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MEMORIAL Maurício Holanda Maia Prá Começo de Conversa ••• Sem dúvida este é o tom que gostarei de dar a ste Memorial, o de uma conversa. Posso estar, com isto, incorrendo no risco de descaracterizá-Io en- quanto um dos instrumentos formais com os quais es- ta Comissão avaliará cada candidato e, consequente- mente, incorro no risco de diminuir minhas possibi- lidades de êxito no que diz respeito a minha pre- tensão de ser um dos "eleitos". Aceito esse risco. Sucede, pois, que cada vez que sou convidado a re- fletir sobre minha trajetória no campo educacio- nal/profissional não consigo diferenciá-Ia (será que deveria?) da minha história pessoal, das minhs esperanças, minhas desilusões, meus desejos, meus medos, minha realidade, desse meu jeito indefinido de ser extrovertido e tímido, dos elementos que a vida (essa vidinha feita de preocupações cotidianas e da capacidade de criar utopias) nos dá para com- preendermos a realidade. Sobre um Ex-macaco Não sei se vocês gostam de Kafka, ou se algum de vocês já teve oportunidade de ler uma pequena narrativa sua chamada "Relatório para uma Acade- mia". A razão de eu citá-Ia aqui, é que ela serve para contar-Ihes parte da minha história. A referi- da narrativa trata do relatório que um macaco (um ex-macaco) envia a uma academia de cientistas, cu- Educação em Debate, Fort. 15-16 jan.jdez. 1988 195

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MEMORIAL

Maurício Holanda Maia

Prá Começo de Conversa •••

Sem dúvida este é o tom que gostarei de dar aste Memorial, o de uma conversa. Posso estar, com

isto, incorrendo no risco de descaracterizá-Io en-quanto um dos instrumentos formais com os quais es-ta Comissão avaliará cada candidato e, consequente-mente, incorro no risco de diminuir minhas possibi-lidades de êxito no que diz respeito a minha pre-tensão de ser um dos "eleitos". Aceito esse risco.Sucede, pois, que cada vez que sou convidado a re-fletir sobre minha trajetória no campo educacio-nal/profissional não consigo diferenciá-Ia (seráque deveria?) da minha história pessoal, das minhsesperanças, minhas desilusões, meus desejos, meusmedos, minha realidade, desse meu jeito indefinidode ser extrovertido e tímido, dos elementos que avida (essa vidinha feita de preocupações cotidianase da capacidade de criar utopias) nos dá para com-preendermos a realidade.

Sobre um Ex-macaco

Não sei se vocês gostam de Kafka, ou se algumde vocês já teve oportunidade de ler uma pequenanarrativa sua chamada "Relatório para uma Acade-mia". A razão de eu citá-Ia aqui, é que ela servepara contar-Ihes parte da minha história. A referi-da narrativa trata do relatório que um macaco (umex-macaco) envia a uma academia de cientistas, cu-

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riosos de conhecer o seu processo aceleradíssimo (5anos) de humanização. Então o tal macaco(ex-macaco) conta como, uma vez na África, foi al-vejado por dois tiros, enjaulado e colocado num na-vio para a Europa. Como, esprimido contra as gradesd: uma incômoda jaula improvisada, percebe que pre-Clsava de uma saída "Não essa liberdade idílica queos homens falam" ••• Mas de uma saída. Conta entãocomo, aprendeu a fumar, a cuspir sobre os marinhei-ros e a beber. Conta como numa noite de festa emque alguém, por descuido, deixou uma garrafa dea~uardente ao seu alcance, destampou-a, exva-zlou-lhe to~o o líquido de um só fôlego, e no augeda ~mb:iagues grunhio algo que os presentes espan-tadlsslmos entenderam como um "Alô" e concluiramque o macaco aprendera a falar. Essa foi a sua saí-da, ~ma vez que na cidade pode trocar uma jaula nozoologic~ pelas luzes dos palcos e picadeiros (apalavra e mp.smo um espetáculo). Conta da avidez comque aprendia, "consumindo" numa certa ocasião cincoprofessores ao mesmo tempo. Finalmente conclui di-ze~~o qu: ~pó: 05 ~anos de intenso esforço, atingiua lntel~genCla ~edia de um homem europeu", que nãot~m por lSS0 razoes para orgulho ou para lamenta-çoes, que apenas escolhera o que lhe parecera a me-lhor saída.

~sta estória mexe muito comigo, quando revejoo menlno interiorano, pobre e amedrontado, que che-gan~o na,capital, foi aos poucos percebendo que sehavla salda para um filho de família operária estaera o domínio da palavra. Ou então, quando ao'falarde um macaco de ter alcançado "a inteligência médiade.um.homem europeu", me lembro de Frantz Fanon, ump:lqulatra,negro que_lutou pela libertação da Argé-11a.do domlnio frances e que testemunha a afirmati-v~ àO~ colonizadores f rarice ses de que "a inteligên-~la m:d~a de um homem argelino" era comparável alnt:ll~encia de um francês lobotomizado (quanta su-p:rl~r~dade). Isto me faz pensar no nosso processohlstorlco (complexo psicológico) de cúlonizado.

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"I{ latório para uma Comissão"

Sou o filho mais novo de uma família operarlaorigem camponesa. Morávamos no interior, e tinha

te anos de idade quando meu pai, que era carpin-L iro, morreu, deixando-nos com uma pensão que eraI metade do seu já pequeno salário. Naquela épocalprendi a cantar " •.•prá frente Brasil, salve à se-I ção", mas não entendia porque o Presidente doBrasil se chamava Emílio Garrafa Azul. Era tempo deH ca e meu irmão mais velho (tinha 14 anos) passouII estudar à noite para trabalhar na "emergência",que era como chamavam então as frentes de trabalho.

om 10 anos, (os meus irmãos já tinham terminado oginásio, e lá não tinha 22 grau) viemos para Forta-leza, já que, como mamãe dizia." a única herançaque ela podia nos deixar era o saber" e "em Forta-leza as coisas eram mais fáceis". Em 1970, as coi-

as já não eram fáceis mas havia "milagres", e ascoisas não eram ainda tão difíceis. Meus irmãos fo-ram se empregando gradativamente, e também gradati-vamente abandonando os estudos. Como eu era o me-nor, fui sendo poupado para ver se em mim se reali-zaria o "pequeno sonho pequeno burgues" de vencerna vida pelo estudo. Se em parte os satisfiz (a mi-nha mãe e meus irmãos) já que me formei, em parteos decepcionei, pois já não sou bem comportado eesta vida é "invencível".

Em 1978, ainda bastante jovem, tomei contatocom um grupo de jovens cristãos, onde aprendi entreoutras coisas algumas estórias sobre o amor cristãoe também a falar para um auditório de mais de 5pessoas (não sem tremer). Este contato com a igrejafoi muito importante no sentido de que logo depois(por ocasião do Congresso Eucarístico), a igrejaassumiu posturas bem mais claras de crítica a so-ciedade, e que com toda aquela estória de migran-tes, injustiça institucionalizada, etc., fui perce-bendo que certas das minhas angústias, das minhasraivas, tinham outra explicação que o humor (oumau-humor), que haviam instituições e "injustiças

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institucionalizadas"; e que numa sociectade que ti-nha dois lados, o lado dos injustiçados direta eindiretamente era o meu.

Minha surpresa foi ainda maior quando na Esco-la Técnica, vi que havia um "Centro Cívico" e queos participantes deste movimento discutiam políticae poética, que o pessoal lia um jornal chamado Tri-buna Operária que corajosamente criticava o gover-no, os Estados Unidos, etc. Nesta época, ouvi falarde anistia, presos políticos, exílio, regime, in-flação, multinacional, Jari, do manganês, da Serrado Navio, e mais tarde da Guerrilha do Araguaia. E,como o macaco da estória, mantive os olhos bemabertos para não perder nenhum lance deste movimen-to, e acabei por descobrir que não era por acasoque cada pessoa estava no lugar que estava, e queos lugares eram diferentes entre si. Então entendique o filho do diretor (da Escola), que vinha decarro e fazia o curso de Edificações, ia seguramen-te no futuro ser diretor (de alguma coisa), enquan-to eu, que não podia sequer desejar fazer Edifica-ções por que o material de desenho é caríssimo, fa-zia o curso de Turismo (eu adorei) que era o cursomenos valorizado, e no final da aula pegava o ôni-bus do Conjunto Ceará prá almoçar feijão com ~rroze metade de um ovo, nunca ia dirigir nada. Feliz-mente a percepção de que a intensificação das desi-gualdades sociais neste País tinha colocado muitomais gente numa situação pior do que a minha, evi-tou que minha revolta se restringisse a uma "coisapessoal", e me fez ver que e~te mesmo sistema quegerava a desigualdade entre mim e o filho do dire-tor, gerava desigualdades maiores, passíveis de umarevolta maior, e mais necessária., Em 1982, como estudante de Turismo, fui recep-cionista dum Congresso de Orientadores Educacio-nais, e naquele vai e vem de gente e 'de conversas,uma coisa me chamou a atenção, o nome de um talPaulo Freire. Mais ainda, me chamou atenção o títu-lo de um livro desse Paulo Freire que estava aliexposto a venda. Era "Educação como Prática de Li-

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li e fiquei maravilhado com mi-na época (estava concluindo o 2Qhesitação quanto a vestibular,

dIssipou, resolvi, contra a vontade com-ia fazer vestibular parado Olímpio e os espíritos

me ajudaram e acerteiFísica, que me permitiramme preocupei muito com

('Ilut s", já que entre eles e a roleta russa que111 o xames vestibulares não há muita diferença

ti !(U lidade, apenas de sentido pois que o mecan~s-1\111 qu serve para excluir, serviu para eu me a.n-:

I I \I I e.A faculdade serviu para algumas coisas, prin-

I Ipllmente para descobrir que havia muito de p~ss~-vIII de (dos alunos), por vezes de incompetenc~a(11 professores e alunos)!. de falta de compromiss~(ti todos) e de mistificaçao (do todo). Mas ~prend~também que neste jogo de forças, nesta relaçao sa-h r-poder, tinha muito o que se tirar a serviço d:11mprojeto pessoal e social de mudanças, e resolv~otimizar os resultados neste sentido. A~gumas vezes'sta otimização coincidiu com a avaliaçao dos pro-[essores, outras vezes, não. ~ preciso, no entant~,ressaltar (e me descupem os professores universita-rios se estiver sendo indelicado) que mais do quena universidade, aprendi no meu contato com os seg-mentos das classes populares, com os favelados, a-gricultores, meninos (ditos) de rua, com militantessindicais e partidários, com companheiros de traba-lho e de projetos, com leituras e sobretudo com oenorme processo de educação coletiva que foram osavanços e quedas dos movimentos sociais nestes úl-timos anos.

Hoje, estou formado(?), e como aqueleex-macaco, não tenho grandes motivos para orgu-lhar-me ou lamentar-me. Sinto sim, uma ponta de or-gulho (a gente é muito criança) ~quando perceb~ .quena conjuntura educacional do Pa~s, sou um ~r~v~le-giado, por um lado, e sou uma dessas exceçoes dos

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que, com uma certa dose de esforço próprio e sortefurou o cerco da reprodução capitalista, o que da-ria um belo exemplo moral para o deleite da ideolo-gia da igualdade de chances, mas sinto-me tambémmuito pequeno quando diante de um agricultor anal-fabeto, ou do meu vizinho operário, percebo que omeu saber (que foi adquirido com o seu trabalho)ainda serviu tão pouco à sua causa (mas a gentecresce).

_ ~ isto aí, para não colocar vocês numa situa-çao mais difícil, vou falar um pouco, e talvez maisobjetivamente, das minhas experiências profissio-nais.

Bom, em 1983, trabalhei como bolsista numa es-cola na Coordenador ia de Registros Escolares, ondeaprendi alguma coisa da Burocracia Escolar no quese refere ao aluno, onde percebi como é fácil supe-rar a burocracia quando se tratam de "vontades po-líticas" e onde experimetei, dia a dia, mais umapequena revolta de receber como bolsista mais oumenos 1/10 do que ganhavam certos funcionários efe-tivos, para fazer o mesmo trabalho que estes fa-ziam: Em 84 trabalhei todo o ano como professor deingles num pequeno colégio particular de classe mé-dia, onde aprendi sobre as condições de trabalho doprofessor-estudante, e também aprendi a não resol-ver a angústia de adolescentes que não entendem bemporque tanto ~empo estudando coisas tão pouco inte-ressantes e tao carentes de sentidos para eles epara o mundo que começam a descobrir. Em 85 aprendinuma pequena empresa Imob í lí.ár La familiar (os dire-tores eram a mãe e os filhos) a ser o único funcio-nário de muitos patrões, a representar 08 interes-ses da empresa junto aos clientes, a varrer o chãodatilografar, e ainda o endereço de quase todos o~bancos comerciais do centro de Fortaleza. Em agostode 86, voltei para o colégio, e para as aulas deinglês. E para uma fictícia função de Coordenador,onde descobri o espinhoso caminho que se situa en-t:e representar o poder, e, tanto quanto possível,nao recorrer ao autoritarismo com os colegas pro-

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.ores. Esta foi também a época em que fiz '0111\"10 de 2 grupos de adolescentes num colégio católl

111, dentro dos referenciais teóricos-religiosos duI' I oral da Juventude Estudantil, e muito gratifi-I 111e, acompanhei de perto uma tentativa de implan-I I·ào de educação popular para crianças numa escoladi omunidade, no Mucuripe. Em 86, tíve a minha~Iilnde chance de "vencer na vida". Fui trabalhar no1\.111o do Estado do Ceará - BEC, em Jaguaruana, pe-'1" 'na cidade do Baixo-Jaguaribe, ond: não aprendi,11I.1me perguntei, como lavradores sao capazes deI uuí.nhar léguas e esperar horas numa porta de bancop"ra receber o FUNRURAL, ou na linguagem bancáriadI' agência, "o dinheiro dos velhos". Lá aprendi no'11anto, porque os mais ricos da cidade não preci-.1Inentrar na fila. Vencer na vida tornou-se uma

Ilpção insuportável e sobreviver, uma decisão in-Itnnsferível e inadiável. Bom, afatei-me do Banco ed\' setembro de 86 a setembro de 87, trabalhei comIImu entidade suissa num projeto de educação e as-

lstência a meninos (ditos) de rua. Foi lá (eu era"tio") onde aprendi dos meninos muito mais do que111s ensinei.Dentro da minha experiência profissional, que-tO incluir também uma que se distingue por sua ne-

'Itividade. Ficar desempregado. Nesta consegui en-l 'nder como um pai de família (eu sou arrimo) pode('11gar ao desespero e tentei entender que força im-pulsionava em progressão geométrica o preço do fei-luo, do arroz, do óleo, do leite e do resto.

Há cinco meses sou funcionário concursado da'mpresa municipal de Limpeza e Urbanização E-

MLURB, onde, com alguns colegas estamos tentando('tnseguir a façado do óbvio, que seria, enquantofuncionário do serviço público, servir a coletivi-d de. Quero ressaltar também a experiência (profis-. onal? não profissional?) informal que tem sido o

m u trabalho junto com outros companheiros na Bar-(l a da Amizade, um trabalho com os meninos da Pra-

ça José de Alencar, onde a gente tenta mexer comducação, arte e cultura popular ao mesmo tempo.

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Finalmente, quero lhes dizer alguma coisa dasminhas expectativas, das razões por que gostaria defazer este mestrado. Primeiro gosto de estudar, ecom as leituras realizadas durante o período uni-versitário, duas coisas me ficaram patentes: uma,que a formação teória dos estudantes de pedagogiana graduação, deixa muito a desejar, outra que osaber teórico elaborado na universidade pode serfundamental na construção de uma nova educação e deuma nova sociedade. Segundo, que na nossa hierar-quia social, um mestrado representa para mim umaopção de criação de condições concretas de sobre-viência digna (enquanto profissional) aliada a umaexistência digna (enquanto pessoa social)

No que diz respeito a temas para estudo, temalgumas coisas no campo da sociologia da educação,da filosofia da ciência, e das teorias do comporta-mento e do desenvolvimento cognitivo que aguçam mi-nha curiosidade. Assim é que penso como possíveistemas a delimitar para pesquisa: o pensamento dasclasses populares sobre a escola; ou o trabalho daarte e cultura popular com os meninos da praça comoalternativa de uma pedagogia para as crianças daclasse popular; ou como as crianças da classe popu-lar elaboram suas representações do mundo e de sí,ou ainda qual o papel da arte e do jogo na educação(principalmente das crianças) para a formação depessoas criativas, alegres e justas.

Considero tudo que disse aqui, como o iníciode uma boa conversa. Se estiver certo, que elacon-tinue.

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