prevalência chega a 10%. As neoplasias mais associadas são de mama e ovário em mulheres, e pulmão e próstata nos homens.(1)

Porém, somados a estas, as neoplasias de estômago, colo de úte-ro e pâncreas representam 70% das doenças malignas associadas às MII.(34)

Polimiosite no diagnóstico diferencial de dor torácica aguda

269Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):264-71

Quadro 3. Comparação e evolução dos diferentes critérios diagnósticos de polimiosite Critério de Peter e bohan

(1975)Critério de Dalakas

(2003)Critério EnMC

(2011)Clínica Fraqueza muscular

proximal simétrica das cinturas pélvica e escapular

Mantém descrição do critério anterior

Critérios de inclusão: início após os 18 anos; início subagudo ou insidioso;

fraqueza muscular simétrica, próxima > distal, musculatura flexora > extensora do pescoçoCritérios de exclusão: características clínicas

de miosite por corpúsculos de inclusão; fraqueza da musculatura e ocular,

disartria isolada, fraqueza da musculatura flexora < extensora isoladas

Achados anatomopatológicos Evidência de inflamação à biópsia muscular, não leva em

consideração dados de ME

Inflamação primária com complexo CD8/MHC-1 e

sem vacúolos no ventre muscular

Infiltrado de células inflamatórias (células T) endomisiais envolvendo e invadindo fibras

musculares não necróticas

Laboratório Elevação de enzimas musculares: CKT, ou aldolase ou DHL,

ou aspartato aminotransferaseFAN é positivo em 80%

dos pacientes

CKT aumentada CKT aumentadaRM: sinal aumentado difuso ou irregular (edema) dentro do tecido muscular em

imagens STIRAnticorpos específicos para miosite detectados em soro

Eletroneuromiografia Compatível com miopatia − potenciais de unidade motora polifásicos de baixa amplitude e de curta duração; fibrilações,

mesmo em repouso; descargas de formato bizarro e repetitiva

Compatíveis com miopatia

Aumento da inserção e atividade espontânea sob a forma de potenciais de fibrilação,

ondas afiladas positivas ou descargas complexas repetitivas

A análise morfométrica revela a presença de PAUMs polifásicos de curta duração,

de pequena amplitudeDiagnóstico Definitivo: todos 4

Provável: 3 critériosPossível: 2 critérios

Definitivo: todos 4 critérios

Provável: todos 4 critérios, mas sem presença de CD8

ou vacúolos na biópsia

Definitivo: quadro clínico associado a elevação do CKT, e anatomopatológico

conforme descrito anteriormenteProvável: quadro clínico, elevação do CKT

1 das alterações laboratoriais ou eletroneuromiografia compatível

Anatomopatológico não invadindo definitivamente as fibras musculares,

ou expressão difusa de MHC-1ENMC: European NeuroMuscular Centre; DHL: desidrogenase lática; FAN: fator antinuclear; CKT: creatinofosfoquinase; RM: ressonância magnética.

A indicação de triagem para neoplasia deve ser orientada por meio da identificação de fatores de risco à anamnese e ao exame físico completo, e de acordo com a faixa etária de cada pacien te.(36) Recomenda-se rastreio básico, com hemograma completo, do-sagem das transaminases, análise sedimentar de urina, pesquisa de sangue oculto nas fezes, raio X de tórax, além dos exames adequados à faixa etária e ao sexo.(38,39) Exames mais complexos são indicados caso haja alteração nos primeiros, ou exista risco conhecido aumentado para alguma neoplasia, ou existam carac-terísticas da miosite inflamatória associadas à maior incidência de câncer como doença estabelecida em pacientes mais velhos, doença cutânea severa e resistência ao tratamento.(40-41) No pre-sente caso, o paciente era adulto-jovem sem história prévia ou fatores de risco para neoplasia, tendo sido realizado rastreio bá-sico proposto, sem alterações.

O tratamento visa eliminar ou diminuir o processo infla-matório muscular, prevenir lesão em outros órgãos e restaurar a força muscular, requerendo abordagem multidisciplinar. A pri-

meira linha de tratamento é a corticoterapia com prednisona em altas dosagens. Pode,-se associar medicações imunossupres-soras, como metotrexato, azatioprina e micofenolato de mofeti-la. A decisão pela associação se pauta na gravidade da fraqueza muscular, na resposta ao tratamento inicial com a prednisona, na presença de recidivas e do alto risco para complicações com uso de corticosteroides. Nos casos mais graves, ou resistentes às primeiras medicações, utilizam-se metilpredinisona, imuno-globulinas, rituximabe, ciclofosfamida ou ciclosporina. No caso descrito, optou-se pela associação uso de prednisona 40mg ao dia e metotrexato 12mg semanais desde o início do tratamento, devido à gravidade da fraqueza muscular.(1-3,5) Após a instituição do tratamento, o paciente respondeu com melhora importante do quadro clínico, com queda expressiva dos níveis de CKT, recebendo alta para seguimento ambulatorial.

A dor torácica aguda é uma patologia muito frequente nas unidades de urgência e emergência, sendo a síndrome corona-riana aguda condição muito comum e de elevada preocupação,

Ferreira IT, Gonçalves TH, Lima CA, Carvalho MS

270 Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):264-71

devido à sua mortalidade. A síndrome coronariana aguda se manifesta de diversas formas atípicas, o que, por conseguinte, faz-se necessário os diagnósticos diferenciais para tratamento adequado.

O presente estudo demonstra a importância das miopatias como diagnóstico diferencial de dor torácica e, entre elas, sa-lientamos as miosites inflamatórias, que possuem quadro clínico álgico que pode simular angina. Nota-se a escassez de trabalhos abordando esta relação e, talvez, por isto, estas doenças são pouco lembradas e, por consequência, pouco diagnosticadas.

Com este levantamento bibliográfico, pudemos observar a evolução dos métodos diagnósticos e a caracterização de novas miopatias, que conotam valor imprescindível à biópsia muscular na confirmação diagnóstica. Além disso, define-se o papel dos an-ticorpos específicos das miosites inflamatórias como marcadores de manifestações específicas e do prognóstico, apesar da dificul-dade em realizá-los em hospitais públicos, por seu custo elevado.

Em se tratando da prática clínica, esta revisão pontua alguns aspectos importantes no manejo dos pacientes com diagnóstico de PM, como sua relação com as neoplasias e suas manifestações extramusculares mais comuns, mostrando que uma anamnese detalhada é necessária para o diagnóstico correto dos quadros de dor torácica.

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272

relato de caso

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):272-8

Coma mixedematoso e trombo de veia cava superior. Relato de caso e revisão da literaturaMyxedema coma and superior vena cava thrombus: case report and literature review

Thales Henrique Costa e Gonçalves1, Igor Tadeu Garcia Ferreira1, Marcia Scolfaro Carvalho1

Recebido do Hospital Municipal Dr. Mári Gatti, Campinas, SP, Brasil.

1. Hospital Municipal Dr. Mário Gatti, Campinas, SP, Brasil.

Data de submissão: 20/06/2017 – Data de aceite: 23/06/2017Fontes de auxílio à pesquisa: nenhuma.Conflito de interesse: não há.

Endereço para correspondência: Thales Henrique Costa e GonçalvesRua João Alves Silva, 50 – CentroCEP 37110-000 – Elói Mendes, MG, BrasilTel.: (21) 98132-5082 – E-mail: [email protected]

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

O coma mixedematoso é uma emergência endocrinológica rara e consiste na máxima expressão do hipotireoidismo, com alta mortalidade por suas complicações hemodinâmicas e ventilató-rias, podendo ser agravadas por distúrbios da coagulação. Rela-tamos o caso de uma paciente diagnosticada com coma mixe-dematoso e trombo de veia cava superior. Buscamos salientar os distúrbios de coagulação frequentes no hipotireoidismo grave, que contribuem para o aumento da mortalidade deste grupo de pacientes. O diagnóstico e o tratamento precoce do coma mixedematoso, aliados à instituição imediata da terapia para o fenômeno trombótico encontrado, permitiram a evolução favorável do quadro. O relato, juntamente da bibliografia pes-quisada, orientou o raciocínio sobre a relação dos distúrbios de coagulação, que ocorrem no hipotireoidismo descompensado. Apesar de poucos relatos, estes distúrbios podem ser frequentes e devem ser pesquisados, pois contribuem com o aumento da mortalidade.

Descritores: Mixedema; Coma; Transtornos da coagulação san-guínea; Síndrome da veia cava superior; Hipotireoidismo; Hu-manos; Relatos de casos

ABSTRACT

Myxedema coma is a rare endocrinological emergency, consisting of the highest expression of hypothyroidism with high mortality due to hemodynamic and ventilatory complications, which may be aggravated by coagulation disorders. We report the case of a patient diagnosed with myxedema coma and superior vena cava thrombus. We sought to emphasize the frequent coagulation

disorders in severe hypothyroidism, which contribute to increased mortality in this group of patients. The diagnosis and early treatment of myxedema coma, together with the immediate institution of therapy for the thrombotic phenomenon found, allowed the favorable evolution of the condition. The report, together with the literature, has guided the rationale for the influence of coagulation disorders that occur in decompensated hypothyroidism. Despite the few number of reports, these disorders can be frequent and should be investigated because they contribute to the increase in mortality.

Keywords: Myxedema; Coma; Blood coagulation disorder; Superior vena cava syndrome; Hypothyroidism; Humans; Case report

INTRODUÇÃO

O primeiro caso publicado de coma mixedematoso (CM) data de 1879 e é a expressão máxima do hipotireoidismo, carac-terizado pela deficiência de hormônios tireoidianos. A definição de coma mixedematoso refere ao estado mixedematoso, inde-pendente de existir coma ou não. Seu aparecimento é decorrente do não tratamento ou tratamento inadequado ao longo de anos. Com o avançar da tecnologia e da capacidade diagnóstica mais elaborada, a mortalidade no CM reduziu de 80 para 20 a 40% de óbito.(1,2)

É uma condição rara e pouco estudada entre as patologias endocrinológicas; quando encontrada, o diagnóstico é difícil. Sua epidemiologia é pouco esclarecedora no nosso meio. Em estudo transversal realizado na cidade de São Paulo (SP), verificou-se a prevalência de hipotireoidismo entre adultos de 6,6%, não tendo sido detectados casos de CM. Um dos estudos prospecti-vos mais bem conduzidos sobre a epidemiologia das doenças da tireoide, realizado na cidade inglesa de Whickham, constatou, ao final de 20 anos de acompanhamento, incidência média de hipotireoidismo anual de 4,1 casos/mil entre as mulheres e de 0,6 casos/mil nos homens com hipotireoidismo, sem relatos de CM. Dados encontrados sobre a incidência de CM na Espanha são de 0,22 por milhão por ano.(3,4)

O quadro clínico para o desenvolvimento do CM é insidio-so: cansaço, letargia, intolerância ao frio, constipação intestinal, pele seca e espessa.(5)

Hipotermia, com temperatura corporal menor do que 35°C, está presente na maioria dos casos. Alteração no sistema nervoso central é encontrada em 100% dos casos (Tabela 1), observan-do-se sonolência, letargia, desorientação, confusão mental, sin-

Coma mixedematoso e trombo de veia cava superior

273Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):272-8

tomas psicóticos, depressão e convulsões. O coma geralmente sucede estas manifestações.(6)

O aparelho respiratório manifesta-se com insuficiência res-piratória grave, resultante da diminuição da resposta ventilatória à hipóxia e à hipercapnia, associada à diminuição da força da musculatura torácica e do diafragma, o que aumenta a hipo-ventilação, a hipoxemia, a hipercapnia, a acidose respiratória e a narcose. A narcose contribui para a instalação do coma.(7-9)

O trato gastrintestinal apresenta diminuição da motilidade, levando à estase gástrica e à constipação intestinal, que podem evoluir para megacólon.(6,7)

Em relação ao sistema cardiovascular, a arritmia mais fre-quente é a bradicardia, que é ainda agravada pelo derrame pericárdico, presente em 25% dos casos. Uma rara condição ocasionada pelo hipotireoidismo é a disfunção sistólica transitó-ria do ventrículo esquerdo, denominada miocardiopatia hipoti-reoidea, condição que pode propiciar o aparecimento de trombo no ventrículo esquerdo.(7,8,10)

Das alterações hematológicas do hipotireoidismo existem poucos relatos na literatura. O hipotireoidismo descompensa-do pode cursar tanto com anemia normocrômica e normocíti-ca, pela baixa eritropoiese da doença crônica, como com ane-mia microcítica por sangramentos, assim como com anemia macrocítica por deficiência de absorção de vitamina B12. Há relatos na literatura de condições de hipercoagulação e hipoco-agulação, porém ainda são necessários estudos que expliquem as mudanças de hemostasia observadas em cada distúrbio da tireoide.(11)

Cerca de 35% do CM são desencadeados por processos infecciosos, geralmente respiratório ou urinário. Com menor frequência, o quadro é desencadeado por medicamentos depres-sores do sistema nervoso central, entre eles os benzodiazepíni-cos e alguns betabloqueadores, como o propranolol. Lítio e a amiodarona também podem levar ao CM, assim como todas as situações em que há aumento da necessidade adrenérgica, como cirurgias, doenças agudas (infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral etc.) e exposição ao frio.(2,5,12-15)

Como os receptores tireoidianos estão presentes em todo corpo, o coma mixedematoso afeta todos os órgãos, com a dimi-nuição do metabolismo basal e do consumo de oxigênio.(16,17)

O diagnóstico de CM é clínico e, pela gravidade e risco de morte, não depende de resultados laboratoriais para o tratamen-to ser iniciado. Estado mental alterado, letargia e sonolência, hipotermia e pelo menos um fator desencadeante são os pilares mais importantes para se fazer o diagnóstico de CM e autoriza

instituir o tratamento. Reforçam o diagnóstico: anemia, hipo-glicemia, hiponatremia, T4 livre suprimido ou indetectável, en-quanto o nível de TSH pode estar elevado ou baixo, dependen-do de o hipotireoidismo ser primário ou secundário.(5)

Em quantidade fisiológica, o cortisol tem ação sinérgica com os hormônios tireoidianos, tornando sua função mais eficiente. Em situações de estresse, como no CM, corroborado por qua-dro desencadeante, como de infecção, o aumento do nível de cortisol faz com que os receptores dos tecidos sejam bloqueados à ação dos hormônios tireoidianos, criando condição de resis-tência aos hormônios tireoidianos, o que significa que seu ní-vel pode estar normal, mas os tecidos não respondem de forma eficiente ao sinal enviado pela tireoide. Isto explica porque, em quadros de CM, os níveis séricos de hormônios tireoidianos não correspondem à gravidade do hipotireoidismo. Por outro lado, em situações mais graves, nas quais ocorrem falência adrenal e hipocortisolismo, seja pelo metabolismo suprarrenal lentificado ou pelo aumento do clearence de cortisol, devemos estar atentos para que a reposição de hormônio tireoidiano seja posterior a de corticoesteroides, para não ter risco de desencadear insuficiência suprarrenal aguda.(18)

A American Thyroid Association (ATA) orienta primeira-mente a administração de glicocorticoide empiricamente (via parenteral), antes da levotiroxina (T4) associado à tri-iodotiro-nina (T3), pelo aumento do clearence de cortisol e pelo risco de insuficiência adrenal, até que o valor da dosagem plasmática, coletada previamente, seja conhecido e mostre-se normal. Na indisponibilidade dos hormônios tireoidianos injetáveis, como na maioria dos centros de tratamento no Brasil, a via nasoenteral para levotiroxina é a de escolha e deve ser administrada imedia-tamente após suspeita clínica de CM e início da corticoterapia, antes mesmo de se conhecerem os resultados laboratoriais.(3,19) Pelo fato de a infecção estar correlacionada, em grande parte dos casos, com o fator desencadeante do CM (e, muitas vezes, sem foco definido), a administração de antibióticos de amplo espectro, com prévia coleta de culturas, é defendida por alguns autores. Por se tratar de um paciente crítico e com alta taxa de mortalidade, ele deve ter seu tratamento preferencialmente con-duzido em unidade de terapia intensiva.(13,20-23)

RELATO DE CASO

JPOP, 62 anos, do lar, casada, nascida e residente em Cam-pinas (SP), com antecedente de hipotireoidismo há 30 anos e má adesão ao tratamento, hipertensão arterial sistêmica e taba-

tabela 1. Comparação entre os autores em relação à frequência dos seis principais critérios diagnósticos de coma mixedematosoCritério Dutta et al.(2) Rodriguéz et al.(40) Yamamoto et al.(39) Chiong et al.(24) Alteração mental, (%) 100 100 100 100Hipotermia, (%) 100 100 75 40Bradicardia, (%) - 54,54 87,5 60TSH alto, (%) 83 81,81 100 90T4 baixo, (%) 100 100 100 20Evidência de fator precipitante, (%) 100 100 100 50

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gismo passivo por 20 anos. Deu entrada no pronto socorro do Hospital Municipal de Campinas no inverno de 2016, trazida por familiares com quadro de tosse produtiva amarelada, dor torácica ventilatório-dependente, torpor e dispneia em repouso há 3 dias. No interrogatório complementar, a família relatou que a paciente vinha com sonolência, adinamia, pensamento lentificado e confusão mental há 7 meses.

Ao exame físico apresentava-se em mal estado geral, tempe-ratura axilar de 33,8°C, pouco comunicativa, com a fala arrasta-da e fácies típica mixedematosa (Figura 1). Ausculta pulmonar com crepitações em base direita, saturação de oxigênio 84% em ar ambiente, frequência respiratória de 25irpm, frequência car-díaca de 54bpm, pressão arterial de 85x45mmHg; edema endu-recido simétrico de membros inferiores até raiz de coxa.

Os exames complementares iniciais (Quadro 1) constata-ram leucocitose com desvio à esquerda, acidose respiratória não compensada em ar ambiente e hipoglicemia. Eletrocardiograma demonstrou bradicardia sinusal (frequência cardíaca de 54bpm) e radiografia de tórax mostrou infiltrado homogêneo em lobo inferior direito.

Com a hipótese diagnóstica de CM e após a dosagem de TSH e cortisol sérico ter sido solicitada, foi prontamente ins-tituído tratamento específico, seguindo o protocolo da ATA (Quadro 2), porém, devido à indisponibilidade da levotiroxina endovenosa no serviço, optou-se pela administração via sonda nasoenteral, além de medidas ventilatórias, correção de distúr-bios hidroeletrolíticos e glicêmico. Houve melhora clínica pro-gressiva, mas, após 15 dias de tratamento, a paciente apresentou deterioração respiratória, com necessidade de suporte ventila-tório, o que ampliou a propedêutica diagnóstica na busca do fator de piora, como pesquisa de infarto agudo do miocárdio, de infecções hospitalares e de tromboembolismo pulmonar (TEP).

Foram realizados ecocardiograma e marcadores de necro-se miocárdica, e os resultados estavam dentro da normalida de (Quadro 1). A aplicação dos critérios de Wells evidencian-do probabilidade moderada para TEP conduziu à dosagem de D-dímero, que encontrava-se elevada. Foi etnão solicitada an-giotomografia de tórax, que evidenciou trombo de veia cava su-perior (Figura 2). O achado explicou a piora do quadro clínico e demandou anticoagulação terapêutica.

Em 3 semanas, a paciente teve evolução favorável do quadro, recebendo alta hospitalar com medicações via oral.

DISCUSSÃO

O relato de paciente do sexo feminino, idosa e com recru-descimento de sintomas no período de inverno, está de acordo com dados de prevalência de CM e de hipotireoidismo grave na literatura.(20,21) Neste caso, o diagnóstico baseou-se na história de hipotireoidismo de longa data com tratamento irregular e no quadro clínico compatível com coma mixedematoso: hipoter-mia, adinamia, bradicardia, sonolência, hipoxemia, hipoglice-mia e hiponatremia, desencadeado por quadro de pneumonia. A suspeita foi corroborada, apesar de ainda não reconhecida, após aplicação da pontuação diagnóstica de CM, desenvolvida por Chiong et al., em 2015 (Quadro 3), totalizando 9 pontos, compatível com resultado de potencial diagnóstico para CM.(24)

Como de consenso na literatura, pela gravidade do caso, foi iniciado o tratamento antes mesmo da confirmação laboratorial, seguindo o protocolo de tratamento ATA (Quadro 2).

Na trombose de veia cava superior, ocorre hipertensão ve-nosa, e a intensidade de sintomatologia está dependente da gravidade da obstrução e da velocidade de sua instalação. Se o trombo se instalar de maneira insidiosa, permite tempo suficien-te para que o sangue retorne ao coração por caminhos “alternati-vos”, e o quadro sintomatológico se instala paulatinamente, com a formação de circulação colateral, na tentativa de encontrar um caminho de retorno do sangue das extremidades superiores para o coração. Quando a obstrução é aguda, mesmo que parcial, a sin-tomatologia é predominantemente relacionada ao sistema nervo-so central, com confusão mental, obnubilação e coma, por edema cerebral. Assim, podem-se observar, inicialmente, edema cervico-facial, pletora facial, dispneia e turgência venosa cervical.(24)

Quanto à etiologia da trombose de veia cava superior, o cân-cer do pulmão é responsável por 70% dos casos. De uma série de 4.100 casos de câncer do pulmão relatada na literatura, 2,4% dos pacientes apresentavam a síndrome de veia cava superior. O carcinoma indiferenciado de pequenas células é o tipo histológi-co mais comum, aparecendo em até 38% dos casos.(15,16) Entre as causas não malignas, a fibrose mediastinal secundária à histo-plasmose parece ser a mais frequente, seguida pelo bócio subes-ternal e pelos cateteres implantados no sistema cava superior.(8,9)

As mais altas incidências relatadas de trombose venosa pro-funda de extremidade superior são de estudos que pesquisam trombos em pacientes com cateteres centrais, particularmente aqueles com câncer. Em uma revisão retrospectiva, a ultrasso-nografia confirmou a presença de trombose venosa profunda de extremidade superior em 60% dos pacientes rastreados.(9,23-29) Figura 1. Fácies típica mixedematosa.

Coma mixedematoso e trombo de veia cava superior

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Quadro 1. Exames obtidos na admissão e durante a internaçãoExames obtidos na admissão

Gasometria arterial pH=7,24 (VR: 7,35-7,45) PaO2=54 (VR: 80-100mmHg) PaCO2=66 (VR: 35-45mmHg) SatO2=88,6 (VR: >95%)HCO3=27,4 (VR: 22-28mEq/L)Lactato=1,5 (VR: 0,5-1,5mmol/L) Potássio=3,4 (VR: 3,5-5,0mmol/L) Sódio=130 (135-145mmol/L) Glicose=58 (VR: 60-110mg/dL)

Hemograma Leucócitos=16,0 (VR: 4,0-11,0x103/mm3 Metamielócitos=2% (VR: 0) Bastões=13% (VR: 2-5%) Segmentados=78% (VR: 30-60%) Plaquetas=292.000 (VR: 150.000-400.000mm3)

Bioquímica Creatinina=0,8 (VR: 0,6-1,4mg/dL) Ureia=37 (VR: 10-50mg/dL) Sódio=126 (VR: 135-145mmol/L) Potássio=3,0 (3,5-5,0mmol/L) Glicemia=51 (VR: 70-100mg/dL)

Marcadores de lesão e necrose miocárdica CK-MB=1,3 (VR: 0-3,6mg/L) Mioglobina=45 (R: 10-92mg/L)Troponina I ultrassensível=12,7 (VR: 0-15,6pg/mL)

Exames obtidos durante a internaçãoBioquímica Hormônio tireoestimulante=28,62 (VR: 0,27-5,5mU/L)

Tiroxina livre: 0,05 (VR: 0,93-1,7ng/dL) Cortisol: 25,65 (VR: 2,3-11,9mcg/dL) D-dímero=1.213 (VR: Inferior a 500 ng/mL FEU)

VR: valor de referência; PaO2: pressão parcial de oxigênio; PaCO2: pressão parcial de dióxido de carbono; SatO2: saturação de oxigênio; HCO3: bicarbonato; CK-MB: isoenzima MB da creatina quinase; FEU: Unidades Equivalentes de Fibrinogênio. Fonte: adaptado de Jonklaas et al.(20)

Quadro 2. Protocolo da American Thyroid Association (ATA)Dosagem sérica Cortisol, TSH e T4hidrocortisona 100mg por via endovenosa a cada 8 horasAdministração de hormônios tireoidianos Levotiroxina: 200 a 400mcg por via endovenosa, seguida por doses diárias de 50 a 100mcg

Tri-iodotironina: 5 a 20mcg/dia, seguido de 2,5 a 10mcg por via endovenosa a cada 8 horasAlterar para dose oral equivalente de levotiroxina quando o paciente conseguir tolerar os medicamentos orais (dose oral=dose intravenosa x 0,75)

Medidas de suporte Ventilação mecânicasHidrataçãoDrogas vasoativas se hipotensãoReaquecimento passivoGlicose endovenosaAntibioticoterapiaMonitorização

Fonte: adaptado de Jonklaas et al.(20)

Diante do achado de trombose de veia cava superior, viemos a raciocinar sobre a relação de fenômenos trombóticos que pos-sam vir a ocorrer no hipotireoidismo descompensado e o quanto o quadro de hipotireoidismo grave teria contribuído para a for-mação do trombo de veia cava superior. Pouco foi encontrado na revisão bibliográfica realizada, buscando a fisiopatologia do fenômeno trombótico no hipotireoidismo.

Há descrição, na literatura, de que comumente um pacien-te hipotireoideo pode apresentar sangramentos simples, como equimose, menorragia e hemorragia prolongada após extração dentária, além de complicações hemorrágicas maiores durante e após cirurgias. Laboratorialmente, a revisão bibliográfica rea-lizada revelou aumento dos tempos de sangramento, parcial de tromboplastina ativada, de protrombina e de coagulação, com

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normal ou baixa atividade do fator VIII, baixa atividade do fator de Willebrand e fibrinogênio normal ou baixo.(30)

Os mecanismos pelos quais níveis baixos de hormônios ti-reoidianos possam levar à hemorragias ou a fenômenos trombo-embólicos ainda são controversos. Sabe-se que estes hormônios têm efeitos pleiotrópicos sobre o sistema cardiovascular, os quais incluem ação direta no miocárdio e artérias, modifica-

ções qualitativas e quantitativas das lipoproteínas, modificação das proteínas de coagulação circulante e atividade fibrinolítica prejudicada.(31-35)

Rodilla Fiz et al.,(36) em seus trabalhos, evidenciou que o distúrbio de coagulação mais associado ao hipotireoidismo é o estado de hipocoagulabilidade, além de sugerir alterações na he-mostasia primária e secundária associadas à doenças da tireoide, mesmo com níveis hormonais normais.(19) Já Peralta e Canhão sugerem a ligação entre hipotireoidismo e trombose venosa ce-rebral, recomendando ainda que o hipotireoidismo deva ser pes-quisado nestes pacientes.(36,37)

Outras vertentes levam a crer que o hipotireoidismo, por si só, possa levar à uma disfunção endotelial e à estase venosa, explicando a formação de trombos. Neste aspecto não podemos deixar de acrescentar o fator mecânico exercido pela presença de cateter venoso central ao mecanismo formador de trombo nesta paciente, o que se fez necessário diante da gravidade do caso, o que aumenta ainda mais o dano endotelial.(9,28)

Após dias de internação, com o resultado do nível de TSH em mãos, chamou-nos atenção um valor não muito alto e sem proporcionalidade com a gravidade do quadro.

Chadarevian et al.(38) investigaram a atividade fibrinolíti-ca em hipotireoideos descompensados, dividindo-os em dois grupos principais, de acordo com o nível de TSH: moderado, quando TSH está ente 10mU/L e 50mU/L, e grave, quando TSH>50mU/L. O principal achado do estudo é que os pacien-tes com hipotireoidismo apresentam padrão distinto de alte-ração do sistema fibrinolítico dependendo do nível do TSH. Hipotireoidismo grave exibe níveis mais elevados de D-dímero, baixa atividade de alfa-2 antiplasmina e baixos níveis de ativa-dor do plasminogênio tecidual (t-PA) e antígeno inibidor do plasminogênio (Ag PAI-1), que contribuem para uma baixa ati-vação do sistema fibrinolítico, fazendo com que tais alterações possam contribuir para a tendência de hemorragia descrita nes-tes pacientes. Já nos pacientes com hipotireoidismo moderado, foi observada diminuição da atividade fibrinolítica, refletida por menores níveis de D-dímero, maior atividade de alfa-2 antiplas-mina e maiores níveis de t-PA e Ag PAI-1 e, consequentemente, predisposição à formação de trombos, bem como ao aumento do risco cardiovascular - este último, observado também no hi-potireoidismo subclínico, independentemente do nível de TSH. Os mecanismos pelos quais o estado hormonal da tireoide está associado à alteração da fibrinólise ainda precisam ser estabeleci-dos. As principais hipóteses para tal achado são: redução da den-sidade do receptor de catecolaminas no hipotireoidismo, levando a um aumento no nível de Ag PAI-1; efeito direto dos hormônios tireoidianos na síntese ou no catabolismo das proteínas; efeito in-direto por meio da autoimunidade; e, finalmente, consequências da aterosclerose e da disfunção endotelial, condições associadas à redução da liberação de fatores hemostáticos.(32-34,38)

De acordo com o Chiong et al.,(24) conseguimos justificar nesta paciente, a presença do trombo e não de fenômenos he-morrágicos, com nível de TSH enquadrado como moderada-mente elevado.

A revisão mostra que existem distúrbios de coagulação, tan-to hemorrágicos quanto trombóticos, relacionados ao hipoti-

Figura 2. Angiotomografia de tórax em corte coronal eviden-ciando trombo em veia cava superior.

Quadro 3. Critérios diagnóstico de coma mixedematosoCritérios EscoreEscala de Glasgow

0-10 411-13 314 215 1

TSH, mU/L30 215-30 1

T4 livre baixo (<0,6ng/dL) 1Hipotermia <35oC 1Bradicardia <60bpm 1Fator precipitante (infecção, cirurgia, acidente vascular cerebral, infarto agudo do miocárdio, tromboembolismo cerebral e outros)

1

Escore total8-10 - muito provável Iniciar tratamento5-7 – provável Tratar se não

houverem outras causas

<5 – improvável Considerar outra causa

Fonte: adaptado de Chiong et al.(24)

Coma mixedematoso e trombo de veia cava superior

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reoidismo descompensado, a depender dos valores do TSH. Há evidências na literatura de que, nos pacientes com hipotireoi-dismo moderado, exista baixa ativação do sistema fibrinolítico por apresentarem níveis elevados de PAI-1. Por outro lado, os pacientes com hipotireoidismo grave não só têm baixos níveis de fator VIII (von Willebrand), mas também exibem excessiva ativação do sistema fibrinolítico. A relevância clínica de níveis mais elevados de D-dímero em pacientes com hipotireoidis-mo grave é discutível. Apesar dos relatos na literatura do maior risco de infarto agudo do miocárdio estar relacionado a altos níveis de D-dímero, parece que a ocorrência de infarto neste grupo de pacientes ocorre pela passagem de um estado grave para moderado de hipotireoidismo, ou seja, de hiperfibrinóli-se para hipofibrinólise, favorecendo a ocorrência de fenômenos trombóticos. Acrescenta-se à esta condição a mudança abrupta de uma situação de aumento do baixo metabolismo, quando o tratamento de reposição hormonal é instituído. Há muito ainda a ser elucidado, de modo que o tema merece ser estudado, assim como o exato mecanismo da influência do estado da tireoide no sistema fibrinolítico.

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279

ARTIGO DE REVISÃO

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):279-81

Uso de tacrolimus na nefrite lúpicaUse of tacrolimus in lupus nephritis

Rodrigo Fellipe Rodrigues1, Luis Alberto Batista Peres1, Natália Miolo1

Recebido do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz, Cascavel, PR, Brasil.

1. Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz, Cascavel, PR, Brasil.

Data de submissão: 24/05/2017 – Data de aceite: 24/05/2017Conflito de interesse:não há.Fontes de auxilio à pesquisa:não há.

Endereço para correspondência: Rodrigo Fellipe Rodrigues Avenida das Torres, 500 – Loteamento FAGCEP: 85806-095 – Cascavel, PR, BrasilTels.: (45) 3229-2661/(45) 99933-5520 – E-mail: [email protected]

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

O lúpus eritematoso sistêmico é uma doença multissistêmica, de etiologia autoimune, que apresenta comprometimento renal em até 50% dos portadores. A nefrite lúpica é uma das mais sérias e comuns complicações do lúpus eritematoso sistêmico, especialmente nos pacientes não caucasianos. Drogas como ci-clofosfamida (que faz a terapia de indução convencional, junto de corticosteroides), azatioprina, micofenolato de mofetila e hidroxicloroquina são essenciais para o tratamento desta com-plicação, porém ainda são necessárias outras opções terapêu-ticas em casos resistentes. O tacrolimus vem sendo utilizado recentemente no tratamento da nefrite lúpica, com escassas publicações a este respeito. Apresentamos revisão sobre o papel do tacrolimus na nefrite lúpica, utilizando artigos publicados nas principais bases de dados da literatura nacional e interna-cional, nos idiomas espanhol e inglês.

Descritores: Tacrolimo; Nefrite lúpica; Lúpus eritematoso sis-têmico

ABSTRACT

Systemic lupus erythematosus (SLE) is a multisystemic disease of autoimmune etiology that involves renal impairment in up to 50% of patients. Lupus nephritis (LN) is one of the most serious and common complications of systemic lupus erythematosus, especially in non-Caucasian patients. Drugs such as cyclophosphamide (which performs the conventional induction therapy along with corticosteroids), azathioprine, mycophenolate mofetil, and hydroxychloroquine are essential for the treatment of this complication, but other therapeutic

options in resistant cases are also necessary. Tacrolimus has recently been used in the treatment of lupus nephritis, with few publications in this regard. We present a review of the role of tacrolimus in lupus nephritis using articles published in the main databases of national and international literature, in Spanish and English languages.

Keywords: Tacrolimus; Lupus nephritis; Lupus erythematosus, systemic

INTRODUÇÃO

A nefrite lúpica (NL) apresenta incidência variável entre os pacientes que apresentam lúpus eritematoso sistêmico (LES), dependendo dos critérios diagnósticos utilizados para identifi-cá-la e da população estudada.(1)

A existência de variados estudos a respeito do tratamento da NL suscitou a necessidade de se conhecer a eficácia de uma das drogas atualmente utilizadas: o tacrolimus. Apesar de tantos estudos relacionados ao assunto, muitos deles ainda mostram atuação ineficaz dos medicamentos convencionalmente utiliza-dos. Por tal motivo, foi realizado este estudo, que teve como objetivo reunir dados para corroborar a fase atual da medicina, que é baseada em evidências.

A contribuição deste estudo está na perspectiva de entender, de modo geral, LES e sua principal complicação: a NL. Ainda, foram avaliadas a eficácia e a segurança do tacrolimus (TAC) diante da terapêutica convencional utilizada hodiernamente.(2-4)

MÉTODOS

Trata-se de uma revisão da literatura utilizando as bases de dados LILACS e PubMed. Os artigos foram buscados utilizan-do-se as palavras-chave: “tacrolimus”, “nefrite lúpica”, “lúpus eritematoso sistêmico”, “análise” e “tratamento”. O levantamento efetivado incluiu estudos publicados entre os anos de 2009 e 2016, nos idiomas espanhol e inglês, totalizando 15 artigos para a presente revisão.

FUNDAMENTAÇÃO TEóRICA

Considerações gerais sobre o lúpus eritematoso sistêmico

O LES é uma doença inflamatória crônica, autoimune, cujos sintomas podem surgir em diversos órgãos de forma lenta e progressiva (em meses) ou mais rapidamente (em semanas), além de alternar entre as fases de atividade e de remissão.(5)

Rodrigues RF, Peres LA, Miolo N

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São reconhecidos dois tipos principais de lúpus: o cutâneo, que se manifesta apenas com manchas na pele (eritematosas, na maioria das vezes), principalmente em áreas fotoexpostas, como face, orelhas, tronco e membros superiores; e o sistê-mico, no qual um ou mais órgãos internos são acometidos. Por ser uma doença que acomete o sistema imunológico, que é responsável pela produção de anticorpos e pela organização dos mecanismos inflamatórios em todos os órgãos, o paciente com LES pode apresentar diferentes sintomas em vários locais do corpo.(6) Alguns sintomas são gerais, como febre, emagreci-mento, perda de apetite, fraqueza e desânimo, enquanto outros são mais específicos, como o acometimento ocular, que tem sido reportado em mais de um terço dos pacientes com LES.(7) A doença apresenta patogênese complexa, provavelmente re-sultante da inter-relação dos fatores imunológicos, genéticos e ambientais.(8) É mais comum no sexo feminino (com idade entre 20 e 45 anos), acometendo especialmente asiáticos, his-pânicos, mestiços e afrodescendentes.(5)

A NL é a mais comum e devastadora manifestação do LES, afetando mais de metade dos pacientes que apresentam a doença em sua forma sistêmica.(9) A incidência da NL varia en-tre 25 e 75%, dependendo da população estudada e dos crité-rios diagnósticos utilizados para identificá-la.(1) Já a prevalência desta complicação é significantemente alta em populações asiá-ticas, afro-americanas e hispânicas, além de ser relativamente mais comum em homens.(10) O acometimento nefrológico no LES acarreta significantes morbidade e mortalidade. Mais de 26% dos pacientes com NL proliferativa difusa evoluem para o estágio avançado da doença renal crônica (classe VI). Ainda, a mortalidade aumenta em oito vezes quando comparada à da população geral.(2)

O estadiamento da NL pode ser feito de modo histológico e/ou clínico. Este se embasa no perfil demográfico dos pacientes, na análise urinária no momento da biópsia renal, na creatinina sérica e na proteinúria de 24 horas;(11) o modo histológico, se-gundo a classificação morfológica de NL da International Society of Nephology, subdivide-se em seis classes: glomérulo normal (classe I), alterações mesangiais puras (classe II), glomerulone-frite segmentar e focal (classe III), glomerulonefrite difusa (classe IV), glomerulonefrite membranosa difusa (classe V) e glo-merulonefrite esclerosante avançada (classe VI).(12)

Tratamento da nefrite lúpica

O manejo terapêutico desta complicação ainda é um desafio, devido à apresentação heterogênea da doença e ao seu curso im-previsível.(1)

Atualmente, o tratamento padrão da NL é realizado com dro-gas imunossupressoras, principalmente o uso de ciclofosfamida (CYC) associada a corticosteroides, mas existem outras tera-pias, como o micofenolato de mofetila (MMF) e a azatioprina (AZA).(3) Infelizmente, muitos pacientes ainda experimentam reações adversas com estas drogas, como danos hepáticos, efei-tos gastrintestinais, infecções e leucopenia, as quais aumentam a mortalidade.(1,10) Desse modo, torna-se cada vez mais necessário o surgimento de novos métodos terapêuticos e, consequente-mente, mais efetivos, além de drogas que apresentem um perfil

de segurança maior. Por este motivo, uma nova droga ganhou espaço neste cenário e vem sendo testada nos últimos anos: o TAC.

No estudo realizado por Kaballo et al., foram testadas duas drogas utilizadas para o tratamento da NL: AZA e MMF. O MMF apresentou 80,5% de taxa de remissão nos 41 pacien-tes avaliados (sendo 56,1% remissão completa e 24,4% par-cial), enquanto que a AZA teve taxa de remissão de 70% nos 40 pacientes avaliados (52,5% completa e 17,5% parcial). No entanto, ambas as drogas demonstraram efeitos colaterais em altas proporções. De modo geral, foram 70,7% dos pacientes que usaram MMF vs. 75% dos que foram tratados com AZA. Estes efeitos incluem: infecções maiores e menores, leucopenia, efeitos adversos no trato gastrintestinal, amenorreia transitória, perda de cabelo e ganho de peso. Quatro pacientes que receberam MMF e cinco tratados com AZA demonstraram insuficiência renal progressiva durante o seguimento.(1)

Além destas drogas, a leflunomida também se revelou eficaz (com efeitos de melhora contra a NL) com base em metanálise que incluiu 11 estudos comparando a eficácia da droga com a CYC. Este estudo demonstrou que a leflunomida foi superior em induzir remissão completa, sendo mais segura quanto às rea-ções adversas, e causando menos dano hepático, alopecia, leu-copenia e infecções. Neste caso, a leflunomida apresentou taxa total de remissão de 15 dos 17 pacientes avaliados (sendo nove remissões completas e seis parciais) vs. taxa de remissão de 13 dos 18 pacientes estudados no grupo controle (oito completas e cinco parciais) – que fez uso de CYC. Após o tratamento com leflunomida, a proteinúria de 24 horas caiu significantemente quando comparada àquela observada após o uso de CYC.(10)

Por fim, frisa-se que o tratamento da NL deve ser individua-lizado – considerando perícia médica; idade, etnia e sexo dos pacientes; capacidade financeira; e efeitos adversos das modali-dades de tratamento.(3)

Uso do tacrolimus na nefrite lúpica

Após resultados encorajadores de ensaios clínicos randomiza-dos, houve maior interesse em saber se o uso do TAC (antes co nhecido como FK506) poderia ter um papel mais evidente no manejo da NL. Esta droga, que já é utilizada nos transplantes renais prevenindo rejeições, é um inibidor da calcineurina espe-cífico de células T.(13)

O TAC atua do mesmo modo que a ciclosporina A, porém estudos farmacológicos mostraram que o TAC é, aproximada-mente, 25 vezes mais potente. Ele forma um complexo com a proteína de ligação FKBP-12 (FK506 imunofilina 12), que inibe a atividade da fosfatase da calcineurina e, como resultado, gera redução da transcrição de interleucina 2 (IL-2) e de outras cito-cinas, como fator de necrose tumoral alfa, interferon gama, IL-6 e IL-10, além de diminuição da ativação de células T.(2) Ainda, a droga é metabolizada no fígado pela CYP3A.(13)

O TAC foi superior aos corticosteroides isolados (mais fre-quentemente prednisona ou prednisolona) na obtenção da remissão/resposta renal (resultado obtido com base na revisão que envolveu 37 estudos e 2.697 pacientes).(4) Um estudo reali-zado por Ohe et al., inicialmente com nível sérico de 2,5ng/mL

Uso de tacrolimus na nefrite lúpica

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de TAC, mostrou redução da hematúria, além de diminuição importante da relação proteína urinária/creatinina urinária: de 4,56g/dia para 0,85g/dia em 8 semanas, especialmente após iní-cio da claritromicina, na dose de 600mg/dia (droga que é co-nhecida por aumentar as concentrações de TAC no sangue; neste caso, para 6,1ng/mL de TAC ao dia).(14) Do mesmo modo, a droga se mostrou eficiente na redução da proteinúria de 24 horas.(13)

Para Mok et al., que avaliaram 150 pacientes com NL ativa nas classes histológicas III, IV e V, o TAC apresentou eficácia su-perior em relação ao MMF (em conjunto com altas doses de corticosteroides) na terapia de indução da NL ativa nos primeiros 6 meses. Dos 76 pacientes tratados com MMF, 59% apresenta-ram remissão completa e 21%, remissão parcial. Já os 74 pacientes que utilizaram TAC, 62% obtiveram resposta completa e 27%, resposta parcial.(2)

Ardila et al., por sua vez, concluíram que o TAC é superior, em termos de resposta (remissão completa ou parcial), em rela-ção à CYC, e não foi observada qualquer diferença significativa quanto aos efeitos adversos destas duas terapias, com base em seu estudo, que avaliou 146 pacientes (sendo que 75 utilizaram TAC e 71 CYC)(3)

Além dos fatores descritos, um aspecto que chama a atenção é que o TAC pode ser usado com segurança em gestantes e crianças − algo importante a ser considerado em pacientes jovens com LES.(13) Apesar de, atualmente, a AZA ser considerada a primeira escolha no tratamento de pacientes gestantes com NL, os pa-cientes AZA-resistentes ou AZA-intolerantes podem ter o TAC como opção terapêutica.(15)

Em relação aos efeitos adversos, o TAC demonstrou tendência não significativa para menos infecções e episódios de disfunção hepática, além de diminuição significativa da leucopenia, efei-tos colaterais gastrintestinais e distúrbios menstruais, quando comparado à CYC.(13) No estudo realizado por Kraaij et al., a leu copenia foi significantemente menos observada, porém hiper-glicemia e infecções severas foram mais comumente reportadas, assim como o aumento da creatinina sérica, quando comparado à AZA. Apesar disto, conclui-se que o uso do TAC em pacien-te asiáticos está recomendado devido a excelente resposta neste grupo, além do uso em outros dois subgrupos: NL refratária e gestantes.(15)

CONCLUSÃO

O tratamento da NL deve considerar, dentre outros fatores, idade, questão socioeconômica, etnia e sexo dos pacientes, além dos efeitos adversos das modalidades terapêuticas. A procura de diferentes abordagens para o tratamento da nefrite lúpica torna-se necessária, visto que alguns dos resultados de estudos recente-mente concluídos constituem uma esperança para o futuro do tratamento desta complicação. No entanto, ainda são as primei-ras linhas de um longo percurso, que parece ser bastante pro-

missor. Portanto, devemos analisar sistematicamente o potencial papel do TAC como tratamento para a nefrite lúpica e, por con-seguinte, estão claramente justificadas novas investigações sobre a eficácia do TAC, do ponto de vista clínico e histopatológico.

REFERÊNCIAS

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ARTIGO DE REVISÃO

Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):282-8

Fenilcetonúria: aspectos genéticos, diagnóstico e tratamentoPhenylketonuria: genetic aspects, diagnosis and treatment

Alessandra Bernadete Trovó de Marqui1

Recebido da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, MG, Brasil.

1. Instituto de Ciências Biológicas e Naturais da Universidade Federal do Triân-gulo Mineiro, Uberaba, MG, Brasil.

Data de submissão: 09/10/2016 – Data de aceite: 12/10/2016Fontes de auxílio à pesquisa: nenhuma. Conflito de interesses: não há.

Endereço para correspondência: Alessandra Bernadete Trovó de Marqui Instituto de Ciências Biológicas e Naturais da Universidade Federal do Triângulo Mineiro − Campus IPraça Manoel Terra, 330CEP: 38015-050 − Uberaba, MG, BrasilTel.: (34) 3700-6434 − Fax: (34) 3700-6466E-mail: [email protected]

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RESUMO

A fenilcetonúria é uma doença genética e metabólica, com bom prognóstico caso seja detectada e tratada precocemente. É a mais frequente entre os distúrbios metabólicos com significativa implicação clínica. Ela é detectada precocemente pelo Teste do Pezinho na triagem neonatal, e o tratamento padrão consiste em dieta restritiva. Este estudo teve por finalidade informar e atua-lizar os profissionais da área da saúde sobre base genético-clínica da fenilcetonúria, com destaque para sua etiologia e aconselha-mento genético; diagnóstico com enfoque no histórico da tria-gem neonatal; e tratamento − em especial o dietético. Foi utili-zada como fonte a literatura científica especializada, publicada principalmente nos últimos 5 anos.

Descritores: Fenilcetonúrias/diagnóstico; Erros inatos do meta-bolismo; Dietoterapia; Triagem neonatal

ABSTRACT

Phenylketonuria is a genetic and metabolic disease, with good prognosis if early detected and treated. It is the most frequent among metabolic disorders, with significant clinical implications. It is detected early by Guthrie test in the neonatal screening, and the standard treatment consists of a restrictive diet. This study is aimed at informing and updating healthcare professionals on: 1) genetic-clinical basis of phenylketonuria, highlighting its etiology and genetic counseling, 2) diagnosis focusing on the history of newborn screening, and 3) treatment, in particular the dietetic one. The specialized scientific literature, particularly that published in the last five years, was used as a source.

Keywords: Phenylketonurias/diagnosis; Metabolism, inborn errors; Diet therapy; Neonatal screening

INTRODUÇÃO

A fenilcetonúria (PKU, do inglês phenylketonuria) é uma doença genética, com bom prognóstico na maioria dos casos, se detectada e tratada precocemente. É a mais frequente entre os distúrbios metabólicos, com significativa implicação clínica. Ela é detectada precocemente pelo Teste do Pezinho na triagem neo-natal, e o tratamento padrão consiste em uma dieta restritiva.

De nosso conhecimento, há dois artigos de revisão publica-dos recentemente sobre PKU, um deles destinado ao esclareci-mento de dúvidas do pediatra,(1) e o outro com enfoque exclusi-vo no diagnóstico e no tratamento, com destaques para métodos laboratoriais e recomendações nutricionais, respectivamente.(2)

O presente estudo teve como objetivo informar e atualizar os profissionais da área da saúde sobre base genético-clínica da PKU, com destaque para sua etiologia e aconselhamento gené-tico; diagnóstico com enfoque no histórico da triagem neonatal; e tratamento − em especial o dietético. Em sua elaboração, foi utilizada como fonte a literatura científica especializada, publi-cada principalmente nos últimos 5 anos.

BASE GENÉTICO-CLíNICA DA FENILCETONúRIA

A PKU, um erro inato do metabolismo descrito em 1934 pelo químico norueguês Asbjorn Föllin, tem incidência que variou de 1/8.690 a 1/33.068 nos estados brasileiros realizado em Sergipe,(3) Tocantins,(4) Santa Catarina(5) e Mato Grosso.(6) É considerada uma doença rara, constando na relação daquelas re-feridas pela portaria 199, de 30 de janeiro de 2014, do Ministé-rio da Saúde, ou seja, afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indi-víduos (1,3:2.000). Esta portaria instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e estabeleceu incentivos finan-ceiros de custeio. As doenças raras de origem genética incluem anomalias congênitas ou de manifestação tardia, deficiência in-telectual e doenças metabólicas ou erro inato do metabolismo.(7)

Possui herança autossômica recessiva, pois os indivíduos afetados são homozigotos (genótipo aa) e receberam os alelos mutantes de seus genitores, que são portadores obrigatórios (genótipos Aa). Filhos de um casal heterozigoto têm 25% de chance de serem afetados (aa), 50% heterozigotos (Aa) e 25% de serem homozigotos normais (AA). Assim, o risco de recorrência da PKU em uma próxima gestação é de 25%,(8) independente-

Fenilcetonúria: aspectos genéticos, diagnóstico e tratamento

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mente do sexo do afetado. Nas doenças genéticas com herança autossômica recessiva, é comum a consanguinidade, que foi des-crita com frequência de 14%,(9) 17%(10) e 32%(11) nos Estados do Pará, Alagoas e Bahia, respectivamente.

Por se tratar de uma doença transmitida geneticamente, os pacientes com PKU e seus familiares deveriam realizar o acon-selhamento genético. Este processo deve ser não diretivo, e seus objetivos incluem a definição do diagnóstico, a comunicação à família sobre diagnóstico e prognóstico, o manejo da doença, as opções reprodutivas e o apoio psicoterapêutico.(12) Estudo con-duzido no Rio Grande do Sul(13) demonstrou falhas no aconse-lhamento genético. Foi avaliado o conhecimento dos pais sobre o risco de recorrência de hiperfenilalaninemia (HPA) para umfuturo filho do casal, e os resultados mostraram que a maioria (72,2%) disse que não sabia, não lembrava ou deu respostas in-corretas; apenas 27,8%)dos pais responderam que este risco era de 25%(13).

A PKU é decorrente de um defeito na enzima fenilalani-na hidroxilase (PAH), sintetizada pelo fígado, que converte o aminoácido fenilalanina (PHE) em tirosina, este últimoimprescindível para a produção de neurotransmissores. Esta aminoacidopatia é caracterizada por mutações no gene da en-zima PAH, localizado em 12q23.2, e um total de 567 muta-ções diferentes neste lócus já foi descrita,(14) com predomínio de mutações tipo missense (60,14%). Outro banco de dados relatou número superior, ou seja, 957 variantes genéticos.(15) Vale ressaltar que 97% dos casos de PKU são resultantes de mutações no gene da PAH, e o restante envolve deficiência do cofator, a tetraidrobiopterina/BH4.

(8,16)

A ampla heterogeneidade mutacional do lócus PAH é apre-sentada no quadro 1. Esta heterogeneidade dificulta o diagnós-tico molecular desta doença, a não ser que determinada mutação seja conhecida em uma família em particular.

Quanto ao quadro clínico, não há anomalias aparentes ao nascimento, pois o fígado materno protege o feto.(21) Os sin-tomas clínicos surgem dos 3 aos 6 meses de idade e incluem irritabilidade, dificuldades de aprendizagem, défice de atenção, distúrbios comportamentais, hiperatividade, traço autista, chei-ro característico de mofo na urina, hipopigmentação da pele e cabelos, eczemas, microcefalia, retardo de desenvolvimento e crescimento, crises convulsivas e, principalmente, acentuada deficiência intelectual.(16,21,22) As crianças acometidas por PKU, detectadas ao nascimento e tratadas imediatamente, na maioria dos casos, não exibem estas manifestações clínicas.(16,21)

Na PKU, o excesso de PHE é desviado para uma via me-tabólica alternativa, na qual são produzidos compostos secun-dários, como os ácidos fenilpirúvico, feniláctico e fenilacético, que conferem à urina e outras secreções corpóreas um odor desagradável.(8)

Estudos têm demonstrado que pais de crianças com PKU(23,24) e pacientes com PKU(25) exibiram níveis elevados de ansiedade, depressão, estresse e redução na qualidade de vida. As explicações para estes dados incluem a presença de uma doença crônica no núcleo familiar e o risco potencial de atraso neuro-lógico, que tornam a PKU um fardo para os pacientes e suas famílias, afetando sua qualidade de vida e o bem-estar psicos-

social.(24) Somado a isto, os genitores podem exibir sentimentos de culpa, devido à transmissão dos alelos mutantes e até mesmo dificuldade em aceitar a doença do filho. Estes achados reforçam a necessidade de suporte psicológico a estes indivíduos para su-perar tais dificuldades.(25)

Na PKU, ocorre o acúmulo do aminoácido PHE e de seus metabólicos tóxicos, principalmente no sistema nervoso central e, portanto, esta HPA pode ser classificada como PKU clássica, PKU leve ou HPA não PKU (Quadro 2). Esta última condição também recebe a denominação de HPA benigna. O nível nor-mal de PHE no sangue deve estar abaixo de 4mg/dL.(11,22)

A PHU atípica é decorrente de deficiência do cofator (BH4), estando associada a uma deficiência intelectual grave, e não res-ponde ao tratamento padrão. Um estudo transversal em 111 pacientes baianos com diagnóstico de HPA revelou que 53,8% exibiram PKU clássica, 22,5% PKU leve, 19,8% HPA não PKU e um deles apresentava PKU atípica.(11)

DIAGNóSTICO

A PKU é diagnosticada na triagem neonatal por meio do Teste do Pezinho. A triagem neonatal envolve uma série de tes-tes, como dos olhos, da orelha, do coração e do Pezinho, que têm por finalidade a detecção precoce de doenças no recém--nascido. Erroneamente, a triagem neonatal é referenciada como sinônimo de Teste do Pezinho. Este teste constitui uma ação de pediatria preventiva e é a maior iniciativa do sistema público de saúde na área de genética.(26)

No Brasil, a triagem neonatal teve como precursor o pedia-tra Professor Benjamin Schmidt, diretor da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de São Paulo, na década de 1960. O rastreio para PKU teve início em 1976 e, em 1980, foi adicionada a triagem para hipotireoidismo congênito. Em 1990, a obrigatoriedade a triagem neonatal foi estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente, inciso III do artigo 10 da lei 8.069, de 13 de julho. Em 1992, ocorreu sua incorporação ao SUS, por meio da portaria 22, que reafirmou a obrigatoriedade do teste em todos os recém-nascidos vivos e incluiu a avaliação para PKU e hipotireoidismo congênito. Apenas em 2001, foi criado o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) pelo Ministério da Saúde, por meio da portaria 822 de 6 de junho. Esta implantação ocorreu em três fases, de acordo com o nível de organização e cobertura de cada Estado. Na fase I, as doen-ças triadas foram PKU e hipotireoidismo congênito. Na fase 2, foi adicionada a triagem para hemoglobinopatias e, na fase 3, a fibrose cística. No final de 2012, o PNTN foi expandido, e a portaria 2.829 de 14 de dezembro incluiu a fase 4, com ras-treio adicional de hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase.(26-28) Vale ressaltar que, embora o programa esteja na fase 4, as doenças rastreadas variam conforme o Estado em nosso país.

O Teste do Pezinho é um exame de triagem, portanto, um resultado positivo não significa que o bebê tenha a doença, sendo necessária a coleta de uma segunda amostra para excluir (falso-positivo) ou confirmar (positivo) o diagnóstico. No teste confirmatório ou diagnóstico, diferenciam-se os resultados po-

Marqui AB

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sitivos dos falso-positivos. Um estudo de coorte no Rio Gran-de do Sul,(13) realizado em entre 1986 e 2003, identificou 418 crianças com teste positivo para PHE (PHE >4mg/dL) na tria-

gem neonatal. Destes, 84% apresentaram resultados normais na segunda amostra, e 13,9% crianças tiveram níveis de PHE acima de 4mg/dL, sendo diagnosticadas como HPA. Nove ca-

Quadro 1. Caracterização molecular das mutações responsáveis pela fenilcetonúria (PKU)Estudo País Pacientes com PKu estudados Mutações – frequência ou número de pacientes com a mutaçãoSantos et al.(10) Brasil 20 R261Q-homozigose – 2 pacientes

V388M/I65T – 1 pacienteR270K/V388M – 1 paciente

I65T/L348V – 1 paciente IVS10nt11G>A-homozigose – 2 pacientesV388M/R252W – 1 paciente

R261Q/I65T – 1 pacienteIVS10nt11G>A/R252W – 1 pacienteV388M/IVS10nt11G>A – 3 pacientes

R261Q/R252W – 1 pacienteR261Q/V388M – 1)

Santos et al.(17) Brasil 78 V388M – 21,2%R261Q – 16%

IVS10-11G>A – 15,3%I65T – 5,8%

IVS2+5G>C – 5,8%R252W – 5,1%

IVS2+5G>A – 4,5%P281L – 3,8% L348V – 3,2%

Q267X – nova mutação identificada30 mutações diferentes

Bayat et al.(18) Dinamarca 376 c.1315+1G>A (IVS12+1G>A) – 25,5% c.1222C>T (p.R408W) – 16,76% c.1241A>G (p.Y414C) – 11,03 %

5 mutações não descritas previamente:c.532G>A (p.E178K)c.730C>T (p.P244S) c.925G>A (p.A309T)c.1228T>A (p.F410I)

c.1199+4A>G (IVS11+4A>G) 82 mutações diferentes

Biglari et al.(19) Irã 39 R176X – 10,25%p.P281L – 10,25%

IVS2+5G>A – 2,56%IVS2+5G>C – 2,56%

p.L48S – 2,56%p.R243Q – 2,56%p.R252Q – 5,12%p.R261Q – 7,69%p.R261X – 5,12%p.E280K – 2,56%p.I283N – 2,56%

IVS9+5G>A – 2,56%IVS9+1G>A – 1,28%

IVS11+1G>C – 1,28%p.C357R – 1,28%c.632delC – 2,56%

16 mutações diferentesLi et al.(20) China 796 Mutações com alta frequência

p.R243Q, p.EX6-96A>G, p.V399V,p.R241C, p.R111*, p.Y356*, p.R413P, e IVS4-1G>A

76,33% das mutações localizadas nos éxons 3, 6, 7, 11 e 12194 mutações diferentes, das quais 41 não tinham sido

descritas anteriormente

Fenilcetonúria: aspectos genéticos, diagnóstico e tratamento

285Rev Soc Bras Clin Med. 2017 out-dez;15(4):282-8

sos não retornaram para a coleta da segunda amostra e foram considerados perdidos.(13)

Além do diagnóstico no período neonatal, a PKU pode ser diagnosticada tardiamente, porém menos frequentemente, pela sintomatologia. Este achado foi confirmado em estudo prévio na Bahia, com 111 indivíduos com PKU, dos quais 82% dos casos tiveram o diagnóstico pela triagem neonatal e 18% pela presença da doença clínica, sendo a principal manifestação a deficiência intelectual, variando de leve à grave.(11) Outro estudo recente con-duzido no Pará mostrou que, em cerca de 3% dos casos, o diag-nóstico foi tardio; em 17%, não foi informado se o diagnóstico foi precoce ou tardio; e, na maioria dos casos (80%), ele foi precoce.(9)

Ainda em relação ao Teste do Pezinho, o obstetra, o pediatra e a equipe de enfermagem desempenham papéis fundamentais na orientação. Tais profissionais de saúde precisam orientar pre-viamente os pais sobre os benefícios da detecção precoce das doenças a serem triadas e quais são elas, os riscos existentes para o recém-nascido que não é submetido ao teste, a idade adequa-da para sua realização, a necessidade de exames confirmatórios posteriores para os que foram positivos na triagem, a possibili-dade de falso-positivo (positivo na triagem e negativo no diag-nóstico), a possibilidade de falso-negativo (deixar de identificar alguns/poucos recém-nascidos afetados), o processo de acompa-nhamento e recebimento dos resultados.(26)

TRATAMENTO

Os principais tratamentos disponíveis para indivíduos com PKU incluem o uso da fórmula metabólica e a dieta restritiva.

A fórmula metabólica, um composto livre de PHE, mas rico em aminoácidos essenciais, é um componente fundamental no tratamento da PKU, fornecido pelas Secretarias Estaduais de Saúde. Um estudo conduzido no Rio Grande do Sul com 44 pacientes com PKU mostrou que, quando questionados sobre o fornecimento da fórmula metabólica, 16 deles responderam ter recebido de forma correta a quantidade prescrita e 25, rece-beram o tipo correto para sua idade.(29) Foi expressivo o número de pacientes que referiu não ter recebido a quantidade correta da fórmula metabólica prescrita no ano anterior, como tam-bém o tipo prescrito. As causas para o abastecimento irregular da fórmula metabólica foram problemas de fornecimento pelo Estado, tanto por falta de aquisição do produto, como também em sua distribuição.(29) Este achado foi confirmado em outro estudo, que revelou que a interrupção de fornecimento da fór-mula metabólica foi a principal causa de judicialização para tra-tamento da PKU no Estado do Rio Grande do Sul.(30) Dezenove pacientes gaúchos com PKU, correspondente a 16,8% dos casos

de PKU do Estado, recorreram a ações judiciais para obter trata-mento para PKU. Do total de pacientes, 12 tinham idade entre 3 a 11 anos e 18 solicitaram a fórmula metabólica. Nos 19 casos, o réu foi o Estado e, em 18 deles, os tribunais decidiram a favor dos desmandantes. Os principais motivos para que os pacientes com PKU recorressem aos tribunais foram violação do direito à saúde (n=16); interrupção no fornecimento de tratamento pelo Estado (n=16); falta de condições econômicas da família para a aquisição do produto (n=15); e risco para o desenvolvimento de deficiência intelectual no paciente (n=11). Os autores concluem que, diferente de outras doenças genéticas, os pacientes com PKU buscam o meio jurídico para obter um produto já incluso na política de assistência farmacêutica nacional, sugerindo que falhas de gestão são um dos fatores desencadeantes da judiciali-zação no país.(30)

Os estudos apresentados previamente(29,30) contradizem os pressupostos estabelecidos pela portaria 199 de 30 de janeiro de 2014, que diz que o governo, por meio do SUS, deve ser responsável por disponibilizar às pessoas com doenças raras me-lhor acesso a todo medicamento que, comprovadamente, atue de forma positiva no tratamento dessas doenças.(7)

O tratamento dietético para PKU consiste em uma alimen-tação com baixo teor de PHE, pois este último pertence ao grupo dos aminoácidos nutricionalmente essenciais, não sendo produzidos pelo organismo humano, devendo ser supridos pela alimentação. Deste modo, a ausência deste aminoácido é fatal, e o tratamento desta condição genética é dietético, com restrição de alimentos que contenham tal aminoácido.(8,16)

O tratamento deve ser introduzido no primeiro mês de vida (idade ideal até os 21 dias) da criança afetada e prescrito por um nutricionista. Estudo recente com 17 indivíduos com diag-nóstico de PKU clássica obtido até o sétimo dia do nascimento referiu que 23,53% deles iniciaram o tratamento após o primei-ro mês de vida.(31) Outras pesquisas realizadas nos Estados de Tocantins(4) e Sergipe(3) mostraram que o tratamento para PKU teve início com 57±17,6 e 51±12 dias, respectivamente. Este atraso no início do tratamento para PKU pode comprometer sua eficácia na prevenção da deficiência intelectual nas crianças acometidas. Deste modo, são importantes o diagnóstico e o tra-tamento precoces, para evitar o atraso neurológico irreversível.

O tratamento dietético tem como objetivos principais man-ter os níveis sanguíneos de PHE de acordo com o recomendado para fenilcetonúricos e evitar as manifestações clínicas da doen-ça. Deve ser mantido durante toda a vida, pois níveis elevados de PHE podem alterar as funções cognitivas e provocar hiperativi-dade, instabilidade emocional, entre outros sinais.(21)

Mulheres fenilcetonúricas grávidas ou em idade fértil devem realizar um controle minucioso dos níveis séricos de PHE, tan-

Quadro 2. Classificação bioquímica das hiperfenilalaninemia (HPA) Fenótipo bioquímico Concentração de PhE sérica (mg/dL) Atividade enzimática (%) tratamentoPKU clássica >20 <1 SimPKU leve 10-20 1-3 SimHPA não PKU 4-10 >3 Não

PHE: fenilalanina; PKU: fenilcetonúria. Fonte: adaptado de Martins et al.(22)

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to antes, quanto no decorrer da gravidez, de modo a evitar a síndrome da PKU materna, a qual pode ocasionar uma série de anomalias no feto em desenvolvimento, como retardo de cres-cimento intrauterino, baixo peso ao nascimento, microcefalia, cardiopatia congênita, atraso neurológico e até mesmo a morte. O efeito teratogênico é intensificado na organogênese, ou seja, nas primeiras semanas gestacionais, período em que a mulher pode nem mesmo saber que está grávida. Portanto, a melhor prevenção é um controle dietético adequado e rigoroso. Assim, mulheres fenilcetonúricas que queiram engravidar devem rece-ber orientação médica.(8,21)

A literatura e a prática clínica mostram que a dieta restritiva para o tratamento de PKU é de difícil adesão, principalmente na infância e adolescência, devido à integração social facilitada pelo compartilhamento de alimentos (notória na fase escolar) e aos eventos sociais.(32) Estes fatores contribuem para que o fenilce-tonúrico consuma alimentos com alto teor proteico disponíveis na ocasião. Este achado foi comprovado por um estudo,(13) que mostrou que o controle dietético foi menor na adolescência, pois o número de dosagens de PHE alteradas chegou a 100% após os 10 anos de idade. Ainda, a restrição proteica favorece e até mesmo estimula o consumo de alimentos ricos em carboidratos (especialmente carboidratos simples) e lipídios, em particular, aumentando o risco de ganho de peso. Assim, pacientes com PKU e excesso de peso são potencialmente vulneráveis ao desen-volvimento da síndrome metabólica. Deste modo, é necessário o acompanhamento clínico-laboratorial que previna as alterações metabólicas, o ganho excessivo de peso e suas consequências − em especial o risco cardiovascular.(33) Pais de 17 indivíduos com PKU com idades entre 7 e 14 anos relataram dificuldade no controle da dieta dos filhos, principalmente após a entrada da criança na escola.(31) Esta mesma pesquisa mostrou que nenhum dos participantes conseguiu manter os níveis de PHE em índices normais ao longo da vida.(31)

Estudo recente avaliou a frequência da abandono do trata-mento dos pacientes com PKU do Serviço de Referência em Triagem Neonatal do Pará. Houve um caso de abandono de tratamento (2,77%) sem justificativa, confirmado entre os 36 pacientes que compuseram a amostra.(9)

Vale ainda ressaltar que, independentemente do momento do diagnóstico da PKU, o tratamento é recomendado. Mesmo tardiamente, a dieta deve ser instituída, a fim de minimizar a progressão contínua da doença, ainda que lesões irreversíveis já tenham se estabelecido. Tardiamente, a possibilidade de PKU

deve ser avaliada para todos os pacientes com deficiência intelec-tual de causa não esclarecida, especialmente se não passaram pela triagem neonatal. A existência de mais de um caso na família ou consanguinidade reforça a suspeita.(2,16) Estudo recente mostrou que o tratamento para PKU preveniu a deficiência intelectual em 90,5% dos pacientes com PKU. Além disto, o controle dos níveis de PHE e um melhor nível socioeconômico se associaram aos melhores desempenhos em quociente de inteligência.(34)

Em suma, a dietoterapia é eficaz na prevenção do atraso neu-rológico na PKU, mas é complexa, de longa duração, impõe severas restrições aos pacientes e seus familiares, e implica em mudanças nos hábitos alimentares.

Vale ainda destacar que os pacientes com PKU fazem acom-panhamento em centros de tratamento especializado, denomi-nados Serviço de Referência em Triagem Neonatal, composto por equipe multidisciplinar. No tratamento desta doença, os nu-tricionistas merecem destaque, pois são responsáveis pela elabo-ração da dieta para o paciente afetado. Assim, é imprescindível a informação quanto aos níveis de PHE nos alimentos.

Os alimentos permitidos na alimentação de fenilcetonúricos contêm baixos teores de PHE (zero a 20mg PHE/100g de ali-mento); aqueles proibidos exibem alto teor de PHE (>200mg PHE/100g de alimento); e os com médio teor de PHE (10a 200mg PHE/100g do alimento) devem ser consumidos com cautela.(21) Segundo o guia dietético do Protocolo Clínico e Di-retrizes Terapêuticas para PKU, os alimentos são classificados em grupos verde, amarelo e vermelho para aqueles permitidos, intermediários (alimentos com médio teor de PHE) e proibidos a pacientes com PKU, respectivamente(35) (Quadro 3).

Apesar de altos níveis de PHE, o leite materno pode ser uti-lizado na alimentação de lactentes com PKU, ou seja, a PKU não contraindica o aleitamento materno. Dois estudos investi-garam os efeitos do aleitamento materno no desenvolvimento de crianças com PKU.(36,37) Um deles, realizado com 39 lactentes com PKU, com até 6 meses de idade, referiu que as crianças em uso de aleitamento materno apresentaram ingestão adequada de PHE e tirosina, além de maior adequação de ingestão proteica e energética.(36) O outro avaliou dez lactentes com PKU em trata-mento inicial com fórmula láctea, seguida do AM em demanda livre, em todas as mamadas.(37) As mães foram orientadas da ne-cessidade de controle rigoroso dos níveis de PHE em seus be-bês com PKU, por meio de exames sanguíneos frequentes para prevenir efeitos deletérios para o sistema nervoso central e os reflexos deste no desenvolvimento infantil. Dos lactentes, 80%

Quadro 3. Descrição dos alimentos permitidos, proibidos e controlados no tratamento dietético da fenilcetonúria (PKU) Permitidos/verde Proibidos/vermelho Controlados/amarelo

Mel, balas de frutas e de gomas, pirulitos de frutas, picolés de frutas, algodão-doce, geleias

de frutas, goiabada, farinha de tapioca, polvilho de mandioca e sagu. Entre as bebidas estão os

sucos de frutas artificiais, refrigerantes isentos de aspartame, groselha, café, chá, e alguns cremes

e pudins nos sabores baunilha, morango e caramelo e pós para milk-shake isentos de PHE

Carnes e embutidos, feijão, ervilha, soja, grão-de-bico, lentilha, amendoim, leite e derivados, achocolatado, ovos, nozes,

gelatinas, bolos, farinha de trigo, alimentos industrializados com altos teores de PHE, pães em geral, biscoitos, e alimentos para

fins especiais contendo aspartame

Massas feitas sem ovos e com farinha de trigo de baixo teor de proteína, arroz, batata-inglesa, batata-doce, batata-salsa, mandioca,

cará, abóbora, abobrinha, berinjela, beterraba, brócolis, cenoura, chuchu, couve-flor, jiló, quiabo, repolho, vagem, tomate, pepino,

pimentão, cebola, folhosos e frutas em geral

PHE: fenilalanina. Fonte: adaptado de Monteiro e Cândido.(21)

Fenilcetonúria: aspectos genéticos, diagnóstico e tratamento

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conseguiram manter limites seguros de PHE e desenvolvimento nos índices normais. O tempo de amamentação variou de 1 mês e 5 dias a 14 meses. Este estudo evidenciou a viabilidade da con-tinuidade do aleitamento materno no tratamento de crianças com PKU, desde que os níveis de PHE sejam rigorosamente controlados.(37)

Pacientes com PKU podem apresentar deficiência de cálcio como resultado da ingestão inadequada de alimentos fonte de cálcio e pela baixa disponibilidade deste nutriente proporcio-nada pela dieta. O cálcio está associado à formação óssea, sen-do relevante compreender a necessidade de sua suplementação em fenilcetonúricos, a fim de favorecer o desenvolvimento ósseo esperado.(22)

O nutricionista pode também contribuir na elaboração de receitas aos fenilcetonúricos, tornando sua alimentação mais atrativa e saborosa. Nesta direção, duas pesquisas recentes des-creveram receitas especiais para fenilcetonúricos.(32,38)

Uma delas, conduzida por nutricionistas da Universidade Federal de Minas Gerais, apresentou receitas de bolos (banana, chocolate, laranja e maça), biscoitos (mel, casadinho de goiaba, cookie de uva passa e biscoito de polvilho com cenoura), pan-quecas (banana e legumes), pizzas (tomate e molho branco com couve-flor), pães (batata-baroa e pão de mandioca) e coberturas doces (creme de laranja e glacê de limão) com qualidade senso-rial e nutricional.(32) O principal desafio do estudo foi desenvol-ver estes produtos sem o uso de leite, ovos e farinha de trigo, ali-mentos estes ricos em PHE. As receitas que apresentaram maior aceitação e maiores valores de intenção de compra foram pão de batata-baroa, pão de mandioquinha e panqueca de legumes. Tais preparações mostraram-se adequadas para o consumo de fenilcetonúricos, uma vez que o valor médio de PHE encontra-do nas porções foi de 22,08mg.(32) Os autores sugerem que as receitas elaboradas sejam utilizadas como material didático a ser entregue às famílias dos pacientes, com o intuito de incentivar o preparo de receitas no domicílio e, assim, melhorar a adesão ao tratamento.(32)

Outro estudo descreveu a receita de um bolo de maracujá com calda de chocolate com 94% de intenção de compra.(38) Nestas duas pesquisas,(32,38) o grupo de provadores foi composto por indivíduos saudáveis acostumados a consumir receitas com os ingredientes padrão (leite, ovos e farinha de trigo).

As receitas apresentadas foram atrativas, saborosas, saudá-veis, com baixos teores de PHE e boa aceitabilidade, podendo ser incluídas na dieta dos fenilcetonúricos com segurança. Isto pode contribuir para minimizar as transgressões alimentares, frequen-tes no tratamento dietético de pacientes com PKU. Além disto, o desenvolvimento de novas receitas pode melhorar a qualidade de vida e a alimentação destas pessoas e, consequentemente, de suas famílias, que convivem com a dificuldade de encontrar ou elaborar preparações restritas no aminoácido PHE.(38)

CONCLUSÃO

O presente trabalho pode ser considerado do tipo revisão para aqueles iniciantes no tema e/ou uma atualização para aque-les que vivenciam a fenilcetonúria diariamente, na condição de paciente ou cuidador, em especial o médico, o nutricionista ou

os familiares. Espera-se que os dados aqui apresentados sirvam de referência e apoio aos profissionais de saúde no atendimento a pacientes acometidos por fenilcetonúria. Sabe-se que o em-poderamento do conhecimento científico destes profissionais é responsável pela melhora da qualidade de assistência à saúde prestada a este grupo de indivíduos. Somado a isto, a compre-ensão sobre a doença pelo paciente é condição necessária para o sucesso terapêutico.

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